wellington conceição condomínios populares

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XVI Encontro Anual de História – ANPUH-Rio 28/07 -01/08 de 2014 Rio de Janeiro SP 26 – Habitação e direito à cidade: favelas, assentamentos informais e ocupações no Rio de Janeiro Os condomínios populares: um novo modelo de gestão das populações pobres no Rio de Janeiro?

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Trabalho apresentado na ANPUH de 2014

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  • XVI Encontro Anual de Histria ANPUH-Rio

    28/07 -01/08 de 2014

    Rio de Janeiro

    SP 26 Habitao e direito cidade: favelas, assentamentos informais e ocupaes no Rio de Janeiro

    Os condomnios populares: um novo modelo de gesto das populaes pobres no Rio de Janeiro?

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    Wellington da Silva Conceio UERJ

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    Introduo

    O Rio de Janeiro passou a abrigar nos ltimos anos um novo perfil de moradia para receber parte de sua populao pobre, em especial os moradores das favelas da regio metropolitana. Construdos e administrados pelo Programa de Acelerao do Crescimento (PAC)1 e pelo Programa Minha Casa e Minha vida (PMCMV)2 para receber moradores removidos de favelas por conta de intervenes urbansticas ou por ocuparem reas em situao de risco, tratam-se de unidades habitacionais (distribudas em edifcios e em blocos) que possuem uma estrutura fsica e uma proposta de ocupao social semelhante dos condomnios (forma de habitar presente na cidade do Rio de Janeiro desde a dcada de 60), mesmo que sejam destinados no caso do Rio de Janeiro principalmente - para moradores removidos de favelas como medida compensatria.

    Quando conheci essa nova forma de moradia, indentifiquei-a, assim como muitas pessoas o fazem, com os conjuntos habitacionais destinados famlias de baixa renda que 1 Programa do governo federal que iniciou-se em 2007 e hoje est na sua segunda fase (PAC 2). Sua

    principal proposta era retomar o investimento pblico em um cenrio com indicadores econmicos positivos a fim de fortalecer ainda mais, e de forma sustentvel, a economia nacional. Entre os eixos fundamentais da ao desse programa est o investimento em infra-estrutura, que tornou-se o eixo mais significativo, pois alm de sua visibilidade, tornou-se a ao norteadora e dinamizadora das medidas econmicas (TRINDADE, 2012). Entre as aes dos investimentos em infra-estrutura se encontra-se o PAC Social e Urbano, que responde por atuar em reas como saneamento, habitao, transporte urbano, fornecimento de energia eltrica e recursos hdricos. Boa parte das verbas do PAC social e urbano no Rio de Janeiro forma direcionados para a urbanizao de favelas. Segundo Trindade, o saneamento e urbanizao de favelas ganhou destaque em vrias regies do pas. No Rio de Janeiro, em especfico, as trs maiores obras noticiadas foram as do Complexo do Alemo, Complexo de Manguinhos e Favela da Rocinha (Ibid, p. 81). Entre as intervenes possveis nesse programa, esto previstas construes de novas unidades habitacionais para abrigar moradores removidos de reas atingidas pelas obras ou em situao de risco.

    2 Tal programa, tambm federal, se prope a subsidiar a aquisio da casa prpria para famlias com renda

    at R$ 1.600,00 e facilitar as condies de acesso ao imvel para famlias com renda at R$ 5 mil (...). A seleo dos beneficirios de responsabilidade das prefeituras. Portanto, os interessados devem se cadastrar na sede administrativa do municpio. (In: http://www2.planalto.gov.br/imprensa/noticias-de-governo/saiba-como-funciona-e-como-participar-do-programa-minha-casa-minha-vida). Para a aquisio das unidades habitacionais distribudas como medidas compensatrias, os responsveis pela execuo do PAC podem tanto construir novas moradias como adquirir unidades habitacionais construdas com recursos do PMCMV. O estado e a prefeitura do Rio de Janeiro, por meio do PAC Favelas e do Morar Carioca, utilizam tal recurso. Cardoso et al (2013), j haviam identificado essa prtica: alm do financiamento de habitao, o PMCMV vem sendo utilizado na cidade do Rio de Janeiro como poltica de reassentamento, onde a prefeitura compra os empreendimentos da CAIXA e os cede, a fundo perdido, s famlias reassentadas (p. 144).

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    foram construdos pela COHAB e pela CHISAM nas dcadas de 60 e 70, para abrigar especialmente moradores removidos de favelas em processo de extino. Mas apesar das semelhanas, como a presena de moradores removidos de favelas, a pertena a uma mesma classe social (sem desconsiderar a heterogeneidade das condies econmicas dessas famlias) e a ao do governo como o agente que remove e realoca tais pessoas, pude perceber, ao tomar um desses espaos como campo de pesquisa,3 que a categoria utilizada para definir as experincias anteriores de moradia popular no davam conta (pelo menos do ponto de vista analtico) das particularidades inerentes a essa nova forma de habitar, tanto no que se refere a forma de gesto da poltica pblica como as formas de sociabilidades encontradas entre seus moradores. Mesmo estando em uma fase inicial da pesquisa, resolvi construir uma categoria para esses novos tipos de moradia. Chamo-os Condomnios Populares.

    Penso que esse novo modelo de habitar a cidade, apesar de apresentar suas particularidades, se insere em uma tradio quase secular de disciplinarizao e controle dos pobres por meio das formas habitao, que tem o Estado como agente executor. Os parques proletrios (CARVALHO, 2003), por exemplo, formaram a primeira grande experincia desse tipo, que visava no s retirar os pobres das favelas, mas especialmente reeduc-los em prticas de higiene e civilidade e assim transform-los em novos homens, mais teis e dceis (FOUCAULT, 2008) ao projeto de desenvolvimento nacional, seja como mo de obra barata e disposta (especialmente s funo tidas como de menor escalo), seja como algum adequado ao modelo de normatividade urbana que se instaurava na cidade desde o incio do sculo XX . A grande diferena no projeto em voga nesses atuais programas est na apropriao de uma forma de morar das classes mdia e

    3 Desde maro de 2013 fao pesquisa de campo em um dos condomnios populares situado na Zona Norte do

    Rio de Janeiro. Esse foi construdo pelo PMVC e vendido ao estado do Rio de Janeiro que o comprou com verbas destinadas para as intervenes do PAC nas favelas. Tal condomnio, inaugurado no final de 2010, recebeu principalmente moradores de algumas favelas desta regio da cidade que tiveram suas casas atingidas (ou que ficaram em situao de risco) durante as fortes chuvas que aconteceram no incio do mesmo ano. Mas, procurando entender as representaes por trs dessa poltica pblica de moradia, a pesquisa recorreu a mais de um campo para observar as etapas iniciais da ocupao dos condomnios populares e recolher outras percepes (que possam contribuir para enriquecer esta anlise), caracterizando-se como uma etnografia multisituada.

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    alta - que fora bem sucedida em sua proposta de construir moradores homogeneizados (FERREIRA DOS SANTOS, 1981).

    Para apresentar minhas primeiras anlises sobre os condomnios populares, apresento inicialmente as caractersticas que fazem do condomnio uma forma particular de vida urbana, como aponta Ferreira dos Santos (1982) e como ele apropriado pelas polticas pblicas como forma de gesto da populao pobre da cidade nas unidades habitacionais construdas pelo PAC e pelo PMCMV. Depois, apresentarei brevemente os encontros de integrao, uma prtica pedaggica com finalidade disciplinar-civilizatria, que visa ambientar os futuros moradores na lgica condominial.

    Os condomnios populares

    Ferreira dos Santos (1981), desenvolveu uma rica reflexo sobre uma forma de moradia nas grandes cidades que chama de condomnios exclusivos. Segundo esse autor, trata-se de um modelo de habitar que traz elementos de duas correntes cientificas do urbanismo: O Racionalismo Progressista e o Organicismo Culturalista. Ambos so modelos de desenvolvimento urbano que tiveram grande influncia na formao das cidades brasileiras a partir da dcada de 50.

    No urbanismo de orientao racionalista4, a cidade pensada como um corpo, e o trao urbano definido pormenorizando a localizao de cada rgo ou, dispensando a metfora, cada funo, seguindo necessidades entendidas como de ordem prtica. Separam-se as reas: umas so industriais, outras centrais para negcios, outras direcionadas ao lazer. As reas habitacionais tambm so dividas de forma funcional, sendo os mais pobres aproximados das regies industriais e as elites das reas que abrigam os bens mais raros. A proposio de classificar e separar espaos e funes para melhor control-los tpica da postura racionalista. O objetivo a eficincia (FERREIRA DOS SANTOS, 1981, p. 25). 4 A capital do pas, Braslia, projetada e construda a partir do modelo do Racionalismo Progressista, assim

    como os conjuntos habitacionais da era COHAB-GB e CHISAM.

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    O modelo culturalista, prprios dos suburbs americanos, dispensa a cidade funcional e tem seu foco nos indivduos. Se define como mais preocupado com as realidades locais, criticando a construo de prticas universalizantes. Copia o modelo rural, dividindo a cidade em comunidades e valorizando mais as relaes humanas, defendendo que a metrpole no pode se sobrepor ao indivduo. Enquanto o racionalismo busca o futuro irrecusvel, o culturalismo defende uma utpica essncia humana ainda experimentada nas regies rurais. Cada comunidade uma espcie de mundo particular, com menor dependncia do resto da cidade do que prev o modelo racionalista.

    Entender esses modelos ajuda a decifrar as consideraes de Ferreira dos Santos sobre a organizao social de um condomnio. Os condomnios exclusivos se firmaram como forma de habitar a cidade do Rio na dcada de 70, sendo contemporneos dos conjuntos habitacionais da era COHAB/CHISAM. A lgica que regia a distribuio desses modelos de moradia na cidade era a mesma: criar formas de distino na metrpole amparadas pela tese da funcionalidade racionalista5.

    Se nesse momento o Estado oferecia moradia para os pobres nos conjuntos habitacionais, o capital fazia o mesmo pelos ricos6: o pblico alvo dos condomnios exclusivos era a nova classe mdia, o grupo que colhia os frutos do milagre econmico, as camadas da populao desejosas de marcar o seus status por novos nveis de consumo e consequentes estilos de vida, j capazes de pagar por isto (Ibid., 1981, p. 13). Os locais que passaram a abrigar esses empreendimentos se expandiam para as regies mais caras da cidade, que abrigavam os bens mais raros. No Rio de Janeiro, os bairros praianos - como

    5 Ao pensar a cidade funcional, os executores das polticas pblicas de moradia nas dcadas de 60 e 70

    tinham como um dos seus objetivos levar os mais pobres para as Zona Norte e Oeste da cidade, ainda em fase de ocupao. L morariam nos conjuntos habitacionais, e seus bairros tambm abrigariam fbricas e indstrias - alguns deles inclusive j serviam essa finalidade (BRUM, 2012). Estas poderiam absorver a mo de obra disponvel na regio. A oportunidade de emprego na proximidade no s estimularia o desenvolvimento local e nacional como reforaria a operao de distanciar os favelados da Zona Sul da cidade (no precisam mais trabalhar nessa regio da cidade j que encontram oportunidades de emprego nas suas proximidades) e tambm imputaria a essas pessoas, cada vez mais, a identidade de trabalhador identidade esta relacionada valores como honestidade, esforo, obedincia , til para o projeto de disciplinarizao dos pobres. 6 O Capital ofereceu a moradia aos novos ricos, mas o Estado no se ausentou desse projeto. Colaborou

    primeiramente quando promoveu as remoes e os reassentamentos, tentando eliminar as favelas nas novas reas nobres da cidade. Depois, quando colocou o dinheiro do BNH (resultante em parte das poupanas populares) disposio das grandes empreiteiras e abandonou os objetivos sociais promovidos pelo banco at ento.

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    Copacabana, Ipanema e Leblon eram os espaos preferencialmente escolhidos para abrigar essa forma de habitar a cidade. Mas se a proximidade aos bens raros valorizava tais imveis e seus moradores, a presena dos condomnios tambm atraiam novos investimentos para a regio, que visavam atender a um poderoso pblico consumidor que ali se concentrava. Tal processo intensificava ainda mais as distines entre as regies da cidade.

    Alm da funcionalidade, os conjuntos habitacionais e os condomnios so racionalistas, segundo Ferreira dos Santos, por defenderem solues universalizantes, pois partem de totalizaes homogneas de seus usurios. Enquanto as pessoas destinadas aos conjuntos habitacionais so entendidas como cidados7, aquelas que se dirigem aos condomnios so percebidas como compradores. Segundo esse autor, essa distino pode ser feita sem preconceitos morais, porqu, no capitalismo a desigualdade e a identidade baseiam-se em simbolismos econmicos (Ibid, p. 21).

    O morador do condomnio homogeneizado antes mesmo de existir (Ibid. p. 22). Apesar de querer ostentar sua diferena em relao s outras camadas sociais, tambm est includo em um projeto disciplinador, inscrito no ideal racionalista da boa forma urbana (MELLO & VOGEL, 1983), mesmo que voluntariamente: os especialistas projetam seu gosto e preveem as suas atividades. Junto com o espao, vendida uma frmula de vida urbana (Ibid., p. 22). Alm da localizao na cidade e dos equipamentos comuns e padronizados que destacam um condomnio apartamentos ou casas, piscinas, elevadores, praas internas, salo de festas, entre outros seu morador tambm diferenciado dos demais habitantes da cidade por uma forma prpria de ser homogeneizado, que passa pela regulao de condutas, que dita s relaes entre os indivduos e desses com o espao comum. So regras que, basicamente, protegem a individualidade e a privacidade valores considerados essenciais no mundo ps-moderno - e primam por uma ordem que percebida como natural, muitas vezes identificada como civilidade.

    7 Ferreira dos Santos (1981) no parte do princpio de que essas pessoas so tratadas plenamente como

    cidados, como a representao geral evocaria. Ele reconhece uma manipulao da categoria em favor de um amplo projeto publico. Talvez caiba aqui a ideia de um tipo de cidadania privada de direitos, presente nas favelas cariocas e em outras formas de habitao popular (BURGOS, 2005).

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    Essa regulao est explicita em contratos, regimentos internos, convenes e em

    outros instrumentos coletivos, como as assembleias. Prev procedimentos punitivos aos infratores, como advertncias e multas. Provoca um custo financeiro, que a taxa condominial, responsvel por manter a estrutura fsica e social desses lugares. Necessita ainda de uma fora policial e administrativa, formada pelo sindico e seu conselho. Vale lembrar que, na maioria das vezes, os moradores dos condomnios no fazem outra coisa a no ser cumprir normas que j esto internalizadas, j que pertencem s camadas dominantes, grupos geralmente socializados segundo a lgica civilizatria vigente.

    Os condomnios expressam seu aspecto culturalista, segundo Ferreira dos Santos, quando se transformam em um tipo de guetificao dos ricos (Ibid. p. 28). Por mais que no possa prescindir do resto do tecido urbano, os condomnios procuram viver como se fossem um mundo fechado. Algumas estratgias so pensadas para garantir esse isolamento e distncia do resto da cidade:

    A populao cuidadosamente prevista, impossvel de ultrapassar, j que as construes obedecem s regras pr-fixadas. O nmero de moradias condiciona a oferta de infra-estrutura e dimensiona os equipamentos. Completando tudo, h o muro, e cerca com entradas vigiadas. Em alguns casos h senhas: cartes de entrada; identificao eletrnica, circuito interno. Em outros h toque de recolher, como nas pequenas cidades medievais auto contidas (Ibid., p. 22).

    O grupo que quer se distinguir observa uma vantagem nessa guetificao, pois as fronteiras fsicas tambm se convertem em fronteiras simblicas, que demarcam cada vez mais a diferenciao esperada. Na verdade, fazem de tudo para no cruzar essas fronteiras8. Esse isolamento, segundo Ferreira dos Santos

    tem uma funo latente, bem mais difcil de perceber, apesar de ser to importante quanto a que obvia: A barreira fsica, que envolve o conjunto, diz aos que o constituem quem eles mesmos so. Impede que se diluam na multido dos habitantes do aglomerado metropolitano e que se sintam confundidos com eles, se barbarizem.(....) A cidade, que fica alm fronteiras, acusada de anti-humana. Ser, portanto, uma anticidade onde se proliferam todo o socialmente

    8 O Novo Leblon, por exemplo, um condomnio fechado da Barra de Tijuca (assim como outros) possui uma

    estrutura que permite ao morador se deslocar para a cidade em pouqussimas ocasies: Tem restaurante, mercado, academia, bares, creches, igrejas, a filial de uma das melhores escolas da Zona Sul e diferentes ambientes de lazer. Oferece linhas de nibus especiais que se deslocam diretamente para os principais shoppings do bairro, exigindo uma interao mnima com o seu entorno.

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    indesejvel: a insegurana; a violncia; a mistura; a insalubridade.... os habitantes do Condomnio encontram-se como que imunizados. (Ibid., p.24).

    Essa homogeneidade cultivada nos condomnios exclusivos afeta profundamente, para Ferreira dos Santos, a diversidade, condio indispensvel para a produo urbana tanto a nvel material como simblico, cuidadosamente deixada extra-muros. (Ibid., p.24).

    Fica evidente que o condomnio nasce como um modelo distinto do popular, essas palavras condomnio e pobreza talvez fossem impensveis em uma mesma frase. Hoje em dia j se fala em condomnios populares, algo que pode ser comprovado em uma rpida googlada. Nessa pesquisa, os links encontrados geralmente so de construtoras e imobilirias que empreendem condomnios para atingir pblicos das classes C e D, que adquirem os imveis por meio de financiamentos como cartas de crdito, pagando sua nova residncia em centenas de prestaes. Mas quando uso a categoria condomnio populares para me referir as formas de moradia que encontro no campo, me desloco para um outro conjuntos de significados. Trato de uma nova forma de gesto da pobreza por meio de projetos habitacionais que se inspira em um processo bem sucedido de disciplinarizao das classes mdia e alta.

    Os conjuntos habitacionais construdos pela COHAB-GB e pela CHISAM fracassaram, pelo menos da perspectiva dos seus idealizadores, que planejavam acabar com as favelas e os favelados tendo nesse espao uma oportunidade de construir um novo modelo de pobreza, mais disciplinada e convertida aos valores urbansticos em voga. A favela no s continua existindo como muitos desses conjuntos habitacionais que acolheram favelados removidos so hoje inseridos como favelas ou reas favelizadas na dinmica urbana carioca. Nos conjuntos habitacionais, o plano da homogeneidade no vingou: eles se aproximaram socialmente das favelas, mantiveram a mesma diversidade e a forma pouco disciplinada de habitar a cidade, adequando-as ao novo ambiente de tijolo e concreto. So mais espaos que absorveram a indisciplina comportamental e arquitetnica que os governos tm rejeitado nesse sculo de histria dos conflitos sobre as habitaes populares no Rio de Janeiro. Mais de quarenta anos depois, ao se construir novas habitaes populares para fins de reassentamento, era preciso no cometer os mesmo erros.

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    As chances de favelizao dessas novas reas habitacionais so grandes se observamos casos semelhantes na histria da cidade. A crena no poder da boa forma urbana permanece: algumas polticas pblicas deixam evidente que a crena na capacidade disciplinadora do espao ordenado faz parte do imaginrio urbano de muitos polticos e urbanistas cariocas.

    Para que o mesmo histrico dos conjuntos habitacionais no se repita, elementos novos entram no cenrio das formas de habitar, que misturam prticas presentes nos Parques proletrios e nos conjuntos habitacionais: os novos homens sero gestados pelo poder disciplinar da boa forma urbana aliada a instrumentos educativos e de regulao, que impe uma nova ordem civilizatria. A forma de educao e regulao adotadas se baseiam em um modelo presente h anos na cidade: os condomnios. Regimentos internos, convenes, assembleias, multas e demais prticas regulatrias existentes nessa forma de habitar passam a reger a rotina dos novos moradores da cidade. E para ser um morador desses condomnios, no basta receber a chave, como aconteceria em qualquer outro. A boa forma urbana j provou ser incapaz de resolver o problema sozinha. Antes de habitar sua nova casa, o favelado precisa aprender a ser condmino. O condomnio a nova iniciativa em modelos de habitao que se apresenta, ao mesmo tempo, como a garantia de um direito (moradia) e uma forma de disciplinar e controlar os pobres.

    Condomnio vem de dominar com, ou seja, um condmino , a princpio, aquele que junto com outras pessoas decide os rumos de um bem ou de um espao que de pertena coletiva e no individual. Ao mesmo tempo, um condmino individualista, pois possui direitos (que tambm se convertem em deveres quando se trata do vizinho) que garantem a no interveno do outro no seu espao particular: o som no pode ser alto a ponto de me incomodar, as roupas ntimas do meu vizinho no podem ser secadas na janela pois tal viso pode me constranger. Morar em um condomnio viver com ordem e civilidade. Contra essa ordem, a experincia de moradia nas favelas, por exemplo, classificada como desordem, no s pelos moradores de condomnios mas tambm pelo Estado. Esquecem-se, porm, que a desordem s uma ordem que exige uma leitura mais atenta (FERREIRA DOS SANTOS, 2009, p.11).

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    Uma reflexo ao qual me deterei em outra fase dessa pesquisa como essa lgica condominial acaba sendo incorporada, ao menos em parte, pelos moradores dos condomnios populares. Um dado interessante a instalao imediata de portes nesses condomnios por iniciativa dos prprios moradores, algo que no est previsto no projeto original. Por mais que a justificativa inicial seja a segurana, fica evidente no trabalho de campo um uso distintivo, que constitui fronteiras reais e simblicas. Em alguns casos que presenciei, de condomnios construdos dentro das prprias favelas de onde saram seus beneficirios, os moradores mais afinados com o projeto em curso se referem a favela como um outro espao social, do qual no fazem mais parte.

    O Estado, ao direcionar favelados para os condomnios populares, no reconhece a ordem social qual pertenciam. Parte do princpio que a verdadeira ordem precisa ser internalizada. Para isso, no basta receb-los: preciso socializ-los nesse padro. Os encontros de integrao, do qual falaremos a seguir, despontam como o principal elemento desse novo projeto disciplinar-civilizatrio.

    Os encontros de integrao: para transformar regras em valores

    Logo quando iniciei meu trabalho de campo junto aos condomnios populares, j ouvia falar dos encontros de integrao. Confesso que no entendi o que era e sequer atentei o quo significativos pudessem ser para a sociabilidade local, mas as referncias a essa atividade, na medida em que me inseria no campo, apareciam muitas outras vezes, principalmente nas conversas com os moradores. Na minha primeira entrevista com um dos sndico, que chamarei de Antnio, me atentei que se tratava de algo com grande importncia simblica para as prticas de ordenao e regulao daquele espao. Antnio volta e meia lamentava prticas existentes no condomnio dizendo que tais comportamentos no se justificavam diante do que foi aprendido nos encontros (que ele e os demais moradores chamam de curso). Percebi que precisava investigar essa prtica

  • 10

    mais fundo, pois nela se encontraria uma clara posio institucional sobre os objetivos civilizadores/disciplinadores inclusos nesse projeto.

    Esses encontros so realizados pelo PAC-Favelas no Rio de Janeiro para atender algumas recomendaes do COTS (Caderno de Orientao Tcnico Social), documento que orienta os trabalhos sociais a serem promovidos pelo PAC e pelo PMCMV (quando este ltimo atende reassentados). Em primeiro lugar, tal orientao exige dos entes realizadores

    Viabilizar o exerccio da participao cidad mediante trabalho informativo e educativo, que favorea a organizao da populao, a gesto comunitria, a educao sanitria, ambiental e patrimonial, visando melhoria da qualidade de vida das famlias beneficiadas e sua permanncia nos imveis, bem como contribuir para a sustentabilidade dos empreendimentos (CAIXA ECONMICA FEDERAL, 2013, p. 20).

    Esse trabalho informativo e educativo deve ter um carter particular quando famlias forem reassentadas para prdios. preciso nesses casos, ainda segundo orientao do COTS, disseminar noes de educao patrimonial, educao ambiental, relaes de vizinhana; gerar compromisso com a conservao e manuteno dos imveis (Ibid., p. 21). Os responsveis9 pelos condomnios para realocados de favelas devero assessorar a implantao da gesto condominial; incentivar a participao dos beneficirios na gesto do empreendimento; preparar os beneficirios para administrar o condomnio (Ibid., p.21). O trabalho tcnico social do PAC tem cinco reas de abrangncia que devem se articular durante todo o perodo da obra e ps-obra. Essas reas so: organizao comunitria, educao ambiental, educao patrimonial, planejamento e gesto do oramento familiar e gerao de trabalho e renda. No Rio de Janeiro, vrios dos objetivos presentes em cada uma dessas reas se concretizam pelos Encontros de Integrao,

    9 Quando os condomnios forem construdos pelo prprio PAC (a partir de uma empreiteira licitada), a

    equipe responsvel pelo trabalho tcnico social cuida de promover as atividades de integrao. Sendo pelo PMCMV, a construtora responsvel por oferecer tal assessoria, geralmente contratando empresas especializadas para realizar tal trabalho. O COTS tambm prev a possibilidade dos entes federados terceirizarem, por meio de licitao, o trabalho tcnico social. A equipe responsvel por aplicar as diferentes etapas, sendo terceirizada, deve ser supervisionada por um servidor pblico, ligado ao ente federado realizador, que seja socilogo ou assistente social.

  • 11

    conforme pude observar tanto no campo como nos roteiros de encontros aos quais tive acesso10.

    Os encontros de integrao so, no PAC Favelas do Rio de Janeiro, o modelo proposto para aplicar algumas das muitas orientaes do COTS e do PAC, em especial aquelas que suscitam atividades educativas/formativas. Mais do que educar para o uso do espao, essas atividades propem uma transformao dos valores por meio da internalizao das normas e do estilo de vida apresentado - uma converso do favelado em condmino. Penso que preciso entender, portanto, essa forma especfica de ao e explorar como ela se relaciona com todo o projeto disciplinar em andamento na cidade do Rio Janeiro, que pode ser percebido na construo de uma cidade ideal para a realizao dos grandes eventos, nas UPPs e nas intervenes do PAC.

    Geralmente, eles acontecem em duas fases, que tratam das mesmas questes, ainda que de formas distintas. Na primeira fase, a participao compulsria: preciso ter pelo menos 75% de presena nas atividades para ter acesso s chaves do apartamento no prazo estabelecido. Nesse momento, enfatiza-se muito a questo da mudana de habitao, a qual se deve acompanhar com a mudana de comportamento. Nesses cinco encontros chama-se a ateno para o cuidado com o espao comum, a conservao dos imveis, as taxas a serem pagas, entre outros. Faz-se ainda uma introduo ao regimento interno e, por fim, a eleio do sndico (ou sndicos, nos casos em que se organizam por blocos e no por condomnio) e seu conselho.

    A segunda fase, com mais cinco encontros, se foca mais na organizao do condomnio, por isso recebe tambm o nome de oficinas de gesto condominial. A

    10

    Um pequeno adendo sobre o COTS: suas orientaes se apresentam, por vezes, contraditrias: Ao mesmo tempo em que insistem na construo de um processo com plena participao do beneficirio, dando a ele um papel importante no projeto, por vezes infantilizam o mesmo, partindo do princpio de que este precisa ser educado em regras bsicas de higiene, de cuidado com o patrimnio e at de controle do oramento familiar. De certa forma subestima a ordem social qual esses sujeitos pertencem e se prope a disciplin-los at nos aspectos mais privados da vida, como sua higiene e seus gastos. As experincias de aplicabilidade das orientaes do COTS se do de diferentes formas pelo Brasil, at mesmo porque, no caso dos condomnios, esses nem sempre so construdos para reassentar moradores de favelas. Em uma pesquisa na internet percebi que outros estados aplicam atividades educativas mais voltadas para a gerao de renda e/ou educao ambiental, enquanto no Rio de Janeiro a educao patrimonial, mas particularmente a organizao condominial, assumiu um lugar prioritrio. Essas atividades, no geral, so todas destinadas moradores de localidades pobres (mas que nem sempre so favelas e que inclusive no so to estigmatizadas).

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    participao no compulsria, at mesmo por que se realiza aps os moradores se instalarem no local (impossibilitando utilizar o mesmo elemento de coero da fase anterior), o que diminui bastante o nmero de participantes. Nela se retomam algumas questes j vistas na primeira fase, como por exemplo, o regimento interno, que lido, discutido e votado para receber (ou no) mudanas. Para isso, geralmente parte-se de um modelo indicado para todos os casos do PAC que, segundo a fala de uma facilitadora, um modelo comum para condomnios em geral, com adaptaes que levaram em conta as caractersticas fsicas desses condomnios e sociais dos seus moradores. Discute-se ainda os planejamentos futuros e a gesto oramentria (incluindo a definio do valor da taxa condominial)11. Paralelamente a essa segunda fase, o sndico e o conselho gestor so instrudos em princpios de administrao de condomnios.

    A nica literatura at ento produzida sobre os encontros de integrao uma etnografia realizada por Freire e Souza (2010), presente em um relatrio da Fundao Oswaldo Cruz (Fiocruz) sobre os impactos do PAC em Manguinhos. Essas pesquisadoras apresentam uma definio desses encontros a partir da fala de um gestor do trabalho tcnico social do PAC. Segundo tal gestor, o objetivo dessa formao :

    oferecer oportunidades de crescimento e transformao individual e coletiva para as famlias realocadas, visando melhorar a organizao, conservao e limpeza nos ambientes e alcance de nveis satisfatrios de sade e sustentabilidade, assim como reconhecimento da moradia como uma possibilidade de insero na vida formal em sociedade (FREIRE & SOUZA, 2010, p. 42).

    A fala em questo aponta grande afinidade com as orientaes do COTS, especialmente Na prtica infantilizadora de seus beneficirios. Traz ainda elementos com profundo carter simblico, que demonstram uma adaptao de tais orientaes s representaes das favelas, presentes no imaginrio da cidade. Em tal fala se apresenta uma viso estereotipada do favelado como algum que precisa ser socialmente educado (Ibid., p. 50), e por isso o processo educativo/formativo se converte em instrumento de 11

    Em maro e abril de 2014 participei (com finalidade etnogrfica) da segunda fase dos encontros de integrao para os moradores de um Condomnio popular construdo em uma favela da Zona Sul do Rio de Janeiro. Ainda no tive a oportunidade de acompanhar encontros da primeira fase.

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    transformao. A crena da favela como uma realidade distinta da cidade, onde os seus moradores no esto inseridos na vida formal, se sobressai nessa breve fala. Me aventuro em dizer que o formal aqui no representa s a insero no sistema legal reconhecido pelo Estado, mas tambm a questo de formar (colocar em uma forma) no comportamento reconhecido como normativo. As propostas desses encontros solicitam mudanas reais de comportamento, mudanas essas que no podem ser s no exterior: elas precisam atingir o ethos dessas pessoas. Por isso, a partir da observao dos encontros de integrao em Manguinhos, Freire e Souza concluram que essa atividade reforava a idia de que a mudana da favela para o apartamento implicava no apenas uma adaptao a um novo tipo de moradia, mas a um novo estilo de vida (2010, p. 50).

    Nessas atividades, a favela a referncia negativa, o modelo a ser rejeitado. Tal concepo fica clara no argumento de uma das facilitadoras dos encontros em Manguinhos, registrado por Freire e Souza:

    eles teriam que aprender a viver no coletivo e se organizar para mostrar algo diferente da idia corrente de que para pobre, tudo pode. Caso contrrio, o conjunto habitacional tornar-se-ia nada menos do que um favelo. Sua funo, dizia uma das facilitadoras, era apenas a de abrir uma luz na cabea dos moradores, a fim de evitar que o conjunto tivesse esse destino (Ibid., p. 48)

    Essa fala tambm rica de elementos simblicos. A favela aparece como um destino a ser evitado, que ser sempre eminente se as mudanas sugeridas no forem internalizadas, e os conjuntos habitacionais da era COHAB-GB/CHISAM so uma prova concreta disso. Ao dizer que os beneficirios devem descontruir a representao de pobre como aquele que pode tudo, se apresenta um projeto de controle: o que os pobres podem ou no fazer. Certamente, as atividades formativas servem pra indicar esse caminho. Isso ficou claro para mim quando, estando em campo em um dos condomnios populares, uma senhora, ao tentar falar dos encontros de integrao e no lembrar o nome, chamou-os de curso do que pode e o que no pode fazer no condomnio.

    importante ressaltar que os encontros no so uniformes. A equipe responsvel pelo trabalho tcnico social tem autonomia para pensar as atividades a serem realizadas e

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    seus contedos. O roteiro dos encontros aplicados em um dos condomnios onde fao trabalho de campo era idntico ao utilizado em outro condomnio, mas ambos eram bastante distintos daquele identificado em Manguinhos por Freire e Souza (2010). Mas apesar dos diferentes temas e dinmicas, ambos esto afinados nas ideias que pretendem transmitir, seguindo orientaes do COTS. Os roteiros so aprovados tanto pelo supervisor do ente federado responsvel como pela Caixa Econmica federal, o que garante de certa forma essa sintonia.

    Os encontros de integrao dentro da lgica disciplinadora - se fazem ainda mais necessrios para os moradores de favelas que foram realocados pelo PAC, pois como aponta Freire e Souza (2010), no houve uma seleo moral das famlias a serem reassentadas, como aconteceu em projetos como os parques proletrios, a Cruzada So Sebastio e os conjuntos habitacionais. Se os critrios nesses outros programas foram a condio familiar, a manuteno de um emprego e/ou possuir uma determinada renda, o critrio agora era ser habitante de uma rea a ser desapropriada pelo PAC e ter optado pela realocao como forma de medida compensatria. O perfil dos selecionados para esses trs outros programas era geralmente formado de pessoas percebidas pelo projeto estatal como facilmente disciplinveis, at mesmo porque j estariam submetidas a outras formas de regulao e controle, seja no trabalho, na igreja ou no acompanhamento do servio de assistncia social. Se no existia mais essa seleo, fazia-se mais que necessria a disciplinarizao/civilizao desses beneficirios.

    As reaes dos beneficirios a esses encontros eram variadas, especialmente na primeira fase, onde a participao obrigatria. Segundo as observaes de Freire e Souza (2010) uns questionavam a necessidade dos encontros, outros valorizavam tais atividades e ainda concordavam com as normas de conduta anunciadas pelas facilitadoras. Alguns questionavam somente algumas regras, como a proibio de animais de estimao e de se instalarem atividades comerciais nos apartamentos. Uns poucos criticavam tudo o que era estabelecido, defendendo que sua vida ali seria mais complicada do que na favela.

    Na segunda fase (falo a partir da minha experincia de campo), quando cessa a obrigatoriedade da participao, participam poucas pessoas, geralmente aquelas que esto afinadas com o projeto disciplinador em curso. Apesar disso, so pessoas que se

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    consideram conscientes da necessidade de uma vida ordenada, assim como das regras que a compe, e por vrias vezes apontam que sua presena ali uma forma de honrar um compromisso e organizar a vida coletiva: no esto para aprender aquilo que j sabem e acreditam. Isso fica explicito quando em muitos momentos dos encontros os presentes repetem a frase quem deveria estar aqui pra ouvir isso no veio, referindo-se aos moradores que, segundo eles, so apontados como os responsveis pela desordem12. Apesar de ser uma fase de participao coletiva, pois envolve a construo do regimento, o que observei foi a facilitadora ler os tpicos, explicar aqueles que no eram to bvios, e uma hora ou outra ouvir e ponderar alguma crtica. As mudanas no modelo proposto foram mnimas: a alterao do horrio de guardar o silncio (a ampliao dele em mais duas horas) e a retificao, entre as proibies de guardar objetos pessoais no espao comum, das bicicletas.

    Ressalto que os encontros de integrao constituem o principal instrumento do processo civilizatrio em curso nesses condomnios populares. Quando uso a categoria civilizao e suas variaes tenho como referncia as teorias de Nobert Elias, autor que identifica a civilizao como um conceito que expressa a conscincia que o ocidente tem de si mesmo (principalmente a partir do sculo XVIII), entendendo seu patrimnio cultural e comportamental como superior aos outros modelos, ou, como o nico verdadeiro, referncia para as outras formas em questo13. O comportamento considerado civilizado comea nas cortes: em torno do Rei e dos seus aristocratas que se inicia um processo lento de regulao dos instintos e de normatizao de costumes, que sofre constantes alteraes no decorrer da histria. A necessidade de se aproximar da corte e do rei para ter seus interesses atendidos fez com que a burguesia imitasse os comportamentos da aristocracia em pases como Frana e Inglaterra, fazendo que os comportamentos que antes eram objeto de distino se tornassem modelares para toda uma sociedade e incorporados pelas outras classes sociais. 12

    No prximo captulo, apresento uma etnografia de um desses encontros. 13

    Mas se examinamos o que realmente constitui a funo geral do conceito de civilizao, e que qualidade comum leva todas essas vrias atitudes e atividades humanas a serem descritas como civilizadas, partimos de uma descoberta muito simples: este conceito expressa a conscincia que o Ocidente tem de si mesmo. Poderamos at dizer: a conscincia nacional. Ele resume tudo em que a sociedade ocidental dos ltimos dois ou trs sculos se julga superior a sociedades mais antigas ou a sociedades contemporneas mais primitivas. (ELIAS, 2011, p. 23).

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    No nosso caso, no Brasil e no Rio de Janeiro, os grupos dominantes tambm se apresentam como os guardies dos valores civilizados. So aqueles capazes de definir os verdadeiros costumes e crenas: o que arte de verdade, a forma correta de comer, de se higienizar, de morar, de agir, entre outras, mesmo que por muitas vezes transgridam esses costumes. Os civilizados tm a funo de inserir os no-civilizados nos seus costumes, interpretados como corretos, cientficos e normais. Os no-civilizados acabam por aderir a tais costumes, pois assim como a burguesia tinha interesse na corte, os no-civilizados querem sobreviver em uma sociedade governada pelos civilizados. A insero de pobres em novas moradias se configurou como uma tima possibilidade de civiliz-los: o ensinar a morar em casa ou apartamento trazia consigo a possibilidade de civilizar outros campos, como a higienizao, a moral, as relaes humanas, etc.

    Concluso

    Na histria do Rio de Janeiro, os projetos civilizatrios voltados para os mais pobres, especialmente para os moradores de favelas, sempre andaram de braos dados com prticas de disciplinarizao e controle. A viso inferiorizada desses grupos sempre fez com que a crena na sua possvel adeso civilizao viesse acompanhada de uma suspeita de perigo. Ento, enquanto os valores no fossem internalizados, era preciso uma vigilncia constante.

    Os condomnios populares e seus encontros de integrao so, portanto, parte de um grande processo disciplinador-civilizador em curso. Atuam em sintonia com o controle policial das UPPs e a (in)visibilizao das favelas pela sua pseudo insero no tecido urbano (CAVALCANTI, 2013). Se justificam por inserirem o padro normativo civilizado s classes populares, consideradas indisciplinadas e perigosas, entraves ao desenvolvimento poltico e econmico na cidade do Rio de Janeiro.

    REFERNCIAS

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