ws_otelo - trad. beatriz v.f

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L&PM CLÁSSICOS WILLIAM SHAKESPEARE A arte da guerra - Sun Tzu A arte de escrever - Arthur Schopenhauer A metamorfose seguido de O veredicto - Franz Kafka Da tranquilidade da alma - Sêneca Discurso do método - René Descartes Ecce homo - Friedrich Nietzsche Édipo Rei - Sófoc1es Elogio da Loucura - Erasmo Otelo - William Shakespeare Romeu e Julieta - William Shakespeare OTELO Tradução de BEATRIZ VIÉGAS-FARIA PRÊMIO AÇORIANOS DE TRADUÇÃO L&PM CLÁSSICOS

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Texto de William Shakespeare

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  • L&PM CLSSICOS WILLIAM SHAKESPEARE

    A arte da guerra - Sun TzuA arte de escrever - Arthur SchopenhauerA metamorfose seguido de O veredicto - Franz KafkaDa tranquilidade da alma - SnecaDiscurso do mtodo - Ren DescartesEcce homo - Friedrich Nietzschedipo Rei - Sfoc1esElogio da Loucura - ErasmoOtelo - William ShakespeareRomeu e Julieta - William Shakespeare

    OTELOTraduo de BEATRIZ VIGAS-FARIA

    PRMIO AORIANOS DE TRADUO

    L&PM CLSSICOS

  • Texto de acordo com a nova ortografia.Traduo de: Othello

    Este livro est disponvel tambm na Coleo L&PM POCKET

    Capa: Ivan Pinheiro Machado. Ilustrao: leo sobre tela de DiegoVelzquez (1599-1660) Retrato de Juan Pareja (1649/50),(Metropolitan Museum of Art, Nova York).

    Traduo: Beatriz Vigas-FariaReviso: L&PM Editores

    CIP-Brasil. Catalogao na fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

    S5390

    Shakespeare, William, 1564-1616ateio IWilliam Shakespeare; traduo Beatriz Vigas-Faria. - Porto

    Alegre, RS: L&PM, 2013.160 p. ; 21 em. (L&PM CLSSICOS)

    Traduo de: OthelloISBN 978-85-254-2992-6

    1. Teatro ingls (Literatura). I. Vigas-Faria, Beatriz. 11.Ttulo.m. Srie.

    13-04211 CDD: 822CDU: 821.111-2

    da traduo, L&PM Editores, 1999

    Todos os direitos desta edio reservados a L&PM EditoresRua Comendador Coruja 314, loja 9 - Floresta - 90.220-180Porto Alegre- RS - Brasil/Fone: 51.3225.5777 - Fax: 51.3221-5380

    PEDIDOS& DEPTO.COMERCIAL:[email protected]:[email protected]

    Impresso no BrasilPrimavera de 2013

    As cenas passam-se em Veneza e Chipre.

    PERSONAGENS DA PEA

    o DOGE de VenezaBRABNCIO, um senador, pai de Desdmona

    Outros senadores

    GRACIANO, irmo de Brabncio

    LUDOVICO, parente de Brabncio

    OTELO, um nobre mouro a servio do Estado de Veneza

    CSSIO, seu tenente

    lAGO, seu alferes

    RODRlGO, um cavalheiro veneziano

    MONTANO, o antecessor de Otelo como governador doChipre

    BOBO, criado de OteloDESDMONA, filha de Brabncio e esposa de Otelo

    EMLlA, esposa de lago

    BIANCA, amante de CssioMarinheiro, Mensageiro, Arauto, Oficiais, Cavalheiros,Msicos e Criadagem

    - 5 -

  • PRIMEIRO ATO

    CENA IVeneza. Uma rua.

    Entram Rodrigo e lago.

    RODRIGO - Chega, no quero ouvir! Acho de extrema in-sensibilidade que tu, lago, que j dispuseste de minha bolsacomo se teus fossem os cordes dela, tenhas conhecimentodisso.

    lAGO - Pelo sangue de Cristo, o senhor no est me es-cutando. Se alguma vez esse assunto foi fruto de minhaimaginao, pode abominar-me.

    RODluGO - Disseste a mim que por ele tens dio.

    lAGO - Se no assim, pode desprezar-me. Trs grandesnomes da cidade, pessoalmente empenhados em me verpromovido a tenente dele, foram com ele falar, chapus nasmos. E, pela boa-f humana, conheo o meu valor: no soumerecedor de um posto mais baixo. Mas ele, gostando comogosta de seu prprio orgulho e de seus propsitos pessoais,desconversa esses homens com uma histria comprida echeia de fraseados bombsticos, horrivelmente recheadade eptetos de guerra. Para concluir, d por improcedentea causa de meus mediadores. "Seguramente", diz ele, "jescolhi o meu oficial." E quem ele? Seguramente, umgrande aritmtico, um tal de Miguel Cssio, um florentino,um sujeito quase condenado a assumir um papel de bela

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  • esposa, um sujeito que nunca liderou um esquadro at ocampo de batalha, um sujeito que conhece as divises deuma batalha tanto quanto uma fiandeira ... a menos queo terico ponha-se a arrotar suas leituras naquilo que oscnsules togados podem propor com tanta maestria quantoele. No passa de tagarelice sem prtica o que ele entendede tticas militares. Mas ele, meu senhor, foi o eleito. Eeu, que perante os prprios olhos dele dei provas de minhacapacidade militar em Rodes, em Chipre e em outros camposde batalha, cristos e gentlicos, devo ficar agora destitudode ventos para navegar, detido por calmaria decretada porum simples guarda-livros. No deixa de ser em boa hora queesse compilador de deveres e haveres vai ser o tenente dele.E eu ...Deus abenoando minha boa mira! ..., continuo sendoo alferes de sua majestade, o Mouro.

    RODRIGO - Cus, eu preferiria ser dele o carrasco.

    lAGO - Qual o que, no tem remdio. Esta a praga doservio militar: as promoes acontecem por recomendaoe por simpatia, e no pela velha graduao, onde sempre osegundo herda o posto do primeiro. Agora, meu senhor, sejao senhor mesmo juiz desta questo: posso eu, com justia,ser obrigado a gostar do Mouro?

    RODRIGO - Eu no seria dele seguidor.

    lAGO - Ah, meu senhor, no se preocupe. Continuo delesendo seguidor que para dar-lhe o troco que merece. Nopodemos todos ser mestres, nem todos os mestres podemser lealmente seguidos. O senhor com certeza no deixarde notar vrios criados obsequiosos e submissos que, apai-xonados por seu prprio vnculo de servido, vo esgotandoseu tempo de vida, igualzinho como fazem os asnos de seusamos, matando-se de trabalhar por nada alm de forragem

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    seca s para, quando ficarem velhos, serem despedidos. Poisquero mais que sejam aoitados esses criados honestos.Outros h que, maquilados com as formas e fantasias dodever mantm no entanto seus coraes a servio de simesmos e, cobrindo seus amos e senhores com no maisque demonstraes de servitude, prosperam por seu lado; e,quando forraram os bolsos, prestam homenagem a si pr-prios. Esses sujeitos tm alguma alma, e uma alma assimtenho eu, o que lhe declaro. Pois, meu senhor, to certocomo o seu nome Rodrigo, fosse eu o Mouro, no serialago. Ao ser dele seguidor, estou seguindo apenas a mimmesmo. Os cus podem me julgar: eu no sou eu por amore por dever, mas eu pareo ser eu por causa de meu peculiarpropsito. E, quando minhas aes aparentes demonstrarema verdadeira conduta e os verdadeiros contornos de meucorao em formal expresso de cortesia, no se passarmuito tempo e estarei abrindo o meu corao para que osurubus dele faam picadinho ... no sou quem eu sou.

    RODRlGO - Se conseguir sair ileso dessa, o Lbios Grossosvai ficar devendo sua sorte ao destino.

    lAGO - Chame o pai dela, faa com que ele acorde, v atrsdele, envenene seus prazeres, proclame sua presena nas ruas,inflame os parentes dela e, embora ele more num clima frtil,faa com que ele se infeste de moscas; embora sua alegriaseja alegria, ainda assim ...joguem-se tais nuances de vexaosobre essa alegria de modo que ela venha a perder o brilho.

    RODRlGO - Esta aqui a casa do pai dela. Vou gritar por ele.

    lAGO - Faa-o. Com tom de voz to tmido e berro tomedonho como aqueles com que, por causa da noite e danegligncia, o incndio avistado em cidades populosas.

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  • RODRlGO - Ei, al, Brabncio! Signior Brabncio, al!

    lAGO - Acordai-vos! - Ei, al, Brabncio! Ladres! La-dres! Ladres! Vigie a sua casa, a sua filha e as suas bolsasde dinheiro! Ladres! Ladres!

    Brabncio aparece acima, numa janela.

    BRABNCIO - Qual a causa desse terrvel chamado? Qual o problema aqui?

    RODRlGO - Signior, est toda a sua famlia em casa?

    lAGO - Esto as vossas portas trancadas?

    BRABNCIo - Por qu? Qual o motivo dessas perguntas?

    lAGO - Meu senhor, pelas feridas de Cristo! O senhor foiroubado! Que humilhao! V vestindo a sua toga. O seucorao foi arrombado; o senhor acaba de perder metadede sua alma. Neste instante mesmo, agora, agorinha, umbode pr~to e velho est cobrindo sua branca ovelhinha. _Lev~nta~vos, rebelai-vos! - Acorde com o toque do sinoos cidados que ora roncam, pois do contrrio o diabo vailhe dar netos. - Levantai-vos contra isso, digo eu.

    BRABNCIO - Mas o que isso? Perdeste o juzo?

    RODRlGO - Ilustrssimo signior, o senhor reconhece minhavoz?

    BRABNCIO - Eu no. Quem s tu?

    RODRlGO - Meu nome Rodrigo.

    ~RAB~NCIO - Pois no te dou as boas-vindas. Eu mesmo teinstru a parar de rondar a minha casa. Com a maior fran-queza, tu me ou:iste dizer que minha filha no para ti. E,agora, ensandec.n, afrontado depois da ceia e perturbado

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    pela bebida, me apareces aqui com essa patifaria cheia demaldade e vens interromper meu descanso.

    RODRIGO - Senhor, senhor, senhor, ...

    BRABNCIO - Mas devo assegurar-te que minha fora deesprito e minha posio na sociedade tm por si s o poderde tomar essa experincia amarga para ti.

    RODRIGO - Tenha pacincia, meu bom senhor.

    BRABNCIO - Por que vens me falar de roubo? Estamos emVenez. Minha casa no uma granja qualquer.

    RODRIGO - Venervel Brabncio, venho ter com o senhorde alma limpa, de corao puro.

    lAGO - Pelas feridas de Cristo, senhor, sei que o senhor umadessas pessoas que no serve a Deus se o Diabo ordenar-lheque assim o faa. S porque ns viemos lhe fazer um favore o senhor pensa que somos dois desordeiros, ter um cavaloberbere cobrindo sua filha; ter seus sobrinhos relinchandopara o senhor; ter corcis por primos e ginetes por parentes.

    BRABNCIO - Que tipo de canalha blasfemo s tu?

    lAGO - Um canalha, senhor, que vem lhe participar que suafilha e o Mouro esto neste exato momento fazendo a figurada besta com duas costas.

    BRABNCIO - s um verme.

    lAGO - E o senhor, um senador.

    BRABNCIO - Vais responder por isso. Eu te conheo, Ro-drigo.

    RODRIGO - Senhor, eu respondo a qualquer coisa. Mas lhepergunto se de sua vontade e com seu douto consenti-mento, como eu em parte acho que , que sua linda filha,

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  • em horas to tardes da noite, em tediosa noite de viglia, foitransportada por um guarda nem melhor nem pior que umcriado de aluguel, um gondoleiro, at o abrao bruto de umMouro lascivo. Se o senhor sabedor de tal fato e com eleconsente, ento estamos cometendo uma tremenda e insolenteinjustia para com o senhor. Mas, se o senhor desse fato notem conhecimento, a boa educao me diz que fomos pelosenhor indevidamente repreendidos. No creia que, mesmofaltando-me todo e qualquer senso de civilidade, eu estariaassim brincando e debochando de sua ilustre e respeitadapessoa. Sua filha, se que no recebeu a sua permisso, digo--lhe mais uma vez, rebelou-se de modo grosseiro, vinculandosua submisso, sua beleza, sua inteligncia e seus dotes aum estranho extravagante e errtico tanto por aqui como emqualquer outro lugar. Mas dissipe suas dvidas neste minutomesmo. Se ela estiver em seus aposentos ou ainda em outrocanto de sua casa, senhor, que me persiga a justia do Estadopor tentar engan-lo dessa maneira.

    BRABNCIO - Acendam o pavio! Al! Passem para c umcrio! Chamem o meu pessoal! - Este acidente no dife-rente do meu sonho. Acreditar nele j me vai oprimindo.- Luz, estou dizendo! Luz!

    [Sai da sacada, entrando em casa.]

    lAGO - Adeus, pois devo deix-lo, Dada a minha posio,no me parece nem apropriado nem saudvel que eu sejachamado para me apresentar contra o Mouro ... o queinevitavelmente acontecer se eu aqui ficar. Conheo bemcomo funciona o Estado: por mais que possam esfolar-lhea pele com alguma reprimenda, no podem dele prescindirpor questes de segurana. Ele foi encarregado das guer-ras em Chipre, que ainda agora se desenrolam, e foi delas

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    encarregado por motivos to clamorosos que, pelas almasdos estadistas, eles no tm outro lder de sua estatura paralevar adiante essa empreitada. Tendo isso em vista, emboraeu o odeie tanto quanto odeio os piores castigos do inferno,ainda assim, dadas as necessidades das presentes circuns-tncias, devo desfraldar a bandeira e o sinal do amor que tudo menos amor. Para que o encontre com certeza, leve, . , .os homens atiados em equipe de busca at o Sagitno, el estarei, com ele. Bom, adeus.

    [Sai.]

    Entram, abaixo, Brabncio e Criados com tachas.

    BRABNCIO - , com a maior das certezas, o maior dos ma-les: ela se foi. E, do meu tempo assim desprezado de vida, oque ser? Nada, a no ser amargura. Agora, Rodrig~, ondea viste? Ah, menina mais infeliz! Com o Mouro, fOIo quedisseste? Ser pai .., e para qu? Como que sabias que eraela? Ah, ela me enganou de modo inimaginvel! E o quefoi que ela te disse? - Tragam mais crios. Acordem todosos meus parentes! -Achas ento que os dois esto casados?

    RODRlGO - Para falar a verdade, acho que esto.

    BRABNCIO - Oh, cus! Como foi que ela conseguiu sair?Trado pelo meu prprio sangue! - Ouam-me, aqueles devocs que so pais: daqui em diante, no mais acreditem q~esabem o que suas filhas pensam baseados apenas naquiloque veem das aes delas! - Ser que no existem feitiospelos quais as naturais caractersticas de uma jovem don-zela podem ser corrompidas? J no leste, Rodrigo, sobrealguma coisa parecida?RODRlGO - Sim, senhor, na verdade li.

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  • BR>\BNCIO - Chamem meu irmo. - Ah, antes tivesse sido tua possu-Ia. +Alguns por um lado, outros por outro. - Sabesonde podemos pegar a ela e ao Mouro?

    ~ODRIGO - Acho que posso encontr-Io, se o senhor estiverdisposto a levar junto uma boa escolta e me acompanhar.

    BRABNCIO - Por favor, mostra-nos o caminho. Chamareihomens de todas as casas. No mximo, posso comand-Ios- Al, peguem suas armas. E acordem alguns dos oficiaisda ronda noturna. - Adiante, meu bom Rodrigo; bem quemereo teres me atormentado.

    [Saem.]

    CENA 11

    Uma outra rua.

    Entram Otelo, lago e Auxiliares com tachas.

    lAGO - Embora eu tenha, no ofcio da guerra, matado ho-~~ns~ penso, por outro lado, que uma questo de cons-ciencia no se cometer um assassinato com premeditao.Falta-me s vezes iniquidade que venha em meu auxlio.Nove, dez vezes fiquei me questionando, antes de atingir ohomem aqui, embaixo das costelas.

    OTELO - Est melhor assim.

    lAGO - No, mas ele tagarelava, e pronunciava-se comtermos to vis e provocativos contra a sua honra, meugeneral, que, sendo eu homem de pouca religiosidade,

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    -

    foi a muito custo que me contive para no esmurr-Io.Mas, suplico-lhe, senhor, responda-me: casou-se real-mente? Pois esteja certo do seguinte: o senhor seu sogro,um dos Magnficos de Veneza, muito amado e tem a seufavor o potencial de uma voz que consegue se fazer ouvirduas vezes mais alto que a do Doge. Ele conseguir o seudivrcio, ou ento infernizar a sua vida com todas asdetenes, restries e vexames que os tribunais venhama lhe permitir aplicar, dado o poder que ele tem para fazervaler a lei.

    OTELO - Ele que faa o que quiser com seu rancor.Meus prstimos ao Estado, feitos conforme os pedidosdos prprios governantes de Veneza, falaro mais altoque as queixas dele. Ningum ainda sabe ... e, s no diaem que eu acreditar que gabar-se de si mesmo um atonobre, divulgarei este fato ... mas minha vida e meu serdescendem de homens de linhagem real; e meus mritospodem encarar de frente, de igual para igual, um destinoto magnfico quanto este a que cheguei. Pois saiba, lago,que, se eu no amasse a suave Desdmona, no teriacolocado amarras em minha condio livre de homemsolteiro e sem endereo certo, no a teria sacrificado nempor todos os tesouros do mar. Mas, repare, que luzes seveem mais alm!

    lAGO - So o pai de sua esposa e os amigos dele, revoltados. melhor o senhor entrar.

    OTELO - Eu no. Devo ser encontrado. Minhas qualidades,meu ttulo e minha alma perfeita vo saber como me defen-der do modo mais correto. So eles?

    lAGO - Por Jano! Acho que no.

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  • Entram Cssio e alguns Oficiais com tochas.OTELO - Os criados do Doge, e meu tenente! Que a bene-volncia da noite esteja com vocs, meus amigos! Quaisso as novas?

    CSSIO - O Doge manda seus cumprimentos, general, erequisita a sua presena com a mxima urgncia e, se pos-svel, agora mesmo.

    OTELO - Qual te parece ser o problema?

    CSSIO - Alguma coisa relacionada a Chipre, pelo que possoadivinhar. questo de certa urgncia: as galeras enviaramuma dzia de mensageiros, um atrs do outro, s nestanoite. E muitos dos senadores, acordados de seu sono ouencontrados na noite, j se encontram no palcio do Doge.O senhor para l chamado com toda a pressa. Quandoem seu alojamento o senhor no foi encontrado, o Senadomandou umas trs diferentes turmas de busca sua procura.

    OTELO - Pois bom ter sido tu a me encontrar. Vou apenasdar uma palavrinha aqui na casa e j sigo contigo.

    Ele entra.

    CSSIO - Alferes, o que faz ele aqui?

    lAGO - Na verdade, ele esta noite embarcou num galeo quenavega em terra firme; se ficar comprovado que capturalcita, ele est feito para o resto da vida.

    CSSIO - No estou entendendo.

    lAGO - Ele se casou.

    CSSIO - Com quem?

    Reentra Otelo.

    lAGO - Ora, com ... Ento, capito, vamos indo?

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    OTELO - Estou pronto.CSSIO - A vem chegando uma outra tropa sua procura.

    lAGO - Brabncio. General, cuidado: ele no vem comboas intenes.

    Entram Brabncio, Rodrigo e Oficiais munidos de tochase armas.

    OTELO - Ol! Parados a!

    RODRIGO - Signior, o Mouro.

    BRABNCIO - Abaixo com ele ... - ladro!

    [Puxam das espadas, dos dois lados.]

    lAGO - O senhor, Rodrigo! Venha, senhor, estou do seu lado.

    OTELO - Guardem suas flamantes espadas; do contrrio,o sereno pode enferruj-Ias. - Meu bom signior, o senhorsabe comandar melhor com sua experincia de vida quecom suas armas.BRABNCIO - Ah, tu! Ladro imundo, onde escondesteminha filha? Amaldioado como s, tu a enfeitiaste. Poiseu apelo a todo o bom senso e todo o conhecimento e mepergunto se ela no est prisioneira de correntes mgicas.Quando que uma donzela to afvel, linda e feliz, t.oavessa ao casamento que chegou a recusar os melhores, maisricos e elegantes partidos de nossa nao, quando que elateria abandonado seu pai e protetor, correndo o risco de sermotivo de zombaria geral, para aninhar-se no peito negrode uma coisa como tu ... figura que d medo, e no prazer?Que o mundo me julgue, mas pergunto se no indecenteaos sentidos e ao entendimento que tenhas praticado contraela feitios nojentos, abusando de sua delicada juventude

    - 17 -

  • com drogas ou minerais que debilitam os movimentos. As-sim argumentarei nos tribunais. Parece-me ser isso o maisprovvel e palpvel ao pensamento. Assim sendo, declaro-tepreso e proclamo tua deteno por seres pessoa nefasta aomundo, um praticante das artes ilegais que se realizam semlicena. - Agarrem-no! Se ele resistir, tratem de domin-Io, ..por conta e risco dele prprio.

    OTELO - Parados todos, vocs dois que esto comigo etodo o resto. Fosse esta a minha deixa para brigar, eu a teriapercebido sem precisar de algum que me alertasse. - Ondedeseja o senhor que eu responda a essa sua acusao?

    BRABNCIO - Na priso, at que seja chegada a hora de seresjulgado de acordo com a lei, at que os procedimentos deuma sesso honesta chamem-te a responder.

    OTELO - E se eu obedecer? Como poderemos ao mesmotempo deixar satisfeito o Doge, cujos mensageiros encon-tram-se aqui ao meu lado, em relao a um certo problemacorrente do Estado que o faz requisitar minha presena?

    1Q OFICIAL - verdade, venervel signior. O Doge estreunido em conselho, e vossa nobre presena, tenho certeza,est tambm sendo requisitada.

    BRABNCIO - Mas ... como? O Doge reunido em conselho?A esta hora da noite! - Tragam-no comigo. - Minha questono coisa de pouca importncia. O prprio Doge, assimcomo qualquer um dos meus pares na administrao doEstado, no pode deixar de sentir esse crime como se fossecontra sua prpria pessoa. Se a aes tais for dada livrepassagem, logo chegar o dia em que escravos e pagostomam-se nossos govemantes.

    [Saem.]

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    CENA 111

    A cmara do conselho.

    o Doge e os Senadores sentados volta de uma mesa;Oficiais de prontido.

    DOGE - No h, nessas notcias, consistncia que lhes dcrdito.12 SENADOR - Deveras, elas so disparatadas. Nas minhascartas l-se cento e setenta galees.

    DOGE - Nas minhas, cento e quarenta.22 SENADOR - Nas minhas, duzentos. Todavia, embora elasno registrem uma contagem confivel... e, nesses casos emque a adivinhao que informa, os nmeros costumamvir com diferenas ..., mesmo assim todos eles confirmamuma frota turca, velas enfunadas, e o vento tocando-as emdireo a Chipre.DOGE - E, mais ainda, isso o quanto nos basta para to-marmos uma deciso. No me confio nessas divergnciasnumricas, mas a questo principal eu endosso, com umapercepo apreensiva das coisas.MARINHEIRO [falando de fora da cmara] - Ei, ol! Ei,ol! Ei, ol!12 OFICIAL - Um mensageiro dos galees.

    Entra o Marinheiro.DOGE - E agora, qual o problema?MARINHEIRO - A frota inimiga turca est se dirigindo paraRodes. Assim me foi ordenado que relatasse aqui para oEstado, pelo Signior ngelo.

    - 19 -

  • DOGE- o que me dizem agora dessa mudana?1Q SENADOR- Isso no pode ser; pelo menos no de acordo~om qualquer teste a que se submeta a razo. Esto fingindoIr para Rodes, com o objetivo de nos manter com o olhardistrado. Quando consideramos a importncia de Chiprepara os turcos e nos concentramos em compreender oque est acontecendo, pode-se ver como Chipre melhorpre.sa que Rodes para os turcos. O Turco pode conquistarChipre com uma investida facilitada, pois este no se en-contra envolto em cinta blica; pelo contrrio, faltam-lheos equipamentos com os quais paramentou-se Rodes. Secondu~imos nosso pensamento nesse sentido, no se podeconcluir que o Turco seja to inbil a ponto de deixar parade~ois o que lhe interessa em primeiro lugar, negligenciandoaSSIm~ ataque fci~ e lucrativo para incitar e expor-se aum pengo infrutfero.

    DOGE- No, com toda a certeza, o Turco no est se diri-gindo a Rodes.

    l OFICIAL- Eis que nos chegam mais notcias.

    Entra um Mensageiro.

    MENSAGEIRO- Os otomanos, Vossa Graa e reverendssimosenhor, singrando os mares em rota exata para a ilha deRodes, agregaram-se a uma outra frota.

    1Q SENADOR- A est, bem como eu pensava. Quantas em-barcaes, segundo a sua estimativa?

    MENSAGEIRO- Umas trinta velas; e agora eles redirecionamseus lemes, voltando proas no sentido em que navegavamas popas, voltando na esteira de suas naus, carregando seuspropsitos abertamente, com toda a franqueza, para Chipre.

    - 20-

    O Signior Montano, vosso mais leal e valoroso servidor,vem de sua livre e espontnea vontade informar-vos de taisfatos, e vos pede para ser liberado.DOGE - Ento certo que o objetivo deles Chipre. EMarcus Luccicos, no est na cidade?

    1Q SENADOR- Ele agora est em Florena.

    DOGE - Escreve de nossa parte para ele, com urgnciaurgentssima.12 SENADOR- A vm Brabncio e o valoroso Mouro.

    Entram Brabncio, Otelo, lago, Rodrigo e Oficiais.

    DOGE - Meu valoroso Otelo, devemos imediatamenteusar de seus servios contra o general inimigo otomano. -[Dirigindo-se a Brabncioi No o tinha visto; bem-vindo,meu gentil signior. Sentimos a falta de seu conselho e desua ajuda esta noite.BRABNCIO- E eu senti a falta de vosso conselho e ajuda.Vossa Graa, meu bom senhor, perdoai-me: no foi nem meucargo pblico nem qualquer outro assunto do Estado que eutenha ouvido que me tirou da cama. No nem mesmo obem-estar geral do povo que ocupa meus pensamentos, poisminha dor particular de tal maneira torrencial e de naturezato oprimente que devora e engole outras tristezas ... e, noentanto, continua sendo a mesma dor.

    DOGE- Mas por que, qual o problema?

    BRABNCIO- Minha filha! Ah, minha filha!

    TODOS- Morta?BRABNCIO- Morta para mim. Ela foi enganada, de mimroubada e corrompida por feitios e drogas compradas de

    - 21 -

  • charlates nmades; pois para que a natureza errasse demodo to grotesco, sendo que ela no nem deficientenem cega, nem falta de inteligncia, sem feitiaria isso noteria acontecido.

    DOGE - Quem quer que seja ele, este que, com seu srdidoproceder, sequestrou sua filha de sua prpria pessoa, assimcomo a sequestrou de voc, o cruento livro das leis ser lido~or voc mesmo, letra por letra de cada amarga palavra,interpretadas estas de acordo com o seu prprio entendi-mento; sim, ainda que fosse o meu prprio filho que vocestivesse encarregado de julgar.

    BRABNClO - Humildemente agradeo Vossa Graa. Eisaqui o homem: esse Mouro, que agora, pelo que parece,foi para c trazido por vosso especial mandato em prol dosassuntos de Estado. .

    TODOS - pesarosa para ns tal notcia.

    DOGE - [para Otelo] O que podes dizer em teu favor frentea isso?

    BRABNClO - Nada, pois esses so os fatos.

    OTELO - Meus mui respeitados, distintos e poderosossenhores, mestres meus, mui nobres e reconhecidamentebonssimos, que eu roubei a filha desse idoso senhor amais pura verdade; e verdade, casei-me com ela. A tmos senhores a latitude e longitude de meu crime, em todaa sua extenso, no mais que isso. Rude apresento-me emmeu discurso, e pouco afortunado com as suaves frases~ue acenam paz; isso porque desde que estes meus braostinham o muque dos sete anos de idade at hoje, perdidasapenas umas nove luas, eles empregaram sua fora maispreciosa nos campos de batalha. E sobre muito pouco

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    deste vasto mundo que posso falar ... nada alm daquilo quese refere a feitos de brigas e batalhas. Assim que poucoajudo minha prpria causa quando a defendo eu mesmo.Contudo, auxiliado pela pacincia dos senhores, proponho--me a expor-Ihes minha histria, completa e sem rodeios,da trajetria de um amor: que drogas, quais feitios, queinvocaes mgicas e que magia poderosa ... pois dessetipo de procedimentos que estou sendo acusado ... usei paraseduzir a filha desse homem.

    BRABNClO - Uma donzela que nunca se mostrou atrevida;de esprito to acomodado e calmo que dela coravam osseus prprios impulsos; e ela ... apesar de sua natureza, desua idade, de seu pas de bero, de sua reputao, apesarde tudo ... apaixonar-se por essa coisa que lhe punha medos de olhar! deformado e absolutamente imperfeito ojulgamento que venha a confessar que a perfeio podede tal modo errar contra todas as leis da natureza, e ficaesse julgamento obrigado a encontrar prticas de diablicaastcia para explicar tal atrocidade. Assim que, uma vezmais, eu vos asseguro que foi com certas misturas podero-sas e inoculadas no sangue de minha filha, ou com algumaaguardente adulterada para esse fim, que ele a trabalhou.

    DOGE - Assegurar-nos tal coisa no prova nada. Precisamosde evidncias mais extensas e mais explcitas do que apre-sentam contra ele esses ralos trajos e pobres aparncias deordinria superficialidade.

    1 SENADOR - Mas, Otelo, pronuncia-te: verdade quepor meios indiretos, e fora, subjugaste e envenenasteas afeies dessa jovem donzela? Ou nasceu esse amor apedido dela e atravs de palavras amveis como s ocorremde uma alma para outra?

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  • OTELO - Eu vos suplico, mandai buscar a dama no Sagit-rio, e deixai que ela vos fale de mim diante de seu pai. Seacharem os senhores que, em seu relato, ela me tem por umsujeito srdido, ento que a confiana em mim depositadae o cargo que ocupo em prol dos senhores me sejam toma-dos, e no s isso: que a sentena dos senhores para minhapessoa seja a pena de morte.

    DOGE - Tragam Desdmona.

    OTELO - Alferes, mostra-lhes o caminho; tu s quem melhorconhece o lugar.

    [lago parte, com contnuos.]E at que ela chegue, com a mesma sinceridade com queconfesso aos cus os vcios de meu sangue, do mesmo modojusto relatarei aos ouvidos atentos dos senhores como fuiacolhido no corao 'dessa linda donzela, e ela no meu.

    DOGE - Podes falar, Otelo.

    OTELO - O pai dela me tinha em grande apreo, e seguidasvezes convidava-me sua casa. Sempre me perguntava sobrea histria de minha vida, ano a ano ... as batalhas, os cercos,as venturas por que passei. E eu contava tudo, contando des-de os dias de minha infncia at aquele exato momento emque ele me pedia que lhe relatasse os fatos de minha vida.Assim foi que passei a narrar acasos os mais desastrosos,acidentes tocantes e sangrentos dos campos de batalha. Faleide como consegui escapar por um fio da morte iminente, decomo fui feito prisioneiro pelo insolente inimigo e vendidocomo escravo. Contei sobre minha libertao desse tempoe relatei a histria de minha conduta em minhas viagens.Assim foi que descrevi vastas cavernas e desertos desocu-pados, escabrosos montes de cadveres empilhados, speros

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    rochedos e montanhas cujos picos podiam tocar o cu ...Essa era a minha deixa para falar ... Esse era o processo ... Efalei dos canibais, que se comiam uns aos outros, os antro-pfagos, e falei de homens cujas cabeas crescem abaixodos ombros. Para tudo isso escutar, Desdmona inclinava acabea, seu olhar muito compenetrado. Mas os afazeres dacasa afastavam-na dali e, no entanto, sempre que ela podia,desvencilhava-se deles prontamente para mais uma vezvoltar e, com ouvido vido, devorar meu discurso. Isso euobservei, e aproveitei-me de um momento propcio, e acheios meios decentes e prprios para dela arrancar a splica deum corao sincero e fervoroso: que eu lhe relatasse em de-talhes toda a minha peregrinao por este mundo, histria daqual ela ouvira alguma coisa, sempre entrecortada, e nuncacom a devida ateno. A isso consenti, e no foram poucasas vezes em que a encantei a ponto de faz-Ia chorar, quandolhe narrava algum evento mais sofrido de minha juventude.Tendo contado minha histria, em troca de minhas dores elapresenteou-me com um mundo de suspiros, declarando-me,na verdade, que minha histria era estranha e, ainda, maisque estranha: era digna de pena, maravilhosamente digna depena. Ela agora desejava no t-Ia escutado e, no entanto,desejava tambm que, por vontade dos cus, tivesse sido elaesse homem. Agradeceu-me e pediu que, no caso de ter euum amigo que a amasse, ensinasse a ele como contar minhahistria, e isso bastaria para enamor-Ia. Tendo ela feito talinsinuao, falei eu. Ela me amava pelos perigos por que euhavia passado, e eu a amava por ter ela se compadecido demim. Essa a nica feitiaria que usei. Eis que chega a dama;deixai que ela d seu testemunho.

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    ..

  • Entram Desdmona, lago e Serviais.

    DOGE - Acho que essa histria teria conquistado a minhaprpria filha. Meu bom Brabncio, encare essa questo, jarruinada, pelo seu melhor ngulo: os homens sabem que melhor usar armas, mesmo quebradas, do que as prpriasmos nuas.

    BRABNCIO - Eu lhes suplico, escutem-na falar. Se ela con-fessar que entrou de livre vontade nesse namoro, caia-mea destruio sobre a cabea se minha injuriosa acusaoabater-se sobre o homem! Chega-te mais perto, gentil se-nhorita: dentre todos os aqui presentes, enxergas aquele aquem deves obedincia mais que a qualquer outro?

    DESDMONA - Meu nobre pai, percebo aqui um deverdividido. Ao senhor, devo minha vida e minha educao.Tanto uma como outra ensinam-me a respeit-lo. a senhor soberano em matria de dever, e tenho sido at agora suafilha. Mas eis aqui o meu marido, e, tanta obedincia quantominha me mostrou ao senhor, dando preferncia ao senhore no ao prprio pai, assim venho eu requerer meu direitode professar minha obrigao para com o Mouro, meu amoe senhor.

    BRABNCIO - Que Deus te acompanhe, e adeus. No falomais nada. Por favor, Vossa Graa, adiante com os neg-cios do Estado. Antes tivesse adotado uma criana em vezde t-Ia gerado. Chega-te mais perto, Mouro: entrego a ti,com todo o meu corao, aquela que, embora j a tenhas,com todo o meu corao, eu a manteria afastada de ti. Portua causa, minha joia, minha alma regozija-se por eu no termais filhos, pois tua fuga estaria me ensinando a ser tirano,a desej ar pr -lhes amarras. No falo mais nada, meu Senhor.

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    L

    DOGE - Deixe-me falar como o senhor mesmo falou, e de-cretar uma sentena que, como alavanca ou degrau, podeauxiliar esse casal de apaixonados a granjear sua simpatia.Quando o irreparvel est feito, cessam-se as dores vendo--se que poderia ter sido pior aquilo que no fim confiou-seem um desejo ardente. Lamentar um infortnio que estmorto e enterrado dar o passo certo na direo de atrairpara si novo infortnio. H sempre aquilo que no pode serpreservado quando o Destino tem as rdeas na mo, mas aPacincia encarrega-se de fazer do prejuzo uma zombaria.Aquele que foi roubado, quando sorri, furta algo do ladro,e rouba a si mesmo quem se consome em mgoa intil.

    BRABNCIO - Mas ento, deixe-se o Turco de Chipreenganar-nos ... No estaremos perdendo enquanto souber-mos sorrir! Aceitar bem a sentena de umjuiz aceitar tosomente o cndido conforto que dela se depreende. Masaceitar tanto a sentena quanto a desgraa aceitar quese ter pouca pacincia para pagar por uma queixa legal.Essas sentenas, sejam elas para bajular ou para atormen-tar, poderosas para os dois lados, so equvocas. Todavia,palavras so palavras. At o dia de hoje jamais ouvi dizerque um corao machucado se consertasse pelo ouvido.Humildemente eu vos suplico: tratemos de prosseguir comos assuntos do Estado.

    DOGE - a Turco, com uma poderosssima frota inimiga,dirige-se para Chipre. - Otelo, tu s quem melhor conhe-ce a capacidade de resistncia material do lugar. Emboratenhamos ali um representante oficial nosso, da mais altacompetncia, ainda assim a opinio pblica, soberana aman-te de resultados, concede tua pessoa uma aprovao maisprudente. Deves, portanto, conformar-te: ters de embaar

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  • o brilho de tuas novas fortunas com essa expedio maisdifcil e violenta.

    OTELO O Costume, esse tirano, respeitados senadores,soube transformar para mim o leito de pedra e ao da guerraem colcho de plumas trs vezes joeiradas. Reconheo emmim um entusiasmo natural e expedito que s encontro naadversidade; assim que aceito encarregar-me das presen-tes guerras contra os otomanos. , portanto, com a maiorhumildade que, reverenciando vosso Estado, suplico sejamprovidenciados arranjos convenientes para minha esposa,que lhe sejam devidamente designados endereo e penso,e que tais acomodaes e companhia estejam altura desua estirpe.

    DOGE- Ora, com tua licena, que se acomode ela em casade seu pai!

    BRABNCIO- Isso eu no posso permitir.

    OTELO- Nem eu.

    DESDMONA- Nem eu. Eu no poderia com ele residir, poisisso seria pr na cabea de meu pai pensamentos inquietan-tes, estando eu sob sua vista. Meu caro Doge, Vossa Graa,para minha revelao peo que se empreste um ouvidofavorvel, e deixai-me descobrir em vossa voz o privilgiooficial que vir assistir minha simplicidade.

    DOGE- O que desejas, Desdmona?

    DESDMONA- Que me apaixonei pelo Mouro a ponto de irviver com ele, isto minha total violncia e meu desprezo boa sorte encarregam-se de apregoar ao mundo. Meu co-rao submeteu-se mesmo verdadeira qualidade de meuamo e senhor. Enxerguei a face de meu marido na mente

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    de Otelo, e sua honradez e talentosa coragem consagreiminha alma e meu destino. Assim, meus caros lordes, se euficar para trs, qual traa que se alimenta da paz enquantoele vai para a guerra, os privilgios em funo dos quaissou por ele apaixonada me tero sido destitudos, e tereide suportar o pesaroso nterim de sua estimada ausncia.Deixai-me acompanh-Io.

    OTELO- Garanti-lhe vossa aprovao, senhores; e peoaos cus que sejais testemunha de meu pedido: imploroaprovao no para saciar o palato de meus apetites, tam-pouco para estar de acordo com o ardor do corpo e afetosjuvenis, em prol de minha prpria e distinta satisfao, massim para ser livre e generoso na mente de minha esposa.E que os cus no permitam grassar em vossas caridosasalmas a ideia de que meu papel em vossos magnos e sriosassuntos ficar limitado por estar ela comigo. No, quandoos. brinquedinhos leves e alados do emplumado Cupidocegarem com licencioso embotamento minha capacidadeespeculativa e meus instrumentos de trabalho, a ponto deo esporte de meus prazeres contaminar e corromper meuservio, ento que as donas de casa faam de meu elmouma frigideira e que todo tipo de adversidade abjeta e vilerga-se contra o juzo que fazem de mim!

    DOGE- Se ela fica ou se ela vai, que seja feito como vocsdeterminarem em conversa privada. O assunto agora em ques-to exige pressa, e devemos ter uma resposta com urgncia.

    1 SENADOR- Deves partir ainda esta noite.OTELO- Parto de boa vontade.

    DOGE- s nove da manh encontramo-nos novamenteaqui. - Otelo, deixa para trs um oficial teu, e ele transmitir

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    -

  • a ti nossas ordens, juntamente com tudo o mais que te dizrespeito, coisas inerentes tua profisso e posto.

    OTELO - Se for do agrado de Vossa Graa, deixo meualferes, homem honesto e de confiana. Incumbido deixoele de escoltar minha esposa, juntamente com tudo o maisnecessrio que Vossa Graa achardes que deve a mim serenviado.

    DOGE - Que assim seja. Boa noite a todos. - [Dirigindo--se a Brabncio] E, meu nobre signior, se virtude jamaisfaltasse encantadora beleza, seu genro seria muito maisbelo que negro.

    1 SENADOR - Adieu, bravo Mouro; trata bem de Desdmona.BRABNCIO - Mantm-na sob tuas vistas, Mouro, se quetens olhos para enxergar. Ela enganou o prprio pai, e podevir a fazer o mesmo contigo.

    OTELO - Desdmona fiel, e nisso aposto minha vida!

    [Saem o Doge, Senadores, Oficiais e outros.]

    Meu honesto lago, devo confiar minha Desdmona tuaguarda. Rogo-te, deixa tua mulher servir-lhe de companhia,e depois traze-as na melhor oportunidade. Vem, Desdmo-na, tenho s uma hora de amor, de sentido e significnciamundanos, para contigo ficar. Devemos obedecer ao tempo.

    [Saem Otelo e Desdmona.]

    RODRIGO - lago!

    lAGO - Que me diz voc, nobre corao?

    RODRIGO - O que achas que vou fazer?

    lAGO - Ora, ir para a cama e dormir.

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    RODRIGO - Vou, incontinente, afogar-me.

    lAGO - Se assim o fizer, jamais lhe terei afeto depois disso.Ora, voc, cavalheiro tolo!

    RODRIGO - Tolo seria viver quando viver um tormento.Temos, alm disso, uma prescrio para morrer quando amorte nosso mdico.

    lAGO - Ah, torpe criatura! Olho o mundo faz quatro vezessete anos e, desde que aprendi a distinguir entre um atode caridade e uma injria, jamais encontrei homem quesoubesse como amar a si mesmo. Antes de dizer que meafogo pelo amor de uma galinha-d'angola, troco minhahumanidade com um babuno.

    RODRIGO - Que devo fazer? Confesso que me vergonhosoencontrar-me to apaixonado, mas no est dentro de minhacapacidade retificar tal sentimento.

    lAGO - "No est dentro de minha capacidade", uma ovalEst em ns ser isso ou aquilo outro. Nossos corpos sojardins, dos quais nossas vontades so os jardineiros. Por-tanto, se plantamos urtiga ou semeamos alface, se plantamoshissopo ou capinamos ervas daninhas, se suprimos essejardim com um nico gnero de ervas ou o distramos commuitos, seja para esteriliz-lo com cio ou adub-lo comtrabalho diligente ... ora, o poder e a autoridade reguladoradisso encontra-se em nossas vontades. Se balana de nos-sas vidas faltasse o prato da razo para estabilizar o outro,da sensualidade, o sangue e a baixeza de nossas naturezasacabariam por nos conduzir a concluses absurdamentegrotescas. Mas dispomos da razo para resfriar nossos im-pulsos de paixo e fria, os ardores de nossa carne, nossosdesejos, as luxrias desenfreadas. Vejo, portanto, isso quevoc chama de amor como sendo mero rebento ou enxerto.

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  • RODRlGO - No pode ser.

    lAGO - No mais que um apetite do sangue e uma permissoda vontade. Ora, vamos, seja homem. Afogar-se! Afogam-segatos e filhotes cegos de cachorro. Confessei-me seu amigo,e declaro mais: sinto-me amarrado a seus mritos por fios deperdurvel resistncia. Posso auxili-lo agora melhor e maisdo que nunca. Ponha dinheiro em sua bolsa; parta para essasguerras; esconda o seu rosto com uma barba falsa. Repito:ponha dinheiro em sua bolsa. impossvel que Desdmonacontinue dedicando amor ao Mouro por muito tempo ... po-nha dinheiro em sua bolsa ... ou que ele continue dedicandoamor a ela. O comeo dos dois foi violento, e voc ser tes-temunha de uma separao correspondente ... ponha apenasdinheiro em sua bolsa. Esses mouros so volveis ... enchasua bolsa de dinheiro. A mesma comida que para ele agora to saborosa quanto alfarrobas em breve adquirir gostoto amargo quanto o de coloquntidas. Ela inevitavelmentevai troc-lo por juventude; quando estiver farta do corpo doMouro, descobrir o erro de sua escolha. Portanto, ponhadinheiro em sua bolsa. Se voc precisa mesmo maldizer-seat a morte, faz tal coisa de modo mais delicado que porafogamento. Ganhe o mximo de dinheiro que voc puder.Se a beatice e um frgil juramento entre um brbaro pecadore uma veneziana sutil ao extremo no forem dificeis demaispara minha esperteza e todas as tribos do inferno, dela vocdesfrutar. Portanto, ganhe o mximo de dinheiro que vocpuder. Que se dane o seu afogamento! Est fora de questo.Antes, busque ser enforcado por tramar a prpria alegria emvez de afogar-se e partir sem a sua Desdmona.

    RODRlGO - Prometes ser leal s minhas esperanas se eume confiar nessa expectativa?

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    lAGO - Pode fiar-se em mim. V, ganhe o mximo de dinhei-ro que voc puder. J lhe disse vrias vezes, e repito quantasvezes voc quiser: odeio o Mouro. Meus motivos tm razesno corao; os seus tm tanta razo de ser quanto os meus.Vamos agir em conjunto na nossa vingana contra ele. Sevoc conseguir presente-Io com um par de chifres, estarpresenteando a si mesmo com um prazer e a mim com umdivertimento. H muitos eventos na barriga prenhe das ho-ras, e eles tm de ser paridos. Em frente! Marcha! Arranje oseu dinheiro! Continuaremos esta conversa amanh. Adieu.

    RODRlGO - E, amanh de manh, onde nos encontramos?

    lAGO - Em meu alojamento.

    RODRlGO - Estarei contigo logo cedo.

    lAGO - Agora v. Adeus. Ouviu-me bem, Rodrigo?

    RODRlGO - O que disseste?

    lAGO - Nem pensar em afogamento, ouviu-me bem?

    RODRlGO - Sou outro homem.

    lAGO - Agora v. Adeus. Ponha dinheiro suficiente em suabolsa.

    RODRlGO - Venderei minhas terras.

    [Sai.]

    lAGO - assim que sempre fao um tolo rechear minhabolsa. Pois meu prprio conhecimento adquirido eu pro-fanaria se tempo gastasse com um tal bobalho, a menosque seja para meu divertimento e para lucrar alguma coisa.Tenho dio ao Mouro; e pensamento corrente no exteriorque entre meus lenis ele j exerceu meu ofcio. No seise verdade; contudo, eu, dada a mera suspeita desse tipo

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  • de ofensa, pretendo agir como se dele tivesse certeza. Eleme tem em alta conta; tanto melhor para que meu objetivocontra ele seja atingido. Cassio um homem decente. Agora,deixa-me ver: pegar o lugar dele e coroar minha vontadecom dupla patifaria. Mas, como? Como? Vejamos: apsalgum tempo, maltratar os ouvidos de Otelo, sugerindo queCassio por demais ntimo de sua mulher, que ele tem umafigura e uma disposio meiga suspeitveis ... moldado parafazer das mulheres pessoas falsas. a Mouro de naturezaaberta e generosa: acredita ser honesto todo homem comaparncia de honesto, e deixa-se levar docilmente pelo nariz,assim como o so os asnos. Est concebido! Foi gerado! Oinferno e o breu da noite devero dar luz do mundo essemonstro.

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    SEGUNDO ATO

    CENA I

    Um porto de mar em Chipre. Um espao abertoprximo ao cais.

    Entram Montano e dois Cavalheiros.

    MONTANO - Desde aqui no promontrio, o que conseguesdiscernir em alto-mar?

    1 CAVALHEIRO - Absolutamente nada. a mar est por de-mais agitado. No se consegue, entre o cu e o mar aberto,avistar uma nica vela.

    MONTANO - A mim quer me parecer que o vento est gri-tando com a terra. Rajadas assim poderosas jamais antesaoitaram nossas ameias. Se ele se mostrou assim brutalsobre o mar, que vigas e traves, mesmo de carvalho, quandoverdadeiras montanhas liquefazem-se sobre elas, consegui-riam manter-se encaixadas umas s outras? Que notciasser que vamos receber?

    2 CAVALHEIRO - As de uma disperso da armada turca, poisbasta que o senhor caminhe at a praia, coberta de espuma,e ver que o mar encapelado, com seus vagalhes em fria,parece arremessar-se contra as nuvens. A onda sacudida pelovento, sua crina alta e monstruosa, parece jogar gua sobrea flamejante Ursa Maior e extinguir as defesas da semprefixa Ursa Menor. Nunca tinha eu assistido a tal cena demolestamento contra um oceano raivoso.

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    -

  • MONTANO - Se a armada turca no conseguiu abrigar-seem alguma baa, naufragaram. impossvel que tenhampodido se defender desse vento.

    Entra um terceiro Cavalheiro.

    3 CAVALHEIRO - Novidades, rapazes! Findaram-se nossasguerras. Esta tempestade desesperada tanto golpeou osturcos que interrompe-se por aqui o plano deles. Um navionobre de Veneza avistou atrozes naufrgios e o tormento demaior parte da armada turca.

    MONTANO - Como? verdade?

    3 CAVALHEIRO - O navio encontra-se aqui apartado; ve-rons. Miguel Cssio, tenente do guerreiro mouro Otelo,desembarcou e veio a terra. O Mouro est em alto-mar, comum mandato administrativo aqui para Chipre.

    MONTANO - Isso me alegra, pois o Mouro governadordigno.

    3 CAVALHEIRO - Mas esse mesmo Cssio, embora ele fale desatisfao com a perda dos turcos, mostra o semblante tristee reza em prol da segurana do Mouro, pois a tempestade,feia e violenta, fez com que se separassem.

    MONTANO - Que os cus concedam segurana ao Mouro, poisservi sob suas ordens, e o homem sabe comandar como umverdadeiro soldado. Vamos at a praia, homens, no s paraver a nau que apartou, mas tambm para lanar nossos olharesao mar em busca do bravo Otelo, nem que, de tanto olhar,venhamos a confundir o alto-mar com o alto azul celeste.

    3 CAVALHEIRO - Vamos, faamos isso mesmo, pois a cadaminuto existe a expectativa de mais desembarques.

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    Entra Cssio.

    CSSIO - Fico-Ihes agradecido, aos valentes desta ilhaguerreira que tanta estima tm pelo Mouro! Oh, que os cusa ele providenciem defesa contra os elementos, pois eu operdi num mar perigoso.

    MONTANO - Est ele num bom navio?

    CSSIO - A nau em que ele veleja tem madeiramento ro-busto, e o piloto tem recomendao por muito experiente ereconhecido. Portanto, minhas esperanas, se no confisca-das pela morte, so as mais otimistas possveis.

    [Ouve-se um grito: "Barco vista! Barco vista!".]

    Entra um quarto Cavalheiro.

    CSSIO - Que barulho esse?

    4 CAVALHEIRO - A cidade est deserta. beira do marpostam-se filas e mais filas de gentes, e todos berram "Barco vista!"

    CSSIO - Minhas esperanas dizem-me que o do Gover-nador.

    [Ouvem-se disparas.]

    2 CAVALHEIRO - Disparam tiros de cortesia. Pelo menos um barco amigo.

    CSSIO - Imploro-lhe, senhor, v at l e traga-nos notciasexatas de quem est chegando.

    2 CAVALHEIRO - Farei isso.

    [Sai.]

    MONTANO - Mas, meu bom tenente, est casado o seugeneral?

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  • CSSIO - Afortunadamente. Conquistou ele uma donzelaque combina com perfeio sua aparncia e a fama indes-critvel de sua beleza, beleza essa que supera as sutilezasdos poetas mais inflamados e, nas vestimentas essenciaisda criao, esgota o prprio inventor.

    Entra uma vez mais o segundo Cavalheiro.

    E ento? Quem aportou?

    2 CAVALHEIRO - um tal de lago, alferes do general.

    CSSIO - Viajou ele em condies bastante favorveis eafortunadas. As prprias tempestades, mares de ondasgigantescas e ventos uivantes, os rochedos escarpados ebancos de areia, traidores submersos para atravancar asquilhas ignorantes., como se tivessem alguma noo de be-leza, omitem seus mortais talentos e permitem a passagemsegura da divina Desdmona.

    MONTANO - Quem ela?

    CSSIO - Aquela de quem falo, a comandante de nosso gran-de comandante, zarpou sob a guarda do corajoso lago, cujodesembarque aqui antecipa nossos pensamentos velocida-de de sete dias e sete noites. - Poderoso Jove, s guardiode OteIo, enfuna as velas do barco de meu general com teuprprio e poderoso sopro, de modo que ele possa abenoaresta baa com seu vistoso navio, ofegar amorosamente nosbraos de Desdmona, dar novo lume a nossos espritosapagados e trazer satisfao a toda a ilha de Chipre.

    Entram Desdmona, Emilia, lago, Rodrigo e Serviais.

    Oh! Vejam! Os tesouros do navio encontram-se j na praia.Quanto a vocs, homens de Chipre, deixem-na t-los a seus

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    ps. Saudaes a vs, senhora, e que as graas dos cusenvolvam-na por diante, por detrs, por todos os lados.

    DESDMONA - Fico-lhe agradecida, meu valoroso Cssio.Que notcias tem o senhor para me dar sobre meu esposo?

    CSSIO - Ainda no chegou. Nem eu estou sabendo denada; apenas sei que ele est bem e que muito em breveestar conosco.

    DESDMONA - Oh, mas eu temo por ele ... Como aconteceude se separarem um do outro?

    CSSIO - A enorme contenda entre cus e mares fez comque se afastassem os amigos. Mas ... escutem! Barco vista!

    [Ouve-se um grito: "Barco vista! Barco vista! ", e,depois, disparos.]

    2 CAVALHEIRO - Eles sadam a cidadela. Esse tambm, barco amigo.

    CSSIO - V inteirar-se das notcias.

    [Sai o Cavalheiro.]

    Meu bom alferes, s bem-vindo.

    [Para Emlia:]

    Bem-vinda, minha senhora.

    No permite que isto azede tua pacincia, meu bom lago, ofato de eu estender minhas boas-vindas. minha educaoque me encoraja a esta ousada demonstrao de cortesia.

    [Beija Emlia.]lAGO - Senhor, fossem os lbios dela dar-lhe tanta atenoquanto sua lngua afiada d, tantas vezes, minha pessoa,e o senhor estaria farto.

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  • DESDMONA - Pobre Emlia, quase nem fala.

    lAGO - Pelo contrrio, fala demais! Descubro isso toda vezque me sinto pronto para dormir. Mas, deveras, diante dasenhora, minha lady, garanto-lhe: ela guarda a lngua emseu corao e a censura em pensamento.

    EMLIA - No tens suficientes motivos para assim falar.

    lAGO - Ora, vamos! Ora, vamos! Vocs mulheres souma pintura fora da intimidade do lar, guizos na sala devisitas, gato selvagem na cozinha, santas em suas injrias,diablicas quando se ofendem; dominam o jogo das lidesdomsticas e sabem ser assanhadas na cama.

    DESDMONA - Oh, que vergonha! Arrepende-te de tuaspalavras, caluniador!

    lAGO - So verdadeiras as minhas palavras; quero ser umturco se no assim. Vocs se levantam para brincar edeitam-se para trabalhar.

    EMLIA - Ests proibido de escrever elogios minha pessoa.

    lAGO - Por favor, no o permitas.

    DESDMONA - O que o senhor escreveria sobre mim, setivesse de escrever elogios minha pessoa?

    lAGO - Ah, minha gentil senhora, no me ponha contra aparede. No sou nada alm de crtico.

    DESDMONA - Ora, vamos! Experimente ... Algum foi atao porto?

    lAGO - Sim, madame.

    DESDMONA - (No me sinto feliz; mas posso distrair aquelaque sou fingindo ser outra coisa.) [em voz alta] - Vamos l,como teceria elogios minha pessoa?

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    lAGO - Estou elaborando a loa; mas, na verdade, minhasinvenes saem da minha cachola como sai o visco dofeltro ... arrancam fora miolos e tudo. Mas minha musagestou algo, que agora nasce.

    Se for bela e esperta a mulher,A beleza ela sabe usar.A esperteza vai lhe ditarComo us-Ia, se lhe aprouver.

    DESDMONA - Elogio muito bem feito! E se ela for negrae esperta?

    lAGO - Se for negra e esperta a mulher,Esperteza ela sabe usarPara um homem branco arranjarQue lhe esfregue a tal negra tez.

    DESDMONA - Essa foi pssima.

    EMLIA - E se ela for bela e tola?

    lAGO - No existe mulher belaDe tamanha estupidezQue no possa se gabarDe um herdeiro que ela fez.

    DESDMONA - Esses so ditos antigos, paradoxos bobos parafazer rir aos homens nas cervejarias. Que elogio infeliz temo senhor para aquela que feia e tola?

    lAGO - No h mulher feia o suficienteE burra na medida certaQue no consiga ser to quenteComo a dama mais bela e esperta.

    DESDMONA - Ah, vil ignorncia! O senhor elogia a piordelas com as melhores frases. Mas com que elogio presen-

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  • tearia o senhor uma mulher verdadeiramente digna, umamulher que, com a autoridade de seus mritos, estimulassea genuna garantia da mais pura malcia?

    lAGO - Aquela que foi sempre bela e jamais orgulhosa,Sempre falou o que quis e jamais foi vulgar,A quem jamais faltou dinheiro e nunca disso se gabou,Furtou-se a seus desejos, porm disse "Agora eu posso";Aquela que, injuriada, quando v chegar o dia de

    [sua vinganaConvida o inimigo a ficar e manda para longe seu

    [desgosto;Aquela que em sua sabedoria jamais foi dbil,No trocando cabea de bacalhau por rabo de salmo;Aquela que consegue pensar sem precisar expor suas ideias,Enxerga os pretendentes que a seguem mas no olha para

    [trs;Ela seria gente, se que um dia tal criatura conseguisse ...

    DESDMONA - Conseguisse o qu?

    lAGO - Amamentar tolos e descrever cerveja fraca e cafpequeno.

    DESDMONA - Ora, que concluso mais aleijada e impotente!No escutes o que esse senhor fala, Emlia, muito emboraele seja teu marido. O que me diz, Cssio? No ele umconselheiro profano e licensioso?

    CSSIO - Ele fala sem fazer rodeios, madame. A senhorapode apreci-lo como soldado, no como homem de letras.

    lAGO - (Ele a conduz pela mo. Ah, timo, sussurrem. Sercom uma teia mnima, fininha como essa que apanhareimosca do porte de Cssio. Isso, sorri para ela, procede

    - 42-

    exatamente assim. Vou-te agrilhoar em teus prprios ga-lanteios. Falas a verdade: deveras, isso mesmo. Se tru-ques desse tipo podem de ti arrancar teu posto de tenente,melhor teria sido que no tivesses beijado teus trs dedostantas vezes. Por outro lado, ests agora ensaiado, maisapto a desempenhar o papel de um nobre senhor. Muitobom! Bem beijado! Um autntico gesto galante! issomesmo. Deveras! E, ainda uma vez mais, levas os dedosaos lbios? Quisera eu que fossem eles, para teu prpriobem, cnulas de clister!

    [Ouve-se o som de trombetas.]

    [Em voz alta] O Mouro! Reconheo o som dessa trombeta.

    CSSIO - verdade.

    DESDMONA - Vamos ao encontro dele, vamos receb-Io.

    CSSIO - Olhem, l vem ele!

    Entram Otelo e Serviais.

    OTELO - Ah, minha linda guerreira!

    DESDMONA - Meu querido Otelo!

    OTELO - Minha alma encanta-se tanto quanto eu fico satis-feito em ver-te aqui, diante de meus olhos. Alegria da minhavida! Se depois de cada tempestade a bonana esta, quesoprem os ventos, e que eles soprem sem medo de despertara morte! Que a nau balouante escale montes de mares daaltura do Olimpo, s para depois mergulhar mais uma vez,to profundo como a distncia entre cu e inferno! Se agorafosse o momento de morrer, no posso imaginar momentomais propcio, pois minha alma inunda-se de uma satisfao

    - 43 -

  • to absoluta que, receio, nenhum prazer igual tem chancede suceder-se nesse grande desconhecido que o futuro.

    DESDMONA - Que os cus no permitam tal coisa. Quenossos sentimentos e prazeres cresam sempre e mais, medida que vo se somando os dias de nossas vidas!

    OTELO - Amm, doce fora de minha vida! Nem tenhopalavras, tamanha a satisfao que sinto. Meu discursoacaba aqui. A alegria demais.

    [Beijam-se. ]

    E este, e mais este: que sejam estas as piores discrdiasentre nossos coraes.

    lAGO - (Oh, esto vocs os dois bem sintonizados agora!Mas eu me encarregarei de afrouxar as cordas que produzemessa harmonia, do modo mais honesto de que sou capaz.)

    OTELO - Vamos, para o castelo. - Novidades, meus amigos:acabaram-se nossas guerras; os turcos naufragaram. - Comotem passado o meu velho conhecido desta ilha? - Querida,tu vais ser muito benquista em Chipre; eu mesmo encontreientre eles muito amor. Ah, minha doce Desdmona, eu ficotagarelando sem coerncia e falo de coisas bobas, para mi-nha prpria satisfao. - Peo-te um favor, meu bom lago:vai at a baa e traz a terra meus cofres. Traze tambm ocomandante para a cidadela; ele um bom homem, e, porvaloroso, merece todo o nosso respeito. - Vamos, Desd-mona, e deixa-me dizer-te mais uma vez o quanto tua pre-sena bem recebida em Chipre.

    [Todos, menos lago e Rodrigo, partem.]

    - 44-

    lAGO - Encontre-me daqui a pouco no ancoradouro. Apro-xime-se. Se voc valente ... e, como dizem, homens des-prezveis, quando apaixonados, acrescentam uma nobrezaa suas caractersticas, mais do que lhes natural ... escute--me. Esta noite, o tenente fica de vigia na sala da guarda.Primeiro, preciso que voc saiba o seguinte: Desdmonaest flagrantemente apaixonada por ele.

    RODRIGO - Por ele! Ora, no possvel.

    lAGO - Faz assim com o seu dedo, Rodrigo, e deixe sua almaser orientada. Preste-me ateno: lembra com que violnciaela comeou a amar o Mouro? S para vangloriar-se, paracontar suas mentiras fantsticas. Ser que ela ainda vaiam-Io por sua tagarelice? ... No permita ao seu discretocorao pensar tal coisa. O olhar dela deve ser alimentado;e que deleite pode lhe advir de encarar o demnio? Quandoo sangue tiver embotado com o ato da diverso, dever ha-ver ... para uma vez mais inflam-lo e garantir saciedadeum renovado apetite ... amorosidade na fisionomia, umasimpatia que vem com a idade, gestos educados e bonite-zas. Ou seja, tudo que o Mouro no tem. Assim sendo, porfalta dessas convenincias necessrias, a delicada ternurade Desdmona terminar por encontrar-se vilipendiada,sentir nsias de vomitar aquilo que engoliu, ter aversoao Mouro e vai ach-lo abominvel. A prpria natureza vaise encarregar de orient-Ia nesse sentido e a impelir parauma segunda escolha. Agora, meu senhor, isso garantido... j que essa uma assero bvia e nem um pouco for-ada ... quem encontra-se em posio mais eminente naescada para esse afortunado destino do que Cssio? ... umpatife bastante volvel. To consciencioso que reveste-se

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  • de uma aparncia humana e de uma forma civilizada que para melhor satisfazer seus afetos torpes, os mais secre-tos e lascivos. Ora, ningum est mais eminente que ele,ningum ... um patife sutil, escorregadio; um tipo com faropara as boas oportunidades, com um olho para imaginar efabricar vantagens, muito embora a real vantagem jamaistenha se apresentado; um patife diablico! Alm disso, opatife bonito, jovem e apresenta-se munido de todos osrequisitos que as cabeas imaturas e desmioladas procuramem algum; um rematado patife, pestilento; e a mulher jdeu com os olhos nele.

    RODRIGO - No posso acreditar algo assim dela; um serpleno de disposies as mais abenoadas.

    lAGO - Abenoadas, uma ova! O vinho que ela bebe feitode uvas. Fosse ela' abenoada, jamais teria se apaixonadopelo Mouro. um belo pastel de vento abenoado, issosim! No viu como ela alisava a palma da mo dele? Nolhe chamou a ateno uma tal coisa?

    RODRIGO - Sim, isso sim; mas foi pura cortesia.

    lAGO - Libertinagem, por esta mo! Indicador e prlogoobscuro de uma histria de luxria e pensamentos impuros.Aproximaram tanto os lbios um do outro que seus hlitoschegaram a se abraar ... pensamentos infames, Rodrigo!Quando essas reciprocidades colocam as coisas em ordemde batalha, imediatamente atrs vm a ordem de comandoe o principal exerccio de guerra: o enfrentamento corpoa corpo. Pois sim, pura cortesia! Meu senhor, deixe-meorient-lo. Trouxe voc comigo desde Veneza. Fique devigia esta noite; quanto ordem para tal, encarrego-me decoloc-lo de guarda. Cssio no o conhece. Eu no estarei

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    muito longe de vocs. Encontre alguma oportunidade parairritar Cssio, seja falando alto demais ou burlando suadisciplina, ou de qualquer outro jeito que voc quiser e queo tempo venha determinar favoravelmente.

    RODRIGO - Est bem.

    lAGO - Meu senhor, ele impulsivo e precipita-se quandoencolerizado, e pode acontecer de querer golpear-te ...provoque-o de modo que ele faa isso mesmo. Pois serexatamente esse o pretexto que usarei para que os cipriotasse amotinem, e a desafeio deles s poder ser mitigadacom a destituio de Cssio. Assim, gozar voc de umajornada mais curta at os seus desejos atravs de meios queeu vier a promover, e ter voc o impedimento removido domodo mais lucrativo, remoo esta sem a qual no haveriaesperanas para nossa prosperidade.

    RODRIGO - Farei como dizes, se puderes arranjar para issoa oportunidade.

    lAGO - Essa eu lhe garanto que arranjo. Encontre-me daquia pouco na cidadela. Devo trazer do navio a bagagem doMouro. Adeus.

    RODRIGO - Adieu.

    [Sai.]

    lAGO - Que Cssio a ama, nisso eu bem acredito. Que elao ame, bem possvel, e tambm crvel. O Mouro, emboraeu no o suporte, homem de natureza nobre, dedicada,constante; e ouso pensar que ele provar ser para Desd-mona um precioso marido. Agora, amar eu tambm a amo,no por um puro desejo carnal ... muito embora por vezeseu me veja cometendo um to grande pecado ... mas par-

    - 47 -

  • cialmente porque sou levado a alimentar minha vingana.Pois, suspeitando eu que o lascivo Mouro tenha pulado naminha cama, tal pensamento corri, como se fosse mineralvenenoso, minhas entranhas. E nada poder ou conseguiraliviar minha alma at que eu esteja quites com ele, esposapor esposa. Em falhando esse plano, sempre posso, pelomenos, criar no Mouro um cime to forte a ponto de obom senso no poder remedi-lo. Para tanto, a coisa a serfeita ... se esse pobre rebotalho de Veneza, que trago pelacoleira para essa rpida caada, aguentar a incitao ... tereiMiguel Cssio preso pela cintura. Aos ouvidos do Mouro,ofenderei Cssio em seu uniforme de oficial ... pois temo queCssio tambm tenha usado minha touca de dormir ... fareicom que o Mouro me agradea, me aprecie e me gratifiquepor fazer dele um ilustre asno, e isso tudo trapaceando contrasua paz e quietude, levando-o loucura. Ela est bem aqui,porm ainda confusa: a mais pura face da canalhice, jamaisvista at que seja usada.

    [Sai.]

    CENA 11

    Uma rua.

    Entra um Arauto com uma proclamao; opovo o segue.

    ARAUTO - o desejo de Otelo, nosso nobre e valentegeneral, que, dadas certas notcias ora chegadas sobre ocompleto desbaratamento da armada turca, larguem todos

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    o trabalho e faam deste um dia festivo. Dancem, acendamfogueiras, cada homem divertindo-se e folgando conformelhe ditam os seus prazeres. Alm dessas to vantajosasnovidades, celebra-se hoje o casamento de nosso general.Seu regozijo tamanho que determinou fosse proclamadaa boda. As dependncias do castelo estaro franqueadas aopovo, e todos podero banquetear-se livremente, desde apresente hora, cinco da tarde, at que o sino tenha tocadoas onze horas da noite.

    CENA 111

    Um salo da cidadela.

    Entram ateio, Desdmona, Cssio e Serviais.

    OTELO - Meu bom Miguel, fique voc de vigia na rondadesta noite. Vamos ns mesmos ensinar a todos quando chegado o momento honroso de parar, para que no seperca a prudncia.

    CSSIO - lago j tem suas instrues quanto ao que fazer.Contudo, verificarei pessoalmente que tudo esteja emordem.

    OTELO - lago profundamente honesto. Miguel, boa noite.Amanh, o mais cedo da manh, quero conversar comvoc. - Vem, minha querida. A aquisio feita, certo quese seguiro os frutos, mas esse ganho ainda est por virentre ns dois. - Boa noite.

    [ateio, Desdmona e Serviais retiram-se.]

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  • Entra lago.

    CSSIO - Bem-vindo, lago. Devemos ir para a ronda.

    lAGO - No agora j, tenente; ainda nem so dez horas.Nosso general dispensou-nos assim to cedo pelo amor desua Desdmona, o que, por sinal, no tem nada de censu-rvel, posto que ele ainda no brincou na noite com ela, eela diverso para Jove.CSSIO - Ela uma dama extremamente refinada.

    lAGO - E, garanto-lhe, cheia de truques amorosos.

    CSSIO - Realmente, ela uma criatura estimulante e de-

    licada.lAGO - Que olhar ela tem! A mim quer me parecer que seuolhar conversa, prov9cativo.CSSIO - Um olhar convidativo; e, no entanto, a mim querme parecer que absolutamente modesto.

    lAGO - E, quando ela fala, no a voz dela um sinal dealerta para o amor?CSSIO - Deveras, ela a perfeio em pessoa.

    lAGO - Bem, felicidade aos lenis do casal! Venha, tenente,tenho uma garrafa de vinho. E l fora esto um punhado degalantes cipriotas que de bom grado tomariam uma dose sade do negro Otelo.CSSIO - No esta noite, meu bom lago. Minha cabea muito fraca e desastrosa para a bebida. Eu bem que gostariaque as cortesias sociais inventassem algum outro costumepara a diverso.lAGO - Ah, mas eles so nossos amigos ... no mais que umcopo. Beberei por voc.

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    CSSIO - No bebi mais que um copo esta noite, e tambmess~ foi h~bilmente diludo, e olha s que confuso se pro-dUZIUaqui. Tenho a infelicidade de sofrer dessa enfermi-dade, e no ouso sobrecarregar minha fraqueza com aindamais vinho.

    lAGO - Ora, homem! Esta uma noite para folgar. Os ga-lantes assim o desejam.

    CSSIO - Onde esto eles?

    lAGO - Aqui, porta. Peo-lhe: convide-os a entrar.

    CSSIO - Farei isso; mas isso no me agrada.

    [Sai.]

    lAGO - Se eu conseguir empurrar-lhe s mais um copo, como que ele j bebeu esta noite, terei ele a ponto de puxar bri-ga e insultar o primeiro que lhe cruzar frente, bem comoo cachorro de minha mulher. Agora, aquele tolo, doentioRodrigo, a quem o amor conseguiu virar do avesso, sadede Desdmona bebeu esta noite inumerveis copos, e coposfundos como cantis. E ele deve fazer a ronda. Trs outros. . '

    cipnotas, espritos nobres e inflamados, que mantm suasreputaes a uma distncia cautelosa, sendo eles os prprioselementos desta ilha guerreira, eu lhes confundi a cabeaesta noite, com copos transbordantes. E eles tambm devemfazer a ronda. Agora, no meio desse bando de bbados colo-co Cssio agindo de alguma forma que possa ofender a ilha.Mas, eis que chegam. Se as consequncias no aprovam omeu sonho, meu barco veleja com toda a liberdade, tantocom vento quanto com a corrente.

    Volta Cssio; com ele, chegam Montano e os Cavalheiros'os Serviais seguem-nos, carregando vinho. '

    - 51 -

  • rCSSIO - Por Deus! Eles j me serviram de um copaocheio at a borda!MONTANO - A bem da verdade, um copinho de nada; porminha palavra de soldado, no foi mais que um quartilho.

    lAGO - Ol! Mais vinho aqui![canta] E vamos bater os canecos, necos, necos;

    E vamos bater os canecos, necos;O soldado um homemE a vida de um homem, s um trecoEnto vamos entornar canecos

    Vinho aqui para ns, rapazes!

    CSSIO - Por Deus, que msica fantstica!

    lAGO - Aprendi na Inglaterra, onde, de fato, eles aguentambem a bebida. Os dinamarqueses, os alemes, e mesmo osholandeses, com suas barrigas balofas ... Bebida, al! ... sonada, comparados com os ingleses.

    CSSIO - Os ingleses so assim to refinados ao beber?

    lAGO - Ora, um ingls me bebe com facilidade o que faz umdinamarqus desmaiar de bbado. Nem sua para derrubarum alemo no copo. O holands j est vomitando antes deencherem ainda outra vez o caneco.

    CSSIO - sade do nosso general!

    MONTANO - Sou totalmente a favor desse brinde, tenente,e bebo sade do general.

    lAGO - Oh, doce Inglaterra![canta] Ao rei Estvo, nobre ingls ilustrssimo,

    Um xelim mais parece a ele carssimo;Quase lhe custa o reino um par de culotes;Xinga o alfaiate: vil, velhaco, velhote.

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    Mas era gente mui famosa e capaz;Mas o orgulho quem empurra pra trsEste pas; voc no passa de um verme;Pe esse seu manto roto sobre a epiderme.

    Mais vinho, al!

    CSSIO - Puxa! Essa msica ainda mais extica que aoutra.

    lAGO - Quer ouvi-Ia de novo?

    CSSIO - No. Considero no merecedor de sua posio ohomem que faz essas coisas. Mas, afinal, Deus est acimade tudo; e h almas que devem ser salvas, e h almas queno merecem a salvao.

    lAGO - L isso verdade, meu bom tenente.

    CSSIO - De minha parte ... sem nenhuma pretenso deofender o general, nem qualquer homem de integridade ...espero salvar-me.

    lAGO - E eu tambm espero salvar-me, tenente.

    CSSIO - Ah, mas, com a devida licena, no antes de mim;o tenente deve poder salvar-se antes do alferes. Agora, chegadessa conversa. O dever nos chama. E Deus que perdoe osnossos pecados! Cavalheiros, vamos s nossas obrigaes.No pensem, cavalheiros, que estou bbado. Este aqui meualferes. Este aqui meu brao direito, e este aqui meu braoesquerdo. No estou bbado agora. Consigo ficar de p semperder o equilbrio e consigo falar sem enrolar a lngua.

    TODOS - Perfeitamente!

    CSSIO - Ora, pois muito bem; vocs no precisam entopensar que estou bbado.

    [Sai.]

    - 53 -

  • MONTANO - Senhores, para o terrao onde se montam asarmas. Vamos tratar de montar a guarda.

    lAGO - O senhor v esse sujeito que retirou-se antes de ns; um soldado que no faria feio ao lado de Csar; homemtalhado para comandar. E, no entanto, veja o vcio que elecarrega ... no deixa de ser um justo equincio para suasvirtudes, estas to grandes quanto aquele. uma pena. Temoque a confiana que Otelo deposita nele, em algum momentoinadequado de sua enfermidade, venha a sacudir esta ilha.

    MONTANO - Mas ele fica seguidamente assim?

    lAGO - Assim sempre o prlogo do seu sono. Ele conseguemontar guarda por duas voltas completas do relgio, se abebida no lhe vem o bero embalar.

    MONTANO - Seria bom o general estar a par disso. Talvezele no perceba, ou seu corao de bondade tem em grandeapreo as virtudes aparentes em Cssio e prefere ignorarseus pecados. No verdade?

    Entra Rodrigo.

    lAGO - (Ora, vamos, Rodrigo! Peo-lhe, v atrs do tenente;agora).

    [Rodrigo sai.]

    MONTANO - E uma grande pena que o nobre Mouro ponhaem risco um posto dessa importncia, o de seu assistentemais direto, com algum que sofre de enfermidade incul-cada. Seria to somente honesta a atitude de contar isso aoMouro.

    lAGO - Mas no eu. Por esta bela ilha, no eu! Tenho muitaamizade a Cssio, e faria tudo o que fosse necessrio paracur-lo desse mal.

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    [Ouve-se um grito que vem de dentro: "Socorro!Socorro! n.]

    Mas ... oua! Que barulho esse?

    Entram de novo Cssio e Rodrigo, aquele perseguindo este.

    CSSIO - Pelas feridas de Cristo, seu vagabundo, seu patife!

    MONTANO - Qual o problema, tenente?

    CSSIO - Um velhaco quer me ensinar a cumprir com o meudever! Dou uma sova nele e o enfio numa dessas garrafascom vime tranado.

    RODRIGO - D-me uma sova, pois sim!

    CSSIO - Ainda ficas tagarelando, vagabundo?

    [Bate em Rodrigo.]

    MONTANO - Mas no, meu bom tenente! Peo-lhe, senhor,contenha sua mo.

    CSSIO - Solte-me, senhor, ou amasso-lhe a cachola.

    MONTANO - Vamos, vamos, o senhor est bbado.

    CSSIO - Bbado!

    [Os dois brigam.]

    lAGO - (V embora, o que lhe digo. V saindo e grite"Motim!" para que todos lhe ouam).

    [Rodrigo sai.]

    [Em voz alta] - Mas no, meu bom tenente! - Cavalheiros,lembrem da palavra de Deus! - Ajuda aqui, al! ... - tenente... senhor ... - Montano ... senhor .... - Ajuda aqui, senhores!... Uma bela guarda temos, deveras!

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  • [Ouve-se um sino tocando.]

    Quem a criatura que se pe a tocar o sino? ...Diablo, al!Vo acordar a cidade. - Tenente, lembre-se da palavra deDeus, contenha-se. Isso vai envergonh-Io para sempre.

    Entram de novo Otelo e Serviais.

    OTELO - Qual o problema aqui?MONTANO - Pelas feridas de Cristo, estou sangrando. Estouferido de morte. Ele deve morrer.

    [Investindo mais uma vez contra Cssio.]

    OTELO - Parem, por suas vidas!lAGO - Parem, al! - Tenente ... senhor ... - Montano ...cavalheiros ... Esqueceram todo o senso de decoro? Lem-brem-se de seus cargos e seus deveres. O general est lhesdirigindo a palavra. Parem! Parem, que vergonha!

    OTELO - Ora, mas como foi isso, al! De onde comeou essacoisa toda? Transformamo-nos em turcos e a ns mesmosfazemos aquilo que os cus vetaram aos otomanos? Pelopudor cristo, encerrem essa briga de brbaros. O prximoque se mexer para alimentar a prpria raiva um sujeitoque no tem amor vida, pois morrer ao menor gesto.Silenciem esse sino medonho; ele faz a ilha arrepiar-se,afastando-a de seus modos convencionais. Qual o proble-ma, senhores? - Honesto lago, tu, que me pareces mortode to mortificado, conta-me quem deu incio a essa briga.Pelo amor que tens por mim, ordeno-te.

    lAGO - Eu no sei. Todos amigos at agora, ainda agori-nha, respeitosos uns com os outros, em bons termos, comorecm-casados despindo-se para a cama; e ento, ainda

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    agorinha, como se algum planeta tivesse ensandecido oshomens, as espadas estavam desembainhadas, e investiameles, um contra o peito do outro, em sangrenta oposio.Nem tenho como contar o comeo dessa desavena imper-tinente. Preferia eu em glorioso combate ter perdido essaspernas que aqui me trouxeram para tomar parte nessa cena!

    OTELO - Como que se explica, Miguel, teres te esquecidode ti mesmo?

    CSSIO - Suplico-lhe, perdoe-me. Nem tenho palavras.

    OTELO - Digno Montano, o senhor sempre teve o costumeda civilidade. Em jovem, era tranquilo e circunspecto, e omundo o reconhecia por isso, e o seu nome pronunciadocom respeito por lbios divulgadores de sbias opinies.Qual o problema, que o senhor desfaz sua reputao dessemodo e joga fora o rico conceito de sua pessoa em troca dafama de brigo noturno? Responda-me.

    MONTANO - Digno Otelo, o ferimento que sofri profundo.Seu oficial, lago, pode inform-Io ... enquanto eu economizoo discurso, pois falar agora me di ... inform-lo de tudo oquanto sei. No sei de absolutamente nada de minha parte,dito ou feito incorretamente esta noite ... a no ser que oamor-prprio seja por vezes um vcio, e defender-nos sejaum pecado quando a violncia investe contra ns.

    OTELO - Agora, pelos cus, meu sangue comea a coman-dar minhas orientaes mais sensatas, e a paixo, tendo meobscurecido o discernimento, ensaia-se para conduzir-mepelo caminho. Se eu fizer um nico movimento, nem queseja o simples erguer deste brao, o melhor dentre vocsterminar por enterrar-se sob minha repreenso. Deem-mea conhecer como essa abominvel rixa comeou, quem a

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  • ela deu incio, e aquele que se provar culpado de tal ofensa,ainda que fosse meu duplo, nascidos ele e eu do mesmo par-to, ele a mim ter perdido. Se tem cabimento! Numa cidadeem tempos de guerra, ainda inquieta, os coraes do povotransbordando de medo, e vocs tratando de querelas priva-das e domsticas, noite, justo no local de montar guardae prover segurana! monstruoso. lago, quem comeou?

    MONTANO - Se, atrelado por parcialidade ou aliado emfuno de teu posto, pronunciares algo mais ou algo menosque a verdade, no s soldado.lAGO - No me toque to de perto. Prefiro ter esta minhalngua arrancada de minha boca a t-Ia ofendendo MiguelCssio. E, no entanto, estou convencido de que, falandoa verdade, no o estarei injustiando. Deu-se tudo assim,general: estando Montano e eu engajados em uma conversa,eis que aparece um sujeito gritando por socorro, e Cssioem perseguio, espada em punho, e empunhada com deter-minao, ele pronto a us-Ia contra seu perseguido. Senhor,esse cavalheiro corta o caminho de Cssio e suplica-lhe quedetenha-se. Quanto a mim, sa no encalo do sujeito que gri-tava, tentando evitar que seu clamor ... como depois de fatoaconteceu ... assustasse a cidade inteira. Ele, veloz em suaspassadas, frustrou meu propsito, e eu voltei o mais rpidopossvel, pois j ouvia o tinir de espadas encontrando-se ea voz de Cssio gritando imprecaes, imprecaes essasque at a noite de hoje jamais ouvi por ele pronunciadas.Quando aqui cheguei ... pois isso deu-se num curto espaode tempo ... encontrei-os engalfinhados em golpes e estoca-das, tal como estavam quando o senhor mesmo separou-os.Mais sobre essa questo no saberia relatar. Mas, homem homem. Os melhores dentre ns s vezes perdem a cabe-

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    a. Embora Cssio tenha injuriado de leve o outro, comocostumam fazer os homens acometidos de fria, quandoento investem contra aqueles que mais lhes querem bem,por outro lado, Cssio, com certeza, acredito eu, receberade seu perseguido alguma estranha afronta, dessas que nose deixa passar em branco, pois pacincia tem limite.

    OTELO - Eu sei, lago, que a honestidade e o afeto mitigamdentro de ti essa questo, tomando-a amena para Cssio.Cssio, tenho por ti enorme afeio, mas nunca mais sersmeu oficial.

    Entra de novo Desdmona, acompanhada de serviais.

    Olhem se meu gentil amor no foi acordado! - Farei de tium exemplo.

    DESDMONA - Qual o problema?

    OTELO - Est tudo bem, minha querida. Volta para a cama. -Senhor; vejo que est ferido; eu mesmo serei o seu cirurgio.

    [Levam Montano embora.]

    lago, inspeciona cuidadosamente a cidade, e aquieta todosquantos essa briga infame perturbou. - Vem, Desdmona.Isto a vida de soldados: ter seus sonos reparadores inter-rompidos por rivalidades.

    [Todos retiram-se, menos lago e Cssio.]

    lAGO - Que foi, tenente, est ferido?

    CSSIO - Sim, mas nisto no h cirurgia que d jeito.

    lAGO - Que os cus no permitam!

    CSSIO - Reputao, reputao, reputao! Ah, perdi minhareputao! Perdi a nica parte imortal do meu ser, e o queresta bestial. Minha reputao, lago, minha reputao!

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  • -lAGO - Por minha honestidade, pensei que voc haviarecebido alguma estocada no corpo. Faz mais sentidopreocupar-se com isso que com a reputao. Reputao uma imposio tremendamente falsa e intil, muitas vezesangariada sem mrito e perdida sem um real motivo. Vocno perdeu reputao nenhuma, a menos que se repute a simesmo um perdedor. Ora, homem! H maneiras de recu-perar o general. Ele apenas o destituiu de seu cargo numacesso de raiva, uma punio mais em prol de uma polticae no tanto por dolo; algo assim como algum espancar seuinofensivo cozinho para amedrontar um majestoso leo.Apele uma vez mais ao general, e ele ser seu.

    CSSIO - Prefiro apelar a ele para que me despreze; jamaisdecepcionaria to bom comandante com um oficial toleviano, to bbado e to indiscreto. Bbado! Tagarelandoigual a um papagaio! E altercando-se! E bravateando! Epraguejando! E tecendo discursos empolados com a pr-pria sombra! - Ah, tu, esprito invisvel do vinho, se notens um nome pelo qual podes te tomar conhecido, vamoschamar-te de demnio!

    lAGO - Quem era aquele a quem voc perseguia com suaespada? O que tinha ele feito contra voc?

    CSSIO - No sei.

    lAGO - Ser possvel?

    CSSIO - Lembro-me de um emaranhado de coisas, masnada distintamente; uma briga, mas no suas razes. Oh, epensar que os homens pem um inimigo em suas bocas paralhes roubar os crebros! E pensar que, com alegria, prazer,deleite e aplauso, transformamo-nos em bestas!

    - 60-

    lAGO - Ora, mas voc est agora muito bem. Como recobroua lucidez to rpido?

    CSSIO - Aprouve ao demnio embriaguez ceder seu lugarao demnio ira. As imperfeies de um abriram-me o ca-minho para o outro, tudo para que eu chegasse a verdadei-ramente desprezar-me.

    lAGO - Ora, vamos, voc um moralista por demais severo.Considerando-se que o momento, a localizao e as con-dies deste pas so o que so, de todo o meu corao eupreferia que isso no tivesse ocorrido; porm, j que acon-teceu o que aconteceu, apare as arestas em proveito prprio.

    CSSIO - Vou pedir-lhe meu posto de volta. Ele vai me res-ponder que sou um bbado! Tivesse eu tantas bocas quantastem Hidra, uma tal resposta calaria todas elas. Imagina: sernuma hora um homem sensato, dali a pouco um tolo, paramais adiante ser um animal! muito estranho! Cada copoem excesso amaldioado, e um de seus ingredientes oprprio diabo.

    lAGO - Ora, vamos, o vinho uma criatura boa e conhecidase for bem usado. Deixe de se exclamar contra ele! E, meubom tenente, creio que voc pensa que eu lhe tenho amizade.

    CSSIO - Disso tive provas, senhor. Estando eu bbado!

    lAGO - Voc e qualquer outro homem que esteja vivo; podeacontecer de ficar bbado alguma vez. Vou lhe dizer o quedeve fazer. A esposa de nosso general agora o general. Issoeu posso falar com respeito a essa questo, pois ele tem sededicado e tem se entregado contemplao, ao exame e denominao das partes e graas de sua amada. V at elae confesse-se de corao aberto; importune-a para ajud-Ioa conseguir seu posto de volta. Ela de temperamento to

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  • liberal, generoso, perspicaz e abenoado que considera umvcio em sua bondade no fazer mais do que lhe requisi-tado. Para essa articulao quebrada entre voc e o maridodela, rogue-lhe por uma tala, e aposto todas as minhascoisas mais preciosas como essa fratura de sua afeio irse consolidar, e ainda mais forte que antes.

    CSSIO - um bom conselho, esse que me ds.

    lAGO - A isso eu protesto, com a sinceridade de um amigoe generosa honestidade.CSSIO - Meu pensamento deu-se livremente. Mas, logo aoamanhecer, estarei implorando virtuosa Desdmona queinterceda por mim. Ficarei desesperado com meu destinose o destino me der as costas agora.lAGO - Voc est certo. Boa noite, tenente. Preciso fazera ronda.CSSIO - Boa noite, honesto lago.

    [Sai.]

    lAGO - E quem se atrever a dizer que meu papel o devilo quando esse conselho dou de graa e de corao, umconselho bastante plausvel, e, na verdade, o caminho parareconquistar o Mouro? Pois muito fcil para a graciosa,obsequiosa Desdmona empenhar-se em qualquer pedidohonesto. Ela de constituio que frutifica como os elemen-tos da natureza. E assim, para ela obter algo do Mouro, mes-mo que fosse ele renunciar ao prprio batismo, s garantiase smbolos de seus pecados redimidos, tem ele sua alma toagrilhoada ao amor dela que ela pode fazer, desfazer, inven-tar o que lhe aprouver, mesmo brincando de deus os apetitesdela com as enfraquecidas faculdades dele. Como, ento,

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    posso eu ser um vilo ao aconselhar Cssio nesse caminhoparalelo, o mais curto para o seu prprio bem? Divindadesdo inferno! Quando o desejo dos demnios vestir os maisnegros pecados, eles insinuam-se primeiro com vestimen-tas angelicais, como eu fao agora. Enquanto esse honestootrio importuna Desdmona com seus pedidos para queela conserte seu destino, e, enquanto ela, por ele, imploraclemncia ao Mouro, eu estarei vertendo esta pestilncianos ouvidos de nosso general: que ela o quer de novo nasboas graas de seu superior para apaziguar a luxria de seucorpo. E, quanto mais ela se esforar por ajud-Io, ela estarperdendo crdito junto ao esposo. Assim transformarei eu avirtude dela em piche, e, da prpria bondade de Desdmona,tecerei a malha que os enredar a todos.

    Entra Rodrigo.

    Ora, pois, Rodrigo!

    RODRIGO - Sigo por aqui na perseguio, no como umsabujo que participa da caa, mas como mais um a ganir.Estou j praticamente sem dinheiro. Esta noite fui esbor-doado com todos os requintes, e penso que o resultadoser contentar-me com ter angariado tanta experinciacom minhas dores e, assim, sem nenhum dinheiro mas umpouco mais sbio, retorno a Veneza.

    lAGO - Como so pobres os que carecem de pacincia! Queferida alguma vez cicatrizou que no fosse por etapas? Vocsabe que trabalhamos com a esperteza, e no com feitiaria,e esperteza depende de um tempo dilatrio. No esto ascoisas encaminhando-se bem? Cssio espancou-lhe, e voc,por esse pequeno ferimento, teve Cssio demitido de suafuno de confiana. Embora outras coisas vicejem, lindas,

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  • ao sol, os frutos dos brotos que primeiro floresceram seroos primeiros a amadurecer. Por ora, d-se por satisfeito.Mas, pela Santa Missa, amanhece o dia! Prazer e ao fazemas horas parecer curtas. Retire-se; v para o seu alojamento.Embora, estou lhe dizendo. Mais adiante, voc saber mais.Agora no, v de uma vez.

    [Rodrigo sai.]

    Duas coisas a fazer: minha esposa deve interceder porCssio junto sua patroa ... encarrego-me eu de instig-Iaa isso ... ao mesmo tempo em que chamo o Mouro partee fao-o entrar em cena justamente no instante em que elepode encontrar Cssio solicitando os favores de sua mulher.Sim, esse o caminho! Que o estratagema no esfrie, nempor demora nem por falta de ao.

    [SaL]

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    TERCEIRO ATO

    CENA IA cidadela. Do lado de fora do alojamento de Otelo.

    Entram Cssio e alguns msicos.

    CSSIO - Senhores, toquem sua msica aqui. Saberei retri-buir o seu empenho. Algo que seja breve. E desejem umbom dia ao general.

    [Msica.]

    Entra o Bobo.

    BOBO - Ora, senhores, seus instrumentos por um acasoestiveram em Npoles, para falarem assim pelo nariz?

    1Q MSICO - O que diz, senhor? O que diz?

    BOBO - Eu pergunto: so esses instrumentos de sopro?

    1Q MSICO - Mas sim, so de sopro, realmente.

    BOBO - Ah, mas ento tem coisas no ar, mais do que sofro.

    1Q MSICO - Que coisas, senhor, h no ar mais do que sopro?

    BOBO - Tudo, senhor, de interessante e surpreendente, quenos sopram aos ouvidos. Mas, senhores, vejam, dinheiropara vocs; o general tanto aprecia sua msica que, pelagraa divina, encontra-se desejoso de no mais ouvi-lostocando esse rudo.

    1Q MSICO - Muito bem, senhor, paramos de tocar.

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  • ;;a

    BOBO - Se vocs tm alguma msica que no se ouve,toquem-na. Mas, como dizem por a, ouvir msica no um dos maiores interesses do general.

    1Q MSICO - No temos msica desse tipo que no se ouve,senhor.

    BOBO - Ento podem guardar suas flautas em suas sacolas, poisestou me retirando. Agora vo; desapaream no ar; embora!

    [Saem os msicos.]

    CSSIO - Ests ouvindo, meu honesto amigo?

    BOBO - No, no estou ouvindo o seu honesto amigo; masposso ouvir o senhor.

    CSSIO - Faze-me o favor, guarda para ti os teus gracejos.Pega esta pequena moeda de ouro. Se a dama que acompanhaa esposa do general j estiver acordada, dize-lhe que h umsenhor de nome Cssio querendo ter com ela uma palavrinha,se ela puder a ele fazer esse obsquio. Fars isso por mim?

    BOBO - Ela est acordada, senhor. Se ela vier at aqui,tentarei dar-lhe o seu recado.

    CSSIO - Pois faze isso, meu bom amigo.

    [O Bobo sai.]

    Entra lago.

    Em boa hora, lago.

    lAGO - Mas ento voc ainda nem deitou em sua cama?

    CSSIO - Ora, no! Amanheceu antes de nos separarmos.Atrevi-me, lago, a mandar chamar tua mulher para umapalavrinha comigo. Pedirei a ela que procure algum meiode eu ter acesso virtuosa Desdmona.

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    lAGO - Farei com que ela venha at aqui para ter consigoo mais rpido possvel. E engendrarei alguma maneira deafastar o Mouro do caminho, para que sua conversa e seusassuntos possam ser mais livres.

    CSSIO - Humildemente eu te agradeo.

    [Sai lago.]

    Jamais conheci florentino mais honesto e de to grandecorao.

    Entra Emlia.

    EMLlA - Bom dia, meu bom tenente. Fiquei penalizada aosaber de sua desaventurana. Mas tudo h de dar certo. Ogeneral e sua esposa tm conversado sobre isso, e ela falaa seu favor, num discurso vigoroso. O Mouro argumentaque o homem que o senhor feriu de grande renome emChipre, com inmeros laos de famlia e de amizade, e, porisso, dita-lhe o bom senso, de modo salutar, que no h outrasada que no rejeit-lo. Ele, porm, afirma e reafirma quelhe tem afeio e diz no haver necessidade de outro reque-rente alm da amizade que lhe devota para que, na ocasiomais propcia, agarre-se a oportunidade pelos cabelos parao senhor ser reintegrado em seu posto.

    CSSIO - Mesmo assim, eu lhe imploro, se a senhora julgarconveniente, ou mesmo exequvel, d-me o beneficio de umbreve discurso com Desdmona, um particular.

    EMLlA - Eu lhe peo, senhor, vamos entrando. Vou coloc--10 onde o senhor ter tempo para falar de corao aberto.CSSIO - Fico-lhe muito obrigado.

    [Saem os dois.]

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  • CENA 11

    Um quarto na cidadela.

    Entram Otelo, lago e Cavalheiros.

    OTELO - Estas cartas, entrega-as, lago, ao piloto e, por inter-mdio dele, presta meus respeitos ao Senado. Isso feito, es-tarei caminhando na fortificao; dirige-te a mim l mesmo.

    lAGO - Perfeitamente, meu bom lorde. Cumprirei essasordens.

    [Sai.]

    OTELO - Essa fortificao, cavalheiros, vamos examin-Ia?

    CAVALHEIROS - Estamos s suas ordens, senhor nossogeneral.

    [Saem.]

    CENA 111

    Diante da cidadela.

    Entram Desdmona, Cssio e Emilia.

    DESDMONA - Esteja sossegado, meu bom Cssio; usarei detodas as minhas habilidades em seu favor.

    EMLIA - Faa-o, minha bondosa senhora. Garanto-lhe, essecaso entristece meu marido como se dele fosse o problema.

    DESDMONA - Ah, esse um homem honesto. No tenhadvidas, Cssio: terei meu esposo e voc novamente amigoscomo o foram at aqui.

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    CSSIO - Generosa dama, seja qual for o destino de MiguelCssio, ele para sempre ser seu leal criado.

    DESDMONA - No tenho dvidas, e lhe agradeo. Vocverdadeiramente tem apreo ao meu marido; conhece-o delonga data. Pode ficar bem certo de que o distanciamentoque ele lhe dedica no ser mais que uma distncia poltica.

    CSSIO - Sim, mas, minha senhora, essa poltica de distan-ciar-se pode durar tempo demais, ou pode mal sobrevivercom uma dieta aguada e magra, ou pode ainda reproduzir-seem suas prprias circunstncias, de tal modo que, eu estan-do ausente e meu posto por outrem ocupado, meu generalvenha a esquecer-se de minha amizade e de meus servios.

    DESDMONA - No duvides do seguinte: diante do testemunhode Emlia aqui presente, dou-lhe a garantia de ter voc o seuposto de volta. Tranquilize-se, pois, quando prometo amizade,mantenho minha palavra at o ltimo suspiro. Meu esposono ter descanso: farei com que fique mais dcil e falareitanto que perder a pacincia. Seu leito ser para ele escola,e sua mesa, confessionrio. A tudo que ele fizer tratarei demesclar naquilo o pedido de Cssio. Portanto, alegre-se, Cs-sio, pois sua advogada prefere morrer a desistir de uma causa.

    Entram Otelo e lago, longe dos outros.

    EMLIA - Madame, vem chegando o meu patro.

    CSSIO - Madame, agora vou me despedindo.

    DESDMONA - Ora, mas fique, e oua-me discursar.

    CSSIO - No agora, madame. No me sinto nada vontade,e vejo-me inadequado para meus prprios propsitos.

    DESDMONA - Bem, faa aquilo que pensa ser o melhor.

    [Css ia retira-se.]