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OS CINCO E OS RAPTORES

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OS CINCO E OS RAPTORES

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Série Os Cinco - 14 EDITORIAL NOTÍCIAS Título original FIVE HAVE PLENTY OF FUN Tradução de MARIA DA GRAÇA MOCTEZUMA Editorial Notícias Hodder and Stoughton, Ltd. - 1952 Reservados todos os direitos para Portugal Pela EDITORIAL NOTÍCIAS LISBOA 1

Índice Capítulo I - No Casal Kirrin Capítulo II - Uma visita durante a noite Capítulo III - Notícias desagradáveis Capítulo IV - A Berta Capítulo V - Na manhã seguinte Capítulo VI - Uma série de contrariedades Capítulo VII - Uma pequena conversa Capítulo VIII - Uma transformação Capítulo IX - Uma chamada telefónica Capítulo X - Uma coisa estranha Capítulo XI - Novamente na Ilha Kirrin Capítulo XII - Muito suspeito Capítulo XIII - Um horrível susto Capítulo XIV - Onde está a Zé? Capítulo XV - Algumas descobertas no bosque Capítulo XVI - A João Capítulo XVII - No acampamento do Gringo Capítulo XVIII - O Tim torna-se muito útil Capítulo XIX - Um plano divertido Capítulo XX - Uma aventura perigosa Capítulo XXI - Absolutamente inesperado Capítulo XXII - Estes miúdos são formidáveis

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Capítulo I No Casal Kirrin - Parece-me que já estamos em Kirrin há quase um mês - disse a Ana, espreguiçando-se e enterrando os pés na areia. - E afinal acabámos de chegar! - Tens razão. É curioso como nos habituamos depressa a Kirrin - observou o David. - Ainda ontem chegámos e parece, concordo contigo, Ana, que já aqui estamos há imenso tempo. Eu gosto muito de Kirrin. - Oxalá os dias bonitos se mantenham durante as nossas férias - disse o Júlio, afastando o Tim, que estava a desafiá-lo com as patas para a brincadeira. - Sai daqui, Tim. Tu tens muita resistência. Nós tomámos banho, corremos e jogámos a bola, o que é bastante para tão pouco tempo. Vai brincar com os caranguejos! - Uuuuf! - fez o Tim, desgostoso. Depois arrebitou as orelhas ao ouvir o som duma campainha, no passeio junto à praia. - Acho que o Tim ouviu o homem dos sorvetes - disse o David. - Algum de vocês quer comprar? Todos quiseram. A Ana recebeu o dinheiro de cada um dos pequenos e foi buscar os sorvetes, seguida pelo Tim. Daí a pouco apareceu com cinco gelados e o Tim saltando à sua volta. - Não há nada melhor do que estar deitado na areia quente, ao sol, comendo sorvetes e sabendo que se tem ainda três semanas de férias. E em Kirrin! - acrescentou o David. - Na verdade é maravilhoso! - concordou a Ana. - Que pena o teu pai ter hoje visitas, Zé. Quem são? Temos que nos vestir para lhes aparecer? - Acho que sim - respondeu a Zé. - Oh! Tim, comeste o teu sorvete duma só vez. Que desperdício! - Quando chegam essas visitas? - perguntou o David. - Cerca do meio-dia e meia hora - respondeu a Zé. – Vêm almoçar. Mas graças a Deus o meu pai disse que não quer ver, ao almoço, crianças a andarem à volta dos seus hóspedes. Por isso a minha mãe disse-me para irmos, ao meio-dia e meia hora, cumprimentar as visitas- e voltarmos a sair com um cesto cheio de coisas para um piquenique. - Devo acrescentar que o teu pai tem por vezes boas ideias - observou o David. - as visitas são alguns cientistas amigos dele? - São. O pai está a fazer um estudo muito importante em conjunto com dois colegas - explicou a Zé. - Parece que um deles é um génio e fez uma descoberta tão maravilhosa que nem se pode explicar. - Que espécie de descoberta? - perguntou o Júlio: - Algum foguete para viagens diárias à Lua, alguma bomba, ou... - Não. Parece-me tratar-se de qualquer coisa que serve para haver energia eléctrica quase de graça! - respondeu a Zé. - Ouvi o meu pai dizer que é a maior descoberta feita até hoje. Ele anda entusiasmado. Chama-lhe uma «dádiva à humanidade» e sente-se orgulhoso por tomar parte no seu estudo. - O tio Alberto é muito inteligente, não acham? - disse a Ana. O pai da Zé era tio do Júlio, do David e da Ana, e estes eram portanto primos da pequena. Zé era o diminutivo de Maria José. Mais uma vez tinham ido todos passar a Kirrin o resto das suas férias, as últimas três semanas. O tio Alberto era na verdade muito inteligente. Mas apesar disso a Zé por vezes gostaria que ele fosse um pai mais vulgar e jogasse a bola e o ténis com as crianças sem se irritar tanto com os seus gritos, gargalhadas e brincadeiras.

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Ele sempre discutia quando a mãe da Zé lhe participava que os sobrinhos iam passar uma temporada em Kirrin. - São umas crianças barulhentas, que andam sempre aos gritos - dizia ele. - Tenho de me fechar à chave no escritório e não sair de lá. - Pois sim, Alberto - respondia-lhe a esposa. - Mas tu bem sabes que eles praticamente passam o dia fora. A Zé precisa de conviver com outros pequenos de vez em quando e os nossos sobrinhos são muito bem-educados. A Zé gosta muito de os ter aqui. Os quatro primos tinham o maior cuidado em não incomodar o dono da casa, pois ele possuía um temperamento irritável e gritava com toda a força quando estava zangado. Mas, como disse o Júlio, ele não tinha culpa de ser um génio, e os génios não são pessoas vulgares. - Especialmente os grandes cientistas, que podem facilmente fazer explodir o mundo num acesso de mau humor - concluiu o Júlio, muito sério. - Bem, eu não gostaria que ele me fizesse explodir por eu bater com alguma porta ou por o Tim se pôr a ladrar – observou a Zé. - Pois eu achava uma certa graça ir pelos ares, para ver como era - gracejou o David. - Não sejas palerma - disse a Zé. - Algum de vocês quer tomar outro banho? - Eu não. Mas sou capaz de me ir deitar à beira da água deixando as ondas molharem-me - disse o David. - Aqui neste sítio sinto-me meio torrado. - Acho uma boa ideia - concordou a Ana. - Mas quanto mais calor tiveres mais fria te parecerá a água. - Vamos! - exclamou o David, levantando-se. - Daqui a pouco estou com a língua de fora como o Tim. Os pequenos foram até à beira da água onde rebentavam pequenas ondas. - Está gelada! - gritou a Ana. - Eu já esperava. Não consigo deitar-me, só posso estar sentada! Contudo, daí a pouco estavam todos deitados dentro da água, à beira-mar, deixando-se rebolar na areia, quando não havia ondas. Era tão agradável sentir o fresco da água em todo o corpo! De repente o Tim ladrou. Ele não estava ao pé dos pequenos mas sim na areia, mesmo à beira-mar. Achava que era desnecessário molhar-se outra vez. A Zé levantou a cabeça. - Que aconteceu, Tim? - perguntou ela. - Não vem aí ninguém. Mas o David tinha ouvido qualquer coisa e sentara-se apressadamente. - Parece-me que estão a tocar uma campainha para nos chamarem. Deve ser do Casal Kirrin! - Mas ainda não chegou a hora do almoço! - exclamou a Ana, desconsolada. - Talvez - disse o Júlio, levantando-se. - É o que faz ter deixado o relógio no bolso do casaco! Eu devia lembrar-me de que o tempo em Kirrin passa mais depressa. O pequeno foi a correr buscar o relógio de pulso à algibeira do casaco. - É uma hora - gritou ele. - Já passa um minuto. Despachem-se, pois vamos chegar atrasadíssimos! - Que maçada! - exclamou a Zé. - A minha mãe não vai ficar nada satisfeita connosco porque já devem ter chegado os dois cientistas! Os pequenos pegaram nos casacos e desataram a correr. Felizmente o Casal Kirrin não ficava longe, por isso depressa chegaram ao portão. Lá fora via-se um carro enorme, um dos últimos modelos americanos. Mas não havia tempo para o examinar! Entraram, silenciosamente, pela porta do jardim. A mãe da Zé foi ter com eles, muito zangada. - Desculpe, tia Clara – disse o Júlio. - Desculpe-nos por favor. A culpa foi toda minha. Era o único que levava relógio. - Estamos muito atrasados? - perguntou a Ana. - Já começaram a almoçar? Quer que nos vamos embora com o cesto do piquenique sem os interromper?

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- Não - respondeu a tia Clara. - Felizmente o tio ainda está fechado no escritório com os seus dois amigos. Já bati o gong uma vez, mas acho que não ouviram! Toquei a campainha para vocês virem pois eles podem aparecer dum momento para o outro e o tio ficaria zangado se não estivessem aqui para os cumprimentar! - Mas os amigos do pai geralmente não desejam ver-nos - observou a Zé, surpreendida. - Sim, mas um destes tem uma filha um pouco mais nova do que tu, Zé. Acho que também é mais nova do que a Ana - explicou a mãe. - E pediu-me para vos conhecer porque a pequena vai para o vosso colégio no próximo período. - O melhor é irmo-nos lavar depressa - disse o Júlio. Mas precisamente naquela altura abriu-se a porta do escritório e apareceu o tio Alberto com os dois amigos. - Olá! Estes são os seus pequenos? - perguntou um deles, parando. - Acabam de chegar da praia - disse logo a tia Clara. – Acho que não estão muito bem arranjados. Eu... - Ora! - exclamou o senhor. - Não peça desculpas por causa dumas crianças assim. Formam um grupo bem simpático. São formidáveis! O senhor falava com um sotaque americano e tinha uma cara muito risonha. Os pequenos gostaram logo dele. O senhor voltou-se para o pai da Zé. - São todos seus? - perguntou ele. - Aposto que tem um grande orgulho neles! Como conseguiram esta cor? Parecem uns peles-vermelhas! Quem me dera que a minha filha Berta tivesse este aspecto! - Não são todos meus filhos - respondeu o tio Alberto, horrorizado com tal ideia. - Só tenho esta - continuou, pondo a mão no ombro da Zé. - Os outros são meus sobrinhos. - Deve concordar que tem um esplêndido rapaz - disse o americano remexendo os cabelos encaracolados e curtos da Zé. Ela detestava que lhe mexessem na cabeça mas como o senhor a confundira com um rapaz, riu-se alegremente! - A minha filha vai para a tua escola - disse ele à Ana. - Faz-lhe companhia, sim? Ao princípio ela deve sentir-se acanhada. - Claro que faço - respondeu a Ana. simpatizando com aquele americano muito alto e de voz grossa. Nem parecia um cientista! O outro sim, parecia. Era um homem espadaúdo, usava óculos com aros de tartaruga e, como o tio Alberto tantas vezes fazia, olhava fixamente para longe como se não estivesse a ouvir uma palavra do que diziam. O tio Alberto achou que aquela tagarelice já tinha durado bastante e fez um sinal aos pequenos para se retirarem. - Venham almoçar - disse ele aos seus amigos. Um deles seguiu-o logo mas o americano deixou-se ficar para trás. Enfiou as mãos nas algibeiras e tirou uma nota de libra que deu à Ana. - Comprem uns rebuçados - disse ele. - E sejam bons para a minha Berta, sim? Depois entrou na sala de jantar, fechando a porta com estrondo. - Meu Deus, que dirá o pai a um barulho destes? - disse a Zé, rindo. - Eu simpatizei com ele. E vocês? O automóvel que está lá fora deve pertencer-lhe. Não consigo imaginar o outro a andar de bicicleta quanto mais ao volante dum carro! - Tomem lá o cesto com o vosso almoço e desapareçam! - disse a tia Clara, cheia de pressa. - Tenho de ir ver se está tudo em ordem! Ela meteu o cesto nas mãos de Júlio e entrou na sala de jantar. O Júlio sorriu satisfeito ao sentir o peso do cesto. - Vamos embora - disse ele. - Mas que bom! Outra vez todos para a praia!

Capítulo II

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Uma visita durante a noite Daí a dois minutos os «Cinco» chegaram à praia e o Júlio abriu o cesto do almoço. Estava cheio de sanduíches, bolachas e chocolates. Havia ainda um pacote com ameixas e duas garrafas de limonada. - Está bem fresca - disse o David tirando as garrafas para fora. - Que é isto? Um bolo de frutas! Um estupendo bolo de frutas! Estamos cheios de sorte! - Uuuuf! - fez o Tim cheirando o cesto com ar de aprovação. Havia um embrulho em papel-pardo, contendo um osso e um frasco com pasta de carne. A Zé abriu-o. - Arranjei isto para ti, Tim - disse ela. - Anda, agradece! O Tim deu-lhe umas lambedelas com tal satisfação que a pequena até ficou aflita. - Passa-me a toalha, Jú! - pediu ela. O Tim molhou-me a cara toda. Vai-te embora, Tim. Já basta de agradecimentos! Vai-te embora, já te disse. Como queres que eu ponha pasta de carne nas tuas bolachas se não tiras o focinho do frasco? - Tu estragas o Tim - observou a Ana. Pronto, pronto. Não precisas de fazer essa cara tão zangada, Zé! Concordo que ele é merecedor. Sai daqui com esse osso, Tim. Deita um cheiro horrível! Os pequenos saborearam as sanduíches de sardinhas com tomates, seguidas doutras com ovos cozidos e alface. Depois passaram ao bolo de frutas e beberam limonada. - Não posso compreender como há pessoas que preferem as refeições à mesa, podendo fazer piqueniques - disse o David. - Vejam lá os tios e os seus amigos como estão a comer um almoço quente, dentro de casa com um dia destes. Livra! - Gosto daquele americano alto - declarou a Zé. - Ah! ah! Todos nós sabemos porquê - disse o David em ar de troça. - Ele confundiu-te com um rapaz. Quando perderás essa mania, Zé? - O Tim está a ver se apanha o bolo! - gritou a Ana. - Depressa, Zé! Agarra-o! Depois do almoço todos se deitaram na areia e o Júlio começou a contar uma história muito longa sobre uma partida que ele e o David tinham feito ao professor, no colégio. Mas ficou muito aborrecido porque ninguém se riu na parte mais engraçada e então sentou-se para perceber o motivo. - Estão todos a dormir - disse ele, decepcionado. Depois levantou-se e ao mesmo tempo o Tim arrebitou as orelhas. Ouvia-se ao longe um ruído forte. - É o carro do americano, não achas Tim? - disse o Júlio. Pouco depois viu o carro rolando pela estrada marginal. O dia estava quente de mais para fazer qualquer coisa que não fosse descansar. Os «Cinco» sentiam-se muito felizes por poderem estar ali deitados preguiçosamente no primeiro dia de férias que passavam juntos. Em breve começariam a pôr em prática vários planos, mas o primeiro dia em Kirrin era destinado a relembrar as coisas passadas e a arreliar o Tim, voltando a meterem-se naquele «ambiente», como dizia o David. O Júlio e o David haviam estado no estrangeiro durante quatro semanas e a Ana primeiro fora acampar e depois estivera em casa dos seus pais com uma companheira de colégio. A Zé ficara sozinha em Kirrin, por isso achava maravilhoso os «Cinco» encontrarem-se outra vez juntos para passarem três semanas de Verão. E ali estavam em Kirrin, ao pé do mar, na sua esplêndida praia, vendo os bonitos barcos e a curiosa ilha no meio da baía. Como de costume o primeiro dia foi passado numa espécie de sonho e depois os pequenos começaram a fazer os seus planos. - Vamos novamente à Ilha Kirrin - propôs o David. - A última vez que ali estivemos foi há muito tempo. - Vamos pescar à Enseada das Lagostas - sugeriu o Júlio.

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- Vamos explorar algumas das grutas dos penhascos - disse a Zé. - Eu já tinha pensado em lá ir nestas férias mas sozinha não achava graça nenhuma. No terceiro dia, precisamente quando estavam a acabar de fazer as camas, tocou o telefone. - Eu vou atender - gritou o Júlio para a tia Clara, dirigindo-se ao aparelho. Do outro lado falou uma voz muito apressada. - Quem fala? Ah! és tu, Júlio? És o sobrinho do dr. K..., não é verdade? Escuta, diz ao teu tio que eu apareço aí esta noite. Vou tarde. Diz-lhe que espere por mim. É muito importante. - Mas o senhor não lhe quer falar perguntou o Júlio, surpreendido. - Eu vou chamá-lo, se o senhor... Mas a ligação fora interrompida. O Júlio ficou muito intrigado. A pessoa que telefonara nem sequer tinha dito o nome, mas o Júlio reconhecera-lhe a voz. Era aquele gigantesco e alegre americano que tinha ido visitar o seu tio dois dias antes. Que teria acontecido? Porque estaria tão nervoso? O pequeno foi procurar o tio mas ele não estava no escritório. Por isso falou com a tia Clara. - Tia Clara - disse ele. - Julgo que foi aquele americano enorme que telefonou. O mesmo que veio cá almoçar no outro dia. Pediu-me que dissesse ao tio Alberto que vem aqui esta noite. Vem tarde, disse ele. E é preciso o tio esperá-lo pois é um assunto muito importante. - Meu Deus! - exclamou a tia Clara assustada. - Então ele vem passar a noite aqui? Não temos nenhum quarto de dormir disponível. - Ele não disse isso, tia Clara - explicou o Júlio. – Tenho muita pena de não lhe poder dar mais pormenores mas, precisamente quando eu lhe disse que ia chamar o tio Alberto, ele desligou. Nem me deixou acabar a frase. - Que estranho! - exclamou a tia Clara. E que aborrecimento! Como poderei mandá-lo embora se ele quiser ficar? Tenho a impressão de que vai aparecer depois da meia-noite, no seu grande carro. Oxalá não tenha surgido qualquer contratempo com o trabalho que o teu tio está a fazer. Sei que é uma coisa muitíssimo importante. - Talvez o tio tenha o número do telefone do americano e possa falar com ele para saber mais qualquer coisa - disse o Júlio, esforçando-se por ser prestável. - Onde está o tio? - Parece-me que foi ao correio - respondeu a tia Clara. - Quando voltar digo-lhe o que se passou. O Júlio contou aos outros o misterioso telefonema. O David ficou muito satisfeito. - No outro dia não tive tempo de examinar bem aquele enorme automóvel - disse ele. - Tenciono ficar acordado até à chegada do americano e depois vou lá abaixo para ver o carro. Tem uns guarda-lamas como eu nunca vi. O tio Alberto ficou tão surpreendido com o telefonema como qualquer dos pequenos e quase se zangou com o Júlio por não saber mais pormenores. - Que quererá ele? - perguntou o tio, como se o Júlio fosse obrigado a saber! - Ficou tudo combinado no outro dia. Tudo! Cada um de nós três tem a sua parte no trabalho a fazer. Por acaso a minha é a menos importante e a dele é a de maior responsabilidade. Ele levou todos os papéis e não é possível que se tenha esquecido de algum. Aparecer assim a meio da noite! Que estranho! Nenhum dos pequenos, a não ser o David, estava disposto a ficar acordado, esperando pela chegada do americano. O David acendeu o candeeiro da mesa de cabeceira e começou a ler um livro. Tinha a certeza de que adormeceria e nenhum barulho seria capaz de o despertar se não arranjasse qualquer coisa para se entreter. Enquanto lia estava de ouvido alerta para dar pela chegada de qualquer carro. Bateram as onze e depois a meia-noite. O pequeno ouviu o relógio grande da entrada dar as doze badaladas. Santo Deus! O tio Alberto não devia estar nada satisfeito por ter que esperar até tão tarde!

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Bocejou e voltou a página. Leu, leu e leu. Meia-noite e meia hora. Uma hora. Então pareceu-lhe ouvir ruído lá em baixo e abriu a porta do quarto. Sim, era o tio Alberto, no escritório. O David podia distinguir a sua voz. - Pobre tia Clara, também deve estar levantada - pensou ele. - Eu oiço as suas vozes. Daqui a pouco adormeço em cima do livro. Vou até ao jardim apanhar um pouco de ar fresco. Depois ficarei bem acordado. Vestiu o roupão e desceu, silenciosamente, a escada. Abriu a porta do jardim e foi lá para fora. Deixou-se ficar à escuta durante algum tempo, esperando distinguir a distância o ruído do carro do americano, no silêncio da noite. Mas tudo o que ouviu foi o som das rodas duma bicicleta rolando na estrada. Uma bicicleta! Quem seria, a uma hora daquelas! Talvez fosse o polícia da vila. O David deixou-se ficar no escuro, escutando. Era um homem que pedalava a bicicleta. O pequeno mal distinguia a sua silhueta, uma grande sombra negra recortando-se na noite estrelada. Com grande surpresa ouviu o homem desmontar e depois um ruído nas folhas da sebe, como se a bicicleta tivesse aí ficado. Depois alguém entrou no jardim, sem fazer barulho, dirigindo-se à janela do escritório. O David ouviu bater nos vidros e a janela foi aberta com todo o cuidado. Apareceu a cabeça do tio Alberto. - Quem é? - perguntou ele em voz baixa. - É você, Elbur? E de facto era! O David percebeu tratar-se do americano que visitara o seu tio dois dias antes. - Eu vou abrir-lhe a porta - disse a tia Clara. Mas o senhor já estava a saltar pelo parapeito da janela! O David foi para a cama, muito intrigado. Que estranho! Por que razão o americano aparecia assim tão secretamente durante a noite? E por que motivo ia de bicicleta e não no seu automóvel? O pequeno adormeceu pensando naquilo tudo. Não chegou a perceber se o americano se teria ido embora ou se a tia Clara lhe arranjara uma cama no rés-do-chão. Na verdade, quando acordou na manhã seguinte, chegou a pensar se não teria sido tudo um sonho. - A pessoa que telefonou veio ontem à noite? - perguntou ele à tia Clara. Ela fez um sinal afirmativo. - Veio, mas façam favor de não falar sobre o caso. Não quero que se saiba. Já se foi embora. - Era alguma coisa importante? - perguntou o David. - O Júlio ficou convencido que era, quando atendeu o telefone. - Realmente era uma coisa muito importante - respondeu a tia Clara. - Mas não no sentido que vocês julgam. Não me perguntes nada por agora, David. E não apareças à frente do tio. Ele está muito zangado esta manhã. - Então qualquer coisa vai mal no trabalho que está a fazer - pensou o David, indo avisar os outros. - Parece uma coisa muito extraordinária - disse o Júlio. – Não faço ideia do que seja. Os pequenos mantiveram-se a distância do tio Alberto. Ouviram-no resmungar com a tia Clara sobre qualquer coisa sem importância, e bater com a tampa da secretária, como fazia sempre que estava de mau génio, e por fim sentar-se para começar o seu trabalho da manhã. A certa altura a Ana apareceu a correr, muito surpreendida. - Ó Zé! Estive agora mesmo no nosso quarto e sabes o que vi? A tia Clara armou uma cama de campanha a um canto, com cobertores e tudo! Fica tão mal ao pé das outras camas, da tua e da minha! - Então vem alguém cá para casa. Uma miúda ou uma senhora -- concluiu o David. - Ah! ah! Espero que seja uma preceptora para ensinar a Ana e a Zé a portarem-se como pequenas senhoras.

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- Não sejas idiota - disse a Zé, surpreendida e zangada com a novidade. - Vou perguntar à minha mãe o que se passa. Eu não quero ninguém no meu quarto. Não quero! Mas quando a pequena ia ter com a mãe, a porta do escritório abriu-se e o seu pai gritou, chamando pela mulher. - Clara! Diz aos pequenos que lhes quero falar. Diz-lhes que venham ao meu escritório IMEDIATAMENTE! - Meu Deus, parece zangado. Que teremos nós feito? – observou a Ana, assustada.

Capítulo III Notícias desagradáveis Os quatro pequenos e o Tim desceram a escada de roldão. A mãe da Zé já ia ter com eles para os chamar. - Ah! estão aí - disse ela. - Com certeza ouviram o tio dizer para irem ao escritório. Eu também vou. Mas não façam barulho. Bem me basta o que fez o tio! Aquilo era muito misterioso. Que teria a tia Clara que ver com o que se passava? Entraram os cinco no escritório com o Tim e viram o tio Alberto em pé, junto ao fogão, com um ar furioso, parecendo uma tempestade. - Alberto, eu podia ter dito aos pequenos... - começou a tia Clara, calando-se logo, ao ver o marido com uma cara tão carrancuda, tal qual a Zé em certas ocasiões. - Tenho uma coisa a dizer-lhes - começou ele. - Lembram-se daqueles dois cientistas, meus amigos, que estão a fazer um trabalho comigo? Recordam-se do americano? - Muito bem responderam todos. - Deu-nos uma libra - disse a Ana. O tio Alberto nem ouviu aquela observação. - Bem - continuou. - Ele tem uma filha com um nome muito disparatado... - Berta - disse a tia Clara. - Não me interrompas! - exclamou o tio Alberto. - Sim, chama-se Berta. Bem, o pai dela, o Elbur, foi avisado de que lhe vão raptar a filha. - Porquê? - perguntou o Júlio, intrigado. - Porque o pai dela conhece mais segredos acerca do nosso actual trabalho do que qualquer outra pessoa - explicou o tio. - E ele disse-me com toda a franqueza que se a pequena, a... não me lembro do nome... - Berta - disseram todos. - Diz que se a Berta for raptada ele entregará todos os nossos cálculos para reaver a filha - continuou o tio Alberto. - Ora! Que grande estupidez.! Quer tornar-se um traidor! Como pode atrever-se a divulgar segredos tão importantes só por causa duma miúda? - Alberto, é a sua única filha e ele adora-a - observou a tia Clara. - Eu sentiria o mesmo se fosse a Zé. - As mulheres são sempre tolas e disparatadas - disse-lhe o marido com ar desgostoso. - Ainda bem que não conheces nenhuns cálculos secretos senão irias contá-los ao leiteiro! Aquilo era tão ridículo que os pequenos começaram a rir. O tio Alberto olhou para eles indignado. - Este caso não é para rir. Para mim foi um grande choque ouvir um dos cientistas mais eminentes do mundo dizer-me que revelaria todos os nossos segredos ao inimigo se essa tal... essa tal... - Berta - disseram todos ao mesmo tempo. - Se essa tal Berta fosse raptada - continuou o tio Alberto. - Por isso pediu-me para ter aqui em casa durante três semanas a... a Berta. Nessa

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altura, o nosso trabalho estará concluído e posto em prática, e os nossos cálculos estarão em segurança. Fez-se silêncio. Ninguém parecia satisfeito. A Zé estava com uma cara furiosa. Por fim não pôde conter-se mais. - Então a cama que está no nosso quarto é para ela! Oh, mãe, nós temos que ficar, durante três semanas, apertadas no nosso quarto, sem nos podermos mexer? É horrível! - Desta vez concordo contigo, Zé - disse o tio Alberto. – Mas acho que tens de te conformar. O Elbur ficou em tal estado por causa da ameaça de rapto, que é impossível fazê-lo ver as coisas como elas são. É capaz de rasgar todos os apontamentos e diagramas e queimá-los, caso não lhe façamos a vontade. E isso significaria que não poderíamos continuar o nosso trabalho. - Mas por que razão vem ela para aqui?- perguntou a Zé, firmemente. - Por que a atira para cima de nós? Não tem parentes ou amigos que possam tomar conta dela? - Oh! Zé, não sejas tão egoísta - disse-lhe a mãe. – Parece que a Berta já não tem mãe e acompanha o pai a toda a parte. Não têm parentes no nosso país nem amigos de confiança. E o pai dela não a quer mandar para a América, pois foi avisado pela polícia de que a podem seguir até lá, e ele não poderia acompanhá-la nesta altura. - Mas por que motivo nos escolheu ele a nós? - disse outra vez a Zé. - Ele não sabe nada a nosso respeito! - Bem - disse a tia Clara com um ligeiro sorriso. - Ele viu-os no outro dia e gostou muito de vocês, especialmente de ti, Zé, ainda que eu não perceba a razão. Prefere deixar a Berta com vocês quatro do que com qualquer outra família. A senhora depois calou-se, olhando para os quatro pequenos com uma expressão cansada. O Júlio foi até junto da tia. - Não se preocupe - disse ele. - Nós tomaremos conta da Berta! Não pretendo fingir que estou contente por termos de passar as nossas últimas três semanas de férias, tão preciosas, com uma miúda desconhecida. Mas compreendo o que sente o pai dela. Está assustado por causa da filha e por pensar que poderá desvendar os segredos se acontecer alguma coisa à pequena. - Que maneira de proceder! - resmungou o tio Alberto. - Todo o trabalho dos últimos dois anos! O homem deve estar maluco! - Agora, Alberto, não penses mais nisso - disse a tia Clara. - Eu estou satisfeita por receber a pequena. Também não gostava de que a Zé fosse raptada e por isso compreendo-o perfeitamente. Tu nem darás pela presença da Berta. Mais um não faz diferença. - Isso dizes tu - resmungou o marido. - Seja como for, está resolvido. - Quando vem ela? - perguntou o David. - Esta noite. De barco - informou o tio Alberto. - Temos que pôr a Joana ao corrente do que se passa. Mas mais ninguém. Compreendido, não é verdade? - Sim - responderam os quatro pequenos ao mesmo tempo. Então o tio Alberto sentou-se à sua secretária e os pequenos saíram, apressadamente, com a tia Clara e o Tim. - É uma maçada, e eu lamento muito - disse a tia Clara. – Mas acho que não podemos fazer outra coisa. - Aposto que o Tim a vai detestar - disse a Zé. - Agora não comeces a tornar as coisas difíceis, Zé – observou o Júlio. - Já todos concordámos em que não há outra coisa a fazer e por isso vamo-nos esforçar por ver tudo pelo melhor lado. - Eu não gosto de me esforçar por ver as coisas pelo melhor lado - disse a Zé, obstinada. - Bem - respondeu-lhe o David amigavelmente. - Eu, o Júlio e a Ana podemos voltar para casa e levar a Berta connosco, se as coisas te desagradam assim tanto. Não quero passar aqui três semanas se tencionas ficar amuada durante todo o tempo. - Está bem, não fico amuada - afirmou a Zé. - Estou só a descarregar o meu mau génio. Tu bem sabes.

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- É melhor não confiar em ti - disse o David rindo. - Olha, não estragues este dia em que ainda estamos só os cinco. Todos tentaram corajosamente divertir-se o mais possível e foram a remar no barco da Zé até à Enseada das Lagostas. Resolveram não pescar, e tomaram banho ao largo, na água verde-claro. O Tim não gostava de tomar banho ao largo. Era muito fácil saltar do barco para a água, mas achava extremamente difícil saltar para dentro dele outra vez! A tia Clara arranjara-lhes mais um esplêndido almoço. – Um almoço de primeira qualidade para compensar uma desilusão - dissera ela, rindo. A Ana até lhe dera um abraço de agradecimento. Haviam feito um grande alarido por terem de receber uma pessoa desconhecida e só a tia Clara sentira verdadeira pena daquela miúda em perigo. A comida era tanta que também chegou para o lanche e por isso os pequenos só voltaram para casa no fim da tarde. O mar estava tão calmo e azul que quase se via o fundo. - Acham que a Berta já terá chegado? - perguntou a Zé, mencionando o nome da pequena pela primeira vez, depois de terem saído pela manhã. - Acho que não respondeu o Júlio. - O teu pai disse que ela chega esta noite. Deve vir de barco, durante a noite, para não ser vista. - Ela naturalmente está muito assustada - disse a Ana. – Deve ser tão desagradável obrigarem uma pessoa a refugiar-se junto de gente desconhecida, num lugar também desconhecido. Eu detestava isso. Chegaram à praia e puxaram o barco para a areia, ficando em lugar seguro. Depois dirigiram-se ao Casal Kirrin. A tia Clara ao vê-los ficou muito satisfeita. - Vêm a boas horas para jantar - disse ela. - Se comeram tudo o que levaram não devem ter muita vontade. - Oh! eu estou cheio de apetite - respondeu o David, fingindo que farejava o ar como o Tim tantas vezes fazia. - Tenho a impressão de que a tia Clara fez a sua sopa de tomate! - És bom adivinho - observou a tia Clara, rindo. - Eu queria fazer-vos uma surpresa! Agora vão lavar-se, para jantarem. - A Berta ainda não veio, pois não? - perguntou o Júlio. - Ainda não - respondeu a tia. - Temos que descobrir outro nome para ela, Júlio. Agora não devemos tratá-la por Berta. O tio Alberto não apareceu para jantar. - Ele janta no escritório - explicou a tia Clara. Todos deram um suspiro de alívio. Ninguém tinha vontade de falar com o tio Alberto naquela noite. Ele levava muito tempo a conformar-se com qualquer contrariedade! - Que queimados estão vocês! - disse a tia Clara olhando para os pequenos. - Zé, a pele do teu nariz está a cair. - É verdade - respondeu a Zé. - Não gosto nada. Meu Deus! Estou cheia de sono! - Vocês vão deitar-se assim que acabarem de comer - disse a tia. - Isso queria eu. Mas então a Berta? - lembrou a Zé. - A que horas chega? Parece mal estar deitada quando ela vier. - Eu não sei a que horas chegará - disse-lhe a mãe. - Mas só eu espero por ela. Não é preciso mais ninguém. A pequena deve chegar exausta e assustada. Dou-lhe alguma coisa de comer, um prato de sopa de tomate, se vocês deixarem alguma, e depois meto-a na cama. Tenho a impressão de que ela ficará mais satisfeita se não encontrar nenhum de vocês esta noite. - Está bem, eu vou deitar-me - resolveu o David. - Ontem vi chegar o senhor Elbur, já era muito tarde, não era? Esta noite quase não posso abrir os olhos. - Então vamos todos para a cama - concluiu o Júlio. – Podemos ler se não conseguirmos dormir. Boa noite, tia Clara. Obrigado mais uma vez pelo almoço que nos preparou!

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Os quatro pequenos foram para o primeiro andar, dando grandes bocejos. O Tim seguiu-os, vagarosamente, satisfeito por a Zé se ir deitar tão cedo. Daí a dez minutos estavam todos a dormir. Os rapazes dormiram profundamente até à manhã seguinte. As pequenas também adormeceram depressa mas daí a quatro horas a Zé acordou ao ouvir o Tim rosnar. Sentou-se logo na cama. - Que foi? - perguntou ela. - Ah! é a Berta que chega, Tim! Vamos ficar quietos para ver como ela é. Daí a um minuto o Tim rosnou outra vez. A Zé ouviu o ruído de passos na escada. Depois a porta do quarto abriu-se suavemente e apareceram duas pessoas iluminadas pela luz do patamar. Uma era a tia Clara. A outra, claro está, era a Berta.

Capítulo IV A Berta A Zé, sentada na cama, olhou fixamente para a Berta. Esta tinha naquela altura um aspecto muito estranho. Estava toda embrulhada em casacos e mais abafos e chorava tanto que a sua cara estava cheia de lágrimas. A Ana não acordara. O Tim ficou tão admirado que, como a Zé, limitou-se a sentar, olhando também para a Berta com atenção. - O Tim que não faça barulho - murmurou a mãe da Zé, receando que o cão começasse a ladrar. A Zé pôs uma mão sobre a coleira do Tim. A senhora empurrou suavemente a Berta para dentro do quarto. - A pequena enjoou na viagem de barco - disse ela à Zé. – Está cheia de medo e muito aflita. Quero que ela se deite o mais depressa possível. A Berta continuava a soluçar mas foi acalmando à medida que se sentia menos enjoada. A mãe da Zé era tão carinhosa que a pequena ficou logo mais satisfeita. - Tira essas coisas - disse a mãe da Zé à Berta. - Meu Deus, trazes tanta roupa vestida! Mas foi bom vires assim agasalhada, se vieste num barco aberto. - Como devo tratar a senhora? - perguntou Berta, com um último soluço. - Acho melhor tratares-me por tia Clara, como os outros - respondeu a mãe da Zé. - Sabes por que vieste passar uma temporada connosco, não é verdade? - Sei sim - respondeu a Berta. - Eu não queria vir. Queria ficar com o meu pai. Não tenho medo de ser raptada. A Nina toma conta de mim. - Quem é a Nina? - perguntou a tia Clara, despindo os casacos à pequena. - É a minha cadelinha - respondeu a Berta. - Ficou lá em baixo, no cesto em que a trouxe. A Zé ficou alerta ao ouvir aquilo! - Uma cadelinha! – exclamou ela. - Nós não podemos ter aqui uma cadela! O meu cão não o permitiria. Não é verdade, Tim? O Tim ganiu ligeiramente. Estava a seguir com o maior interesse aquela visita nocturna. Quem seria? Apetecia-lhe saltar da cama e ir cheirar a Berta, mas a Zé continuava a segurá-lo pela coleira. - Bem, eu trouxe a minha cadelinha e ela agora tem de ficar aqui - disse a Berta. - O barco já se foi embora. E além disso eu não viria para aqui sem a Nina. Foi o meu pai que me deu autorização para a trazer. - Oh! mãe, explique-lhe como o Tim é feroz e capaz de atacar outro cão que venha para aqui - pediu a Zé. - Eu não quero ter em Kirrin mais um cão, seja de quem for.

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Com grande contrariedade da Zé, a sua mãe não deu a menor importância ao que ela dissera. Continuou ajudando a Berta a despir os seus casacos, camisolas, saias e sabe Deus que mais. A Zé nem podia acreditar que alguém conseguisse vestir toda aquela roupa numa noite de Verão. Por fim a Berta ficou só com uma camisola e uma saia, era uma pequenita airosa, com grandes olhos azuis e cabelo loiro e ondulado. A tia Clara puxou-lhe o cabelo para trás e limpou-lhe as lágrimas com um lenço. - Obrigada - disse a pequena. - Agora posso ir buscar a Nina, a minha cadelinha? - Esta noite não - respondeu a tia Clara. - Bem vês, tu vais dormir naquela cama de campanha, ali ao canto, e eu não posso trazer a tua cadelinha sem a apresentarmos primeiro ao Tim, com todo o cuidado, para ele não a morder. Agora não são horas para nos preocuparmos com isso. Queres uma sopa de tomate e bolachas? - Sim, se faz favor. Estou com bastante apetite - disse a Berta. - Enjoei tanto no barco que não devo ter nada no estômago. - Então vai lavar-te à casa de banho e veste o teu pijama - disse a tia Clara. - Depois deita-te na tua cama que eu vou buscar a sopa. Mas ao ver o ar carrancudo da Zé, a senhora mudou de ideias. Era preferível não deixar logo na primeira noite a pobre Berta sozinha com uma Zé irritada. - Acho melhor não ir eu buscar a sopa - disse ela. - ó Zé, vai tu buscá-la, sim? Está a aquecer no fogão. Deixei em cima da mesa a tigela e as bolachas. A Zé levantou-se, sem dizer palavra. Ao ver a Berta tirar uma camisa de dormir de dentro da sua mala, cerrou os lábios com força. - Nem sequer usa pijamas - pensou ela. - Que parva! E teve o descaramento de trazer uma cadela! Onde estará? Vou espreitá-la. Mas a mãe adivinhou-lhe o pensamento e saiu do quarto atrás dela. - Zé! - chamou a senhora. - Não quero que abras o cesto da cadelinha. Não desejo assistir esta noite a lutas entre cães. Antes de me deitar vou pô-la no canil do Tim. A Zé desceu sem dizer nada. A sopa estava quase a ferver e a pequena tirou-a logo do fogão. Depois deitou-a na tigela que pôs sobre um pires com umas bolachas à volta. De repente voltou-se, ao ouvir uma espécie de choro. Este vinha dum grande cesto que estava a um canto. A Zé sentiu um grande desejo de ir abri-lo mas sabia perfeitamente que se a cadelinha fugisse e fosse ter com a sua dona o Tim acordava toda a gente a ladrar! Não valia a pena correr o risco. Então levou a sopa para cima. A Berta já se havia deitado e parecia muito mais animada. A Ana continuava calmamente a dormir sem dar por nada do que se passava. O Tim saltara da cama da Zé e fora examinar de perto a recém-chegada. Cheirou-a delicadamente e a Berta estendeu a mão fazendo-lhe festas na cabeça. - Que olhos tão bonitos ele tem - disse a Berta. - Mas não é um cão de raça. - Não digas isso à Zé - avisou a tia Clara. - Ela gosta muito do Tim. Agora sentes-te melhor? Espero que te dês bem connosco, Berta. Eu sei que tu não querias vir, mas o teu pai estava tão preocupado! E é melhor conheceres a Ana e a Maria José antes de ires para o colégio delas, no próximo período. - A Maria José é a que tratam por Zé? - perguntou a Berta surpreendida. Eu não tinha a certeza se era um rapaz ou não. O meu pai disse-me que havia aqui três rapazes e uma rapariga, e a rapariga está a dormir naquela cama, não está? A pequena apontou para a Ana. A tia Clara fez um sinal afirmativo. - Sim, aquela é a Ana. O teu pai julgou que a Zé era um rapaz e por isso te disse que tinha visto uma única rapariga. Os dois rapazes estão no quarto aqui ao lado. - Eu não gosto muito da Zé - confessou a Berta. - Ela não me quer aqui, nem a mim nem à minha cadelinha.

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- Tu hás-de gostar muito da Zé, quando a conheceres melhor - afirmou a tia Clara. - Aí vem ela com a sopa. A Zé entrou no quarto e não ficou nada satisfeita ao ver o Tim junto da cama de campanha e a Berta a fazer-lhe festas. Pousou a sopa com modos bruscos e puxou pelo Tim. - Obrigada - disse a Berta pegando avidamente na tigela. – Que sopa tão boa! A Zé meteu-se na cama, voltando-se para o outro lado. Sabia que não se estava a portar bem mas achava insuportável a ideia de alguém trazer outro cão para o Casal Kirrin. O Tim saltou para a cama da Zé deitando-se sobre os pés da pequena. A Berta fez um ar de aprovação. - Amanhã a Nina ficará também em cima dos meus pés! – disse ela. - É uma óptima ideia. O «pápi» - é o meu pai - deixa a Nina ficar sempre no meu quarto, mas deita-se num cesto e não na minha cama. Amanhã à noite há-de dormir aos meus pés, como o Tim faz com a Zé. - Nem penses nisso - disse a Zé numa voz zangada. – Nenhum cão, a não ser o Tim, dormirá no meu quarto. - Agora calem-se - ordenou a tia Clara. - Poderemos combinar tudo amanhã quando vocês não estiverem tão cansadas. Eu prometo esta noite tratar da Nina. Deitem-se para baixo e durmam. A Berta sentiu-se de repente cheia de sono e acomodou-se para dormir. Tinha os olhos a fecharem-se mas fazia tudo para os manter abertos e olhar para a mãe da Zé. - Boa noite, tia Clara - disse ela. - É assim que devo tratá-la, não é? Obrigada por ser tão amável comigo. A pequena adormeceu mal acabou a frase. A tia Clara pegou na tigela da sopa e dirigiu-se para a porta. - Estás acordada, Zé? - perguntou ela. A Zé nem se mexeu. Bem sabia que a mãe não estava nada satisfeita com o seu procedimento. Por isso achou melhor fingir que dormia profundamente. - Tenho a certeza de que estás acordada - disse-lhe a mãe. - Espero que estejas envergonhada de ti própria. Vamos ver se amanhã de manhã procedes doutra maneira. É uma pena que te portes como uma autêntica criancinha! Depois saiu do quarto, fechando a porta suavemente. A Zé estendeu a mão para o Tim. Estava realmente envergonhada, mas não sabia se no dia seguinte de manhã se portaria melhor. Aquela estúpida miúda! Tinha a certeza de que a cadelinha era tão estúpida como a dona! E o Tim havia de detestar ter outro cão em casa! Com certeza começaria a rosnar e a uivar de tal maneira que a Berta não teria outro remédio senão mandar a sua cadela embora. - E mais - murmurou a Zé enquanto o Tim lhe lambia os dedos, com amizade. - Tu não queres cá em casa um outro cão nem outra miúda, pois não, Tim? Especialmente uma menina como aquela! A tia Clara foi buscar a cadelinha de Berta e pô-la no canil do Tim, lá fora. O canil tinha uma pequena porta que se podia fechar e assim a cadelinha ficou em segurança, sendo impossível fugir. Depois a tia Clara voltou para casa, arrumou as coisas da Berta, que tinham sido atiradas ao acaso pela sala, e fechou a luz. Subiu as escadas e deitou-se. O tio Alberto dormia profundamente quando a Berta chegara. Embora estivesse convencido de que acordaria para ir receber a pequena com a tia Clara, nem sequer se mexeu. A boa senhora ficara satisfeita. Era muito mais fácil tratar sozinha daquela pequena enjoada e cheia de medo. Quando se deitou deu um grande suspiro. - Meu Deus, nem quero pensar no que irá passar-se amanhã de manhã! Que acontecerá com a Zé tão cheia de génio e os dois cães à solta? A Berta parece ser boa pequena. Bem, talvez as coisas se resolvam melhor do que eu espero.

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Mas as coisas não se resolveriam com grande facilidade na manhã seguinte. Isso era absolutamente certo!

Capítulo V Na manhã seguinte A Zé foi a primeira a acordar na manhã do dia seguinte. Lembrou-se logo dos acontecimentos da noite anterior e olhou para a Berta que estava deitada na cama de campanha. A pequena dormia profundamente com os cabelos louros espalhados pelo travesseiro. A Zé debruçou-se sobre a cama da Ana e abanou-a com força. A Ana acordou, olhando ensonada para a prima. - Que foi, Zé? São horas de nos levantarmos? - Olha para ali - murmurou a Zé, fazendo um sinal com a cabeça na direcção da cama da Berta. A Ana voltou-se e olhou. Ao contrário da Zé, ela gostou do aspecto da Berta. A pequenita adormecida tinha uma expressão doce e agradável. - Ela tem bom ar - murmurou a Ana. A Zé franziu logo a testa. - Soluçava como sei lá o quê quando chegou - disse a Zé. – É um autêntico bebé. E trouxe uma cadela! - Meu Deus, o Tim não vai gostar disso! disse a Ana, aterrada. - Onde está ela? - Está no canil do Tim - respondeu a Zé, ainda em voz baixa. - Não a vi. Estava metida num cesto, mas eu não me atrevi a abri-lo, receando que fugisse pelas escadas acima e brigasse com o Tim. Mas não deve ser muito grande. Estou convencida de que é um horrível pequinês ou alguma estúpida cadela mimada. - Os pequineses não são horríveis - disse a Ana. – Serão pequenos e terão uns narizes achatados muito ridículos, mas são bem valentes. Outro cão cá em casa! Nem quero pensar no que fará o Tim! - É uma pena que a Berta não seja do nosso género - disse a Zé. - Olha para a cara dela, vê-se logo que nunca apanha sol. Parece uma planta de estufa, não achas? Tenho a certeza de que não é capaz de trepar a uma árvore, ou remar, ou de... - Chiu! Ela está a acordar - avisou a Ana. A Berta bocejou e espreguiçou-se. Depois abriu os olhos, olhando à sua volta. Ao princípio não fazia ideia de onde se encontrava mas depois lembrou-se e sentou-se logo na cama. - Olá! - disse a Ana sorrindo para ela. - Não estavas aqui ontem quando me deitei. Fiquei admirada por te ver esta manhã. A Berta simpatizou logo com a Ana. - Tem um olhar agradável - pensou ela. - Não é como a outra. Desta gosto! Sorriu também para a Ana. - Eu cheguei a meio da noite – disse ela. - Vim num barco a motor e o mar estava tão agitado que fiquei enjoada. O meu pai não veio mas um amigo dele acompanhou-me e trouxe-me ao colo para o Casal Kirrin. Até as minhas pernas se sentiam enjoadas! - Pouca sorte! - disse a Ana. - Assim não gozaste a aventura! - Pois não. Mas eu passo bem sem aventuras! - respondeu a Berta. - Não me agradam nada. Especialmente quando o «pápi» fica todo nervoso e muito preocupado por minha causa. Ele começa logo a andar à minha volta. Pobre «pápi»! Nem quero pensar que estou longe dele.

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A Zé prestava atenção à conversa. A pequena não apreciava aventuras! Claro que uma miúda como a Berta não podia gostar de aventuras! - Eu também não me entendo com aventuras - declarou a Ana. - Nós já tivemos muitas. Por mim prefiro-as depois de terminadas! A Zé explodiu. - Oh! Ana! Como podes tu falar assim! Temos passado por algumas aventuras fantásticas e em todas nos temos divertido. Dá-me vontade de não te deixar entrar na próxima. A Ana riu. - Tu não consegues! As aventuras aparecem de repente, como as nuvens no céu, e nós vemo-nos metidos nelas quer gostemos quer não. E tu bem sabes que me agrada participar em tudo com vocês. Mudando de assunto, não são horas de nos levantarmos? - São - respondeu a Zé, olhando para o relógio que estava em cima do fogão de parede. - A não ser que a Berta queira o pequeno almoço na cama. Naturalmente em casa dela é assim que faz. - Não, não é. Eu detesto tomar as refeições na cama - disse a Berta. - Vou-me levantar. A pequena saltou da cama e dirigiu-se à janela. Viu logo a grande baía, brilhando ao sol da manhã, com um lindo tom de azul. O brilho da água do mar reflectia-se no quarto das pequenas, que ficava por isso muito claro. - Oh! eu não descobria por que razão o nosso quarto tinha tanta luz - disse a Berta. - Agora percebo! Que vista maravilhosa! Está tão bonito o mar esta manhã! Aquela ilhazita ao largo o que é? Parece tão bonita. - É a ilha Kirrin - respondeu a Zé orgulhosamente. - É minha! A Berta riu-se, pensando que a Zé estava a brincar. - É tua!?... Aposto que gostavas! Ela é na verdade «formidábel»! - «Formidábel» - disse a Zé, imitando-a. - Não és capaz de dizer «formidável»? Tem um v em vez dum b, bem sabes! - Pois sei. Em minha casa estão sempre a dizer-me essas coisas - respondeu a Berta, continuando a olhar fixamente pela janela. - Tive uma preceptora inglesa que passava o tempo a corrigir-me. Quem me dera que aquela ilha fosse minha! Gostava de saber se o meu «pápi» a poderá comprar. A Zé explodiu outra vez. - Comprá-la! Eu não te disse já que ela é minha? A Berta voltou-se, surpreendida. - Mas tu não falavas a sério, pois não? - disse ela. - Tua? Mas como pode ser tua? - A ilha é realmente da Zé - explicou a Ana. – Sempre pertenceu à família da mãe dela. É a ilha Kirrin. O pai da Zé deu-lha depois duma aventura que nós ali tivemos. A Berta olhou para a Zé cheia de respeito. - Então é tua! Já é ter sorte! Levas-me a visitá-la? - Veremos - disse a Zé bruscamente, sentindo-se feliz por ter impressionado tanto aquela miúda americana. Naturalmente queria levar o seu «pápi» para comprar a ilha! Riu-se para consigo. Ouviram chamar do quarto ao lado. Era o Júlio. - Eh, meninas! Já se levantaram? Estamos muito atrasados para tomar banho antes do pequeno almoço. Eu e o David ainda agora acordámos. - Está aqui a Berta! - respondeu a Ana. - Vamo-nos todos vestir e depois nós apresentamo-vos a Berta. - São teus irmãos? - perguntou a Berta, vestindo-se. - Eu sou filha única. Vou ter medo deles. - Tu não vais ter medo do Júlio e do David - afirmou a Ana. - Também gostarias de ter irmãos como eles. Não achas, Zé? - Acho - disse secamente a Zé, que se sentia muito aborrecida por ver que o Tim estivera sempre ao pé da Berta, com a cauda a dar a dar. - Anda cá, Tim. Não sejas maçador.

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- Oh, ele não maça nada - disse a Berta fazendo-lhe festas na cabeça. - Eu gosto dele. Comparado com a minha Nina acho-o ENORME. Mas tu vais gostar da Nina, Zé, tenho a certeza. Todos a acham encantadora e eu ensinei-a muito bem. A Zé não ligou importância àquelas palavras. Vestiu uns calções e foi-se lavar no quarto de banho. O Júlio e o David estavam lá dentro e ouve uma grande gritaria quando a Zé tentou obrigá-los a apressarem-se e a saírem. A Berta riu-se. - Isto é tão agradável e tem um aspecto tão familiar - observou ela. - Vocês não teriam este género de brincadeiras se não fossem mais do que um. Que devo vestir aqui? - Qualquer coisa muito simples - respondeu Ana olhando para a mala que estava aberta, deixando ver a roupa da pequena. - Este vestido de algodão serve. Ficaram prontos precisamente quando tocou para o pequeno almoço. Espalhava-se pela casa um delicioso cheiro a toucinho frito com tomates, que a Berta aspirou deliciada. - Eu gosto dos pequenos almoços ingleses - disse ela. – Na América ainda não arranjámos um pequeno almoço característico. Este cheiro é de toucinho com tomates, não é? A minha preceptora inglesa sempre me disse que toucinho com ovos é o melhor almoço do mundo. E eu também tenho a impressão de que este deve saber muito bem. O tio Alberto estava à mesa quando os pequenos chegaram. Olhou muito surpreendido para a Berta, sem se lembrar de nada. - Quem é? - perguntou ele. - Oh! Alberto, não finjas que não sabes! - exclamou a tia Clara. - É a filha do Elbur, do teu amigo Elbur. Chegou a meio da noite mas eu não te acordei, pois estavas a dormir profundamente. - Ah!. é verdade! - disse o tio Alberto apertando a mão à assustada Berta. - Tenho muito prazer em te ver aqui... Como te chamas? - Berta - responderam todos em coro. - É verdade, é verdade, Berta. Senta-te. Eu conheço o teu pai muito bem. Está a fazer um trabalho esplêndido. A cara de Berta alegrou-se logo. - Ele está sempre a trabalhar! - disse ela. - Às vezes trabalha toda a noite. - Sim? Que ideia! - exclamou o tio Alberto. - É uma coisa que tu fazes muitas vezes, Alberto - disse a tia Clara, servindo o café. - Mas naturalmente nem dás por isso. O tio Alberto ficou muito admirado. - Ah! sim? Meu Deus! Então há noites em que me não deito? A Berta deu uma gargalhada. - O senhor é como o meu «pápi»! Ás vezes nem mesmo sabe em que dia da semana está! Contudo é considerado um dos homens mais inteligentes do mundo. Mas o tio Alberto já não lhe prestava atenção. Tinha visto de repente na bandeja da correspondência uma carta marcada «importante» e pegara logo nela. - Ou me engano muito ou esta carta é do teu pai - disse ele à Berta. - Vamos lá ver o que ele diz. Abriu a carta e leu para si. Depois olhou para os pequenos. - É a respeito da... da... - Ela chama-se Berta - disse a tia Clara pacientemente. - É a teu respeito, Berta - concluiu o tio Alberto - Mas devo dizer-te que o teu pai tem umas ideias muito estranhas. Sim, muito estranhas. - Que ideias são? - perguntou a tia Clara. - Diz que ela deve disfarçar-se pois pode vir alguém persegui-la - respondeu o tio Alberto. - Quer que mude de nome e, valha-nos Deus, que se vista de rapaz e corte o cabelo! Todos ficaram surpreendidos. A Berta gritou logo: - Não quero. EU NÃO QUERO VESTIR-ME COMO UM RAPAZ! Eu não quero cortar o cabelo. Nem pensem nisso! EU NÃO QUERO!

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Capítulo VI Uma série de contrariedades A Berta parecia tão desolada que a tia Clara resolveu logo intervir com firmeza. - Não te preocupes agora com a carta, Alberto - disse ela. - Depois decidimos o que devemos fazer. Vamos tomar o pequeno almoço em paz e sossego, - Eu não quero cortar o cabelo - repetiu a Berta. O tio Alberto franziu a testa pois não estava habituado a ser contrariado assim tão abertamente. Depois olhou para a tia Clara. - Com certeza que não vais deixar que a... a... como se chama ela? - Berta - responderam todos automaticamente. - Eu já disse que não discutimos esse assunto senão depois do pequeno almoço - declarou a tia Clara num tom de voz que não deixava dúvidas nem sequer ao tio Alberto. Este, franzindo a testa, dobrou a carta e abriu a seguinte. Os pequenos entreolharam-se. A Berta transformada num- rapaz! Santo Deus! Ninguém se parecia menos com um rapaz do que a Berta! A Zé sentia-se muito contrariada. Gostava muito de se vestir como os rapazes mas não lhe agradava nada que outras o fizessem! Olhou para a Berta, que estava a comer com lágrimas nos olhos. Um perfeito bebé! Nunca se pareceria com os rapazes ainda que se vestisse como eles. Que cara de palerma tinha ela! O Júlio começou a conversar com a sua tia acerca do jardim. A tia Clara ficou-lhe agradecida por ter arranjado uma saída para a situação embaraçosa causada pela carta. Gostava muito de Júlio. - Posso ter sempre confiança nele - pensava ela enquanto ia conversando alegremente acerca da fruta do jardim, discutindo quem apanharia os medronhos para o almoço e se os lagartos comeriam todas as ameixas! O David, a Ana e daí a pouco a Berta entraram também na conversa. Só a Zé e o pai continuavam calados. Eram tão parecidos, com as suas expressões muito carregadas, que o Júlio fez um sinal ao irmão. O David riu. - Tal pai, tal filha! - disse ele. - Alegra-te, Zé. Não gostas do pequeno almoço? A Zé ia dar-lhe uma resposta mal-humorada quando a Ana soltou uma exclamação. - Olhem para o tio Alberto! Está a pôr mostarda na torrada! Tia Clara, agarre-lhe na mão! Ele vai comê-la! Todos desataram às gargalhadas. A tia Clara conseguiu agarrar a mão do tio Alberto precisamente na altura em que ele ia meter na boca a torrada com mostarda, lendo uma carta ao mesmo tempo. - Que foi? - perguntou ele admirado. - Oh! Alberto, já é a segunda vez esta semana que tu pões nas torradas mostarda em vez de compota - observou a tia Clara. - Presta um pouco de atenção! Depois disto ficaram todos muito bem dispostos. O tio Alberto riu-se de si próprio e a Zé vendo o lado alegre do caso começou às gargalhadas. A Berta também riu e o Tim desatou a ladrar. A tia Clara sentiu um grande alívio por o seu marido ter feito uma coisa tão disparatada. - Lembra-se daquela vez que o pai deitou leite-creme no peixe cozido? - perguntou a Zé, falando pela primeira vez. E depois achou a melhor maionese que tinha comido até então? A conversa animou-se muito depois daquele episódio e a tia Clara sentiu-se mais satisfeita. - Vocês três, meninas, tirem a loiça do pequeno almoço e depois lavem-na, para ajudarem a

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Joana. Ou então fiquem duas aqui e outra ajuda-me a fazer as camas.

- Que é feito da minha cadelinha? - perguntou a Berta de repente. - Eu ainda não a vi porque acabei de me arranjar mesmo à hora do pequeno almoço. Onde está ela? - Podes ir buscá-la - disse a tia Clara. - Já temos tudo pronto. Tu vais trabalhar, Alberto? - Vou, sim - respondeu-lhe o marido. - Por isso não quero ouvir gritos nem latidos ao pé do meu escritório. Depois levantou-se e saiu da sala. Berta levantou-se também. - Onde fica o canil? - perguntou ela. - Vou mostrar-te - disse a Ana. - Vamos buscar a tua cadelinha e apresentá-la ao Tim. Tu vens, Zé? - Vocês podem trazê-la para aqui e então. veremos o que o Tim faz - respondeu a Zé. - Se o Tim não gostar dela - e não gosta com certeza a cadelinha tem de passar a viver no canil. - Oh! Não! - exclamou a Berta imediatamente. - Bem, tu não queres que o Tim a coma, Pois não? - perguntou a Zé. - Ele tem muitos ciúmes doutros cães que venham para cá. É capaz de atirar-se à tua cadelinha e dar cabo dela. - Oh! não! - exclamou novamente a Berta com um ar preocupado. - O Tim é bom. Não é um cão feroz. - Isso é o que tu julgas, - Observou a Zé. - Bem, eu avisei-te. - Anda - disse a Ana, puxando a Berta por um braço. – A cadelita deve estar admirada de não lhe aparecer ninguém. Até aposto que o Tim não se vai importar. Logo que as duas pequenas se foram embora, a Zé segredou ao ouvido do Tim: - Tu não queres aqui cães desconhecidos, pois não, Tim? Vais-te fartar de rosnar e uivar, não é verdade? Ladra o mais que puderes! Bem sei que não queres morder em ninguém mas já é bastante se ladrares com toda a força. Assim a Berta terá de mandar embora a Nina. Daí a pouco ouviram-se passos e a voz da Ana exclamando cheia de alegria: - Ah! é tão bonita! Que amor! Oh! Nina, tu és mesmo linda! Júlio, David, tia Clara, venham ver a cadelinha de Berta! Entraram todos na sala atrás da Berta e da Ana. A Berta levava a cadelinha ao colo. A Nina era um pêlo-de-arame, preto, e tinha parte do pêlo cortado rente o que lhe dava um aspecto muito engraçado. Não havia dúvida de que ela era um encanto! Enquanto a levavam para a sala foi sempre a farejar olhando para todos os lados com uns olhos muito vivos. A Berta pô-la no chão e a Nina ali ficou sentada nas patas de trás, parecendo uma bailarina prestes a começar um bailado. Todos, menos a Zé ficaram entusiasmados. - Ah! Parece uma boneca. - Eu gosto tanto dos pêlo-de-arame! Têm um ar tão inteligente. O Tim deixou-se ficar ao pé da Zé, farejando sem parar, para conhecer bem o cheiro A Nina de repente reparou no Tim. Olhou fixamente para ele sem se mostrar assustada. Depois, foi ter com o cão, abanando a cauda alegremente. O Tim recuou surpreendido. A Nina deu uns passinhos só nas patas traseiras, soltou um ligeiro latido, que devia querer dizer: «Gostava de brincar contigo». O Tim empertigou-se. Deu um salto, caindo pesadamente sobre as suas quatro patas, a cadelinha afastou-se. A cauda do Tim começou a abanar sem descanso. Depois deu novo salto e quase atirava a cadelinha ao chão. Ladrou, como se quisesse dizer: «Desculpa, foi sem querer». Em seguida o cão e a cadelinha começaram a correr atrás um do outro e embora tenham deitado duas cadeiras ao chão, ninguém se importou, estavam todos a rir da maneira como a pequena Nina fazia com que o Tim andasse num vaivém, a persegui-la. Por fim a cadelinha cansou-se, sentando-se a um canto. O Tim postou-se em frente dela e cheirou-lhe o focinho. Depois deitou-se, fitando-a com verdadeira adoração. A Ana soltou uma gargalhada.

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- Ele está a olhar para a Nina exactamente como olha para ti, Zé! - exclamou a pequena. Mas a Zé não ficou nada satisfeita. Na verdade ela estava assombrada. Pensar que o Tim tinha acolhido com tanta simpatia outro cão! Pensar que ele se comportara daquela maneira quando ela lhe recomendara o contrário! - Não ficam engraçados, os dois juntos? - perguntou a Berta, satisfeita. - Já calculava que o Tim havia de gostar da Nina. Claro que a Nina é uma cadela com pedigree e custou muito dinheiro e o Tim é um rafeiro qualquer. Ele deve achá-la «formidábel». - Oh! pode ser que o Tim seja um rafeiro mas também é «formidábel» - apressou-se a dizer o David, pronunciando a palavra como a Berta, para fazer com que os outros se rissem. Vira o ar carrancudo da Zé e calculava como ela devia ter ficado zangada, ao ouvir comparar o seu adorado Tim com uma cadela com pedigree. - O Tim é fantástico! - continuou o David. - Nina é um amor, mas tu vales mais de cem amores, não é verdade, Tim? - Também o acho muito simpático - afirmou a Berta, olhando para o Tim. - Tem os olhos mais bonitos que eu tenho visto. A Zé começou a sentir-se com melhor disposição. Chamou o Tim. - Estás a tornar-te muito idiota - disse-lhe ela. - E agora já que o Tim e a Nina vão ser amigos, posso ficar com a minha cadelinha aos pés da cama, durante a noite, como a Zé faz com o Tim? - perguntou a Berta. - Diga que sim, por favor, tia Clara! - Não - disse logo a Zé. - Mãe, eu não quero uma coisa dessas! Não quero! - Bem, veremos o que se pode arranjar - disse a tia Clara. - Mas olha que a Nina ficou muito satisfeita no canil, na noite passada. - Mas vai dormir comigo - afirmou a Berta, fazendo uma careta à Zé. - O meu pai há-de pagar-lhes muito dinheiro para fazerem com que eu ande contente. - Não sejas pateta, Berta - respondeu a tia Clara severamente. - Não se trata duma questão de dinheiro. Agora interrompam a conversa para irem às vossas ocupações. Depois falaremos sobre a carta do pai da Berta, para percebermos com precisão o que ele quer que se faça. É evidente que devemos seguir os seus conselhos. - Mas eu não quero... - começou a Berta, mas nessa altura sentiu uma mão firme segurar-lhe no braço, Era o Júlio. - Vamos, menina - disse ele. - Não sejas criança! Lembra-te de que estás aqui hospedada e por isso. porta-te decentemente. Nós gostamos das miúdas americanas, mas de miúdas estragadas com mimos, não! A Berta ficou admiradíssima por ouvir o Júlio falar daquela maneira. Olhou para o pequeno e este sorriu-lhe. Ela sentiu vontade de chorar, mas conseguiu sorrir-lhe também. - Tu não tens irmãos para te meterem na ordem - disse o Júlio, fazendo-lhe uma festa. - Pois daqui em diante, enquanto estiveres aqui, o David e eu seremos os teus irmãos, e tu tens que andar na linha, tal como a Ana. Estás a perceber? Que te parece? A Berta achou que não havia nada de que pudesse gostar mais. Era uma honra ter um irmão como o Júlio. Ele era alto e forte e tinha uns olhos vivos e bondosos que fazia a Berta sentir que ele era tão sensato e verdadeiro como o seu pai. A tia Clara sorriu para consigo. O Júlio sabia sempre qual era a melhor coisa para fazer ou dizer. Dali para diante ele saberia levar a Berta, fazendo com que a pequena não perturbasse demasiado a paz familiar. Estava satisfeita! Não era fácil dirigir uma grande família como aquela, com um marido cientista, se ninguém a ajudasse. - Vai com a tia Clara fazer as camas - disse o Júlio à Berta. - E leva a tua Nina, Ela é encantadora mas o Tim também o é, não te esqueças!

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Capítulo VII Uma pequena conversa Durante algum tempo os pequenos não fizeram mais barulho. A Zé e a Ana foram ajudar a cozinheira a lavar a loiça. A Joana ficou muito contente pois com oito pessoas em casa, contando com ela, havia bastante que fazer. Ao levantar-se pela manhã ficara muito admirada por ver mais uma criança em casa mas disseram-lhe logo que, depois do pequeno almoço, fosse à sala de estar pois, então, lhe explicariam tudo. Era necessário a Joana entrar também naquele segredo! Lá em cima, a Berta ia ajudando a fazer as camas mas sem grande resultado pois não estava habituada a essas coisas. Contudo tinha um grande desejo de aprender e a tia Clara mostrava-se muito satisfeita com ela. O Tim e a Nina, correndo e saltando por cima e por baixo das camas, tornavam as coisas ainda mais complicadas. - Ainda bem que o Tim gosta da Nina - disse a Berta. - Eu já calculava. Não percebo como a Zé se convenceu do contrário. Acho que ela tem um feitio muito esquisito. - Olha que não - respondeu a tia Clara. - Ela não tem irmãos nem irmãs e só há poucos anos conheceu os primos e foi para o colégio. As pessoas que vivem habitualmente sozinhas são mais difíceis de levar. Mas vais ver como ela é divertida. - Eu também não tenho irmãos - disse a Berta. - Mas tive sempre outras crianças para brincarem comigo, o meu «pápi» encarregava-se disso. Ele é «formidábel», quer dizer, formidável. vou repetir a palavra formidável «binte» vezes para a pronunciar como deve ser. - Então repete também a palavra vinte disse a tia Clara. – Bem sabes que tem um V mo princípio. É vinte e não «binte». - Formidável, formidável, formidável! Vinte, vinte! – trauteou a Berta enquanto fazia as camas. O David espreitou para dentro do quarto e disse uma frase qualquer imitando a pronúncia americana da pequena. - Não sejas palerma, David - disse a tia Clara, rindo. - Parece-me que já está tudo pronto, Berta. Vamos para baixo, pois quero ter uma conversa com vocês. Avisa os outros, sim? A Berta seguida pela Nina, por sua vez também seguida pelo Tim, foi chamar o David e o Júlio e depois a Zé e a Ana. A Zé não estava nada satisfeita com o Tim. - Onde estiveste? - perguntou ela. - Quando deixarás tu de andar atrás da Nina? Ela vai ficar bem farta de ti! - Ufff! - fez a Nina num tom muito diferente do Uuuiif do Tim. Daí a pouco as cinco crianças, os dois cães e a Joana estavam na sala com a tia Clara. A Berta começou a ficar nervosa. A tia Clara tinha na mão a carta do pai da pequena. Não a leu alto mas contou o que ela dizia. Também explicou à criada o que se passava com a miúda americana. - Joana, tu já sabes que o senhor doutor tem um trabalho muito importante - disse ela. - Pois o pai da menina Berta, na América, tem o mesmo género de trabalho e agora anda a estudar um assunto com o senhor doutor. - Estou a perceber, minha senhora - disse a Joana, muito interessada. - O pai da menina Berta foi avisado pela polícia de que a filha poderia ser raptada e só a entregariam, não por dinheiro, mas em troca dos segredos científicos que ele sabe - continuou a tia Clara. - Por isso mandaram-na para aqui, pois assim estará em segurança por umas três semanas. Nessa altura o trabalho estará concluído e tornado público. A menina Berta vai para o colégio da menina Ana e da menina Zé, e até é bom que se conheçam primeiro. A Joana fez um sinal afirmativo. - Compreendi tudo perfeitamente, minha senhora - disse ela. - Acho que podemos guardar bem a menina Berta, não lhe parece?

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- Também acho - disse a tia Clara. - Mas o pai da menina mandou-nos algumas sugestões que temos de pôr em prática. Pede para a vestirmos de rapaz... - Uma bela ideia - interrompeu o David. - E devemos dar-lhe outro nome, um nome de rapaz - disse a tia Clara. - Ele quer que a sua filha corte o cabelo e... - Oh! por favor, isso não! - implorou a Berta, abanando a cabeça coberta pelo seu lindo cabelo louro e ondulado. – Não suporto essa ideia! As raparigas com o cabelo curto como os rapazes ficam tão esquisitas, elas... A Ana fez-lhe um sinal e franziu o sobrolho. A Berta parou logo lembrando-se que a Zé usava o cabelo cortado como os rapazes. - Acho que devemos cumprir o que o teu pai manda dizer – disse a tia Clara. - É um assunto muito importante, Berta. Se alguém vier aqui à tua procura, pensando raptar-te, nunca te reconhecerá se tu pareceres exactamente um rapaz. - Mas o meu cabelo! - exclamou a Berta, quase a chorar. – Como pôde o «pápi» dizer para me cortarem o cabelo? Sempre o achou «formidábel». Ninguém teve coragem para emendar a pequena, dizendo-lhe que era formidável. - O teu cabelo voltará a crescer num instante - respondeu a tia Clara. - Ela tem a cabeça bastante bem feita - disse o Júlio, observando-a. - Vai ficar muito bonita com o cabelo cortado. A Berta animou-se. Se o Júlio assim pensava devia ter razão. - Mas as roupas? - perguntou ela, com amargura. - As raparigas ficam horríveis quando se vestem como os rapazes. O «pápi» sempre disse isso. - Não hás-de ficar pior do que a Zé - observou o David. - Neste momento ela está vestida com uma camisola, calções e sapatos de rapaz. - Pois eu acho que ela fica horrível - disse a Berta, teimosamente. A Zé fez um ar carrancudo. - Olha, eu também acho que tu deves ficar horrorosa - disse ela. - Tu nem conseguirás ficar com um ar arrapazado. Hás-de parecer um desses miúdos ameninados, muito palermas. Acho uma ideia disparatadíssima, essa de te vestirem à rapaz. - Ah! já estou a perceber! A nossa Zé quer ser única! – disse o David, trocista. Mas teve logo de fugir para não apanhar um soco da Zé. - Bem, está assente que esta manhã vou sair para comprar uns fatos para a Berta - disse o Júlio. - E o cabelo? Querem que eu o corte? A tia Clara achava graça à maneira decidida como o Júlio lidava com a Berta e ainda achava mais engraçado que a pequena nem sequer discutisse com ele. - Realmente podes ir comprar qualquer coisa para a Berta - disse ela - Mas prefiro que não lhe cortes o cabelo. Ficaria um autêntico espantalho. - Não me importo que o Júlio o corte! - declarou a Berta, com uma docilidade surpreendente. - Serei eu a cortá-lo - decidiu a tia Clara. - E agora que nome de rapaz devemos escolher? Não poderemos continuar a tratá-la por Berta. - Gostava mais de não ter nome de rapaz - disse a Berta. – É uma parvoíce uma rapariga ser tratada por um nome de rapaz, como a Zé. - Se tu resolveste ser antipática comigo, eu... - começou a Zé. Mas não continuou. O Júlio e o David tinham desatado a rir. - Oh! Zé. tu e a Berta são de morrer a rir! - exclamou o Júlio. - Dum lado, estás tu fazendo tudo quanto é possível para fingires que és um rapaz, do outro lado, está a Berta fazendo tudo para não deixar de parecer rapariga. Por amor de Deus, acabemos a conversa sem mais discussões. Vamos chamar-lhe Alberto. - Não, é muito parecido com Berta - disse David. - É preciso arranjar um

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nome bastante diferente. Vamos dar-lhe um nome simples de rapaz como Rui, João ou Paulo. - Nada disso - interrompeu a Berta. - Não gosto de nenhum desses nomes. Deixem-me ficar com o meu segundo nome. - Qual é? Outro nome de rapariga? - perguntou o Júlio. - Eu chamo-me Berta Manuela, portanto posso ficar Manuel. Parece-me um bonito nome. - Está bem, ficas a chamar-te Manuel - concordou o Júlio. – É mais bonito do que Berta. Agora está tudo combinado. - Ainda falta uma coisa - disse a tia Clara. Quero recomendar-lhes que nunca devem deixar a Berta, ou seja o Manuel, sozinha. E devem pôr-me ao corrente de qualquer coisa misteriosa que aconteça e avisar-me se alguma pessoa desconhecida se aproximar de vocês. A polícia daqui sabe que temos o Manuel connosco e qual o motivo, por isso devemos participar-lhe qualquer facto anormal. Também anda alerta, claro está. - Até parece que estamos no meio duma aventura! - observou o David, muito satisfeito. - Espero que não - disse a tia. - Espero que ninguém consiga adivinhar que a Berta, ou seja, o Manuel, é mais alguma coisa do que as aparências indicam - um rapazito vosso amigo, que veio aqui passar uns dias. Valha-me Deus! vai ser difícil habituar-me a dizer ele em vez de ela. - Realmente é difícil - concordou o Júlio, levantando-se. – Se a tia me der dinheiro posso ir agora comprar as coisas para o Manuel. Que número serão as roupas para ELE? Desataram todos a rir. - ELE usa sapatos número trinta e... - disse a Joana, rindo. - Reparei esta manhã. - E ELE tem que se habituar a abotoar os botões para o lado direito em vez de ser para o esquerdo - lembrou a Ana, continuando a brincadeira. - Ela há-de habituar-se depressa, não achas Tim? - disse a Zé. - Agora não estragues tudo, Zé - pediu o Júlio. - Dizer uma só vez ELA em vez de ELE, pode ser um perigo para a Ber... para o Manuel. - Bem sei - disse a Zé. - Mas tenho a certeza de que ela nunca se parecerá com um rapaz, e... - Mas eu não quero ficar parecida com os rapazes – interrompeu a Berta. - Eu acho que tu ficas... - Lá estamos nós outra vez! - exclamou o Júlio. - Cala-te, Manuel! Cala-te, Zé! Olha, era melhor que viesses comigo ajudar-me a comprar as coisas para o Manuel. Vamos. E tira-me essa cara de zangada. Pareces uma menina amuada! Isto fez com que a Zé mudasse logo de expressão. Não conseguia deixar de sorrir com os gracejos do Júlio. - Está bem, vou contigo. Adeus, Berta. Quando voltarmos, já serás o Manuel, com cabelo cortado e tudo. Depois a Zé saiu com o Júlio. A Ana foi buscar a melhor tesoura da tia e pôs uma toalha sobre os ombros da Berta. Esta estava quase a chorar. - Anima-te! - disse o David. - Vais parecer um anjo, com o cabelo curto. Comece, tia Clara. - Deixa-te estar muito quieta - pediu a tia Clara, começando. Clip! Clip! Clip! O cabelo louro e ondulado ia caindo no chão e a Berta começou a soluçar. - O meu cabelo! O meu querido cabelo! Em breve estava quase todo no chão e a tia Clara começava a aparar o que ficara, o melhor que conseguia, tentando dar-lhe uma aparência de penteado de rapaz. E na verdade fez um belo trabalho. O David e a Ana observavam com o maior interesse. - Está pronto! - disse por fim a tia Clara. - Não chores mais Manuel! Agora vais ver-te ao espelho!

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Capítulo VIII Uma transformação A Berta ficou parada no meio do quarto, limpando as lágrimas. A Ana soltou uma exclamação. - Sabem, é muito estranho mas ela ficou parecida com um rapaz! Um rapaz muito, muito bonito! - Um rapaz com cara de anjo! – observou o David. - Um menino de coro ou qualquer coisa assim. Está formidável! Quem havia de dizer! A tia Clara também estava surpreendida com o aspecto da Berta. - Realmente é muito extraordinário - disse ela. - Mas não há dúvida. Quando ela estiver, quer dizer, quando ele estiver vestido de rapaz ficará um lindo rapazinho. Muito melhor do que a Zé, pois o cabelo dela é demasiado encaracolado para rapaz. A Berta foi até ao espelho da entrada. - Estou horrível! - exclamou ela. - Nem me conheço. Ninguém me reconhecerá! - Esplêndido! - disse logo o David. - É o que se pretende. NINGUÉM te reconhecerá. O teu pai teve toda a razão em pedir que te cortassem o cabelo e te vestissem de rapaz. Nenhum raptor conseguiria descobrir que tu és a Berta, a linda menina. - Preferia ser raptada a ter este aspecto - choramingou a Berta. - Oh! Ana, que dirão as meninas do teu colégio quando me virem assim? - Nunca disseram nada à Zé por ela usar o cabelo tão curto, por tanto também não te dirão nada a ti - respondeu a Ana. - Não chores mais Ber... Manuel - pediu a tia Clara. – Fazes com que eu fique triste. Foste muito simpática em ficares quieta durante tanto tempo. Vou dar-te uma pequena recompensa. A Berta parou logo de chorar. - Por favor - pediu ela. – Agora há só uma coisa que eu desejo. Queria que a Nina dormisse no meu quarto. - Oh! querida Ber... Manuel é completamente impossível ficar com outro cão naquele quartinho tão pequeno - disse a pobre tia Clara. - E a Zé havia de tornar as coisas muito desagradáveis. - Tia Clara, a Nina guarda-me bem - lembrou a Berta. - Ladra ao mais pequeno ruído. Sentia-me mais segura se a tivesse no quarto. - Também gostava que ficasse contigo - concordou a tia Clara. - Mas... A Joana entrara na sala para arrumar qualquer coisa e ouvira a conversa. Ficara pasmada perante o cabelo da pequena e depois deu uma sugestão. - Se me dá licença, minha senhora - começou ela. - A menina Berta podia ficar com a cama de campanha armada no meu quarto. Não me importo nada com a cadelinha, que é muito engraçada. As meninas ficam muito apertadas naquele quarto, com as três camas, e o meu é bastante grande. Assim, se a menina Berta não se importar, tenho muito gosto em que durma no meu quarto. - Oh! Joana, é uma ideia muito simpática - disse a tia Clara, aliviada com uma solução tão simples. - Além disso o teu quarto é no sótão, o que torna muito difícil um raptor conseguir chegar até lá. E ninguém pensaria procurar uma das meninas no teu quarto. - Obrigada, Joana, tu és «formidábel»! - exclamou a Berta cheia de alegria. - Nina, estás a ouvir? Esta noite dormirás sobre os meus pés, como o Tim faz com a Zé. - Bem sabes que não concordo com isso, Berta - disse a tia Clara. - Lá voltei a chamar-te Berta! Queria dizer Manuel. Que grande confusão! Ana, vai buscar uma vassoura e varre o cabelo que cortei.

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Quando o Júlio e a Zé regressaram, não havia sinal do cabelo louro que estivera espalhado no chão. Puseram os embrulhos sobre a mesa e chamaram a tia Clara. - Mãe! - gritou a Zé.– Tia Clara! - chamou o Júlio. A tia Clara desceu as escadas a correr, seguida pela Ana, Berta e David. O Júlio e a Zé olharam para a Berta embasbacados. - Santo Deus, serás realmente tu, Berta? - Disse Júlio. – Não te reconheço. - Tu pareces um rapaz! - exclamou a Zé. - Nunca pensei que isso fosse possível. - Um rapaz muito bonito - observou o Júlio. - Na verdade o teu pai tinha razão. É o melhor disfarce que te podíamos arranjar. - Onde estão as roupas? - perguntou a Berta, bastante satisfeita com todo o interesse que despertara. Abriram os embrulhos e tiraram as coisas. Não tinham grande interesse. Tratava-se apenas dum casaco de rapaz, azul-forte, dois pares de calções, duas camisolas cinzentas, algumas camisas, uma gravata e uma camisola sem mangas. - E sapatos e meias - acrescentou a Zé. - Mas nós achámos que temos bastantes para lhe emprestar, por isso só comprámos estas. E está aqui um chapéu de rapaz para o sol e um boné. A Berta pôs logo o boné. Todos desataram a rir. - Fica-lhe bem. E sabe pô-lo como deve ser! Parece um autêntico rapaz! - Agora põe-no tu, Zé - pediu a Berta. A Zé agarrou-o, desejando ardentemente que também a admirassem. Mas o boné ficava ridículo sobre os seus caracóis e não conseguia assentar como devia. Todos protestaram. - Ficas tal qual uma rapariga! Tira-o! A Zé tirou-o, desapontada. Que vexame, aquela miúda parecer-se mais com um rapaz do que ela! Atirou com o boné para cima da mesa, um tanto zangada por o terem comprado. - Vai lá acima e veste-te com a tua roupa nova - disse a tia Clara, divertida com aqueles acontecimentos. A Berta subiu as escadas obedientemente e em breve voltou a aparecer, muito bem arranjada, com uns calções cinzentos, camisola também cinzenta e gravata azul. Todos se fartaram de rir. A Berta agora também estava divertida e começou a andar dum lado para o outro, com o boné no alto da cabeça. - Ela parece um rapazito muito limpo e arranjado, com cara de anjo - disse o Júlio. - Querido Manuel, tens que te sujar um bocado, pois assim nem pareces um verdadeiro rapaz. - Eu não gosto de andar suja - disse a Berta. - Penso que... Mas o que ela pensava ninguém chegou a saber pois naquele momento a porta abriu-se e entrou o tio Alberto. - Sempre gostava de saber como querem que eu trabalhe com toda esta barulheira - começou ele. Mas de repente viu a Berta e interrompeu o que ia dizer. - Quem é este? - perguntou ele observando a Berta da cabeça aos pés. - Não conhece, pai?- perguntou a Zé. - Claro que não. Nunca vi este miúdo - respondeu o pai. - Nem me digam que veio mais alguém cá para casa! - É a Berta - disse a Ana, rindo. - Berta... Quem é a Berta? - perguntou o tio Alberto franzindo o sobrolho. - Parece-me que já ouvi falar nesse nome. - A miúda que pode ser raptada - explicou o David. - Oh! a Berta, a filha do Elbur! - disse o tio Alberto. - Lembro-me dela muito bem. Mas quem é este rapazito? Nunca o vi. Como te chamas, menino? - Manuel - disse a Berta. - Mas chamava-me Berta quando tomei o pequeno almoço consigo, senhor doutor.

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- Céus! Que grande transformação! - exclamou o tio Alberto. Tenho a impressão de que o teu próprio pai não te reconheceria. Espero recordar-me quem tu és. Vão-me lembrando, se eu me esquecer. Depois o tio Alberto foi-se embora, voltando para o escritório. Os pequenos riram e a tia Clara também teve de rir com eles. - A propósito - disse ela. - Hoje quero que almocem todos em casa, pois é muito tarde para começar a fazer sanduíches e a arranjar os cestos. - Ainda teremos tempo para tomarmos um banho de mar? - perguntou o Júlio, olhando para o relógio de pulso. - Têm, se vierem ao meio-dia e apanharem fruta para fazer uma salada para o almoço - respondeu a tia. - Leva muito tempo a apanhar fruta para oito pessoas e a Joana e eu temos hoje muito que fazer. - Está bem. Vamos tomar agora um banho e depois apanhamos a fruta - disse o Júlio. - Eu prefiro apanhar ameixas. - Tens um fato de banho, Berta, quero dizer, Manuel? - perguntou a Zé. - Tenho. É completamente liso, como o dos rapazes, por isso posso usá-lo - disse a Berta. - Que sorte! Não preciso de pôr touca de borracha pois os rapazes nunca as usam. A mala de Berta estava já no quarto de Joana e ela foi a correr buscar o fato de banho. - Trás o teu casaco e uma toalha - gritou-lhe a Zé, entrando no seu quarto com a Ana. - Até aposto que a Berta não sabe nadar - disse ela. - É uma pena, pois quase todos os rapazes nadam bem. Vamos ter que ensiná-la. - Olha, não a obrigues a mergulhar muitas vezes a seguir - pediu a Ana, vendo uma expressão pouco tranquilizadora na cara da Zé. - Que maçada, o meu fato de banho não está aqui. Tenho quase a certeza de que o trouxe lá de fora, da corda da roupa. Levou bastante tempo a aparecer o fato de banho e os rapazes e a Berta já tinham partido para a praia, com a Nina, quando a Ana e a Zé ficaram prontas a seguir com o impaciente Tim. Chegaram por fim à praia e lá viram a Nina guardando os casacos da Berta, do David e do Júlio. A cadelita estava deitada sobre eles e até se atreveu a rosnar ao Tim, quando este se aproximou. A Zé riu-se. - Rosna-lhe também, Tim! Não deixes uma cadelita daquele tamanho fazer pouco de ti. Ladra, Tim! Mas o Tim não lhe obedeceu. Limitou-se a sentar-se fora do alcance da Nina olhando para ela tristemente. A Nina não quereria continuar a ser sua amiga? - Onde estão os outros? - perguntou a Ana, protegendo os olhos da luz do sol e olhando para o mar. - Santo Deus, nadaram para muito longe! É impossível que seja a Berta aquela pessoa que está com eles! A Zé olhou logo para o mar. Viu três cabeças à tona de água. Sim, a Berta estava com eles. - Ela deve saber nadar muito bem - observou a Ana, admirada. - Eu não consigo nadar assim para tão longe. Enganámo-nos acerca da Berta. Ela nada como um peixe. A Zé não respondeu. Correu para as ondas, mergulhou numa delas exactamente quando ia rebentar e nadou para o largo vigorosamente. Nem acreditava que a Berta estivesse lá longe! E se fosse ela, os rapazes deviam estar a ajudá-la. Mas era na verdade a Berta. A sua cabecita loura brilhava ao sol, toda molhada, e ela gritava alegremente enquanto nadava. - Isto é óptimo! Isto é «formidábel»! Estou a gostar imenso! Olá! Zé, não achas que a água está quente? O Júlio e o David sorriam para a Zé. - O Manuel é um grande nadador - disse o David. - Palavra que cheguei a convencer-me de que me ia passar à frente. Ele deve bater-te, Zé!

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- Ah! isso é que não bate - disse a Zé. - Mas no entanto não desafio a Berta para uma corrida. Era divertido serem cinco, para se perseguirem uns aos outros e nadarem por baixo da água, agarrando as pernas do que estava mais distraído. E a Ana riu até não poder mais quando viu uma pessoa levantar-se na água, direita às costas da Zé obrigando-a a dar um grande mergulho. Era a Berta! E o pior foi que a Zé, zangada, não conseguiu agarrá-la depois disto! A americana nadava com enorme rapidez!

Capítulo IX Uma chamada telefónica Não foi preciso muito tempo para que a Berta se sentisse feliz e satisfeita na companhia dos «Cinco». A Zé não suportava que aquela miúda tivesse de se vestir à rapaz, no entanto, à medida que o tempo passava ia-se tornando mais condescendente. Só não conseguia deixar de se sentir contrariada por a Berta ser tão boa nadadora! Ela mergulhava muito bem e nadava por baixo de água ainda mais tempo seguido do que os rapazes. - Sabem, na minha casa, na América, há uma piscina no jardim - disse ela. - Uma piscina formidável. Gostava que vocês a vissem. E eu aprendi ali a nadar quando tinha dois anos. O «pápi» chamava-me o bebé da água. A Berta comia tanto como os outros, embora não fosse tão forte. Fazia grandes elogios às refeições, o que agradava muito à tia Clara e à Joana. - Tu estás a ficar mais gordo, Manuel - disse a tia Clara, passado uma semana, observando-a à hora do almoço. - E estás a ficar com um lindo tom de queimado, o que ainda é melhor. Daqui a pouco estás tão preto como os outros. - Também acho - disse a Berta satisfeita. - Foi bom queimares-te tão depressa - continuou a tia Clara. - Agora, se aparecerem os raptores à procura duma menina americana, pálida e de cabelo comprido, hão-de olhar para o vosso grupo e vão-se embora, desiludidos. Ninguém conseguirá adivinhar que tu és a Berta! - No entanto, eu preferia ser a verdadeira Berta - disse a pequena. - Continuo a não gostar de fingir que sou rapaz. É idiota e faz-me sentir uma pateta. Felizmente o meu cabelo cresceu um bocadito. Agora já não pareço tanto um rapaz. - Valha-me Deus, tens razão! - exclamou a tia Clara, o que fez com que todos olhassem para a Berta. - Tenho que voltar a cortá-lo. - Estou com pouca sorte! - disse a Berta. - Para que fui lembrar uma coisa dessas! Ninguém teria notado se eu não tivesse dito. Deixe voltar a crescer o meu cabelo, tia Clara! Já aqui estou há uma semana e ainda não houve nem cheiro dos raptores. Com certeza nunca chegará a haver! Mas a tia Clara foi firme na sua resolução e no fim do almoço fez com que a Berta estivesse quieta para aparar um pouco o cabelo. Este não era aos caracóis, como o da Zé, e por estar curto até as ondas tinham desaparecido. Na verdade ela parecia um autêntico rapazito bem tratado. - Dá-me sempre ideia de que a Berta acabou de sair do banho - observou a Zé. Todos riram pois perceberam o que ela queria dizer.

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A Nina era um grande sucesso. Nem mesmo a Zé conseguia antipatizar com aquela cadelinha viva e esperta. Andava sempre a saltar dum lado para o outro e o Tim era o seu escravo, adorando-a. Ela travava amizade com toda a gente, até mesmo com o rapaz dos jornais que tinha um certo medo de cães. O tio Alberto era o único que não se habituara à presença da Berta e da Nina. Quando encontrava as duas, a Berta parecendo um rapazito, sempre seguida pela Nina, parava a pensar. - Ora deixa-me ver. Quem és tu? - perguntava ele. - Já sei és a Berta! - Não, é o MANUEL! - diziam todos em coro. - Não deves chamar-lhe Berta - repetia a tia Clara. – Que engraçado tu nunca te lembrares de a tratar por Berta e agora que lhe mudámos o nome para Manuel, chamas-lhe logo Berta! - Realmente fizeste com que ela pareça exactamente um rapaz! - dizia o tio Alberto, com grande aborrecimento da Zé. Esta começava a recear que a Berta parecesse mais um rapaz do que ela! - Bem, espero que te divirtas com os outros pequenos, Ber... Ber... - Manuel, queres tu dizer - emendou a tia Clara, sorrindo. - Alberto, tenta recordar-te. Correu calmamente mais um dia que as cinco crianças e os dois cães passaram ao ar livre, nadando, remando, dando passeios, enfim, divertindo-se imenso. A Berta queria ir à ilha Kirrin mas a Zé dava sempre uma desculpa para a não levar. - Não sejas má - disse o David. - Todos nós gostávamos de ir. Há séculos que lá não vamos. É só para não deixares a Berta fazer uma coisa que lhe agradaria. - Não é nada disso - afirmou a Zé. - Talvez vamos amanhã. Mas quando chegou o dia seguinte aconteceu uma coisa que lhes estragou os planos da ida à ilha Kirrin. Houve uma chamada telefónica para o tio Alberto, que ficou logo alarmado. - Clara, Clara! Onde estás? chamou ele. - Faz já a minha mala. Imediatamente, estás a ouvir? A tia Clara desceu as escadas a correr. - Alberto, que aconteceu? - O Elbur diz que encontrou um erro nos nossos cálculos - explicou o tio Alberto. - Que disparate! Não há erro nenhum! Nenhum! - Mas porque não pode vir ele aqui discutir o assunto contigo? - perguntou-lhe a mulher. - Porque tens de ser tu a partir assim tão rapidamente? Pede-lhe que venha até cá, Alberto. Hei-de arranjar-lhe uma cama de qualquer maneira. - Mas ele diz que não quer cá vir enquanto a filha, a... Como se chama ela? - Manuel - disse a tia Clara. - Está bem. Não te incomodes a explicar-me. Realmente seria um disparate ele aqui vir enquanto o Manuel estiver connosco. Ele chamar-lhe-ia «pápi» e... - «Pápi»? - perguntou o tio Alberto, confuso. - O que quer isso dizer? - É como ela chama ao pai - respondeu a tia Clara, cheia de paciência. - Bem, ele tem razão. Seria uma parvoíce esconder o Manuel tão bem e agora ouvi-lo chamar-lhe «pápi» e ele tratá-la por Berta. Se algum raptor o seguisse, depressa descobriria o paradeiro da pequena. - Pois foi isso mesmo que eu tentei explicar-te - disse o tio Alberto, impaciente. - De qualquer modo tenho que ir ter com o Elbur imediatamente. Por isso, arranja as minhas malas, se fazes favor. Voltarei daqui a dois dias. - Nesse caso vou contigo, Alberto - disse a tia Clara. - Apetece-me descansar dois dias e tu és uma calamidade quando estás sozinho - perdes as peúgas, esqueces-te de mandar engraxar os sapatos... O tio Alberto sorriu, ficando com uma expressão alegre que o fazia parecer muito mais novo. - É verdade que vens comigo? Pensei que não gostavas de deixar os pequenos sozinhos. - É apenas por dois dias - disse a tia Clara. - E a Joana sabe muito bem lidar com eles. Vou preparar as coisas de maneira que levem as refeições para o barco e comam no mar. Ali

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estarão em segurança. Se aparecer por Kirrin algum raptor há-de ser muito difícil ir buscar o Manuel ao barco! Mas eu começo a não acreditar nessa história do Elbur. Tenho a impressão de que ele se assustou só por ter ouvido qualquer coisa a esse respeito. Os pequenos souberam da resolução tomada quando chegaram para o almoço. Foi a Joana que lhes disse, pois a tia Clara e o marido já haviam partido, com duas malas, uma contendo papéis importantes e a outra roupa para dois dias. - Céus! - exclamou o Júlio, surpreendido. - Espero que não tenha acontecido nada de grave. - Não, foi só um telefonema do pai do menino Manuel - explicou a Joana, sorrindo para a Berta. - Ele tinha que ver o Sr. Doutor o mais depressa possível por causa de uns números. - Porque não veio o «pápi» aqui? - perguntou logo a Berta. - Era a maneira de me ver. - E toda a gente perceberia quem tu és - disse o David. – Nós estamos a esconder- te, não te esqueças. - Realmente já me tinha esquecido - confessou a Berta um tanto surpreendida consigo própria. - É tão divertido estar aqui em Kirrin com vocês todos. Os dias parecem fugir! - A mãe da menina disse que é melhor passarem o dia fora e fazerem piqueniques no barco - disse a Joana à Zé. – Isso facilita o meu trabalho, claro está. Mas eu não me importo se quiserem almoçar em casa todos os dias. - Gosto tanto de ti, Joana! - exclamou a Berta, dando de repente um abraço à cozinheira, que ficou muito surpreendida. - És um verdadeiro amor! - Realmente és «formidábel» - exclamou o David. - Olha, Joana, até a tia Clara voltar, almoçamos e lanchamos lá fora. E nós fazemos as sanduíches e guardamos tudo nos cestos. - Óptimo! São uns bons meninos - disse a Joana. - Porque não vão passar o dia à ilha Kirrin? o menino Manuel gostava imenso de lá ir. A Berta sorriu para a Joana. Achava muito engraçado ser tratada por menino Manuel e a Joana nunca se esquecia. - Podemos ir, se o barco estiver pronto - disse a Zé, com certa relutância. - Bem sabem que o Jaime está a consertar um dos suportes dos remos. Podemos ir ver se já está em condições. Foram todos ver mas não encontraram o Jaime. O pai dele estava a trabalhar num outro barco, perto do cais, e chamou os pequenos. - Querem falar com o meu Jaime? Foi à pesca, o dia inteiro, no barco do tio. Pediu-me para lhes dizer que o suporte do remo ainda não está consertado. Mas há-de fazer esse trabalho esta noite, quando voltar da pesca. - Está bem. Muito obrigado - disse o Júlio. A Berta ficou desapontada. - Alegra-te, continuou o pequeno. - Podemos ir amanhã. - Vais ver que não vamos - disse a Berta, tristemente. - Alguma coisa nos há-de impedir, ou então a Zé arranja outra desculpa. Se eu tivesse uma ilha «formidábel»... formidável como aquela, havia de lá viver. Voltaram ao Casal Kirrin e arranjaram os cestos com um belíssimo almoço. O pai de Berta mandara uma encomenda três dias antes com especialidades americanas e resolveram prová-las. - «Bocadinhos»! - disse o David, lendo o nome numa das latas. - Camarões, lagosta, caranguejos e mais uma dúzia de coisas, tudo na mesma lata. Deve ser bom. Vamos fazer sanduíches com isto! - «Maravilhas»! - disse a Ana, lendo o rótulo doutra lata. - Que nome tão engraçado! Uma pessoa deve ficar maravilhada ao comer isto. Vamos abri-la. Abriram meia dúzia de latas, todas com nomes extraordinários, e fizeram tantas sanduíches que a Joana ficou pasmada. - Quantas sanduíches fizeram para cada um? - «Binte». Quero dizer vinte - explicou a Berta. – Mas lembra-te de que não vimos a casa almoçar nem lanchar. Vai ser «formidábel»!

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- Formidável - emendaram todos em coro. A Berta, obediente, repetiu a palavra com um sorriso na sua carita queimada pelo sol. Que dia passaram! Deram um grande passeio e fizeram um piquenique num bosque frondoso, perto de um regato que corria a cantar, parecendo muito fresco. Resolveram molhar ali os pés enquanto comiam e a Ana dava contínuas gargalhadas porque a água lhe fazia cócegas nas plantas dos pés. Nessa noite estavam tão cansados ao chegar a casa que jantaram e foram logo deitar-se. - Amanhã - não acordo antes do meio-dia disse o David, bocejando. - Ai, os meus queridos pés! Estou tão cansado que naturalmente adormeço a lavar os dentes! - Que linda noite! - disse a Ana olhando pela janela do seu quarto. - Durmam bem! Acho que não vamos abrir um olho até amanhã de manhã. Pelo menos eu não tenciono! Mas não foi assim que aconteceu. Ela abriu os dois olhos, muito abertos, a meio da noite.

Capítulo X Uma coisa estranha Reinava a calma no Casal Kirrin. Os dois rapazes dormiam profundamente e no outro quarto a Ana e a Zé dormiam também sem fazerem o mais pequeno movimento. A Berta ficara no quarto da Joana, no sótão, e adormecera assim que se metera na cama. O Tim estava aos pés da Zé, como de costume, e a Nina enroscara-se em cima das pernas da Berta, parecendo um novelo de lã preta. Uma nuvem negra apareceu no céu e outras vieram que a pouco e pouco o encobriram completamente. Depois seguiu-se um trovão, distante. Não fez grande barulho mas foi o suficiente para acordar os dois cães e a Ana. A pequena abriu os olhos sem perceber que barulho era aquele. Depois adivinhou - fora um trovão. - Espero que não venha uma tempestade estragar este tempo maravilhoso! - pensou a Ana. - Deve ser lindo ver uma trovoada sobre a baía Kirrin, com tanto calor. Apetece-me ir à janela apanhar um pouco de ar fresco. Saiu da cama sem fazer barulho e foi em bicos de pés até à janela aberta. Recostou-se no parapeito, aspirando o ar fresco. A noite estava muito escura devido às nuvens negras. Ouviu-se outro trovão mas a bastante distância. O Tim saltou da cama da Zé e foi ter com a Ana. Pôs as patas da frente sobre o parapeito e olhou para fora, para a baía. E então, tanto ele como a Ana ouviram outro som, também distante. - É um barco a motor - disse a Ana, prestando atenção. – Não achas, Tim? Alguém resolveu dar um passeio a meio da noite. Vês alguma luz no mar? Eu não consigo. O motor do barco parou naquele momento e fez-se um silêncio só interrompido pelo barulho das ondas rebentando na praia. A Ana apurou a vista a ver se conseguia descobrir alguma luz que lhe indicasse onde estava o barco a motor. Pelo som parecia bastante afastado da costa mas dentro da baía. Porque teria parado? E porque não teria entrado na doca? Nessa altura a pequena conseguiu distinguir uma luz muito pálida, na direcção da entrada da baía e mesmo ao meio desta. A luz brilhou por uns momentos e depois tornou a desaparecer. A Ana ficou intrigada. - Parece-me que é perto do sítio onde fica a ilha Kirrin - segredou ela ao Tim. - Estará ali alguém? Achas que o barco a motor foi para lá? Bem, fiquemos à escuta para sabermos se volta a partir e vai para longe.

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Mas não se ouviu mais nenhum som vindo da baía nem apareceu mais nenhuma luz. - Talvez o barco a motor esteja atrás da ilha Kirrin – pensou de repente a Ana. - E assim não poderei ver nada pois a ilha esconde o barco e as suas luzes. Mas é uma luz o que eu estou agora a ver mover-se! Será alguém na ilha? Santo Deus, estou outra vez com tanto sono que mal consigo conservar os olhos abertos. Naturalmente não cheguei a ouvir nem a ver nada, foi tudo a sonhar. Não houve mais trovões nem relâmpagos. A grande nuvem negra começou a desfazer-se e apareceu uma ou duas estrelas. A Ana bocejou e foi deitar-se. O Tim saltou para a cama da Zé e enroscou-se, dando um suspiro. Na manhã seguinte a Ana quase se esquecera do que vira durante a noite pela janela aberta. Só quando a Joana contou que rebentara uma grande tempestade sobre um povoado a alguns quilómetros de distância, a Ana se lembrou do trovão que ouvira. - Ah! - exclamou ela de repente. - Sim, eu também ouvi trovejar e até me levantei, esperando ver uma tempestade. Mas não chegou a aparecer. E ouvi um barco a motor no meio da baía mas não vi nenhuma luz, a não ser uma muito sumida, a mover-se, parecendo-me na ilha Kirrin. A Zé deu um pulo na cadeira como se tivesse apanhado um choque eléctrico. - Na ilha Kirrin! Que queres tu dizer? Não está lá ninguém! Não é permitido ir ali seja quem for! - Bem, talvez me tenha enganado - disse a Ana. - Estava cheia de sono. Nem ouvi o barco a motor ir-se embora pois voltei para a cama. - Devias ter-me acordado se te pareceu ver uma luz na minha ilha - disse a Zé. - Palavra que devias! - Ó menina Ana, serão os raptores? - perguntou logo a Joana. O Júlio riu-se. - Não, Joana. Para que lhes serviria ir à ilha Kirrin?, Ali, à vista de todas as casas em redor da baía, não podem fazer nenhum rapto. - Acho que foi apenas um sonho, Ana - disse a Berta. - Naturalmente ouviste os trovões meia a dormir e eles tornaram-se no som do motor dum barco. Nos sonhos acontecem coisas dessas. Uma vez deixei aberta a torneira do lavatório, quando me fui deitar, e sonhei toda a noite que estava a cair pelas cataratas do Niágara. Todos se riram. Às vezes a Berta tinha muito espírito. - Se o barco estiver pronto poderemos ir hoje à ilha Kirrin - disse a Zé. - Se lá estiverem alguns estranhos mando o Tim atrás deles. - Só encontraremos coelhos - disse o David. - Espero que continuem a viver ali às centenas. Da última vez que lá fomos os coelhos eram tão mansos que quase tropeçávamos neles. - Pois sim, mas o Tim não ia connosco, - disse a Ana. - Zé, gosto muito de voltar à ilha Kirrin. É preciso contar ao Manuel as aventuras que lá tivemos. Depois do pequeno almoço fizeram as camas e arrumaram os quartos. A certa altura a Joana enfiou a cabeça pela porta do quarto do Júlio. - Hoje também levam almoço para comer lá fora, menino Júlio? - perguntou ela. - Se almoçarem em casa posso arranjar-lhes uns bons bifes de porco, pois o homem do talho está lá em baixo. - Se o barco estiver consertado vamos hoje à ilha Kirrin, Joana - disse o Júlio. - Nesse caso faremos lá um piquenique. Mas se não formos à ilha almoçamos em casa. Por um lado talvez seja melhor para ti, levantámo-nos tão tarde que não há muito tempo para preparar sanduíches, apanhar fruta, etc. - Então diga-me qualquer coisa logo que saiba do barco – pediu a Joana indo-se embora. A Zé entrou naquele momento. - Vou ver se o barco está consertado - disse ela. - Vou num instante, pois a Joana precisa de saber o que faremos. Voltou daí a um momento.

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- Ainda não está pronto - disse, desapontada. - Mas estará às duas horas da tarde. Por isso podemos almoçar em casa e irmos depois à ilha. Querem arranjar um lanche para levarmos? - Boa ideia - respondeu o Júlio. - Então proponho irmos agora de manhã tomar banho à praia. Deve estar a maré cheia e podemos fazer carreiras na rebentação das ondas. - E vamos observando o Jaime para ver se ele cumpre o que disse sobre o barco. Assim, quando terminaram os seus afazeres, as cinco crianças e os dois cães partiram para a praia. Ficara um pouco mais fresco depois da trovoada, por isso, apesar de não sentirem frio em fato de banho, levaram casacos para vestirem ao sair da água.

- Não há nada melhor do que estar cheia de calor, ir tomar um banho frio e voltar a aquecer ao sol, depois ir outra vez para dentro de água... - começou a Berta. - Dizes isso todos os dias - observou a Zé. - Pareces um disco. Mas devo confessar que concordo contigo. Bem, vamos nadar um bocado. Todos mergulharam na rebentação das ondas dando gritos ao sentirem a água fria. Fizeram corridas, nadaram por baixo de água, agarrando as pernas uns dos outros, e só lamentaram terem-se esquecido da grande bola de borracha encarnada. Mas como ninguém esteve para ir buscá-la tiveram de passar sem ela. O Tim e a Nina não saíam da borda da água. O Tim nadava muito bem mas a Nina não gostava do mar, por isso, ficaram ali os dois, sempre muito juntos. Realmente formavam um par muito divertido. Os dois cães ficaram muito satisfeitos quando os pequenos saíram do banho. A Ana era a única que usava touca de borracha. Deitaram-se na areia e o Tim foi instalar-se ao lado da Zé. Esta afastou-o. - Cheiras a algas! - exclamou a pequena. Pouco depois o David levantou-se para vestir o casaco. Olhou para a baía, na direcção da ilha Kirrin,. e de repente soltou uma exclamação. - Olhem! Reparem! Todos se sentaram. - Está alguém na ilha Kirrin, embora daqui não se distinga - disse o David. - Deve ser uma pessoa que está deitada observando a nossa praia por um binóculo. Não vêem o sol a brilhar nas lentes? - Vejo! - disse o Júlio. - Tens razão. Alguém deve estar a servir-se dum binóculo para examinar esta praia. Não vemos ninguém, como tu disseste, mas é muito fácil ver a luz do sol batendo nas lentes. Que curioso! - Curioso! - exclamou a Zé, furiosa e com a cara toda vermelha. - É mais do que curiosidade! Como se atreve alguém a ir à minha ilha para observar as pessoas que estão na praia! Vamos nós examiná-los também! Vou buscar o meu binóculo e depois poderemos ver quem está na ilha. - Eu vou buscá-lo - disse David, correndo para o Casal Kirrin. O pequeno sentia-se preocupado. Parecia-lhe muito estranho alguém ir para a ilha observar com um binóculo as pessoas que estavam na praia. Qual seria o motivo? Voltou daí a pouco com o binóculo e entregou-o ao Júlio. - Parece-me que quem lá estava se foi embora - disse o Júlio. - Não quero dizer que tenha saído da ilha, mas foi para qualquer outro ponto, pois já se não distingue o sol a brilhar nas lentes do binóculo. - Então vê lá se com o nosso binóculo consegues descobrir alguém - pediu a Zé, impaciente. O Júlio focou a objectiva e observou cuidadosamente a ilha Kirrin. Esta, vista por aquele binóculo de longo alcance, parecia realmente estar muito próxima. Todos fitavam o pequeno com impaciência. - Vês alguém? - perguntou o David. - Nem vivalma - respondeu o Júlio, desapontado. Depois passou o binóculo à Zé, que o pôs logo nos olhos.

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- Que maçada - disse ela. - Não se vê absolutamente nada de especial. Quem lá estava foi esconder-se em qualquer parte. Se são excursionistas que resolveram fazer ali um piquenique fico furiosa. Se virmos fumo no ar, sabemos logo que são excursionistas. - Mas não apareceu nenhum fumo. Quando chegou a vez de o David se servir do binóculo, o pequeno examinou toda a ilha, intrigado. Depois passou o binóculo aos outros. - Nós devíamos ver os coelhos a correrem dum lado para o outro - disse ele. - Mas não consegui ver nem um. Vocês viram algum? - Nem pensei nisso, mas na verdade não vi - disse o Júlio. A Zé repetiu a mesma coisa. - Andam assustados com as pessoas que lá estão - lembrou o David. - Acham que devemos levar o Manuel connosco, quando formos à ilha esta tarde? Parece-me um pouco estranho que alguém se sirva daquele sítio para fazer observações. - Bem percebo onde queres chegar - disse o Júlio. - Se os raptores, sejam eles quem forem, pensarem que a Berta pode estar aqui connosco seria uma boa ideia da parte deles desembarcar na ilha utilizando-a para observar o que se passa na praia. Devem ter calculado que nós vínhamos todos os dias tomar banho de mar. - E hão-de ter visto cinco crianças em vez de quatro, andando agora, com certeza, a tirar informações sobre a número cinco! - lembrou o David. - Naturalmente esperavam ver a Berta na praia, é provável que tenham uma fotografia dela e hão-de procurar uma miúda de cabelo comprido e ondulado. - Mas aqui não está nenhuma - disse a Ana. - O meu cabelo não é ondulado e também não me chega aosombros, como o do Manuel, antigamente. Os raptores devem estar muito embaraçados! - Mas há uma coisa que, no entanto, indicará que a Berta está aqui - lembrou o Júlio de repente, apontando para a Nina. - Santo Deus! Tens razão! - disse o David. - A Nina pode estragar tudo! Temos que pensar neste novo problema.

Capítulo XI Novamente na Ilha Kirrin A Zé queria ir buscar o barco e seguir para a ilha logo naquele momento. Estava furiosíssima por pensar que alguém lá fora sem o seu consentimento e não queria outra coisa senão expulsar o atrevido. Mas o Júlio não consentiu. - Por um lado o barco não deve ficar pronto antes das duas horas - disse ele -, e por outro temos de pensar se é sensato irmos à ilha numa altura em que podem lá estar raptores à procura da Berta... do Manuel, quero dizer.

- Podemos ir sem ela - propôs a Zé. - Fica bem entregue à Joana. - Isso seria uma grande asneira - disse o David. – Qualquer pessoa que nos visse seguir em direcção à ilha daria pela falta dum dos cinco e calcularia logo tratar-se da Berta. Se formos, temos que ir todos. - Até me parece vantajoso lá irmos - disse o Júlio. - Vamo-nos mostrar mesmo em frente do inimigo se é que existe algum inimigo. Seria muito útil se conseguíssemos ver como são os raptores e déssemos uma descrição completa à polícia. Proponho irmos.

- Também eu! - exclamou o David. - De qualquer modo sempre temos o Tim connosco. Podemos enfrentar qualquer atitude hostil da parte dos intrusos!

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- Na verdade penso que se deve tratar apenas de excursionistas - disse o Júlio. - Acho que estamos a arranjar uma grande história só porque alguém olhou para a praia por um binóculo. - Lembrem-se de que na noite passada me pareceu ver uma luz na ilha - recordou a Ana. - Sim, tinha-me esquecido - disse o Júlio, olhando para o seu relógio. - Bem, são quase horas do almoço. Agora vamos para casa, depois voltaremos para virmos buscar o barco. O Jaime ainda está a consertá-lo. Vamos perguntar-lhe se estará pronto às duas horas. Falaram com o Jaime. - Posso garantir-lhes que estará pronto às duas, sem falta. Tive que fazer umas reparações além do suporte do remo. - Está bem - disse o David. Depois dirigiram-se ao Casal Kirrin. - Em breve descobriremos quem está na tua ilha, Zé. E se teimarem em não sair vamo-nos divertir um bocado com o Tim. Ele saberá como os deve tratar. Não é verdade, Tim? - E a Nina também sabe - acrescentou logo a Berta. - Os dentes da minha cadelinha não são muito grandes mas são bem aguçados. Uma vez atirou-se a um homem que me dera um encontrão, sem querer, e só gostava de que vocês vissem as dentadas que lhe deu na perna toda. - Sim, a Nina também há-de ser útil - concordou o David. A Zé fez uma cara trocista. - Aquele pêlo-de-arame idiota! - pensou ela. - Não servirá mesmo para nada! O Tim vale uma centena de Ninas! A Joana preparara-lhes um belíssimo almoço. Bifes de porco, batatas novas e salada, tudo numa grande travessa. Havia tomates da horta, muito vermelhos, alface muito fresca, beterrabas e pepino. Na salada também estavam misturadas rodelas de ovo cozido, cenouras e ervilhas. - Que grande salada! - exclamou o David. - É digna dum rei! - E chegaria para vários reis - concluiu a Ana. – Quantas batatas queres, Júlio? Das maiores ou das mais pequenas? O Júlio olhou para a travessa. - Que batatas tão apetitosas! - exclamou ele. - Quero três grandes e quatro pequenas. - Que temos para sobremesa? - perguntou a Berta. - Gosto tanto desta salada que sou capaz de não ter espaço para uma sobremesa substancial. - Têm medronhos do jardim e sorvete feito em casa - disse a Joana. - Pensei que gostassem duma sobremesa fresca. A minha irmã veio visitar-me esta manhã e eu pedi-lhe que apanhasse os medronhos. - Não podia idealizar um almoço melhor do que este - disse a Berta, servindo-se da salada. - Gosto mais das vossas refeições do que das nossas na América. - Vamos converter-te num verdadeiro rapazinho inglês mesmo sem dares por isso - disse o David. Contaram à Joana o que tinham visto na ilha, de manhã. Ela ficou logo alarmada. - Agora não se esqueça do que recomendou a sua tia – disse ela. - A polícia deve ser prevenida de qualquer acontecimento estranho. É melhor telefonarmo-lhes. - Mas só quando viermos da ilha - disse o Júlio. - Não quero fazer figura de idiota, Joana. Se se trata apenas de excursionistas inofensivos não vale a pena incomodar a polícia. Prometo telefonar à polícia se encontrarmos alguma coisa suspeita. - Eu acho que devia falar imediatamente - disse a Joana. – E também acho que não deviam ir à ilha se suspeitam das pessoas que lá estão. - Levamos o Tim connosco - lembrou o David. - Não te preocupes. - E a Nina também - acrescentou logo a Berta. A Joana não disse mais nada mas quando foi à cozinha buscar os medronhos e o sorvete parecia preocupada. Apareceu depois com uma enorme taça de vidro cheia de medronhos e uma travessa com cubos de sorvete feito no frigorífico. Todos soltaram exclamações de agrado. - Quem poderia desejar uma coisa melhor? - disse o David. - E o sorvete, como conseguiste que ficasse assim, Joana, sem ser gelado demais nem a derreter-se? É exactamente como eu

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gosto. Espero que nenhum americano te agarre e te leve através do oceano. Tu vales quanto pesas! A Joana riu-se. - O menino David diz coisas muito extravagantes! E tudo só por causa duma simples sobremesa de medronhos e sorvete. O menino Manuel pode bem dizer-lhe que não há nada de especial nesta sobremesa. - Pois eu concordo com todas as palavras que lhes disseram - afirmou a Berta, com vivacidade. Tu és «formidábel», tu és um amor, tu és... Mas a Joana saíra da sala a correr, rindo muito satisfeita. Não se importava de ter trabalho com umas crianças como aquelas. Depois do almoço foram até à praia. O Jaime continuava junto do barco. - Está pronto! - gritou ele. - Vão sair já? Eu ajudo-os a empurrarem-no. Em breve os cinco pequenos e os dois cães estavam instalados no barco da Zé. Os rapazes começaram a remar com vigor em direcção à ilha. O Tim ficou na proa, como gostava, com as patas na borda do barco e olhando para a água. - Lá vai a Nina ter com o Tim - disse o David. - Tem cuidado, não caias à água, Nina, pois molhavas as tuas lindas patinhas. Tinhas que aprender a nadar se tal acontecesse. A Nina ficou muito quieta ao lado do Tim. Olhavam ambos para a ilha com atenção, o Tim por saber que havia ali centenas de coelhos e a Nina por ser uma verdadeira aventura andar num barco como aquele. A Berta também não tirava os olhos da pequena ilha enquanto o barco se aproximava. Ouvira tantas histórias acerca dela! Olhava principalmente para o velho castelo que ali se via. Estava em ruínas e a Berta pensava que na verdade devia ser muito antigo. Como todos os americanos, ela gostava de edifícios e costumes de tempos recuados. Que sorte a Zé tinha em possuir uma ilha como aquela! Grandes rochedos circundavam a ilha e o mar batia-lhes enchendo-os de espuma e salpicando tudo em redor. - Como vamos desembarcar na ilha? - perguntou a Berta um tanto assustada à vista daqueles rochedos. - Servimo-nos sempre duma pequena enseada - explicou a Zé, que ia ao leme e conduzia o barco com grande perícia por entre as rochas. Contornaram uma espécie de parede baixa feita de rochas escarpadas e a Berta de repente viu a pequena enseada. - Era a esta baíazinha que tu te referias? - perguntou ela. - Que engraçado! Até àquela extensão de areia parece um pequeno porto. Havia uma abertura entre as rochas por onde a água entrava formando um pequeníssimo porto natural, como a Berta dissera. O barco deslizou suavemente para dentro da enseada seguindo até à praiazita. O David saltou e puxou o barco para terra. - Aqui fica em segurança - explicou o pequeno à Berta. - Sê benvinda à ilha Kirrin! A Berta riu-se. Sentia-se muito feliz. Que lindo lugar era aquele! A Zé seguiu à frente subindo pela areia até às rochas que estavam mais adiante e por onde todos passaram. Depois pararam e a Berta ficou muito admirada. - Coelhos! - exclamou ela. - Milhares de coelhos! Nunca na minha vida vi tantos coelhos juntos! Não posso agarrar um? - Não! - disse a Zé. - Não são assim tão mansos. Desatam a fugir quando chegamos ao pé deles. Mas por vezes não se metem logo nas tocas. Conhecem-nos, pois já estivemos aqui muitas vezes. A Nina estava admiradíssima com os coelhos. Nem podia acreditar no que via. Mantinha-se ao lado da Berta, olhando para eles, com o nariz no ar para lhes sentir o cheiro. Não era capaz de entender o motivo por que o Tim não os perseguia.

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O Tim andava muito sossegado junto da Zé, com a cauda caída e um ar cabisbaixo. Uma visita à ilha Kirrin não era para ele um prazer tão grande como para as crianças, pois não lhe permitiam correr atrás dos coelhos. Que perda aquela! - Pobre Tim! Olhem para ele! - exclamou o Júlio. - Parece o retrato da própria desgraça. E reparem na Nina. Está a morrer por ir atrás dos coelhos mas acha que não é bonito começar a persegui-los antes do Tim. Bonito ou não, a Nina foi incapaz de suportar aquilo por mais tempo! De repente largou a correr para um coelho que se aproximara tentadoramente e este deu um pulo, muito assustado. - Nina! - Gritou a Zé duma forma muito severa. - NÃO! Não podes perseguir os meus coelhos! Tim, vai buscar a tua amiga. O Tim foi ter com a Nina e deu-lhe uma rosnadela sumida. A Nina olhou para ele muito admirada. O seu amigo Tim seria capaz de lhe rosnar? O Tim começou a dar-lhe encontrões e ela acabou por ir para junto da Zé. - Muito bem, Tim! - disse a Zé, satisfeita por ter mostrado a todos como ele era obediente. - Nina, não deves perseguir estes coelhos porque eles são muito mansos. Ainda não aprenderam a fugir como deve ser pois vem aqui muito pouca gente que os assuste. - Mas quem esteve aqui esta manhã assustou-os bastante - lembrou o Júlio. - Não se esqueçam de que podemos não estar sós. No entanto não vejo ninguém. Seguiram com precaução até ao velho castelo. o Tim corria à frente. De súbito o Júlio parou e apontou para o chão. - Pontas de cigarros! Reparem! Ainda recentes! Está alguém na ilha! Tenho a certeza. Vai à nossa frente, Tim. Mas naquele momento ouviram o mesmo barulho que a Ana escutara na noite anterior. - O som do motor dum barco. - Vão a fugir - gritou o David. - Depressa, vamos a correr até ao outro lado da ilha. Ainda os veremos!

Capítulo XII Muito suspeito Os pequenos, com os cães a ladrarem muito excitados, correram para a outra costa da ilha. Havia ali rochas enormes onde o mar batia com força. - Lá vai ele! É um barco a motor! - gritou o David. Todos pararam a observar o barco que se afastava a grande velocidade. - Onde está o binóculo? Trouxemo-lo connosco? - perguntou o Júlio. - Gostava de ver se conseguia descobrir o nome do barco ou observar os homens que lá vão. Mas o binóculo ficara no Casal Kirrin. Que pena! - Devem ter ancorado o barco a motor ali em baixo e depois conseguiram chegar a terra trepando pelas rochas - disse a Zé. - É uma proeza arriscadíssima, se não se conhecer o melhor caminho. - E se vieram na noite passada, como eu penso, pois agora estou certa de que era o motor do barco o que eu ouvi – disse a Ana -, se vieram na noite passada devem ter subido pelas rochas às escuras. Nem sei como conseguiram. - E deve ter sido a luz duma lanterna o que tu viste na ilha durante a noite - lembrou o Júlio. - Naturalmente não quiseram que os vissem chegar aqui e por isso desembarcaram do lado que dá para o mar. Sempre gostava de saber se são homens a tentar descobrir a Berta.

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- Vamos dar mais uma volta pela ilha, para ver se encontramos alguma coisa - propôs a Ana. - O barco a motor já quase se não vê. Voltaram para outro lado da ilha. A Berta olhou com admiração para o castelo que ficava no meio. Havia muitos corvos no cimo duma torre. - Em tempos o meu castelo foi rodeado por muralhas altas e espessas - explicou a Zé - e tinha duas grandes torres. Uma está quase em ruínas, como vês, mas a outra ainda se conserva em bastante bom estado. Anda visitar o castelo. A Berta seguiu os outros, muda de admiração. Pensar que aquela ilha e aquele maravilhoso castelo arruinado pertencia à Zé! Que sorte fantástica ela tinha! Passaram por uma grande arcada e encontraram-se num compartimento escuro, rodeado por paredes de pedra. Por duas janelas estreitas, mais parecendo umas fendas, entrava toda a luz que iluminava o quarto. - É estranho, antigo e misterioso - disse a Berta, falando consigo própria. - Este castelo parece estar sonhando com os tempos antigos em que nele viviam pessoas. Com certeza não gosta de nos ver aqui. - Acorda! - exclamou o David. - Parece que estás narcotizada! A Berta sacudiu a cabeça e voltou a olhar em volta. Depois foi andando pelo castelo, vendo os outros compartimentos, uns sem tecto outros sem uma ou duas paredes. - É um castelo de sonho! - disse ela à Zé! - «Formidábel»! Formidável! Andaram por toda a parte, mostrando tudo à maravilhada Berta. - Agora vamos aos subterrâneos - disse a Zé, muito satisfeita por ter impressionado tanto a pequenita americana. - Subterrâneos? Também há aqui subterrâneos? É verdade, vocês já me tinham contado - disse a Berta. - Subterrâneos! Nem me digam! Nunca me esquecerei desta tarde! Quando iam pelo pátio, o Tim de repente rosnou e ficou muito quieto com a cauda caída e o pêlo do pescoço eriçado. Os pequenos pararam também, automaticamente. - Que foi, Tim? - perguntou a Zé em voz baixa. O focinho do Tim estava virado para o pequeno porto onde haviam deixado o barco. - Deve estar ali alguém - disse o David. - Não me digam que levaram o nosso barco. A Zé deu um grito. O barco dela! O seu precioso barco! Largou a correr a toda a velocidade, com o Tim à frente. - Volta para aqui, Zé! Pode ser perigoso! - gritou o Júlio. A Zé nem o ouviu. Correu pelas rochas que davam para a pequena praia mas a certa altura parou, surpreendida. Dois polícias iam a subir pela praia! O barco deles estava colocado ao lado do outro. Os dois homens cumprimentaram-na, sorrindo. - Boa tarde, menina Zé! - Que estão a fazer na minha ilha - perguntou a Zé, reconhecendo-os. - Por que razão vieram aqui? - Alguém nos informou que se encontravam na ilha pessoas suspeitas - explicou um dos polícias. - Quem lhes contou isso? - perguntou a Zé. - Só nós o sabíamos! - Até aposto que sei quem foi - disse o David, aproximando-se. - Foi a Joana. Ela não gostou de que nós viéssemos aqui sozinhos e pediu-nos para avisarmos a polícia. - Tem razão - confessou o polícia. - Por isso viemos aqui ver o que se passa. Encontraram alguém? O Júlio então tomou a palavra e contou que tinham visto, primeiro, as pontas de cigarro e, depois, que ouviram o barco a motor pôr-se em marcha e afastar-se da ilha. - Ah! - exclamaram os dois polícias solenemente. - Ah! - Que querem dizer com esses «Ahs»? - perguntou o David. - Aqui o Fred ouviu o barulho dum barco a motor durante a noite - explicou um dos polícias...,- Sempre gostávamos de saber por que motivo veio até aqui.

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- Também nós gostávamos - disse o Júlio. - Vimos alguém na ilha, esta manhã, observando a praia por um binóculo. Esta afirmação trouxe mais dois «Ahs» e os polícias trocaram olhares significativos. - Foi uma boa ideia trazerem dois cães com os meninos – disse o polícia que se chamava Fred. - Bem, vamos só dar uma vista de olhos por aqui e depois regressamos por onde viemos. E não se esqueça de telefonar, menina Zé, a próxima vez que acontecer qualquer coisa. Afastaram-se os dois, olhando sempre para o chão. Encontraram as pontas de cigarro e guardaram-nas. Depois seguiram em frente. - Vamo-nos embora - disse a Zé em voz baixa. - Fica tudo estragado quando estão mais pessoas na ilha. Agora já não quero fazer aqui um piquenique. Vamos de barco até outro sítio e lanchamos na baía. Assim, empurraram o barco até à água e saltaram para dentro. A Nina ficou muito satisfeita por voltar para o barco e corria duma ponta à outra, abanando a sua pequenina cauda, cheia de contentamento. O Tim seguia-a, tropeçando em todos. - Como queres que eu reme contigo a saltar-me em cima, Tim? - lamentou-se o David. - Nina, tu também estás impossível. Ó Berta, sentes-te bem? Estás com mau parecer. - É por estar excitada e por causa da ondulação à volta dos rochedos - respondeu a Berta, desejando ardentemente não parecer enjoada em frente dos outros. - Isto passa logo que cheguemos ao mar calmo. Mas não passou e por isso tiveram que se decidir, cheios de pena, a remar para a praia. Comeram aí o lanche e a Berta melhorou o bastante para o saborear. - Alguém quer um sorvete? - perguntou a Ana. - Se quiserem eu vou buscá-los à loja. Aproveito para comprar uns atacadores para os meus sapatos. Rebentei um esta manhã. Todos se sentiram com vontade de comer um sorvete e por isso a Ana partiu com a Nina, que quis acompanhá-la. Comprou os atacadores e depois entrou na confeitaria que vendia sorvetes. - Sete, por favor - disse ela. A empregada sorriu. - Sete? costuma pedir só cinco! - Pois é, mas temos outra pessoa connosco e mais outro cão - explicou a Ana. - E os dois cães gostam de sorvete. - Agora me lembro. Ontem esteve uma pessoa aqui na loja a fazer perguntas sobre o tio da menina - disse a rapariga. - Parece que o conhecia. Queria saber quantas crianças estavam no Casal Kirrin e eu pensava que só lá estivessem os quatro meninos, com o Tim, claro. O homem ficou surpreendido e perguntou se não haveria mais uma menina. - Santo Deus! - exclamou a Ana, alarmada. - Que curioso! E como lhe respondeu? - Afirmei-lhe que eram dois meninos e duas meninas, uma das quais gostava de se vestir de rapaz - respondeu a empregada. A Ana ficou satisfeita por ver que a rapariga da confeitaria não sabia da existência da Berta. - Como era o homem? - perguntou ela. - Não tinha nada de especial - respondeu a empregada, tentando recordar-se. - Usava óculos escuros como a maior parte dos fregueses quando está sol. E quando me pagou a conta reparei que tinha um grande anel de oiro. Não me lembro de mais nada. - Bem, se alguém mais lhe fizer perguntas a nosso respeito diga que temos connosco um amigo chamado Manuel - pediu a Ana. - Adeus! Foi-se embora a toda a pressa, ansiosa por contar aos outros o que ouvira. O homem que fora à confeitaria devia ser um dos que estivera na ilha a observar a praia. Com certeza vira as cinco crianças a brincar. Naturalmente era um dos homens do barco a motor. A Ana não estava nada satisfeita, sentindo-se preocupada. Enquanto comiam os sorvetes, sentados na areia, contou aos outros o que dissera a rapariga da confeitaria. O Tim comeu o seu sorvete num abrir e fechar de olhos e ficou pacientemente a ver a Nina comer o dela, na esperança de que lhe deixasse algum bocadinho.

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Todos os quatro ouviram com a maior atenção a história da Ana. - Agora tenho a certeza - disse o David. - Os tais homens andam por aqui para descobrirem se o Manuel está connosco. - E andam a aproximar-se demasiado - observou o Júlio. – Isto não me agrada nada. - Ainda bem que os vossos tios chegam amanhã - disse a Berta. - Vamos contar-lhes tudo pois pode ser que arranjem uma boa solução. - Espero que os homens não saibam que os tios estão fora - disse o David, preocupado. - Acho que daqui por diante devemos ter o máximo cuidado,. - Não sei se será prudente a Berta continuar aqui connosco. - Veremos o que o pai resolve amanhã - concluiu a Zé. Assim, decidiram que nada se faria antes dos pais da Zé voltarem, a não ser conservarem-se o mais alerta possível. Foram para o Casal Kirrin, bastante preocupados, e contaram à Joana o que se passara na ilha. - Foste tu que telefonaste à polícia, Joana! - disse o David, apontando para a criada. - Pois fui. E tive muita razão - afirmou ela. - E mais, a cama do menino Manuel fica esta noite longe da janela, e a janela não se abre, ainda que derretamos com o calor, e a porta fica fechada à chave... - Se quiseres empresto-te o Tim - disse a Zé. - Pode dormir no vosso quarto com a Nina. Assim ficarão em segurança. Na verdade a Zé dissera aquilo só por graça, mas para sua surpresa, a Joana aceitou logo a oferta. - Muito obrigada, menina - disse ela. - Agrada-me muito ficar com o Tim. Sinto medo, assim sozinha, com os raptores tão próximos de nós. O Júlio riu-se. - Não faças as coisas tão negras, Joana! Só mais uma noite e os tios estarão em casa. - Oh! já me esquecia de lhes dizer - tornou a Joana. – Chegou um telegrama. Os senhores só voltam dentro duma semana! É por isso que me sinto tão assustada. Pode acontecer muita coisa numa semana!

Capítulo XIII Um horrível susto O Júlio não ficou nada satisfeito ao ouvir dizer que os tios passavam uma semana fora. Pegou no telegrama. Era dirigido à Zé mas a Joana abrira-o. - Demoramo-nos uma semana - dizia. - Surgiram complicações. Esperamos que tudo corra bem. Saudades da mãe. Não mandava nenhuma morada. Que aborrecimento! Assim o Júlio nem podia pôr-se em contacto com eles para os avisar de que se sentia um tanto preocupado. Resolveu vigiar a Berta constantemente. Felizmente tinham o Tim. Ninguém se atreveria a fazer um rapto sob as vistas do cão. O Júlio achou que era uma boa ideia deixar nessa noite o Tim no quarto da Joana com a Berta. Na verdade, se a Zé concordasse, seria melhor fazer o mesmo nas noites seguintes. No entanto não era aquela a melhor altura para pedir tal coisa à Zé, pois o pequeno percebia que ela estava contrariada pelo oferecimento que fizera à Joana. Naquela noite, o Júlio foi muito cauteloso. Insistiu em que corressem as persianas quando se sentaram a jogar as cartas depois do jantar. Não deixou a Berta ir com a Nina ao costumado

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passeio e saiu ele próprio com a cadela, olhando para todos os lados, a ver se descobria alguma pessoa desconhecida, com ar suspeito. - Estás a fazer com que eu me sinta muito assustada - disse a Ana, rindo. - Oh! Júlio, está tão quente neste quarto! Por favor, deixa subir as persianas, por alguns minutos, para entrar o ar fresco. Tenho a impressão de que vou sufocar se não as abrirmos. O Tim ladra logo, se estiver alguém lá fora. - Está bem - concordou o Júlio, indo subir as persianas. Lá fora estava muito escuro. - Assim sinto-me melhor - disse a Ana. - Quem joga agora? É a tua vez, Zé. Estavam todos sentados à volta da mesa. O Júlio e o David ficavam ao lado um do outro. A Zé estava voltada para a janela, tendo a Ana na sua frente. A Berta estava ao lado da Zé, que lhe ensinava o jogo. Ela parecia exactamente um rapazito, muito atento, com o cabelo louro muito curto. - És tu a jogar, David - disse a Zé. - Despacha-te. Esta noite estás muito vagaroso. A Zé ficou à espera, olhando pela janela aberta para a escuridão da noite. De repente atirou as cartas ao ar e deu um salto, gritando. Os outros apanharam um tremendo susto. - Que foi? Que foi? - gritou o Júlio. - Lá fora! Olhem! Vi uma cara! Vi uma cara a espreitar cá para dentro! A luz da sala iluminou-a! Tim! Tim! Depressa, vai atrás do homem! Mas nem o Tim, nem a Nina se encontravam ali. A Zé gritou muito nervosa: - Tim! Vem cá depressa! Que pena! O homem assim terá tempo de fugir! TIM! O Tim entrou a correr, ladrando. A Nina seguia-o. - Onde estavam? palerma - gritou a Zé furiosa. - Saltem pela janela! Procurem o homem Depressa! O Tim saltou pela janela. A Nina tentou fazer o mesmo mas não conseguiu, gania e ladrava, tentando repetidas vezes saltar para o parapeito. A Joana apareceu correndo, muito aflita, sem saber o que acontecera. - Ouçam! - gritou o Júlio, de repente - Cala-te, Nina! Ouçam! Em breve estavam todos calados, incluindo Nina. Ouviu-se o barulho dum automóvel rolando pela estrada, desaparecendo à medida que o carro se afastava. - Fosse quem fosse, fugiu - disse o David, deixando-se cair numa cadeira. - Sinto-me como se tivesse corrido uma légua. Ias-me matando de susto, Zé, quando atiraste as cartas ao ar e me gritaste ao ouvido. O Tim naquela altura entrou pela janela o que fez o David apanhar outro tremendo susto. Os outros também se assustaram. Até mesmo a Nina correu para debaixo dum sofá, muito aflita. - Mas que vem a ser tudo isto? - perguntou a Joana, zangada. A Zé estava furiosa, principalmente com o Tim. Desatou a gritar ao pobre cão, que ficou logo com a cauda caída. - Onde estavas metido? Porque saíste da sala para a cozinha? Como te atreveste a deixar-me sem minha autorização? Exactamente quando eras preciso? Tenho vergonha de ti! Podias com toda a facilidade ter agarrado aquele homem! - Não digas essas coisas, Zé! - pediu a Berta quase a chorar. - Pobre Tim! Não lhe ralhes! Então a Zé voltou-se para a Berta. - Deixa-me descompor o meu cão à minha vontade. Vai tu zangar-te com o teu. Até aposto que o Tim seguiu a tua horrível cadela lãzuda até à cozinha! Foi tudo por culpa dela e não dele. - Cala-te, Zé - ordenou o Júlio. Estás de cabeça perdida. Acalma-te e conta-nos o que viste. Acalma-te, disse eu. A Zé fitou o primo, disposta a responder-lhe com arrogância, mas nesse momento o Tim ganiu baixinho. Estava tristíssimo por ver que a Zé, a sua querida dona, lhe ralhara tanto. Não conseguia perceber o que teria feito para lhe desagradar daquela maneira. O Tim a ganir fez com que a Zé se acalmasse.

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- Ah! Tim! - exclamou ela ajoelhando e pondo os braços à volta do pescoço do cão. - Eu não te queria ralhar. Fiquei zangada daquela maneira só por termos perdido a oportunidade de agarrar o homem que nos estava a espreitar. Pronto, Tim, já passou! O Tim ficou todo satisfeito ao ouvir aquilo. Começou a lamber a Zé e depois deitou-se ao lado dela, muito quieto. Bem desejava saber porque estariam todos tão excitados. O mesmo acontecia com a Joana, ela bateu na mesa para que lhe prestassem atenção, conseguindo por fim que o Júlio lhe explicasse tudo. Depois olhou para a janela quase convencida de que via caras na noite escura e baixou as persianas com um ar decidido. - Vamo-nos deitar - disse ela. - Todos nós. Não gosto disto. Vou telefonar à polícia para os avisar. Menino Manuel, venha já comigo. - Acho que tens razão, Joana - disse o Júlio. - Vou fechar todas as janelas e portas. Venham, meninas. O Tim ficou admirado e aborrecido ao ver que o entregavam à Joana e à Berta. A Zé continuaria zangada com ele? Havia passado muito tempo desde que dormira a última vez longe da Zé. Animou-se um pouco mais ao ver que a Nina ficava com ele e subiu, um tanto triste, as escadas para o quarto da Joana, no sótão. A criada meteu a Berta na cama e depois despiu-se. Fechou a janela e deu a volta à chave da porta. Pôs um cobertor a um canto para o Tim. A Nina saltou para a cama da Berta como de costume. - Agora devemos estar em segurança - disse a Joana, preparando-se para dormir. No andar de baixo os dois rapazes tomaram as mesmas precauções e as raparigas fizeram outro tanto. As portas bem fechadas, assim como as janelas, embora estivesse uma noite quente e todos achassem que na manhã seguinte deviam acordar quase derretidos. A Zé não suportava a ideia de o Tim ter ficado com a Joana e a Berta, especialmente naquela noite em que fora tão má para ele. Meteu-se na cama cheia de remorsos. - Querido, bom e fiel Tim! Como fora capaz de se zangar com ele daquela maneira! - Achas que o Tim deve sentir-se muito triste? - perguntou a Zé à Ana, quando estavam ambas deitadas. - Um bocadinho, naturalmente - disse a Ana. - Mas os cães perdoam com facilidade. - Bem sei. Isso ainda torna as coisas piores, disse a Zé. - Na verdade, tu não devias enfurecer-te daquela maneira - declarou a Ana, aproveitando a ocasião para dizer à Zé algumas verdades. - Julgava que já conseguisses dominar o teu mau génio, mas nestas férias tens-te portado bastante mal. Acho que é por causa da Berta. - Desejava tanto ir lá acima dar boa noite ao Tim - disse a Zé depois dalguns minutos de silêncio. - Pelo amor de Deus, Zé! - disse a Ana meio a dormir. – Sê sensata! Não vais agora bater à porta da Joana, pedindo que te deixe ver o Tim. Ela apanhava um susto de morte! A Ana adormeceu mas a Zé não conseguia. A certa altura ouviu o barulho duma porta a ser aberta com a chave e sentou-se. Parecia que o barulho vinha do sótão. Seria a Joana abrindo a porta? Que quereria ela? Ouviu-se uma pequena pancada com a mão na porta do quarto da Zé. - Quem é? - perguntou a pequena. - Sou eu, a Joana - disse a criada. - Trouxe a Nina cá para baixo, menina Zé. O Tim quer à força subir para a cama da menina Berta para ficar com a Nina e por isso não conseguimos adormecer, a cama de campanha é muito pequena para os três. Se faz favor, fica com a Nina, sim? - Que maçada! - exclamou a Zé, indo abrir a porta. - Como está o Tim? - perguntou em voz baixa. - Muito bem - respondeu a Joana. - Vai ficar contrariado por eu ter trazido a Nina. Estou satisfeita por o Tim dormir lá em cima esta noite, depois de todos aqueles acontecimentos.

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- Ele... ele... está satisfeito, Joana? - perguntou a Zé. Mas a Joana já virara as costas, não a ouvindo. A Zé deu um suspiro. Porque oferecera à Joana e à Berta ficarem com o Tim, logo numa noite em que se zangara tanto com o seu querido cão! Agora tinha de se contentar com aquela cadelinha pateta! A Nina ganiu. Não gostava de estar separada da Berta e não simpatizava com a Zé. Conseguiu saltar dos braços da pequena e correu pelo quarto, sempre a ganir. A Ana acordou em sobressalto. - Que aconteceu? – perguntou ela. - Então a Nina está aqui? Como veio cá parar? A Zé contou-lhe, muito aborrecida. - Bem, espero que ela se cale - disse a Ana. - Não é nada agradável ela passar a noite a correr pelo quarto e a ganir. Mas a Nina não se queria calar. Começou a ganir com mais força e quando deu um salto para cima da cama da Zé, indo cair mesmo sobre o estômago da pequena, esta perdeu a paciência e sentou-se, falando-lhe severamente. - Idiota! Vou já levar-te lá abaixo e meter-te no canil do Tim! - Boa ideia - disse a Ana, cheia de sono. A Zé agarrou na cadelita e saiu do quarto, fechando a porta com cuidado. A Ana em breve voltou a adormecer. A Zé desceu as escadas e foi até à porta que dava para o jardim. Destrancou-a e saiu em pijama e roupão, com o cabelo encaracolado todo revolto, levando ao colo a cadelinha a ganir. De repente sentiu a Nina endireitar-se nos seus braços e rosnar. A Zé ficou muito quieta. Que teria ouvido a Nina? Então as coisas sucederam muito rapidamente. A luz duma lanterna bateu na cara da Zé e antes que pudesse soltar um grito enfiaram-lhe um saco pela cabeça. - É esta mesma - disse uma voz, baixinho. - A que tem o cabelo encaracolado! E esta é a cadela pêlo-de-arame. Mete-a depressa no canil antes que desate a ladrar. A Nina, tão assustada que nem mesmo rosnava foi empurrada para o canil e fecharam a porta. A Zé, debatendo-se e tentando em vão gritar foi levada ao colo até à entrada do jardim. O portão ficou a bater com o vento da noite. A Nina gania no canil - Mas ninguém ouviu nem o portão nem a cadela. No Casal Kirrin, todos dormiam profundamente!

Capítulo XIV Onde está a Zé? Na manhã seguinte, cerca das sete e meia, a Joana, como de costume, desceu as escadas. A Berta estava acordada e resolveu ir buscar a Nina ao quarto da Zé. Vestiu o roupão e foi ao andar de baixo, seguida pelo Tim. A porta estava fechada, por isso a pequena bateu suavemente. - Entre - disse a Ana com voz sonolenta. - Ah! és tu, Berta? - Sou. Vim buscar a Nina. Bom dia! Onde está a Zé? A Ana olhou para a cama vazia ao lado da sua. - Não sei. A última vez que a vi foi a meio da noite quando, estávamos desesperadas por a Nina não parar de ganir. A Zé disse então que a ia meter no canil, lá em baixo. - Naturalmente agora foi buscá-la - sugeriu a Berta. – Nesse caso vou-me arranjar. Hoje está novamente uma manhã de sonho. Vamos tomar um banho de mar antes do pequeno almoço? Se assim for visto só o fato de banho. - Acho que devemos ir. Estamos bem dispostas e ainda é muito cedo - disse a Ana, saltando da cama. - Vai acordar os rapazes, Berta. E tu, Tim, vai lá abaixo procurar a Sé.

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O David e o Júlio estavam acordados e dispostos a tomarem um bom banho antes do pequeno almoço. A Ana juntou-se a eles quando desciam as escadas. A Berta já tinha ido ao canil buscar a Nina, que ficou muito excitada quando viu a dona. Não parava de saltar, ladrando alegremente. O Tim foi ter com as pequenas, muito intrigado. Procurara a Zé por toda a parte e não a encontrara. - Béu! - fez ele à Ana. - Béu! Béu! - Como se quisesse dizer: - Por favor, onde está a Zé? - Ainda não encontraste a Zé? - perguntou a Ana, surpreendida. Depois chamou a Joana. – Viste a menina Zé? Já teria ido para a praia tomar banho? - Ainda não a vi hoje - respondeu a criada. - Mas deve ter saÍdo, pois o portão do jardim estava aberto quando eu vim para baixo e logo calculei que um dos meninos tinha resolvido ir tomar banho de mar mais cedo. - Então a Zé deve estar na praia - concluiu a Ana, um tanto intrigada. Porque não a teria acordado para saber se ela também quereria ir tomar banho? Em breve os quatro chegavam à praia, com os dois cães, a Nina muito contente por estar novamente com a Berta e o Tim muito cabisbaixo e apreensivo. O cão ficou parado a olhar para a praia de ponta a ponta sem saber que fazer. - Não vejo a Zé em parte alguma - disse o David, sentindo-se de repente bastante assustado. Não está a tomar banho. Todos olharam para o mar. Mas ninguém se encontrava a tomar banho àquela hora. A Ana voltou-se para o Júlio, muito assustada. - Júlio, onde estará ela? - Quem me dera saber! - exclamou o Júlio, aflito. - Não está na praia nem saiu com o barco, pois ele está ali. É melhor voltarmos para casa. - Acho que a Zé não ia tomar banho sem me avisar - disse a Ana. - E também acho que eu devia ter acordado nem que fosse por um momento quando ela entrasse no quarto depois de levar a Nina. AH! Júlio! dá-me ideia de que lhe aconteceu alguma coisa quando foi levar a cadelinha para o canil, na noite passada! - Também já pensei nisso - disse o Júlio, muito sério. - Sabemos que ontem andava alguém por aqui pois a Zé viu uma cara A espreitar à janela. É melhor voltarmos para casa a ver se descobrimos, junto da porta do canil ou do jardim, alguma coisa que nos ajude. Voltaram para trás, muito preocupados. Pouco depois de começarem a procurar ao pé do canil, a Ana soltou uma exclamação e abaixou-se. Apanhou qualquer coisa que entregou aos outros sem dizer palavra. - Que é isto? Santo Deus! É o cinto do roupão da Zé! - disse o David, admirado. - Aqui está a prova. Apanharam a Zé quando ela veio pôr a Nina no canil. - Devem ter pensado que ela era eu - observou a Berta, chorando. - Lembrem-se de que a Zé levava a Nina e eles sabem que a cadelinha me pertence. Ela também usa o cabelo curto e durante o dia veste-se à rapaz. - Foi isso mesmo! - concordou o Júlio. - Tu agora, sem os teus fatos de rapariga, pareces um autêntico rapaz e a Zé não. Os raptores andavam à procura duma rapariga vestida à rapaz e a Zé correspondia inteiramente às indicações, especialmente por ter o pêlo-de-arame com ela. A Zé foi raptada. - E o meu pai receberá a carta costumada, dizendo que não farão mal à sua filha se ele entregar o novo segredo aos raptores? - perguntou a Berta. - Com certeza - afirmou o Júlio. - E que dirão eles quando descobrirem que raptaram a Zé e não a mim? - toRNou a perguntar a Berta. - Bem... - começou o Júlio, pensando. - Realmente não sei. São capazes de tentar um jogo parecido, com o tio Alberto mas, claro está, ele não tem o segredo que eles querem. - E agora que vamos fazer à Berta? - lembrou o David. – Quando os homens perceberem que se enganaram virão logo procurá-la.

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- A Zé não lhes há-de dizer nada - afirmou logo a Ana. – Ela bem sabe que a Berta correria um grande perigo se lhes dissesse quem é na verdade, por isso há-de ficar calada enquanto puder. - Achas que sim? - perguntou Berta, duvidosa. - Ela é valente! Se disser quem é pode ser logo posta em liberdade. Será «formidábel» se conseguir calar-se. - A Zé é muito valente - afirmou o David. - Tanto como qualquer rapaz quando está em apuros. Júlio, anda contar à Joana. É NECESSÁRIO decidirmos o que vamos fazer e também é preciso pôr a Berta em sítio seguro. Acho que não deve voltar a sair connosco. A Berta começou logo a sentir-se assustada. O desaparecimento da Zé fez-lhe perceber, com clareza, o verdadeiro perigo que corria. Até ali não acreditaria muito no caso. Mas naquela altura começou a olhar para todos os lados, como se esperasse que alguém a agarrasse de repente. - Não te assustes, Berta, agora não está aqui ninguém – disse o David, sossegando-a. - Mas mesmo assim é melhor ires lá para dentro. Estou convencido de que a Zé não dirá quem é, mas os homens podem descobrir por qualquer forma e voltarão aqui imediatamente. A Berta correu para casa como se fosse alguém a persegui-la! O Júlio fechou à chave o portão do jardim e chamou a Joana. Tiveram uma conversa muito a sério. A Joana estava aterrada. Soluçou ao saber que a Zé tinha sido raptada a meio da noite. Depois limpou os olhos ao avental. - Eu bem disse que fechassem as portas e as janelas. Tanto pedi para contarem tudo à polícia e logo a menina Zé vai ao jardim sozinha! - exclamou ela. - Se ao menos não tivesse levado a cadelinha! Não admira que pensassem tratar-se da menina Berta, levando a Nina ao colo! - Escuta, Joana - disse o Júlio. - Temos muito que fazer. Primeiro devemos avisar a polícia. Depois temos que conseguir de qualquer maneira pormo-nos em contacto com a tia Clara e com o tio Alberto. Foi uma imprevidência não nos terem mandado uma direcção! E depois é preciso resolver para onde vai a Berta. Deve ficar bem escondida em qualquer parte, sem ser cá em casa. - Isso é verdade - disse a Joana, voltando a limpar os olhos. Sentou-se a pensar por uns momentos e depois a sua expressão iluminou-se. - Já sei onde a podemos esconder - disse ela. - Lembram-se da João, daquela ciganita com quem tiveram uma ou duas aventuras? - Lembro-me perfeitamente - disse o Júlio. - Agora vive com a tua prima, não é verdade? - É sim - respondeu a Joana.- E a minha prima há-de tomar conta da menina Berta mal saiba o que se passa. Ela vive numa aldeia muito sossegada e ninguém há-de achar extraordinário que a minha prima tenha outra criança para fazer companhia à João. Já várias vezes ela fez o mesmo. - Realmente parece boa ideia - disse o David. - Não achas, Júlio? Temos que mandar a Berta para fora daqui imediatamente. E podemos confiar na João para tomar conta dela. A ciganita é esperta como um alho. - A polícia também estará ao corrente - disse o Júlio. – E pode ir vigiando a Berta. Joana, és capaz de chamar um táxi, pelo telefone, para levares a Berta imediatamente? - A minha prima ficará bem surpreendida ao ver-me chegar a esta hora da manhã - disse a Joana, tirando o avental. – Mas ela afaz-se depressa aos acontecimentos e há-de prestar-se ao que lhe vou pedir. Menino Manuel, prepare alguma roupa para levar. Mas nada de coisas finas como a sua escova de cabelo com cabo de prata. A Berta naquela altura parecia muito assustada e estava quase a recusar-se a partir. O Júlio pôs uma mão sobre o ombro da pequena. - Escuta - disse ele. - Tenho a certeza de que a Zé não diz nada. Por isso, devemos levar-te daqui antes que os homens descubram ter apanhado outra pessoa. Portanto tu também consegues ser uma menina valente, não é verdade?

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- Está bem - disse a Berta, fitando a expressão séria mas bondosa do Júlio. - Farei o que tu mandares. Mas quem é essa João? A Joana disse que ela é uma ciganita. Eu não gosto de ciganos. - Mas desta hás-de gostar bastante - afirmou o Júlio. – É travessa, endiabrada e meio selvagem mas tem bom coração. Não é verdade, Joana? A criada fez um sinal afirmativo. Sempre gostara da ciganita e fora ela quem lhe arranjara uma casa quando mandaram o pai da pequena para a prisão. - Venha, menino Manuel - disse ela. - Temos de nos despachar. Menino Júlio, a menina dEVE ir vestida de rapariga ou de rapaz? Temos DE resolver. - De rapariga, por favor, de rapariga! - pediu logo a Berta. O Júlio pensou um pouco. - Sim, acho que tens razão – disse ele por fim. - Agora é melhor voltares a ser rapariga. Mas pelo amor de Deus, não digas por enquanto que te chamas Berta! - Passa a ser Luísa - disse a Joana com ar decidido. - É um nome bonito mas tão vulgar que não chama a atenção. Berta é um nome esquisito. Vamos embora. A menina tem que levar as suas roupas mais simples. - Vou telefonar à polÍcia - disse o Júlio - E também vou telefonar para os táxis. - É melhor não irmos de táxi - lembrou Joana. - Não quero chegar à casa modesta DA minha prima metida num automóvel para ficar toda A gente intrigada. Podemos muito bem ir de camioneta. - Tens razão - aprovou o Júlio, dirigindo-se ao telefone. Conseguiu falar com o sargento da polícia e contou-lhe o que acontecera. O homem não mostrou o mais pequeno espanto mas ia tirando apontamentos rápidos do que o Júlio lhe ia dizendo. - Dentro de dez minutos estarei AÍ - disse ele. - Esperem em casa até eu chegar. O Júlio pousou o auscultador. O David e a Ana observavam-no com ansiedade. Como estaria a Zé? Assustada? Muito zangada? Ferida? O Tim estava num estado lastimoso. Percebia que acontecera qualquer coisa à sua dona. Foi uma dúzia de vezes ao sítio onde haviam encontrado O cinto do roupão, farejando tudo à volta, com um ar desconsolado. A Nina sabia que o Tim estava triste e andava atrás dele, silenciosamente. Quando o cão se deitava, a cadelita deitava-se ao lado dele, quando ele se levantava, ela levantava-se também. Seria divertido observá-los, mas ninguém tinha disposição para tal. Ouviram-se passos lá fora. - É a polícia - disse o Júlio. - Não se demoraram nada.

Capítulo XV Algumas descobertas no bosque Chegou o sargento com um polícia. A Ana sentiu-se mais confortada ao ver os dois homens fardados, de aspecto respeitável. O Júlio levou-os para a sala e contou-lhes em pormenor tudo o que se passara. A meio da conversa ouviram-se passos apressados nas escadas, dirigindo-se à entrada. - Vamo-nos já embora - gritou a Joana. - Não podemos parar para nos despedirmos senão perdemos a camioneta.

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Lá foi a Joana pelo jardim levando uma maleta que lhe pertencia e emprestara à Berta, pois a da miúda era demasiado grande. A criada metera lá dentro as roupas mais simples da Berta mas no íntimo pensava pedir à sua prima que a vestisse com coisas da João. A Berta corria atrás dela. Parecia outra, com um vestido em vez de calções e camisola. Levava um chapéu para encobrir o cabelo cortado. Acenou aos outros enquanto se afastava, esforçando-se por sorrir. - Coitada da Berta! - exclamou o David. - Não é nada má pequena. - Realmente ela é «formidábel»! - disse o Júlio, tentando fazer com que a Ana se risse. - Onde vão? - perguntou o sargento, surpreendido, apontando para a Joana e para a Berta. O Júlio explicou-lhe e o sargento franziu o sobrolho. – Não deviam ter tratado de nada antes de nos consultarem – disse ele. O Júlio ficou desmoralizado. - Bem vê - começou ele. - Achei que devia fazer com que a Berta saísse de casa o mais depressa possível e se escondesse em qualquer outro sítio pois pode dar-se o caso dos raptores descobrirem depressa que levaram outra miúda. - Tem razão - disse o sargento. - No entanto devia ter-nos perguntado. Parece-me uma boa ideia levar a menina para uma aldeia sossegada, tendo a João por guarda. A ciganita é muito esperta. Até era capaz de prender os raptores. Mas deve compreender, menino Júlio, que este assunto é muito sério e não pode ser tratado por crianças. - Vão fazer com que a Zé volte? - interrompeu a Ana, fazendo finalmente a pergunta que tanto desejava, desde a chegada dos polícias. - Talvez - disse o sargento. - Agora vou pôr-me em contacto com os seus tios, menino Júlio, e com o senhor Elbur Wright. E... O telefone começou a tocar naquele momento e a Ana foi atender. - É para si, senhor sargento, - disse ela, entregando-lhe o auscultador. - Haam! Huum! Sim, sim. Está bem. Haam! O sargento desligou e voltou-se para os outros. - Os raptores avisaram o senhor Elbur Wright que lhe raptaram a filha - disse o sargento. - E pediram-lhe que entregasse os tais cálculos? - perguntou o Júlio. O sargento fez um sinal afirmativo. - O senhor ficou quase maluco com a notícia! Prometeu dar-lhes tudo quanto quiserem. Que loucura! - O melhor é dizerem-lhe que não foi a Berta que eles apanharam mas sim a Zé - lembrou o David. - Assim já ele ficará mais calmo. O sargento voltou a franzir o sobrolho. - Deixem isso connosco - disse ele ponderadamente. - Só nos atrapalharão se resolverem intrometer-se ou tentarem resolver as coisas a vosso modo. Os meninos deixem-se estar quietos para facilitar este assunto. - Que diz! Com a Zé raptada e correndo perigo! - Explodiu o David. - Que vão os senhores fazer para a libertarem? - Ora, ora - disse o sargento, aborrecido. - Ela não corre nenhum perigo pois não é a pessoa que os raptores pretendem. Hão-de mandá-la embora logo que percebam isso. - Não concordo - observou o David. - Naturalmente vão ter com o pai dela para lhe arrancarem alguns dos cálculos. - E isso fará com que tenhamos mais tempo para os procurarmos - respondeu o irritante sargento, levantando-se. - Digam-me imediatamente se souberem mais alguma coisa e por favor não tentem intrometer-se. Nós bem sabemos o que devemos fazer. Depois o sargento saiu com o outro polícia. O Júlio ficou furioso. - O homem ainda não percebeu que isto é urgente! E é um caso complicado! Raptaram uma criança que não lhes interessava, ameaçaram uma pessoa que não é o pai dela, o verdadeiro pai não é nada inclinado a entregar segredos importantes... E a pobre Zé sem saber o que se está a passar!

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- Felizmente pusemos a Berta em segurança - disse o David. - Oh! Ana, estás com um aspecto esquisito, Sentes-te bem? - Acho que apanhei só um grande susto, sinto-me vazia - respondeu a Ana, apontando para o estômago. - É verdade. Esquecemo-nos de tomar o pequeno almoço! – disse o David, olhando para o relógio de parede. - São quase dez horas! Que estivemos nós a fazer todo este tempo? Vamos, Ana, eras um amor se nos arranjasses qualquer coisa para comermos. Depois havemos de nos sentir melhor. - Estou cheia de pena do pobre Tim e da Nina - disse a Ana, indo para a cozinha. - Querido Tim, não olhes para mim dessa maneira. Se eu soubesse onde se encontra a tua adorada Zé, levava-te logo até lá. E tu, Nina, por favor, não saltes para cima de mim pois embora eu saiba onde está a tua dona não é possível ires ter com ela. Em breve estavam sentados à mesa, saboreando um pequeno almoço muito simples, que constava de ovos cozidos e torradas com manteiga. Parecia-lhes estranho serem três apenas. O David ainda tentou conversar mas os outros dois conservavam-se calados. O Tim sentou-se por baixo da mesa com o focinho sobre os pés da Ana e a Nina ficou ao lado da pequena, com as patas em cima dos seus joelhos. A Ana confortava os dois cães o melhor que podia. Depois do pequeno almoço, a Ana foi lavar a loiça e fazer as camas e os rapazes saíram para examinar outra vez o sítio onde fora encontrado o cinto do roupão da Zé. A Nina e o Tim foram com eles. O Tim andou algum tempo a cheirar ali à volta e depois, sempre com o nariz quase colado ao chão, seguiu pelo jardim até ao portão da frente e passou para a estrada, continuando a farejar. Depois virou por um pequeno atalho. - David, ele está a seguir uma espécie de pista - disse o Júlio. - Estou convencido de que a Zé foi para ali. Mesmo que tenha sido levada à força por várias pessoas o Tim é suficientemente esperto para perceber que caminho seguiu. - Então vamos atrás do Tim - lembrou o David. E assim, os dois rapazes e a Nina foram andando pelo atalho, sem nunca perderem o Tim de vista. Às tantas o cão começou a correr e o David chamou-o. - Não vás tão depressa! Não te esqueças de que nós te queremos acompanhar. Mas o Tim não abrandou. Embora não se percebesse o que farejava, o cheiro devia ser bastante forte, os rapazes corriam atrás dele começando a sentirem-se entusiasmados. Mas em breve o Tim parou numa pequena clareira dum bosque. O David e o Júlio correndo ofegantes até ao ponto onde o Tim farejava continuamente. O cão olhou para os pequenos, cheio de tristeza. Era evidente que o tal cheiro acabava ali. - Marcas de pneus! - disse o David apontando para um sítio onde a erva húmida, por baixo dum grande carvalho, fora calcada por uns pneus. - Estás a ver? Os homens trouxeram um carro para aqui e esconderam-no, depois foram pelo bosque até ao Casal Kirrin e aí esperaram uma oportunidade para apanhar a Berta. Enganaram-se, levando a Zé, mas não apanhariam ninguém se ela não fizesse a estupidez de levar a Nina para o canil. A casa estava bem trancada! O Júlio esteve a examinar as marcas deixadas pelos pneus. - Estas marcas foram feitas por pneus muito grandes - disse ele. - Era um carro grande e dá-me a impressão de que se trata de pneus americanos. Posso saber ao certo quando voltarmos. Vou perguntar ao Jim da garagem da vila. Vou fazer o desenho duma das marcas. O Júlio tirou do bolso um livro de notas e um lápis, começando a desenhar. O David abaixou-se para examinar as marcas das rodas com mais cuidado. - Há várias marcas desencontradas - disse ele. - Parece-me que os homens esperaram aqui. Depois, quando apanharam a Zé, meteram-na dentro do carro e viraram-no para regressarem por onde tinham vindo. Repara, as marcas das rodas seguem para aquela estrada. Tiveram de fazer uma grande manobra para virarem o carro pois até bateram naquela árvore, não vês a marca?

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- Onde, - perguntou logo o Júlio. - É uma marca azul, o carro ou pelo menos os guarda-lamas deviam ser dessa cor. Bem, já descobrimos qualquer coisa! Um carro grande, pintado de azul, provavelmente americano. Não achas que a polícia pode encontrá-lo? - O Tim continua a farejar aqui à volta, com um ar ainda mais triste - disse o David. - Pobre Tim! Oxalá tenha percebido que a Zé foi metida num carro, neste sítio. Olha! Está a raspar em qualquer coisa. Correram a ver o que era. O Tim tentava agarrar um pequeno objecto que se encontrava metido numa das marcas deixadas pelos pneus. Era evidente que o carro ao fazer meia volta passara por cima do objecto. O David viu qualquer coisa verde partida em duas. Apanhou os dois pedaços. - Um pente! A Zé tinha algum pequeno pente verde como este? - Tinha - afirmou o Júlio. - Deve-o ter atirado fora quando a meteram no carro, para mostrar que esteve aqui, na esperança de que nós o encontrássemos. E repara, o que é aquilo? Era um lenço, preso a um arbusto. O Júlio foi buscá-lo. Tinha a letra Z bordada a azul. - Pertence à Zé - disse ele. - Tem meia dúzia, iguais, bordados a cores diferentes. Também deve tê-lo atirado para fora enquanto tentavam virar o carro. Depressa, David, vê se descobres mais alguma coisa que ela tenha atirado pela janela do carro. Naturalmente sentaram-na atrás e ela, teve ocasião de deitar fora o que tinha no bolso do roupão, para nós sabermos que esteve aqui no caso de virmos por este caminho. Procuraram durante bastante tempo. O Tim encontrou mais uma coisa metida numa das marcas deixadas pelas rodas. Era um rebuçado embrulhado num papel celofane. - Olha! - exclamou o David, apanhando-o -, Um dos rebuçados igual aos que comemos ontem à noite! Naturalmente a Zé meteu um deles no bolso do roupão. Se ao menos levasse um lápis e um pedacito de papel! Talvez tivesse conseguido escrevinhar uma nota para nós! - Tens razão - disse o Júlio. - Vamos procurar ainda com mais cuidado. Mas embora procurassem por todo o terreno e por todos os arbustos, não conseguiram encontrar nenhum papel. Era esperar demasiado! - Vamos seguir o rasto dos pneus para termos a certeza de que alcançaram a estrada - propôs o Júlio. E assim fizeram. À beira do atalho, um pouco adiante, viram um pedacito de papel a esvoaçar, afastando-se uns centímetros cada vez que o vento lhe batia. O David apanhou-o e então olhou para o Júlio muito excitado. - Ela sempre teve tempo para escrever um bilhete! É a letra da Zé! Mas tem apenas uma palavra. Ora vê! Qual será o seu significado? O Júlio e o David observaram com atenção o pedaço de papel. Na verdade era a caligrafia da Zé. O G era exactamente como ela o escrevia. - «Gringo» - leu o Júlio. - Só esta palavra. Gringo! Que significará? Deve ser qualquer coisa que ela ouviu os homens dizer. Apenas teve tempo para escrever a palavra e deitar o papel pela janela do carro. Gringo? ó Tim, que quererá dizer Gringo?

Capítulo XVI A João O Júlio e o David voltaram ao Casal Kirrin com os dois desconsolados cães. Mostraram à Ana o que tinham encontrado e também ela ficou intrigada com a palavra Gringo.

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- Temos de contar à polícia o que vocês descobriram - disse a pequena. - Podem localizar o carro e até talvez saibam quem é ou o que significa a palavra Gringo. - Vou já telefonar-lhes - disse o Júlio. - ó David, vai tu à garagem com estes desenhos dos pneus, para sabermos se são americanos. A polícia ficou interessada mas não os ajudou. O sargento disse que ia mandar um funcionário examinar o local onde o carro ficara parado e foi da opinião que o pedaço de papel não tinha grande utilidade, visto os rapazes terem-no encontrado um tanto desviado do sítio onde o automóvel dera meia volta. - A vossa prima não seria capaz de o atirar pela janela com o carro em marcha - disse o sargento. - Com certeza ia alguém atrás, sentado ao lado dela. O único motivo por que conseguiu deitar fora os objectos na clareira, foi por o segundo homem, pois certamente eram dois, ter descido para ajudar o outro a dar a volta ao carro. - O vento podia ter feito com que o papel se afastasse, - sugeriu o Júlio. - Seja como for a informação está dada. Foi um dia muito triste embora o sol brilhasse, o mar estivesse azul e muito convidativo. Ninguém quis ir tomar banho pois, na verdade, não apetecia fazer mais nada do que falar e tornar a falar sobre a Zé, sobre o que lhe acontecera e onde estaria naquela altura! A Joana voltou a tempo de lhes preparar o almoço e ficou satisfeita por a Ana ter descascado as batatas e feito uma salada e por o David ter apanhado uns medronhos para a sobremesa. Os pequenos ficaram contentes ao verem a Joana. Ela era sensata e encarava os factos com realismo. - Bem, agora a Menina Luísa está em segurança em casa da minha prima - disse ela. - Estava muito triste, mas eu pedi-lhe que se mostrasse alegre e brincasse com a João, para as vizinhas não desconfiarem. Vesti-lhe umas roupas da ciganita que lhe serviam perfeitamente. As da menina Luísa vê-se logo que são caras, e as outras pessoas podiam reparar. Contaram à Joana o que haviam descoberto, de manhã, na clareira do bosque, Ela pegou no bilhete, examinando-o. - Gringo! - leu ela. - É uma palavra estranha. Até me parece cigana. Que pena a João não estar aqui! Talvez ela nos dissesse o que significa. - Viste a João? - Perguntou o David. - Não, tinha ido fazer compras, - respondeu a Joana, levantando a tampa da panela das batatas. - Espero que se dê bem com a menina Luísa. Santo Deus, está a tornar-se difícil lembrar-me dos vários nomes daquela criança! A única coisa notável naquele dia foi um telefonema da tia Clara, muito preocupada. Estava aflita e admirada com as notícias que recebera. - O vosso tio teve uma síncope – disse ela. - Tem trabalhado muitíssimo e esta notícia da Zé foi o golpe final. Está muito doente. Por enquanto não posso deixá-lo. E por outro lado nós não podemos fazer nada! Só a polícia nos conseguirá ajudar. Nem me quero lembrar de que esses homens horríveis levaram a Zé por engano! - Não se preocupe tanto, tia Clara - disse o Júlio. – Nós escondemos a Berta em lugar seguro e com certeza os homens libertarão a Zé logo que ela lhes diga não ser quem eles pretendem. - Se chegar a dizer-lhes! - disse o David, entre dentes. - Naturalmente não diz nada por causa da Berta, pelo menos durante alguns dias. Nessa noite foram todos para a cama muito desanimados. A Ana levou com ela o Tim e a Nina pois os dois cães estavam tão tristes que a pequenita não quis deixar de lhes fazer companhia. O Tim não quisera comer durante todo o dia o que muito preocupara a Ana. O Júlio não conseguira adormecer. Fartou-se de dar voltas na cama sempre a pensar na Zé. Ele bem sabia como a prima era arrebatada, corajosa e impaciente. Quem lhe dera poder ajudá-la de qualquer maneira!

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De repente ouviu uma pequena pedra bater na janela. Sentou-se logo, na cama, pondo-se à escuta. Nessa altura, qualquer coisa caiu no meio do quarto, rolando pelo chão. O Júlio alcançou a janela num abrir e fechar de olhos. Quem estaria a atirar pedras à sua janela? Inclinou-se para fora e ouviu logo uma voz. - És tu, David? - João! Que fazes tu aqui? - perguntou o Júlio, alarmado. – Eu sou o Júlio. O David está a dormir. Vou acordá-lo e abrir-te a porta. Mas não foi preciso ir abrir a porta da rua para a João entrar. Ela estava em cima duma árvore, mesmo em frente da janela, e antes de o Júlio ter tempo de acordar o irmão, a ciganita saltava para uma trepadeira de hera e aparecia sobre o parapeito da janela! Depois deixou-se escorregar para dentro do quarto. O Júlio abriu a luz. Ali estava a João, sentada aos pés da cama do David, com o seu habitual sorriso maroto. Tinha a pele muito queimada, cheia de sardas, e o cabelo encaracolado e curto. - Eu tinha que vir aqui - começou ela. - Quando cheguei a casa depois de fazer as compras, encontrei lá a tal Luísa. Contou-me que a Zé foi raptada em vez dela, e quando eu lhe disse: «Vai imediatamente dizer-lhes quem és para que a Zé seja posta em liberdade», quando lhe disse isto, ela nem se mexeu. Não foi capaz! Limitou-se a chorar! Que grande covarde! - Não, não - disse o David tentando explicar tudo à ciganita. Mas não conseguiu convencê-la. - Se eu fosse a Luísa não deixava que uma pessoa continuasse raptada por minha causa! - declarou ela. - Não gosto da americana. É muito palerma. E vejam lá que tenho de tomar conta dela! Pff! Não contem comigo! Até gostava de que ela fosse raptada só por causa da maneira como se porta para com a Zé. O Júlio fitou a João. Ela era muito, muito leal para com os «Cinco» e orgulhava-se de os contar como amigos. Já tivera duas aventuras com eles mostrando-se uma ciganita manhosa mas verdadeiramente amiga. O pai da João tinha sido preso e ela passara a viver com uma prima da Joana, sendo nessa altura que fora pela primeira vez à escola aprender a ler e a escrever. - Escuta, João, nós descobrimos mais algumas coisas desde que a Berta, ou seja, o Manuel, quero dizer, a Luísa... - Mas que embrulhada é essa? - perguntou a João, intrigada. - Queria referir-me à Luísa - disse o Júlio. - Já descobrimos mais algumas coisas desde que ela saiu esta manhã com a Joana para a tua casa. - Ora conta-me - pediu a João. - Descobriram onde está a Zé? Sou capaz de ir já buscá-la! - Oh! João, essas ideias não servem para nada! - disse o David. - As coisas não se apresentam assim tão simples. - A Zé deitou fora um pedacito de papel com esta palavra escrita - disse o Júlio mostrando o papel à João. - Estás a ver? Uma só palavra: «Gringo». Tem algum significado para ti? - Gringo! - repetiu a João. - Faz-me lembrar qualquer coisa. Deixa-me pensar o que possa ser Gringo! Ficou a pensar por uns momentos. Depois fez um sinal afirmativo. - Já sei. Vieram uns saltimbancos há algumas semanas. Chegaram da cidade mais próxima da aldeia onde moro. Chamam-se OS GRANDES SALTIMBANCOS DO GRINGO. - E para onde foram? - perguntou o David com vivacidade. - Iam para Fallenwick e depois para Granton - disse a João. - Tornei-me amiga do filho do dono do carrossel, que vinha com os saltimbancos, e nem vocês calculam. Andei mais de cem vezes de graça! - Calculo!.- disseram os dois rapazes ao mesmo tempo. A João riu-se. - Achas que esse Gringo, chefe dos saltimbancos, poderá ter alguma coisa a ver com a palavra «Gringo» escrita pela Zé neste papel? - perguntou o Júlio.

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- Não sei - respondeu a João. - Mas se quiserem vou ter com os saltimbancos e falo com o Remoinho, que é o rapaz do carrossel, para ver se consigo descobrir alguma coisa. O Remoinho disse-me que o tal Gringo é muito mau e julga-se um grande senhor. - Ele tem um carro muito bom? - perguntou de repente o David. - Também não sei - respondeu a João. - Mas posso informar-me. Vou mesmo já! Emprestem-me uma bicicleta para eu ir a Granton. - Estás maluca! - disse o Júlio, assustado com a ideia de a João andar de bicicleta mais de dez quilómetros, durante a noite, dali até Granton. - Está bem - disse a João, um tanto aborrecida. - Pensei que vocês gostassem da minha ajuda. Pode ser que o tal Gringo tenha levado a Zé para qualquer sítio. Ele é o género de pessoas que estão sempre metidas em sarilhos. Compreendem o que quero dizer? - Explica-te melhor - pediu o David. - Bem, o Remoinho contou-me que se alguém quer um negócio escuro, o Gringo estende logo a mão e se lhe entregarem uma boa quantidade de notas faz seja o que for, não falando mais no caso - explicou a João. - Estou a perceber - disse o Júlio. - Então roubar uma criança deve ser para ele uma brincadeira. A João riu-se com desdém. - É mesmo o género dos negócios dele. Anda, Júlio, empresta-me a tua bicicleta. - NÃO - disse o Júlio. - Agradeço-te imenso mas não te deixo ir a um acampamento a meio da noite, para saber se um sujeito que dá pelo nome de Gringo tem alguma coisa a ver com a Zé. No fim de contas não deve ser ele a pessoa que nos interessa pois seria demasiada coincidência. - Está bem. Mas vocês perguntaram-me se aquela palavra me fazia lembrar alguma coisa - disse a João, parecendo ofendida. - De qualquer maneira entre os saltimbancos e a gente do circo é um nome vulgar. Deve haver mais de mil Gringos. - Já é tempo de voltares para casa - disse o Júlio, olhando para o relógio. - E vê se és simpática com a Berta, ou seja, com a Luísa. Peço-te isso por favor! Vem cá amanhã pois talvez haja mais alguma novidade. E a propósito, como vieste até aqui esta noite? - Vim a pé - respondeu a João. - Ou seja, vim a correr. Mas não vim pelas estradas porque demora muito tempo. Eu ando como os pássaros, o mais em linha recta possível, é muitíssimo mais rápido! Na imaginação do David desenhou-se perfeitamente a imagem da ciganita correndo através de campos e bosques, subindo montes e vales, cortando a direito, como um cão fiel que volta a casa. Era extraordinário como não se perdia! A João saltou para o parapeito da janela e deslizou pela árvore abaixo com a agilidade dum gato. - Adeus! - disse ela. - Até breve. - Dá saudades nossas à Luísa - murmurou o David. - Não estou para isso - respondeu a João, em voz alta. Depois desapareceu. O Júlio apagou a luz. - Santo Deus! - exclamou ele. - Dá-me sempre ideia de que apareceu um furacão quando vejo esta ciganita. Que miúda! Vê lá tu como ela queria ir de bicicleta até Granton, ainda esta noite, depois de ter vindo a correr até aqui desde a casa da prima da Joana. - Ainda bem que a proibiste de levar a tua bicicleta - disse o David. - E felizmente ela não se atreve a desobedecer-te. O Júlio meteu-se na cama e exactamente nesse instante os dois rapazes ouviram uma campainhada. - Que grande atrevida! - exclamou o David.

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- Que foi? - perguntou o Júlio. Mas logo percebeu do que se tratava: era a campainha duma bicicleta. Uma campainha retinindo duma maneira provocadora, ao longo da estrada que seguia para Granton. - É a João! - exclamou o David. - Ela levou a minha bicicleta! Conheço a campainha! Hei-de esfregar-lhe a cara com um pano molhado quando a apanhar. O Júlio soltou uma gargalhada. - Ela é um diabinho sincero e leal. Que grande espertalhona! Não se atreveu a levar a minha bicicleta por eu a ter proibido e por isso levou a tua! Nem faço ideia do que pensará o rapaz do carrossel quando for acordado pela João, a meio da noite. - Naturalmente já a conhece - disse o David. - Bem, vamos dormir. Gostava de saber se a Zé estará acordada ou não. Nem quero pensar que a têm presa em qualquer sítio. - Até aposto que o Tim anda tão preocupado como nós - disse o David, ouvindo ganir no quarto ao lado. - Pobre Tim! Não consegue dormir! Por fim, o David e o Júlio adormeceram, pensando ambos numa rapariguita montada numa bicicleta, correndo a meio da noite, para ir fazer perguntas a um rapaz dum carrossel, chamado Remoinho!

Capítulo XVII No acampamento do Gringo Às sete e meia da manhã do dia seguinte, a Joana subiu as escadas a correr com um papel na mão, indo direita ao quarto do Júlio. Bateu à porta. - Menino Júlio - chamou ela. - Estava um bilhete muito sujo em cima do tapete da entrada, quando lá fui esta manhã. Está todo dobrado e tem o seu nome por fora. O Júlio saiu da cama num segundo. Seria um bilhete dos raptores? Era impossível. Não se dirigiriam a ele! Era da João! Tinha-o escrevinhado tão mal que o Júlio só com muito custo o conseguiu ler. - «Júlio, vi o Remoinho. Ele vai à praia às onze horas. Levei a bicicleta do David para ir até a casa, por isso trago-a às onze. Não estejam muito zangados. «João» - leu o Júlio. - Tantos erros! - disse o David olhando para o bilhete. - Espero que ela não tenha estragado a minha bicicleta. Mas a João não a estragara. Conseguiu até arranjar tempo para a limpar antes de sair de casa e chegou com ela tão limpa e brilhante que o David não teve coragem para a descompor. Como chegou cedo foi ter ao Casal Kirrin em vez de seguir directamente para a praia. Entrou pedalando Pelo portão, indo até à porta principal. O Tim foi logo ao seu encontro, ladrando satisfeito. Ele gostava muito da ciganita, ela tinha tanto jeito para os animais! A Nina seguiu o Tim, pronta a dar as boas-vindas a qualquer pessoa com quem o Tim simpatizasse. O David saudou a João quando a viu. - Olá, ladra de bicicletas! Santo Deus, que aconteceu à minha bicicleta? Limpaste-a por dentro e por fora? A João riu-se, olhando para o David cautelosamente. - Desculpa. Estou arrependida, David. - Não estás mesmo nada arrependida mas eu perdoo-te - disse o David, sorrindo também. - Afinal chegaste ao acampamento sem novidade? - Cheguei e fui logo acordar o Remoinho, nem calculas o susto que ele apanhou - disse a João. - Mas o pai dele estava a dormir no mesmo carro e por isso não lhe pude dizer quase nada. Só lhe pedi para estar na praia de Kirrin às onze horas.

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Depois pedalei até casa. Devia ter deixado a tua bicicleta aqui quando voltei mas estava um pouco cansada, por isso fui a pedalar em vez de ir a pé. - Não deves ter dormido quase nada na noite passada - disse o Júlio, olhando para a pequena, queimada do sol e com o seu cabelo curto e despenteado. - Quem será aquele? Um rapazito baixo e gordo passava em frente do portão, cheio de pressa. Tinha o cabelo preto cheio de remoinhos mesmo no alto da cabeça. - Ah! é o Remoinho! - disse a João. - Foi pontual, não foi? Chamam-lhe Remoinho por causa do cabelo. Vocês talvez não acreditem mas ele gasta uma fortuna em fixador e brilhantina mas nada consegue domar-lhe os remoinhos. A João chamou em voz alta. - Remoinho! REMOINHO! - O pequeno voltou-se logo. Tinha uma cara simpática e uns olhos pretos como carvões. Ficou a olhar para a João e para os rapazes. - Vou agora para a praia - disse ele. - Nós também vamos - respondeu a João indo ter com ele acompanhada dos rapazes. Encontraram no caminho o homem dos sorvetes e o Júlio comprou um para cada. - Obrigado - disse o Remoinho, satisfeito. Sentia-se bastante tímido em frente do Júlio e do David e não percebia por que motivo lhe teriam pedido para ir ali. Quando chegaram à praia sentaram-se na areia. - Apanhei um grande susto quando bateste na minha janela, a noite passada - disse ele à João, lambendo o sorvete com a sua língua muito vermelha. - Que querias tu? - Bem - começou o Júlio, cautelosamente. – Estamos interessados numa pessoa que se chama Gringo. - O velho Gringo? - perguntou o Remoinho. - Há muita gente interessada no Gringo. Sabe o que dizemos no acampamento? O Gringo devia pôr uma tabuleta: «Fazem-se aqui quaisquer trabalhos desonestos». É má peça, esse Gringo, mas paga-nos bem, embora nos faça trabalhar como escravos. - É quem manda nos saltimbancos, não é? - perguntou o Júlio. O Remoinho respondeu com um sinal afirmativo. – Naturalmente serve-se deles como capa para os seus outros negócios mais importantes - disse o Júlio ao David. Depois observou o rapazito, gordo e de olhos negros, tentando adivinhar até que ponto poderia confiar nele. A João percebeu logo o pensamento do Júlio. - Ele é fixe - disse ela apontando para o Remoinho. – Podes dizer-lhe o que quiseres. É fechado como um cofre. Não é verdade Remoinho? O pequeno riu-se. O Júlio resolveu confiar no Remoinho e falando em voz baixa, o que na verdade emocionava o rapazito, contou-lhe o rapto da Zé. Os olhos do Remoinho quase saltaram das órbitas. - Ui! - exclamou ele. - Até aposto que o velho Gringo anda metido nisso. Na semana passada foi a Londres e disse ao meu pai que andava a tratar dum grande negócio. Um negócio americano, explicou ele. - Parece que isso condiz com as outras coisas - disse o Júlio. - Olha, Remoinho, o rapto deu-se há duas noites. Sabes se nessa altura se passou no acampamento alguma coisa anormal? Deve ter sido a meio da noite. O Remoinho pensou durante algum tempo. Depois abanou a cabeça. - Parece-me que não. As duas roulottes ligadas, do Gringo, continuam no acampamento, portanto ele não se foi embora. Ontem de manhã afastou-se um pouco dizendo que havia ali demasiado barulho para a mãe dele, com quem vive. Nós ficámos todos satisfeitos pois agora já não é tão fácil andar a espiar-nos. - Eu julgo que tu... - começou o Júlio. Mas foi interrompido pelo David. - Tive uma ideia - disse ele. - Suponham que as roulottes foram afastadas por outro motivo! Se alguém estivesse a fazer muito barulho lá dentro, gritando por socorro, por exemplo. O Gringo tinha que as afastar do acampamento para que ninguém ouvisse! Houve uma pausa e depois o Remoinho fez um sinal afirmativo.

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- Podia ser isso - concordou ele. - Nunca tinha visto o Gringo afastar as roulottes do acampamento. Querem que eu vá espreitar? - Era bom - disse o Júlio, entusiasmado. - Era uma sorte se conseguíssemos encontrar a Zé tão depressa e tão perto! Um acampamento de saltimbancos é, na verdade, um bom lugar para a esconder! Graças a Deus encontrámos aquele pedacito de papel com a palavra Gringo. - Vamos todos à feira esta tarde? - propôs o David. – Levamos o Tim. Ele há-de farejar logo a Zé. - Não será melhor avisarmos primeiro a polícia? - lembrou o Júlio. Imediatamente o Remoinho e a João levantaram-se alarmados. - Não chames a polícia, Júlio - pediu a João, com ar suplicante. - Se fizeres uma coisa dessas não consegues mais nada do Remoinho. - Vou-me embora - declarou o Remoinho, aterrado. - Não vais - disse o David, segurando-o. - Nós não falamos com a polícia. Poderiam assustar o Gringo que levava logo a Zé para mais longe. E não duvido de que ande a planear fazer isso dum momento para o outro. Nós não diremos uma palavra à polícia, por isso sentem-se e sejam sensatos. - Podes acreditar neles - disse a João ao Remoinho. O rapazito sentou-se ainda um pouco desconfiado. - Se os meninos forem à feira, apareçam às quatro horas - disse ele. - Hoje é feriado da parte da tarde nas aldeias próximas, por isso deve ir para lá imensa gente. Se quiserem fazer investigações ninguém os notará no meio da multidão. - Está bem - disse o Júlio. - Lá estaremos. Vem ter connosco, Remoinho, se souberes algumas novidades. O Remoinho foi-se embora e os rapazes não puderam deixar de rir com o seu aspecto, visto de costas. Os remoinhos no alto da cabeça davam de tal maneira nas vistas!... - É melhor almoçares connosco, João - disse o David. A ciganita ficou encantada. - A prima da Joana não se importará que não almoces com ela? - perguntou o Júlio. - Eu disse-lhe que passava o dia fora - respondeu a João. - Ainda estou em férias. E por outro lado não suporto aquela Luísa. Anda vestida com a minha roupa e não gosto nada dela. A João parecia tão indignada acerca da Berta - que os rapazes desataram a rir. Voltaram todos para o Casal Kirrin e encontraram a Joana e a Ana muito atarefadas. - Anda cá, meu diabinho - disse a Joana à ciganita. – A fazeres das tuas partidas, já sei! A atirar pedras às janelas à meia-noite. Tenta fazer o mesmo na minha janela e verás o que te acontece. Agora põe aquele avental e vem ajudar-nos. Como está a menina Luísa? A Joana ficou muito entusiasmada ao ouvir as últimas notícias dos pequenos sobre o possível paradeiro da Zé. - Desta vez nada de telefonares à polícia, às nossas escondidas - avisou o Júlio. - Isto é melhor ser tratado pelo David e por mim. - Não posso ir com a Nina? - perguntou a Ana. - Não devemos de maneira nenhuma levar a Nina - disse o David. - Se o Gringo a vê, pode reconhecê-la. Por isso é melhor tu ficares aqui com a cadelita e nós levarmos o Tim. Ele há-de descobrir pelo faro onde está a Zé, caso ela se encontre no acampamento. Mas eu acho que naturalmente está escondida nas roulottes do Gringo. O Tim arrebitava as orelhas sempre que ouvia falar no nome da Zé. Andava muito cabisbaixo e passava o tempo a correr para o portão da entrada, na esperança de ver a Zé chegar. Quando não o encontravam, já sabiam que estava muito triste sobre a cama vazia da Zé, quase sempre com a Nina, a seu lado igualmente triste. Os rapazes e a João partiram de bicicleta para a feira às três e meia. A ciganita daquela vez montava a bicicleta da Ana e o Tim corria ao lado deles. A João olhava de vez em quando para a bicicleta do David, orgulhosa com a sua bela aparência. Que bem a limpara naquela manhã! - Podemos deixar as bicicletas encostadas ao carro do Remoinho - lembrou a João quando chegaram à feira. - Aí ficam em segurança. Compramos os bilhetes de entrada e depois vamos

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logo lá para dentro. Não é preciso comprar bilhete para mim. Eu passo por uma fenda da cerca. Sou amiga do Remoinho, por isso não faz mal. A pequena entregou a sua bicicleta ao David e desapareceu. O Júlio comprou os bilhetes e entraram. Viram logo a ciganita a acenar-lhes dum grande campo e levaram as três bicicletas para ali, seguidos sempre pelo Tim. - Olá! - exclamou o Remoinho aparecendo de repente. - Venho já ter com vocês. Tenho de ir ao carrossel. Sei algumas notícias mas não muitas. Está ali o carro do Gringo. A roulotte maior na frente e a mais pequena atrás. Fez um sinal para o sítio onde se via uma belíssima roulotte, um pouco afastada do acampamento. Havia pessoas à volta de todos os outros carros mas não se via ninguém ao pé da roulotte. Era evidente que ninguém se atrevia a aproximar. - Proponho comprarmos uma bola numa das barracas para jogarmos perto da roulotte do Gringo - disse o David em voz baixa. – Um de nós atira a bola com mais força de maneira que ela vá para perto da roulotte. Depois vê se consegue espreitar lá para dentro. O Tim pode ir farejando por ali enquanto nós jogamos. Se a Zé lá estiver ele há-de ladrar sem descanso. - Bela ideia - aprovou o Júlio., - Anda, João! E conserva-te bem alerta para nos avisares se houver qualquer perigo!

Capítulo XVIII O Tim torna-se muito útil Os dois rapazes e a João, seguidos pelo Tim, andaram pela feira à procura dum sítio onde pudessem comprar uma bola. Foi bastante difícil mas por fim lá conseguiram. Aquela feira era grande e animada e tinham lá ido centenas de pessoas das redondezas para se divertirem. O carrossel andava à roda, sempre acompanhado por música, e os carrinhos eléctricos, como de costume, esbarravam uns nos outros. Havia vários vendedores apregoando as suas mercadorias. - Balões! Balões! São baratos! - Sorvetes fresquinhos! Cada cor tem seu paladar! - Quer ler a sina, minha menina? Olhe que eu só lhe digo a verdade! A João sentia-se muito à vontade na feira. Crescera entre saltimbancos e gente de circo e por isso conhecia-lhes todas as manhas. O Tim estava um tanto admirado com o barulho e não largava os rapazes, pois não se esquecia de que faltava a Zé. - Agora vamos jogar à bola - disse o Júlio. - Anda, Tim, e se nos metermos nalgum sarilho basta rosnares e mostrares os dentes, percebes? Os três pequenos e o cão foram para o terreno desocupado que ficava entre a linda roulotte e o resto do acampamento. Um homem que estava próximo, chamou-os. - Oiçam lá! Olhem que levam uma descompostura se vão jogar para aí! Não lhe ligaram importância e o homem encolheu os ombros, continuando a apregoar o que vendia. Os pequenos foram atirando a bola uns aos outros e a certa altura o Júlio lançou-a com tanta força que ela foi parar mesmo a meio das rodas da roulotte da frente. A João e o David foram buscá-la. A João subiu para uma das rodas e espreitou por uma das janelas, enquanto o David corria para o carro mais pequeno, que estava atrelado ao da frente. Numa rápida olhadela a João ficou com a certeza de que o carro estava vazio. O interior encontrava-se mobilado com enorme luxo parecendo um confortável quarto de cama. A ciganita depois saltou para o chão.

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O David espreitou pela janela do carro mais pequeno. Ao princípio julgou que não estava ninguém mas depois viu uns olhos muito zangados que o fixavam. Pertenciam a uma velha baixa e curvada, com cabelo desgrenhado. O David achou que ela parecia uma bruxa. Estava sentada num banco, a coser, e quando o pequeno espreitou lá para dentro ameaçou-o com o punho gritando-lhe qualquer coisa que ele não compreendeu. O David saltou para o chão e foi ter com os outros. - Não está ninguém na roulotte da frente - disse a João. - No outro só estava uma mulher com cara de bruxa - contou o David, muito desapontado. - A Zé não se encontra ali, a não ser que a tenham metido dentro dum armário ou debaixo dum sofá. - O Tim não parece nada interessado nas roulottes, pois não? - observou o Júlio. - Estou certo de que se a Zé estivesse num daqueles carros ele não parava de ladrar, tentando entrar lá dentro. - Também acho - disse o David. - Olhem, vem uma pessoa a sair da roulote de trás. - É a velha! Parece que está furiosa. E era verdade! A velhota desceu os degraus do carro gritando e ameaçando-os com o punho. - Tim, vai procurar, vai procurar na roulotte! - disse de repente o Júlio, enquanto a mulher se dirigia a eles. Os três pequenos pararam, quando a mulher se aproximou. Não conseguiram perceber nada do que ela disse, em parte porque não tinha dentes e também porque falava uma mistura de váriaslínguas. Mas, no entanto, não havia dúvidas de que estava a descompô-los por andarem a brincar ao pé das roulottes. O Tim compreendera o que o Júlio dissera e fora meter-se no carro. Esteve lá dentro alguns momentos e depois ladrou. Os rapazes ficaram sobressaltados e o David fez um movimento em direcção às roulottes. Nessa altura apareceu o Tim. arrastando qualquer coisa, presa nos dentes. Tentara ladrar ao mesmo tempo, mas não conseguia. Arrastou a tal coisa, que parecia um casaco, pelo chão fora, antes da velha o alcançar. Esta gritou com toda a força e puxou pela peça de vestuário, dando pontapés ao Tim, que tentava arrastar o tecido para mais longe. - Se aquela mulherzinha não fosse muito idosa o Tim depressa lhe mostraria quem é! - disse o David. - Que andava ele a puxar? - Venham para aqui, afastem-se do carro - disse o Júlio de repente. - Não reconheceste, David? Era o roupão da Zé! - É verdade! - exclamou o David, com a maior das surpresas. - Acertaste! Ora que significa isso com precisão? A Zé com certeza não está nas roulottes, senão o Tim tê-la-ia encontrado. - Eu mandei-o farejar se a Zé ali estivera escondida - disse o Júlio. - Calculava que ele havia de ladrar se sentisse o cheiro dela. Mas nem me passou pela cabeça vê-lo aparecer com o roupão! - Querido Tim! És muito inteligente! - exclamou o David, fazendo festas ao cão cuja cauda abanava dum lado para o outro, embora com pouco entusiasmo. Pelo menos descobrira o roupão da Zé. Mas que esquisito tê-lo encontrado naquele carro. - Mas porque não levariam o roupão quando tiraram a Zé dali? - perguntou o Júlio. - Não há dúvida de que ela esteve naquele carro, naturalmente veio directamente para aqui na noite do rapto. Onde estará agora? - Devem-na ter vestido duma maneira diferente - lembrou o David. - Com certeza precisaram de a vestir convenientemente para a levarem para qualquer outro sítio. Não se esqueçam de que ela estava só de pijama, com o roupão por cima. A João ouvia tudo aquilo, preocupada e confusa. A certa altura fez um sinal ao David. - Vem aí o Remoinho - disse ela. Os pequenos foram ter com o rapaz do carroussel.

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Este levou-os para o seu carro, pequeno e bastante sujo, vivia ali com o pai. - Vi a mãe do Gringo a descompô-los - começou ele sorrindo. O vosso cão andava a arrastar qualquer coisa para fora do carro? Contaram-lhe o sucedido. O pequeno fez um sinal afirmativo com a cabeça. - Andei a fazer algumas perguntas, com cautela - disse ele. - Só para ver se alguém ouvira algum barulho vindo da roulotte do Gringo, e o homem que tem o carro mais próximo contou-me que ouviu gritos, há duas noites. Percebeu que devia estar alguém na roulotte do Gringo, mas está claro que teve medo de ir socorrer quem gritava. - Devia ser a Zé - disse o David. - No dia seguinte a roulotte do Gringo foi para mais longe - continuou o Remoinho. - E esta tarde, antes de abrir a feira, o Gringo trouxe o automóvel, atrelou-lhe a roulotte mais pequena e partiu com ela. Todos ficaram admirados mas ele disse que precisava de ser reparada. - Então a Zé ia lá dentro - disse o David. - Que bela maneira de a levar para outro esconderijo! - E quando voltou a roulotte? - perguntou o Júlio, preocupado. - Um pouco antes de os meninos chegarem - disse o Remoinho. - Não sei onde foi. Demorou por volta de uma hora. - Uma hora - repetiu o David. - Supondo que ia a uma média de vinte e cinco quilómetros horários, pois não se pode andar depressa quando se leva um atrelado, deve ter-se afastado uns doze quilómetros. Fazendo a mesma distância para aqui, dá por volta de uma hora, contando com a paragem no sítio onde foram deixar a Zé. - Pois sim - disse o Júlio. - Mas há muitos sítios a doze quilómetros daqui! - Onde está o carro do Gringo? - perguntou de repente o David. - Ali, por baixo daquele grande oleado - respondeu o Remoinho. - É americano, cinzento-prateado, muito espampanante. O Gringo tem uma grande vaidade nele. - Vou dar-lhe uma olhadela - disse o Júlio, dirigindo-se ao carro. Aproximou-se do oleado que o cobria até ao chão. Levantou uma ponta e ia a olhar quando apareceu um homem a correr e a gritar. - Eh, menino! Saia daí! Olhe que é posto fora da feira se anda a espreitar as coisas que não lhe dizem respeito. Mas o Tim estava com o Júlio, e virou-se para o homem, a rosnar tão ferozmente que ele parou logo. O Júlio então teve muito tempo para examinar o que estava por baixo do oleado. Na verdade o carro era cinzento-prateado, grande e de marca americana. Os guarda-lamas eram azuis! O Júlio deitou um olhar rápido aos dois do lado esquerdo e viu um grande risco num deles. Antes de baixar o oleado teve tempo de reparar nos pneus. Certamente tinham o mesmo desenho dos que ele vira marcados no bosque e copiara para um papel. Mostrara-o ao Jim, na garagem de Kirrin, e o rapaz dissera-lhe que era o desenho de uns pneus americanos. Sim, era aquele o carro que estivera escondido na clareira do bosque, na noite do rapto, o mesmo que dera a volta, com dificuldade, fazendo aqueles riscos no guarda-lama. O mesmo que naquela tarde o Gringo atrelara à roulotte onde estava a Zé, levando-a para outro esconderijo. O pequeno baixou o oleado e foi ter com os outros, muito entusiasmado, não ligando importância às insolências que o tal homem lhe dizia. - É o mesmo carro - afirmou ele. - Agora, ONDE teria ido esta tarde? Se conseguíssemos descobrir! - É um carro tão fora de vulgar que toda a gente deve reparar nele, especialmente levando atrelado uma linda roulotte - disse o David. - Pois sim, mas não podemos ir pelas estradas fora, perguntando a quem encontrarmos se viram um carro cinzento-prateado com guarda-lamas em azul-claro - disse o Júlio. - Voltemos para casa, lá poderemos ver no mapa que terras há aqui à volta - propôs o David. - Remoinho, para que lado foi o carro quando saiu?

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- Para leste - respondeu o Remoinho. - Seguiu pela estrada que vai por Estrela-a-Nova. - Isso convém saber - disse o David. - Bem, vamos buscar as nossas bicicletas. Muitíssimo obrigado, Remoinho. Ajudaste-nos imenso! Depois contamos-te o que acontecer! - Chamem-me sempre que precisarem - disse o Remoinho, cheio de orgulho, fazendo-lhes um cumprimento com a cabeça de maneira que os remoinhos abanavam dum modo muito cómico. Os três pequenos - começaram a pedalar e o Tim seguiu correndo novamente ao lado deles. Logo que chegaram a casa contaram à criada e à Ana tudo o que tinham descoberto. A Joana queria ir logo telefonar outra vez à polícia, mas o Júlio não deixou. - Acho que nós somos capazes de fazer algumas coisas melhor do que eles - disse o pequeno. - Vamos tentar descobrir onde foi o carro. Sabes em que sítio estão os mapas do distrito, Joana? Encontraram os mapas e começaram a examiná-los. A João não percebia nada quando se tratava de consultar mapas. Ela sabia encontrar o caminho para qualquer sítio, de dia Ou de noite, mas sem mapas! - Ora aqui está a estrada para Estrela-a-Velha e Estrela-a-Nova - disse o Júlio. - Vamos anotar com cuidado todas as estradas que o carro podia tomar, seguindo por aqui. Santo Deus, vamos ter um trabalhão!

Capítulo XIX Um plano divertido Passado um quarto de hora tinham uma lista com seis cidades que estavam a meia hora de distância de Estrela-a-Velha, que por sua vez ficava a meia hora da feira. - E agora que tencionas fazer, Júlio? perguntou o David. – Ir de bicicleta a todas estas cidades perguntar quem viu o carro? - Não. É impossível fazer tal coisa - respondeu o Júlio. – Vou à garagem de Kirrin, falar com o nosso amigo Jim, para me ajudar! Tenciono pedir-lhe que telefone para os amigos que ele tenha nas garagens dessas cidades, perguntando-lhes se viram passar o carro. - Não achas que ele deve achar uma coisa bastante estranha? - lembrou a Ana. - Acho. Mas ele não se importará nada com isso se lhe pagarmos as chamadas telefónicas e lhe dermos uma boa gorjeta - disse o Júlio, dobrando o mapa. - E naturalmente nem há-de fazer perguntas. Deve convencer-se de que se trata duma aposta disparatada feita entre nós. O Jim dispôs-se da melhor vontade a fazer os telefonemas. Conhecia rapazes que trabalhavam nas garagens mais importantes de quatro das cidades da lista. E era amigo do groom da entrada dum grande hotel na quinta cidade. Só não conhecia ninguém na restante. - Mas isso não tem importância - disse o rapaz. – telefonamos para a garagem da estrada principal e perguntamos a quem atender a chamada. . Depois telefonou para a garagem da primeira cidade da lista e teve uma conversa muito animada com o seu amigo. - Não passou o tal carro - disse quando desligou. - Se um carro desses por lá passasse a esta hora do dia ele notava logo. Agora vou falar ao Jake. - Também não passou por ali - disse ele depois de alguns minutos de conversa. - Agora vou tentar o groom. Ainda é meu primo.

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O groom sabia alguma coisa. - Sim! - dizia o Jim constantemente. - Sim! É esse mesmo! Sim! Sim! Ouviste-o dizer isso? Muito obrigado. - Que se passou? - perguntou o Júlio, cheio de ansiedade, quando o Jim finalmente pousou o auscultador. - O Pat, é o nome do groom, disse que esta tarde não tinha serviço e foi comprar uns cigarros na loja da rua principal, onde fica o seu hotel. Estava a conversar com o empregado da loja quando parou ali um enorme carro americano, cinzento-prateado, com guarda-lamas em azul-claro, volante à esquerda e tudo isso. - E depois? - perguntou o Júlio com impaciência. - O homem que ia ao volante saiu e foi comprar uns cigarros à loja. Usava óculos escuros e um grande anel de ouro. O Pat reparou que... - Deve ser o homem que fez perguntas sobre nós na confeitaria de Kirrin - disse o Júlio, lembrando-se. - Continua, Jim. Estou muito interessado. - Bem, o Pat interessa-se por carros bons e por isso saiu para o ver bem - continuou o Jim. - Contou-me que o carro tinha as cortinas corridas e assim não pôde espreitar lá para dentro. Apareceu o homem de óculos escuros que se sentou outra vez ao volante. Voltou-se para quem estava atrás e perguntou: - Qual é agora o caminho? - E ouviu a resposta? - interrompeu o Júlio. - Uma pessoa respondeu: «Já estamos perto. Quando chegarmos a Bétula vira à esquerda e é a casa do monte». - Que grande sorte! - exclamou o David. - Será aí que o Grin... - Mas parou a um sinal do Júlio, lembrando-se logo que não devia dizer nada de especial diante do Jim. O Júlio meteu uma nota na mão do rapaz da garagem, que a guardou logo no bolso, sorrindo. - Venham sempre ter comigo quando quiserem saber mais alguma coisa - disse ele. - Para os meninos sou capaz de telefonar para todas as garagens da região. Muito obrigado! Foram a toda a velocidade até ao Casal Kirrin, tão entusiasmados que nem falavam. Encostaram as bicicletas à parede e correram a contar à Ana, à criada e à João. O Tim e a Nina, contagiados pelo entusiasmo dos rapazes, ladravam sem parar. - Nós sabemos onde está a Zé! - gritou o David. - Nós sabemos! Nós sabemos! As duas pequenas e a Joana ouviram com o maior interesse. - Olhe, menino Júlio - disse a Joana, cheia de admiração – foi muito boa ideia fazer o Jim telefonar para toda a parte. A polícia não saberia fazer melhor. Agora que ideia tem? Vão telefonar ao sargento da polícia? - Não - disse o Júlio. - Tenho muito medo de que entrando a polícia em campo o Gringo fique assustado e esconda a Zé em qualquer outro sítio. Esta noite o David e eu vamos ao tal monte, para ver se conseguimos encontrar a Zé e trazê-la. Naturalmente é apenas uma casa vulgar e como o Gringo não suspeita de que alguém saiba onde está a Zé não deve tomar nenhumas precauções especiais. - Óptimo! - exclamou o David. - óptimo! óptimo! óptimo! - Eu também vou - declarou a João. - Não consinto - disse logo o Júlio. - Está assente que tu NÃO VAIS, João. Mas levamos o Tim, está claro. A João não disse mais nada mas ficou tão cabisbaixa que a Ana riu-se. - Alegra-te, João. Ficas a fazer-me companhia, a mim e à Nina. OH! Júlio vai ser formidável se encontrares a Zé e a conseguires trazer! Consultaram novamente os mapas para os rapazes decidirem qual o melhor caminho a seguir de bicicleta. - Vai procurar as lanternas que aqui temos, sim, Ana? – pediu o David. - Mas, deixa-me ver, como poderemos trazer a Zé quando a encontrarmos? Talvez atrás do selim da minha bicicleta

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embora eu saiba que não é permitido. Mas isto é um caso de força maior. É bastante difícil levarmos uma terceira bicicleta connosco. Estou tão entusiasmado! - Eu continuo a achar que devíamos fazer um telefonema para a polícia - repetiu a Joana, que dizia a mesma frase de vez em quando. - Joana, tu pareces um papagaio - observou o Júlio. - Se nós não voltarmos até amanhã de manhã podes telefonar a toda a polícia do país. - A sua tia telefonou hoje outra vez, menino Júlio. Já me esquecia de lhe dizer - continuou a Joana. - O seu tio está melhor e assim que possam voltam para casa. - Mas não esta noite - disse o Júlio, alarmado. – Contaram alguma coisa sobre o Sr. Elbur Wright, o pai da menina Berta? - Ora, ele agora está agarrado aos seus segredos, muito satisfeito pois já sabe que a menina Berta não foi raptada - contou a Joana. - Ainda não percebi se os homens terão descoberto que não raptaram quem queriam. É tudo muito confuso. Até mesmo os seus tios têm que obedecer à polícia. A sua pobre tia anda tão aflita por causa da menina Zé! - Na verdade, deve andar terrivelmente preocupada - disse o Júlio, muito sério. - Hoje temos andado tão entusiasmados que até me esqueci das preocupações. Quando se consegue fazer qualquer coisa, os acontecimentos parecem menos assustadores. - Os meninos tenham cuidado em não se arriscarem demasiado, pois podem meter-se também nalgum sarilho - aconselhou a Joana, pessimista. - Hei-de ter o máximo cuidado - garantiu o Júlio, piscando o olho ao David. -- Outra coisa, ainda falta muito para a hora do jantar? Estou com um enorme apetite. - Lembra-te que não lanchámos - disse o David. É extraordinário termo-nos esquecido do lanche! Não admira que estejamos com apetite. - Querem ovos com presunto, como aperitivo? - perguntou a Joana. Levantou-se logo um coro de aprovações. O Tim e a Nina abanavam as caudas como se a pergunta também tivesse sido para eles. - Nós partimos logo que escureça - disse o Júlio. - João, é melhor ires para casa a seguir ao jantar. Devem andar preocupados por tua causa. - Está bem - respondeu a ciganita, satisfeita por ter sido convidada para jantar, mas ainda aborrecida por estar proibida de ir naquela noite com o David e com o Júlio. A João foi-se embora depois do jantar com muitos recados para a Berta, do David, do Júlio, da Ana e da Nina. - Até aposto que não lhe diz nada - observou o David. - Enquanto não partimos vamos jogar as cartas, Júlio. Só para acalmarmos um pouco. Estou a ficar impaciente. A Joana foi-se deitar às dez horas, pois estava muito cansada. A Ana ficou a pé para ver os irmãos partirem. - Tenham cuidado - repetia a pequena. - Tenham muito cuidado, sim? Sabem, ainda é pior ficar aqui sem saber o que está a acontecer do que ir com vocês e seguir tudo. Finalmente chegou a hora dos rapazes partirem. Passava das onze e meia e a noite estava muito escura, cheia de nuvens que encobriam constantemente a lua que pouco se via, em quarto minguante. - Vamos, Tim - disse o David. - Vamos à procura da Zé. - Uuuuf! - fez o Tim, satisfeito. A Nina também se manifestou, ficando muito desapontada quando percebeu que não a levavam. Os rapazes saíram, pedalando, pelo portão das traseiras. - Até logo, Ana! - disse o David. - Vai para a cama e espera ver a Zé quando acordares. Continuaram a pedalar com o Tim correndo ao lado das bicicletas. Em breve chegaram ao campo onde ficava a feira e continuaram para leste, seguindo pela estrada por onde fora naquela tarde o carro cinzento. Conheciam o caminho de cor e salteado pois tinham-no estudado no mapa cuidadosamente, Quando passavam pelos letreiros com os nomes das terras sentiam o seu entusiasmo crescer.

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- Agora é a próxima - disse por fim o David. – Depressa chegaremos, Tim! Estás muito cansado? Chegaram à pequena cidade chamada Graysfield, onde vivia o groom. Toda a gente estava a dormir e não se via uma única janela iluminada. De repente, surgiu um polícia dentre a escuridão. Mas ao ver dois rapazes de bicicleta continuou sem os fazer parar. - Agora vamos para Bétula, viramos à esquerda e procuramos a casa do monte - disse o David. Pedalaram através da aldeia silenciosa e tomaram a estrada da esquerda. Ia dar a um caminho estreito. Os rapazes tiveram que desmontar pois o monte era demasiado íngreme. - Lá está a casa! - disse de repente o Júlio, em voz baixa. - Repara. Vê-se através daquelas árvores. Tem um aspecto triste e abandonado. Chegaram a um enorme portão de ferro mas quando tentaram abri-lo perceberam que estava fechado à chave. O jardim era completamente cercado por um muro alto. Seguiram junto a este até certa distância, deixando as bicicletas encostadas a uma árvore, ao pé do portão, mas em breve se convenceram de que era impossível escalar um muro como aquele. - Que maçada! - exclamou o Júlio. - E se subíssemos pelo portão? - lembrou o David. Mas mal acabara de dizer aquilo olhou em redor, nervosamente, pois ouvira qualquer coisa estalar. - Ouviste aquilo? Não virá ninguém a seguir-nos? - Não! Nem lembres coisas dessas, por favor! respondeu o Júlio. - Que estavas a dizer? - Estava a lembrar subirmos pelo portão - disse o David. - Acho que podemos tentar. Durante o dia seria um disparate pois viam-nos logo. Mas agora é diferente. Não me parece muito difícil. É formado por vulgares varões de ferro, muito enferrujados.

Capítulo XX Uma aventura perigosa Os rapazes voltaram ao portão. O David olhou para os lados e para trás por duas ou três vezes. - Oxalá ninguém esteja a seguir-nos - disse ele. - Dá-me a impressão de que alguém nos está a observar. - Parvoíces - disse o Júlio, impaciente. - Olha, chegámos ao portão. Ajuda-me a trepar que eu ponho-me lá em cima num instante. O David ajudou o Júlio e este saltou pelo portão sem grande dificuldade. Do lado de dentro havia uma tranca, mas não estava fechado à chave. O Júlio tirou a tranca com cuidado e entreabriu o portão para o David e o Tim entrarem. - O Tim não podia ficar lá fora - disse ele. - E certamente não conseguiria subir pelo portão. Dirigiram-se até à casa seguindo pelo lado mais escuro do caminho. Quando se aproximaram, a lua, muito pequena, apareceu por detrás duma nuvem. A edificação era antiga e feia com chaminés altas e janelas estreitas. O David olhou para trás de repente e o Júlio reparou. - Continuas nervoso? - perguntou, impaciente. - Oh! David, não sejas palerma! Sabes perfeitamente que se nos seguissem o Tim perceberia logo e correria para quem quer que fosse. - Bem sei - concordou David. - sou um idiota. Mas esta noite estou com o pressentimento de que alguém nos segue. Por fim chegaram à casa.

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- Como conseguiremos entrar? - perguntou o Júlio, falando baixinho. - As portas com certeza estão todas fechadas à chave. Temos que experimentar as janelas. Caminharam nas pontas dos pés à volta de toda a casa. Como o Júlio previra as portas estavam todas fechadas à chave. As janelas também estavam fechadas e com toda a segurança. Não conseguiram abrir nenhuma. - Se esta casa pertence ao Gringo ele pode guardar aqui muita coisa em segurança absoluta. O portão trancado, o muro bem alto, as portas fechadas à chave, nenhuma janela aberta! - notou David. - É impossível entrarem ladrões. - E nós também não podemos entrar - disse o Júlio, desesperado. - Já demos três voltas à casa. Não podemos entrar por sítio algum. Nem ao menos há uma varanda para subir.- nem uma hera para nos agarrarmos. Nada! - Vamos dar mais uma volta - propôs o David. - Podemos não ter reparado em qualquer coisa. Assim, deram mais uma volta, descobrindo uma coisa muito curiosa quando chegaram perto das instalações da cozinha. A lua apareceu e mostrou-lhes no chão um buraco redondo e negro, Que poderia ser aquilo? Ao aproximarem-se do buraco negro, a lua voltou a desaparecer. Acenderam as lanternas por um instante. - É um buraco para o carvão - disse o David, admirado. - Porque não teríamos reparado nele mais cedo? A tampa está posta mesmo ao lado. Deixaram-no aberto. Naturalmente a lua estava encoberta pelas nuvens quando passámos da outra vez por esta parte da casa. Não percebo porque não o vimos. O Júlio sentiu-se atrapalhado. - É estranho não o termos visto! Será uma armadilha? - Não percebo como isso seja possível - respondeu o David. - Anda, é melhor metermo-nos lá dentro. Pelo menos é uma entrada para a casa. Depois o David introduziu a lanterna acesa dentro do buraco. - Há uma grande quantidade de carvão lá em baixo. Podemos facilmente saltar para cima dele. Tim, vai tu à frente, para ver se o caminho está livre. O Tim saltou logo lá para dentro fazendo o carvão resvalar entre as suas quatro patas. - Chegou lá abaixo sem novidade - disse o Júlio. - Agora vou eu. O pequeno saltou fazendo novamente o carvão resvalar quando caiu sobre ele. No silêncio da noite parecia um barulho enorme. O Júlio foi iluminando tudo à sua volta, com a lanterna. Estava em pé sobre um grande monte de carvão, no meio duma grande adega. Ao fundo via-se uma porta. - Esperemos que não esteja fechada à chave - disse o David, que já se encontrava junto do irmão. - Agora, Tim, pelo amor de Deus não te afastes nem faças o menor barulho! Aproximaram-se da porta, pisando pedaços de carvão, e o Júlio fez girar uma maçaneta muito suja. A porta abriu-se! - Não está fechada à chave - disse o Júlio, aliviado. - Passaram pela porta, com o Tim sempre junto a eles, e encontraram-se noutra adega cheia de prateleiras de pedra onde estavam arrumadas várias caixas, latas e caixotes. - Aqui há comida suficiente para suportar um cerco! – murmurou o David. - Onde ficarão os degraus para cima? Temos de sair daqui. - Estão ali - disse o Júlio. Mas logo em seguida parou, apagando a lanterna. Ouvira qualquer coisa. - Ouviste? - perguntou em voz baixa. - Parecia alguém a cair sobre o carvão da outra cave. Espero que não estejamos a ser perseguidos. Se assim fosse, em breve nos agarrariam. Puseram-se à escuta mas não ouviram mais nada. Subiram a escada de pedra e abriram a porta que se encontrava no cimo. Dava para uma grande cozinha, que naquela altura estava iluminada pela luz pálida da lua. De súbito apareceu uma sombra em frente deles e o Tim rosnou. O coração do David quase parou de bater. Que seria aquela coisa caminhando

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silenciosamente e desaparecendo nas sombras? O pequeno agarrou-se ao Júlio, sobressaltando-o. - Não faças isso, pateta. É apenas o gato da casa - segredou o Júlio. - Fizeste-me apanhar um susto. Foi óptimo o Tim não ter perseguido o bichano. Fariam um barulho formidável. - Onde pensas que esteja a Zé? - perguntou o David. - No andar superior? - Não faço ideia. Temos que procurar em todos os compartimentos - respondeu o Júlio. E assim procuraram em todas as dependências do rés-do-chão, mas estavam vazias. Eram quartos amplos, feios e com demasiada mobília. - Vamos subir as escadas - disse o David. Subiram e encontraram-se num enorme patamar com reposteiros de veludo nas janelas. O Tim rosnou ligeiramente e num abrir e fechar de olhos os pequenos estavam escondidos atrás dos reposteiros. O Tim seguiu-os, muito surpreendido. Passados minutos o David espreitou para fora. - Parece-me que era outra vez o gato - murmurou ele. - Olha, lá está o bichano sobre aquela cómoda. Talvez ande a perseguir-nos sem perceber o que estamos a fazer. - Que maçada - disse o Júlio. - Agora sou eu que me sinto nervoso por ser seguido por um gato. - Vamos - disse o David. - Há várias portas neste piso. Foram nos bicos dos pés até às portas dos quartos que estavam abertas. Mas embora fossem quartos de cama ninguém estava lá a dormir. Chegaram a uma porta fechada e puseram-se à escuta. Alguém ressonava! - Não é a Zé! - disse o David. - E de qualquer maneira a porta está fechada por dentro. Dirigiram-se à porta seguinte que também estava fechada. Escutaram, ouvindo uma respiração forte. - Também não é a Zé - disse o David. Subiram para o andar seguinte. Havia ali mais quatro compartimentos e dois deles nem estavam mobilados. As portas dos outros dois estavam abertas de par em par e era evidente que dormiam ali pessoas pois mais uma vez se ouviu ressonar. - Parece não haver mais quartos - disse o David, desapontado, enquanto iluminavam com cuidado aquele andar. - Mas onde estará a Zé? - Repara, há ali uma porta de madeira mais pequena - disse o Júlio ao ouvido do irmão. - Naturalmente dá para a cisterna. - A Zé não deve estar aí - disse o David. - Mas espera, ora repara. Está trancada! E os quartos das cisternas nunca têm fechaduras quanto mais trancas! Esta também não tem fechadura mas puseram-lhe uma tranca. - Chiu! Não fales tão alto! - disse o Júlio. - Realmente é estranho! Como conseguiremos abrir a porta sem acordar as pessoas dos outros dois quartos? - Podemos encostar as portas muito devagarinho e fechá-las à chave pelo lado de fora - disse o David, entusiasmado. - Eu me encarrego disso. Puxou as portas com cuidado e depois fechou-as com a chave que tirou do lado de dentro. A não ser um ligeiro estalo que deu uma das fechaduras, quando a chave rodou, tudo correu no maior silêncio. Ninguém se mexeu dentro dos quartos e os rapazes respiraram fundo, aliviados. Dirigiram-se à pequena porta de madeira. Puxaram a tranca devagar, com medo de que ela rangesse. Mas tal não aconteceu. Era nova e movia-se com facilidade. A porta abriu-se para o lado de fora dando um pequeno estalido. Lá dentro estava escuro como breu e ouvia-se o som da água a pingar na cisterna. O David acendeu a lanterna por um momento. Mas foi o bastante para ver uma coisa que lhe deu a maior das esperanças.

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Havia um pequeno colchão no pavimento do quarto da cisterna e estava uma pessoa ali deitada envolta em cobertores de tal maneira que nem se lhe via a cabeça. O Júlio também viu o mesmo e segurou o David por um braço, com medo de que não se tratasse da Zé, mas sim de qualquer outra pessoa que desatasse a gritar. Talvez outro prisioneiro! Mas o Tim sabia quem era! Correu direito ao pequeno colchão. O David fechou logo a porta da cisterna com medo de que se ouvisse algum barulho. O Tim podia ladrar com a alegria ou a Zé dar algum grito! A pessoa deu uma volta e sentou-se, afastando o cobertor da cabeça. E ali estava a Zé com o seu cabelo encaracolado e uma cara muito admirada. - Chiu - fez o David, levantando o dedo a avisar. - Chiu! O Tim lambeu a Zé dos pés à cabeça, cheio de alegria, mas sem fazer barulho nenhum. O inteligente Tim sabia que aquela era uma das ocasiões em que a alegria devia ser muda! - Oh! Tim! - exclamou a Zé, abraçando o Tim o mais que podia. - Oh! Tim! Senti tanto a tua falta! Querido, querido Tim! Oh! Tim! O David ficou junto da porta fechada, à escuta, a ver se alguém se mexia num dos outros quartos. Mas não se ouvia nada. O Júlio foi ter com a Zé. - Tu estás bem, Zé? - perguntou ele. - Não te trataram mal? - Assim, assim - respondeu ela. - Mas eu também não me portei com grande delicadeza. Fartei-me de dar pontapés e dentadas e por isso me fecharam aqui. - Pobre Zé! - exclamou o Júlio. - Bem, ouviremos a história toda quando tivermos saído lá para fora. Olha que foi uma grande sorte! Podes vir já? - Posso - disse a Zé, saindo do colchão. Estava vestida com umas roupas muito esquisitas que lhe davam um aspecto estranho. - Aquela horrível velha, a mãe do Gringo, arranjou-me estas roupas quando me levaram para a roulotte - explicou ela. - Tenho muito que lhes contar! - Chiu! - disse o David, da porta. - Não se houve o mais pequeno barulho. Vou abrir a porta. Abriu-a devagar. Tudo estava silencioso. - Agora vamos descer as escadas - disse o David. - Nem um pio! Desceram o primeiro lanço de escadas, ficando no enorme patamar. Depois o David, exactamente ao pôr o pé no degrau seguinte, pisou qualquer coisa macia que miava e arranhava. Era o gato! O David rebolou pelos degraus abaixo e o Tim não conseguiu conter-se e perseguiu o gato pelo patamar e pelas escadas acima até ao quarto da cisterna desatando a ladrar! Ouviram-se gritos vindos dos dois quartos mais próximos e apareceram dois homens em pijama. Um deles abriu a luz do patamar e depois desataram a correr pelas escadas abaixo atrás das três crianças. O David conseguira levantar-se, mas torcera um pé e não podia caminhar! - Corre Zé! Eu fico com o David! - gritou o Júlio. Mas a Zé também parou. Um momento depois os homens alcançavam os pequenos, agarrando o Júlio e o David e atirando-os para o quarto mais próximo. - Tim! Tim! - gritou a Sé. - Socorro, Tim! Mas antes que o Tim tivesse tempo de descer as escadas a Zé foi também empurrada para o tal quarto e a porta fechada à chave. - Cuidado com o cão! - gritou um dos homens. - É perigoso! Era bem verdade! O Tim correu para um dos homens, rosnando, com os olhos chamejantes e mostrando toda a sua dentadura. Os homens fugiram para o quarto contíguo àquele onde estavam as crianças e fecharam a porta com estrondo. O Tim atirava-se de encontro à porta, ladrando e rosnando duma maneira ameaçadora. Se ele conseguisse agarrar aqueles homens! Se conseguisse!

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Capítulo XXI Absolutamente inesperado Em breve toda a casa estava numa grande barafunda. As pessoas que dormiam nos quartos do último andar acordaram de repente e ao verem-se fechadas à chave começaram a dar pancadas nas portas e a gritarem. As três crianças que estavam fechadas no quarto do rés-do-chão também gritavam e batiam na porta. E o Tim não parava de ladrar. Só os homens do quarto ao pé dos pequenos permaneciam silenciosos pois estavam aterrados com os latidos e rosnadelas do Tim. Com certeza gostariam de se fechar por dentro mas a chave estava do outro lado da fechadura. E eles não se atreviam a abrir a porta para a tirar. Daí a pouco os pequenos estavam mais calmos. O David sentou-se numa cadeira, exausto. - Aquele gato! Estragou tudo, aquele malandro! Eu pisei-o e ele arranhou-me, além disso fez com que eu caísse pelas escadas abaixo, de mergulho, e acabasse por torcer um pé. - Estivemos quase a conseguir fugir! - lamentou-se o Júlio. - Não sei mesmo o que nos acontecerá agora - disse a Zé. – O Tim não pode vir ter connosco e nós também não podemos ir ter com ele, pois a porta está fechada à chave. Por outro lado os homens não se atrevem a pôr um pé fora da porta enquanto o Tim ali estiver! - E nós fechámos as pessoas dos quartos lá de cima - lembrou o Júlio. - Parece que ninguém pode sair do quarto onde se encontra para ajudar seja quem for. Por isso devemos ficar aqui todos até ao dia de São Nunca à tarde. Realmente as perspectivas não eram animadoras. As únicas pessoas que não estavam fechadas à chave eram os dois homens mas nenhum deles se atrevia a abrir nem uma nesga da porta. O Tim continuava por ali e de vez em quando gania e arranhava a porta do quarto onde estavam os pequenos, porém, quase sempre estava a rosnar em frente do quarto ao lado, atirando-se de encontro à porta. - Os homens devem estar a tremer de medo - disse o David. - Nem devem atrever-se a sair pela janela, não vá o Tim esperá-los lá fora. - Eles têm o que merecem! - disse a Zé. - Ainda bem que vocês vieram! Eu fui uma autêntica burra em ter levado a Nina para o canil, naquela noite. - Na verdade foste uma palerma - disse o Júlio. – Concordo plenamente. Os homens estavam à espera duma oportunidade para apanhar a Berta e quando te viram com a Nina julgaram que eras a americana. - Pois foi. Atiraram uma coisa sobre a minha cabeça e por isso não consegui gritar - contou a Zé. - Fartei-me de espernear e o cinto do meu roupão deve ter caído. Não o encontraram? - Encontrámos - disse o David. - E também ficámos satisfeitos por termos encontrado outras coisas: o pente, o lenço, o rebuçado e o bilhete, claro está! - Levaram-me pelo bosque dentro - disse a Zé. – Depois atiraram-me para o assento de trás dum automóvel. Mas tiveram de o voltar, o que foi difícil. E eu tive a ideia brilhante de atirar pela janela todas as coisas que levava na algibeira do meu roupão para vocês as encontrarem se por acaso passassem por ali. - E como conseguiste escrever o bilhete com a palavra «Gringo»? - perguntou o Júlio. - Foi uma ajuda fantástica. Não estaríamos aqui esta noite se não fosse o bilhete. - Bem, eu ouvi um dos homens tratar o outro por Gringo - explicou a Zé. - Achei um nome tão estranho que resolvi pegar num papelito, escrever o nome e atirá-lo também pela janela. Talvez vocês o encontrassem.

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- Que grande sorte tivemos! - disse o David. - Ainda bem que levavas contigo um bloco-notas e um lápis! - Enganas-te! - disse a Zé. - Não levava nada, mas um dos homens deixara o casaco no assento de trás e tinha um livro de notas e um lápis na algibeira do lenço. Servi-me deles! - Belíssima ideia! - aprovou o Júlio. - Levaram-me no carro até a um acampamento que parecia estar numa feira, pois no dia seguinte ouvi a música do carroussel - continuou a Zé. - Meteram-me numa roulotte onde se encontrava uma velha horrível, com aspecto de bruxa, que não me pareceu nada satisfeita por me ver. Tive de passar a noite sentada numa cadeira e estava tão furiosa que berrei e gritei com quantas forças tinha. Atirei muitas coisas ao chão e quebrei vários pratos e chávenas. Foi o meu único prazer! Os rapazes não puderam deixar de rir. - Estou mesmo a ver-te - disse o David. - Tiveram que levar a roulotte para longe com medo de que as pessoas do acampamento te ouvissem. Na verdade nós pensámos que fosse esse o motivo que levou o Gringo a esconder-te aqui. - Pois foi. De repente senti um solavanco e percebi que a roulotte onde eu estava começava a rolar! - disse a Zé. - Fiquei muito surpreendida. Fui à janela e comecei a acenar e a gritar enquanto passávamos pelas ruas, mas ninguém ficava intrigado e algumas pessoas até me disseram adeus! Depois passámos por um portão e viemos aqui ter. Como já lhes disse, puseram-me cá em cima por eu me ter portado tão mal. - Explicaste-lhes que não eras a Berta? - perguntou o David. - Não - disse a Zé. - Claro que não. Por duas razões: sabia que o pai da Berta não entregava os segredos pois com certeza vocês lhe diriam que era eu que tinha sido raptada e não a sua preciosa filha. E por outro lado pensei que a Berta estaria em segurança se eu não dissesse aos homens que tinham agarrado outra pessoa. - Tu és uma boa pequena, Zé! - disse o Júlio, dando-lhe uma palmada amigável nas costas. - És mesmo muitíssimo boa. Tenho orgulho em ser teu primo. Não há ninguém como a nossa Zé! - Não sejas palerma - respondeu a Zé, mas no entanto estava muito satisfeita. - Bem, não tenho mais nada a contar - continuou ela. – O quarto da cisterna era horrivelmente húmido e eu tinha de me cobrir muito bem, a cabeça e tudo, quando me deitava. A cisterna fazia uns barulhos esquisitos, muito incomodativos. Calculava que vocês acabariam por me vir salvar, por isso não estava muito preocupada. - E no fim não te salvámos - disse o Júlio. - Tudo o que conseguimos foi ficar fechados à chave contigo! - Contem-me como descobriram que eu estava aqui - pediu a Zé. Os pequenos contaram-lhe tudo e a Zé ouviu com muita atenção. - Por isso a Berta foi ficar com a João! - exclamou ela. – Até aposto que a ciganita não gostou da americana! - Pois não - concordou o Júlio. - Mas ajudou-nos muito. Quem me dera que ela estivesse aqui e fizesse uma das suas escaladas pela hera ou qualquer outra proeza no género. - Reparem, o Tim ficou de repente muito calado - disse a Zé, prestando atenção. - Que se passa? Puseram-se todos à escuta. O Tim não ladrava nem rosnava. Não fazia o mais pequeno barulho. Que acontecera? A Zé ficou na maior das aflições. Naturalmente aqueles homens tinham conseguido fazer-lhe mal! Mas de repente voltaram a ouvi-lo ladrar, mas satisfeito e entusiasmado. E nessa altura chegou até eles uma voz conhecida. - David! Júlio! Onde estão? - Santo Deus! É a João! - disse pasmado o David, começando logo a bater na porta. - Estamos aqui, João! Abre a porta! A ciganita deu uma volta à chave, abriu a porta e olhou lá para dentro, sorrindo. O Tim entrou como um furacão e atirou-se à Zé, quase a fazendo perder o equilíbrio. O David saiu logo do quarto, a coxear, deixando todos surpreendidos.

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Voltou pouco depois, com um ar satisfeito. - Vamos embora enquanto é tempo - disse ele. - Pois sim, mas tenham cuidado, pois os homens podem sair do quarto se perceberem que o Tim já não está junto da porta - gritou o Júlio, lembrando-se repentinamente de que os dois homens podiam fugir enquanto o Tim estivesse ali com eles e até fechar-lhes a porta do quarto onde se encontravam, ficando todos lá dentro. - Não te aflijas, pois não há razão para pressas - disse o David. - Eu já tratei disso. Quando a João aqui entrou fui fechar à chave a porta do quarto deles! E assim podem ali ficar até que a polícia chegue pela manhã. Nessa altura facilmente apanham o grupo todo. E os homens lá de cima também. - Tenho a certeza de que a polícia há-de ficar muito satisfeita se fizer uma busca à casa e às adegas - disse o Júlio. - Deve haver aqui muita coisa interessante! Bem, vamo-nos embora imediatamente. Disseram adeus aos dois homens. - Cá vamos nós - gritou o David. - É melhor terem cuidado não vá o cão apanhá-los! Foram até à entrada, seguindo o David atrás, coxeando, pois continuava a doer-lhe o tornozelo. - Vamos sair com todas as honras - disse o Júlio, destrancando a porta da frente. - E é melhor deixarmos esta porta aberta para quando vier a polícia. É natural que não queiram entrar pelo buraco do carvão! Foi uma boa ideia fazeres os homens pensar que deixámos o Tim a guardá-los, David. Nem se arriscarão a descer pela janela, com medo de serem mordidos! - Deixámos uma porção de luzes acesas - disse a Zé, olhando para trás. - Não faz mal, não tencionamos pagar a conta da electricidade! Vamos, Tim, para a noite escura! Desceram pelo caminho até ao portão. Todos se sentiam em segurança, guardados pelo Tim. - João, como conseguiste tu chegar aqui? - perguntou de repente o David. - Tínhamos-te proibido de vir. - Bem sei - respondeu a ciganita. - Mas eu peguei na bicicleta da Ana e segui-os. Depois passei pelo portão da frente, quando vocês o deixaram aberto. Não era difícil! - Eu bem sentia que vinha alguém atrás de nós - disse o David. - E tinha razão. Eras tu, minha peste! Não admira que o Tim não tenha ladrado nem rosnado. - Sim, era eu - disse a João. - E segui-os sempre à volta da casa, enquanto tentavam entrar. Pensei que nunca mais vissem o buraco do carvão, por isso tirei a tampa para fora, esperando que vocês dessem por ele. Felizmente foi o que aconteceu! - Então também fizeste isso! - exclamou o David. – Devo confessar que fiquei muito admirado quando vi a tampa, pois sabia que já tínhamos passado por ali e nada havíamos visto. Com que então foste tu! Merecias uma sova, minha insuportável desobediente! - A João riu-se. - Não me podia conformar por vocês não me levarem - disse ela. - E foi bom eu ter vindo! Fartei-me de esperar dentro do buraco do carvão que vocês voltassem com a Zé e como se demoravam tanto resolvi entrar na casa. O Tim ouviu-me e foi ter comigo. Ia-me deitando por terra, tal era a sua alegria! - Chegámos finalmente ao portão - disse a Zé. - Como nos vamos arranjar com as bicicletas? Não há nenhuma para mim. - A João pode sentar-se atrás do meu selim e agarrar-se aos meus ombros - disse o Júlio. - Tu vais na bicicleta da Ana, Zé. Vamos deixar o portão aberto. Os polícias vão ficar satisfeitos connosco por lhes pouparmos tantas maçadas! E lá foram pelo monte abaixo, com o Tim a correr atrás, abanando a cauda, muito contente. Tinha outra vez a sua Zé! Tudo voltava à normalidade!

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Capítulo XXII Estes miúdos são formidáveis É difícil descrever o entusiasmo com que os pequenos foram recebidos pela Joana e pela Ana, quando por fim chegaram ao Casal Kirrin, às três e meia da manhã! A Joana estava acordada mas a Ana acabara de adormecer. Deitara-se no quarto da criada para ter companhia e a Nina também lá estava. A aventura teve que ser contada e recontada várias vezes. Primeiro o David, depois o Júlio, depois a Zé, por fim a João, todos falavam sem descanso, excitados e felizes. A Nina corria de uns para os outros seguindo o Tim mas por vezes ficava triste ao lembrar-se de que a Berta não estava com eles. - Ora olhem! - exclamou a certa altura o David abrindo as persianas da sala de estar. - Luz do dia! O sol já nasceu! Estava convencido de que ainda era noite! - Agora não vale a pena irmos para a cama - disse logo a João. Estava tão divertida com tudo aquilo que nem queria descansar. - Pois eu não concordo - disse a Joana. - Já sei o que vamos fazer. Tomamos um pequeno almoço forte, muito bom, para festejar os acontecimentos, depois vamos para a cama e dormimos até à hora do almoço. Estamos todos muito cansados. Ora reparem nas vossas caras olheirentas e pálidas! - Joana! Estás a intrujar-nos! Estamos o mais queimados que é possível, sem olheiras nem palidez! - disse a Zé. - Vamos lá a esse pequeno almoço festivo! Presunto, ovos, tomate, pão frito. E cogumelos também. Há cogumelos, Joana? E muito, muito café com leite e montanhas de torradas com compota. Estou a morrer de fome! Todos descobriram que tinham imenso apetite e vinte minutos mais tarde sentaram-se à mesa, devorando tudo como se não comessem havia um mês. - Já não consigo ter vontade para mais - disse por fim o David. - E não sei o que se passa com os meus olhos. Estão a fechar-se! - Os meus também - disse a Zé dando um enorme bocejo. - Joana, não me digas que temos de ir lavar a loiça. - Claro que não! - respondeu a criada. - Vão já deitar-se. Nem vale a pena despirem-se! - Parece-me que devia fazer qualquer coisa mas não me lembro - disse o Júlio, sonolento, subindo as escadas. - Não consigo lembrar-me! Deitou-se na cama e mal a cabeça tocou na almofada ficou a dormir. Daí a dois minutos, todos menos a Joana, estavam a dormir. A criada deu de beber ao Tim e este subiu as escadas indo deitar-se aos pés da Zé, como de costume. A Joana resolveu ir deitar-se também, pensando descansar um pouco, sem adormecer. Um momento depois dormia profundamente. O sol subiu no céu. O leiteiro entrou no jardim, assobiando, e deixou quatro garrafas de leite junto à porta das traseiras. As gaivotas na baía esvoaçavam e gritavam. Mas no Casal Kirrin ninguém se mexia. Um automóvel parou junto ao portão da frente, seguido por um outro. Do primeiro carro saíram o tio Alberto, a tia Clara, o Sr. Elbur Wright e a Berta! Do segundo saíram o sargento da polícia e o ajudante. A Berta correu para a porta da casa mas encontrou-a fechada. Deu a volta, a correr, até à porta das traseiras. Aquela também estava fechada à chave! - «Pápi»! Temos que tocar à campainha. As portas estão fechadas - gritou ela. Nessa altura, ouviram ladrar lá em cima e apareceu a cabeça da Nina a uma janela. Quando percebeu que

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realmente era a Berta que estava lá em baixo, correu pelas escadas e pôs-se a arranhar a porta da entrada. - Que aconteceu? Onde estão todos? - perguntava a tia Clara, admirada. - A porta das traseiras está fechada? Mas são dez horas da manhã! Onde estarão os pequenos? - Tenho aqui a minha chave - disse o tio Alberto metendo-a na fechadura. Abriu a porta e a Nina saltou para os braços da Berta, tentando lamber-lhe a cara. A tia Clara foi até à entrada e gritou: - Está alguém em casa? Não teve resposta. O Tim ouviu-a mas como a Zé não se mexeu não esteve para se manifestar. Não queria deixar a sua dona nem por um minuto! A tia Clara entrou em todos os compartimentos do rés-do-chão. Não estava ninguém! Ficou pasmada ao ver as sobras duma refeição em cima da mesa e panelas e pratos ainda sujos na cozinha. Que estivera a Joana a fazer? ONDE estariam todos? Não esperava encontrar a Zé pois bem sabia que ela fora raptada. Mas onde estariam os outros? Foi ao andar de cima, seguida pelo marido, pela Berta e pelo pai desta. Todos estavam muito intrigados. Foram ao quarto do Júlio. Felizmente ele estava lá com o David. Ambos dormiam profundamente. A tia Clara cada vez percebia menos! Depois foi ao quarto das raparigas e viu a Ana a dormir e também... IMPOSSÍVEL! Aquela seria a Zé? Mas a Zé fora raptada! Por isso, onde, como, quando... A tia Clara abraçou a Zé mesmo adormecida e beijou-a ternamente. Sentira-se tão aflita por sua causa! E agora ela ali estava sem uma beliscadura! A Zé acordou logo. Sentou-se e olhou para os pais muito admirada. - Oh! já vieram! Que bom! Quando chegaram? - Agora mesmo - respondeu a mãe. - Mas ouve, Zé, porque estão todos a dormir? E como conseguiste chegar aqui? Julgávamos que tu... - Oh! mãe! Claro que não sabem metade da história, pois não? - perguntou a Zé. - Olha, está ali a Berta! E o «pápi» dela também! A Zé continuava com tanto sono que não estava absolutamente certa se tudo aquilo não passaria dum sonho. Mas nessa altura a Ana acordou e desatou a falar alto, o que despertou também o Júlio e o David. Estes foram ao quarto das pequenas e em breve havia um tal barulho que a Joana e a ciganita, no quarto do sótão, acordaram também. Desceram logo, todas despenteadas. A Joana, a pedir desculpas, correu à cozinha para aquecer café, esbarrando na entrada com os dois polícias. Assustou-se e deu um grito. - Desculpe - disse o sargento à Joana. - Nunca mais vem ninguém para baixo? Nós estamos de guarda à menina Berta. - Ah! agora já não é preciso - respondeu a Joana. - O menino Júlio não lhes telefonou ontem à noite, ou seja, esta manhã? Pensei que ia telefonar-lhes. - Por que motivo? - perguntou o sargento. - Por causa dos raptores. Está tudo acabado - explicou a Joana aos dois polícias. - Já aqui temos a menina Zé e os raptores estão à vossa disposição. Não lhes disseram que ficaram todos fechados à chave, à espera desses senhores? - Oiça, o que quer dizer com tudo isso? - perguntou o sargento, pasmado e confuso. - Que história é essa dos raptores fechados à chave e à nossa espera? - Menino Júlio! - chamou a Joana. - Estão aqui os polícias. O menino esqueceu-se de lhes telefonar a dizer o que aconteceu. É melhor irem já à tal casa buscar os homens, não acha? - Bem me parecia que me tinha esquecido de qualquer coisa - disse o Júlio correndo pelas escadas abaixo. – Tencionava telefonar-lhes mas estava tão cansado que me esqueci.

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Então foram todos para baixo e entraram na sala. A João sentia-se envergonhada por estar ali tanta gente e não quis ficar perto dos polícias. - Acabaram de me dizer, Sr. Wright, que já não é preciso guardar a sua filha - informou o sargento secamente. – Parece que a polícia é a última a quem dão conhecimento do que se passa. - Bem, nós descobrimos que o Gringo, o chefe dum grupo de saltimbancos, fora pago para raptar a Berta - começou o Júlio. - Apanhou a Zé em vez dela, por engano. Conseguimos saber para onde o Gringo levara a minha prima e fomos buscá-la na noite passada. Continua tu, David. - Deixámos o Gringo e mais um outro homem fechados num quarto do rés-do-chão e mais duas pessoas igualmente encerradas noutros compartimentos do andar superior. E deixámos a porta e o portão abertos para os senhores entrarem - disse o David. - Por isso, não esteja aborrecido com o caso, Sr. Sargento, pois nós procurámos facilitar-lhes as coisas. Trouxemos a Zé, como estão a ver, e agora os senhores podem ir buscar os homens. O sargento sentia uma certa dificuldade em acreditar numa só palavra! O tio Alberto bateu-lhe no ombro. - Desperte, homem! Os raptores podem fugir antes de os senhores lá chegarem, se não se apressam. - Onde é a casa? - perguntou o sargento. - Não sei nem o nome da casa nem o do sítio onde fica - respondeu o Júlio. - Mas os senhores vão até Bétula, voltem à esquerda, e é a casa do monte. - Como descobriram tudo isso? - perguntou o sargento. - É uma história demasiado longa para lhe contar agora - respondeu o David. - Vamos escrever tudo num livro e mandamos-lhe um exemplar. O título será... como há-de ser, meninos? Foi uma aventura esquisita. Acabou com todos a dormir! - Eu quero tomar café - interrompeu o tio Alberto. - Acho que já falámos bastante. Vão apanhar os raptores, srs. polícias. O sargento e o companheiro foram-se embora. O Sr. Elbur Wright sorria satisfeito, com a Berta sentada nos seus joelhos. - Foi um final muito agradável - disse ele. - E agora já posso levar a minha Berta comigo. - Não! - gritou a Berta, com grande surpresa do pai. - Que estás tu a dizer? - perguntou ele. - Oh! «pápi», deixa-me ficar aqui - pediu a Berta. – Estes miúdos são «formidábeis»! - Formidáveis! Formidáveis! Formidáveis! emendaram todos em coro. - Deixe-a ficar, se ela quiser - disse a tia Clara. – Mas desta vez como rapariga e não como rapaz! A Zé deu um suspiro de alívio. Assim estava bem. Não se importava de ter ali a Berta como rapariga embora a achasse uma miúda pateta. - Uuuuf! - fez o Tim, sobressaltando todos. - Ele quer dizer que está muito satisfeito por a Berta ficar, pois assim também fica a Nina - explicou o David. – Terá companhia para as suas brincadeiras. - Vamos realmente mandar ao polícia um livro sobre a nossa aventura? - perguntou a Ana. - Falavas a sério, David? - Pois claro! - afirmou o David. - A nossa décima quarta aventura. E talvez ainda tenhamos muitas mais! Que nome vamos dar ao nosso livro? - Já sei - disse logo a Zé. - Já sei! Vamos chamar-lhe OS CINCO E OS RAPTORES. Como vêem, escreveram o livro. Esperamos que todos tenham gostado! FIM

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