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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO) CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº113 - SETEMBRO - PORTO VELHO, 2003 VOLUME VIII ISSN 1517-5421 EDITOR NILSON SANTOS CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO SILVIO A. S. GAMBOA – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows” deverão ser encaminhados para e-mail: [email protected] CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO TIRAGEM 200 EXEMPLARES EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA ISSN 1517-5421 lathé biosa 113 RONDÔNIA: VESTIDA PARA TIRAR FOTOS NILZA MENEZES & CÉLIO LINO PRIMEIRA VERSÃO

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Page 1: Volume viii 2003

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº113 - SETEMBRO - PORTO VELHO, 2003

VOLUME VIII

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

SILVIO A. S. GAMBOA – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

[email protected]

CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 113

RONDÔNIA: VESTIDA PARA TIRAR FOTOS

NILZA MENEZES

& CÉLIO LINO

PRIMEIRA VERSÃO

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Nilza Menezes e Célia Lino RONDÔNIA: VESTIDA PARA TIRAR FOTOS

Coordenadora do Centro de Documentação do TJ-RO / Jornalista Pós-graduada em Moda

[email protected] / cé[email protected]

O vestir é a reprodução da condição social e da visão de mundo. O vestir reproduz o que somos ou que gostaríamos de ser. Através das vestes expressamos as

nossas posturas sociais, culturais e os momentos históricos. Cada povo ao seu tempo vestiu-se das suas realidades e dos seus sonhos. Conforme observa Erica

Palomino: “...a moda tem muito mais a ver com a vida real do que as pessoas pensam” (Palomino, 2000).

Muitas vezes, o mundo não se dá conta dessa historicidade da moda ou, também muitas vezes, não percebe que a moda termina por completar o quadro

histórico das sociedades (Palomino, 2000) As vestimentas apresentam os momentos históricos vividos por cada comunidade, cada povo. Através das roupas, vamos

percebendo as suas relações e transformações. As fotos e gravuras são as fontes principais para observarmos essas imagens que são inseridas no roteiro histórico.

Rondônia apresenta ao longe uma imagem desnuda. Essa imagem é construída pelos relatos dos viajantes, pelos cartões postais exibindo nativos em pêlo.

Ainda há quem pense que índios andem nus pelas ruas atirando fechas. Imagem construída pelas fotos de Rondon distribuindo roupas aos nativos. Desse vestir-se

para tirar fotos desnudamos as imagens regionais.

Geograficamente o que antes era um pedaço do Amazonas e uma grande porção de terras do Mato Grosso passou a ser o Território do Guaporé (1947), após

Território Federal de Rondônia (1956) onde hoje conhecemos por Estado de Rondônia, criado em 1982.

A historia do lugar pode ser divida em três tempos, dos três períodos três fortes figuras fardadas Mal. Cândido Rondon, Cel. Aluísio Ferreira e Cel. Jorge

Teixeira fazem parte da galeria dos que representam os momentos de rupturas políticas e culturais da região. Em Rondônia, uniforme escolar é também chamado

farda, resquícios dos seus momentos históricos marcados pelo comando de militares ainda não apagados.

A cidade de Porto Velho, feita com as locomotivas e estrangeiros surgiu do ponto de partida da Ferrovia Madeira Mamoré construída no começo do século XX

(Hardmann, 1988) e falamos dela sempre a partir do ponto de onde parte a sua locomotiva. Como se antes fosse o caos, partimos sempre no trem da Madeira Mamoré

para contarmos a história da região.

Antes era só a selva e não Rondônia. No entanto a maneira de vestir-se e de adornar-se dos habitantes da floresta e beira de rios ficou registrada por muitos

viajantes. Os enfeites coloridos feitos de penas com dentes de animais, peles, com todas as suas tendências foram mostrados por Alexandre Rodrigues Ferreira em seu

relatório de viagem realizado no século XVII e deixaram de existir para a história a partir do apito da locomotiva.

Ao embarcarmos no trem, no momento da sua partida inicial, vamos nos encontrar com diversos povos. As fotografias da época mostram distintas

formas de vestimentas de acordo com o país de origem dos trabalhadores.

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O Museu do Estado guarda exemplares de sapatos e sacos para viagem, produzidos nos seringais a partir da goma elástica e que eram usados pelos

trabalhadores dentro da floresta, objetos ainda encontrados nas comunidades que vivem nos seringais.

Têm-se também desses tempos referências de Euclides da Cunha e de Manuel Carneiro da Cunha dos procedimentos efetuados pelo Marechal Cândido Rondon

providenciando calções, camisas e cintos para os povos indígenas durante a instalação da linha telegráfica.

Antes da locomotiva da modernidade, registros documentais mostram-nos que mulheres judias já se encontravam com seus maridos comerciantes em

pequenos povoados como Presidente Marques, Generoso Ponce e, em número mais acentuado, em Santo Antônio do Rio Madeira. Os judeus, assim como

mais tarde os árabes, estabeleceram na região uma rede comercial que, partindo de Belém para Manaus cobria a região da hinterlândia.

As listas de mercadorias dos comerciantes do começo do século XX na região trazem junto com o bacalhau, vinho do porto e chumbo, as sedas, brins, chitas,

fitas e pó de arroz. Todo o comércio era feito por esses estrangeiros o que foi mantido até os anos 80, conforme recorda Labibe Aiech: “Tínhamos as lojas, aqui tinha

muito estrangeiros e as lojas foram se estendendo. Tudo chegava de navio” (Aiech: 2001)

Do ponto de partida do trem, as primeiras mulheres a chamarem a atenção pela maneira de vestir-se e que encontramos registradas em fotografia

são as Barbadianas, negras caribenhas que chegaram em Porto Velho por volta de 1912.

Nas fotos oficiais da ferrovia são apresentadas como enfermeiras e lavadeiras. Elas foram observadas e comentadas pelo uso do chapéu, hábito

britânico que trouxeram para a floresta e que preservaram, sendo assim registradas e lembradas.

Em sua visita à Porto Velho e Guajará-Mirim em 1929, Mario de Andrade não deixou de observar essas mulheres: Mulher do povo e de chapéu, já sabe, é

barbadiana. (Andrade,1983) .

Eduardo Barros Prado registrou-as como verdadeiras belezas de ébano. Pinto Pessoa, em Selva Selvagem, também notou essas mulheres e assim as

descreveu: As mulheres tem um hábito interessante de conversar sempre mettido na cabeça um chapéo. Vemol-as em ruidosos grupos pelas ruas ás horas de

descanso, engrolando um máo inglez, exhibindo chapéos de todos os feitios. Muitas levam tão longe tal habito que se conservam de chapéo, em casa, ao serviço

(Apud: Lopes, 1995).

Com a modernidade na selva, marcada pela construção da Estrada de Ferro e pela afluência de trabalhadores e efervescência econômica da borracha, mesmo

ao calor de 38 graus, as damas da sociedade exibiram chapéus e casacos ao longo das primeiras décadas do século XX.

Vestir-se na selva com algo de Londres foi imperativo. Gilberto Freiry, em sua obra “Modos de homem & Modas de mulher”, esbraveja contra esse

costume, “não só extravagante para o Brasil, como terrivelmente anti-higiênico, antiecológico e antitropical” Freyre,1987).

As mulheres que viveram esse período como a Srª Labibe Aiech, descendente de libaneses e que chegou em Porto Velho no ano de 1912, hoje com

92 anos, conta que as roupas para as festas do Clube Internacional onde freqüentava a alta sociedade portovelhense eram feitas por costureiras. Com a

peculiaridade dos antigos, o saudosismo fala dos famosos “soiarées” que eram as noitadas onde as mulheres costumavam comparecer vestidas todas da

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mesma cor. Antes das festas, elas escolhiam a cor que seria a roupa. Por exemplo, se a cor era verde, todas iam de verde, podendo variar a tonalidade e os

modelos dos vestidos.

Observamos que os primeiros comerciantes a trazerem o fascínio dos fetiches femininos para os rios Madeira, Mamoré e Guaporé foram os árabes com seus

regatões que, a partir do Porto de Belém, passando por Manaus, escorriam por estradas líquidas e junto com o sal, o açúcar e os enlatados levavam os leques, rendas,

perfumes e água de colônia. Os anúncios de jornais da época apresentam as mercadorias oferecidas à sociedade de Porto Velho, sendo que a maior parte das lojas

pertencentes a árabes tinha um toque francês no nome da loja.

As mulheres que presenciaram ou que ouviram de suas mães e avós sobre o período falam de barcos ao longo dos rios trazendo um quase “shopping”

ambulante: móveis, alimentos, roupas, objetos de necessidade e de fetiche para o consumo dos que produziam a borracha. Mesmo após a queda, durante as décadas

de 20 a 60, em ritmo menor, a vida ao longo dos rios e nas duas únicas cidades (Porto Velho e Guajará-Mirim) manteve-se guardando as tradições e uma espécie de

saudosismo, esperança de retorno. Muita gente ainda insistiu no sonho.

A artista plástica Rita Queiroz, filha de seringalista, vivendo nas margens do Rio Madeira durante as décadas de 40, 50 e 60, fala desses barcos como sendo o

grande sonho de consumo dos moradores das beiras dos rios no período. Lembra ainda que seu pai, originário do Estado de Alagoas, quando viajava para o Nordeste

trazia algumas roupas diferentes para a família, mas que a grande maioria dos trabalhadores usava roupas feitas de tecido de algodão e morim colorido comprados dos

mascates.

Através dos procedimentos de arrolamento ou inventário, entre os pertences das mulheres que morriam na região encontramos quase sempre uma máquina de

costura. Pelo que se observa esse objeto de trabalho foi muito utilizado. Mulheres solitárias que viviam nas vilas ao longo da ferrovia, salvo outras informações, poderiam pela

característica dos pertences e da condição social ser classificadas como se observa dos documentos judiciais da época de mulheres de vida fácil ou mundana. Elas tinham entre

seus bens algumas jóias, cortes de tecidos, fitas, espelhos, perfumes, leques, e materiais de costura, além da máquina de costurar, é claro.

O clube internacional que abrigava a alta sociedade assim ficou registrado: ... o salão elegante de seu clube Internacional, repleto de almofadinhas e

melindrosas, cheio de senhoras e cavalheiros distintos, que se agitam coreograficamente ao som do on-step, do fox trot, dos lanceiros, e onde se vê o inglês de

Londres e a francesa de paris... (Moraes, 1969, p. 175).

Conforme observa Labibe Aiech, hoje as coisas tornaram-se mais fáceis. A moda no meu tempo era um bocado difícil. Hoje você encontra tudo. Só falta

dinheiro, o resto você encontra, mas naquela época tudo era preciso fazer. Era tudo com costureira (Aiech:2001).

O olhar de Miguel Roumiê sobre os hábitos culturais da região e sobre o comportamento na década de 70, período causador de grandes mudanças, está ligado

a um costume da época de que as pessoas que viviam nas cidades de Porto Velho e Guajará-Mirim viajavam muito para a cidade do Rio de Janeiro. Esse costume se

deu em face de que, sendo um Território Federal, se encontrava fortemente ligada à capital brasileira, no caso o Rio de Janeiro. Esse costume foi mantido ainda após a

transferência do centro político para Brasília. As pessoas de alguma posse da região tinham o hábito de viajar para o Rio de onde traziam as novidades: Embora não

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tivéssemos televisão, tínhamos o rádio. Já chegavam as revistas e outras coisas mais e o pessoal viajava muito. Era o “must” daqui o pessoal viajar para o Rio de

Janeiro passar as férias no Rio. Hoje se viaja muito para o Nordeste, antes era para o Rio de Janeiro. Belém do Pará como no meu caso. Apesar de ter isso já a outros

lugares, mas era a situação que se vivia naquele momento. Quem viajava para o Rio voltava de lá influenciado. Em moda, em costumes, em mentalidade, em tudo

(Roumiê: 1999).

Hoje, em tempos de globalização, tudo está em todos os lugares ao mesmo tempo. No entanto, as regiões possuem suas características trazidas e adaptadas.

Assim como os viajantes observaram as barbadianas e seus chapéus no começo do século, ainda é comum observarmos uma sulista comentando sobre hábitos

das mulheres das camadas populares, chamadas de rondonienses, como por exemplo, o costume de lavar roupa nos igarapés ou mesmo nos tanques nas áreas de

serviço de suas casas apenas de roupas íntimas. Esse hábito proporcionado pelo clima quente em que o corpo pede pouca roupa, é aproveitado também para um

bronzeamento que o clima regional proporciona durante todo o ano. De modo geral, as nossas mulheres, principalmente das classes populares, usam pouca roupa e

exibem um bom bronzeado durante todo o ano.

Em Rondônia, a moda produzida resume-se ainda a uma grande utilização de costureiras e a existências de malharias para produção de uniformes escolares e

camisetas. O grosso da demanda das lojas vem dos grandes centros como São Paulo, Rio de Janeiro e Goiânia.

Tudo compõe as características da população múltipla que vive no Estado. Apesar de todas as variações e gostos, as vitrines exibem e as mulheres desfilam

botas e roupas pretas feitas para o consumo do sul do país, obedecendo a um imperativo da moda. Práticas observadas por Gilberto Freiry em “Modos de Homem &

Modas de mulher” (Freyre, 1997) são comentadas por Erica Palomino: Assim, traziam-se da França vestidos de todos os tipos (das roupas de festa às do dia-a-dia),

sapatos, meias, espartilhos e roupas íntimas, perfumes, maquiagem (rouge), acessórios e luvas. Na Belle Époque, uma brasileira que saísse sem luvas não seria

considerada “bem vestida”. A sombrinha completava o conjunto. As cores eram escuras: pretos, pardos e cinzentos – como era moda em Paris. Levando em conta o

calor do Brasil, dá para imaginar o tormento pelo qual passavam as mulheres da época, mas ainda assim era possível ver aberrações como, por exemplo, capas de pele

em pleno verão carioca (Palomino, 2000).

Essas características, observadas no Brasil com relação à Europa durante o século XIX e parte do século XX, (Freyre, 1987), fizeram parte da vida das pessoas

que consumiam o que vinha para o Rio de Janeiro e outras capitais e se reproduzem ainda hoje em Rondônia. Tais atitudes são impostas pelos meios de comunicação

e pela falta de indústrias de moda nessa região onde o calor é mais acentuado. As tendências são impostas e aceitas. A moda ditada pelo sul do país para o inverno é

usada por muitas mulheres do norte, impondo seus corpos ao sacrifício das botas e roupas escuras. Ainda hoje a demanda comercial é atendida pelos grandes centros.

Considerando as distintas classes sociais, hoje se compra tanto nas lojas populares pelas principais ruas do comércio como nas feiras populares e no expressivo

número de hippies e camelôs. Lojas de franquia alcançam o consumidor antenado com a moda divulgada pela televisão e revistas, além das lojas chiques ou exóticas que

trabalham com clientela específica, e a exemplo do que ocorreu no início do século XX, com a moda trazida do Rio de Janeiro e outras capitais brasileiras.

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A moda é como Barthes coloca, “uma ordem da qual se faz uma desordem”. Aqui no norte, não se pode deixar de entrever as marcas regionais que se vão

sendo colocadas no que se reproduz: em olhar diferente, um corte que se faz no modo de usar. Em tudo acabam transparecendo as particularidades do resultado

dessa grande mistura cultural.

Para Françoise Vicente-Ricard, “a moda parece feita de rupturas sucessivas, no entanto, por sua evolução fundamental, revela-se a nossos olhos como

expressão de múltiplas representações do mundo em diferentes níveis de intensidade”. Aqui, de uma primeira fase de nativos, caboclos, estrangeiros, depois

nordestinos e sulistas, formou-se todo esse caldeirão multicutural que ajuda a contar a história de um povo.

Fontes Primárias: Foram utilizadas partes de entrevistas com Labibe Aiech, Rita Queiroz e Miguel Roumiê que estão arquivadas e fazem parte do Acervo de Histórica Oral do Centro de Documentação Histórica do TJRO.

Bibliografia ANDRADE, Mario de. O Turista Aprendiz. Duas Cidades. São Paulo. 1983. BENCHIMOL, Samuel. Amazônia-Formação Social e Cultural. Valer. Manaus. 2000. BARTHES, Roland. O Sistema da Moda. Ed. Nacional/Ed. da Universidade de São Paulo. São Paulo. 1979. CUNHA, Manoel Carneiro. História dos Índios no Brasil. Companhia das Letras. São Pa0ulo. 1998. CUNHA, Euclides da. A Margem da História. Martins Fontes. São Paulo. 1999. FREIRY, Gilberto. Modos de Homem Modas de Mulher. Record. Rio de Janeiro. 1987. KÖHLER, Carl. História do Vestuário. Martins Fontes. 2001. HARDMANN, Francisco Foot. O Trem Fantasma. Companhia das Letras. São Paulo. 1988. LOPES, Evandro da Rocha. Súditos e Cassacos: os trabalhadores da Estrada de Ferro Madeira Mamoré. (1907-1931) Mimeo. Porto Velho. 1995. MAIA, Álvaro. Gente dos Seringais. Rio de Janeiro. 1956. MORAES, Raimundo. Na Planície Amazônica. Itatiaia. Belo Horizonte. 1987. PALOMINO, Erica. A Moda. Folha. São Paulo. 2000. VICENTE-RICARD, Françoise. As Espirais da Moda. Paz e Terra. Rio de Janeiro. 1989.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº114 - SETEMBRO - PORTO VELHO, 2003

VOLUME VIII

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

SILVIO A. S. GAMBOA – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

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PORQUE (AMO) BARTHES?

MILENA MAGALHÃES

PRIMEIRA VERSÃO

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Milena Magalhães POR QUE (AMO) BARTHES?

Professora de Literatura Brasileira

e-mail: [email protected]

Desde que encontrei por acaso um pequeno livro de Alain Robbe-Grillet, intitulado Por que amo Barthes, sinto vontade de escrever algo com o mesmo título. Tal livro

chama-me a atenção por dois motivos: primeiro, porque trata-se de um ficcionista falando sobre um teórico - e não é muito comum “amar” um teórico; segundo, porque, de

uma forma ou de outra, é sempre essa a pergunta que faço desde que li pela primeira vez um livro de Roland Barthes. Lê-los, para mim, não se trata de obrigação

acadêmica, mas de uma curiosidade sempre renovada por essa escritura que é, em essência, a busca da escritura. Por isso, este artigo, mais do que abordar alguns pontos do

texto barthesiano, faz um relato dos meus encontros com os livros de Barthes. Toda aparição de um livro tem sua história.

Não causa estranheza um leitor eleger algum ficcionista como seu autor preferido, embora não seja de bom tom na crítica literária – sempre em busca de

palavras estéreis que indiquem objetividade e imparcialidade – usar expressões que demonstrem que essa preferência passa por razões que só podem ser explicitadas

se palavras subjetivas se deixarem pronunciar. Conheço uma moça que afirma que, apesar de vez ou outra lê outros autores, ao menos uma vez por mês precisa reler

algum dos livros de García Márquez. Compreendo-a perfeitamente. No entanto, creio que “amar” um teórico exige um pouco mais de explicações, principalmente

quando não é um impulso “teórico” que me move, mas o simples e ingênuo prazer de identificar-me de tal forma com um autor que sinto vontade de lê-lo nos

momentos mais inoportunos: quando estou muito feliz (para “levantar os olhos” do que está sendo lido), muito triste (para esquecer as razões da tristeza), muito

ocupada com outras leituras obrigatórias (nada melhor do que lê Barthes quando se escreve uma dissertação sobre Umberto Eco), e daí por diante.

O contato com a sua obra ocorreu no 2º ano do curso de Letras. O livro era Aula. Inicialmente, pareceu-me aterrador, complexo e praticamente

incompreensível, o que não me impediu de descobrir ali, dentre tantas definições do que seja literatura, a que me parece mais sedutora até hoje: “Essa trapaça

salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a

mim: literatura”. É também em Aula que Barthes se denomina um sujeito incerto. Autodenominar-se um “sujeito incerto” pareceu-me – e continua parecendo – um

ato de coragem, pois como ele mesmo afirma em outro momento: “O público exige uma fidelidade. Ela não é possível, o escritor só conhece a fidelidade às formas”.

Essa infidelidade corajosa acaba por subverter o que geralmente entendemos por literatura: “Entendo por literatura não um corpo ou uma seqüência de obras, nem

mesmo um setor de comércio ou de ensino, mas o grafo complexo das pegadas de uma prática: a prática de escrever”. Barthes, dessa forma, ao escolher como sua

“língua natural” a literatura não se contenta em observar os seus contornos já definidos, e sim perscruta, questiona e expõe o traço mais definidor desta: a linguagem.

Ainda não sabia, mas a indicação foi a mais acertada. No mesmo livro, Perrone-Moisés nos alerta que a aula funciona como um caleidoscópio de toda a obra

de Barthes. Este apresenta seu envolvimento visceral com a literatura e também com outras artes a ponto de afirmar: “Se, por não sei que excesso de socialismo ou

de barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto numa, é a disciplina literária que devia ser salva, pois todas as ciências estão

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presentes no monumento literário”. É importante confidenciar desde já que é quase heresia chamar Barthes de teórico, uma vez que sua escrita é atravessada por

uma linguagem que está muito distante da que geralmente concebemos como texto teórico. Mais do que dissertar sobre, o que ele propõe é um modo de fazer, um

tipo de saber perpassado pela lógica subjetiva. Seus argumentos são feitos de humores. Sua escritura é uma luta contra o reducionismo do sujeito. Embora o discurso

proferido na aula revele o tom solene que o momento exige, acaba por deixar transparecer, pelo seu conteúdo anti-dogmático, uma vontade de não se aliar ao poder

(mesmo admitindo que ele está emboscado em todo e qualquer discurso). O saber instituído não lhe interessa.

A academia, na maioria das vezes, prima por coerência teórica e obriga a demarcação de posições. A ordem é não “misturar” teóricos de pensamentos antagônicos,

manter uma certa unidade na diversidade teórica que nos constitui. Em meio a essas exigências, Barthes parece-me “inclassificável” (para empregar uma palavra que me

lembra outro texto). As suas contradições são marcadas pelo apelo vibrante dos desejos, do gozo e do subjetivo: “devo reconhecer que produzi tão-somente ensaios, gênero

incerto onde a escritura rivaliza com a análise”. Essa infidelidade à objetividade, como era de se esperar, causou-lhe transtornos e também inimigos. A aceitação da diferença

é, muitas vezes, apenas um mito teórico. Acusaram-no de não ter posição definida, escrevendo sempre o que pedia o momento teórico. Mesmo sendo considerado a figura-

mãe do estruturalismo por François Dosse – “sua encarnação ondulante e sutil, feita mais de humores do que de rigor” –, também é ele visto como pós-estruturalista, o que

enfatiza a idéia de um trabalho em progressivas transformações. Quem é o escritor Barthes? O que considerar: os seus primeiros escritos ou os últimos? Colocada assim, essa

discussão é estéril, pois, embora esteja ligado ao estruturalismo, ele atravessa o rigor exigido, revelando uma linguagem segunda que se pretendia liberta de toda ordem e

que, assim como a linguagem primeira (literatura), estava situada num topos subversivo. Por que não aceitar um estruturalista que sonha com a ausência de sentido e um

pós-estruturalista apaixonado pelos clássicos como Balzac e Gide?

Foi envolvida por essas idéias, então novas e instigantes, que li S/Z e fiz da sua estrutura a estrutura da minha monografia final de curso. Em S/Z, os recortes

operados no texto interpretado são grade e libertação: o despedaçar aleatório não tem uma lógica previamente definida pela estrutura, e sim a partir da imaginação

do leitor, embora o que se veja ainda seja uma tentativa de estruturar a partir de um sistema de códigos (sempre podemos dizer que os códigos ali são somente

pontes para o imaginário fluir). Por isso, a sua ligação com o estruturalismo, neste livro, começa a esgarçar-se, uma vez que a idéia de interpretação ganha novos

contornos. Consolida-se em mim a idéia de que o texto de Barthes se constitui sobre o signo da subversão, ampliando os limites do que seja a crítica literária. Nesta,

para ele, deve haver espaço para o escritor (“aquele que trabalha a sua palavra”) e o amador (aquele que ama). Tanto a concepção do que seja leitor – “o que está

em jogo no trabalho literário ... é fazer do leitor não mais um consumidor, mas um produtor do texto” – como a do que seja interpretação – “Interpretar um texto não

é dar-lhe um sentido (mais ou menos embasado, mais ou menos livre), é, ao contrário, estimar de que plural é feito” – se constrói sobre a convicção de “afirmar o ser

da pluralidade”, ferindo de morte o desejo de impor a verdade como condição da interpretação. Prevalece a validade.

No grupo de estudo que participei na Universidade, um dos primeiros livros comentados foi O prazer do texto. A discussão não foi das mais fortuitas, menos ainda

minha leitura. Somente depois, reli-o. Brincando com os significantes/significados, Barthes opera a distinção entre prazer e fruição. Para ele, alguns textos provocam

prazer (satisfação), enquanto outros fruição/gozo (desfalecimento). Os textos ficam emboscados entre esses dois momentos distintos de recepção que, por vezes, estão

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em oposição. Barthes parece aproximar-se do receptor, dando-lhe importância: “Este retorno da palavra ‘prazer’, é porque ela permite uma certa exploração do sujeito

humano”, embora a ênfase seja dada ao Texto. Ainda é a busca pelo grau zero da escrita, um lugar atópico por excelência em que os signos possam revelar-se e

esconder-se. A alforria da palavra é exposta e desvirtuada, e o gozo deixa de ser apenas prazer: é como um coito proibido e desejado. Senti isso quando li agora

Graciliano, Hilda Hilst e Calvino: quase entendo, mas algo sobra e escapa-me, o que não senti quando li outros: o texto do prazer é dizível, o texto da fruição opera no

interdito: “texto de prazer: aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável de leitura. Texto

de fruição: aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta ..., faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas, do leitor, a consistência de seus gostos,

de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem”. A partir dessa diferenciação, no primeiro momento, parece ser possível afirmar

que Barthes faz a opção pelos textos de vanguarda em detrimento dos clássicos. No entanto, não creio que seja isso. A consciência histórica do já-dito e do já-feito abre o

leque para o que está sendo feito à sua época (como os textos de vanguarda de Alain Robbe-Grillet), sem deixar de perceber que há todo um lastro textual que vem dos

clássicos pronto para ser recortado na produção de novos textos. É o que ele faz com o texto legível de Balzac - Sarrasine - em S/Z. Se não é mais possível reescrever

textos realistas como os de Balzac, Zola e Proust (é o que ele diz em Roland Barthes por Roland Barthes) é porque estamos diante de um novo mundo que se transforma

continuamente: “O mundo como objecto literário, escapa-se; o saber deserta a literatura que já não pode ser nem Mimesis nem Matesis mas simplesmente Simiosis, a

aventura do impossível linguageiro, numa palavra: Texto”. O par prazer/fruição não é o único estabelecido por Barthes. Para deixar falar a contrariedade com a voz da

ciência, outros pares lhe fazem companhia: studium/punctum – óbvio/obtuso.

Nos livros da seleção de mestrado, Crítica e Verdade era um dos que precisava ser lido. Por isso, numa viagem às pressas, ele passeou comigo pelas estradas

do Nordeste e foi lido em uma noite, uma manhã ensolarada na casa da irmã e um vôo de volta a Porto Velho. O Barthes incisivo, que responde a provocações,

produz alguns textos que se tornaram referência em qualquer discussão sobre o papel da crítica, como “Escritores e Escreventes” e “Crítica e Verdade”. Como ainda

vemos até hoje, a batalha trava-se num campo de guerra em que de um lado estão os defensores da objetividade, da unidade e da clareza em oposição a um deslizar

contínuo da linguagem. A crítica proposta por Barthes não quer esclarecer, não quer comentar, quer apenas o direito de produzir nova linguagem que possibilite outra:

“fazer uma segunda escrita com a primeira escrita da obra é com efeito abrir a via de prolongamentos imprevisíveis, o jogo infinito dos espelhos, e é esta escapada

que é suspeita”.

Há certos livros que sempre me fazem pensar que toda cidade merece uma Livraria da Rose. Para quem como eu fantasia poder deitar em qualquer lugar para

ler, é numa livraria como essa que podemos alimentar as nossas paixões literárias. E digo isso porque foi sempre essa livreira-mito que materializou meus mais loucos

desejos bibliográficos, como, por exemplo, O Grau Zero da Escrita. Este é o primeiro livro lançado por Barthes. Um dos artigos mais contundentes é o que designa a

sua concepção de literatura: O que é escrita? Se fosse uma tradução brasileira, certamente seria O que é escritura? Nas palavras do crítico José Augusto Seabra, este

livro é “O germe da subversão barthesiana”, pois a literatura já é vista essencialmente como linguagem, desligada das ortodoxias. Outro artigo que me chamou a

atenção, envolvida que estava com minha “iniciação” em poesia, foi Existe uma escrita poética?. Comparando a palavra poética a “uma caixa de Pandora de onde

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saem voando todas as virtualidades da linguagem”, Barthes imagina também um novo receptor que a devore com “uma curiosidade particular, uma espécie de

gulodice sagrada”. A palavra poética não é inocente nem ingênua, é, ao contrário, “uma palavra terrível e desumana”. A afirmação de que o Texto é basicamente

linguagem - a consciência da linguagem como mola e mote para o que pode ser dito depois - é fundamental para compreender o pensamento de Barthes e, a meu

ver, embrenhar-se pela escritura.

Encontrei Fragmentos de um discurso amoroso numa livraria da cidade de Araraquara. Ao lê-lo, a partir de uma certa página, passei a sentir-me uma das

personagens de Calvino em Se um viajante numa noite de inverno, pois, para minha surpresa, as páginas começaram a repetir-se, os caracteres abraçavam-se de

cabeça para baixo, com duas escritas superpostas uma à outra. Precisei esperar alguns meses até chegar um novo exemplar em que os caracteres não desejassem

ocupar o mesmo espaço. Tendo escrito tantos pedaços, recortes, quadros, como a dizer que não acreditava numa totalidade fechada, um título como Fragments d’un

Discours Amoureux expande a sedução plena de que se valeu Barthes para enunciar uma nova crítica ou a desnecessidade desta, se percebida como um velho modo

de olhar os textos. Fragmentos já não é metalinguagem. O uso da primeira pessoa quase compactua com o texto romanesco, mas a ausência de enredo, o argumento

que persegue cada figura nos diz que, se estamos diante de um romance, sua forma ainda nos é totalmente desconhecida. O que mais me seduz nesse livro é a sua

montagem que pode ser comparada a um grande Frankenstein, visto ser um texto feito de pedaços de outros textos, em que as citações, alusões, ganham novo

sentido no eu que se pronuncia: “... um discurso cuja instância não é outra coisa senão a memória de lugares (livros, encontros) onde tal coisa foi lida, dita, ouvida”.

No ano passado, Rose apareceu com dois livros de Barthes raros no Brasil (edição portuguesa): fiquei apenas no desejo de Sistema da Moda, muito caro para

meus padrões. Sobrou-me Incidentes, seu livro póstumo, comprido e fininho, em forma de diário. A vontade de que sua escrita evoluísse para uma espécie de diário, à

moda de André Gide, um dos seus escritores essenciais, já tinha sido proferida em Roland Barthes por Roland Barthes, ele mesmo uma espécie de diário escrito em

terceira pessoa. Em Incidentes, a sua face mais humana – já imposta em outros livros – deixa de ser mascarada e observamos pelo “buraco da fechadura” suas tardes

improdutivas, seu desagrado com as conversas “sempre as mesmas” dos intelectuais, suas aflições com as paixões breves e intensas e com sua falta de memória.

Seus aforismos, as paisagens e passagens rápidas são como fotografias que ele nos vai mostrando. Identifico-me numa série de lamúrias: “Sempre esta dificuldade

em trabalhar de tarde...”.

No sebo da Carlos Gomes, embaixo das prateleiras, encontrei por acaso - como encontramos todos os livros em sebos - três exemplares de O Grão da Voz, livro que

reúne suas entrevistas em língua francesa. Comprei os três, dei de presente os outros dois e, junto com o livro 40 escritos, de Arnaldo Antunes, é a minha primeira

experiência de ler no banheiro. Talvez por ter horror a entrevistas, Barthes deriva sobre os pontos que causam mais controvérsia e curiosidade na sua obra sem deixar de lado

o teatro de vozes plurais que assegura a sua liberdade teórica. Perguntado se as coisas significam alguma coisa, ele responde fazendo uma síntese do seu pensamento: “O

que toda a minha vida me apaixonou foi o modo como os homens tornam o mundo inteligível. ... a escritura cria um sentido que as palavras não possuem de início. É isso que

eu tento exprimir”. A pluralidade de sentidos quase se transforma em ausência de sentido, desejo manifesto em vários de seus textos.

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Na cidade de Vilhena, onde se consegue ler com meia no pé (sempre achei o máximo essa imagem), iniciei a leitura de uma biografia de Roland Barthes, mas

li apenas algumas partes. Fiquei enjoada como se estivesse rompendo um acordo, transgredindo uma norma de conduta. As biografias, na maioria das vezes,

exploram a privacidade causando-me a estranha impressão de que retornamos ao tempo em que era um espetáculo público o banho do rei. As especulações sobre a

sua vida me pareceu ser de importância menor diante do dito que constitui sua obra. Como diz Antunes, a “vida contém cenas explícitas de tédio nos intervalos da

emoção”. Não é isso que me interessa. Assim como a ele, é a sua escritura que me seduz. O que como leitores precisamos saber da vida de R. B. pode ser encontrado

nos seus livros. Nestes, a realidade é desvirtuada pelo imaginário que passa a ser mais interessante do que o real a ponto de este se camuflar em várias virtualidades.

No livro Roland Barthes por Roland Barthes, “arrancado à força da insistência” de minha melhor amiga que teve a sorte de encontrá-lo em um sebo antes de mim, a

projeção em terceira pessoa desvela o desejo que percorre o seu autor: “O esforço vital deste livro é pôr em cena o imaginário”.

Também em Vilhena, assisti à palestra de uma professora que fez sua tese de doutorado tendo como suporte teórico as idéias de studium e punctum que

estão no livro A Câmara Clara, último dos livros publicados em vida. Quando retornei, a primeira ação foi relê-lo. Para mim, mais do que em O prazer do texto, é em A

Câmara Clara que Barthes faz a opção pelo leitor, no caso, o observador (spectator) das imagens. Em cada fotografia, é o ínfimo que ganha relevância; e aquilo que é

ausência (ou quase) para outrem é o que transtorna o observador solitário. A ironia reside no fato de ser justamente no que nos parece mais objetivo (a fotografia)

que ele impõe com maior dinamismo a força da subjetividade.

Talvez os autores que verdadeiramente amamos não devam ser estudados, mas apenas lidos. Explico assim o excesso de covardia que me impediu de fazer

minha pesquisa de mestrado com a obra de Roland Barthes. Imagino as horas de fruição das quais me furtei, embora recorra a suas idéias em várias passagens da

dissertação. Dou início à conclusão com as suas palavras para afirmar: até mesmo Barthes foi contraditório quando falou sobre o leitor (com tudo pronto, meu

orientador falou: “por que não disse antes que queria pesquisar Barthes? Teríamos diminuído vários impasses. No mínimo, teríamos discutido menos”). Silenciei

porque não queria admitir naquele momento de realização que talvez não me sinta à altura de escrever sobre ele. Em um daqueles dias de zanga em que se coloca

em xeque até a quem se admira, escrevi: “Não sei se gosto tanto assim da Leyla Perrone-Moisés. Ela pesquisa Barthes, mas a sua escrita é desprovida de poesia, por

isso quando eu a leio penso naquele trecho da música dos Paralamas do Sucesso: ‘tendo a lua aquela gravidade onde o homem flutua merecia a visita não de

militares, mas de bailarinos e de você e eu...’. Barthes merecia poetas estudando-o e não uma crítica com escrita de cientista”. Talvez por isso eu só tenha coragem de

escrever sobre Barthes inserindo-o na minha vivência. Há um medo de escancarar de vez a cientista que habita em mim – não dizem que fazemos projeções?

À medida que vou escrevendo este ensaio, às vezes euforicamente, outras dando longas pausas relegando-o ao esquecimento, a possível razão de Por que

amo Barthes vai delineando-se. Anima-me a idéia de a razão de amá-lo residir no fato de, para mim, ele ser um dos poucos escritores que permite ao seu leitor

encontrar e recriar as próprias razões de ser um leitor que por vezes sente necessidade de ser também escritor. Sem ser rebelde ou marginal (estar à margem),

Barthes assegura-me a possibilidade de ser as duas coisas e está num entre-lugar que confirma a necessidade da inquietude para a produção.

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Na estante repousa Sade, Fourier, Loyola (por que ainda não me animei a lê-lo?). O óbvio e o obtuso também espera. Acabei de ganhar do meu companheiro

Sistema da Moda, encontrado em sebo numa edição brasileira bem mais acessível ao nosso bolso. Logo após, comprei Mitologias e Michelet, dois dos seus livros mais

importantes. De olhos arregalados, leio agora Michelet. Muito ainda falta para ser lido e tudo para ser relido. Mesmo quando minha escrita cessar, fugaz como boa parte da

produção de hoje, anima-me pensar que a de Barthes continuará atravessando as gerações. Sempre haverá um dia em que algum graduando vai topar com Barthes, bater o

olho e encontrar. E encontrar-se. Por que amo Barthes? Porque amo a leitura. Talvez seja esta a razão primeira de amar um autor.

Bibliografia

BARTHES, Roland. Sistema da moda. Trad. L. L. S. Mosca. São Paulo: Editora da USP, 1979. ________. A câmara clara. Trad. J. C. Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. ________. Sobre Racine. Trad. A. C. Viana. Porto Alegre: L&PM, 1987. ________. Incidentes. Trad. T. Coelho e A. Melo. Lisboa: Quetzal Editores, 1987. ________. O rumor da língua. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: Brasiliense, 1988. ________. O óbvio e o obtuso. Trad. L. Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. ________. S/Z. Trad. L. Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. ________. O grão da voz. Trad. A. Skinner. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. ________. Aula. Trad. L. Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1996. ________. Crítica e verdade. Trad. L. Perrone-Moisés. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1999. ________. Mitologias. Trad. R. Buongermino e P. de Souza. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. ________. O prazer do texto. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1999. ________. Fragmentos de um discurso amoroso. Trad. H. Santos. RJ: Francisco Alves, 2000. ________. O grau zero da escrita. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2000. ________. Sade, Fourier, Loyola. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: Brasiliense, s/d. ________. Roland Barthes por Roland Barthes. Lisboa: edições 70, s/d. ROBBE-GRILLET, Alain. Por que amo Barthes. Trad. S. Santiago. RJ: Ed. UFRJ, 1995. SEABRA, José Augusto. Poiética de Barthes. Porto: Brasília Editora, 1980.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº115 - SETEMBRO - PORTO VELHO, 2003

VOLUME VIII

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

SILVIO A. S. GAMBOA – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

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EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 115

O JUDICIÁRIO NO PERÍODO MILITAR

NILZA MENEZES & CÉLIA LINO

PRIMEIRA VERSÃO

Page 15: Volume viii 2003

Nilza Menezes e Célia Lino O JUDICIÁRIO NO PERÍODO MILITAR Coordenadora do Centro de Documentação do TJ-RO / Jornalista Pós-graduada em Moda [email protected] / cé[email protected]

Fazendo uso de informações em entrevistas que fazem parte do Acervo de História Oral do Centro de Documentação Histórica do Tribunal de Justiça do

Estado de Rondônia, serão feitas algumas reflexões sobre a posição do judiciário e dos juizes dentro de um período marcante da história brasileira no século XX. O

período que ficou conhecido como os anos de chumbo, ou período do regime militar, demarcado pelos anos que vão de 1964 até o final dos anos 70, lembrado como

um tempo de acontecimentos marcantes para a história contemporânea brasileira.

São tomados por base depoimentos de juízes federais, que à época, prestavam serviços nos territórios Federais de Roraima, Amapá e Rondônia e também em

observações feitas por advogados sobre a postura dos juízes no período, o que nos oportunizou observar como era o entendimento de uma classe que praticamente

não se manifestou, mas que possuía uma posição sobre o momento político brasileiro.

Os magistrados são tidos como uma classe não afeita à exposição, uma instituição até pouco tempo completamente fechada. Entretanto,

recentemente, começaram a aparecer pesquisas feitas a partir da documentação do judiciário, surgindo também na última década, em vários Estados, os

Centros de Memória e Documentação, em alguns casos museus, disponibilizando fontes que proporcionam novas leituras e colocam a disposição dos

pesquisadores documentos antes inacessíveis.

Essa mudança ocorre em razão de mudanças nos focos de interesse da historiografia e dos pesquisadores e historiadores que passam a fazer uso de uma

fonte antes não utilizada, os documentos judiciais, havendo por parte do próprio Poder Judiciário o interesse em oferecer essa documentação, o que faz parte de uma

política de abertura adotada que busca afrouxar a aparência formal, num processo de transparência para que se possa melhor conhecer a instituição.

Sem nos aprofundarmos na questão, ela ocorre por iniciativa do Poder Judiciário, abrindo seus Centros de Memória e Museus dando a possibilidade de

utilização de documentos antes não de interesse de historiadores e não disponibilizados pela Justiça. Assim, surge o interesse da história por essas abordagens,

apresentando novas possibilidades de diálogos e de interpretações.

Sobre o período de análise que se caracterizou pela tomada do poder, o que aconteceu com o apoio da classe média, o país vai viver os anos mais dolorosos

da nossa história.

Conforme Boris Fausto, a partir do golpe em 64, o país passa a viver sob normas dos Atos Institucionais que atingiam os direitos dos cidadãos e

também o Congresso e o Judiciário. No caso do Judiciário, no período completamente a serviço dos interesses do governo, só no ano de 64 foram

expurgados 49 juízes (Fausto: 2000).

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Com a comemoração dos 30 anos do estranho ano, em 1998, quando os participantes do processo foram considerados “demonizados”, as vozes começaram a

se soltar proporcionando uma visão mais ampla dos fatos (Reis: 2000).

Os projetos de História Oral trazem para a cena vozes desconhecidas. No caso presente, as vozes dos juizes de Direito, à época Juizes Federais a serviço nos

territórios, que nos permitem observar o olhar que eles tinham sobre a situação e a posição que mantinham para sobreviverem dentro de um regime autoritário.

O colaborador Desembargador Aldo Castanheira, que exerceu o cargo de Promotor de Justiça no Território Federal de Roraima de 1962 a 1972 e em Rondônia

de 1972 a 1982, quando foi nomeado Desembargador na criação do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia em razão da transformação de Território em Estado da

Federação, informa: “a estrutura judicial funcionava com juízes e promotores vinculados à Justiça do Distrito Federal” (Castanheira: 1999)

O Desembargador Hélio Fonseca, que chegou em Rondônia no ano de 1959 para ser promotor público e que assumiu como Desembargador na criação do Poder

Judiciário comenta sobre o período: Naquele tempo a justiça daqui era subordinada ao Rio de Janeiro e, depois de 1960, passou para Brasília. O Tribunal ficava muito distante

e não dava a menor confiança para a justiça local. Tinham a justiça dos territórios como de segunda classe. Isso desestimulava os juízes e promotores. Quem vinha para cá

não tinha nem o direito de promoção. Era nomeado Juiz e jamais chegaria a Desembargador do Tribunal de Justiça e o promotor daqui jamais seria promovido para Brasília

para chegar ao cargo de Procurador. Então a carreira morria aqui. Não se tinha um apoio psicológico, desanimavam (Fonseca: 1999).

A postura do judiciário com relação ao regime foi de estar a serviço do governo, o que não impedia de muitos juízes de terem opinião própria e mesmo de, em

algumas ocasiões, manifestarem suas idéias em decisões. Quando essas idéias não eram de interesse do Estado, podiam ser punidas severamente.

Mesmo não se manifestando, ou não contrariando os interesses do Estado, eles tinham consciência do papel que ocupavam. Aqueles que ousaram tomar

qualquer atitude que veio desagradar à elite sofreu as penalidades que faziam parte do sistema naquele momento. No caso dos juízes que passaram pela judicatura

no então Território Federal de Rondônia, a pena foi a de cassação.

Dois juízes foram cassados. O Dr. Joel Quaresma de Moura na década de 60 e o Dr. Antônio Alberto Pacca na década de 70. Ambos já faleceram.

Sobre o assunto nada se registrou na documentação do judiciário, mas, conforme comenta o advogado Pedro Origa, sobre a cassação do Juiz Antonio Alberto

Pacca, o fato ocorreu por meio de um procedimento completamente inquisitorial.

Não houve para a sua cassação um processo com ampla defesa. Eu digo, aquilo não foi defesa. Você responder as indagações de um inquisitor ou

inquisidor, ardentemente preparado para punir (conseguir a confissão,) não pode ser processo legal. Sem que se soubesse o que realmente existia de prova

contra a pessoa (depoimentos, documentos). Ninguém assistia os depoimentos, eles eram feitos de forma secreta, quer dizer inquisição mesmo (Origa,

1999)

Com relação à cassação do Dr. Joel Quaresma de Moura, quem comenta o assunto é o Desembargador Aldo Castanheira que assim o descreve: Em 1972

quando cheguei aqui, já conhecia de nome o Dr. Joel Quaresma de Moura, que foi juiz por muitos anos e era um cidadão de respeitabilidade impressionante, uma

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figura extraordinária, apesar de viver em uma região isolada, era um gênio. Eu o conheci quando cheguei aqui, ele estava como advogado porque tinha sido cassado

por conta da revolução. Quanto ao processo de cassação dele, até hoje não sei o que aconteceu (Castanheira,1999).

Todos os colaboradores fizeram comentários sobre o período militar e a cassação dos dois magistrados no Território Federal de Rondônia. Todos afirmam que

eles foram cassados por conta do regime militar, no entanto não possuem informações detalhadas sobre o fato, o que é natural.

Observamos que os dois juízes federais estavam exercendo as funções no Território Federal de Rondônia e que foram cassados no período. Tanto Antônio

Alberto Pacca como o Joel Quaresma de Moura apresentam pela documentação uma atuação forte quanto à quantidade de trabalho. Não tendo, portanto sido a

incompetência o motivo da exoneração, mas possivelmente tenha sido provocada por questões ideológicas, podendo isso ser observado na fala do colaborador

Desembargador Aldo Alberto Castanheira e Silva que observa: Quando eu cheguei aqui, já conhecia de nome o Dr. Joel Quaresma de Moura, que foi juiz por muitos

anos era um cidadão de respeitabilidade impressionante, uma figura jurídica extraordinária, apesar de viver em uma região isolada era um gênio. Eu conheci quando

cheguei aqui como advogado, porque tinha sido cassado por conta da revolução (Castanheira, 1999).

Algumas informações dão conta de divergências desses juízes nas decisões tomadas com relação ao INCRA, outros falam em improbidade, mas, mediante

observações feitas por juízes aposentados e advogados que à época exerciam as atividades vamos perceber que dentre os membros do judiciário havia discordância e

atitudes contrárias que foram punidas.

Ao lembrar o Juiz Antonio Alberto Pacca, o advogado Pedro Origa, que chegou na região no ano de 1971 e tomou conhecimento dos fatos, esses se deram

pelos seguintes motivos: Sua visão era dos juizes da época, era um magistrado positivista. Existia a lei, e ele tinha que cumpri-la. O INCRA achava que a lei era ele.

Como o processo revolucionário vinha se acumulando, ele foi objeto de um processo altamente inquisitorial que culminou com a sua cassação. (Origa:1999)

Explicando melhor a questão, comenta: Com a chegada do desenvolvimento, o INCRA entendia que não havendo o título ele podia fazer o assentamento. O

Dr. Pacca entendia que a posse tinha de ser respeitada, que o INCRA não podia chegar como dono. Então, ele tinha noção que o papel dele como magistrado era o de

preservar o direito individual, mesmo estando num período autoritário, altamente autoritário, Veja bem: ele era um homem de origem da direita, mas que resolveu

preservar valores que aprendeu na vida e se tornou aquilo que todos os perseguidos da revolução tornaram (Origa, 1999)

Joel Quaresma de Moura exerceu as funções na década de 60 e Antônio Alberto Pacca na década de 70. Sem juízo de valor, observamos nos dois casos uma

produção expressiva em sentenças, despachos, uma atividade notável tanto em quantidade como em rapidez. Eles aparecem exatamente no momento de

renascimento do judiciário da região, o que se dá em razão do incentivo da migração no início dos anos 60, conforme política adotada pelo governo federal.

Possuíam, segundo informações de advogados, personalidade forte, não se dobravam aos interesses políticos. O advogado Pedro Origa, que militava na

advocacia no tempo em que Pacca era magistrado, comenta: “ele era uma pessoa que pensava nos pobres, que ficava do lado dos mais fracos, desagrava aos

interesses dos grandes proprietários” (Origa, 1999).

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O Desembargador aposentado Clemenceau Pedrosa lembra o período militar como um tempo que se os juizes não fizessem a vontade dos grandes sofreriam a

degola, e comenta a interferência em decisões. Fala que naquele tempo, tempo do AI-5 a magistratura não tinha estabilidade e que ficavam a mercê da simpatia do

Poder, não havendo garantias para o Magistrado que, no geral, acabava fazendo o jogo do poder. Nas suas palavras podemos perceber a carga que isso acarretava:

Minha vivência nos Territórios era difícil porque eu era só, não tinha contatos com outros juízes. Meus diálogos eram feitos em Belém do Pará com os

Desembargadores do Tribunal de Justiça e alguns juízes. Naquela época, foi excepcional, estava em pleno desenvolvimento o Ato Institucional nº 5. Todas as

garantias constitucionais da magistratura estavam suspensas. Qualquer juiz podia ser cassado com base no AI-5. As garantias da Magistratura, ou seja: vitaliciedade,

inamobilidade e retroatividade de vencimentos estavam suspensas, conseqüentemente se contrariássemos os “poderosos” que eram os militares da época, estávamos

sujeitos a sofrer uma degola. Recebíamos pressões a toda hora, mas graças a Deus nunca me submeti a essas pressões, sempre decidi com independência, mesmo

sofrendo pressões tanto no Amapá como em Roraima. Em Rondônia nenhuma, graças a clarividência e o espírito público do governador Jorge Teixeira de Oliveira

(Clemenceau, 1999)

Sobre a cassação do Juiz Antônio Alberto Pacca, ele observa: “O Dr. Antonio Alberto Pacca, havia sido cassado pelo AI-,5 o que foi uma grande injustiça aqui

em Porto Velho...” (Clemenceau, 1999).

O advogado Pedro Origa, ao falar sobre a cassação do Dr. Pacca, informa: O problema que ele enfrentou foi o de ter sido na época do arbítrio,

apesar da seleção de juizes ser uma seleção onde o conteúdo ideológico era mensurado, isso não se tem como esconder, evidentemente quem tivesse

participado do processo de 64 não seria juiz no período revolucionário. Quem quiser esconder, esconde, porque não está com vontade de dizer. Então,

evidentemente, o Dr. Antonio Pacca não era um homem que se pudesse dizer de esquerda, mas era um homem com um senso muito grande de justiça, com

uma percepção muito grande para decidir e com uma concepção muito grande do papel que desempenhava. O confronto básico dele foi em razão de

representar um poder que era o Poder Judiciário, encarregado de dirimir conflitos naquela visão mesmo sua, e dos juizes da época, de um magistrado

positivista. (Origa, 1999).

Sobre a cassação do Juiz Alberto Pacca, o Desembargador Aldo Alberto Castanheira informa: O Dr. Pacca foi colega de concurso do Dr. César Montenegro e do

Dr. Clemenceau Pedrosa Maia. Trabalhei com ele muito tempo aqui em Porto Velho, era exclusive muito trabalhador, mas por um motivo ou outro, talvez seja um

processo muito longo tocar nessa questão, ele foi se indispondo com o Capitão Silvio Gonçalves de Farias, o executor do INCRA em Rondônia. O Capitão era um

homem forte na época, era ligado ao Conselho de Segurança Nacional. Por essas questões, os ânimos foram se exacerbando e parece que foi se complicando. Nas

defesas que ele andou fazendo, segundo consta, não se saiu muito bem. A situação ficou complicada e ele acabou sendo cassado (Castanheira,1999).

As duas falas, tanto a do advogado Pedro Origa como do Desembargador Clemenceau Pedrosa Maia, trazem referências aos problemas políticos da época. Deixam

claro que a questão que deu causa as cassações foram problemas relacionados à postura desses magistrados frente ao INCRA que através do seu executor o Capitão Silvio

Gonçalves de Farias, representava o Poder. O Desembargador Clemenceau Pedrosa Maia, em sua fala deixa transparecer de forma clara o que representava contrariar o

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poder naquele período: Naquela época, foi excepcional, estava em pleno desenvolvimento o Ato Institucional nº 05, o AI-5. Todas as garantias constitucionais da magistratura

estavam suspensas. Qualquer juiz podia ser cassado. Vitaliciedade, inamobilidade e retroatividade de vencimentos estavam suspensas, conseqüentemente se contrariássemos

os “poderosos” que eram os militares da época, estávamos sujeitos a sofrer uma degola (Clemenceau, 1999).

Sobre a estrutura do Judiciário nos territórios, o Desembargador Aldo Alberto Castanheira e Silva, conta que: “O Judiciário existia nos territórios, e os juizes

eram vinculados ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal”. Falando sobre os processos de cassação observa: Na época tinha o CGI - Comissão Geral de Investigação

no âmbito da justiça, cada Estado tinha uma sub CGI, geralmente comandada por um militar. Eram processos sigilosos, eles faziam coletas de depoimentos, às vezes

nem isso e era mandado para Brasília, é claro que isso era negócio de regime forte. Muitas cassações talvez tenham sido até corretas, mas desta forma eram absurdas

(Castanheira, 1999).

As falas nos possibilitam um outro olhar sobre o Judiciário. Conforme observamos na introdução o Poder Judiciário permaneceu hermético ao longo da sua

história, estando nos últimos anos a procura de novas formas de posicionar-se. Isso se apresentou latente conforme observamos em recente Seminário na cidade de

Porto Alegre no Rio Grande do Sul, cujo tema era memória e historiografia institucional, organizado pelo do Memorial do Judiciário. Além de discutir as questões

ligadas aos problemas de arquivo e preservação de documentos, falou-se na questão de que muitas vezes a imprensa divulga notícias e o Poder Judiciário permanece

silente, sendo um órgão do qual pouco se sabe, o que demonstra a preocupação deste em mostrar-se mais receptivo ao público.

Nos últimos anos, através dos museus e memoriais, o Poder Judiciário começa a disponibilizar sua documentação aos pesquisadores surgindo possibilidades de

novas interpretações. Os Estados do Mato Grosso do Sul, do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Minas Gerais, Rondônia, entre outros, já possuem seus acervos

disponibilizados. Alguns casos ainda se encontram em fase de organização, sistematização e tratamento dos documentos, no entanto com a documentação sendo

organizada, e a construção de acervos de História Oral, oferecem novas oportunidades de pesquisas e novas leituras em diversas áreas do conhecimento.

Fontes: Depoimentos dos Desembargadores, Clemenceau Pedrosa Maia, Hélio Fonseca, Aldo Alberto Castanheira e Silva e com o advogado Pedro Origa. As

entrevistas encontram-se arquivadas no Centro de Documentação do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia.

Bibliografia

FAUSTO, Boris, História do Brasil. Edusp. São Paulo. 2000.

MEIHY, Jose Carlos Sebe Bom. Manual de História Oral. Loyola. São Paulo. 1999.

REIS, Daniel Aarão. Ditadura Militar, esquerdas e sociedade. Jorge Zahar. Rio de Janeiro. 2000.

THOMPSON, Paul. A Voz do Passado. Paz e Terra. Rio de Janeiro. 1998.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº116 - SETEMBRO - PORTO VELHO, 2003

VOLUME VIII

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NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

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ISSN 1517-5421 lathé biosa 116

METODOLOGIA DA HISTÓRIA

ALBERTO LINS CALDAS

PRIMEIRA VERSÃO

Page 21: Volume viii 2003

Alberto Lins Caldas METODOLOGIA DA HISTÓRIA Professor de Teoria da História - UFRO www.unir.br/~caldas/Alberto - [email protected]

“... cada vez mais historiadores estão começando a perceber que seu trabalho não reproduz ‘o que realmente aconteceu’ ...” Peter Burke

Este é um texto estritamente heurístico: sua função deve se esgotar “na sala de aula”. Sua meta é reunir determinadas “experiências” para discussão e estímulo à pesquisa em História. Seu âmbito é restrito e aberto exatamente para permitir os desdobramentos da individualidade na pesquisa historiográfica e os debates em sala de aula. Suprindo deficiências, não sendo “usado”, não se tornando “manual”: sua forma de existência é de instigamento e estímulo preliminares. Suas incompletudes e erros devem estimular, na prática do debate e na pesquisa, um processo de “resposta” ativa e criativa.

O PROJETO

O projeto é rascunho inicial de pretensões, intuições, articulações imprevistas, desejos, paixões. Não é “modelo”, devendo se apresentar preliminarmente como imaginação seduzida, espaço de devaneio que se ajusta para agir, para se pôr a criar ou arrebanhar seu “objeto de desejo”. O momento inicial, o que levará ao projeto, não é nem deve ser acadêmico: ele é pessoal, é obsessão, escolha, dúvida, querer saber, não saber, um querer completar, o desenvolvimento de um “quadro de questionamentos” que precisam se corporificar num primeiro esboço. Esse esboço é o projeto: guia no caminho inicial, jamais algo a ser realizado em sua plenitude, algo que force os documentos, a escrita, a ação ou o pensamento na pesquisa. O projeto é condensação de princípios não “planilha de execuções”, uma “delimitação de objeto” e uma “definição de direção”.

Esboçaremos aqui um “modelo de projeto”, idéias esparsas, bases, estímulos. Dele podemos fazer quantas modificações for preciso, acrescentando, retirando,

refazendo ao gosto do desejo e da matéria, e à cada matéria um projeto específico.

Na Justificativa desenvolve-se por que se pretende realizar a pesquisa. Busca-se

falar do “problema”, da “idéia”, da “imagem” que conduziram ao projeto que se pretende realizar e onde (na bibliografia, na vida, no sonho, no desejo e porquê) se

originou o problema central do trabalho. Também se fala sobre a relevância da pesquisa e inicia sua defesa numa explicação dos motivos de viabilidade da execução,

as referências à originalidade e, principalmente, relacionar em grandes linhas os marcos teóricos com o tema. Os Objetivos apontam com o para que da investigação,

com o que se quer pesquisar, definindo os problemas, devendo-se, nesse momento, se inter-relacionar intimamente com o tema da pesquisa. No Quadro Teórico

delimita-se a série de marcos teóricos que sustentam a pesquisa, situando-a dentro do campo teórico principal. Na Metodologia desenvolve-se a metodologia geral,

nascida dos quadros teóricos e dos problemas específicos do assunto, relacionando essa metodologia geral com uma metodologia específica (procedimentos) gerados

a partir do tema ou da área de conhecimento. Mas deve-se lembrar que um projeto de História não deve ter Hipóteses (que não são questões ou problemas mas um

tipo de visão de mundo), o que seria reposicionar o conhecimento para um tempo onde se queria prever, materializar, objetificar tanto os documentos quanto a

atividade do historiador.

Podemos também desenvolver uma parte de Recursos Financeiros e Humanos, onde se põe as despesas, os financiamento e as necessidades com material, e

até mesmo a quantidade de pessoal para realização da pesquisa, mas isso em casos muito específicos, principalmente quando envolve projeto institucional com bolsa,

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relatório, etc, o que exigiria também um Cronograma, que é estrutura temporal geral da pesquisa: princípio e fim, uma estimativa das ações no tempo, as etapas a

serem seguidas numa seqüência lógica. A Bibliografia deve pôr, num mesmo conjunto, textos específicos sobre o tema tratado, textos gerais onde se desenvolve o

tema e seus correlatos imediatos, textos gerais da fundamentação teórica, demonstrando conhecimento e leitura tanto sobre a questão quanto daquilo que a envolve.

A desenvoltura bibliográfica é fundamental em todo o processo de pesquisa.

MÉTODO

Toda pesquisa flui em contradições. Deve-se assumir estão as contradições como componentes da existência, do pensamento, das teorias, dos conceitos, das idéias e, principalmente, do pensamento histórico. Os elementos contraditórios devem ser compreendidos e enfrentados, não anulados ou afastados. Os elementos contraditórios, os conjuntos contraditórios não exigem mediações lógicas para se restabelecer numa harmonia falsa. O sistema será compreensível mesmo sem as mediações forçadas, sejam pelas teorias sejam pelo estilo inconsciente de si mesmo. As contradições não devem ser expurgadas, "superadas" ou pensadas separadamente: elas nascem da relação, da dialogicidade geral. Uma pretensa pureza esconde as fissuras, as incomunicabilidades, as imperfeições necessárias ao entendimento. As contradições pedem somente a não-conciliação para se mostrarem vivas. Não há a-realidade e suas-contradições, mas contradições criadas enquanto realidade, contradições históricas.

A pesquisa deve se apropriar em pormenor da matéria, criando tanto as relações internas quanto os próprios elementos e a relação dialética dos elementos

entre si. Após a investigação (análise) vem a exposição, que é sintética, modo de narrar, sem esquecer que a análise é também processo sintetizante. A análise atinge

os elementos e a exposição (síntese e estilo) reconstitui a estrutura.

Cada mediação e configuração têm as suas contradições, deformações e historicidades peculiares. Portanto o método deve subordinar-se ao conteúdo, à

matéria em estudo, à vontade, critério e criatividade do historiador.

Depois que a análise cria os elementos mais simples, os conceitos, as realidades mais elementares, não pode a pesquisa ficar satisfeita e parar. O nível

analítico comporta tipos de "reconstrução sintética" que, falsamente, criam a ilusão de haver-se chegado ao final. A análise é apenas um dos primeiros momentos da

pesquisa. Em seguida é preciso percorrer o caminho em sentido contrário. Do simples ao complexo e do complexo ao simples. Cada elemento é "revisto" pelo conjunto

enquanto o fundamenta.

A matéria é exposta a partir dos seus elementos, compreendidos como complexos, ricos em facetas, múltiplos em determinações, contradição sobre

contradição, polifonia em processo. Dessa maneira, a matéria historiográfica só pode resultar da análise crítica e criativa de uma escritura. Assim como a realidade é o

sonho-real de determinada sociedade, a história é o sonho do método, o sonho da História.

Desta maneira, o método não é neutro, mas crítico, político, totalizador, histórico, vivo, negativo, pessoal, devendo ser constantemente renovado e

desenvolvido, sem se tornar saber somente instituído, sem se tornar estrutura estável.

É preciso também uma auto-avaliação do historiador com relação a sua posição de classe, sua função social, o lugar da sua fala e com qual sistema de poder

sua fala se compromete, suas metas teóricas e uma consciência que o capacite a compreender a geração de homens, coisas e idéias na sua formação social: isso

normalmente “escapa” aos “professores de história”, abismados na reprodução banal e ideológica (periculosa) dos acontecimentos.

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O método não é analítico ou sintético, indutivo ou dedutivo. Superação desses componentes numa perspectiva crítica, onde um se converte no outro, na própria

realidade, no historiador, no seu contrário, num limite e num deslimite, criação/invenção, o método como eterna superação de si mesmo, sonho desta realidade.

A historicidade (resultado da escrita) deve comungar com a literatura a abertura infinita das interpretações e dos sentidos. A relação sujeito (historiador)

objeto (documentos) não é relação simples, principalmente porque os “objetos” parecem autônomos, reais mais que o real: sua dimensão de resultante da práxis e

dimensão imaginária desaparecem. Os documentos possuem astúcias: não são objetos, como algo "dado naturalmente": os documentos são "sujeitos". Por outro lado,

o historiador, sujeito, deve avaliar sua condição de "objeto" e a própria objetificação.

Os documentos não falam por “si mesmos”. Além de serem "testemunhos", são "escolhidos" pelo pesquisador por interesses do presente e não por "algo" "no"

e "para" o passado: sua existência é somente relacional: aos discursos, aos saberes, ao pesquisador, aos procedimentos.

Somente o confronto, o diálogo entre o historiador e os documentos (luta de mundos, concepções, tempos, realidades, eixos) é que realiza e supera a teoria,

o método, os procedimentos. Nada substitui essa luta, onde interpretação e realidade se digladiam, se estimulam, se delimitam, se criam, florescem, explodem ou

morrem. Os documentos não são inocentes: eles fazem parte da rede seletiva que os fez existir e se perpetuar: todo documento é político: sua língua é ideológica e

sua matéria é ficcional, sua razão é disciplinar.

História é diálogo, é reflexão, é negatividade. É selecionar determinando quais documentos são relevantes à pesquisa e os que não são, mas é a criação do historiador e a realidade em estudo os elementos que definirão esses cortes, não teorias pré-concebidas ou aspectos incontroláveis de métodos e procedimentos.

A PESQUISA

1 - O “levantamento bibliográfico” é ação inespecífica, isto é, foi atividade que levou ao assunto, ao tema, ao desejo e, ao mesmo tempo, acompanha a produção geral da pesquisa, fazendo parte da sedução e não das obrigações ou das regras. Seu lugar não é nem pode ser definido;

2 - A pesquisa é, inicialmente, um procurar, um produzir, um preparar, um reunir a documentação num processo de “viver o assunto”, encontrar o desejado,

vivendo o risco do encontro, do fragmento e das perdas, mas a história não é encontrada, ela será produzida, escrita, inscrita: sua dimensão de existência é um a

priori;

3 - A organização da documentação é fundamental (por pessoa, instituição, época, assunto, região, etc): sem esse ordenamento constitutivo toda a pesquisa pode desmoronar, mas essa ordem é documental, instrumental, não “ontológica”;

4 - Ler e reler exaustivamente a documentação como um todo, selecionando os documentos que irão fazer parte do corpus (já exige uma visão de conjunto,

uma pré-ideação e uma idéia de história, de texto final);

5 - Cozinhar os documentos (eles não são comidos crus: são transformados em notas, fichas, resenhas, comentários, artigos, fragmentos, imagens):

intimidade progressiva e julgamento dos documentos: articulações e desarticulações;

6 - Crítica das fontes (exige leituras mais vastas: a História é um domínio múltiplo): a) crítica externa (de autenticidade): verifica o valor extrínseco do

documento. É uma perícia material do documento. Como o documento foi produzido; quem redigiu o documento; em que momento se redige o documento; para qual

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destinatário; sob que forma se apresenta; como chegou até os que o detêm; qual discurso elabora; questões de letra, suportes, escrita, etc; b) crítica interna: é uma

hermenêutica buscando saber as intenções de fundo do documento;

7 - Procedimentos críticos: a) análise do documento: atomização de seus elementos (avaliação psicológica, social, econômica, institucional dos elementos do

documento); b) controle das fontes do documento (se observado pelo narrador ou se contado a ele por outro): foco narrativo; c) comparação dos documentos e dos

elementos internos;

8 - O historiador é prisioneiro dos quadros teóricos de referência, da sua classe social, da posição política, dos discursos envolvidos, dos métodos escolhidos: um dos

movimentos teóricos será tomar consciência dessas “referências” e não projeta-las inocentemente sobre sua escrita, como se fizessem parte da “realidade histórica”;

9 - Comparar, reagrupar, afastar, extrapolar, selecionar, solicitar, torcer a documentação em busca de respostas às perguntas e questionamentos: a “natureza

discursiva” dos documentos exige um mergulho “lingüístico”, não a espera por um “encontro”: ali nada existe: ali é o lugar da nossa criação;

10 - Construir um “modelo”, uma “idéia”, uma “imagem” do conjunto documental (história, trama, narrativa): primeiro passo da escrita: constituir uma visão

de conjunto provisória, pois será modificada pela escrita: isso advirá das leituras e da feitura das fichas, notas, textos;

11 - Com as notas, os resumos, as fichas, as resenhas iniciar a escrita buscando realizar a “visão de conjunto” passo a passo, como se escrevesse um texto

literário (um conto, uma novela, um romance: história é ficção: perder essa dimensão é meio caminho andado para uma ideologia deslavada), compondo os

personagens em seus lugares, escrevendo sua psicologia, seus embates, suas idéias, suas razões, suas ações, suas relações, criando o ambiente, o lugar, o espaço de

vida onde se desenrolará a história;

12 - Com-pondo as vozes enquanto carne a escrita da História materializa teatralmente numa simbiose onde as vozes compostas e as vozes do historiador se

articulam inseparáveis;

13 - Articular o desarticulado, separar o unido, perguntar ao informe, fazer mover o imóvel, imaginar nos vazios, perguntar aos silêncios, reviver os mortos, dar corpo e movimento aos vestígios, dizer mais e sempre muito menos que o vivido;

14 - O método geral tanto da feitura de notas e fichas quanto da escrita do texto é um ir e vir constantes: das perguntas ao documento e do documento às

perguntas: dos documentos à escrita e da escrita aos documentos.

NOTAS SOBRE HISTÓRIA

1 - O vivendo (o imediato do presente) desaparece na medida do seu acontecer, sendo impossível apreendê-lo tanto em sua totalidade quanto em suas

relações; o viver deixa vestígios (documentos), mas esses vestígios só se tornam documentos depois de raptados por discursos que lhe dão não somente visibilidade

(não existem vestígios-em-si) mas sentido e estrutura; o historiador (com todas as questões do sujeito) irá transformar os vestígios em documentos para a História,

isto é, lhe dará uma dimensão dentro do conhecimento, trabalhando para constituir sua existência estruturada e significativa; o resultado desse trabalho, dessa escrita

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que é a História (atividade que produz a história) é chamada fato (que a “história de segundo grau” acredita ser-o-que-aconteceu). A História produz a história:

dimensões fundamentais: escrita e ideologia.

2 - Separar o “discurso dos historiadores” da questão passado. Enquanto o primeiro se liga aos conceitos de discurso, escrita, ideologia, o segundo faz parte

do ambiente ontológico junto com tempo, presente, memória.

3 - Dessa maneira, a história migra para a História, e esta deve enfrentar sua produção, as ilusões decorrentes dessa produção e os poderes advindos dessa

construção enquanto ideologia (idéia, sistema de idéias que se pretende dizer-o-real, serem o próprio real).

4 - As questões próprias da História devem ceder o lugar a uma preocupação mais ampla, não a partir de um ponto cego no presente, mas uma articulação de

“várias disciplinas” na reflexão-tempo.

5 - Partir da tese marxista de “que o objeto, a realidade, o mundo sensível” deve ser compreendido “enquanto atividade humana concreta”: nos cabe agora

pensar a forma de existência desse “mundo sensível”, como ele é criado/reproduzido, como essa atividade concreta transformada em vestígios aparece ao historiador.

“Objetivamente” (dimensão do imediato do presente) a história está inscrita somente na História, isto é, nos livros, na escrita, nos complexos imaginários que são o

tempo. É preciso enfrentar esse “primeiro momento”, essa dimensão de escrita, de imaginário; em segundo lugar a dimensão que a primeira instância abre enquanto

teoria e alienação das questões, ou materialização do teórico enquanto realidade. A primeira questão metodológica da História é a compreensão desses mecanismos,

desses fluxos, dessas substituições: essa vontade obscura em ser Ciência.

6 - No imediato do presente não há história (a origem, o linear, o destino), mas o simples vivendo. A história (coletiva ou pessoal) só aparece, sempre

enquanto discurso, com uma torção do imediato do presente, onde discursos (historiográfico, psicológico, sociológico, antropológico) se põe a se preencher com uma

reflexão pós-mortem. Essa reflexão é um simulacro daquilo que exercitamos vivamente para sermos no imediato do presente, isto é, o tempo.

7 - História é ou deve ser uma filosofia das realidades básicas e fundantes. Sua matéria é o tempo.

8 - A relação entre a Literatura e a História pode ser muito mais produtiva do que normalmente se espera. São duas dimensões da narrativa, mesmo que uma alardei

sua ficcionalidade enquanto a outra esconda sua dimensão de criação literária. O contato poderia abrir para a História um arsenal moderno para sua escritura, trazendo

estratégias literárias para o enfrentamento de uma realidade não mais compatível com “narrativas judiciárias e policiais” tornadas princípio historiográfico.

9 - A narrativa histórica esconde os vazios do viver, as incompletudes, os silêncios, as faltas, as repetições, as in-articulações, sua própria atividade escritural:

o resultado é sempre muito mais e muito menos que o vivendo: faz parte da mesma matéria imaginária e ficcional da existência: a História, que poderia tocar o

próprio centro do existir, se conforma com uma escrita alienada e ideológica.

BIBLIOGRAFIA

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº117 - OUTUBRO - PORTO VELHO, 2003

VOLUME VIII

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

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ISSN 1517-5421 lathé biosa 117

A MARGINALIZAÇÃO DA SEMÂNTICA E DA PRAGMÁTICA NA SALA DE AULA

MARIA DO SOCORRO DIAS LOURA

PRIMEIRA VERSÃO

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Maria Do Socorro Dias Loura A MARGINALIZAÇÃO DA SEMÂNTICA E DA PRAGMÁTICA NA SALA DE AULA Professora e Mestra em Linguistica [email protected]

O homem sempre se preocupou com a linguagem. Na Grécia antiga, os pensadores já se deixavam seduzir por questionamentos como: as palavras imitam as

coisas? Como se dá os nomes às coisas? Como a linguagem se organiza?

Somente no século XX, essas e outras curiosidades começam a ter forma científica, com objeto, objetivo e método. Surge a Lingüística Moderna com o Curso

de Lingüística Geral do suíço Ferdinand de Saussure, o qual propôs a língua como objeto específico de estudo da ciência. A língua é conceituada pelo mestre como um

"sistema de signos", ou seja, um conjunto de unidades que estão organizadas formando um todo. Vários lingüístas surgiram após Saussure. Modernamente, Cagliari

(1990, p.42) apresenta uma divisão da Lingüística: "Podemos dividir a Lingüistica em Fonética, Fonologia, Morfologia,, Sintaxe, Semântica, Análise do Discurso,

Pragmática, Sociolingüística, Psicolingüística, etc. "

A relação entre algumas destas ramificações, muitas vezes, é muito direta, o que dificulta a delimitação do campo de uma ou outra. Tomemos, por exemplo, a

Pragmática e a Análise do Discurso: o que distingue, na prática, a primeira da segunda, não fica muito evidente. Outro caso, é a tênue diferença entre a Semântica e a

Pragmática. Ambas têm características comuns. Para diferenciá-las, teoricamente, podemos listar alguns aspectos inerentes a uma e não a outra., entretanto, as

situações apresentadas em cenários diversos nem sempre nos deixam uma perfeita distinção: isto é Semântica, isto é Pragmática.

A escola ainda privilegia a Morfologia, a Sintaxe e a Fonética, apesar das constantes críticas à gramática tradicional. Esse privilégio contribui para que muitas aulas de

português ainda sejam silenciosas, sistemáticas e opressoras. Silenciosas, porque o aluno pouco ou nada se manifesta como falante da língua nativa, uma vez que a gramática

internalizada é subestimada. Não sendo a fala do aluno valorizada, ele se retrai . Sistemáticas, haja vista os professores seguirem, à risca, e sem critérios a gramática tradicional,

obrigando o aluno a decorar regras e exceções impostas pela norma padrão. Além disso, os professores limitam-se a trabalhar exercícios mecanizados e leituras sem objetivos

pedagógicos pré-estabelecidos. Opressoras, por manipular os alunos com ideologias, geralmente, através do livro didático ou apostilas. Pode-se comprovar esta afirmação

considerando-se o resultado de uma pesquisa que, embora tenha sido realizada em São Paulo, mostra a realidade do país. A professora Maria Helena Neves pesquisou seis grupos

de professores de língua portuguesa no ensino fundamental e médio . Neves (1999, ps. 12, 13) constatou que:

“As aulas de gramática consistem numa simples transmissão de conteúdos expostos no livro didático em uso”. Verifica-se que os grupos de quatro exercícios mais aplicados, que são os relativos ao reconhecimento (e classificação) das classes de palavras e das funções sintáticas é responsável por 62% das ocorrências: somando-se a esse grupo as ocorrências que ocupam o quinto lugar e o sexto, que também se referem a classes de palavras e a "análise sintática", respectivamente, chega-se a um percentual de mais de 70%, o qual se eleva, se considerados os exercícios que se encontram nas posições 9, 10, 25 e 26, todos relativos a funções sintáticas."

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Não há dúvida de que, com tais procedimentos, o professor não desenvolverá, no aluno, pelo menos adequada e satisfatoriamente, a habilidades oral e a escrita.

Neste caso, é ilusória a prática pedagógica da aprendizagem do ensino de língua em que o processo ensino-aprendizagem não seja um constante interagir. Esse não interagir,

impossibilita o aluno perceber que a língua tem relação com o poder, com o social, podendo ser um instrumento de opressão ou libertação nos diversos grupos sociais com os

quais ele convive. Neste momento, é pertinente lembrarmos Bourdieu (1983, p. 160):"A língua não é somente um instrumento de comunicação ou mesmo de conhecimento,

mas um instrumento de poder. Não procuramos somente ser compreendidos, mas também obedecidos, acreditados, respeitados, reconhecidos."

Bourdieu foi feliz ao fazer a afirmação acima. É verdade que usamos a língua como principal meio de comunicação para expressamos sentimentos, emoções,

como também perpetuar conhecimentos adquiridos. Entretanto, ela é muito mais: é instrumento de poder. Tem o poder de persuadir, negativa ou positivamente,

poder de influir em mudanças de comportamento e valores já pré-estabelecidos pelo falante; poder de discriminar.

Gnerre (1987, p.3) retoma as palavras de Bourdieu:"As pessoas falam para serem "ouvidas", às vezes para serem respeitadas e também para exercer uma

influência no ambiente em que realizam os atos lingüísticos."

Tanto Bourdieu quanto Gnerre, são enfáticos ao referir-se à relação língua e indivíduo, língua e poder, língua e sociedade, como também ao fato de que as pessoas

falam não somente para se comunicar, simplesmente, isto é, a interação que deve acontecer entre aluno e professor tem que ultrapassar o simples ato informativo. Deve

partir do eu para o outro, para a coletividade, levando em conta todo o contexto da realização da enunciação. Como diz Bakhtin (1999, p. 113):"Toda palavra serve de

expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de

ponte lançada entre mim numa extremidade, na outra apoia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor."

Da marginalização da semântica e da pragmática

Infelizmente, a palavra, durante quase toda a convivência entre o professor e o aluno, não é território comum. Não é ponte. Ao contrário, distancia, por não

ter o espaço devido em muitas aulas de Português. O que chega a ser uma ironia: a palavra, principal instrumento das aulas de português, é ignorada ! Não se trata

somente de uso do vocabulário obscuro ou muita formalidade por parte do docente. Isso acontece, mas não é uma regra geral. Trata-se de aplicação de conteúdos,

exemplos, textos - quando ocasionalmente são trabalhados - em grande parte, distantes do aluno, descontextualizados do seu mundo, da sua prática social.

Embora esteja enfatizando a habilidade da fala, sabe-se que a escrita é a preocupação maior dos nossos professores e professoras de Português, haja vista

ser ela a privilegiada pela norma padrão. Entretanto, já há uma significativa porcentagem que valoriza a oralidade do aluno, pois, como afirma Castilho (1998: 13),

(...) não se acredita mais que a função da escola deve concentrar-se apenas no ensino da língua escrita, a pretexto de que o aluno já aprendeu a língua falada em casa. Ora, se essa disciplina se concentrasse mais na reflexão sobre a língua que falamos, deixando de lado a reprodução de esquemas classificatórios, logo se descobriria a importância da língua falda, mesmo para a aquisição da língua escrita. Atenuou-se, também, a convicção de que o único papel da escola é a transmissão da norma culta. Essas novas convicções apontam para o ensino da Língua portuguesa como uma reflexão sobre a língua como atividade, não apenas como estrutura”.

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As práticas adotadas, pelos professores, em geral, são atividades limitadas ao exaustivo exercício da cópia de textos, o que muitas vezes recebe o nome de

"pesquisa". Quanto à prática da compreensão e interpretação, acontecem sem nenhuma preparação prévia para o entendimento do texto, da sua estrutura, dos

recursos utilizados pelo autor, da linguagem trabalhada. Inferências são desconsideradas. A leitura do aluno não é explicitada. Cenários não são construídos, o que

possibilitaria a compreensão textual.

Em se tratando da escrita, há também sérios equívocos, já que o ato de escrever não está ligado a "técnicas" e sim às experiências do escritor. Ora, raramente

o professor ou a professora leva em consideração o conhecimento prévio do autor- aluno. A preocupação maior, por parte da maioria dos docentes, limita-se a elencar

técnicas de redação, por sinal escravizantes, mostrar regras do tipo "isso pode, isso não pode", delimitar números de linhas: mínimo e máximo. Escrever passa a ser

uma tortura! Por que não mostrar o lado bom de escrever? Esclarecer que há vários tipos de textos, objetivos diferentes, interlocutores distintos? Mostrar que todos

somos capazes, que não é uma questão de inspiração ou talento, mas de prática e de exercício. Enfim, muitos recursos e argumentos poderiam ser utilizados pelo

docente.

Sobre a leitura , compreensão de textos e produção textual , Maria Helena diz que: "As chamadas "aulas de redação" têm-se limitado a uma encomenda de

textos (sob pretextos) aos alunos; dão-se temas, inícios, situações, epígrafes e solicita-se dos alunos que componham um texto sob tal motivação. (...) As aulas de

leitura e interpretação, por outro lado, reduzem-se, no que respeita à atuação do professor, a uma recomendação de leitura atenta (para a interpretação) e expressiva

(para o desempenho oral)". (OP.cit.ps. 51, 52)

E o professor acredita que está trabalhando "redação". Dá todas as técnicas que conhece e algumas vezes até as que desconhece, isto é, aquelas que ele não

sabe exatamente o objetivo, mas como leu em um determinado manual ou equivalente, derrama nos alunos. E ele, o aluno, continua sem escrever nada. E a culpa é

atribuída, exclusivamente ao aluno: não aprende porque é desinteressado, preguiçoso, não lê. A defesa é sempre a mesma: falta de inspiração. Diz também que até

sabe falar, mas na hora de escrever, principalmente escrever exatamente o que o professor “manda”, não consegue, dá o famoso "branco".

Ainda sobre a leitura, compreensão e produção textual, Sena Odenildo, (2001, p.51) ratifica , de maneira bem clara, o que diz Maria Helena Neves:

"Já no que diz respeito à leitura e ao estudo de texto, o que se vê é a leitura pela leitura e a preocupação de que a chamada interpretação se restrinja apenas à

transcrição e à paráfrase (quando muito), como se, ao fazer uma leitura linear ou ao transcrever partes do texto lido para o seu caderno, o aluno estivesse empreendendo uma

verdadeira aprendizagem. (...) A ele não é dada a oportunidade de divergir nem de questionar as contradições, muito menos de subverter o pacote que lhe é imposto."

Grande engano do professor, da professora que pensa estar trabalhando texto em sala de aula essa maneira. O que ele ou ela faz é contribuir para o

conformismo do aluno, levando-o a ter uma visão de mundo muito estreita, já que não é utilizado o raciocínio como deveria: fazendo-o perceber referências,

pressupostos, informações implícitas, subentendidos, acarretamentos, ambigüidades, conotação, contextualização, intertextualidade e tantos outros aspectos

semânticos e pragmáticos que atuam no sentido das palavras. É óbvio que o professor não precisa usar tais nomenclaturas, até porque nem ele mesmo, em geral, as

conhece cientificamente. Ela, a nomenclatura, não importa para o aluno, principalmente, o aluno de ensino fundamental. Em alguns casos, poderá ser usada , quando

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houver necessidade, no ensino médio. O importante é que o aluno perceba os recursos utilizados pelo autor/autora, no texto escrito, como tais recursos influenciaram

na leitura e na compreensão do texto.

Como demonstra a pesquisa apresentada, há toda uma atenção voltada para as outras áreas do ensino da língua, entretanto não existe, na mesma escala,

uma preocupação por parte de todos os professores, em aplicar a Semântica e a Pragmática no dia-a-dia , em sala de aula, nas aulas de Língua Portuguesa. Se

houvesse, o quadro apresentado pela professora Maria Helena e por tantos outros pesquisadores, indubitavelmente, seria outro.

A pesquisa mostra o quanto essas práticas são ignoradas e/ou esquecidas por muitos professores, tanto do ensino fundamental, quanto do ensino médio, o

que me causa, verdadeiramente, uma imensa angústia. Ignoradas porque muitos dos que ensinam Português, desconhecem-nas. Esquecidas porque boa parte dos

que as estudaram, não encontraram mecanismos para trabalhá-las em sala de aula. Sei que não é inédita minha preocupação. Tem-se escrito sobre o assunto, direta

ou indiretamente, na vasta bibliografia da Lingüística , principalmente na aplicada ao ensino da língua. Reconheço que já começamos a colheita. Timidamente, já há

alguns indícios de mudanças. Muitas escolas, muitos professores já repensam sua prática pedagógica e começam a inovar. Mesmo assim, considero relevante a

abordagem, haja vista que as mudanças acontecem vagarosamente e o número de escolas e professores que ainda se fecham para elas é significativo. Acredito que

seja mais um grito esperançoso querendo incitar sobre a importância e a aplicação dos princípios e métodos da Semântica e da Pragmática nas aulas de Língua

Portuguesa, o que é uma preocupação constante para muitos autores, como Ilari ( 2001, p.12)

"Uma das características que empobrecem o ensino médio da língua materna é a pouca atenção reservada ao estudo da significação. O tempo dedicado a esse tema é insignificante, comparado àquele que se gasta com "problemas" como a ortografia, a acentuação, a assimilação de regras gramaticais de concordância e regência, e tantos outros, que deveriam dar aos alunos um verniz de "usuário culto da língua". Esse descompasso é problemático quando se pensa na importância que as questões da significação têm, desde sempre, para a vida de todos os dias, e no peso que lhe atribuem hoje, com razão, em alguns instrumentos de avaliação importantes, tais como o Exame Nacional do Ensino Médio, os vestibulares que exigem interpretação de textos e o Exame Nacional de Cursos. (...) Ao contrário do que acontece com a "gramática", simplesmente não existe em nosso ensino a tradição de tratar do sentido através de exercícios específicos, e isso leva o professor da escola média a acreditar que, nessa área, não há nada de interessante a fazer." É oportuno citar mais uma vez Maria Helena:"A semântica é um dos domínios da linguagem que têm apresentado sérias dificuldades para a investigação

científica. Essas dificuldades estão intimamente ligadas à amplitude e à complexidade inerentes aos fenômenos relativos ao significado e decorrem do tipo de

tratamento que a semântica tem recebido nos estudos lingüísticos." (OP.cit. p. 7)

O amadurecimento da fonologia e da sintaxe, já evidenciado pelos autores, é marcante nas aulas de português. Já percebemos que há explicações históricas

para isso. Trabalhando exclusivamente com elas, o professor sente-se mais seguro, já que tais áreas não exigem, por parte dele, a utilização mais profunda de

habilidades cognitivas. Ora, se o docente não desenvolve tais habilidades em si próprio, como poderá desenvolvê-las nos discentes? Sem pensarem juntos, sem a

troca de informações e sem levar em conta o conhecimento de mundo de locutor e interlocutor, não há o "interagir". Assim sendo, o estudo da língua é direcionado

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apenas para o aspecto fonológico, morfológico e sintático. A língua é trabalhada apenas como um sinal e, segundo Bakhtin (1999, 92 e 94): "Enquanto uma forma

lingüística for apenas um sinal e for percebida pelo receptor somente como tal, ela não terá para ele nenhum valor lingüístico. A língua no seu uso prático, é

inseparável de seu conteúdo ideológico ou relativo à vida."

Para Bakhtin, língua e ideologia estão intimamente ligadas. Não há como se trabalhar a língua sem se falar de vida. E vida é tudo o que envolve o

ser, o falante e o social, a sociedade na qual ele vive e com a qual ele convive. Dino Preti (1974, p.7) há quase trinta anos, já afirmava, acertadamente, que

não há língua sem sociedade, e não há sociedade sem língua.

A tímida presença da semântica e da pragmática nas aulas de língua portuguesa

Apesar de tudo isso, encontramos professores que conseguem realizar um trabalho coerente em suas aulas. São professores e professoras que ,

mesmo, muitas vezes, embora policiados por uma supervisão ou direção escolar, tomam iniciativas e superam dificuldades. Interagem com alunos, fazendo-

os refletir sobre o seu papel na sociedade, sobre a importância da língua em todo e qualquer ambiente em que vive, e sobre o sentido das palavras

contextualizadas. Trabalham com materiais diversos: jornais, revistas, propagandas, poesias, músicas, teatro, filme e tantos outros. Aproveitam a fala, a

criatividade e a história do aluno. É assim que a Semântica e a Pragmática podem fazer parte constantemente das aulas. Tornando-as vivas, dinâmicas,

políticas, sociais, interativas, porque língua é vida, e vida é o nosso cotidiano, são nossos cenários construídos durante a nossa história.

É oportuno ressaltar que já há preocupação por parte dos PCN - Parâmetros Curriculares Nacionais – em mudar qualitativamente o processo de

ensino-aprendizagem, embora consideremos que entre a teoria e a prática do nosso sistema educacional há ainda um grande hiato. Essa contemplação fica

evidenciada quando os parâmetros afirmam, em relação ao estudo da linguagem, que: “A linguagem é considerada como a capacidade humana de articular

significados coletivos e compartilhá-los, em sistemas arbitrários de representação, que variam de acordo com as necessidades e experiências da vida em

sociedade. A principal razão de qualquer ato de linguagem é a produção de sentido”.

Como podemos inferir, os PCN estão enfatizando que língua e sociedade se misturam. Tem-se que considerar as necessidades individuais e coletivas

do falante e do interlocutor.

Seguindo as orientações dos PCN, o livro Português – volume único dedica alguns capítulos a estudos semânticos, os quais fazem referência explícita

a atividades ligadas ao sentido das palavras, desenvolvendo as habilidades cognitivas, oportunizando a interação social. Já é um bom começo,

considerando-se que o livro tem dezesseis capítulos. São indícios de que num futuro (acredito que não tão próximo, já que o processo de mudança é lento,

requer paciência e muito trabalho) teremos um número bem maior de professores que dêem aulas considerando o aluno , que trabalhem o sentido das

palavras, frases, períodos, parágrafos, textos orais e escritos, valorizando a leitura de mundo que, como afirmou Paulo Freire, antecede a leitura das

palavras. Aulas em que o professor seja consciente do seu compromisso político, ainda maior, já que é professor de Língua Portuguesa.

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Não é intenção apologizar o livro didático nem afirmar que a falta dele na sala de aula inviabiliza a aplicação da Semântica e da Pragmática nas

aulas. É certo que ele continua servindo de muleta para muitos professores tornando-os repetidores de discursos e ideologias de outrem sem quaisquer

questionamentos. Apenas ressalto que o fato de estar havendo mudanças em alguns livros didáticos não pode ser desconsiderado.

Ezequiel Teodoro (1998. p. 58) diz que:

(...) esse apego cego ou inocente a livros didáticos pode significar uma perda crescente de autonomia por parte dos professores. A intermediação desses livros, na forma de costume, dependência e/ou “vício”, caracteriza-se como um fator mais importante do que o próprio diálogo pedagógico, que é ou deveria ser a base da existência da escola. Resulta desse lamentável fenômeno uma inversão ou confusão de papéis nos processos de ensino-aprendizagem, isto é, ao invés de interagir como professor, tendo como horizonte a (re) produção do conhecimento, os alunos, por imposição das circunstâncias, processam redundamente as lições inscritas no livro didático adotado”. O que Ezequiel afirma é constado na prática. O professor que excessivamente prende-se ao livro didático, aquele que não sobrevive sem ele, não

permite que o aluno seja capaz de discernir, de questionar, de criticar, de sugerir. Torna-se um reprodutor do autor, querendo adivinhar “o que o autor quis

dizer”. E a resposta tem que coincidir com a sugerida no livro do professor, caso contrário será considerada errada.

Volto a enfatizar que sou consciente de que já há muitas mudanças de comportamento por parte dos professores, entretanto ainda encontramos situações como

essa: conversando com um professor, um certo dia, em uma determinada escola, no momento em que ele copiava um pequeno texto no quadro branco, perguntei a ele por

que não tirava cópias do texto. Respondeu-me: "não tem máquina de xerox na escola e para o aluno sai muito caro pagar cópias de todas as disciplinas, já que não se adota

livro aqui." Continuou : "Já tentamos adotar, mas meia dúzia adquire, aí não dá pra trabalhar." Concluiu dizendo: Escolho sempre textos pequenos, assim eles não gastam

muito tempo para copiar. Pensei: O texto é escolhido pela quantidade de linhas, não por critérios lingüísticos e/ou pedagógicos !

Em boa parte das escolas da rede privada os livros são substituídos por apostilas, elaboradas de maneira unívoca, sem levar em consideração a

localização geográfica do aluno. Não aprofundam o conteúdo e, geralmente, estão desatualizadas. Na verdade, a apostila, muitas vezes, peca bem mais que

o livro didático.O interesse capitalista sobrepõe-se ao educacional.

O ensino da língua: não ensinar gramática normativa é a solução?

Sena Odenildo, (2001, p. 55) entre tantos outros desabafos sobre o ensino da língua, nos diz que:

" (...) a prática pedagógica do ensino de Língua Portuguesa, que deve ser entendida como prática política, será realmente libertadora quando extrapolar os limites da comunicação do discurso pedagógico oficial e privilegiar a busca da informação, predispondo professores e alunos a uma luta constante contra a alienação. O contrário será o círculo vicioso da comunicação, da gramática pela gramática, da leitura pela leitura, do ensino pelo ensino, propósitos que tornam abusivamente estreitos os objetivos do ensino da língua."

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Isso significa dizer que somente com aulas diferentes, poderemos ter estudantes falantes da língua materna que não sejam simplesmente repetidores de

discursos lidos ou ouvidos, mas que sejam pensantes, conscientes, politizados, que lutem pela cidadania. As mudanças acontecem lentamente. Embora sejam tímidas,

muito tímidas. E o que é pior não estão acontecendo em todas as salas de aula, em todas as escolas, em todos os municípios. Mais uma vez coloco minha prática

como prova do que afirmo. Como professora de Prática de Ensino, tenho acompanhado meus alunos nas escolas públicas. Eles estão observando as aulas de

professores que trabalham no 3º turno, o mais sacrificado. O que estamos vendo e vivendo é a realidade, ainda, de décadas atrás: escolas com instalações precárias,

falta de material didático, professores desmotivados, cansados, que jogam o conteúdo no quadro aleatoriamente. E em 90% das salas visitadas o professor ou a

professora trabalhava a gramática tradicional, pura e simplesmente. Não que desconsidere a necessidade de ensiná-la. Concordo com o que diz Possenti (1998, p.17,):

"(...) O objetivo da escola é ensinar o português padrão, ou talvez mais exatamente, o de criar condições para que ele seja aprendido. Qualquer outra hipótese é um

equívoco político e pedagógico."

Isso não pode ser negado ao aluno. Ele tem que ser consciente da necessidade de conhecer e usar, convenientemente, a norma padrão para exercer sua

cidadania, uma vez que ela é a prestigiada pela sociedade. Cabe a nós fazê-lo perceber que se o receptor tem uma visão crítica diante das mensagens e/ou imagens que

lhe são lançadas diariamente, será capaz de, pelo menos, tentar discernir o bem do mal, o real do sonho, a verdade do engodo, o político do politiqueiro, o honesto do

corrupto e assim por diante. Entretanto, este posicionamento só é possível quando se é consciente de que nas linhas e nas entrelinhas há todo um jogo de ambigüidade,

inferências, pressupostos, metáforas, etc. Todos esses recursos podem, e ao muitas vezes. Utilizados no intuito de persuadir, de enganar o interlocutor. Para poder

discernir, ou seja, não cair nas falácias, é necessário que todo o cidadão tenha a possibilidade de acesso à educação e obtenha o conhecimento da linguagem padrão. Esta

que é um instrumento de libertação do dominado, mas que por outro lado é também uma arma maléfica na mão dos dominantes. Isso não significa que outras variações

deixem de ser importantes, ao contrário, devem ser valorizadas, têm a sua importância e beleza. O nosso sonho é que um dia a língua seja apenas um elo entre as

pessoas e que não haja variação prestigiada, discriminatória, marginalizante, pois a partir do momento em que somente um determinado número de privilegiados tem

acesso ao uso dessa variedade lingüística há uma discriminação social. Para o aluno, essa visão deve ser cristalina.

Quem assumiu a postura antigramatical está colaborando para a injustiça social, perpetuando a ideologia dominante, é o que afirma Ferrarezi, (2000, ps. 32.33):

"Que espécie de justiça social se faz negando aos oprimidos o domínio do instrumento que é usado para oprimi-los? Ou talvez uma outra pergunta ainda coubesse como resposta: Ao negar o conhecimento da norma gramatical a um aluno, sob a alegação da origem ideologicamente marcada dessa norma, não estou, como professor, contribuindo para que essa ideologia dominante se perpetue da mesma forma que, nas idades antiga e média era perpetuada pela manutenção da ignorância do vulgo?" Entretanto, não há uma preocupação de usá-la adequadamente, é dada aos alunos sem critérios, sem questionamentos, sem priorizar o que realmente vai

interessar à vida dele. É trabalhada de maneira exaustiva, desconsiderando aspectos importantíssimos no ensino de língua. Aspectos estes relacionados aos estudos

semânticos, alguns já citados ao longo do texto. Enfim, não há motivação por parte tanto do docente quanto do discente. O professor trabalha a língua como se fosse

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morta, ( Bakhtin já afirmava que a língua é vida), usa exemplos isolados, descontextualizados, distantes da realidade vivida. É preciso permitir ao falante, no nosso

caso específico, ao aluno, que ele exerça sua competência lingüística.

Interpretar, criar, produzir é demasiadamente trabalhoso, ou ainda dificultoso por razões diversas, inclusive algumas já citadas , resta então a comodidade. Aliada a

esta, a falta de segurança leva os professores a elencarem conteúdos expostos da maneira mais tradicional, um verdadeiro ritual: a explanação da matéria, os exercícios de

fixação, a correção tradicional porque obedecem cegamente à Gramática Tradicional sem usá-la adequadamente como bem enfatiza Bagno, ( 2000, p. 17) :

"Com efeito, a Gramática Tradicional até hoje é o ponto de partida e também o pano de fundo da atividade científica e especulativa da Lingüística e da filosofia da Linguagem. Não é contra isso que nos devemos bater. Nos devemos bater é contra os usos e os abusos perpetrados por aqueles que, arrancando a Gramática tradicional do lugar que legitimamente é o seu - o da reflexão filosófica, o de ferramenta de investigação dos processos cognitivos que permitem ao ser humano fazer uso da linguagem -, impuseram-lhe o papel de doutrina canônica, de conjunto de dogmas irrefutáveis, de verdades eternas." Não é discutido com o aluno o que é relevante, o que servirá para a vida prática. Não são feitas reflexões sobre a língua e sua importância vital para a sociedade, não se

discute sobre as regras impostas pela Gramática Normativa e as contradições nelas existentes. Os conceitos não são discutidos, analisados, questionados. Quando há a prática da

interação, do questionamento, da reflexão, o aluno se sente um falante normal, sem receio de se expor, confiante, sujeito da sua própria língua, pessoa da sua fala. Sabe adequar

as variações de acordo com o momento, considerando o interlocutor. Não teorizo. Já vivi na prática esse retorno. É gratificante!

Conclusão

Não se trata de defender a total exclusão da Gramática Normativa da escola. Não é isso! Cabe ao aluno o direito de conhecer as diversas variações da língua e saber usá-

las adequadamente, como também ser consciente de que elas estão relacionadas a determinados prestígios sociais, e que devemos lutar para que essa discriminação lingüística

acabe. Como cidadão, é um direito que ele tem. Este é um papel da Escola : ensinar Língua Padrão. Porém, cabe ao professor de português o compromisso pedagógico e político

de oportunizar a real aprendizagem da língua padrão sem o massacre, sem o desfavorecimento, sem desprestigiar a outra, que é a do falante, chamada de coloquial.

Não há dúvidas de que os professores precisam ser preparados inicialmente, para então poder efetivamente mudar suas práticas. É uma longa caminhada. E

muito, muito difícil para muitos. A dificuldade se dá por vários motivos, começando pelo próprio terreno da Semântica e da Pragmática, pela falta de aperfeiçoamento

adequado para os docentes, que geralmente fazem treinamentos relâmpagos, os quais, em geral, não têm continuidade, isto é, não é dado suporte institucional aos

participantes. Estes voltam para sala de aula, quase sempre, motivados, querendo aplicar essa ou aquela técnica nova que aprenderam, pôr em prática a teoria

adquirida, ler os livros indicados... Mas não passa disso, vem a rotina e tudo começa como era antes: abram o livro na página tal, façam o exercício, procurem no

dicionário analisem sintaticamente as orações, o que o autor quis dizer com...

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Bibliografia consultada

BAGNO, Marcos . Dramática da língua portuguesa. São Paulo: Loyola, 2000

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1999

GNERRE, Maurizzio. Linguagem, escrita e poder. São Paulo: Martins Fontes, 1985

ILARI, Rodolfo . Iniciação à Semântica. São Paulo: Contexto, 2001

JÚNIOR, Celso Ferrarezi. Discutindo linguagem com professores de português. São

Paulo: Terceira Margem, 2000

MARQUES, Maria Helena D. Iniciação à Semântica. Rio de Janeiro: Zahar, 1999

NEVES, Maria Helena M. Gramática na escola. São Paulo: Contexto, 1999

POSSENTI, Sírio (1998): Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas: Mercado de Letras.

SENA, Odenildo (2001): Palavra, Poder e Ensino da Língua. Manaus: Valer

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº118 - OUTUBRO - PORTO VELHO, 2003

VOLUME VIII

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

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EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 118

CONSIDERAÇÕES ACERCA DA LINGUA DE SINAIS

MELÂNIA DE MELO CASARIN, TATIANA TRINDADE SANTOS, CLARISSA DE OLIVEIRA &

MONICA ZAVACKI DE MORAES

PRIMEIRA VERSÃO

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Melânia de Melo Casarin, Tatiane Trindade Santos CONSIDERAÇÕES ACERCA DA LÍNGUA DE SINAIS Clarissa de Oliveira, Mônica Zavacki de Moraes Professora do Departamento de Educação – UFMS, Alunas do curso de Pedagogia - UFMS

Por muito tempo surgiram diferentes posições acerca da linguagem das comunidades surdas e sua educação. No final do século XVII, começaram a surgir as

primeiras pessoas ouvintes preocupadas com a educação dos surdos. Algumas escolas foram fundadas e parecia que a educação das pessoas surdas iria evoluir.

As idéias iluministas esculpidas pela lógica Newtoniana, apontavam novas formas dos filósofos perceberem o homem desse momento.

Do ponto de vista da linguagem, não se pode falar daquela época sem mencionar os nomes de Condillac (1715-1780) e Diderot (1713-1784). Ambos eram filósofos,

contemporâneos e conterrâneos do maior instrutor de surdos daqueles tempos, o Abade Michel de L’pée (1712-1789). Sabe-se que os discursos da época

influenciaram o abade a pensar na língua de sinais como um dos meios de auxiliar os surdos de Paris.

Seguidores de Locke, Diderot e Condillac, pensavam que todos os conhecimentos inclusive a linguagem, convergiam para as sensações. Condillac pretendia

demonstrar que a linguagem era condição necessária à ascensão progressiva da sensação à reflexão. Este é um dos temas centrais do Ensaio sobre o Conhecimento

Humano divulgado por ele em Paris, em 1746. A linguagem dos sons articulados, cujos signos haviam sido inventados pelo homem era a mais cômoda, segundo ele,

para a reflexão e necessário intercâmbio entre as pessoas. E para ilustrar esse pensamento cita o caso de um surdo que apesar de relacionar determinados sons a

determinados objetos, de repetir palavras e discursos alheios não era capaz de combinar idéias pela linguagem. Condillac atribuiu isso ao isolamento de Charles do

convívio social e à inexistência de uma linguagem que pudesse ser compartilhada com as pessoas.

Segundo Malmberg (1991:57), Condillac foi o primeiro a estabelecer o princípio da linearidade lingüística comparando dois tipos de linguagem de ação: a

natural, na qual os signos são dados pela conformidade dos órgãos, e a artificial onde os signos são dados por analogia.

Ao se referir à linguagem de ação artificial, para contrapô-la àquela natural, cita os Sinais Metódicos criados pelo Abade L’ Epée que satisfaziam os quesitos da

linearidade e arbitrariedade do signo, condição necessária para as “trocas” entre os homens.

Além de Condillac, Diderot em sua Carta sobre o surdos-mudos para uso dos que ouvem e falam, publicada em Paris, em 1751, apresentou a possibilidade para o

filósofos de estudar a formação das línguas a partir da investigação da “língua dos gestos” de um surdo de nascença.

Com essas contribuições Condillac e Diderot forneceram um grande aval ao ensino dos alunos através dos sinais, apoiando o gestualismo que na época já se

confrontava com o oralismo.

No entanto, a história dos surdos teve uma grande ruptura no final do século XIX com o Congresso de Milão em 1880, quando foi considerado que a filosofia

oralista era mais indicada para os surdos. A língua de sinais foi extinta das escolas e começou a imperar o oralismo, que considerava que o surdo deveria ouvir (por

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meio de aparelhos e leitura labial), tornando-se um “ouvinte”.

A pretensa integração pregava a socialização do surdo mediante o acesso à língua oral, ao mesmo tempo em que o mantinha segregado, o que permitiu o

surgimento de comunidades de surdos e o advento de uma língua própria, a Língua de Sinais.

Nos Estados Unidos, mais precisamente em 1960, um lingüista do Gallaudet College, Willian Stokoe, publicou Sign Language Structure – The first linguistic analysis of

American Sign Language, um texto que se tornou um clássico, além de referência, para os estudiosos das línguas de sinais em anos posteriores.

Stokoe afirmou que os surdos americanos, filhos de pais surdos e/ou membros de comunidades lingüísticas sinalizadoras, utilizavam um sistema de

comunicação gestual e lingüístico distinto daqueles filhos de ouvintes ou não-integrados em comunidades surdas. Seus estudos contemplaram aspectos estruturais da

ASL (fonologia, morfologia, e sintaxe).

Tanto nesse artigo como no Dictionary of American Sign Language on Linguistic Principles, construído com dois outros autores, Stokoe procura enfatizar o

termo “lingüístico”, dado à ambigüidade do termo na língua inglesa.

STOKOE (1965:78), assinala claramente o significado que ele conferia ao termo “sign language”: ...um sinal nesse sentido é um gesto, mas nem todos os gestos são

dessa espécie de sinal, e eu irei demonstrar no curso dessa discussão que um número de coisas não usualmente consideradas gestos são parte do meio do sinal na

linguagem de sinais.

Stokoe utiliza o termo “sinal” para diferenciar o item lexical das línguas de sinais dos “gestos”, elementos que se apresentam com freqüência em sistemas

semióticos comunicacionais humanos ou animais. Essa foi a grande provocação da obra de Stokoe, num momento em que a lingüística americana estava fortemente

marcada pelos estudos de Sapir e Bloomfield.

Segundo esses autores, a linguagem é percebida como um conjunto de sentenças utilizadas por uma comunidade, fazendo, entre outras coisas, um tipo de

descrição que caracteriza o caráter fonético das línguas. E é justamente neste sentido que Stokoe faz as análises lingüísticas da Americam Sign Language (ASL),

procurando identificar todos os aspectos estruturais próprios de uma língua incluindo aqueles fonéticos.

Entretanto, após todo o empenho feito pelo lingüista, e os demais trabalhos que foram feitos na área da língua de sinais, os manuais de lingüística ainda

seguiram ignorando esses estudos, e as línguas de sinais permaneciam percebidas apenas como um sistema gestual humano da ordem de uma Semiologia Geral e da

Antropologia.

Segundo BENVENISTE (1976:89): “As diferenças são consideráveis e ajudam a tomar consciência do que caracteriza realmente a linguagem humana. A

primeira, essencial, está em que não há linguagem sem voz”.

Por um bom tempo os lingüistas mantinham esta posição, contrapondo-se às idéias de Stokoe. A primeira crítica feita formalmente foi em 1961, por Landar na

revista Language.

A língua de sinais não fazia parte das temáticas publicadas nos manuais de lingüística e, quando o fizeram em junho de 1968, num Volume da revista

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Language chamado Pratiques et Langages Gestuels, o artigo de Stokoe de 1960, Sign Language Structure foi publicado no final de um volume no item intitulado:

Linguagens de Sinais Artificialmente Criadas. O que se pode dizer é que para os lingüistas da época havia um certo temor, e que a gestualidade, seja da natureza que

for, estava fora da Ciência da Linguagem.

Depois da década de 60 estudos descritivos sobre outras línguas de sinais começaram a aparecer. Pode-se citar Peng (1974), no Japão, Sorenson (1975), na

Dinamarca, Volterra (1984), na Itália, Behares e Davis (1987), no Uruguai, Johnson e Massone (1990), na Argentina.

Nas últimas décadas, muitas pesquisas têm sido desenvolvidas em relação à aquisição da linguagem, especialmente em relação à aquisição da língua de

sinais, no campo da neurolínguistica e da sociolingüística, entre outras áreas.

Estudos demonstram que somente as crianças surdas, filhas de pais surdos apresentam o imput lingüístico adequado para a aquisição da linguagem, mas esse

grupo representa a minoria das crianças surdas. No desenvolvimento lingüístico da crianças surdas, pode-se notar que ocorre uma sucessão de períodos de acordo

com a idade de cada criança, e que um período simplesmente não acaba quando o outro começa, o que acontece é uma subposição entre um período e outro. O

período que marca o início do desenvolvimento lingüístico é denominado pré-lingüístico e é caracterizado pela utilização do apontar, balbucio manual, gestos sociais. O

imput visual é necessário para que o bebê passe para etapas posteriores no desenvolvimento da linguagem. Aspectos como o contato visual entre os interlocutores,

isto é, o olhar fixo do bebê surdo na face da mãe, o uso de expressões faciais, a atenção que o bebê surdo coloca no meio visual, a produção de um complexo

balbucio manual, de gestos sociais e do apontar são aspectos relevantes para o desenvolvimento lingüístico da criança. Outro aspecto a ser considerado no processo

de aquisição da linguagem é a interação entre o bebê e a mãe, podendo-se encontrar algumas diferenças no comportamento lingüístico de mães surdas e de mães

ouvintes.

Mães surdas misturam vocalização e sinais, mesmo quando o bebê é surdo, mas o imput apresenta variação de acordo com as diferentes fases do desenvolvimento

da criança; à medida que a criança vai aumentando o repertório produtivo, a mãe surda começa a usar mais sinais e a utilizar mais estratégias específicas de atenção

visual. Há registros de que o bebê ouvinte capta indícios sutis no rosto humano que lhe servirão para atribuir significação ao léxico de sua língua.

No que se refere à produção de sinais, encontram-se registros de que no primeiro ano de vida, a criança passa por mudanças que vão de um simples choro a

um complexo balbucio manual. Embora ocorram diferenças individuais entre as crianças, há tendências universais na produção, que refletem a maturação gradual de

estruturas articulatórias e do sistema nervoso central, que controlam a área da linguagem, pois gesticulações, tanto de bebês ouvintes, quanto de bebês surdos, são

frutos de estímulos internos e não externos, já que os bebês surdos emitem os mesmos emissões que bebês ouvintes. Desse modo, a criança é um participante ativo

no processo e é sensível ao ambiente lingüístico. Entretanto, o balbucio vocal de surdos não inclui seqüências de consoantes e vogais, mas consiste na produção de

vocalização não-ordenada.

Para PETITTO e MARANTETTE in RONICE (1997), o balbucio é uma expressão de uma capacidade lingüística mental e modal do processamento de falar ou de usar o

sinal. Tanto o balbucio manual quanto o balbucio vocal contêm unidades e combinações de unidades que são organizadas de acordo com as propriedades silábicas e prosódicas

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da linguagem humana e as formas e organizações do balbucio estão ligadas à estrutura lingüística da linguagem. Nos bebês surdos, foram detectadas duas formas de balbucio

manual: o balbucio silábico e a gesticulação. O balbucio silábico apresenta combinações que fazem parte do sistema fonético da língua de sinais. Ao contrário, a gesticulação não

apresenta organização interna. Há um desenvolvimento paralelo do balbucio oral e do balbucio manual, os bebês surdos e os ouvintes apresentam os dois tipos de balbucio até

um determinado estágio, e após, desenvolvem o balbucio da sua modalidade. As semelhanças encontradas na sistematização das duas formas de balbucio sugerem haver no ser

humano uma capacidade lingüística independente da modalidade da língua. A mesma autora identifica mais três períodos subseqüentes ao período pré-lingüístico. O estágio de

um sinal que inicia por volta dos doze meses da criança surda e percorre um período até por volta dos dois anos, onde as crianças produzem gestos que diferem dos sinais

produzidos por volta dos quatorze meses, são as chamadas formas congeladas da produção adulta, são sinais que não são flexionáveis. O estágio das primeiras combinações

surge por volta dos cinco anos, quando as crianças usam a ordem sujeito-verbo ou ainda, num período subseqüente sujeito – verbo - objeto. Nesse estágio, as crianças começam

a usar o sistema pronominal, ainda de forma inconsciente. E no último, estágio das múltiplas combinações, onde ocorre a explosão do vocabulário, começam a ocorrer distinções

derivacionais, empilhamento e supergeneralizações.

Esses estudos feitos sobre as línguas de sinais e os que foram desenvolvidos nas últimas décadas intensificaram o interesse pela construção do conhecimento

e da cultura das pessoas surdas, proporcionando a criação da concepção socioantropológica de surdez.

Segundo essa concepção, a língua natural dos surdos é a Língua de Sinais. Para Skliar (1998:27)

o termo natural entretanto, não se refere a uma espontaneidade biológica e sim como uma língua que foi criada e é utilizada por uma comunidade específica de

usuários, que se transmite de geração em geração, e que muda tanto estrutural como funcionalmente com o passar do tempo, e a surdez não é mais vista como uma

deficiência, mas como diferença lingüística.

No entanto, o fato de uma criança surda utilizar a língua de sinais como meio de instrução não significa que perca a capacidade de adquirir uma segunda

língua, por isso, o modelo bilíngüe propõe dar acesso à criança surda as mesmas oportunidades psicolingüísticas que possui a ouvinte.

O objetivo do modelo bilíngüe, segundo Skliar in BUENO (2001:39): é criar uma identidade surda plena, permitindo à criança surda desenvolver suas

potencialidades dentro da cultura surda e aproximar-se da cultura ouvinte, ou seja, ter o acesso a ambas as línguas, a das comunidades surdas (LS) e a da

comunidade ouvinte (oral e escrita).

A comunidade surda vem, ao longo dos anos, buscando igualar seus direitos aos dos ouvintes. A surda Gládis Perlin, coordenadora da Área de Educação da

Federação Nacional para a Educação e Integração do Surdo - FENEIS, quer ser reconhecida e chamada de surda, pois não se considera uma deficiente. Gládis defende

o direito do surdo à educação e contesta a medicalização.

É senso comum entre as pessoas pertencentes às comunidades surdas constituírem-se num grupo de pessoas que utiliza a língua de sinais, tornando-se assim, um

grupo social diferente lingüística e culturalmente. Nesse contexto, a língua de sinais é fundamental na construção da identidade surda. È através da língua de sinais

que as experiências e os valores são transmitidos de modo que todos os membros da comunidade os compreendam. BEHARES (1987:60) chama a essa comunidade

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surda de grupo de experiência, bem como aos deficientes físicos, homossexuais, etc, devido ao fato de esses grupos terem uma característica (um traço) que os

diferencia dos demais, no caso dos surdos, o uso da língua de sinais.

Os componentes das comunidades surdas são, na maioria dos casos, surdos nascidos em famílias ouvintes. Essas famílias, muitas vezes, temem o contato do

filho com outros surdos, pois há o receio de que o filho substitua a família pela comunidade de surdos.

Essa situação gera a formação de dois pontos de vista que apresentam dois modelos distintos: o modelo surdo e o modelo ouvinte. A partir da interação social é que

a criança surda fará, naturalmente, uma relação de identificação, segundo a idéia “eu sou como essa outra pessoa”.

BEHARES in SKLIAR (1999:141) afirma: Através dos atributos é que se forma uma identidade nas interações entre os indivíduos. Os traços são instrumentais e

significativos, porque estruturam e permitem a interação (...).

Em relação à pessoa surda, esse traço que a faz pertencente a uma comunidade (ouvinte) ou à outra (surda) é a língua de sinais enquanto sistema lingüístico, da

qual o sujeito faz uso.

Hoje, percebemos o significado da língua de sinais como elemento constitutivo da identidade surda e instrumento que possibilita o desenvolvimento lingüístico

para as comunidades surdas.

Esta percepção foge aos manuscritos e discussões meramente teóricas, convergindo e efetivando-se na prática cotidiana de interação surdos-ouvintes e

surdos-mudos percebida pelo contato com as comunidades surdas.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº119 - OUTUBRO - PORTO VELHO, 2003

VOLUME VIII

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

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EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 119

HISTÓRIA E MARXISMO

ALBERTO LINS CALDAS

PRIMEIRA VERSÃO

Page 44: Volume viii 2003

Alberto Lins Caldas HISTÓRIA E MARXISMO Professor de Teoria da História – UFRO www.unir.br/~caldas/Alberto - [email protected]

A Dialética designava oposição de argumentos, razões, caráter, palavras. Sua matéria suportando contradições, oposições, antíteses foi utilizada de todas as

maneiras possíveis, indo de um idealismo que nega o existente até o mais primitivo materialismo.

De Heráclito a Kant, de Hegel a Foucault a Dialética sempre se moldou ao seu dono, às visões que a moldavam, principalmente exigindo a criação de

mediações (condição inescapável de toda Dialética). Mesmo sendo Hegel aquele que a tornou Método, Filosofia, apenas com o marxismo é que se tornará uma

“expressão” inescapável, um topos mais que necessário, imprescindível para dar conta das modificações e das suas requeridas “pontes”: para o pensamento geral dos

últimos duzentos anos o principal da Dialética não esteve em sua capacidade em funcionar com as contradições mas em criar mediações, saídas e propostas para um

processo contraditório (medida mais que compreensível no capitalismo). Daí porque sua qualidade de “único meio de compreender a realidade racionalmente”,

defendido por todos, mesmo de lados diametralmente opostos.

Sua maneira de não conceber algo isolado, fixo, propondo sempre o processo e a dinâmica, tomando seu objeto sempre historicamente, sujeito a

modificações, evoluções, revoluções, numa relação íntima com o “contexto” é o espírito necessário do capitalismo: é a maneira dele próprio se pensar segundo sua

própria existência, substância, reprodução e reprodução.

O “constante movimento e transformação”, o “tudo muda: natureza e sociedade, pensamento e ação” é este espírito. Sua matriz é a produção de mercadoria,

sua exigência é a formação social: a Dialética é o “espírito do capital” tornado Filosofia, Método, Política, Visão de Mundo. Não somente porque trata com o

movimento, mas porque o encadeia, naturalizando e universalizando como exige o capitalismo como estrutura existente somente em expansão e fagocitose.

A exigência do “organicamente estruturado” é um dos sintomas dessa “visão de conjunto” que, tanto no centro das ideologias, quanto nas suas periferias, é

somente periculoso. As mediações que aparecem como “pontes”, “lógica”, são somente devorações, assimilações e destruições indiferentes da diferença.

As chamadas “leis da dialética” são exemplo do cientificismo escondido, da imobilidade móvel, da evolução escondida na pele da revolução. A “lei dos

contrários”, dizendo que o real não é uma unidade, mas contraditória, e ainda assim tratando-a como “unidade dos contrários”. O movimento seria “produzido” por

essas contradições, deixando de lado os tradicionais “motores externos da sociedade”: o mundo do capital se moveria pelo choque contínuo do capital e dos

assalariados. A “lei da negação da negação” diz que o real se movimenta segundo “afirmações”, “negações” e “negações da negação”, sendo a “negação da negação”

não somente uma nova “afirmação” mas uma superação (com novas contradições), o novo dentro do círculo dialético da realidade. A “lei da transformação da

quantidade em qualidade” defende que um acúmulo de tensões, descontentamento, impasses, modificações minúsculas e quantitativas produz de repente um “salto

de qualidade” produzindo uma nova realidade.

Page 45: Volume viii 2003

45

Totalidade e unidade: as fragmentações do conhecimento e do real cediam à Razão. Tudo se integra “numa unidade superior”: a totalidade tornou-se um

conceito fundamental. O sujeito torna-se o criador do real e o objeto sua criatura. Para Hegel “compreender o real” é a missão filosófica por excelência, mas sua

posição é a mesma que regerá um dos requisitos da História: sem ser normativa, sem ser reformuladora: a coruja de Minerva (a Razão, a História, a Filosofia) sai

somente à noite, depois que tudo aconteceu: para essa primeira dialética não há uma “História noturna”.

Em Hegel a Dialética é uma “reconciliação” (sujeito-objeto, real-razão, sociedade-política). Essa dimensão conciliadora não será dissolvida por Marx. Ele

também anexará a sua visão de mundo a necessidade de mediações, a visão teleológica, a Natureza como suporte, a positividade como existência. Nele a Dialética se

dirá revolucionária, a “perspectiva do trabalho”, o reposicionamento “sobre seus pés”, sobre bases materiais, produtivas, humanas e históricas. A inversão não desfez

a Dialética, não dissolveu seus limites de proteção de sistemas contraditórios e em constante movimento como o de produção de mercadorias e capital: com Marx a

Dialética tornou-se o principal mecanismo não somente de descrever e explicar o capitalismo como também um dos elementos fundamentais tanto para a lógica

interpretativa quanto para a atividade produtiva e as políticas de sua defesa. Marx não depurou a Dialética: ele a tornou necessária para a “transformação, produção e

reprodução do real”.

A “Dialética Materialista” de Marx não terá a insuportável passividade da de Feuerbach, que via o real como simples objeto a ser conhecido e o homem como

obra desse ao-redor: não uma Razão para os novos tempos. Feuerbach ainda vive num universo intelectivo, sem gerar uma ideologia fundamental e fundante para o

que virá. A “Dialética Materialista” de Marx não terá pudores, ela nasce do eixo vivo do capitalismo: há uma constante e inextirpável relação entre homem e meio, os

dois em constante movimento, inter-relação e processo, produção e reprodução, circulação e consumo, trabalho e exploração.

O processo capitalista multiplicou a divisão do trabalho numa minúcia espantosa; transformou a simples produção em megaprodução, deixando sem nome

milhões de objetos com ínfimas funções; um aumento desordenado das necessidades em franca procriação e apoio a essas necessidades; os sistemas próximos à

produção e a própria produção, precisando de Ciências especiais e delimitadas pelo objeto de sua ação; a sub-divisão de cada "antiga" Ciência para estudar cada

"fragmento real", perdendo internamente coerência e limite; esfacelamento, junto ao esfacelamento do "saber", de cada conhecimento particular; criação de

"mediações" epistemológicas e técnicas para funcionamento do sistema em forma de interdisciplinaridade; pulverização da consciência diante da "realidade"

pulverizada e do "saber" que a acompanha e cria ou descobre; inclusão do "homem" não apenas como máquina, apêndice ou coisa, mas clone sem limites e sem

identidade, não mais indivíduos, apenas reflexo-animal impotente da "realidade sócio-econômica": o Oroboro morde a cauda: o ser social além de fisicamente animal,

volta a ser animal diante do incompreensível: o que por um "instante" era cosmo agora é somente caos.

Este é o "mundo" visível, palpável e cotidiano. Pulverização, impotência e incompreensão de tudo e do todo, sangria em qualquer singularidade. Esta a

realidade, cada vez mais real. O núcleo produtivo entretanto continua inatacável, singular, funcionando "como deve ser". Seu eixo é movido por todas as positividades

e negatividades sociais: sempre se realiza, intocável. Enquanto o aparecer, o vivenciar, o ver, o trabalhar, o conhecer são puras migalhas, a base produtiva continua

integral, seguindo seu "rumo natural".

Page 46: Volume viii 2003

46

Esse esfacelamento do conhecer e do viver é o modo subjetivo necessário da produção, sua maneira de funcionar. Sem isso ela desmoronaria: a fragmentação

de tudo é condição especular da integralidade da produção, sua proteção, assim como o absorver todos os tipos de negatividade faz parte, antes de tudo, da

subjetividade como condição das relações de produção.

A fragmentação não é "realidade" mas ideologia. A comunidade continua inteira, o ser social continua inteiro. O eixo produtivo, através de sua necessidade de

esfacelamentos, gera imaginários que o alimentam e produzem. Vamos até às "realidades" sempre com os instrumentos técnicos e teóricos "criados" pela base

produtiva. Só compreendemos fragmentando. De outra maneira nos perdemos, somos impotência-de-saber e impotentes nesta realidade, não vendo outra saída. Sem

fragmentar negamos a nós mesmos e ao mundo.

O Materialismo Histórico é constituído para dar conta dessa realidade fragmentar, criando uma Ciência Proletária. Sua resposta nesse ponto é histórica: sua

visão é a de totalidade. Mas a totalidade metamorfoseou-se em conceito vazio e ridículo, no mínimo inalcançável, por contradizer a "realidade" e o "conhecimento", a

"percepção" e a "intuição" não podendo nada mais realizar: a totalidade é uma necessidade da própria visão do “mundo da mercadoria”. A politicidade, cimento da

totalidade, perde-se nas politicidades do poder, cimento ideológico do Estado. A singularidade de homens e coisas, tornada objeto para ser estudada, negação de si

mesma, deixa de ser humana.

A fragmentação das Ciências é somente um primeiro grande momento, devendo ser substituído por uma “visão de conjunto” que foi antecedido pela Dialética

e pelo Marxismo como um todo.

O pressuposto do Materialismo Histórico (“o ser social é resultado das suas necessidades materiais de existência”), propondo uma “análise global” onde as

mudanças e as forças nas partes interfere no todo e se condicionam mutuamente (tendo como Método a Dialética) é o próprio espírito que seria construído lentamente

durante a segunda metade do século XIX e no século XX. Inclusive com seus “arremedos burgueses” como a Teoria Geral dos Sistemas, o Estruturalismo e as “novas

correntes da totalidade dialética” como as de Edgar Morin e Ylia Prigigine. Tanto o pressuposto como a maneira de estudar do Materialismo Histórico entraram não

somente dentro de praticamente todas as “visões de mundo” como fazem hoje parte dos próprios elementos imaginários do capitalismo.

No prefácio da “Contribuição à Crítica da Economia Política” (1977) temos a idéia de Marx das “leis mais gerais do materialismo histórico”. As ações e os pensamentos

têm seu fundamento não nas instâncias singulares, mas na “organização social”, no agir e no pensar ad-vindos das relações sociais: mesmo assim Marx não conseguiu ir além

dessa materialidade hipnótica da própria realidade, vendo somente a estratificação entre indivíduo e sociedade, as “forças produtivas” pondo e dispondo os indivíduos, sem

ver a “perversa imaterialidade” de tudo: sua ótica materialista ficaria e ainda é fundamental para o próprio “mundo do capital” exatamente por isso. Sua idéia de que a

“humanidade só se propõe a resolver os problemas que objetivamente já possuam condições” abriu margem para uma Sociologia objetiva, a uma idéia de Sociedade como

“comunidade natural”, criação do bicho homem: história, mas história sem indivíduos, história de massas, de blocos, de estruturas. E, conseqüentemente, como um processo

teleológico, com leis escondidas, com uma Natureza por fora e por dentro, cria um “espírito messiânico” e um “messias”, camuflados em “processo histórico” e “proletariado”,

tudo muito bem dobrado sobre si mesmo, aparecendo como Ciência, Política, Economia, História, Ética.

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Deixando de enfrentar as dimensões virtuais da “realidade social” o marxismo é apenas um dos suportes teóricos e técnicos do mundo do capital, uma das

suas saídas de emergência. Um “conhecimento objetivo da História” teria como fim desprender o sujeito da ignorância, possibilitando a revolução do seu mundo, mas

a concepção de tempo de Marx é o mesmo da Ciência, da Física, da Economia, do senso comum: é uma dimensão morta. O presente para ele é conseqüência do

passado: seu viés despolitizante só aparece “em última instância”, isto é, quando se tenta modificar o passado por ser o presente uma fina fatia de nada que move

desdobrando imaginários: o limite externo é a Natureza (o tempo é uma das suas dimensões), o limite interno é a imobilidade de um imaginário social ou individual

onde o passado já-aconteceu (imovelmente despolitizado) e o presente é constantemente raptado pela repetição e pelo esquecimento, enquanto o futuro é sempre

uma imobilidade farsesca: é o predomínio e a preservação da Natureza e da história, o poder sempre crescente do “Homem” em direção à felicidade do consumo, a

felicidade como fim: o animal satisfeito passa pelo homem para reencontrar no fim o animal satisfeito.

A “dimensão dialética” dessa História (a impossibilidade de sair de um dos pólos que ela mesma cria, projeta e reproduz) apagou a multiplicidade viva em

convivência em nome de uma única realidade, móvel, dinâmica, histórica, social, mas única (universal, natural).

A História Marxista não é muito diferente das outras “Escolas de História”. A única diferença é que ela trabalha com um apelo fundamental: a luta no meio e a

felicidade no fim: não há consumidor que resista.

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Page 49: Volume viii 2003

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MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

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O MEIO FÍSICO E SUA IMPORTÂNCIA PARA O PLANEJAMENTO URBANO: UMA SÍNTESE DE ALGUNS EXEMPLOS REGIONAIS

ELIOMAR P. DA SILVA FILHO, IZABEL CORDEIRO DA SILVA &

ELIZABETH PINIEIRO BRAGA

Eliomar P. Silva Filho, O MEIO FÍSICO E SUA IMPORTÂNCIA PARA O PLANEJAMENTO URBANO:

PRIMEIRA VERSÃO

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Izabel F. Cordeiro da Silva, Elizabeth Maria Pinheiro Braga UMA SÍNTESE DE ALGUNS EXEMPLOS REGIONAIS

Professor do Departamento de Geografia – UFRO, e alunas do 8˚ período de geografia

O conhecimento do meio físico e seus processos dinâmicos podem contribuir na caracterização de possibilidades de um melhor ordenamento do uso do solo urbano,

apesar do nível de aplicação constituir um fato relativamente recente no país, uma vez que no processo de planejamento urbano, as condicionantes do meio físico eram

consideradas como informações complementares para muitos planejadores .

Em decorrência deste modelo ou visão equivocada de planificar o uso do solo urbano, várias cidades no país têm passado hoje por graves problemas de ordem

ambiental, e sócio-econômica devido a ocupação de áreas inadequadas à expansão urbana a exemplo das áreas de várzeas, que tende provocar alterações no regime

hidrológico, podendo ainda poluir os cursos d’água; na ocupação de encostas declivosas que aceleraram os processos erosivos, ocasionando principalmente as corridas de

terra com graus diferenciados de fluidez e afogamento da drenagem; na ocupação em áreas de recarga de aqüífero subterrâneos, o que tende comprometer sua qualidade e

a futura utilização desta água ; a localização inadequada de depósitos de resíduos sólidos em solos com alta permeabilidade tendendo contaminar a água de superfície e

subterrânea; o desmatamento de áreas susceptíveis à erosão acelerando os processos de desagregação e transporte de sedimentos em superfície, podendo provocar

ravinamentos e voçorocamento, criando condições para o assoreamento dos cursos d’água, entre outros problemas.

O estudo do meio físico, no caso com enfoque Geomorfológico, ganha relevância significativa no planejamento da ocupação urbana de novas áreas, ou na

reestruturação de áreas antigas, considerando as demandas ambientais naturais da área e seus limites de utilização.

Exemplos de estudos do meio físico e sua importância no processo de ocupação e uso do solo urbano

O estudo do meio físico sob um enfoque sistêmico é definido como “a totalidade estruturada em equilíbrio dinâmico, com vários aspectos, guardando relações

de interdependência com os demais componentes”, segundo Filho et ali (1999).

Os componentes do geossistema não podem ser entendidos de modo isolado, na verdade, a “setorização” da natureza foi feita pelo homem pela dificuldade

encontrada de entende-la integralmente (Ross, 1998).

Os diversos componentes da natureza possuem relações intrínsecas que fogem de um modelo anisotrópico por vezes concebido pelo leigo, as interdependências

existentes estão a grosso modo relacionadas aos seguintes eixos temáticos: geologia, geomorfologia, solo, clima, vegetação e água de superfície e subterrânea.

São nestes eixos que o homem interfere, notadamente nas modificações do meio físicos existentes, com a implantação de cidades, abertura de estradas,

túneis e diversas outras atividades, que modificam o ambiente natural, podendo leva-lo a um desequilíbrio quanto a sua capacidade de suporte.

O modelo a seguir ilustra o exemplo de processo geomorfológico, em situação hipotética e simplificada, em uma área com cobertura vegetal inalterada.

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EROSÃO DO SOLO PELA ÁGUA

Elementos do processo Fatores condicionantes do processo

Parâmetros do processo

Propriedades intrínsecas-textura, estrutura, etc. Erodibilidade

Declividade do terreno Comprimento; Grau de declive.

Material Solo

Propriedades extrínsecas Superfície do terreno Densidade da cobertura vegetal

Essenciais

Energético Gravidade ________ Constante

Reguladores Chuva Intensidade, duração e freqüência. Erosividade

FONTE: Esquema de processo geomorfológico simplificado (Filho, et alii, 1990)

Nos estudos geográficos sobre características do sitio urbano, deve haver a preocupação de avaliar áreas de risco, através do reconhecimento de unidades

morfotopográficas que orientem a melhor opção do uso do solo, além do acompanhamento do desenvolvimento das análises a respeito dos processos

geomorfológicos que posa gerar um delineamento avaliativo das áreas de risco (Guerra & Cunha, 1995).

A exemplo, o estudo sobre o sítio urbano do município de Mococa – SP, teve como objetivo elaborar um mapeamento preciso sobre a ocorrência dos processos, devido

a acelerada erosão. O trabalho considerou as informações do substrato geológico, tipos de rochas e suas principais características mineralógicas, químicas e físicas; as formas de

relevo – côncavo, convexo, e outras; os tipos de solo – latossolo, podzólico, etc; agentes antrópicos atuantes; fotointerpretação e análise do uso da terra. O cruzamento de

informações definiu para o município de Mococa, cinco classes de suscetibilidade à erosão conforme evidenciado na TABELA 2.

Tabela 2.

Estudo de Suscetibilidade à Erosão em Mococa-SP

Suscetibilidade Unidades morfopedológicas

Processos Erosivos

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Classe Subclasse

Substrato Relevo Solo

I Muito Alta

Formação Arquedauana/Depressão Cenozóica (sedimentos arenítico)

Suave ondulado a ondulado.Colinas médias, vertentes convexas, declividade média de 6 a 20%, alta densidade de drenagem, vales fechados e entalhados.

Latossolo Vermelho-Amarelo, textura média.

Voçorocas de drenagem em anfiteatros freqüentes e de média encosta, ravinas, sulcos e erosão laminar intensa.

IIa Formação Arquedauana Suave ondulado a ondulado. Latossolo Vermelho-Amarelo, textura média.

Ravinas, sulcos e erosão laminar intensa, voçorocas pouco freqüentes.

IIb Formação Itararé/Tatuí (arenitos, siltitos e argilitos).

Relevo ondulado a muito ondulado.Com escarpas e morrotes e declividade média de 20%.

Litólicos e Cambissolos Cabeceiras de drenagem sujeitas a voçorocas.

II Alta

IIc Pré-cambriano (granitos, gnaisses, migmatitos).

Relevo ondulado a muito ondulado, com escarpas e morrotes e declividade média de 20%.

Cambissolos Erosão laminar intensa.Sulcos e ravinas, processos de escorregamentos.

III Média

IIIa Formação Arquedauana/Dep. Cenozóicos e Colúvionais.

Relevo suave ondulado, colinas meias, vertentes convexas a retilíneas, declividade inferior a 20%.

Latossolo Vermelho Amarelo/Areia Quartzosa.

Voçorocas de drenagem pouco freqüentes, ravinas, sulcos e erosão laminar pouco freqüente.

IIIb Pré-Cambriano Ondulado a muito ondulado.Morros e morrotes, vertentes convexas, declividade de 6 a 20%.

Podzólico argiloso e Latossolo, textura média.

Erosão laminar, sulcos e ravinas pouco freqüentes.

IV Baixa

Formação Serra Geral (Basaltos)

Relevo suave ondulado, colinas médias, topos aplainados, declividade entre 0 e 6%.

Latossolo Roxo

____

V Muito Baixa

Sedimentos Aluvionares Relevo plano.Vales abertos, declividade inferior a 6%.

Gley

Sedimentação.

FONTE: Instituto de Pesquisa Tecnológica de São Paulo, 1995.

Na área de susceptibilidade Muito Alta (I), a erosão laminar (ou erosão em lençol), provocada pelo escoamento em lençol, e a erosão linear (ou erosão

fluvial) provocada pelo trabalho das águas correntes, são intensas. A presença de sulcos e ravinas são comuns, devido o modelado terrestre de meia encosta, o que

contribui para a ocorrência de assoreamento na área. A classe de alta suscetibilidade à erosão as voçorocas de drenagem são menos freqüentes, porem significativa

a presença de sulcos e ravinas e erosão laminar intensa, embora as cabeceiras de drenagem sejam do tipo anfiteatro, favoráveis ao desenvolvimento de voçorocas,

estas são raras, predominando ravinas e sulcos que são geralmente rasos devido a ocorrência de solos pouco desenvolvidos.

No entanto, nas encostas íngremes observa-se a ocorrência de sulcos e ravinas, e um intenso processo de erosão laminar. A suscetibilidade média à erosão

apresenta processos atenuados de erosão, o que se justifica devido a suavidade do relevo, no entanto, devido a presença de encostas um pouco mais íngremes,

verifica-se que no compartimento IIIb, a erosão laminar é intensa encostas um pouco mais. Na área suscetibilidade à erosão (IV), os sulcos e ravinas ao pouco

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freqüentes.A área de Muito Baixa susceptibilidade(V), corresponde às planícies fluviais dos vales dos cursos d’água principais e afluentes, caracterizando o processo

de sedimentação formando depósitos de assoreamentos.

Os trabalhos relativos as voçorocas em áreas urbanas surgem como contribuições significativas ao planejamento do uso do solo, podendo-se mencionar as

observações realizadas no sítio urbano de Manaus, Região Norte do País, onde os trabalhos de Vieira (1995), identificaram, localizaram e mensuraram voçorocas,

tendo como hipótese que tais processos estariam se desenvolvendo como conseqüências da urbanização, haja vista que a capital do Estado do Amazonas sofreu nas

ultimas décadas um crescimento acelerado.

Foram confeccionados dois mapas da cidade, onde localizaram 40 voçorocas cadastradas com média de 40 m de comprimento, 13 m de largura e 8 m de

profundidade.As voçorocas em Manaus predominam nas encostas convexas (55%), ao contrário do que OLIVEIRA & MEIS apud OLIVEIRA et alii (1994) observaram

no Médio Vale Paraíba do Sul, no município de Bananal, onde 65% das voçorocas ocorrem em unidades côncavas das encostas

Acredita-se que o surgimento e desenvolvimento de voçorocas em áreas urbanas, como no caso de Manaus, estão associadas à intensidade e freqüência das

precipitações, declividade e comprimento das encostas e do tipo de solo, além das modificações introduzidas pela urbanização. CUNHA & GUERRA (1996), afirmam

que os desequilíbrios registrados nas encostas ocorrem em muitos casos devido a participação do clima e alguns aspectos das encostas que incluem a topografia,

geologia, graus de intemperismo, solos e tipos de ocupação

Neste novo exemplo de estudo de caso, a metodologia aplicada consistiu no monitoramento do assoreamento através da plotagem de pinos, evidenciando o

processo de sedimentação. A metodologia aplicada no estudo da voçoroca foi a plotagem com várias estacas numeradas na borda da mesma. O estudo apontou a

necessidade de reflorestamento para deter o avanço da erosão, e conseqüente assoreamento do córregos que está prestes a desaparecer devido a intensidade na

sedimentação e sua acumulação.nos diferentes corpos d’água considerados.

Outro exemplo é a expansão desordenada da Chapada dos Guimarães, causando problemas de erosão, assoreamento de córregos e rios, escorregamentos

de escarpas, alargamentos, etc, trouxe a necessidade da aplicação de um estudo do meio físico no perímetro urbano da cidade, tendo por objetivo geral contribuir

como subsídio que pudessem atualizar ou adequar o uso do solo urbano, as possibilidades e limitações e controlar o processo de degradação ambiental.

Neste sentido, foi aplicada uma proposta metodológica que sintetizassem as relações entre os principais componentes do meio físico, definindo e

cartografando os principais processos relacionados à ocupação urbana. A abordagem metodológica constitui-se na analise integrada de mapas temáticos, delimitando

regiões com comportamentos homogêneos, após etapa de campo para levantamento preliminar, verificou-se um relacionamento muito estreito dessas variáveis no

perímetro urbano da Chapada dos Guimarães, sendo então elaborado um mapa morfopedológico na escala 1:25000, que apresenta dez compartimentos com as

principais características de interesse e recomendações para ocupação, como demonstrado na tabela 3.

Compartimento morfopedológico e suas características quanto à ocupação.

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Compartimento morfopedológico

Substrato geológico

Formas de relevo

Solo

Principais características de interesse e recomendações para ocupação

I Chapada Formação Ponta Grossa

Chapada ou extensos platôs

Concrecionários e Latossolos Vermelho-Amarelo, textura argilosa.

Adequada à ocupação, com restrições.

II Colinas amplas do Buriti Depósitos colúvionais Colinas amplas Areias Quartzosas Adequado à ocupação, com restrições.

III Colinas amplas/Médias com solo arenoso

Formação Botucatu Colinas amplas/médias Areias Quartzosas Medianamente adequado à ocupação.

IV-A Bordas de platôs A Formação Ponta Grossa Bordas de platôs Concrecionários Adequado à ocupação com sérias restrições.

IV – B Bordas de platôs B Formação Ponta Grossa Bordas de platôs Concrecionários Inadequado à ocupação. V Colinas médias e morrotes alongados com solos rasos

Formação Ponta Grossa e Formação Botucatu

Colinas médias e morrotes alongados

Concrecionários, Litólicos e Areias Quartzosas

Adequado à ocupação, com severas restrições.

VI Morros com esporões Formação Ponta Grossa Morros alongados com Esporões

Litólicos Adequado à ocupação, com severas restrições.

VII Vales entalhados Formação Ponta Grossa Vales amplos entalhados Litólicos, Cambissolos e Podzólicos

Inadequado à ocupação

VIII Anfiteatro de Cabeceiras de drenagem

Formação Ponta Grossa Anfiteatros côncavos de cabeceiras de drenagem

Concrecionários, Cambissolos e Latossolos

Inadequado à ocupação.

IX Veredas Formação Ponta Grossa e Formação Botucatu

Veredas Hidromórficos Inadequados à ocupação

X Escarpas Formação Furnas Escarpas Afloramentos de rocha Inadequados à ocupação FONTE: Zanatta et alii, 1999.

Como resultado do estudo realizado, nenhum dos compartimentos apresenta-se total e irrestritamente aptos à ocupação.As áreas adequadas à ocupação,

com restrições, apresentam topografia praticamente plana e ocorrência de solos profundos e permeáveis (latossolos), no entanto, manchas de solos rasos

apresentam-se como restrições, devido à execução de fossas sépticas e possibilidades de alagamentos. Áreas medianamente adequadas à ocupação apresentam

moderada suscetibilidade à erosão, em virtude do solo muito frágil e vertentes com declives acentuados. Áreas inadequadas à ocupação ( vales entalhados,

anfiteatros em cabeceiras e compartimentos de veredas), apresentam são altamente susceptíveis à erosão, sendo comum a ocorrência de sulcos e ravinas, e

desmoronamentos. As principais recomendações são: evitar o desmatamento e ocorrência de qualquer tipo de ocupação nestas áreas.

AVALIAÇÃO DO MEIO FÍSICO DE MUNICÍPIOS DO ESTADO DE RONDÔNIA, AMAZÔNIA OCIDENTAL.

A falta de mapeamentos temáticos (geologia, geomorfologia, pedologia, etc) em escalas compatíveis aos estudos do meio físico em áreas urbanas no estado

de Rondônia, é sem dúvida um dos grandes problemas para um trabalho mais efetivo nesta área, principalmente na área urbana.

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As escalas existentes dos mapeamentos temático estão em escalas de 1:100.000 e 1:250.000, algumas informações se encontra em 1: 50.000, não existindo

em 98% da área do Estado de Rondônia, fotografias áreas em escalas de maior detalhamento que 1:70.000 e 1: 120.000, ou seja, escalas de 1:10.000, 1:20.000 e

1:25.000, que cubram a parte urbana dos municípios não foram realizadas.

O subprograma de integração mineral em municípios da Amazônia – PRIMAZ,desenvolvido pela CPRM – Companhia de Pesquisa e Recursos Minerais, em

parceria com diversos outros setores, incluindo a Universidade Fedreal de Rondônia, teve como objetivo contemplar o estudo integrado dos recursos minerais,

hídricos, ambientais e temas correlatos à ocupação do solo, envolvendo os diversos segmentos da área social, econômica e de infra-estrutura de vários municípios da

Amazônia, incluindo alguns no estado de Rondônia ( Nova Brasilândia D’Oeste, Pimenta Bueno e Ariquemes).

A metodologia do trabalho dos diferentes mapeamentos utilizados, baseou-se na interpretação de imagens de satélites e trabalhos de campo para verificação

dos padrões observados nas imagens, e posteriores representações cartográficas das áreas imageadas, nos diferentes temas analisados, como geologia, solos,

aptidão agrícola, erosão, entre outros.

Como recomendações, o estudo propôs uma análise integrada dos recursos naturais, principalmente em ralação à aptidão agrícola do solo, considerando as

grandes áreas rurais dos municípios, para que a partir desses conhecimentos, se defina um planejamento mais adequado, que possa gerar melhores alternativas

de aproveitamento dos seus recursos naturais.

Estudos desta categoria, constituem uma ajuda para a gestão dos recursos naturais associada a escala do planejamento municipal, fornecendo subsídios à

elaboração de políticas públicas, com geração de dados primários que poderão ser usados na elaboração de futuros planos diretores destes municípios, alem de

compor matéria prima essencial para a formação de um banco de dados de escala gerencial e decisória para a administração municipal.

CONCLUSÂO

O conhecimento sobre o meio físico dos municípios incluindo os associados aos processos geomorfológicos e uso do solo, são de fundamental importância ao

planejamento municipal incluindo a sua área urbana.

Estudos das características morfológicas e dos seus processos, enquadram-se na perspectiva de analise geossistêmica, de forma integrada atendo-se a

significância dos estudos geomorfológicos em suas inter-relações com outros elementos considerados.

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Ainda não se tem uma metodologia definitiva considerando a necessidade de estudos deste nível na região amazônica, havendo ainda tentativas não

contínuas de uso de técnicas de outra regiões que são incorporadas e adaptadas até certo ponto, visando obtenção de resultados dos estudos de meio físico, que

possam auxiliar no desenvolvimento de análises mais realísticas, adaptadas, e de baixo custo operacional para uso na região .

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FEARNSIDE, P. M. (1980): A previsão de perdas através de erosão do solo sob vários usos da terra em áreas de colonização da Rodovia Transamazônica. Acter

Amazônia 12 (3) – 549 –578.

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________(!989) A ocupação humana em Rondônia e limites e planejamento. Programa Polonoroeste, relatório de pesquisa nº 05, SCT/PR CNPq, 76p.

FILHO, Vitório O. & GIUGNO, Nanci Begmni.A importância do meio físico e sua incorporação no processo de urbanização: Um exemplo da região metropolitana de

Porto Alegre.ANAIS I FÓRUM NACIONAL, Porto Alegre, vol. 3, nº 5, p. 105 – 107 out. / 1998.

OLIVEIRA, Marcelo A. T. de; NETTO, Ana L. C.; AVELAR, André de S.Morfometria De encostas e desenvolvimento de voçorocas no Médio Vale do Rio Paraíba do

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GUERRA, A. J. T. & CUNHA, S. B.Geomorfologia: uma atualização de bases e Conceitos.Bertrand do Brasil S. A., 2a ed., Rio de Janeiro, 1995.

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FILHO, Nilton F.; BITAR, Omar; BRAGA, Tânia; GALVES, Maria Lúcia. Processos de Meio Físico como objeto de estudo da Geologia de Engenharia nos

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ROSS, J. L. S. Geomorfologia, Ambiente e Planejamento. Editora Contexto, São Paulo, 1.990

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº121 - NOVEMBRO - PORTO VELHO, 2003

VOLUME VIII

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

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ISSN 1517-5421 lathé biosa 121

ENSINO DE HISTÓRIA, EXCLUSÃO SOCIAL E CIDADANIA CULTURAL – CONTRA O

HORROR PEDAGÓGICO

MARCOS A. DA SILVA

PRIMEIRA VERSÃO

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Marcos A. da Silva ENSINO DE HISTÓRIA, EXCLUSÃO SOCIAL E CIDADANIA CULTURAL – CONTRA O HORROR PEDAGÓGICO

Professor do Departamento de História - FFLCH/USP

“Quase que, de legítimo leal, pouco sobra, nem não sobra mais nada.” (João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas)

“ Males, que contra mim vos conjurastes, Quanto há-de durar tão duro intento?” (Luís de Camões, Soneto XXII)

Falo sobre Ensino de História e Exclusão Social num contexto ideológico brasileiro muito específico: o predomínio da argumentação, de sabor panglossiano1, de

que vivemos indiscutivelmente “no melhor dos mundos”, livres – enfim! – dos percalços da História2, sendo toda oposição denunciada como atraso3. Esse universo

ideológico, no plano internacional, data ao menos de 1989, a partir do fim do bloco soviético, embora alguns de seus elementos já se fizessem presentes no tecido

político reaganiano e thatcheriano, anterior àquele marco, época em que foi, muito adequadamente, entendido como conservadorismo. No Brasil, o acordo continuísta

que selou o anunciado fim da ditadura militar (criação do PFL por dissidentes do PDS, “Aliança Democrática” juntando PMDB e PFL, eleição indireta de Tancredo

Neves) em 1984/1985 abriu esse espaço argumentativo neo-liberal/conservador, bastante ampliado na era dos Fernandos (o Collor, 1989/1990, e o Cardoso, 1994/?),

e o episódio da venda do sistema telefônico do país4 ilustra bem sua euforia, metamorfoseando, na Imprensa e em vozes governamentais, mercadoria a preço de

banana em “revolução”, o que inovou o vocabulário político e ideológico numa escala verdadeiramente global.

Vale a pena olhar ao nosso redor para melhor avaliar referenciais e conseqüências dessa hegemonia: o Brasil governado (?) pelo segundo Fernando inclui

desemprego crônico e em expansão (contra o mito do mercado como felicidade pública)5, falsificações de remédios (contra a imagem da eterna excelência privada),

hospitais públicos transformados em ecúmeno para cogumelos (cf. o Hospital Walfredo Gurgel, de Natal, RN, apresentado em rede nacional de televisão na última

semana de julho de 1998), universidade pública em rápido processo de desmonte (v. o desprezo governamental pela greve das universidades federais no primeiro

semestre de 1998), partidos dominantes comportando-se como porta-vozes do novo Reich de Mil Anos e pobreza de milhões identificada a milhões de fracassos

1 Cf. o romance filosófico: VOLTAIRE – Cândido ou O Otimismo. Tradução de Miécio Tati. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1964 (Biblioteca Universal Popular). O personagem Pangloss, Preceptor que “lecionava metafísico-teólogo-cosmolonigologia” num castelo na Vestfália, diante dos maiores desastres (violência bélica, auto-de-fé em Lisboa, exploração colonial na América, etc.), não se cansa de repetir: “Tudo vai da melhor forma”. 2 FUKUYAMA, Francis – O Fim da História e o Último Homem. Tradução de Aulyde Soares Rodrigues. Rio de Janeiro, Rocco, 1992. Um argumento central do livro é que, findo o bloco soviético, triunfando mundialmente Capitalismo e Democracia Liberal, não mais ocorrerão mudanças significativas na humanidade, observando-se apenas conflitos menores e localizados. 3 SILVA, Marcos A. da – “Parâmetros para quem? – Sobre Outras Histórias”, in: LIMA, Ismênia, et al. (Orgs.) – Anais do XIX Simpósio Nacional de História. São Paulo, Humanitas/ANPUH, 1998. Vasto vocabulário do presidente Fernando Cardoso, reiteradamente empregado ao longo de seus mandatos, evidencia isso: “neo-bobos”, “caipiras”, “fracassomaníacos”, etc.. 4 Tal venda ocorreu em julho de 1998. Um ano depois, o espetacular fracasso das mudanças no sistema telefônico privatizado foi boa amostragem do triunfalismo neo-liberal/conservador em crise no Brasil. 5 Um economista brasileiro neo-liberal/conservador, em 1999, estranhou as reclamações contra o desemprego, tendo em vista a legitimidade, aos olhos do mercado, do expurgo de trabalhadores por empresas que podem deles prescindir. Ele não deve ter sido informado sobre o fato de que, numa economia de trabalho assalariado, os trabalhadores vivem de... salário! Ou foi informado disso mas não dá valor nenhum à vida de trabalhadores.

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pessoais, mentalidade social sintetizada com especial clareza no bordão televisivo “Eu tenho horror a pobre!”, seguido de gargalhadas, no programa humorístico de

larga audiência “Sai de Baixo”, da Rede Globo, fins dos anos ‘90.

Diante de tudo isso, pensar sobre Ensino de História e Exclusão Social exige que se especifique qual o Ensino, qual a História e qual o Brasil de que

se exclui ou se é excluído.

Um primeiro patamar na resposta a essas questões passa por um tipo de exclusão visível e imediata nos últimos cinco anos: vasta parcela da população escolar foi colocada

para fora das unidades públicas de ensino durante as reformas que separaram 1º e 2º graus em prédios diferentes, reintroduzindo virtualmente o antigo Primário (cuja integração

com o Ginasial fora defendida, desde o início dos anos ’60, como garantia de um Ensino Fundamental ampliado6, donde a nova separação poder ser entendida como diminuição

oficial desse grau), gerando dificuldades pessoais e familiares no acesso a tal direito – vagas disponíveis apenas em locais muito afastados de residência ou trabalho, sorteio de

vagas -, tudo isso feito em nome da eficiência empresarial (menores despesas, maior rentabilidade) do serviço público7.

Essa lógica empresarial de despesas e rentabilidade (para quem? para o estado? para os interesses sociais dominantes, ávidos por mais empréstimos

subsidiados e a fundo perdidíssimo?) tem por desdobramento a política de investir em equipamentos, como computadores para prédios que, por vezes, não possuem

telefone, eletricidade nem sequer água!, e tratar fatores humanos (Professores, Funcionários e Alunos) como merecedores do mínimo investimento, o que se observa

especialmente nos salários sem aumentos dos dois primeiros grupos, em nome do fetiche da moeda estável – o raciocínio parece ser “estabilize-se a moeda e danem-

se as pessoas”...8 Daí, a lógica neo-liberal/conservadora alimentar um ideal de escola sem seres humanos que atrapalhem (quer dizer, sem Professores, Funcionários e

Alunos), fortalecendo projetos de ensino à distância, em que a interatividade se reduza ao nível do programa televisivo “Você Decide”, também da Rede Globo, o que

demonstra que, no Brasil, a globalização tem sido literalmente entendida como adoção do padrão Globo de pensamento pelas elites dominantes e seus ideólogos –

finos biscoitos, preferivelmente importados, para eles e pasto, quando muito, para os outros.

Além dessa exclusão social visível e imediata no ensino, todavia, outras modalidades excludentes têm-se consolidado no cenário neo-liberal/conservador,

convidando a pensar sobre a situação do Ensino de História e mesmo sobre a História tout-court. Uma dessas dimensões é o estado declinante do trabalho no mundo

globalizado, em contraponto à ascensão ideológica do mercado, gerando um universo de cintilante oferta para um público de incapacitados à sobrevivência. Forrester

discute esse panorama do neo-liberal/conservadorismo de maneira instigante e terrível: o capitalismo não mais consegue, não mais quer nem mais precisa criar

trabalho, o nível tecnológico nesse final de século XX pode prescindir da maior parte da população para fins produtivos (há quem fale até em 80% da humanidade

como descartáveis pelo mercado) e os engajados no trabalho não podem sentir-se seguros de sua situação9. É nesse apavorante mundo novo10 que as mais sombrias

6 LIMA, Lauro de Oliveira – O Impasse na Educação – Diagnósticos, Crítica, Prospectiva. Petrópolis, Vozes, 1969. 7 Baseei essa descrição especialmente no caso paulista, durante a primeira gestão Mário Covas – 1995/1998. Graves problemas de saúde desse político, em 1999, tenderam a transformá-lo em modelo e mártir - não se sabe bem de quê... 8 O único custo efetivamente controlado na sociedade brasileira durante a era Cardoso é o trabalho, uma vez que qualquer outra mercadoria eleva seus preços livremente. 9 FORRESTER, Viviane – O Horror Econômico. Tradução de Álvaro Lorencini. São Paulo, UNESP, 1997. 10 Cf., de forma invertida, o título da conhecida distopia:

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distopias11 transformaram-se em experiências bem palpáveis: a metamorfose de homens e mulheres em infinita multidão de formigas, que não mais precisa de

História nem de Arte (Godard), a despotencialização de toda revolta através da exploração dos medos de cada um (Orwell). Em contrapartida, as róseas utopias sobre

a diminuição do tempo de trabalho como resultante das transformações técnicas, gerando espaço para uma vida plena de lazer e prazeres, estão mais para o prólogo

do filme Metropolis, em que o personagem principal, pertencente a uma camada privilegiada, desfruta das delícias de sua condição (namora e brinca num jardim),

do que para a superficial leveza dos Jetsons, família de seriados televisivos e quadrinhos, cujos problemas são sempre resolvidos pelos mais diversos gadgets

oferecidos pela inesgotável tecnologia12.

O livro de Forrester já é suficientemente assustador para todas as áreas de ação humana – inclusive, a Educação – mas pode ter alguns de seus argumentos

desdobrados ou redirecionados em relação a campos específicos de prática social.

No que se refere ao Ensino de História, vale salientar como a ideologia neo-liberal/conservadora parte de uma ortodoxia fukuyamiana (A História Acabou!),

mesclando-se, inadvertida e acriticamente, a paródias de temas de Dostoiévski (Se a História não existe, tudo é permitido!) e Nietzsche (Ursos e Águias dominantes

adoram tenros carneiros dominados...), tratando de esvaziar as duas últimas referências de qualquer tensão que seus escritos introduziram através daqueles tópicos

originais13. O conceito nietzscheano de moral do ressentimento finda sendo útil instrumento para entender procedimentos daquela ideologia: tudo que lhe é estranho

merece a identificação ao mal14.

Esse trajeto pode ser exemplificado no Brasil pelos Parâmetros Curriculares Nacionais/História, que internalizaram o debate sobre tal campo de

conhecimento no mundo dos Grandes Historiadores e das Políticas Oficiais de Ensino, tratando de reduzir os primeiros a algumas fórmulas esvaziadas de ação humana

- durações longa, média ou curta (álibi Braudel) e tempo da natureza versus tempo do relógio ou da fábrica (álibi Thompson)15 – e usando aquelas políticas para

ocultar a multiplicidade de interpretações da História que circulam socialmente, além de equipararem aqueles Historiadores à ideologia mais rasteira.

HUXLEY, Aldous – Admirável Mundo Novo. Tradução de Vidal de Oliveira e Lino Vallandro. Porto Alegre, Globo, 1985. 11 Além deHuxley, ver: ORWELL, George – 1984. San Diego, Harcourt Brace Jovanovich, 1977. GODARD, Jean-Luc – Allphaville. 12 LANG, Fritz – Metropolis. Cito os seriados e quadrinhos dos Jetsons de memória. 13 FUKUYAMA, Francis – Obra Citada, Edição Citada. DOSTOIEVSKI, Fiodor M. – Os Irmãos Karamazov. Nova Versão Anotada de Natália Nunes e Oscar Mendes. Rio de Janeiro, José Aguilar, 1975, pp 489/1101 (Obras Completas, volume 4). NIETZSCHE, Friedrich – Genealogia da Moral. Tradução de Paulo César Souza. São Paulo, Brasiliense, 1987. Uma passagem crucial no romance de Dostoievski é a morte do stáriets Zósima , que possuía fama de santidade. Há uma expectativa generalizada sobre o estado de seu cadáver exposto: por ser ele considerado em vida “um verdadeiro santo” (p 759), não deveria entrar em decomposição. Logo, forte mau cheiro invade o ambiente, para decepção de muitos e contentamento de outros tantos. Posteriormente, Dimitri, um dos irmãos, mata o pai e, já preso, relembra a pergunta que fizera a Ivan, outro dos Karamazov, diante da afirmação do último sobre a inexistência de Deus: “Então, tudo é permitido?” (p 961). Nietzsche, naquele ensaio, discute relações de poder contra uma concepção moralizante e cristã, para a qual, o Bem triunfará inevitavelmente, os humilhados são bem-aventurados e os poderosos são identificados ao Mal. Em Nietzsche, contra um poder, somente outro poder conseguirá impor-se – para não mais serem devorados, os cordeiros precisarão criar armas que ultrapassem depender de um Pastor. 14 NIETZSCHE, Friedrich – Obra Citada, Edição Citada. 15 Parâmetros Curriculares Nacionais/História – Terceiro e Quarto Ciclos do Ensino Fundamental. Brasília, MEC/SEF, 1998.

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As análises sutis, inteligentes, originais e profundas de experiências humanas que Thompson e Braudel fizeram em muitos escritos para chegarem àqueles

conceitos, além de seus diferentes projetos políticos, foram solenemente silenciados pelos PCNs/H e deformados como receitas simplórias. Isso não se deveu

prioritariamente a incapacidade analítica dos autores e assessores daquele documento neo-liberal/conservador, que, provavelmente, tiveram competente formação

acadêmica – como é comum entre burocratas dessa tendência política e ideológica no Brasil, marcados pelo exibicionismo curricular, de línguas estrangeiras (v. Collor)

a pós-pós-graduações no exterior (v. Cardoso), passando pelo domínio da etiqueta burguesa mundial – como se comportar numa reunião do FMI ou num simpósio

internacional, p. ex.. Muito mais que incapacidade, suas omissões revelam a necessidade política e ideológica de ignorar a ação social de diferentes sujeitos, buscando

constantes conceituais (mesmo que sejam fragílimas) justificadoras de uma análise dedicada à homogeneização da História, tornada desprovida de seres humanos que

atrapalhem a marcha triunfal dos dominantes16.

Nesse sentido, o Braudel das durações, desligado de suas vastas análises a partir de uma infinidade de evidências, revela-se muito útil para a ideologia neo-

liberal/conservadora: há uma hierarquia que vai da longa para a curta; na primeira, as ações humanas e sua capacidade de alterar relações de poder desaparecem;

resta uma marcha de estruturas que, no contexto cultural em que o artigo de Braudel foi originalmente publicado (anos ´50, triunfo mundial dos estruturalismos), era

prestigiosa e reintroduzia a História no concerto das disciplinas dignas de atenção. De lá para cá, o Estruturalismo perdeu sua hegemonia, os discípulos de Braudel

tornaram-se grandes estrelas da academia e da mídia – a História, mais que nunca, transformou-se em disciplina prestigiada, embora às vezes, esvaziada de crítica,

com inúmeros best-sellers no mercado, mas os parametrólogos brasileiros da área não se deram conta disso!17

Thompson, por sua vez, fala em diferentes tempos num sentido muito diferente daquele trabalhado por Braudel. Na perspectiva do Autor inglês, interessa

discutir tempos como tecidos do exercício de poderes e das lutas sociais, contrapondo-se a uma visão ingenuamente progressiva da História: o trabalho anterior à

indústria abrigava margens de controle sobre o tempo pelos trabalhadores muito maiores que aquelas introduzidas pela disciplina fabril. Não se trata, portanto, de

pensar num tempo da natureza em si ou do relógio em si: o olhar de Thompson se dirige para tradições de luta e relações sociais ali abrigadas como experiências18.

A situação específica da área de História é coerente com orientações gerais dos PCNs, que indicam para todas as disciplinas determinadas posturas quanto a

questões sociais – saúde, meio-ambiente, relações de gênero, direitos humanos, etc. -, fundamentadas nos critérios do politicamente correto, esvaziando a

Os textos de Thompson e Braudel que sofreram um processo de anamorfose nesse documento (a culpa não é de Thompson nem de Braudel!) foram: THOMPSON, E. P. - “O Tempo, a Disciplina do Trabalho e o Capitalismo Industrial”, sem indicação de Tradutor, in: SILVA, T. T. (Org.) – Trabalho, Educação e Prática Social, Porto Alegre, Artes Médicas, 1991, pp 44/93. BRAUDEL, Fernand – “História e Ciências Sociais – A Longa Duração”. Revista de História. Tradução de Ana Maria Camargo. São Paulo, XVI (62): 261/294, abr/jun 1965; 16 Essa imagem da marcha triunfante dos vencedores aparece em Walter Benjamin, submetida a olhar crítico: BENJAMIN, Walter – “Sobre o Conceito de História”. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet, in: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo, Brasiliense, 1985, pp 222/232. 17 A primeira edição do livro de Chesneaux Du Passé, Faisons Table-Rase? data de 1974. Esse Autor rediscutiu a longa duração num contexto crítico radical, associando-a a demandas de grupos sociais dominados – minorias étnicas e regionais, mulheres, etc.. CHESNEAUX, Jean – Devemos Fazer Tábula-Rasa do Passado? Tradução de Marcos A. da Silva. São Paulo, Ática, 1995. 18 Além do ensaio indicado, é de grande importância acompanhar as discussões de: THOMPSON, E. P. – Miséria da Teoria. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro, Zahar, 1981.

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necessidade de movimentos sociais em luta por direitos, uma vez que, no mundo sem História, as elites dirigentes do novo Reich de 1000 anos agem como se

zelassem pela Justiça sem a necessidade de manifestações das partes interessadas, como já se observou em relação a movimentos feministas (delegacias de

mulheres) e ecológicos (os Relatórios de Impacto Ambiental – RIMAs): criadas essas instituições ou políticas, as questões que elas abarcam estariam resolvidas para

todo o sempre e os movimentos sociais passariam a figurar como... atraso! O pior risco nessa situação para a maior parte das pessoas é de, como no anterior Reich, o

alto percentual da população tornada descartável (desempregados, sub-empregados, trabalhadores não-especializados, dissidentes políticos) ser identificado a inimigo

explícito, causador de despesas sem retorno lucrativo e submetido a novas políticas de extermínio em massa – o que, num certo sentido, já começou para setores da

pobreza brasileira, como idosos e doentes -, sempre em nome da lógica de menores custos e maior produtividade.

O quadro até aqui descrito foi o da hegemonia de um tipo de Ensino de História, identificado ideologicamente aos horizontes do neo-liberal/conservadorismo.

Sua função educacional é constituir o Horror Pedagógico através da infinidade de recursos materiais e humanos virtualmente disponíveis (bibliotecas e museus que a

informática coloca à disposição de Professores e Alunos, crescente número de docentes com alta qualificação - inclusive pós-graduados), truncados pela radical

redução do Saber Histórico a fórmulas esvaziadas19, recursos inacessíveis à maioria da população porque o ensino público se encontra em processo de desmanche –

apesar dos adereços eletrônicos ali injetados – e o ensino privado “de qualidade” se situa fora do alcance dos pobres devido aos seus preços. Ao mesmo tempo que

anuncia a necessidade premente desses recursos para a sobrevivência no mundo contemporâneo, o Horror Pedagógico trata de demonstrar sua condição de privilégio,

legitimando a desqualificação da maioria.

A exclusão social pelo Ensino de História se dá, portanto, através da adesão anti-crítica à ideologia neo-liberal/conservadora e também da própria relação de

historiadores e pedagogos dessa linha política, ideológica e teórica com a produção de Saber Histórico. Já foi apontado o radical esvaziamento historiográfico que se

observa na brutal simplificação de Thompson e Braudel pelos PCNs/H. Outra face da exclusão social pelo Ensino de História diz respeito à reiteração de hierarquias

entre Grandes Historiadores, supostamente recuperados por aqueles ideólogos – basta ver o que fizeram com Braudel e Thompson! – e os pequenos professores e

alunos, destinados, naquela perspectiva, à reprodução passiva do que a Grande Historiografia lhes apresentou, via PCNs, como produtos.

Esse ensino reprodutivista parte de uma necessidade que todos os Profissionais de História assumem (conhecer a Historiografia instituída) para transformá-la em

questão indiscutível – portanto autoritária - de monopólio do saber: só a Historiografia instituída passa a ser considerada respeitável, só os Historiadores instituídos como

Grandes podem ser encarados como capazes de pensar criativamente sobre a História. Instaura-se, consequentemente, a lógica do produto (o Grande livro de História) e o

monopólio da produção (os Grandes Historiadores) contra a possibilidade de o Ensino de História ensejar a universalização dos produtores e o diálogo entre diferentes

produções. Os Historiadores instituídos como Grandes são identificados a emissores de palavras finais e não tratados como trabalhadores do Pensamento que apresentam

suas complexas buscas. Suas propostas são ainda mais diminuídas através de interpretações oficiais normativas e livros didáticos.

19 Vide os tristes usos de Thompson e Braudel nos PCNs/H, já referidos.

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Certamente, as palavras finais são muito adequadas ao mundo da ideologia: oferecem a sensação de equilíbrio e tranqüilidade, dispensam seus seguidores de

entenderem o árduo trabalho do Pensamento alheio (transformado em mero objeto de culto) e, consequentemente, de trilharem o difícil trabalho de seu próprio

pensamento20. É assim que consumidores de palavras finais se poupam do pensar, uma vez que Grandes Autores já o fizeram por eles, num claro anseio daqueles

consumidores pela menoridade21.

Essa situação se manifesta no Ensino de História de maneira especialmente eficaz para a ideologia neo-liberal/conservadora quando setores burocráticos

apresentam o reprodutivismo pedagógico como direito docente, oposto a uma hipotética pressão ou chantagem dos que defendem a escola como espaço de produção

de Conhecimento por todos, evocando a fábula do lobo e do cordeiro, inclusive em sua virtual conclusão proto-nietzscheana, que possibilita pensar em relação àqueles

ideólogos: contra a força, outra força!

Vale pensar sobre essa polarização reproduzir/produzir: se o primeiro procedimento deriva literalmente do segundo, é impossível supor sua negação recíproca; atos

corriqueiros do pensar (escolher, articular, interpretar) se dão a partir de agentes, tempos e lugares específicos e não num universo abstrato da pura repetição – a última

situação é mais própria em papagaios, gravadores e seres ou aparatos semelhantes, inclusive os mais coerentes com a pós-modernidade, como computadores; ao mesmo

tempo, existem dimensões de reprodução – inclusive, reprodução de tensões e rupturas – em todos aqueles atos, diferenciando-se, todavia, da mesmice.

Um exemplo desse culto cego aos Grandes Historiadores, desdobrado em sua passiva reprodução pelos pequenos professores, pode ser dado através de Caio

Prado Jr.. O que torna esse Autor Grande? Certamente, sua capacidade de elaborar interpretações inovadoras e significativas sobre experiências sociais brasileiras.

Quando ele escreveu seus principais livros (anos 30 e 40), enfrentou adversários muito poderosos em Imprensa, Academia e outras instituições, persistindo, todavia,

em um trabalho de peso. Discutí-lo com Alunos de diferentes graus passa pela tarefa de salientar inteligência e coragem contidas em sua produção e as conquistas de

Conhecimento Histórico por elas atingidas, retomadas e ampliadas por estudiosos de História que se lhe seguiram. Uma reflexão como a que abre o clássico

Formação do Brasil Contemporâneo, construindo a problemática de “Sentido da Colonização”, é referência fundamental para qualquer debate sobre experiência

colonial, mesmo que seja para dela divergir22.

Esse reconhecimento dos grandes méritos de Caio Prado Jr. (ou de qualquer outro clássico da Historiografia Brasileira, como Sérgio Buarque de Hollanda ou Gilberto

Freyre) não pode significar cega submissão aos termos de seus escritos. No caso do próprio Prado Jr., aquele livro, malgrado sua importância, contém interpretações

inadmissíveis desde que ele foi publicado - ou mesmo antes de sua edição -, caso de trechos como “os indígenas da América e o negro africano, povos de nível cultural

20 Sobre o pensamento e a crítica diante da ideologia, ver: CHAUÍ, Marilena – Cultura e Democracia – O Discurso Competente e Outras Falas. São Paulo, Moderna, 1981., 21 KANT, Immanuel – “Resposta à Pergunta: Que é o Esclarecimento?”. Tradução de Floriano S. Fernandes, in: Textos Seletos. Petrópolis, Vozes, 1974, pp 100/117 (Edição bilingüe). Esse Autor comenta: “É tão cômodo ser menor.” (p 100). Em contrapartida, pensamento e maioridade são tão incômodos! 22 PRADO JR., Caio – Formação do Brasil Contemporâneo - Colônia. São Paulo, Brasiliense, 1995 (1ª ed.:1942). IDEM - Evolução Política do Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1972 (1ª ed.:1933).

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ínfimo” e “passividade (...) das culturas negras e indígenas no Brasil”, índices de racismo puro e simples23. Não é o caso de supor que o racismo era moeda corrente na

Historiografia e na produção cultural brasileiras daquela época: Autores como Lima Barreto e Manoel Bomfim são exemplos eloqüentes da crítica ao racismo nos campos da

Literatura e do Ensaio. Certamente, Prado Jr. não explicou a experiência social prioritariamente a partir daqueles preconceitos - até salientou a multiplicidade dos povos

indígenas e africanos! - mas também não conseguiu superá-los adequadamente naquele momento de sua produção.

Uma leitura crítica desse grande Historiador saberá separar as contribuições inovadoras e dignas de respeito contidas em seus livros dessas manifestações vulgares do

racismo. Para tanto, todavia, é imprescindível, no caso do Ensino de História, uma prática que ultrapasse o reprodutivismo, defendido pelos PCNs/H, e instaure a ousadia

interpretativa e criativa no dia-a-dia da sala de aula, tratando um Grande Historiador como um igual.

A possibilidade de qualquer pessoa produzir Conhecimento em qualquer lugar é realmente perturbadora para quantos são portadores do projeto neo-liberal/conservador,

dotado de intensa vontade de despotismo: se qualquer um pode pensar criticamente, como ficam os parâmetros do pensamento geral? Numa sociedade violentamente

hierarquizada, a violência do pensamento prestigiado é muito coerente e só pode ser enfrentada por aqueles que desafinam dos parâmetros hegemônicos. O que está em jogo,

portanto, são os interesses de um centralismo triunfante mas inseguro e zeloso de sua própria continuidade, sustentado ideologicamente por conselheiros e amigos do rei,

selecionados, por vezes, nos quadros docentes de universidades de prestígio. É isso que Professores e Alunos querem sustentar?

Quem não quer se localizar nesse círculo pode evocar uma advertência de Pascal:

“A arte de agredir e subverter os Estados consiste em abalar os costumes estabelecidos, sondando-os até em sua fonte, para apontar a sua carência de justiça. É preciso,

diz-se, recorrer às leis fundamentais e primitivas do Estado que um costume injusto aboliu: é um jogo certo para tudo perder; nada será justo nessa balança. No entanto, o povo

presta facilmente ouvidos a tais discursos. Sacodem o jugo logo que os reconhecem; e os grandes disso se aproveitam para sua ruína e para a desses curiosos examinadores dos

costumes admitidos. Mas, por um defeito contrário, os homens acreditam, às vezes, que podem fazem com justiça tudo o que não é sem exemplo. Eis por que o mais sábio dos

legisladores dizia que, para o bem dos homens, é preciso, muitas vezes, enganá-los, e um outro, bom político: Cum veritatem Qua liberetur ignoret, expedit quod fallatur. Não é

preciso que ele sinta a verdade da usurpação: esta foi introduzida, outrora, sem razão; tornou-se razoável; é preciso fazê-la observar como autêntica, eterna, e ocultar o seu

começo, se quiser que não se acabe logo.”24

Uma primeira leitura desse fragmento pode sugerir que Pascal estava defendendo a usurpação, ainda mais porque ele parece incluir-se, através do apelo a sujeito

indeterminado, entre os que não desejam seu fim. Trata-se, todavia, de uma sutil forma de escancarar a face da usurpação, anunciando seu arbitrário começo e preparando a

possibilidade de seu final, associando esse processo a carência de justiça e presença do povo na cena dos poderes. Dessa forma, Pascal contribui brilhantemente para o

contrário do que ele aparenta declarar: lido seu texto, qualquer um sente muito mais a verdade da usurpação e a possibilidade de sua supressão.

23 Há importante discussão sobre o tema no artigo: BARREIRO, José Carlos – “O Materialismo Histórico e a Questão da Cultura”. Revista Brasileira de História. São Paulo, ANPUH/Marco Zero, 9 (19): 209/218, set 1989/fev 1990. 24 PASCAL, Blaise – Pensamentos. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1957. A citação em latim (“Como ignora a liberdade que liberta, é-lhe útil ser enganado”) é de Santo Agostinho, no livro A Cidade de Deus.

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Na crítica ao Ensino de História como Exclusão Social, a reafirmação do caráter democrático do Ensino que encara toda pessoa como ser crítico e criativo, como

sujeito, é pensada enquanto parte do direito à cidadania cultural, abrangendo Professores, Alunos e população em geral.

Entendido dessa forma, o Ensino de História jamais se confundirá com a letra legal (Parâmetros, Guias e Propostas Curriculares), com materiais didáticos (livros,

recursos de informática), como repetição mecânica da Grande Historiografia nem mesmo com operações que passam exclusivamente pelo arbítrio burocrático-docente.

Como parte do processo geral de produção de saberes históricos, ele articula a Historiografia instituída (acadêmica, clássica, erudita) ao dia-a-dia do pensamento

produzido por Professores e Alunos, dotados de outras erudições, e a tradições sociais que explicitam interpretações de historicidades. Ao invés de soma aleatória

dessas faces de pensamento sobre a História ou eventual substituição de uma pela outra, o debate sobre a cidadania cultural no processo de Ensino traz para elas a

possibilidade de esclarecimentos críticos, recíprocos e permanentes.

É certo que essa maneira de assumir o Ensino de História tem por efeito a perda da estabilidade – próxima da rigidez cadavérica - gerada por uma tutela que

Parâmetros, Livros Didáticos e supostos porta-vozes de Grandes Historiadores exercem sobre professores e alunos. Essa condição estável, todavia, tem sido a face

mais imediata da Exclusão Social que o ensino reprodutivista introduz, abrangendo não apenas a exclusão que expulsa Professores e Alunos das salas de aula mas

também aquela que os remete para a eterna menoridade intelectual, afastados da cidadania cultural.

Sair desse reprodutivismo excludente requer, além de enfrentar o falso conforto da menoridade intelectual, combater argumentos e práticas dos ideólogos neo-

liberal/conservadores, particularmente, a suposição de que Professores e Alunos são um vazio preenchido por ordens governamentais ou empresariais ao bel-prazer

dessas autoridades. Nesses termos, a defesa do Ensino de História como parte da luta pelo direito à cidadania cultural inclui a consideração de escola e ensino

enquanto espaços de disputa intelectual e política, evidenciando que aquele direito começa a ser exercido desde já.

Seria grande ingenuidade supor que os valores éticos e teóricos da cidadania cultural constituem um patamar que possa interessar a todos num país e num

mundo marcados por fortes tensões e exclusões: os defensores da vontade de tirania neo-liberal/conservadora só os utilizarão, quando muito, no nível de retórica

descartável, transmutados, todavia em chavões que não atrapalhem seus projetos.

Contra o Horror Pedagógico neo-liberal/conservador, a construção da cidadania cultural apela para práticas e argumentos que parecem, hoje, fora de moda e

enfraquecidos: projetos alternativos, multiplicidade de vozes na cena pública, aprendizagem no debate. O Conhecimento Histórico identificado a prática crítica, todavia,

não permanece apenas na última moda e na força dominante a fim de não perder de vista o tempo como possibilidade e perspectiva.

Combater o Horror Pedagógico e seus efeitos devastadores no Ensino de História é contribuir para um pensamento onde a historicidade não se reduza a vaga

lembrança e sim apareça como referência ética e teórica para a potência de homens e mulheres em relação ao mundo onde vivem e sobre o qual refletem e agem.

PERPECTIVAS – OUTROS ENSINOS DE HISTÓRIA.

A V Jornada de Ensino de História e Educação, promovida pela UNIVATES e pelo Grupo de Trabalho de Ensino de História e Educação da ANPUH/RS,

de 3 a 5 de junho de 1999, reuniu debates sobre múltiplas faces desse campo de produção de Conhecimento Histórico.

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Como um saldo geral dessas discussões, atentas a dimensões técnicas, políticas e teóricas do Ensino de História, é possível identificar uma busca em comum

aos diferentes projetos de Conhecimento ali contidos: a pergunta sobre Onde Está a História. As múltiplas respostas a essa questão que foram esboçadas pelos

participantes da Jornada, por sua vez, puderam encontrar-se num aspecto: a defesa do Direito à História.

Esse Direito à História pode ser entendido como Direito ao Passado, ao Presente e ao Futuro, Direito às marcas deixadas por homens e mulheres de outras

épocas e Direito a deixar marcas para outras épocas25. Nesses termos, o Direito à História significa para Professores, Alunos e População em geral o Direito à Beleza

do Conhecimento Histórico, englobando o Saber Acumulado (a Historiografia já elaborada) e o Saber em Produção, evidenciando que cada ato de Ensino e

Aprendizagem pode ser trado como ato de Pesquisa e não enquanto mecânica repetição do estabelecido. Outra face desse Direito à História, de fundamental

importância, diz respeito à Prática da Cidadania, situando-se em seu próprio interior.

Todas essas potencialidades da História enfrentam barreiras no mundo em que vivemos, na passagem do século XX para o XXI, marcada pela lógica geral do

descarte, inclusive dos seres humanos, e do baixo custo, principalmente do trabalho humano. Contra essas barreiras, muito favorecidas pelo monopólio das vozes

interpretativas associadas ao poder instituído, a multiplicidade de vozes se expressando e de formas de articulação social demonstram que poderes não são eternos,

têm uma implementação, uma vigência e podem ser suplantados por novos poderes.

Nesse universo de debate, a História do Homem Comum significa a possibilidade de pensar na dimensão Incomum de todos os homens e mulheres, incluindo

Professores e Alunos como sujeitos em potência. O Ensino de História pode contribuir para intensificar essa potência ou para despotencializá-la. A fixação do

Conhecimento no fetiche dos “novos objetos”, com certeza, não satisfaz sozinha àquela intensificação.

As relações do Ensino de História com os movimentos sociais abrangem o reconhecimento de múltiplos Conhecimentos em produção na sociedade, o que pode

ser exemplificado no Brasil por demandas e interpretações colocadas por grupos como os sem-terra, os moradores de rua, as mulheres, os negros, os índios, os

desempregados e os homossexuais, dentre outros. Na medida em que esses grupos e movimentos sociais contribuem para o alargamento da cidadania, participam da

elaboração de outras problemáticas de Conhecimento, além de apresentarem seus fazeres de memórias, aqui entendidos não como mera reiteração de práticas mas

também como busca cotidiana na produção da sobrevivência. Os próprios Professores são parte ativa desse tecido, quer pela memória de suas experiências, quer

através de seu trabalho cotidiano com a interpretação de Capital simbólico – que não se confunde com “imaterial”.

Os debates trouxeram para o primeiro plano, portanto, a busca de afirmação de um poder do Ensino de História na cena dos poderes em disputa no conjunto

da sociedade brasileira. Outros estilos de Ensino de História, apegados à lógica dos Diários Oficiais, não estão alheios a esses debates, antes são os oponentes com

que os Conhecimentos Críticos lidam em seu cotidiano, sem ilusões de uma harmonia de saberes num mundo caracterizado por tensões e disputas.

25 Evoco o título e o conteúdo geral de uma bela Tese de Doutoramento, ainda inédita: MAGALHÃES, Nancy Alessio, - Marcas da Terra, Marcas na Terra. Tese de Doutoramento em História Social, FFLCH/USP. São Paulo, Digitado, 1996.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº122 - NOVEMBRO - PORTO VELHO, 2003

VOLUME VIII

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

SILVIO A. S. GAMBOA – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

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ISSN 1517-5421 lathé biosa 122

ESTIMATIVA DA EVAPOTRANSPIRAÇÃO REGIONAL CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS

MARCOS CÔRTES COSTA

PRIMEIRA VERSÃO

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Marcos Côrtes Costa ESTIMATIVA DA EVAPOTRANSPIRAÇÃO REGIONAL CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS Professor do Departamento de Geografia - UFRO

O resultado do balanço hídrico do solo, em escala regional, representa apenas uma etapa do ciclo hidrológico. Este, por sua vez, é caracterizado por: a)

precipitação, que é o componente principal do balanço hídrico; b) evapotranspiração, que envolve componentes relacionados a clima, solo e cobertura vegetal; e c)

escoamento superficial, como resultado final dos processos. Do total da água da chuva ou da irrigação que atinge o solo, uma parte é interceptada e fica na superfície

e parte pode escoar superficialmente, enquanto o restante infiltra por meio de sua superfície. Deste total, uma parcela retorna à atmosfera por evapotranspiração e a

outra percola profundamente, alimentando os aqüíferos subterrâneos.

Segundo TROVATI (1987), a evapotranspiração (ET) numa bacia hidrográfica é um dos componentes do ciclo hidrológico de maior incerteza, sendo tão

importante quanto os componentes precipitação e deflúvio de uma bacia. A evapotranspiração é um dos principais componentes a ser estimado para o balanço hídrico,

uma vez que na estimativa da evapotranspiração está incluída a precipitação e que tais estimativas serão os dados de entrada do escoamento superficial. Além disso,

segundo SHIH (1985), a ET representa, aproximadamente, 75% do total da precipitação que ocorre sobre superfícies continentais. Portanto, para propósitos

hidrológicos, é indispensável ter informações disponíveis de evapotranspiração.

Segundo MORTON (1983), o planejamento e o manejo de recursos hídricos têm sido deficientes, pois desconsidera-se que a evapotranspiração, em algumas

épocas do ano, é maior que a precipitação e o escoamento superficial.

A estimativa da evapotranspiração pode ser feita por vários métodos, desde simples tanques de evaporação, como o tanque Classe A (U.S.Weather Bureau

Class A Pan), até métodos micrometeorológicos complexos, tais como correlação de fluxos de turbilhões e balanço de energia, que são alimentados com dados

micrometeorológicos representativos de áreas localizadas. Tais métodos utilizam dados obtidos por meio de instrumentação especial e de custo elevado. Além disso, a

insuficiência de estrutura física do sistema nacional de obtenção de informações hidrológicas dificulta a utilização de modelos sofisticados para resolver os diversos

tipos de problemas relacionados com recursos hídricos.

A estimativa da ET depende do propósito do estudo e da precisão requerida, pois uma abordagem própria para sistemas estacionários e com previsões de longo

prazo para propósitos de planejamento não deve ser utilizada para períodos curtos, como, por exemplo, decisões para o manejo de irrigação de uma cultura. Além disso, os

dados climáticos são disponíveis em poucas localidades e em um período de tempo estimado e praticamente nunca estão onde são necessários. Dessa forma, no balanço

hídrico regional, o problema é tal que um método precisa ser adaptado para transformar algum dado disponível, que pode não ser de interesse direto para as necessárias

informações hidrológicas. Por exemplo, o problema pode consistir em determinar a corrente de fluxo hídrico numa dada localização, conhecendo-se o fluxo vindo de outro

ponto, ou conhecer-se e avaliar o grau de retenção do fluxo hídrico em lagos e barragens da região ou, ainda, a distribuição da chuva sobre a bacia. Em outros casos, o

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problema pode consistir em deduzir, a partir de dados meteorológicos disponíveis, a evapotranspiração de uma bacia hidrográfica. Cada situação exigirá uma solução

diferente, com o emprego da metodologia mais apropriada para os fins a que o pesquisador se proponha.

REVISÃO DE LITERATURA

A perda de água por evaporação e por transpiração é de grande importância na estimativa das necessidades hídricas dos cultivos agrícolas de qualquer região.

RITCHIE (1985) e SHIH (1985) afirmam que, no desenvolvimento de estratégias adequadas de manejo de solo-água para a produção de culturas em locais

com bom regime de chuva e, especialmente, em locais próximos a regiões secas, é vital o conhecimento da evapotranspiração e, conseqüentemente, do balanço de

água no solo. No entanto, não existe método universalmente seguro, e CELLIER (1985) considera a estimativa da evapotranspiração real, em condições naturais, uma

operação delicada, que necessita de conhecimento tecnológico avançado.

Para a solução de vários problemas agrícolas, é necessário o conhecimento da evapotranspiração em períodos mensais, semanais ou mesmo diários, com a

utilização de equipamentos caros e complexos; na falta destes, fórmulas empíricas foram desenvolvidas para estimar a evapotranspiração, em função de componentes

climáticos disponíveis, e podem ser utilizadas para o dimensionamento e manejo correto de água em projetos agrícolas.

DOORENBOS e PRUITT (1988) afirmam que são utilizados diversos métodos para estimar a evapotranspiração a partir de componentes climáticos, devido à

dificuldade de obter medições diretas e precisas em condições reais não somente pelo grau de precisão necessário para predizer a evapotranspiração, mas também

porque a escolha da fórmula está condicionada pelos componentes climáticos medidos com precisão suficiente durante um certo número de anos.

Dentre os métodos baseados em temperatura, a equação de Blaney-Criddle (BC) é, provavelmente, uma das mais conhecidas expressões para a estimativa

das necessidades hídricas das culturas. Ela pode ser apresentada, basicamente, em três tipos de formulações, sendo: a) versão original; b) adaptada pelo SCS (Soil

Conservation Service do USDA); e c) modificada pela FAO (Food and Agricultural Organization). A modificação introduzida pela FAO, na equação de Blaney-Criddle,

implica estimativa do valor de ETo (evapotranspiração de referência), enquanto a equação original estima o uso consuntivo de água (UC) pela cultura, que pode ser

definido como sendo a soma da ET com a água de constituição do tecido vegetal.

Dentre as principais fórmulas de estimativa de evapotranspiração potencial, o método de balanço de energia de Penman se destaca, confirmando a sua

recomendação pela Organização Meteorológica Mundial (OMM).

Para estimativa da evaporação em lagos e reservatórios, a equação de Kohler - Nordenson - Fox (KOHLER et al., 1955) tem sido amplamente utilizada. O

modelo é uma adaptação da equação de Penman para estimar a evaporação em tanque Classe A.

Uma alternativa para os métodos propostos por DOORENBOS e PRUITT (1988) são os modelos que estimam, separadamente, a evaporação da água do solo

(Es) e a transpiração das plantas (Ep). Diversos modelos têm sido utilizados com êxito para estimar Es e Ep (RITCHIE, 1972; KANEMASU et al., 1976; JURY e TANNER,

1975). Nenhum desses modelos, entretanto, é específico para a estimativa da evapotranspiração regional.

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MATTOS e VILLELA (1987) citam que o conceito de balanço hídrico, amplamente usado em hidrologia, supõe ser a precipitação igual à soma do escoamento

superficial (deflúvio) com a evapotranspiração.

Um dos sérios problemas, quando se procura realizar um balanço hídrico de grandes áreas, está no fato de que os modelos utilizados para determinar a

evapotranspiração são punctuais, ou seja, cobrem apenas pequenas áreas onde são conhecidos os componentes de clima, solo e cobertura vegetal. Uma alternativa

seria a realização de vários estimativas em áreas menores, interpolando os resultados numa grade que fosse capaz de cobrir a área de estudo. No entanto, esses

dados punctuais, quando transferidos para macroescala, via de regra, superestimam os totais de evapotranspiração.

Um dos mais importantes modelos utilizados na estimativa da evapotranspiração regional é o modelo da relação complementar de evapotranspiração desenvolvido por

MORTON (1983), que está fundamentado no conceito de que existe uma relação complementar entre a evapotranspiração potencial (ETP) e a evapotranspiração real (ET)

referente a uma grande área, isto é, há uma resposta complementar entre ETP e ET, a qual é função da disponibilidade de água no solo para evapotranspiração.

Existe potencial de aplicação do modelo de relação complementar para o estudo do balanço de água, especialmente no planejamento de recursos hídricos, na

detecção de erros em registros hidrológicos e no monitoramento do efeito do uso da terra por meio das mudanças na evapotranspiração e do escoamento da bacia,

dentre outras finalidades (MORTON, 1983).

O método da relação complementar possui algumas limitações quanto ao seu uso, a saber: requer dados precisos de umidade relativa do ar, dependendo

diretamente da freqüência de observação e prática pessoal, sendo esta a mais séria limitação para sua utilização até o momento; não pode ser utilizado em pequenos

intervalos de tempo, por causa da variação no armazenamento subsuperficial de energia; não pode ser utilizado próximo a ambientes frios descontínuos, como em

altas latitudes costeiras ou nas extremidades de oásis, devido à advecção do calor e vapor d’água na subcamada da atmosfera; requer dados de estação climatológica

que sejam representativos da área de interesse; e não pode ser usado para predizer o efeito das mudanças naturais ou feitas pelo homem, porque seu uso não requer

conhecimento do solo e da vegetação.

Evapotranspiração regional

Segundo BRUTSAERT (1986), durante os períodos de seca, a evapotranspiração é evidentemente um dos principais mecanismos de perda de água disponível e,

portanto, um dos fatores geradores do próprio processo de seca. Da mesma forma, em situações de enchente, há uma forte evidência de que um dos principais fatores que

governam a severidade da enchente é a capacidade de infiltração de água no solo e a capacidade deste de armazenar água, que também é dependente do conteúdo de água

deste solo. Neste caso, o volume da precipitação é mais importante que a intensidade da precipitação. A capacidade de retenção de água no perfil de um solo depende

fundamentalmente do conteúdo de água presente no solo e da evapotranspiração antecedente na região da bacia hidrográfica. No entanto, apesar do importante papel

desempenhado pela evapotranspiração no balanço hídrico regional, não há dados disponíveis para a maioria das áreas de estudo.

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71

Prática corrente

Em estudos hidrológicos não há unanimidade em relação ao modo como a evapotranspiração da bacia de um rio pode ser medida, predita ou mesmo estimada

para propósitos operacionais. Os métodos disponíveis são para estimativa da evapotranspiração punctual, isto é, de um dado local, obtida por meio de dados

meteorológicos disponíveis.

Em tais modelos de simulação, a evaporação regional real é geralmente estimada com base nas estimativas da evaporação potencial, ETp, de uma superfície

que é assumida como úmida, acompanhada de um fator de redução obtido por meio de algum modelo de calibração. Essa situação é semelhante aos métodos

paramétricos de modelos de circulação geral Carson (1982), citado por BRUTSAERT (1986).

Segundo BRUTSAERT (1986), o procedimento típico de cálculo do fluxo de vapor d’água utiliza uma grade de escala de cerca de 102 km. Em primeiro plano, o

valor potencial (ETp) é estimado por uma equação de transferência de massa, como na equação 1.

ETp = CE Vz ρ (qs* - qs) eq.1

em que:

CE = coeficiente de transferência de vapor d’água [kJ m-2s-1];

Vz = velocidade do vento na altura z [m s-1];

ρ = massa específica do ar seco [kg m-3];

qs = umidade específica média à altura z [kg kg-1]; e

qs* = umidade específica de saturação à temperatura da superfície (Ts) [kg kg-1].

Um procedimento alternativo para estimar ETp é baseado na equação de PENMAN (1948). Para tanto, não é necessário conhecer a temperatura da superfície

(Ts), mas as informações sobre o fluxo de energia disponível na superfície Rn (que é o saldo de radiação expresso em unidades de evaporação).

A fórmula sugerida por Penman pode ser expressa pela equação 2.

( )EP R C V q qn E z s s=+

++

−∆

∆ ∆γ

γ

γρ * eq.2

em que:

∆ = declividade da curva de pressão de vapor de saturação à temperatura do ar Ta [kPa oC-1]

γ = cp / 0,623 L, constante psicrométrica [kPa oC-1];

cp = calor específico à pressão constante do ar seco [kJ kg-1 oC-1]; e

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72

L = calor latente de evaporação [MJ kg-1].

O fluxo real de vapor (ET) pode ser estimado pela redução da ETp. Uma equação típica para tanto é a equação 3.

ET = β ETp eq.3

em que β é o fator de redução que depende do conteúdo de água do solo.

Nas equações (1) e (2) com fator de redução β , o coeficiente CE é o parâmetro crítico. Em alguns modelos, CE é formulado com base em teorias de fluxo de turbilhões

para a camada limite da atmosfera. Contudo, uma vez que tais teorias têm sido validadas desde experimentos micrometeorológicos (com escalas de 100 até 102 m) até

grande escala (por exemplo: 100 a 102 km), o coeficiente CE é muitas vezes simplificado, especificamente por calibração, ou tomado como um único valor fixo. O

coeficiente β é comumente obtido por interpolação analítica entre 0 e 1, em função de um índice de coeficiente de umidade.

Um outro meio comum de transformar ETp em ET é com base no conceito de fator de resistência (r) para caracterizar o estresse hídrico da vegetação e, ou, do solo.

Nesse caso a resistência é definida de acordo com a equação 4.

r = ρ (qs* - qs) / ET eq.4

em que o qs é a umidade específica à superfície e qs* a umidade específica de saturação à superfície.

Como qs é geralmente desconhecido, ele é eliminado, fazendo como na equação 5:

ET = CE Vz ρ (qs* - qz) eq.5

e introduzido na equação 4, para obter a expressão vista na equação 6.

ET = CE Vz (1+r CE Vz)-1ρ (qs *- qz) eq.6

Esta equação pode ser utilizada na derivação semelhante à equação 2, como se vê na equação 7.

( )[ ] ( )[ ]E R C V q q r C Vn E z s z E z= + − + +−

∆ ∆γ ρ γ* 11 eq.7

que é a expressão original de Penman-Monteith.

Geralmente, a maioria dos métodos disponíveis para reduzir ETp para ET tem por base formulações idênticas. Nesse aspecto, Carson (1982), citado por

BRUTSAERT (1986), conclui que os modelos de circulação geral são complexos em sua estrutura e necessitam de soluções computacionais. Entretanto, os processos

físicos e as propriedades obtidas na superfície da terra são simples; e, segundo MORTON (1983), uma revisão crítica tem indicado que as técnicas conceituais

convencionais, usadas na estimativa da evapotranspiração de grandes áreas, são baseadas em hipóteses completamente divorciadas da realidade e que as técnicas

causais, atualmente em desenvolvimento, podem não ser válidas para a próxima geração de pesquisadores.

Fundamento teórico

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73

Segundo NIEUWENHUIS et al. (1985), a relação entre evapotranspiração e temperatura do dossel da cultura pode ser derivada a partir da equação de balanço

de energia. Na superfície da Terra, o saldo de radiação (Rn) é igual à soma do fluxo de calor latente no ar (LE), do fluxo de calor sensível no ar (H) e do fluxo de calor

no solo (G), não se considerando a parte da energia envolvida no processo metabólico, como na equação 8.

Rn = LE + H + G eq.8

em que

E = fluxo de evapotranspiração [kg m-2s-1].

Rn = consiste no saldo do termo de balanço de ondas curtas e do termo de balanço de ondas longas, como pode ser visto na equação 9.

( ) ( )R R R Tn s l c= − + −1 4α ε σ eq. 9

em que:

Rs = fluxo de radiação solar global à superfície [Wm-2];

α = coeficiente de reflexão da cultura (albedo);

ε = coeficiente de emissividade da cultura;

Rl = fluxo de radiação de ondas longas [Wm-2];

σ = constante de Stefan-Boltzmann [5,67x10-8Wm-2K-4]; e

Tc = temperatura da superfície da cultura [K].

Quando a cultura está bem suprida de água, a energia do saldo de radiação é usada principalmente como calor latente para vaporização. Quando o fluxo de

calor latente decresce, a temperatura da cultura aumenta, resultando no aumento do fluxo de calor sensível H. Considerando a superfície da cultura com temperatura

Tc (K) e a temperatura do ar Ta (K), a equação de transporte de calor sensível pode ser expressa como na equação 10.

H cT T

rp

a c

c

= −−

ρ eq.10

em que:

H = fluxo de calor sensível [W m-2];

ρ = massa específica do ar seco [kg m-3] ;

cp = calor específico do ar seco J kg-1K-1]; e

rc = resistência do dossel da planta [s m-1].

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74

Combinando as equações (8), (9) e (10), pode ser encontrada a relação entre o fluxo de calor latente LE e a temperatura da cultura Tc (SOER, 1980), como na

equação 11:

( ) ( )LE cT T

rR R T Gp

a c

cs l c= ⋅

−+ − + − −ρ α ε σ1 4 eq.11

em que σ = fluxo de calor no solo [Wm-2]

Com base na equação 11, é possível estimar a evapotranspiração para uma superfície com vegetação. A temperatura da cultura (Tc) pode ser obtida por

sensoriamento remoto, com utilização da banda termal. Assim, quando Ta , rc , α , Rs , ε , Rl e G são conhecidos, LE pode ser estimado. A resistência do dossel rc

depende da velocidade do vento (u), da rugosidade da superfície da cultura (zo) e da estabilidade atmosférica (DYER, 1976). Geralmente os valores de Ta , Rs , Rl , e u

podem ser considerados constantes sobre uma área regional, podendo-se utilizar valores médios para a área de estudo. Os parâmetros das culturas α, ε e zo são

estimados no campo ou derivados de imagens orbitais.

Estimativa da evapotranspiração regional por meio de imagens orbitais

Técnicas de sensoriamento remoto podem ser utilizadas na estimativa de condições hidrológicas e de suas influências na vegetação de bacias hidrográficas. O

uso de imagens orbitais surge como uma opção a ser explorada, dado o seu caráter multiespectral, que possibilita uma análise aprofundada de componentes

agrometeorológicos, como temperatura foliar, situação hídrica regional, etc. O problema está em como interpretar os valores das bandas de radiação associados aos

componentes agrometeorológicos.

Um estudo de condições hidrológicas usando técnicas de sensoriamento remoto foi iniciado, em 1981, na província de East Gelderland (Holanda), por NIEUWENHUIS et

al. (1985), para observar se uma combinação de técnicas de investigação de imagens multiespectrais com utilização de sensores MSS (Multispectral Satellite Scanner) e medidas

hidrológicas convencionais no campo pode levar à caracterização da situação hidrológica regional. A expectativa era de que, se essa abordagem demonstrasse ser viável, ela

poderia servir para tornar o método operacional. A possibilidade de estimativa da evapotranspiração regional foi demonstrada para a cultura de tomate e de beterraba açucareira,

usando imagens da banda termal obtidas na Holanda no final de um período muito seco do verão de 1982.

Resultados positivos na caracterização da situação hidrológica regional são extremamente promissores, dado o imenso grau de dificuldade de obtenção dos

valores e das medidas espaciais da evapotranspiração regional. Os dados obtidos através do sensoriamento remoto podem formar a base para estimativas

“espacialmente referenciadas” de evapotranspiração.

Por intermédio da combinação da equação do balanço de energia da superfície com as equações de transporte de energia pelo calor latente e sensível, as

temperaturas da cultura podem ser transformadas em valores instantâneos de evapotranspiração. Estes valores instantâneos podem ser convertidos em valores

médios de 24 horas por meio da aplicação do modelo TERGRA, desenvolvido por Soer, citado por NIEUWENHUIS et al. (1985). Este modelo foi utilizado para simular o

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75

balanço de energia na superfície de pastagem, sob condições meteorológicas definidas e para diferentes regimes de umidade. Foram obtidas as variações diárias da

temperatura da superfície da cultura, a evapotranspiração real, o balanço de radiação, o fluxo de calor no solo e a formação de neblina. O modelo se baseia na

combinação das equações de transporte de fluxo de calor e umidade no solo, na planta e na atmosfera. Por intermédio do ajuste de parâmetros dependentes da

cultura, este modelo pode ser aplicável para culturas anuais.

A interpretação de imagens térmicas com o auxílio do modelo TERGRA é complexa. Assim, procedimentos simplificados têm sido desenvolvidos e testados. Um

deles incorpora a abordagem de JACKSON et al. (1977), desenvolvida para as condições climáticas existentes em Phoenix (Arizona). Esta abordagem considera que as

diferenças de temperatura entre a superfície e o ar atmosférico ao meio-dia são linearmente relacionadas com a evapotranspiração média de 24 horas e os valores de

saldos de radiação. Esses autores expressaram o fluxo médio de evapotranspiração no período de 24 horas (LE24) em função do saldo de radiação à superfície no

período de 24 horas (Rn24) e da diferença de temperatura medida próximo do meio-dia (Tc - Ta)i, em que o expoente i representa os valores instantâneos, como na

equação 12.

( )LE R B T Tn c a

i24 24= − − eq.12

em que:

LE24 = fluxo médio de evapotranspiração em 24 horas [W m-2];

Rn24 = saldo de radiação à superfície em 24 horas [W m-2];

B = constante de calibração [W m-2K-1]; e

(Tc - Ta) = diferença entre as temperaturas do dossel das plantas e do ar próximo ao meio-dia [W m-2].

A aplicação do método de Jackson em áreas com outras condições meteorológicas é questionável. Assim, para estimar o coeficiente de inclinação

desse relacionamento, uma expressão analítica dependente da cultura foi derivada por Seguin e Itier, em 1983, citados por NIEUWENHUIS et al. (1985), de acordo

com a equação 13.

( )B R Rc

rn n

i p

ci=

24

ρ eq.13

em que:

Rni = valor instantâneo para Rn ao redor do meio-dia [W m-2K-1]; e

ric = resistência difusiva instantânea do dossel da planta [s m-1].

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Encontrando um valor médio ao redor do meio-dia para ρcp / ric em dias sem nuvens, pode-se determinar o fator B. Como ric é fortemente dependente da

velocidade do vento e da estabilidade atmosférica, não se deve aplicar o método de JACKSON et al. (1977) em dias em que as condições meteorológicas estejam

instáveis, com ventos variáveis e cobertura intermitente de nuvens. Entretanto, para imagens obtidas em dias claros, SEGUIN e ITIER (1983) demonstraram que o

método de JACKSON et al. (1977) pode ser aplicado.

CONCLUSÃO

A avaliação quantitativa da evapotranspiração é de grande importância no estudo da economia de água em reservatórios expostos, na secagem natural de

produtos agrícolas e nos vários campos técnico-científicos que tratam de numerosos problemas do manejo de água e no conhecimento da evapotranspiração em

escala de bacia, que é indispensável nas estimativas de seca e previsões de cheias, pois a capacidade de armazenamento de água proveniente de uma precipitação,

no perfil do solo, depende de sua umidade antecedente e, portanto, da evapotranspiração da bacia.

A abordagem da evapotranspiração, via sensoriamento remoto, pode representar mais um passo na estimativa de exigências hídricas das culturas,

especialmente de grandes áreas, uma vez que os métodos tradicionais utilizam dados climatológicos no espaço punctual, isto é, consideram-se os componentes do

clima observados em estações climatológicas distribuídas aleatoriamente e representativos apenas de pontos no espaço geográfico. A operacionalidade do método em

áreas estritamente de clima tropical deve ser testada e avaliada, para recomendação final.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº123 - NOVEMBRO - PORTO VELHO, 2003

VOLUME VIII

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

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ISSN 1517-5421 lathé biosa 123

A MEMÓRIA CONSTRUÍDA: COMUNIDADE DE DESTINO, COLÔNIA E REDE

FABÍOLA LINS CALDAS

PRIMEIRA VERSÃO

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Fabíola Lins Caldas A MEMÓRIA CONSTRUÍDA: Comunidade de Destino, Colônia e Rede Professora do Curso de História - UFRO [email protected]

A principal questão posta por Pollak (1989) em seu texto “Memória, Esquecimento, Silêncio” é a de que a História Oral, utilizando-se do Conceito de “Memória

Coletiva” (Halbwachs, 1990), sendo a “memória nacional” a forma mais completa de uma memória coletiva, põe em evidência os aspectos destruidores, uniformizantes

e opressores dessa memória. A perspectiva de Halbwachs é a de que, na formação dessa memória comum, não há aspectos coercitivos, mas que sua formação se dá

mais por afinidades afetivas, por trajetórias comuns. Esses aspectos são apresentados pela História Oral na medida em que privilegiam grupos sociais minoritários,

excluídos, marginalizados, e se utiliza das suas narrativas para propor “outra história”, outra visão de determinada realidade em contraposição à visão “majoritária” e

institucionalizada, assumida como aquela que devemos reconhecer como “versão oficial”.

A Idéia de “Comunidade Afetiva” (Halbwachs, 1990), constituindo uma memória coletiva, nos remete a outros conceitos exercitados por Ecléia Bosi

(Comunidade de Destino: 1995) e por Meihy (Colônia, Rede e Colaborador: 1996), nos fazendo pensar no tipo de memória que se constitui a partir da utilização

prático teórica desses conceitos.

Para Ecléia Bosi é necessário que o pesquisador sofra de maneira irreversível o destino dos sujeitos observados, criando “um vínculo de amizade e confiança com os

recordadores” (1995: 37). A partir de uma postura de entrega, expressa prática e teoricamente pelos sujeitos envolvidos (pesquisador e recordadores), formam uma

“comunidade de destino”, criando as condições para que “se alcance a compreensão plena de uma dada condição humana” (1995: 38). Para Meihy a Colônia é definida “pelos

padrões gerais de sua comunidade de destino”, que é “aquilo que identifica as pessoas, os motivos, as trajetórias que as reúnem em características afins” (1996: 53); a Rede

é “uma subdivisão da colônia e que visa estabelecer parâmetros para decidir sobre quem deve ser entrevistado ou não...” (1996: 53), ou seja, define “colaborador” como uma

pessoa que aceitará ser entrevistada e que ocupará papel preponderante na pesquisa, sem os quais a mesma não seria viabilizada.

Poderíamos dizer, de maneira geral, que a memória constituída por grupos formados a partir desses conceitos e procedimentos operacionais específicos seja

uma memória “não-oficial”. Não somente porque se preocupa com os excluídos mas, principalmente, por se interessar por questões desprezadas pelo conhecimento

formal como, por exemplo, os sonhos, os esquecimentos, os silêncios, as mentiras, as múltiplas versões, as hipérboles da lembrança, os segredos. Esses temas e

assuntos se opõem aos interesses historiográficos que geram uma “memória oficial” tutelada pelos historiadores.

Para Pollak (1989) a memória é constituída através de uma: “operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar,

se integrar [...] em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos

diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias, nações etc”

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A função da Comunidade de destino, da Colônia e da Rede, no sentido apresentado por Meihy, é de construir um grupo que se une por uma trajetória comum,

se constituindo a partir das narrativas, auxiliadas por uma “pergunta de corte” que assegura certa uniformidade e “define e reforça sentimentos de pertencimento e

fronteiras sociais”.

Se as duas funções da memória comum, segundo Pollak (1989), é a de manter a coesão interna e de defender as fronteiras que um grupo tem em comum, a

memória constituída pela História Oral deveria estar preocupada não em reforçar esses vínculos comuns, essas fronteiras sociais, mas permitir que as contradições e

subjetividades das pessoas, que virtualmente compõem uma comunidade de destino, razão inicial do projeto de pesquisa, possam aflorar. Dessa maneira

verificaríamos os confrontos da “memória individual” e da “memória coletiva” na medida em que a constituição da memória está, segundo Halbwachs (1990: 25),

relacionada com o convívio entre pessoas que vivenciaram algo em comum e com o presente que irá estimular a lembrança.

Para isso é necessário pensar num trabalho da memória semelhante à criação de texto ficcional, como “processo narrativo, texto em movimento” como propõe

Caldas (1999: 61), ou seja, a memória não aparece pronta, ela é tecida, especificamente no caso da História Oral, pelo convívio e a troca de vivências, entre oralista e

colaborador, durante o processo de entrevista e da construção dos textos/histórias de vida.

Daí a importância em utilizar os conceitos/procedimentos de Colônia, Rede e Comunidade de Destino apenas como motivação para iniciar a pesquisa e não

como delimitadores de fronteiras sociais, num a priori que poderá condicionar o conjunto da “memória”, da “pesquisa”. Colocar um tema ou um problema como

estimuladores da lembrança e da fala é, precisamente, não dar chance ao outro de se dizer livremente, pondo, inicialmente, um eixo temporal que permanecerá por

toda a extensão do texto final. Não se trata aqui da exaltação do “mito da não-interferência” (Portelli, 2001), mas de possibilitar ao colaborador espaço de escolha, por

onde deseja começar, o que deseja lembrar, do que deseja falar, em qual ordem organiza seu discurso, quais significados encadeia. Somente assim teremos

oportunidade de perceber o quanto da memória individual constitui a memória coletiva e o quanto foi constituída por ela, como os discursos se entrelaçam (oficiais,

historiográficos, grupais, institucionais, singulares).

Isso é possível através de uma postura menos impositiva de encontrar nas pessoas entrevistadas uma trajetória comum a qualquer custo, realizando, de certa forma,

o mesmo “enquadramento da memória” (Pollak, 1989), seja na elaboração dos textos/Histórias de Vida, seja na interpretação dos mesmos. Essa “trajetória comum” deve ser

um estímulo de projeto, não uma condicionante das entrevistas: nossa meta é o outro, não o outro através do meu desejo, das minhas imposições acadêmicas, do meu

método. Buscamos o outro como ser integral: o nosso tema, o nosso projeto, a nossa curiosidade será, necessariamente, satisfeita, mas integrada no discurso do outro,

ganhando, assim, significados inesperados, dimensões que perguntas e respostas, ou direcionamentos não percebidos, deixam passar.

Numa pesquisa realizada na comunidade Santa Marcelina em Porto Velho-RO, a força motivadora do projeto era a imagem de uma “comunidade de

hansenianos”. No entanto a abordagem de maneira alguma fez referência a Comunidade de Destino estabelecida no projeto, construímos Histórias de Vidas e o fato é

que em muitas narrativas aquilo que para nós inicialmente determinava àquelas pessoas e que nos fez chegar até elas, não era sequer mencionado no momento da

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narrativa livre (o conceito de “Cápsula Narrativa” de Caldas, 1999: 101/102). O relato sobre a doença só veio à tona por estímulos de perguntas, partindo-se de

passagens obscuras do primeiro momento (Cápsula Narrativa), que chamamos de aprofundamento temático.

Com essa experiência podemos perceber “as fronteiras entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, o que foi vivenciado e a imagem escolhida

para ser transmitida” (Pollak: 1989). Porque não é só a memória oficial, produzida pela História, que é escolhida e selecionada, a diferença é que a História Oral

assume as suas escolhas, os selecionamentos, os apagamentos, e a História enquanto Ciência acredita na imagem construída por ela, como se, realmente, o vivido

tivesse se passado daquela maneira. Desta forma a História fecha o texto, trava-o e o transforma em documento, solidificando também a memória, propondo uma

memória comum, além dos sujeitos envolvidos.

Se acreditamos que a memória existe apenas enquanto texto, precisamos ter cuidado e sensibilidade na constituição das narrativas, pois são a nossa matéria,

e mais delicadeza ainda quando vamos interpretá-las, para não cairmos na tentação de um direcionamento às avessas, com a desculpa de que estamos colaborando

com o afloramento das memórias subterrâneas, através da fala dos excluídos.

BIBLIOGRAFIA

BOSI, Ecléa. MEMÓRIA E SOCIEDADE: LEMBRANÇAS DE VELHOS. Companhia das Letras, São Paulo, 1995. BURGOS, Elizabeth. ME LLAMO RIGOBERTA MENCHÚ Y ASÍ ME NACIÓ LA CONCIENCIA. Siglo Veintiuno, México, 1987. CALDAS, Alberto Lins. ORALIDADE, TEXTO E HISTÓRIA: PARA LER A HISTÓRIA ORAL. Loyola, São Paulo, 1999. HALBWACHS, Maurice. A MEMÓRIA COLETIVA. Vértice, São Paulo, 1990. MEIHY, José Carlos Sebe Bom. A COLÔNIA BRASILIANISTA: HISTÓRIA ORAL DE VIDA ACADÊMICA. Nova Stella, São Paulo, 1990. ________. CANTO DE MORTE KAIOWÁ: HISTÓRIA ORAL DE VIDA. Loyola, São Paulo, 1991. ________. HISTÓRIA E MEMÓRIA OU SIMPLESMENTE HISTÓRIA ORAL? Anais do Encontro de História e Documentação Oral: 5-11, UnB, Brasília, 1993. ________. MANUAL DE HISTÓRIA ORAL. Loyola, São Paulo, 1996a. ________. HISTÓRIA ORAL: UM LOCUS DISCIPLINAR FEDERATIVO. (RE)INTRODUZINDO HISTÓRIA ORAL NO BRASIL: 48-55, Xamã, São Paulo, 1996b. ________ (org.). (RE)INTRODUZINDO HISTÓRIA ORAL NO BRASIL. Xamã, São Paulo, 1996c. POLLAK; Michael. MEMÓRIA, ESQUECIMENTO, SILÊNCIO in Estudos Históricos. CPDOC/Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, vol.2, n.3,1989, p.3-15. PORTELLI, Alessandro. SONHOS UCRÔNICOS. Revista PROJETO HISTÓRIA: 41-58, No 10, São Paulo, 1993. ________ HISTÓRIA ORAL COMO GÊNERO. Revista PROJETO HISTÓRIA: 09-36, Nº 22, São Paulo, 2001. VIEZZER, Moema. “SE ME DEIXAM FALAR ...”: DOMITILA: DEPOIMENTO DE UMA MINEIRA BOLIVIANA. Global, São Paulo, 1984.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº124 - NOVEMBRO - PORTO VELHO, 2003

VOLUME VIII

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

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EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 124

JUIZES EM RONDÔNIA

NILZA MENEZES

PRIMEIRA VERSÃO

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Nilza Menezes JUÍZES EM RONDÔNIA Centro de Documentação Histórica do TJ/RO [email protected]

O presente artigo apresenta o perfil dos magistrados do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia. A análise apresentada fez uso de informações contidas em fichas

de cadastro do Conselho da Magistratura e pesquisa em fontes documentais do Centro de Documentação Histórica da instituição.

Há uma ligeira confusão quando falamos do judiciário de Rondônia. Para a grande maioria ele surgiu em 1982 quando da criação do Estado. Não há dúvida de

que, se tomarmos por base a estrutura hoje existente, ela realmente está firmada naquele momento e aí contaríamos com um judiciário jovem, um moço de 20 anos

de idade, caminhando para a maioridade. No entanto, não se pode deixar de considerar os anos que antecederam a esse momento, mesmo porque ele não foi

demarcado por um nascimento mitológico. A evolução dos acontecimentos fez com que naquele momento ocorresse uma mudança na estrutura, porém profissionais

do período anterior foram aproveitados na nova conjuntura.

Já que estamos partindo de fatos, fazendo uso de datas, quando a instituição comemora os vinte anos de instalação do Poder Judiciário do Estado de Rondônia,

passamos a uma reflexão que toma por ponto de partida outro momento, o da instalação das Comarcas de Santo Antonio do Rio Madeira (1912), Porto Velho (1914) e Guajará-

Mirim (1929). Lembramos ainda eventos como a criação do Território Federal do Guaporé (1947) e Território Federal de Rondônia (1956) tramas que constituíram o tecido que se

apresenta no momento e que culminou com a criação do Estado de Rondônia (1982).

Muitos desses elos foram sendo esquecidos em razão das transformações políticas pelas quais a região passou durante todo o século XX. Contudo nesse

trabalho buscou-se restabelecer os elos, com a finalidade de criar uma identidade para a instituição.

Se o trabalho visa criar uma identidade para a magistratura rondoniense, vamos então pensar um pouco sobre ela, buscando refletir sobre as fases pelas quais

as atividades judiciais foram sendo aplicadas para não escrevermos a história de três judiciários ou para não incorrermos no erro de afirmar que a justiça de Rondônia

é aquela criada a partir da criação do Estado e do seu Tribunal. Isso seria dar cada período por morto, com cada um buscando criar a sua história pessoal como se

estivesse inventado o mundo, nascendo novo. Como disse Carlos Drummond de Andrade, “não é fácil nascer novo”, e por isso preferimos observar que os fatos se

deram em razão de uma sucessão de acontecimentos.

Essa tentativa de apagar o passado pode ser observada na história do lugar. Ao longo da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, as localidades mudaram de nome quando da

criação do Território, deixando de homenagear os políticos do Estado do Mato Grosso, como é o caso de Generoso Marques e Presidente Marques, que tiveram seus nomes

trocados como forma de apagar esse período da história. Algumas localidades deixaram de existir, transformando-se em passado morto, em cidades fantasmas, mas esses

fantasmas interagem com o mundo atual e ajudam a construir a historicidade pretendida.

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A historiografia oficial é escrita sempre a partir do evento da construção da Ferrovia Madeira-Mamoré, portanto o ponto de partida para a história regional, o

fato fundador, é a estrada de ferro. A história vem dividida em três partes, com três heróis, Marechal Cândido Rondon, Aluisio Ferreira e Jorge Teixeira de Oliveira que

estão encravados nesses três pontos de transformações. O momento de criação da Estrada de Ferro, do Território e do Estado são os momentos de deslocamento de

foco e não podem ser entendidos como momentos de ruptura, e sim de mudanças políticas.

Apesar das dúvidas e observações, vamos escrever a partir desse mito fundador oficial, que é a construção da ferrovia e suas conseqüências.

A instalação da Comarca de Santo Antonio do Rio Madeira em agosto de 1912, pertencente ao Estado do Mato Grosso, está ligada às necessidades em razão

da movimentação causada pelo evento. Havia necessidade de que o Estado oferecesse todos os seus meios de controle e atendimento (Foucault, 2001). Com a

afluência de massa de trabalhadores, a movimentação em torno das localidades, a ocorrência e de crimes, a necessidade das pessoas com relação ao atendimento do

Estado foi atendida.

Assim, deu-se início ao que vamos chamar primeira fase, período que vai de 1912 a 1929. Essa primeira fase teve três nomes que fortemente marcaram a

presença da justiça: João Chacon, José Júlio de Freitas Coutinho e Pedro Alcântara. Esses três magistrados exerceram de forma plena as suas funções deixando

registros importantes das suas atividades nos documentos do período.

Quando da instalação do judiciário no lugar, conforme ata, em 8 de agosto de 1912, o primeiro juiz nomeado pelo Estado do Mato Grosso foi o Dr. João

Chacon. Sobre ele temos poucas informações, porém seu nome de família, Chacon, remete-nos à lista das famílias hebraicas relacionadas por Samuel Benchimol em

“Amazônia: Formação Social e Cultural” (Benchimol, 1999). O Dr. João Chacon, conforme consta da documentação, foi o primeiro juiz da Comarca de Santo Antonio

do Rio Madeira, tendo exercido o cargo por dois anos. Em alguns momentos assumiram como juízes suplentes o Major Joaquim José Siqueira e também os senhores

Moises Bensabath, Manoel Marcelino Cavalcante, Salustiano Alves Correia, Antonio Joaquim de Andrade e Luzitâneo Correia Barreto.

A presença dos juízes de paz, suplentes e outros cargos é bastante perceptível, sendo estes ocupados por pessoas de influência social e econômica, percebendo-se

ainda que o nome do cartorário, do escrivão e do juiz suplente nos remete a mesma origem do povo judeu e seus descendentes:Paiva, Bayma e Bensabath.

José Júlio de Freitas Coutinho, o segundo juiz de carreira da Comarca de Santo Antonio do Rio Madeira, exerceu o cargo de 1915 a 1927, por 12 anos com

intervalos em que foi substituído pelos suplentes Major João Lino do Souto, Delfim Paes de Figueiredo, Emygdio Martins de Sá, Rui Araújo e Irineu Rodrigues de

Carvalho. José Júlio de Freitas Coutinho era formado pela Universidade do Recife.

Na época, era natural a formação de profissionais da área do Direito na Universidade Pernambucana, uma vez que foi uma das mais antigas escolas de direito

do Brasil. O Mosteiro de São Bento em Olinda, construção iniciada no século XVI, abrigou por 24 anos a primeira Escola de Direito do Brasil de onde saía grande parte

dos profissionais da área. Os cursos de direito no Brasil foram criados em 11 de agosto de 1827. Pela mesma lei, foram criados os cursos de Direito do Largo São

Francisco em São Paulo e o de Olinda.

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O terceiro magistrado de carreira, que encerra essa primeira fase da justiça, foi o Dr. Pedro Alcântara Baptista de Oliveira. Exerceu a magistratura na Comarca de

Guajará-Mirim de 1933 a 1943. Durante esse período, assinaram como suplentes nas férias e licenças de Pedro Alcântara os senhores Rui de Araújo, Carlos C. da Costa,

Paschoal P. de Moraes, Major Francisco D’Artagnam, Antonio Lima, Thales de Paulo Souza, Manoel Boucinhas de Menezes e Carlos Garcia de Queiroz.

Pedro Alcântara possuía uma personalidade crítica e elevado senso de justiça, deixando transparecer uma vasta cultura, sendo suas sentenças e despachos

valiosos documentos para análise não só do judiciário como da história do período. Tinha por hábito registrar em atas de audiência acontecimentos políticos,

falecimentos de colegas, elogios e críticas a funcionários e fatos.

Em atas de audiência do momento de criação do Território Federal do Guaporé, Pedro Alcântara registra o fato histórico tecendo comentários sobre a política local e

nacional. Sem analisarmos aqui, as suas opiniões sobre o assunto, vale observar a importância dos seus registros para a produção historiográfica.

Para ele, o momento de transição, registrado em ata de audiência, era um acontecimento grandioso. As figuras de Aluisio Ferreira e de Getúlio Vargas são

exaltadas e a criação do Território Federal de Rondônia, conforme anota o magistrado, vista como a libertação do povo que ficava livre politicamente de Mato Grosso,

que ele considerava um grande empecilho para o desenvolvimento regional. No entanto, vamos perceber que, a partir desse fato histórico, a região vai mergulhar em

um profundo poço no período demarcado pelas décadas de 40, 50 e 60, com o poder judiciário apagado. Essas observações são feitas pela aparência documental com

ações de pouca importância social, econômica ou política, a todo tempo nomeando promotor de justiça, advogados e servidores “ad hoc”.

Muito embora a documentação possa ter sofrido ataques externos quanto à sua quantidade, não podemos deixar de observar sua qualidade. Nesse período,

percebemos uma pobreza que vai da pouca produção de documentos à aparência debilitada do conteúdo. Não estamos avaliando o trabalho dos magistrados do período

quanto à capacidade jurídica destes no entanto ao pesquisador cabe observar tudo de uma coleção de documentos, de acordo com a sua quantidade, a conservação, o

cheiro; diríamos que os documentos possuem adereços e fantasias. Nesse ponto, os documentos das décadas de 30, 40 e 50 referentes ao judiciário desfilam silenciosos,

taciturnos. Há de se observar que nesse momento ocorreu uma transferência e poder. Ele passa a ser exercido pelo representante político do Estado.

Parece que a população não precisou mais do judiciário, não mais cometeu crimes, ou teria então a região se despovoado, ficando o atendimento jurisdicional

relegado a ações de execução fiscal, pedidos de retificação de nome, registros de nascimento, e, ainda observando a pobreza documental, os documentos apresentam

características de pouca importância, poucos dados, poucas informações, parecendo pouca a necessidade de atendimento jurisdicional da população. Pelo conteúdo

das sentenças, pelas abordagens e discussões, podemos falar em retrocesso na evolução do pensamento jurídico. Desaparecem os promotores de justiça, advogados

e os “ad-hoc“ são pessoas da sociedade local.

Depois de Pedro Alcântara ainda vamos ter na Comarca de Guajará-Mirim os juízes Paulino Amorim de Brito e José de Melo e Silva que encerram esse ciclo em

1959, quando a Comarca ficou sem juiz até 1967, época em que assumiu o Dr. Francisco César Soares de Montenegro.

Sobre o final desse período, o Desembargador Hélio Fonseca em entrevista comentou:

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A população daqui nesse período era toda pobre, não havia a inveja. Os grandes seringalistas, coitados, eram tão escravos da terra quanto os seringueiros, porque

viviam “pendurados” no Banco da Amazônia, lutando para receber financiamentos, e tinham que pagar juros, tomando prejuízos nos seringais que se quisessem

vender, não conseguiam. É aquilo que Euclides da Cunha dizia: “o seringalista é um escravo da gleba”, igual aos tempos medievais, eles tinham aquele seringal,

aquele império aparentemente gigantesco, mas não tinham base econômica e não conseguiam vender porque era inconversível em moeda. Os seringueiros tinham

consciência dessas dificuldades, sabiam que o padrão de vida dos seringalistas também era baixo, não possuíam riqueza, só tinham dinheiro quando recebiam o

financiamento, depois passavam o resto do ano afogados em dívidas, esperando uma boa colheita de seringa que nunca correspondia às expectativas (Fonseca,

1999).

Os primeiros anos do século XX, quando a justiça se instalava em Santo Antonio do Rio Madeira, pelas discussões jurídicas apresentadas nas ações, pela

aparência dos documentos, mostram uma justiça aparelhada com profissionais competentes, preparados, não havendo uma evolução nas décadas seguintes, mas,

sim, um desaparecimento dessa estrutura quando o atendimento passa a ser da Justiça Federal, ficando a cargo de um juiz apenas fazer o movimento de toda

prestação jurisdicional, conforme observou o Desembargador César Montenegro:

A vida do juiz, naquele tempo, era dificílima. Praticamente a justiça era feita no núcleo dos municípios, porque não tinha condição do juiz judicar em

relação à Vilhena, distante mais de 700 quilômetros. Os juízes não iam para estas localidades, mas os processos vinham. O governador do Estado, na

época, tinha uma função na justiça, ele trazia os processos. Lá em Guajará-Mirim, traziam do interior para a sede da comarca, mas não havia

possibilidade de trazer as testemunhas (Montenegro, 1999).

Com relação à observação que fizemos quanto à quantidade ou até qualidade das ações, o Desembargador César Montenegro traz uma informação

importante. Antes vale observar que quando nos referimos à qualidade, não estamos nos referindo aos critérios sobre o conteúdo ou a capacidade jurídica dos

magistrados, e sim aparência dos documentos quanto a sua forma. Desde a caligrafia dos servidores, a rapidez no andamento dos feitos, a gramática, a quantidade de

informação carreada aos autos e, principalmente, o alcance jurisdicional que demonstra a estrutura judiciária fragilizada. Sobre isso o Desembargador César

Montenegro afirma: “Praticamente a justiça era feita no núcleo dos municípios, na cidade. A justiça não alcançava seus objetivos, só se formavam processos com

relação aos conflitos da sede do município” (Montenegro, 1999).

Nessa segunda fase, ocorre uma mudança no perfil dos profissionais da justiça, sejam advogados, promotores de justiça ou magistrados. As atividades

apresentam-se mais sisudas e poderíamos chamar isso de distanciamento dos problemas da população.

Como a capital federal era sediada no Rio de Janeiro, também começam a surgir profissionais formados pelas universidades carioca e paulista. Depois, a partir

da década de 60, a justiça desloca-se para Brasília, que passa a ser o centro do Poder, e profissionais de outras regiões fazem parte do quadro, notadamente da

região Nordeste, sendo que, no momento da criação do Estado de Rondônia, no ano de 1982, traços da população podem ser observados no perfil dos magistrados

que assumiram.

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Alguns dos juízes que estavam exercendo a função nos últimos anos do período do território, como Clemenceau Pedrosa Maia, Paulo Carneiro, Benedito

Barbosa e César Montenegro, vão compor o que chamamos de a terceira fase da justiça que ocorreu quando da criação do Poder Judiciário do Estado de Rondônia.

Nessa terceira fase, a justiça é composta por sete Desembargadores: conforme dissemos, alguns eram juízes ou promotores federais e é interessante observar

que dentre eles a maioria é nordestina, o que era também uma característica da população do lugar.

Quando tomaram posse os sete primeiros desembargadores do recém-criado Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia, quatro eram oriundos de Estados do

Nordeste, com formação nas Universidades do Recife, Rio Grande do Norte e Rio de Janeiro. Um era paraense formado pela Universidade do Pará, um paulista formado em

Brasília, dois mineiros com formação em Goiás e Brasília e um oriundo de Santa Catarina formado pela Universidade.

Dos juízes que hoje se encontram aposentados, a maior parte retornou aos seus Estados de origem após a aposentadoria. Eram, na grande maioria, oriundos de

outras regiões brasileiras. Somente a partir do quinto concurso começam a figurar entre os aprovados bacharéis formados pela Universidade do Estado de Rondônia,

havendo também a partir do quinto concurso mudança quanto a um costume que, embora não fosse prescrito, fazia parte da imagem da justiça, que era a idade dos

membros. O magistrado idealizado tinha a experiência explícita na idade, nos cabelos brancos, aos moldes dos tribunais europeus. Isso vai sendo colocado em desuso,

acabando por se observar em concursos recentes uma mudança radical, constatando-se que a maioria dos aprovados não possui mais de 30 anos.

Anteriormente, os que logravam aprovação tinham acima de 30 anos, eram casados, com uma noção tradicional de família e de comportamento e muito

embora não houvesse nenhuma previsão sobre essas características, é um costume que, sem nenhuma lei definidora, vai-se modificando.

Duas mudanças começam a ocorrer, então, após o quinto Concurso: começam a ser percebidos juízes mais jovens e formados pela Universidade Federal do

Estado de Rondônia que teve o curso de Direito criado no ano de 1985 e que já no ano de 1991 começou a oferecer profissionais para a magistratura de Rondônia,

assim como para cargos em outras instituições.

Ao observarmos por ordem de concurso, percebemos a mudança no perfil dos magistrados de Rondônia. A composição da primeira corte do TJ era na maioria

de origem nordestina. Essa característica também é observada nos primeiros magistrados a virem para a região quando ainda era a Justiça do Estado Mato Grosso em

Santo Antonio do Rio Madeira, o que pode ter ocorrido tanto em razão da tradicional Escola de Direito do Recife como também pela grande afluência de nordestinos

para a região. Após o segundo concurso, percebe-se uma maioria do sul e sudeste, assim como o fluxo migratório também nesse momento está mais direcionado à

região sul do país. Nos últimos concursos, já encontramos grande parte de profissionais oriundos dos cursos de Direito das Faculdades do Estado, assim como os

novos magistrados, mais jovens e já nascidos no Estado.

Após a formação da Corte dos sete primeiros desembargadores que assumiram em 1982, foi realizado o primeiro concurso para magistrados para o estado de

Rondônia.

Os nomes escolhidos para compor a primeira corte foram Fouad Darwich Zacarias, Francisco César Soares de Montenegro, Clemenceau Pedrosa Maia, Darci

Ribeiro, Aldo Alberto Castanheira e Silva, Hélio Fonseca e Dimas Ribeiro da Fonseca. Desses sete nomes escolhidos, para comporem a primeira turma de

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Desembargadores pelo então governador do Estado, Jorge Teixeira de Oliveira. César e Clemenceau eram juízes federais, Dimas, Hélio e Aldo eram promotores

públicos federais e Fouad era advogado militante na Comarca de Porto Velho. Todos tinham conhecimento da região e dos seus problemas judiciais.

O Primeiro Concurso para Juiz realizado em 1982 contou com trinta e seis aprovados, sendo que quatro não tomaram posse. Dos trinta e dois magistrados a

tomarem posse, apenas um era mulher. Sendo a maioria profissionais com a presunção de experiência e vida familiar organizada, possuindo idade superior a 30 anos.

Apenas três possuíam idade inferior a 30 anos. Todos originários de outros Estados brasileiros, com formação nas universidades de Minas Gerais, Paraná, São Paulo,

Rio de Janeiro, Goiás, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Brasília. A lista dos nomes dos aprovados que se segue apresenta a condição em que se encontram

atualmente: Adilson Florêncio de Alencar (Desembargador aposentado), Antônio Cândido de Oliveira (Desembargador aposentado), Hércules José do Vale

(Desembargador aposentado), João Baptista Vendramini Fleury (Desembargador aposentado), João Batista dos Santos (Desembargador aposentado), Lourival Mendes

de Souza (Desembargador-falecido), Romeu Gonzaga Neiva (exonerado), Renato Martins Mimessi (Desembargador), Fernando Lopes Soares (Juiz aposentado),

Edmundo Santiago Chagas (Juiz aposentado), Suleiman Miguel Neto (exonerado), Anísio Garcia Martins (falecido), Gabriel Marques de Carvalho (Desembargador),

Valter de Oliveira (Desembargador), Cássio Rodolfo Sbarzi Guedes (Desembargador), Sebastião Teixeira Chaves (Desembargador) Paulo Carneiro (Juiz - falecido),

Salatiel Soares de Souza (Juiz aposentado), Jorge Gurgel do Amaral Neto (Juiz falecido), José Pedro do Couto (Desembargador), Roosevelt Queiroz Costa

(Desembargador), Marco Antônio de Faria (Juiz aposentado), Paulo Roberto Pereira (Juiz aposentado), José Marcelino de Paula (Juiz aposentado), João Carlos de

Castilho (Juiz aposentado), Roberto Braz Iannini (exonerado), José Antônio Scarpati (Juiz aposentado), Djalma da Silva Rocha (exonerado), Carlos Roberto Da Silva

(Juiz aposentado), Ivanira Feitosa Borges (Desembargadora), Ney Batista Coutinho ** Newton Carlos Moratto **, Lúcio Teixeira Balbi **) Gilberto Pereira de Oliveira

(Juiz Aposentado) e Adelith Lopes Coelho **

** Não empossados

No segundo concurso, realizado em 1984, foram aprovados oito novos magistrados. Ainda apresentando as mesmas características do primeiro concurso de

experiência e migrados de diversas regiões brasileiras: João Luiz de Souza (exonerado), Sérgio Alberto Nogueira de Lima (Desembargador), Sansão Batista Saldanha

(Juiz), Antônio Júlio Ribeiro (Juiz aposentado), Irineu de Oliveira Filho (exonerado), Nair Minhone (Juíza aposentada), Walter Waltenberg Silva Junior (Juiz) e Sebastião

de Souza Moura (Juiz falecido).

Quando da realização do terceiro concurso em 1995 tomaram posse mais treze magistrados. A característica continuou a mesma, a de magistrados com

idade superiores a 30 anos e migrados de varias regiões do País: Wanderley de Andrade Monteiro (exonerado), José Morello Scariott (Juiz aposentado), João Batista

Teixeira (exonerado), Élio Figueiredo (Juiz aposentado), Omar Simão Chueiri (Juiz aposentado), Ariel Rey Ortiz Olstan (Juiz aposentado), José Carlos dos Santos (Juiz

aposentado), Péricles Moreira Chagas (Juiz), José Anastácio Ferreira (Juiz aposentado), José Odemar Andrade Góis (Juiz aposentado), Edelçon Inocêncio (Juiz

aposentado), Paulo Kiyochi Mori (Juiz) e Rita Paulo Barini (Juíza aposentada).

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O quarto concurso foi realizado em 1987 e contou com a aprovação de catorze novos juízes. Mantendo-se a característica dos aprovados nos concursos

anteriores: Walter Muniz de Souza (Juiz aposentado), Francisco Prestello de Vasconcelos (Juiz), César Rubens de Souza Lima (Juiz), Raduan Miguel Filho (Juiz),

Antônio Feliciano Poli (Juiz), Marialva Daldegan Bueno (Juíza), João Albuquerque Nunes Neto (Juiz aposentado), Mozart Hamilton Bueno (Juiz aposentado), Oudivanil

de Marins (Juiz), Rubens Vasconcelos Martins (Juiz aposentado), Virgínia Maria de A.L.G.V. Freitas (Juíza aposentada), Nelson Henri da Silva (Juiz), Roberto Jorge Aur

(Juiz aposentado) e Daniel Ribeiro Lagos (Juiz).

O quinto concurso realizado em 1989 aprovou dez novos juízes A partir desse concurso, percebe-se se maneira mais marcante a mudança no perfil dos

juízes aprovados quanto à questão da idade, permanecendo ainda quanto à característica migratória: Marcos Alaor Diniz Grangeia (Juiz), Wilson Zauhy Filho

(exonerado), Ricardo Turesso (exonerado), José Jorge Ribeiro da Luz (Juiz), Josimar de Miranda Andrade (exonerado), Alexandre Miguel (Juiz), João Tadeu Severo de

A. Neto (Juiz aposentado), Sandra Maria Nascimento de Souza (Juíza), José Torres Ferreira (Juiz) e Osny Claro de Oliveira Junior (Juiz).

Quando da realização do sexto concurso em 1990, foram aprovados oito magistrados. Essa turma traz uma novidade: dois dos aprovados formaram-se pela

Universidade Federal de Rondônia: Jorge Luiz dos Santos Leal e Aldemir de Oliveira, primeira e segunda turmas de Direito da UNIR, respectivamente. A primeira turma

de Direito da Universidade Federal de Rondônia teve início em agosto de 1985, formando-se em dezembro de 1989 e colado grau em fevereiro de 1990: Jorge Luiz

dos Santos Leal (Juiz), Sandra Martins Lopes Fascina (Juíza), Juarez Mercante (exonerado), Valdeci Castellar Citon (Juiz), Edilson Neuhaus (Juiz), Glodner Luiz Pauletto

(Juiz), Maurício Pinto Ferreira (exonerado) e Aldemir de Oliveira (Juiz).

No sétimo concurso, que foi realizado em 1992, ingressaram mais nove magistrados: Fausto Bawden de C. Silva (exonerado), Glauco Antônio Alves (Juiz),

Leo Antônio Fachin (Juiz), MARIA Abadia de C. Mariano Lima (Juíza), José Antônio Robles (Juiz), Álvaro Kalix Ferro (Juiz), Belchior Soares da Silva (exonerado),

Francisco Borges Ferreira Neto (Juiz) e Jorge Luiz de M. Gurgel do Amaral (Juiz).

O oitavo concurso foi realizado em 1993 e contou com quatro aprovados: Wilmar Jacob (exonerado), Luiz Wanderley Gazoto (exonerado), Adolfo Theodoro

Neujorks Neto (Juiz) e João Luis Rolim Sampaio (Juiz).

O nono concurso foi realizado em 1993 e contou com catorze aprovados: Tânia Mara Guirro (Juíza), Mário José Milani e Silva (Juiz), Gilberto José Giannassi

(Juiz), Valdecir Ramos de Souza (Juiz), Luiz Antônio Peixoto de Paula Luna (Juiz), Rosemeire Conceição de Souza (Juiz), Edson Yukishigue Sassamoto (Juiz), José

Arimatéia Neves Costa (exonerado), Roberto Gil de Oliveira (Juiz), Edewaldo Fantini Junior (Juiz), Silvio Viana, Ênio Salvador Vaz (Juiz), Marcos Alberto Oldakowski

(Juiz), Ilisir Bueno Rodrigues (Juiz) e João Adalberto Castro Alves (Juiz).

No décimo concurso realizado em 1995 foram aprovados seis novos juízes: Edenir Sebastião da Rosa (Juiz), Úrsula Gonçalves T. de Faria Souza (Juíza),

Sérgio William Domingues Teixeira (Juiz), Sandra Aparecida Silvestre (Juíza), Rinaldo Forti da Silva (Juiz) e Guilherme Ribeiro Baldan (Juiz).

O décimo primeiro concurso foi realizado em 1996 e teve nove aprovados sendo que três foram mulheres. Apesar do número pequeno de mulheres na

magistratura, esse concurso foi o que apresentou maior numero de aprovadas: Fabiano Pegoraro Franco (Juiz), Inês Moreira da Costa (Juíza), Duília Sgrott Reis

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(Juíza), Agenor Alexandre da Silva (Juiz), Matheus Milhomem de Souza (Juiz), Ana Valéria Queiroz Santiago (Juíza), Carlos Augusto Teles de Negreiros (Juiz), José

Maria Lima (Juiz), Amaury Lemes e Elsi Antônio Dalla Riva (Juiz).

O décimo segundo concurso realizado em 1997 aprovou mais oito novos magistrados: João Batista Chagas dos Santos (Juiz), Maurício Carlos Correa (Juiz),

Luiz Antônio Sanada (Juiz), Nelson Dagmar de Oliveira Ferrer, (Juiz), Johnny Gustavo Clemes (Juiz), Fabíola Cristina Inocêncio (Juíza), Sélio Soares de Queiroz (Juiz) e

Dalmo Antônio de Castro Bezerra (Juiz).

O décimo terceiro concurso, que se realizou em 1998, aprovou mais oito novos magistrados: Vinícius Albuquerque Bovo Cabral (Juiz), Edvino Preckzesk

(Juiz) Marcelo Tramontini (Juiz), Henaldo Silva Moreira (Juiz), Euma Mendonça Tourinho S. Riguetti (Juíza), Maximiliano Darcy David Deitos (Juiz), Wilson Soares

Gama (Juiz) e Carlos Roberto Rosa Burck (Juiz),

O décimo quarto concurso realizado no ano de 2000 aprovou doze novos magistrados: Franklin Vieira dos Santos (Juiz), Oscar Francisco Alves Júnior (Juiz),

Leonel Pereira da Rocha (Juiz), Renato Bonifácio de Melo Dias (Juiz), Arlen José Silva de Souza (Juiz), Silvana Maria de Freitas Assis (Juiz), Eduardo Fernandes R. de

Oliveira (Juiz), Haruo Mizusak (Juiz), Humberto Lapa Ferri**,Áureo Virgílio Queiroz (Juiz), Ricardo Amaral Alves do Vale (Juiz) e Sandra Beatriz Merenda (Juíza).

** - Não empossados

Da primeira e da segunda fase das atividades judiciárias alguns nomes foram citados, muitos acabaram por não ser, o que justificamos por ser uma lista muito

extensa e que já consta no livro “Memória Judiciária”, publicado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia. Mesmo assim, fazemos questão de registrar alguns nomes

que fizeram parte de momentos importantes, lembrando que ignorar os noventa anos de atividade do judiciário seria tentar apagar a memória de juízes como Nathanael

Albuquerque, primeiro juiz a exercer a magistratura na cidade de Porto Velho em 1914, cujo nome é lembrado em rua da cidade ou tentar apagar o nome de Martinho Ribeiro

Pinto, segundo juiz, que antes havia exercido a advocacia na Comarca de Santo Antonio. Ainda há vários outros: Juventino Lins Themuco dividia o tempo entre Humaitá e

Porto Velho de 1917 a 1919. Arthur Virgilio do Carmo Ribeiro atuou de 1923 a 1928. José da Silva Castanheiro foi quem lutou pela construção de um prédio para a justiça.

Theodoro Vaz Abreu Assumpção foi o juiz que inaugurou o primeiro prédio destinado ao funcionamento da justiça. Joel Quaresma de Moura foi cassado pelo regime militar

em 64, assim como Antonio Alberto Pacca também cassado foi pelo regime militar em 74, e os responsáveis pela transição: César Montenegro e Cemenceau Pedrosa Maia,

Benedito Geraldo Barbosa, Paulo Carneiro entre tantos outros que participaram do momento de transição.

Se ignorarmos as atividades antes de 1982, vamos estar ignorando o trabalho de Helio Fonseca e Aldo Castanheira. Seria esquecer que Fouad Darwich

Zacarias antes foi advogado militante, assim como Edson Jorge Badra e tantos outros.

Da comarca de Guajará-Mirim, entre os 20 nomes aproximadamente, citamos Pedro Alcântara Baptista de Oliveira que exerceu atividades de 1933 até 1943.

Ele vibrou pelas transformações políticas da região e registrou as atividades e o cotidiano da justiça de forma muito pessoal. Paulino Amorim de Brito de exerceu a

magistratura de 1945 a 1951 e José de Melo e Silva um dos autores do Hino de Rondônia que esteve na comarca até 1959. Por fim, lembramos Darci Ferreira e César

Montenegro que participaram do renascimento da justiça em 1982.

Page 91: Volume viii 2003

91

Algumas observações devem ser feitas, uma delas é quanto à proporção de mulheres aprovadas no concurso para ingresso na magistratura que ultrapassa em

pouco os 10%. Foram 163 homens aprovados ou convidados, enquanto apenas 19 mulheres chegaram ao cargo.

Outra observação a ser feita é quanto à condição de exonerados. Ela pode ocorrer por diversos motivos, não constantes da ficha, mas também por pedidos

dos próprios magistrados.

Já que o trabalho se propôs a observar o perfil dos magistrados em Rondônia, percebe-se que, de acordo com os momentos históricos, os magistrados

possuem as características da população. Com relação aos juízes nordestinos do começo do século, e no momento da criação do Tribunal de Justiça, também a

população era, na maioria, nordestina.

Assim, de acordo com os processos migratórios, também na magistratura vimos chegar os paulistas, cariocas, paranaenses, catarinenses, gaúchos, mineiros e

goianos. Vimos também quando essa população começa a criar uma identidade, seja com o funcionamento do curso de Direito e o oferecimento de profissionais ou

ainda o aparecimento de magistrados nascidos em Rondônia, surgindo, assim, a identidade do lugar.

FONTE

Ficha de cadastro de magistrados e entrevistas do acervo documental e de História Oral do Centro de Documentação Histórica do TJRO.

BIBLIOGRAFIA

BENCHIMOL Samuel. Amazônia: Formação Social e Cultural. Manaus. Valer. 1999. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis, Vozes, 2001. MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de História Oral. São Paulo, Edições Loyola, 1996. THOMPSON, Paul. A Voz do Passado. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1998. VEYNE, Paul. Como se escreve a História e Foucault revoluciona a História. Brasília, UnB, 1998.

Page 92: Volume viii 2003

92

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº125 - DEZEMBRO - PORTO VELHO, 2003

VOLUME VIII

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

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ISSN 1517-5421 lathé biosa 125

O QUE É (OU DEVE SER) DISCURSO NA ANÁLISE DO DISCURSO?

MILTON CHAMARELLI FILHO

PRIMEIRA VERSÃO

Page 93: Volume viii 2003

Milton Chamarelli Filho O que é (ou que dever ser) discurso na análise do discurso? Professor do Curso de Letras - UFAC [email protected]

O título deste trabalho é suficientemente provocativo na medida em que toma por consideração a probabilidade de existência de um conceito que parece já estar bem estabelecido no campo da ciência da linguagem, o conceito de discurso.

A princípio, convém dizer que um conceito de discurso só se tornou possível por uma espécie de ruptura no âmbito da tradição dos estudos sobre a linguagem. Estudos este que buscavam os princípio de invariância que caracterizam as línguas.

Neste sentido, a ciência lingüística, através de Saussure (início do século XX) e Chomsky (segunda metade do século XX), é a herdeira de uma tradição da razão cartesiana fundada sobre o logos. E, tomada ao pé da letra, a Análise do Discurso — que surgiu a partir de disciplinas como o marxismo e a psicanálise, que descentravam o logos, a partir da noção de que o homem não é senhor do seu discurso —, não poderia ser tomada como uma disciplina científica. Sendo assim, poderia haver uma análise do discurso, se se toma por base os parâmetros de cientificidade da lingüística descritiva e normativa, tais como a recursividade de fatores que tornariam a língua um sistema?

Antes do surgimento da AD, a ciência da linguagem desenvolveu conceitos basilares, tais como os de langue e parole, em Saussure, e os de competência e desempenho, em Chomsky. Mas estes conceitos não eram suficientes e nem podiam amparar um conceito de língua, a partir do ponto de vista do dialogismo; noção que só surgiu com a publicação de Marxismo e filosofia da linguagem, de Mikhail Bakhtin (Volochinov).

A fim de delinearmos, com mais precisão, se é que é possível, o conceito de discurso, basta pensarmos o quanto se torna incompatível ou inadequado uma noção de discurso que hoje temos, a partir do texto de Bakhtin e também de Wittgeinstein, se tentamos observar qualquer semelhança com aqueles conceitos desenvolvidos pela lingüística estrutural. Tomemos uma dessas vias.

Discurso é, no sentido de Wittgeinstein, o uso que fazemos da língua, e essa definição, apesar de ser simplória, parece-nos a mais interessante. Por quê? A princípio porque não podemos afirmar que um tipo enunciado seja um discurso só porque ele se enquadra em determinados parâmetros de gêneros discursivos determinados a priori. Como seria classificar, por exemplo, um “discurso publicitário” encomendado pelo governo: discurso político ou publicitário?26 Passemos a uma definição de discurso.

Excluída a possibilidade de pensarmos o discurso em função de grades preestabelecidas, o discurso pode ser pensado fora do âmbito exclusivamente institucional; isto quer dizer que, qualquer discurso, mesmo uma simples informação sobre horas, pode ser pensada como tal, como os atos de fala indiretos, que fazem parte do uso da linguagem do quotidiano e, no entanto, não são atos de linguagem institucionais como os atos perlocutórios estudados por Searle, Austin e Alston.

A definição de discurso, como uso que fazemos da língua, talvez possa ser precisada como “o uso que fazemos da língua em determinado contexto”. A ampliação torna a definição mais precisa, porém, torna os contextos de apreensão desse discurso mais fluidos, que torna, por sua vez, o próprio âmbito da AD mais precário, à medida que a sistematicidade almejada para a conquista do status de disciplina é cerceada pelas categorias que se apresentam nos discursos escritos, deixando, de lado, os discursos orais e sua estruturação como aqueles estudados por John J. Gurperz. ”.

A ampliação torna o âmbito da AD mais precário porque os contextos são múltiplos, variáveis e difíceis de determinar, até porque a noção de contexto pode englobar situações em que a participação subjetiva do enunciador possa ser tão importante que seria necessário definir a que situação ele está exposto, tal como é feito pela sociolingüística quando vai determinar as variáveis de sua pesquisa.

A definição acima dada não deixa claro que o uso que da língua se faz, sendo “usada pelo discurso”, é a língua enquanto materialidade e como intenção. Isso talvez nos diga que o fundamento ontológico do discurso não está nos estudos sobre linguagem estrito sensu, mas na psicologia. Talvez tenha sido esse o intuito de Saussure quando colocou que: Pode-se, então conceber uma ciência que estude a vida dos signos no seio da vida social; ela

constituiria uma parte da Psicologia social e, por conseguinte, da Psicologia geral; chama-la-emos de Semiologia27

Naturalmente, é muito difícil assimilar o conceito de intenção ao âmbito de estudos da linguagem, mas a intenção não pode ser pensada sozinha, ou melhor, só pode ser pensada em termos de propósito, finalidade a que se destinou determinado texto (incluindo a posição do interlocutor, a da recepção).

No momento em que a língua é usada como intenção, a língua não é tão somente a materialidade fônica, mensurável, através dos morfemas e sintagmas que a particularizam, a língua é usada como discurso. Ou, melhor dizendo, a língua vai ser pensada como discurso, e discurso, neste sentido, é estratégia ou meio de se atingir determinado fim. Meio este que torna a língua um instrumento para ser usado na arena das ações linguageiras: terreno movediço, não-lugar, para usarmos o conceito de Marc Augé.

26 A divisão do discursos por gêneros se vê enfraquecida à medida que o uso tem provado o quanto pode haver de hibridiazações de discursos, como, por exemplo, textos jornalísticos quase poéticos, textos publicitários quase políticos, textos literários como quase ensaios (como em Borges) etc. A única importância dessas divisões reside no ranço institucional que os discursos possuem, e não provam, por exemplo, por que um discurso político pode ser mais argumentativo do que um discurso que se usa no quotidiano. 27 SAUSSURE, 1991. p. 24.

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A língua estará na arena sob o domínio do discurso, e a materialidade deste surge à medida que está investido de intenção e finalidade e de subjetividade do falante. Mas a quem este se destina e como? Nesta outra esfera, pode-se compreendê-lo? Parece-nos que este é um parâmetro de definição de discurso, já que um discurso é endereçado a outrem e se constitui em função deste outrem.

Compreender o discurso é passar para esse “segundo nível”, ou seja, é passar da funcionalidade da língua para a sua intencionalidade; é des-cobrir, como na língua podem estar acumulados ou traçados significados de outrem, a intenção de outrem, e tentar delinear o discurso com outros significados que não aqueles do seu enunciador; é despir a língua de um vestuário e lhe dar outro. É praticamente fazer uma arqueologia do significado presente na língua.

O discurso é, assim, a função de uso da língua em determinado contexto, materialmente relacionado às intenções dos falantes, por isso, a intencionalidade não existe como uma condição “psicológica pura” para a existência do discurso.

A intencionalidade como forma de pensamento estrutura-se como linguagem. Esta, sob este ponto de vista seria a própria materialidade da língua pensada como discurso, o que significa não pensar a língua a partir da língua, de “dentro da língua”, como queria Wittgeinstein, mas pensar a língua como estratégia, e talvez se possa dizer semioticamente. E pensamos semioticamente a língua, com base em Peirce, por exemplo, pode nos conduzir a pensar a língua como uma definição de signo. Com isto, não estaríamos longe do pensamento de Saussure, como vimos acima.

Aqui surgiria um conceito, alguns poderiam objetar, para amparar esse conceito de intencionalidade, como o de formações discursivas ligado a formações ideológicas, como em Foucault, à medida em que, grosso modo, as condições psicológicas do homem são reflexos das suas condições materiais e que, em contrapartida, se refletem no comportamento linguageiro do homem. Ou seja, o discurso do homem perpassado o tempo todo pela ideologia ou pela fala de outrem? Mas estará o nosso discurso perpassado de formações ideológicas integralmente?

É provável que, no âmbito institucional, e muito em função do papel da mídia, estejamos constantemente tangendo as cordas dos discursos institucionalmente constituídos. Mas sempre será assim? E se for assim, no âmbito do quotidiano, teremos que assumir que existam formações ideológicas tão singulares quanto nossas intenções, ou melhor, tão singulares quanto os nossos discursos mais íntimos?

Se pensarmos o discurso no âmbito institucional, teremos que pensá-lo, semioticamente como mapa. Porque estes discursos nos conduziriam a um caminho possível e previsível, onde tudo se originou, mas também a um possível mapa às avessas, conduzindo-nos ao fim a que é destinado, seu telos.

Todo discurso institucional possui o seu telos, já que traz, em sua fundação, a sua possibilidade de resolução, o que não quer dizer também que os discursos sejam responsáveis pelas ações dos homens e as suas conseqüências. É a intenção que é responsável pelo telos dos/nos discursos. A materialidade é a forma que o discurso assume.

Parece-nos que a noção de discurso lança-nos um desafio, à medida em que só pode ser formulada se entendemos o uso que fazemos da língua. Não se trata de fazermos uma descrição completa das situações quotidianas em que o discurso é usado como meio de persuasão, mas de como o discurso se constrói em função dos demais discursos com que dialoga, já que é desta correlações que o discurso se constitui. O uso que fazemos da língua é o “resultado” da relação que estabelecemos com o outro. O discurso é o “resultado” da relação que ele mantém com outros discursos.

O discurso só se constitui enquanto discurso quando ele é um interdiscurso. Ele só pode ser tornar classificável como gênero quando tomado em consideração a outros discursos; o que nos mostra também que o que funda o discurso é o dialogismo, como está em Bakhtin.

O dialogismo me inscreve e inscreve o outro no discurso enquanto intenção de mim para ele e dele para mim. O discurso, nesse sentido, é uma intercessão de subjetividades, e de objetividades que acredito serem subjetividades, enquanto crença, ou objetividades, enquanto razões, para o outro e vice-versa.

As objetividades podem fazer parte do horizonte de expectativas, para usar uma metáfora da Estética da Recepção, de meu interlocutor e apenas nele “ecoar” como objetividades (como razões que estariam “acima do bem e do mal”), ou fazendo nele ecoar como subjetividades objetivas (como os seus pontos de vista) das quais compartilha. Como também podem não fazer parte desse horizonte de expectativas do receptor e fazer eclodir nele as suas subjetividades. Porque as objetividades, como função ideológica, estão sempre naturalizadas, ou melhor, tornando natural aquilo que é convencional (ou o que acreditamos ser convencional), isto é, os significados da linguagem para um grupo ou para um indivíduo.

O discurso estará sempre nessas intercessões, nessas passagens de objetividades e subjetividades, entre e o enunciador e o interlocutor, em qualquer momento, e se há uma metáfora do jogo, como o colocou Wittgeinstein, para definir o estatuto da linguagem, este se dá entre as crenças e razões que podem ou não ser compartilhadas por uma comunidade: de uma breve informação a um ato terrorista. Como estas crenças ou razões nos chegam, e como nós as proferimos, é pura estratégia, ou melhor, intenção revestida de materialidade.

Referências Bibliográficas;

BAKHTIN, Mikhail. (Volochinov). (1992). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, HUCITEC.

FOUCAULT, Michel. (1987). Arqueologia do saber. Rio de Janeiro, Forense Universitária.

SAUSSURE, Ferdinand de. (1991). Curso de lingüística geral. São Paulo, Cultrix.

WITTGENSTEIN, Ludwig. (1994). Investigações filosóficas. Petrópolis, Vozes.

Page 95: Volume viii 2003

95

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CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº126 - DEZEMBRO - PORTO VELHO, 2003

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MEIO AMBIENTE E PRÁTICA PEDAGÓGICA

MONICA LOPES FOLENA ARAUJO

PRIMEIRA VERSÃO

Page 96: Volume viii 2003

96

Mônica Lopes Folena Araujo MEIO AMBIENTE E PRÁTICA PEDAGÓGICA Professor do Departamento de Biologia – UFRO [email protected]

Desde os primeiros movimentos ambientalistas a educação foi considerada um instrumento fundamental de sensibilização, conscientização, comunicação,

informação e formação das pessoas como processos fundamentais para a promoção do desenvolvimento sustentável, da consciência ambiental e da ética, de mudança

de valores, de comportamento e da efetiva participação nas tomadas de decisões no ensino formal e informal.

O tema da Educação Ambiental se tornou uma das coqueluches nas escolas brasileiras. Fazem parte dos conteúdos de Educação Ambiental do 3º e 4º ciclos

do ensino fundamental desde formas de manutenção de limpeza do ambiente escolar até como elaborar e participar de uma campanha ou saber dispor de serviços já

existentes, como órgãos ligados à prefeitura ou Organizações Não-Governamentais (ONGs).

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) incorporaram a Educação Ambiental, como tema transversal, nas disciplinas convencionais, relacionando-as à

realidade. A intenção foi trazer uma nova possibilidade de trabalho pedagógico que permitisse o engajamento político-social com o conhecimento, ampliando, assim, a

responsabilidade do educador com a formação voltada à cidadania.

Aqui exige-se repensar o papel do professor enquanto transmissor de conhecimentos, para uma nova ação reflexiva e criativa. Cabe à escola ser o instrumento

a serviço da coletividade, cumprindo e fazendo cumprir o exercício da cidadania.

O presente estudo avaliou como o meio ambiente e a educação ambiental são vivenciados na prática pedagógica de professores de três escolas públicas

estaduais de Porto Velho-RO. Desse modo pôde-se avaliar as reais possibilidades da Educação Ambiental estar contribuindo para o desenvolvimento social de

Rondônia, uma cidade já bastante afetada por desequilíbrios ecológicos.

Nesse contexto, a concentração populacional nas cidades rondonienses é um dos maiores colaboradores para a degradação do ambiente urbano. Segundo

Botelho (2000), “O acúmulo de lixo nas vias públicas, a transformação de córregos e igarapés em verdadeiros esgotos a céu aberto, são os exemplos mais visíveis”.

Este trabalho pretendeu melhor entender a prática de profissionais que podem permear todos os caminhos para que se possa entender o desenvolvimento

sustentável como perspectiva de qualidade de vida para gerações futuras.

Page 97: Volume viii 2003

97

A pesquisa em Educação Ambiental começa a aparecer cientificamente e pedagogicamente, objetivando fazer parte do cotidiano escolar. Dentro deste contexto, os

Parâmetros Curriculares Nacionais para temas transversais, entre eles está a Educação Ambiental, foram elaborados pelo MEC em 1998 objetivando ampliar e aprofundar um

debate educacional que envolva escolas, pais, governos e sociedade e dê origem a uma transformação positiva no sistema educacional brasileiro.

Para alcançarmos tal progresso educacional Reigota (1994) enfatiza que a Educação Ambiental não deve estar baseada, somente, na transmissão de

conteúdos específicos. Há também uma grande tendência em considerar a Educação Ambiental como conteúdo integrado às ciências físicas e biológicas.

A formação inicial e continuada de professores pode ser o caminho para uma melhor atuação dos mesmos em relação à Educação Ambiental. Acreditando

nesta afirmação, o objetivo deste trabalho foi o de melhor entender como os professores de escolas públicas estaduais locais posicionam-se em relação ao meio

ambiente, à Educação Ambiental e como evidenciam esses temas em práticas pedagógicas.

Essa experiência nasceu da necessidade de entender de que forma a Educação Ambiental está sendo inserida no ensino fundamental em Porto Velho, capital

do estado de Rondônia.

A justificativa para o estudo repousa na importância do implemento imediato da Educação Ambiental no currículo escolar, pois acredita-se que a mesma seja a

resposta, no âmbito da educação, aos desafios ecológicos atuais.

MÉTODOS

A pesquisa é do tipo qualitativa, pois foi baseada na interpretação e na atribuição de significados aos dados coletados. Não foram utilizados métodos e técnicas

estatísticas, já que trata-se da descrição de dados analisados indutivamente.

A população alvo foi o corpo docente de três escolas públicas estaduais em Porto Velho – RO. Foram realizadas entrevistas em aprofundamento com dez

professores de cada escola. O propósito das entrevistas foi ouvi-los e analisá-los enquanto respondiam questões relacionadas a meio ambiente, educação ambiental e

suas práticas docentes.

As entrevistas realizadas foram do tipo semi-estruturadas pois, embora contando com roteiro, o entrevistado esteve o mais a vontade possível para prestar seu

depoimento.

Os professores entrevistados foram sorteados de modo a estarem representadas as áreas de língua portuguesa, língua estrangeira, matemática, ciências naturais,

história, geografia, arte e educação física; afinal, o propósito dos PCNs é que a Educação Ambiental seja um tema transversal trabalhado em todas as áreas.

Antes da aplicação definitiva das entrevistas foi realizado um pré-teste com cinco professores para verificar que dificuldades encontraram para respondê-los,

com o objetivo de tornar o instrumento de coleta de dados claro, preciso e coerente quanto ao que pretendeu-se investigar.

De posse de todo o material utilizado na coleta de dados, foi feita a análise das entrevistas que baseou-se na identificação de textos com um conjunto de significados

comuns.

Page 98: Volume viii 2003

98

RESULTADOS

Dos trinta professores entrevistados, todos apresentam uma definição pessoal de meio ambiente considerada “naturalista”. Reigota (2001) adota como

“naturalista” a definição de meio ambiente como sinônimo de natureza.

Desse total, dezoito professores acreditam que meio ambiente é o “local onde os seres vivos habitam”; o que significa dizer que encaram o meio ambiente de

forma espacial. Dez professores afirmaram que meio ambiente é o “conjunto de fatores bióticos e abióticos” e referem-se ao homem como “depredador”; nesse caso

os elementos abióticos citados com maior freqüência são os abióticos (água e ar) e os bióticos, denominados genericamente por eles como “seres vivos”. Apenas dois

professores mencionaram o ser humano como parte do meio ambiente e reconhecem a interdependência entre eles; é interessante notar que esses dois professores

têm formação em Ciências Biológicas, logo, suas percepções de meio ambiente podem ser explicadas em virtude das disciplinas que tiveram enquanto graduandos.

Podemos visualizar melhor os dados no gráfico abaixo:

Ao se pedir para que os professores definissem o que entendem por educação ambiental, eles se dividem em dois grandes grupos: os que acreditam que a

Educação Ambiental deva tornar-se uma disciplina obrigatória, e os que acreditam que o tema deva ser tratado apenas em disciplinas específicas, as mais citadas

foram Ciências e Geografia. Um fator interessante é que todos acreditam que a Educação Ambiental deva ser conscientizadora.

Um dos professores assim se expressa: “ Educação Ambiental é algo que precisamos para garantir nossa sobrevivência. Devemos conscientizar nossos alunos

a proteger a natureza para dar continuidade à vida na Terra!”

Um outro professor afirma que: “A Educação Ambiental deveria ser uma disciplina, pois os professores que não são da área não têm competência para

trabalhar com ela.”

Já um professor de matemática acredita que: “O pessoal de Ciências e Geografia é que deve tratar o assunto. Afinal, eles estudam isso na faculdade.”

Com relação a definição de Educação Ambiental a mais citada ( por vinte e dois professores), é a seguinte: “É o estudo do meio em que vivemos”.

A distinção entre os dois grupos perde a nitidez quando se avalia a forma como as práticas pedagógicas cotidianas são realizadas. Todos referem-se à

preocupação com a conservação, reflorestamento, falta de água no planeta, reciclagem de lixo,etc. Ou seja, todos estão inseridos dentro de um tipo de Educação

0%

10%

20%

30%

40%

50%

60%

Conceito de meio ambiente

Professores que encaram o meio ambiente de forma

espacial

Professores que conceituam meio ambiente como

“conjunto de fatores bióticos e abióticos”

Professores que mencionaram o ser humano como

parte do meio ambiente

Page 99: Volume viii 2003

99

Ambiental preservacionista. Os conteúdos abordados são em sala de aula e como um dos professores enfatizou: “A escola não tem recursos. Como posso trabalhar?

Gostaria de levar meus alunos a algum lugar, para eles verem os problemas da comunidade, mas não posso!”

Em relação à metodologia, as práticas pedagógicas não as diferenciam das formas tradicionais de transmissão de conteúdo. Resumem-se basicamente a aulas

expositivas, e os conteúdos trabalhados não inserem-se no contexto social do aluno, pois ficam restritos a leitura do livro didático.

Um dos professores assim expressa-se: “As únicas coisas que fazemos de diferente é preparar os alunos para datas comemorativas: dia da árvore, dia do meio

ambiente. Esse ano a diretora até investiu nos preparativos para o desfile para celebrar o dia do meio ambiente. Também pudera, a SEDUC ofereceu um computador

para o melhor desfile!”

Em relação a autocrítica dessas práticas pedagógicas, podemos evidenciar duas correntes: a maioria dos professores, vinte e seis, reconhece não trabalhar a

Educação Ambiental de maneira como gostariam. Assim expressa-se um professor: “Sei que tenho responsabilidade para com o meio ambiente, as drogas, o sexo

entre meus alunos, mas não me sinto preparado para lidar com nenhum desses pontos. Não tive nada disso na minha formação.”

Outro diz que: “Se tivesse pelo menos tempo para estudar mais, fazer uns cursos, mas não posso. Para garantir meu salário trabalho em três escolas.”

Os outros quatro professores alegam que muitas coisas deveriam ser vistas em casa. Um professor desabafa que: “Os pais agora parecem completamente

descompromissados com seus filhos, temos que ensinar tudo! Para mim quem tem que ensinar uma criança a não jogar papel no chão, a não arrancar plantas, etc, são os pais.”

Um outro afirma que: “Os alunos grudam chicletes embaixo das carteiras, sujam as paredes da escola, é um horror! E agora tudo é função nossa!”

O gráfico abaixo ilustra os resultados acima descritos:

É importante ressaltar que as respostas dadas representam um grupo pequeno de representantes da categoria dos professores de escolas públicas estaduais

em Porto Velho. Este trabalho continua sendo realizado em mais escolas, com um número maior de professores, logo, trata-se de resultados parciais de uma pesquisa.

0,00%

20,00%

40,00%

60,00%

80,00%

100,00%

autocrítica de práticas pedagógicas

professores que não trabalham a Educação Ambiental

como gostariam

professores que acreditam que a Educação Ambiental

deveria começar em casa

Page 100: Volume viii 2003

100

CONCLUSÃO

As definições de meio ambiente explicitadas pelos professores são restritivas. Muitos encaram a natureza como algo intocável, que não pode ser modificado

pelo homem. A maioria das definições excluem o homem como parte do meio ambiente; outras o mencionam como destruidor, um agente perigoso.

A noção de meio ambiente deveria ser encarada como o conjunto de recursos naturais e humanos que em determinado (s) espaço (s) e tempo (s) se tornam

úteis para a satisfação das necessidades humanas.

Desse modo, as preocupações ambientais surgem quando existe a consciência de que as necessidades humanas deixam de ser satisfeitas imediatamente e/ou

a médio ou longo prazo como conseqüência de assimetrias na distribuição de poder e de interesses diversos a nível local e global nos âmbitos social, econômico,

cultural, etc.

A compreensão do meio ambiente, enquanto interação complexa de fatores sociais, biofísicos, políticos, filosóficos e culturais parece distante dos professores

entrevistados. Isto dificulta a prática pedagógica dos mesmos. Como podem ensinar o que não compreendem?

A idéia apresentada pelos professores em relação à Educação Ambiental é completamente contrária à sugerida pelo MEC. O texto dos Parâmetros Curriculares

Nacionais reitera que o ensino de Educação Ambiental deve considerar as esferas local e global, favorecendo a compreensão dos problemas ambientais em termos

macros (político, econômico, social, cultural) como em termos regionais. Desse modo, os conteúdos de Educação Ambiental integram-se no currículo escolar a partir

de uma relação de transversalidade, a fim de impregnar a prática educativa, exigindo do professor uma readaptação dos conteúdos abordados na sua disciplina.

Assim, a idéia de uma nova disciplina é inviável e inaceitável.

Do mesmo modo, acreditar que a Educação Ambiental deva ser trabalhada nesta ou naquela disciplina não condiz com as expectativas do MEC. A Educação

Ambiental tem sua origem nas problemáticas sociais atuais, logo necessita da abordagem dos diversos campos de conhecimento para ser compreendida.

A representação “conscientizadora” aparece em diversas oportunidades, conferindo à Educação Ambiental a tarefa de inserir nos indivíduos a consciência que

possibilite a preservação do meio ambiente.

A preocupação com problemas ambientais, como poluição, desmatamento, etc., citados pelos professores, foram provocados pelo homem, e a preocupação

em deter e reverter esses dados levam a “modismos ambientais”. A prática preservacionista colocada pelo movimento ambientalista é preocupante. Precisamos

compreender as implicações reais do discurso ecológico para os diferentes setores da atividade humana. Essa é a possibilidade que temos para fugir às interpretações

ingênuas e aos riscos dos modismos, o que não pode estar presente em profissionais com a função de formar cidadãos.

A prática pedagógica em relação à Educação Ambiental mostrou-se frustrante. A temática ambiental não pode restringir-se a datas comemorativas, ou a

estudos tradicionais em sala de aula. Mas as respostas referentes às autocríticas representam que os professores reconhecem que o que fazem é insuficiente no

âmbito ambiental.

Page 101: Volume viii 2003

101

Um fator preocupante é a responsabilidade quanto à Educação Ambiental. Professores pensam estar sendo sobrecarregados por papéis que deveriam ser

cumpridos pelos pais. As modificações em nossa sociedade levam a conflitos entre escolas e pais. Onde começa a responsabilidade de um e termina a do outro? O que

importa é o resultado final, é o desenvolver do aluno. Para tal escola e pais devem trabalhar juntos no processo educacional.

A reclamação apresentada por um professor quanto a tempo para capacitar-se, e a de outro professor quanto à falta de preparo na formação inicial, são

pontos cruciais ao emprego correto da Educação Ambiental. Devemos ter ciência de que o conceito de transversalidade ainda é pouco claro e sua implantação nas

práticas pedagógicas exige maiores esclarecimentos metodológicos, assim como novas relações entre conteúdos.

Para a viabilização da implantação dos Parâmetros Curriculares Nacionais de meio ambiente, deveria haver compromisso das universidades em rever a

formação inicial dos futuros profissionais que serão lançados no mercado de trabalho. Deveria haver também, cursos de capacitação dos professores, oferecidos por

secretarias, em parcerias com universidades, visando ao entendimento de conceitos como transversalidade, construtivismo, etc.

Assim, a forma mais eficaz para se evitar os prognósticos alarmantes em relação ao meio ambiente, é investir imediatamente e maciçamente na formação

inicial e continuada dos professores. Esse é o caminho para o desenvolvimento sustentável em Porto Velho e em todo o mundo. A educação deve ser considerada um

instrumento de sensibilização, conscientização, comunicação, informação e formação das pessoas como processos fundamentais para a promoção do desenvolvimento

sustentável.

BIBLIOGRAFIA

BOTELHO, José M. L.. Educação Ambiental e Formação de Professores. Rondônia: Gráfica Líder, 2000.

CASCINO, Fábio. Educação Ambiental: Princípios, História, Formação de Professores. São Paulo: Editora Senac, 1999.

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REIGOTA, Marcos. Meio ambiente e representação social. São Paulo: Cortez, 1995.

Page 103: Volume viii 2003

103

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº127 - DEZEMBRO - PORTO VELHO, 2003

VOLUME VIII

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

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CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 127

DO PORTO CALE AO PORTO VELHO

NILZA MENEZES

PRIMEIRA VERSÃO

Page 104: Volume viii 2003

Nilza Menezes DO PORTO CALE AO PORTO VELHO

Centro de Documentação Histórica do TJ/RO

[email protected]

Junto com os árabes, espanhóis, caribenhos e gregos, os portugueses também fizeram parte dos grupos de imigrantes que vieram para a região dos vales do

Madeira, Mamoré e Guaporé. Tiveram as suas características e merece estudo para melhor conhecermos esse grupo composto na maioria por homens, trabalhadores

braçais, comerciantes e muito casadoiros com as mulheres da região.

Vários foram os grupos imigrantes. Os caribenhos trazem a marca de terem sido na sua grande maioria trazidos para o trabalho de construção na Estrada de

Ferro. Eles vinham contratados pela empresa norte-americana e tinham laços afetivos e culturais com os ingleses. Consideravam-se ingleses.

Os judeus conforme se observa na documentação já se encontravam na localidade de Santo Antonio do Rio Madeira antes da construção da ferrovia. Com a

queda da produção da borracha a maior parte retornou para Manaus ou Belém. Os árabes que chegaram com a movimentação da construção da ferrovia e que

também substituíram os judeus na prática do comércio ambulante (Moraes, 1987) foram comerciantes arrojados, organizados e bem sucedidos. Os gregos em

pequeno número acabaram por se estabelecerem no comércio, integrando-se a região com predominância nas cidades de Costa Marques e Guajará-Mirim.

Os portugueses, pela maior identificação cultural, tiveram mais rapidamente processados a amoldagem e interação com a região, no entanto, no primeiro

momento as suas características distintas dos outros grupos são percebidas de forma bastante marcante.

As informações utilizadas para o desenvolvimento desse trabalho são obtidas através dos documentos do Centro de Documentação Histórica do

Tribunal de Justiça, constando de processos judiciais, documentos cartoriais como procurações, certidões de casamentos e transações comerciais que

registram o movimento dos homens e mulheres em espaço não de controle da Empresa.

A cidade de Santo Antonio do Rio Madeira tinha atividades independentes, embora seu movimento tenha sido fortificado pela presença da ferrovia e

seu desaparecimento ocorreu em decorrência da queda da produção da borracha.

Sem dúvida a construção da ferrovia foi um marco divisório, como símbolo do progresso e da modernidade instalada na selva, exercendo sobre as pessoas um

misto de apego e saudosismo, sendo o trem, a estação ferroviária, o ponto de partida para grande parte da produção historiográfica regional, contudo não podemos

esquecer que a ferrovia foi o objeto central, mas a vida a sua volta também tinha outros significados.

A presença de portugueses em terras brasileiras teve início com a “descoberta” e foi contínua, embora passasse por oscilações de acordo com os momentos

econômicos.

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Dentro do processo da exploração da borracha e da construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré, período que usamos como referencial para o

desenvolvimento de trabalhos sobre a região, falamos nas diversas etnias que aportaram e se espalharam pelos vales do Madeira e Mamoré. As maiores referências

são para a colônia caribenha que exerceu importante papel, mantendo-se de forma distinta da pelas décadas que se seguiram da construção da ferrovia; no entanto

observamos que sua existência está ligada de forma muito intima com a construção. Com a desativação da ferrovia o grupo vai sendo dissolvido, consumido como a

própria Madeira-Mamoré.

De um modo geral nos referimos aos trabalhadores da Estrada de Ferro, contudo não podemos esquecer que nem tudo era só Ferrovia, ela foi um elemento

dentro do processo de exploração da borracha. Antes da Ferrovia a região já existia, a vida nas localidades de Humaitá e Santo Antonio do Rio Madeira tinha as suas

características. A Vila de Santo Antonio, criada em 1908, tinha desde 1881 um posto da coletoria do Estado instalado, o que indica a movimentação de pessoas e do

comércio (Nogueira, 1913). A construção da Estrada de Ferro foi um marco importante, conseqüência de uma série de fatos e responsável por uma série de

acontecimentos e objeto de ações.

Antes do processo de construção da Ferrovia não era o caos, portanto não podemos falar da história da região sempre partindo no trem, que vai de

lugar algum a lugar nenhum. A construção da ferrovia foi motivada por um processo econômico e passa a ser apenas um “enfeite” saudoso após a sua

desativação, e apesar de sua desativação a região não deixou de existir. As transformações políticas e geográficas alteram os nomes das localidades, mas a

identidade dos habitantes continuou sendo a mesma.

Entre 1830 e 1930, cerca de um milhão de portugueses imigraram para o Brasil (Lippi, 2001). No caso da região amazônica o número registrado é bastante

elevado. O Censo de 1920 registra a presença de 24.007 pessoas oriundas de aldeias portuguesas vivendo nas cidades de Manaus e Belém (Benchimol, 1999). Pelo

que se observa do Censo, a diferença era de 03 homens para uma mulher, sendo esse fator motivador da integração e miscigenação, sendo comum o casamento de

portugueses com mulheres nativas, conforme observamos pelo livro de registro de casamentos de Santo Antonio do Rio Madeira e principalmente de Humaitá-AM.

O número desses imigrantes registrados como trabalhadores da Empresa construtora da ferrovia não deixa de ser notável. São 146 casos de mortes de

trabalhadores portugueses, oportunizando a percepção de que eles estavam em grande número trabalhando na empresa, diferentemente dos árabes que praticamente

não aparecem nas listas de trabalhadores da ferrovia.

Conforme dissemos nem tudo era a ferrovia. O mundo existia antes e além dela. Os registros de casamentos de homens portugueses com mulheres da região

são observados no livro de registros de 1913 a 1916 da Comarca de Santo Antonio e muito antes nos livros de registros da Comarca de Humaitá que registra muitos

casamentos de portugueses com as moças da região, entre os anos de 1850 a 1912.

Eles estavam espalhados por toda a região, não só como trabalhadores da ferrovia, mas principalmente exercendo funções de comerciantes, comerciários e

trabalhadores braçais nas vilas ao longo dos rios. Não tinham a solidariedade e organização dos árabes e judeus com os grupos familiares, mas tinham a perseverança,

resignação e paciência, no entanto, não podemos deixar de observar distinção entre os portugueses. Aquele senhor atrás do balcão, dono de padaria, de loja de

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106

miudezas, de bar e um outro comerciante relacionando-se com os judeus tanto nos negócios como nas relações sociais. São dois portugueses. Os primeiros, gordos,

vastos bigodes, bonachões. Os segundos esguios desapareceram das imagens dos documentos antes de terminar a segunda década do século XX. Os portugueses que

continuam a fazer parte da documentação são aqueles do primeiro grupo.

Nas primeiras décadas do século XX a presença portuguesa foi marcante. O episódio conhecido como A revolta dos portugueses, causada por problemas

econômicos foi um acontecimento de grandes proporções na então Vila de Porto Velho, chegando a colocar em fuga o então Delegado de Polícia José Joaquim Guerra.

O motim, segundo informações de Antonio Cantanhede em Achegas para a História de Porto Velho, ocorreu em face dos altos impostos cobrados pela

superintendência do município recém-criado. Os portugueses comerciantes não habituados ao pagamento de impostos, vez que a ferrovia só fiscalizava o que

acontecia dentro do seu território e o Estado não tinha condições de exercer uma fiscalização mais eficiente. A Vila de Porto Velho pertencia ao Estado do Amazonas,

cuja fiscalização era exercida pelas autoridades da Comarca de Humaitá que ficava distante. Ao se tomar providências para cobranças de impostos na sede da vila

ocorreu uma insatisfação entre os comerciantes portugueses ocasionando a revolta. (Cantanhede, 1950).

É interessante observarmos que o episódio ocorrido na Vila de Porto Velho se deu ao mesmo tempo em que no Rio de Janeiro existia um clima de competição

entre lusos e brasileiros ocorrendo diversas manifestações e uma série de processos criminais onde os conflitos entre brasileiros e portugueses são percebidos. Gladys

Sabina Ribeiro aborda a questão, trazendo a tona os conflitos que envolviam brasileiros e portugueses na cidade do Rio de Janeiro no começo do século XX (Ribeiro,

1990). Muito embora as realidades das duas regiões fossem distintas, não passa desapercebida a competição entre brasileiros e portugueses no mercado de trabalho

das localidades de Santo Antonio do Rio Madeira e na Vila de Porto Velho, onde o comércio era efervescente nas duas primeiras décadas em razão da movimentação

ocasionada pela exploração da borracha e pela construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré.

Ainda conforme registra Antonio Cantanhede, a rivalidade com os portugueses parece ter como ponto referencial o incidente do dia 19 de novembro de 1915,

quando os lusos em clima de revolta colocaram em pânico as autoridades e moradores da Vila de Porto Velho.

Esse incidente tem causas e conseqüências que podem ser percebidas na documentação analisada e que faz parte do acervo do CDH/TJRO em diversos

incidentes onde um brasileiro e um português comparecem em juízo para prestar queixa ou para se defender, muitas vezes ocorrendo desavenças e intrigas entre eles

tanto em Santo Antonio do Rio Madeira como em Porto Velho. O acontecimento de 1915 criou uma animosidade entre brasileiros e portugueses.

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107

A presença portuguesa em Santo Antonio do Rio Madeira é marcante. Além dos já citados trabalhadores da ferrovia, vamos encontra-los trabalhando como padeiros, comerciários, comerciantes, proprietários, jornaleiros não passando desapercebida a presença dos mesmos enquanto partes nos processos. Sofrem uma carga de preconceitos e é comum serem acusados até mesmo por prática de feitiçaria como o caso do português Manoel José Pereira, acusado por Manoel Farias de ter procurado os serviços de Casemiro Ribeiro para, por meio de pajelança, fechar a padaria de Manoel Farias. O fato ocorreu em razão de desafeto entre os dois comerciantes concorrentes. Manoel José Pereira foi ainda acusado por ter praticado “bruxedos” contra Manoel Farias. Os bruxedos referenciados consistiam em ter o português Manoel José procurado os serviços de Casemiro Ribeiro para por meio de pajelança fechar a padaria de Manoel Farias. O próprio Casemiro teria confirmado a Manoel farias que havia sido procurado para fazer o serviço. O fato ocorreu no ano de 1922, e os dois padeiros tinham comércio na localidade de Presidente Marques.

As imagens que temos dos portugueses que viviam em Santo Antonio do Rio Madeira são apresentadas como fotos de álbuns de família. Temos uma imagem,

algumas palavras plasmadas no papel onde os antonios, os manueis, os joaquins que parecem nossos antigos conhecidos com os nomes tão familiares pelos quais nos

acostumamos a conhecer os portugueses, possuem voz, mas escondem o corpo. Podemos imaginar o velho português dono do butiquim revoltado com o freguês que

discutia sobre quem era mais inteligente, se o brasileiro ou o português.

O brasileiro insistindo em urinar no balcão como forma de humilhar os portugueses. O nordestino nem sabia de onde havia trazido essa mágoa que parecia ter

sido colocada pelos ancestrais em seus instintos.

Os portugueses que viviam na região eram trabalhadores de varias categorias. Eles podem ser conhecidos através dos processos judiciais, onde suas

características são descritas. Na sua maioria homens de diversas regiões. Os qualificados como alfabetizados exerciam alguma função administrativa ou no comércio e

os analfabetos em trabalhos braçais.

Do dono de padaria ou boteco ao trabalhador braçal analfabeto ao funcionário público. Personagens dispersos dispostos na paisagem. Conforme observarmos

durante a pesquisa, esses muitos portugueses possuíam características diversas e em muitos momentos confundem-se com a comunidade hebraica durante a segunda

década do século XX. A relação de amizade entre os dois grupos é bastante forte, podendo ser observada nas transações comerciais e nas atividades sociais assim

como nas cerimônias de casamento.

Assim eles aparecem plasmados nos processos judiciais, são uns nomes, alguns dados pessoais e depois jogados como em uma máquina de triturar,

desaparecendo no tempo.

José Rodrigues Prudenciano, exercia a função de jornaleiro, tinha 23 anos, analfabeto, e esteve preso por prática de homicídio na localidade de Vila Murtinho.

Serafim Marques, natural do Porto de 22 anos de idade, solteiro, era analfabeto e exercia a profissão de pedreiro e foi acusado pelo crime de furto.

Antonio de Carvalho exercia a função de auxiliar do comércio, era alfabetizado, solteiro de 28 anos de idade e Adelino dos Santos de 27 anos era solteiro,

empregado do comércio e alfabetizado.

José Morgado Camello, de 32 anos, dono de butiquim, sabendo ler e escrever, foi vítima de disparos de arma de fogo em razão de ter se negado a vender

mais cachaça a um trabalhador pernambucano. O réu alega que os motivos foram patrióticos, rivalidades de brasileiros com portugueses, e que o português o teria

empurrado e que ele não aceitava que um português batesse em um brasileiro. As testemunhas afirmam que o brasileiro estava bêbado e queria urinar no balcão.

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Antonio Soeiro, português, residente em Santo Antonio, industrial, proprietário e comerciante compareceu em juízo para defender-se da acusação de ter sido o

causador de prejuízos a João Lino do Souto por causa de um fogo que teria se alastrado para as plantações do seu vizinho. As testemunhas de João Lino são todas

nordestinas e as de Antonio Soeiro são portuguesas.

José Gomes Parente de 39 anos, solteiro e alfabetizado; Anyceto Rodrigues de 25 anos, analfabeto; José da Silva de 22 anos analfabeto, residente em Porto

Velho; Antonio Antunes Almeida de 33 anos, analfabeto; Manoel Paulo de 32 anos de idade, sabendo ler e escrever.

Tito de Souza e Melo, português que era comerciante em Manaus, mantinha comércio com firmas da localidade de Generoso Ponce.

Manoel Miranda, português de 34 anos, solteiro, alfabetizado, comerciante.

José Lourenço, 29 anos, solteiro, auxiliar do comércio.

Agostinho Videira era comerciante em Esperidião Marques e Guajará-Mirim.

Ilídio Antonio Lopes, português, solteiro, era auxiliar do comércio.

Manoel de Almeida exercia a profissão de Mecânico tinha 39 anos, solteiro, era natural da Beira Alta, Portugal.

Joaquim Malheiros, 25 anos, solteiro, comerciante vivendo em Porto Velho desde 1914. José da Costa, casado, 47 anos, serrador alfabetizado.

Alfredo neves, solteiro, 31 anos, trabalhava na Madeira Mamoré.

José da Silva Soeiro, 22 anos alfabetizado, auxiliar do comércio; Manoel Valente de Almeida, 32 anos, casado, comerciante, alfabetizado.

José Ribeiro de Souza Junior, construtor civil.

Joaquim Ferreira, africano, natural de Penalva do Castelo, Portugal, alfabetizado.

Ignácio dos Santos de 27 anos, artista (carpinteiro) (artesão em geral era qualificado como artista), natural de Lamego, Portugal.

Benjamim Rozas de 28 anos, comerciante, solteiro, natural de Coimbra.

João Soares Braga, de 40 anos, casado, empregado público, natural de Lamego.

Antonio da Costa Dias de 28 anos, solteiro, natural de Beira Alta, Portugal auxiliar do comércio, alfabetizado.

Luiz Ferreira da Silva de 43 anos, solteiro, natural de Portugal, era ferreiro mecânico em Fortaleza do Abunã.

Abel Fernandes, português de 32 anos, solteiro, serralheiro.

Francisco Pereira de Castro, português de 31 anos, solteiro, comerciante em Fortaleza do Abunã, alfabetizado.

Daniel Marques, português de 32 anos, casado, jornaleiro, analfabeto, residente no povoado de Fortaleza do Abunã.

José Pereira Cangalhas residente em Manaus, casado comerciante, comercializava em Porto Velho.

José Cardozo de Macedo de 38 anos, casado, residente em Fortaleza do Abunã.

Joaquim Francisco da Silva de 31 anos, carpinteiro, casado, Fortaleza do Abunã..

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Jose Gaspar Perpétuo, 58 anos, vivia na casa 06 da Estrada de Ferro, agenciador de madeiras, assassinou a tiros em 1930 o português João Veigas que era

contratista de extração de madeira, alfabetizado.

Herculano Teixeira, solteiro, carreiro, maior, alfabetizado.Aníbal da Silva Reis, maior, comerciante, residia em Porto Velho.

Luiz Almeida franco, casado, comerciante em Santo Antonio enviava procuração para Portugal para Antonio Joaquim Felecessimo.

Antonio José Pastor, português, dava procuração ao advogado Manoel Amaro Lopes Pereira com a finalidade de efetuar cobranças de aluguéis dos seus imóveis.

José Pordeus de Alencar, português morador da localidade de Presidente Marques; em 1919 ele requereu a tutela de um menor cuja mãe havia falecido e o

pai encontrava-se em Portugal. No mesmo ano em Dezembro solicitou autorização para venda dos imóveis em nome dos filhos para poder educar os mesmos, vez que

estava se mudando da localidade.

Carlos de Figueiredo, português, exercia a profissão de guarda-livros, vivia na localidade de Porto Velho e impetrou hábeas corpus em favor de Manoel

Almeida, também português, que era encarregado da garagem da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré e foi acusado pelo desaparecimento de peças da Companhia

Madeira-Mamoré.

O português Manoel de Oliveira Campos e sua “concubina” Mercedes Sol Sabbat, marroquina (judia) ele com 26, ela com 25 anos de idade, sofreram processo

por brigas na residência de funcionário da Madeira-Mamoré Railway Company.

Outra fonte importante é o livro de registros de casamentos das uniões realizadas de 1913 a 1916. Os portugueses mais que todos os imigrantes casavam-se

com as mulheres brasileiras. A fixação e adaptação na nova terra ocorriam de forma muito natural favorecidas pelo idioma e por quatro séculos de imigração. O livro

de registros de casamentos de 1913 a 1916 anotou os casamentos realizados na Vila de Santo Antonio do Rio Madeira.

Francisco Ferreira Bastos de 22 anos, português, extrator de goma elástica, casou-se em 1913 com Josepha Maria de Souza, de 16 anos, natural do Ceará.

José Caetano da Silva, de 41 anos, português, viúvo contraiu núpcias com Francisca Carneiro da Paz, de 14 anos, órfã natural do Piauí.

Leopoldina Ferreira de Alcântara, de 18 anos, natural de Portugal, casou-se com Hermilho de Torres Bandeira natural, do Rio grande do Norte, de 40 anos de

idade, agricultor.

José Leitão de Souza, de 33 anos, português, comerciante, casou-se com Beatriz Regina da Penha, de 19 anos, natural do Amazonas. Assinam como

testemunhas membros da comunidade hebraica.

Alfredo Fernandes Garcia de 34 anos, português, casou-se com Jozina Maria da Conceição, de 17 anos, do Amazonas, assinam como testemunhas membros da

comunidade hebraica.

O português José Gonçalves casou-se com Izaura Ferreira de Oliveira, de 16 anos cearense, também com a presença da comunidade hebraica participando

como testemunhas da cerimônia.

Américo José Ribeiro de 27 anos natural de Arco do Val Ver casou-se com Enedina Bentes de Mesquita, de 17 anos, do Amazonas.

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110

Conforme anotamos anteriormente portugueses e judeus tinham relações estreitas. O nome Penha, por exemplo, que aqui aparece às vezes como português,

paraense ou amazonense. O que também ocorre com Mesquita e que conforme Benchimol está relacionado ao povo hebraico (Benchimol, 1999).

Muito embora a colônia portuguesa não tenha o peso da colônia árabe que demarcou espaço social em Guajará-Mirim e em Porto Velho, também teve papel

importante no momento de formação da sociedade. Com maior facilidade que os árabes e judeus foi dissolvida.

BIBLIOGRAFIA

ANTONACCIO, Gaitano. A Colônia Árabe no Amazonas. Manaus. 1996.

BENCHIMOL, Samuel. Amazônia Formação Social e Cultural. Valer. Manaus. 1999.

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WAGLEY, Charles. Uma Comunidade Amazônica. Edusp. São Paulo. 1988.

Page 111: Volume viii 2003

111

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº128 - DEZEMBRO - PORTO VELHO, 2003

VOLUME VIII

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

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IMAGINÁRIO DE GÊNERO E VIOLÊNCIA EM

PORTO VELHO

ARNEIDE CEMIN; CAMILA ALESSANDRA

SCARABEL; MARIA DE FÁTIMA BATISTA DE

SOUZA; SILVANIO DE MATIA GOMES

PRIMEIRA VERSÃO

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Arneide Cemin; Camila Alessandra Scarabel; Maria de Fátima Batista de Souza; Silvanio de Matia Gomes Professora do Departamento de Sociologia e Filosofia – UFRO - Centro de Estudos do Imaginário Social; Aluna do curso de Psicologia – UFRO; Aluna do curso de Psicologia – UFRO; Aluno do curso de Geografia – UFRO [email protected] IMAGINÁRIO DE GÊNERO E VIOLÊNCIA EM PORTO VELHO

O conceito de gênero diz respeito à construção cultural e simbólica das relações entre homens e mulheres, indicando que não existem atribuições

naturais para homens e mulheres que sejam fundadas biologicamente, e sim atribuições sociais, ou seja, papéis: tarefas e valores considerados pertinentes

em cada sociedade às pessoas de cada sexo.

Os dados da pesquisa antropológica indicam que todos os grupos sociais mantêm algum tipo classificação básica que separa as esferas do masculino

e do feminino. Embora partindo da diferença biológica, as atribuições relativas a cada sexo variam conforme nos deslocamos no tempo, no espaço e nas

situações sociais, portanto, elas não são naturais.

Balandier (1976), ao analisar a dinâmica interna aos sistemas sociais, indica que as divisões em classes sociais, em classes de idades e em classes

sexuais são partes estruturais dos processos sociais. Desse modo, as dinâmicas sociais devem ser consideradas nessa tridimensionalidade. A partir disso o

autor indaga como a divisão dos sexos afeta o sistema social e a cultura em seu conjunto, como se exprime em cada uma delas o dualismo sexualizado e o

modo pelo qual a oposição e a complementaridade são, ao mesmo tempo, geradoras de ordem e de desordem social.

Quanto às teorias sociais, o dado mais geral é a afirmação da inferioridade feminina. Em geral, apenas uma função, entre as muitas que a mulher

desenvolve, não é desvalorizada: a função de mãe. De resto, o que se constata, é a pequena participação social da mulher. Em geral, para o homem, a

mulher é o “outro”. Essa alteridade expressa e reforça referencias simbólicas que definem a mulher como elemento antagonista e perigoso, associada em

geral com os aspectos dissolutos e, nesse sentido, anti-social. Considera-se que e o casamento que pode instaurar a positividade da presença feminina, uma

vez que o intercâmbio matrimonial socializa sua sexualidade e articula as sociedades masculina e feminina. Cabe, portanto, averiguar, no que diz respeito às

relações entre os sexos e as estruturais sociais, as situações reais nas quais homens e mulheres se inserem.

Em seu estudo sobre mulheres, relações violentas e a prática feminista, Gregori (1993), analisa o modo pelo qual as mulheres vêem-se a si mesmas e

aos seus parceiros, a fim de pensar como as relações de conflito conjugal se instituem e ganham permanência. A autora indica que no geral as explicações

para a crise doméstica são atribuídas a “... condutas inadequadas de seus maridos: beber, ser mulherengo, ser boêmio, praticar ‘exageros’ sexuais” (Gregori,

1993:140). Gregori reconhece que seu estudo deixou uma lacuna importante ao não analisar o que ela chamou o “lado dos homens”. Ao mesmo tempo, que

falta ao seu estudo, bem como as pesquisas nas quais ela se baseia, a etnografia das condições familiares.

Page 113: Volume viii 2003

ISSN 1517 - 5421 113

Nosso estudo, resultante de uma linha de pesquisa sobre imaginário de gênero, família e violência em Porto Velho, em desenvolvimento no Centro de

Estudos do Imaginário, CEI/UNIR, levou em conta a perspectiva masculina e as condições familiares e sociais, pois entendemos que a violência não deve ser

estudada em abstrato, mas em contextos concretos. Iniciamos o contato com os sujeitos de nossa pesquisa na Delegacia da Mulher28, onde fazíamos uma

primeira abordagem, mediada por questionário e levantamento de rede social; bem como, obtínhamos autorização das pessoas, para realizarmos entrevistas

e o AT- 9 (Teste dos nove arquétipos), em suas casas. O AT- 9 é um teste projetivo, usado em estudos de cultura pela antropologia do imaginário, informada

pela obra de Gilbert Durand (1997). Observamos também, o contexto urbano, o modo como as pessoas estão inseridas na cidade. Nesse artigo apresentamos

os resultados parciais da pesquisa.

RESULTADOS PARCIAIS DA PESQUISA: OS FUNDAMENTOS DA UNIÃO

Para o estabelecimento da união, no caso das mulheres, mesmo dizendo sentir afeto pelo homem, o que elas destacam é a necessidade material e a

fragilidade social como motivo para casar, uma vez que saem da primeira parceria sexual, grávida ou com filho pequeno e acreditam que não podem dar conta de

sua vida sozinha. São mulheres que não concluíram o primeiro grau, e, sem profissão, optam pelo casamento como solução para as suas dificuldades.

As relações sexuais iniciam-se precocemente, essas mulheres têm filho antes dos dezoito anos de idade, o parceiro sexual, casado ou quando muito

jovem não tem maturidade e nem capacidade econômica de se responsabilizar pela manutenção de uma família, pois além de não ter qualificação

profissional, geralmente ainda não tem trabalho fixo formalizado e aquilo que consegue é destinado para contribuir com a renda de sua família nuclear (seus

próprios pais e irmãos).

Quanto às mulheres, mesmo quando não acontece a pressão familiar para que a filha grávida deixe a casa dos pais, a mulher é acusada de desonrar

a família e de perder valor no mercado matrimonial, desta forma entende que sua escolha de parceiro não pode ser exigente, sobre isso elas dizem: “eu mãe

de filho, não tinha nada a perder”.

Por este motivo procuram manter um relacionamento com homens mais experientes (mais velhos que elas), já que este tipo de homem se encontra

neste momento estabelecido em algum ramo de atividade econômica. A aceitação, por parte deles, dos filhos que elas trazem de outra relação é vista como

qualidade positiva deles que elas apreciam muito. Assim, além das garantias de sobrevivência para ela e o filho, existe a convicção socialmente estabelecida

de que cabe ao homem o sustento da casa, deste modo uma entrevistada afirma: “eu moro com uma pessoa é para ser ajudada”.

28 Agradecemos a Dra. Walquiria Boaventura Monfroi, Delegada da Delegacia da Mulher de Porto Velho, a autorização de acesso aos dados necessários ao nosso trabalho de pesquisa.

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Em relação aos homens, contrariando o senso comum, que atribui o sentimentalismo às mulheres, são eles que ressaltam com ênfase a paixão inicial;

embora isto não descarte a questão material, que se apresenta como necessidade de alguém para cuidar da casa, e para educar filhos oriundos de outros

relacionamentos, principalmente se esses filhos são do sexo feminino. Eles também dão ênfase ao fato da necessidade de uma parceira sexual.

Desse modo, o homem vê concretizar-se o seu desejo de “conquistar” uma mulher e constituir uma família. Mulheres mais velhas ou as operadas

para não ter filhos foram classificadas por um entrevistado como “deficiente” porque não podem “render família”, ou seja, ter filhos.

De acordo com o modelo de família tradicional, além da capacidade da mulher para ter filhos e a exigência da fidelidade conjugal para a vida toda,

surge a noção de que o homem deve ser o provedor do lar. Assim, uma entrevistada sintetizou o sentido do conflito provocado pelas transformações sociais

contemporâneas, ao dizer: “hoje em dia os homens querem escrava para trabalhar fora e dentro e dentro de casa. Mesmo doente tem que trabalhar. Hoje

eles não querem mulher pra eIes sustentar.”

IMAGINÁRIO DE GÊNERO, VIOLÊNCIA E TRABALHO FEMININO.

A questão do trabalho feminino fora de casa aparece com freqüência no contexto da violência de gênero. Durante o casamento algumas mulheres se

fortalecem retomando os estudos, fazendo cursos profissionalizantes e entrando no mercado de trabalho, isso provoca mudanças no comportamento delas,

vistas como negativas pelos homens. Instala-se o conflito interno, o conflito simbólico, através da violência verbal, com as categorias de acusação mais

freqüentes desqualificando o comportamento sexual da mulher.

Em outro tipo de situação, o marido desempregado e sem qualificação profissional, fica longos períodos sem renda, realizando apenas trabalhos

temporários, os “bicos”29. Percebe que a separação pode acontecer por questões limites, como a fome gerada pelo desemprego ou falência econômica, já que

a mulher está limitada ao espaço da casa e muitas vezes impedida por eles, de trabalhar. A mulher, por sua vez, segundo os homens, tem maior facilidade de

entrar no mercado de trabalho, iniciando e muitas vezes permanecendo durante toda a vida como empregada doméstica (sem carteira assinada) e, as que

retomam os estudos, geralmente fazem cursos profissionalizantes nos setores auxiliares, como Auxiliar de Enfermagem, por exemplo.

Segundo todos os homens e algumas mulheres dentre as que entrevistamos, a mulher deve restringir-se ao espaço doméstico, apenas em

determinados momentos de dificuldade financeira do casal, é que a mulher pode contribuir trabalhando fora de casa, desde que não altere o projeto de vida

do homem – “o trabalho não deve atrapalhar o comportamento da esposa”.

29 Atividades como detetização de casas, limpeza de quintais, auxiliar na construção civil, trabalhos que tem duração relativa entre dois a vinte dias.

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Outras mulheres nos disseram da falta de compreensão do marido em relação as suas necessidades em terem um trabalho fora de casa, pois o

trabalho doméstico é monótono e cansativo, e causa sensação de aprisionamento. Freqüentemente elas dizem precisar de “uma certa liberdade”; muitas

vezes identificando a casa com a prisão e o marido com um ditador que não está aberto ao dialogo.

Uma outra mulher, mesmo trabalhando de doméstica, diz que “os homens hoje em dia, querem escrava, que trabalhe em casa e fora de casa”,

mostrando a falta de solidariedade masculina na divisão do trabalho doméstico e na educação dos filhos; alem de que, muitas vezes, segundo elas, “o homem

não cumpre suas obrigações com a família” – obrigação de mantenedor da família. Isto é dito principalmente pelas mulheres que tem a preferência de

trabalhar em casa, só buscando trabalho fora de casa quando o marido está desempregado ou devido ao fim da união.

Quando os filhos já não estão dependentes de cuidados especiais, como no período de amamentação e nos primeiros anos de vida, a mulher procura

com maior insistência mudar sua situação econômica através do trabalho, tendo com isso uma rotina intensa que normalmente é identificada pela sua

mobilidade: “da casa pro trabalho, do trabalho pra escola e da escola pra casa”, acumulando dupla jornada de trabalho (em casa e fora de casa), e de

estudo, somando cerca de doze horas de trabalho/dia.

Esta situação também provoca momentos tensos na relação, uma vez que o marido constrangido pelo que identifica como inversão de papéis, investe

maior pressão e, muitas vezes, agressão física com intenção de fazer a mulher desistir dos seus planos profissionais: pois normalmente, essas mulheres tendo

saído do isolamento domestico, são incentivadas pelas patroas, amigas de trabalho e de escola ou vizinhas, na decisão de denunciar o parceiro que a agride,

na Delegacia da Mulher.

O ritmo casa, trabalho, escola diminui o tempo de convívio da mulher com os filhos, que, na ausência de familiares e de creches publicas (quase

inexistentes), ficam em casa sozinhos, com graves conseqüências para o seu desenvolvimento físico e intelectual. O homem entende que o cuidado da casa e

dos filhos é dever da mulher. Em um caso, quando a mulher começou a trabalhar fora por causa da falência econômica de seu marido, ele assumiu a

organização do espaço doméstico, como limpar a casa, preparar a alimentação e cuidar da educação dos filhos, por um período de dois anos. Ele queria, com

sua presença em casa, assinalar a ausência dela. E ela nos disse sobre este mesmo fato: “durante esses dois anos, ele não trabalhava, já que eu não queria

ser mulher dele [na cama], então ele não ia trabalhar pra mim”.

Podemos observar que mesmo a mulher conquistando um espaço antes destinado ao seu marido, o imaginário dominante é determinado pela mesma

lógica que antes a submetia: a mulher como objeto de satisfação sexual do homem, sem que ele tenha compromissos com o cuidado da casa e dos filhos, e

sem consideração com as aspirações e as condições de vida da mulher, que, se melhoradas, poderiam inclusive contribuir para a vida sexual do casal.

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SEXO, VIOLÊNCIA E SEPARAÇÃO.

No contexto dos problemas do casal e da separação, a recusa da mulher em fazer sexo com o marido é o indício, para ele, de que o casamento acabou.

Essa situação chega a durar alguns meses, com isso os maridos se predispõem a ações de violência física e verbal contra suas mulheres. Os homens minimizam o

uso que fazem da violência física, dizendo que não havia violência entre o casal, quando a admitem, dizem que fizeram uso dela em legitima defesa.

A violência, de acordo com Maffesoli, não ocorre de modo arbitrário, mas implica um certo grau de “ritualização”. Observamos que cada

gênero utiliza melhor certo tipo de violência: as mulheres procuram controlar a situação de conflito pela violência simbólica através das categorias de

acusação (palavrões, xingamentos), “visitas” furtivas a carteira do marido, em busca de dinheiro que elas supõem esteja sendo gasto com mulheres e

bebidas. Os homens, utilizando também a violência simbólica, buscam se impor pela violência física. Identificamos os estágios de ritualização na constituição

do rompimento; percebendo ainda que esta ruptura acontece em um contexto de violência.Vejamos os estágios de ritualização:

a) Violência simbólica: categorias de acusação. Os dois fazem uso, mas geralmente é a arma da mulher. A mulher evitando a relação sexual, o

homem responde a este fato com violência simbólica e física, depreciando e agredindo a mulher, inclusive na frente dos filhos.

b)Violência física: a mulher leva a pior e o homem sente-se culpado (o problema é “superado”, estabelece-se o perdão diante do constrangimento

do casal). Funciona como uma válvula de escape das tensões individuais e sociais vivenciadas no relacionamento: desemprego, fome, desafios da “nova

ordem econômica”, relação extra-conjugal, entre outros. Os estágios a e b podem acontecer juntos.

c) Continuidade da união: constituindo um círculo vicioso, retornando aos estágios a e b.

d) Separação: proposta na maioria das vezes pela mulher, quase sempre o homem não aceita o fim do relacionamento. Nesse estágio a ameaça de

morte, as agressões físicas e a pressão para retomar a união são uma constante por parte dos homens. Esta situação de ameaças e agressões pode levar a

mulher a retomar a relação, ou seja, retornar ao estágio c.

e) A presença do Estado: a mulher busca junto a Delegacia da Mulher a garantia de sua vida, além da formalização da separação e da garantia

dos direitos á pensão alimentícia dos filhos, buscando romper o ciclo do silêncio e da submissão.

Nossa pesquisa também mostrou, através do levantamento de rede social, que as pessoas estão isoladas, tendo a maioria somente o apoio de frágeis

estruturas familiares. A pouca presença em instituições comunitárias, a exemplo de associações de bairros, profissionais, educacionais, culturais e políticas,

evidencia vazios de sociabilidade que agravam as desagregações sociais.

A Delegacia da mulher, segundo nossa pesquisa, é um importante recurso para refrear a violência sexista contra a mulher. No entanto, seriam

necessárias outras modalidades de serviços além do jurídico-penal. Serviços dirigidos não só para as mulheres como também para os homens, a exemplo de

orientação psicológica quanto às perdas afetivas e as funções materna e paterna.

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O resultado do At-9 evidenciou o distanciamento das mulheres de práticas sociais que permitam a apropriação de tecnologias capazes de inseri-las

em contextos propícios a sua autonomia e ao desenvolvimento de seu potencial de vida. Assim, necessitamos de políticas públicas que viabilizem a ascensão

social das mulheres, a exemplo dos cursos profissionalizantes e de campanhas de escolarização feminina. Além de um efetivo trabalho de organização social

das mulheres para a conquista de direitos.

Constatamos que a Casa Abrigo é necessidade urgente para as mulheres em situação de risco de vida, face as constantes ameaças e as praticas

assassinas que os homens dirigem contra elas. Além disso, a ausência do poder público quanto às creches e a pré-escola, retardam o retorno da mulher ao

estudo, dificultando o seu acesso ao trabalho fora de casa.

As mulheres que vivenciaram a experiência de denunciar os seus agressores, e que conseguiram, via separação, sair do ciclo vicioso da violência

sexista, afirmaram que se fortaleceram, perdendo a “ingenuidade” e tendo coragem de enfrentar os desafios de conduzir a família política e economicamente,

bem como, seus novos relacionamentos.

O fundamento do poder social do macho, segundo Balandier, é a redução da mulher ao estado instrumental colocando-a a serviço da comodidade

masculina. Os determinantes da instrumentalização seriam: o confinamento da mulher ao espaço doméstico; a falta de um viver feminino que permita às

mulheres as trocas de experiências e a identificação de seus interesses, a equiparação da condição feminina à condição de minorias, a depreciação do

trabalho feminino.

Desse modo, a divisão sexista, superpõem-se à divisão de classes e hegemoniza o universo social com os atributos designados como masculinos. O

resultado desse imaginário, sustentado por práticas sociais também discriminatórias e abusivas, é a condenação das mulheres a submissão e ao silêncio.

Sabemos que a relação de gênero é o fundamento mesmo da reprodução social, pois é o lugar dos processos primários de socialização, elaborados

em um quadro institucional que chamamos de família. É no âmbito da família que se reproduz o modo de construção social de gênero. O poder sexista do

macho e suas formas de exercício se espraiam em um imaginário que é misto de coerção e persuasão, encontrando expressão na música, e nas práticas

estabelecidas em escolas e locais de culto, de trabalho e de lazer.

As condições para a construção de direitos sociais e políticos passam por uma redefinição do modelo patriarcal de reprodução social. Um aspecto a

ser considerado é a divisão social do trabalho com a casa e com os filhos, bem como, a participação de homens e mulheres na sustentação econômica da

família e de si mesmo. Além disso, o respeito ao corpo e as diferenças quanto aos valores do outro, o que implica capacidade de diálogo.

Questionar o poder masculino implicaria, segundo Balandier, equacionar o velho problema da articulação entre as duas metades fundantes do social:

as sociedades masculina e feminina em um processo de conhecimento e de reconhecimento mútuos.

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ISSN 1517 - 5421 119

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