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Vítor Manuel Fernandes Oliveira de Sousa Uminho|2015 julho de 2015 Universidade do Minho Instituto de Ciências Sociais Da 'portugalidade' à lusofonia Vítor Manuel Fernandes Oliveira de Sousa Da 'portugalidade' à lusofonia

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  • Vtor Manuel Fernandes Oliveira de Sousa

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    julho de 2015

    Universidade do MinhoInstituto de Cincias Sociais

    Da 'portugalidade' lusofonia

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    nia

  • Trabalho realizado sob a orientao doProfessor Doutor Moiss Ado de Lemos Martins

    Vtor Manuel Fernandes Oliveira de Sousa

    julho de 2015

    Universidade do MinhoInstituto de Cincias Sociais

    Da 'portugalidade' lusofonia

    Tese de Doutoramento em Cincias da Comunicao Especialidade em Teoria da Cultura

  • iv

  • v

    Agradecimentos

    A meus pais, Irene e Alfredo, por serem como so. E por serem peas fundamentais e

    estarem sempre (ativamente) presentes nesta caminhada.

    Goreti, a pea-chave deste meu percurso. Uma presena diria e que relativizou os

    (muitos) devaneios do meu processo produtivo em que teve, durante muito tempo, uma

    concorrente de peso: a portugalidade.

    minha irm, cujo esprito crtico e a sugesto de alguns caminhos se revelaram

    fundamentais na minha investigao.

    Ao meu orientador, Professor Doutor Moiss de Lemos Martins, por me ter colocado nos

    trilhos da investigao na rea da Cultura. Tambm pela liberdade que me deu no

    desenvolvimento da minha investigao, instigando-me sempre a seguir o meu caminho e a

    defender as minhas ideias, debatendo-as comigo e sublinhando determinadas particularidades. E

    pelas conversas tidas ao longo deste percurso, que me ajudaram a simplificar o olhar e me

    incentivaram a querer ir sempre mais alm. E, last but not least, por ser como .

    Destaco, especialmente, os professores Manuel Pinto e Francisco Mendes. E a Ana

    Melro, a Ricardina Magalhes e o Mrio Gaspar.

    Uma palavra para os amigos que constituram uma verdadeira rede sobre a

    portugalidade e atravs dos quais obtive algumas pistas e uma srie de contributos importantes

    para a minha investigao. O que aconteceu, tambm, de outras formas: atravs de conversas,

    de troca de bibliografia, por mensagens de correio eletrnico A todos, o meu obrigado.

    Aos contributos enriquecedores daqueles que assistiram s minhas comunicaes em

    eventos cientficos, com quem debati as minhas ideias, testando as minhas propostas de

    investigao, de onde saram algumas pistas que se revelaram importantes para a presente

    investigao.

  • vi

  • vii

    L vais tu, caravela l vais e a mo que ainda me acena do cais dar a esta outra mo a coragem de em frente, em frente seguir viagem Ser que existe mesmo o levante? ando s ordens do nosso infante e c vou fazendo os possveis ei, deita a mo a este remo alm, so s paragens do demo quem sabe, s um abismo suspenso s vendo, mas o nevoiro denso Ser que existe mesmo o levante ando s ordens do nosso infante e c vou fazendo os possveis Mas parai, trago notcias horrveis parai com tudo j avisto os nossos conquistadores Vm num bote de madeira talhado em caravela com um soldado de madeira a fingir de sentinela com uma espada de madeira proferindo sentenas enterrada que ela foi no corao doutras crenas enterrada que ela foi, sua sombra era uma cruz exigindo aos que morriam que gritassem: Jesus! com um caixilho de madeira imortalizando o saque colorindo na vitria as armas brancas do ataque at que povos massacrados foram dizendo: Basta at que a mesa do Comrcio ainda posta e j gasta acabou como jangada para evacuar fugitivos da fogueira incendiada pelos outrora cativos e debandou nossa costa a transbordar de remorsos mas a rejeitar a culpa e ainda a pedir reforos Srgio Godinho. (1979). Os Conquistadores (Campolide). Porto: Orfeu.

    Tudo o que nos abandona demora muito tempo para desaparecer. Antnio Lobo Antunes. (2013). Quinto Livro de Crnicas (p. 51). Lisboa: D. Quixote.

    () o rei D. Lus quando, [ia] j bem adiantado o sculo XIX, perguntava do seu iate a uns pescadores com quem se cruzou, se eram portugueses. A resposta foi bem clara: Ns outros? No, meu Senhor! Ns somos da Pvoa do Varzim!. Jos Mattoso.(2008). A Identidade Nacional (14). Lisboa: Gradiva.

    Agora sei-o. Mas nesse tempo ainda tudo estava para acontecer. De um momento para o outro poderia dar-se o milagre, ter comeo a aventura. E porque no encontrava escape para a minha impacincia, umas vezes subia o monte numa corrida de possesso, outras arranjava um barco e remava rio acima, rio abaixo. O mesmo rio que agora me parece alheio, porque eu prprio sou to outro. J. Rentes de Carvalho. (2011 [1994]). La Coca (186). Lisboa: Quetzal

  • viii

  • ix

    Da portugalidade lusofonia

    Resumo

    A presente investigao pretende observar de que modo a 'portugalidade' - termo

    cunhado durante o Estado Novo assente num imaginrio colonial centrado em Portugal, num

    patamar supostamente superior s suas ex-colnias - pontua a construo de um conceito ps-

    colonial, o da lusofonia.

    Na sequncia da revoluo do 25 de abril e em resultado do corte ideolgico com o

    regime deposto, este conceito, aps um hiato, no entanto reintroduzido, seja atravs da classe

    poltica, dos profissionais de marketing ou de branding, ou pela via de situaes aleatrias.

    O certo que a palavra est ausente dos dicionrios de referncia portugueses, bem

    como das enciclopdias. As tentativas de fixar o significado da palavra vo sendo desenvolvidas

    pelos dicionrios mais comuns, muito embora o faam com um ngulo de tal modo aberto que,

    mais do que tipific-lo, alimentam os equvocos que lhe esto subjacentes. Defende-se, por isso,

    que a palavra portugalidade seja tipificada, contextualizando-a.

    O conceito portugalidade decorre de uma lgica estado-novista para que as ex-colnias

    fossem vistas pela ONU no como territrios autnomos, mas como parte integrante do territrio

    portugus (provncias ultramarinas), corroborado pelo discurso parlamentar da Assembleia

    Nacional, a partir de 1951 (data da revogao do Ato Colonial), pela introduo da palavra nos

    discursos dos deputados. Toda essa estratgia ia no sentido de combater os movimentos

    independentistas que emergiam nas antigas colnias, defendendo a pertena desses territrios a

    Portugal, por via do seu destino histrico. Esse facto seria sublinhado no discurso poltico da

    portugalidade, com a assuno de Portugal, como um pas uno e indivisvel: Portugal do

    Minho a Timor.

    Tendo-se desmoronado a maior parte dos imprios com o fim da II Guerra Mundial, no

    caso portugus o assumido imprio prolongar-se-ia por mais trs dcadas. De que forma que

    toda essa dinmica se refletiu na lusofonia? possvel encarar a lusofonia centrada em Portugal,

    como produto da portugalidade? Faz sentido essa perspetiva quando a globalizao esbateu as

    fronteiras e diluiu as singularidades identitrias, permitindo que se perspetivassem relaes

    multiculturais e/ou interculturais?

  • x

    Em resultado desta investigao pode concluir-se que, sendo a lusofonia uma

    construo de difcil concretizao, um processo prenhe de clivagens entre os pases integrantes

    da CPLP (o que se pode constatar atravs da observao do seu histrico relacional), ela pode

    desembocar numa utopia, caso no se desfaam os equvocos em que navega: as narrativas do

    antigo Imprio e a sua associao a uma centralidade portuguesa, o luso-tropicalismo associado

    ideia de colonizao doce e a sua rejeio por parte de quem est ressentido com a

    colonizao dos portugueses, os outros das ex-colnias (Martins, 2014). Desta forma, no

    poder existir lusofonia com portugalidade, sendo mesmo um contrassenso avanar com tal

    associao.

    Mesmo que os polticos a ela ligados insistam em adi-la, a lusofonia deve ser feita por

    quem a encara com uma dinmica cosmopolita resultante da globalizao, de forma a permitir

    combater um dos outputs dessa mesma globalizao: a homogeneizao cultural. Para

    concretizar esse desiderato, necessrio que quem pretenda coloc-la em prtica, esteja

    mentalmente descolonizado para que os equvocos que lhe esto associados possam

    desaparecer. A lusofonia dever ser construda, assim, diariamente.

    Palavras-chave:

    Estado Novo; portugalidade; lusofonia; identidade; interculturalismo

  • xi

    From Portugalidade to Lusophony

    Abstract

    This research aims to observe how the 'Portugalidade' - a term coined during the Estado

    Novo a result of a colonial imaginary centered in Portugal, in a supposedly superior level to its

    former colonies - punctuates the construction of a post-colonial concept, the concept of

    Lusophony.

    After the revolution of April 25 (The Carnation Revolution) and as a result of an

    ideological break from the previous regime, this concept has been however reintroduced, either

    through the political class, through marketing or branding professionals, or by means of random

    situations.

    The truth is that the word is absent from most Portuguese reference dictionaries, and

    encyclopedias. Attempts to determine the meaning of the word are being developed by the most

    common dictionaries, although they do so in such an open way that rather, more than typifying it,

    they feed the misconceptions underlying it. It is argued, therefore, that the word 'Portugalidade'

    should be exemplified, by contextualization.

    The concept 'Portugalidade' results from the objective of the Estado-Novo, to let its

    former colonies be recognized by the United Nations not as non-autonomous territories, but as

    part of the Portuguese territory (overseas provinces). This concept was reinforced by the

    parliamentary political speeches of the National Assembly members, from 1951, abolition date of

    the Ato Colonial (Colonial Act). All this strategy aimed to combat the independence movements

    that emerged in the former colonies, defending that these territories belonged to Portugal, via its

    'historical destiny'. This fact was underlined in the political discourse of 'Portugalidade', with the

    assumption of Portugal, as a unified country: Portugal from "Minho to Timor.

    With the end of World War II, most of the empires collapsed whereas in the Portuguese

    case the assumed 'empire' would extend for over three decades. How was all this dynamic

    reflected in the Portuguese-speaking world? Can Lusophony be centered in Portugal, as a product

    of the 'Portugalidade'? Does this perspective make sense when globalization has brought down

    the boundaries and diluted the singular identities, allowing you to envisage relations based on

    multiculturalism and interculturalism?

  • xii

    As a result of this investigation it can be inferred that the Lusophony is a difficult

    construction to achieve in a process full of dividing lines among the member countries of the

    CPLP (which can be seen by observing their relational history) and that it can develop into an

    utopia if the misconceptions which surround it are not solved: the narratives of its ancient

    empire, its association with a Portuguese centrality, the Luso-tropicalism and sweet colonization

    idea and its rejection by those who are resentful of the colonization of the Portuguese, the 'other'

    from former colonies (Martins, 2014). Therefore, Lusophony cannot coexist with 'Portugalidade',

    and it is even an absurdity to move forward with such an association.

    Even if politicians insist on postponing it, Lusosphony should be made by those who look

    at it from a cosmopolitan perspective resulting from globalization, in order to combat one of the

    outputs of globalization: cultural homogenization. In order to achieve this aim, those who want to

    put it into practice, should be mentally 'decolonized' so that the misunderstandings associated to

    it, could disappear. The Lusophony should be built, so-to-speak on a daily basis.

    Keywords:

    Estado Novo; Portugalidade; Lusophony; identity; interculturalism

  • xiii

    ndice

    Introduo, questes metodolgicas e organizao da investigao 1. Introduo 1 2. Questes metodolgicas 7 3. Organizao da investigao 13

    Captulo I 1. Das noes clssicas de estado, nao e de estado-nao crise de paradigmas e s suas implicaes na formao da identidade nacional

    17

    1.1. O estado, a nao e o estado-nao 17 1.2. A subjetividade da identidade nacional: Teorias sobre a identidade 20 1.3. O nacionalismo e a identidade nacional 22

    2. A memria coletiva e a Histria 36 3. O patriotismo 41 4. O caso portugus 45

    4.1. Existe uma cultura portuguesa? 56 4.1.1. Cultura dos imigrados e culturas de origem 59 4.1.2. Tradio cultural e culturas mistas 61

    4.2. Portugueses e identidade: uma boa relao 64 4.2.1. Nacionalismo e Patriotismo na Sociedade Portuguesa Actual (IDN-ICS, 1988)

    64

    4.2.2. International Social Survey Programme-ISSP, 2003 (Identidade Nacional)

    65

    4.2.3. O que une os portugueses? (Universidade Catlica/Cmara de Comrcio e Indstria Portuguesa), 2014

    66

    4.3. A marca Portugal 66 5. A identidade em tempo de crise. A perda de soberania dos estados, os apelos ao patriotismo e a incerteza do futuro.

    72

    5.1. A(s) identidade(s) 74 5.2. As crises e as identidades 77 5.3. Os apelos ao patriotismo 78 5.4. A crise do futuro e o futuro da crise 81

    Captulo II 1. Estado Novo e portugalidade 83

    1.1. A propaganda do Estado Novo 94 1.2. Portugal Vasto Imprio 101 1.3. O luso-tropicalismo 112 1.4. O Estado Novo e a cunhagem da portugalidade 117

    1.4.1.Hispanidade, inglesidade e portugalidade 124 1.4.2. A criao da portugalidade 129

    1.5. A Exposio do Mundo Portugus (1940) 142 1.5.1. A Exposio do Mundo Portugus atravs do documentrio Fantasia Lusitana, de Joo Canijo

    143

    1.5.1.1.Um olhar sobre a identidade 147 1.5.1.2. O Estado Novo e a construo da verdade 148 1.5.1.3. Fantasia Lusitana: uma dupla fantasia 149

    1.6. Representaes da portugalidade 150

  • xiv

    1.6.1. Joana Vasconcelos e a portugalidade 151 1.6.2. A 'portugalidade' e o Servio Pblico de Mdia 152 1.6.3. Zeinal Bava, a Portugal Telecom e uma espcie de portugalidade 153 1.6.4. Reavaliao da noo de portugalidade 153 1.6.5. A portugalidade e D. Sebastio 153 1.6.6. O ser e o destino portugueses: uma teoria sobre a portugalidade 154 1.6.7. Portugalidade: Vises Alegricas? 154 1.6.8. A nova portugalidade atravs da msica 155 1.6.9. O fadista Ricardo Ribeiro e a portugalidade 155 1.6.10. Ordem de Ourique: a associao promotora de portugalidade 155 1.6.11. O grupo Portugality 156 1.6.12. Portugalidade: O que nacional bom? 157 1.6.13. A origem Portugal e a portugalidade 157 1.6.14. A Sagres e a ideia de reposicionar o posicionamento da portugalidade

    157

    1.6.15. Os lenos dos namorados e a portugalidade da TAP 158 1.6.16. A portugalidade em cautelas 158 1.6.17. A Vulcano e a portugalidade 159 1.6.18. A portugalidade e o turismo cultural 159 1.6.19. A ltima edio do jornal "O Retornado" e a 'portugalidade' 159 1.6.20. A 'portugalidade' de um crtico de TV do DN... 160 1.6.21. Uma primeira pgina do DN dedicada portugalidade 160 1.6.22. Intempries e portugalidade 160 1.6.23. Um clube de futebol madeirense que no tem nada a ver com a portugalidade

    161

    1.6.24. Um olhar pela 'portugalidade' atravs da morte de Eusbio 161 1.6.25. A portugalidade declinada no plural 1 161 1.6.26. A portugalidade declinada no plural 2 162 1.6.27. A portugalidade declinada no plural 3 162 1.6.28. O Drago de Portugal: um smbolo da portugalidade 162 1.6.29. Restaurao rpida aposta na portugalidade 162 1.6.30. Livros com portugalidade na capa 163 1.6.31. A portugalidade da Suazilndia 164

    Captulo III O discurso parlamentar portugus e a utilizao da palavra portugalidade 165

    1. Assembleia Nacional (1935-1974) 173 1.1. A portugalidade: as colnias e as ex-colnias ultramarinas 175 1.2. A portugalidade: educao, juventude, nao, ruralidade, restaurao nacional e lngua portuguesas

    188

    1.3. A portugalidade: homenagem e evocao de personalidades 196 2. Assembleia da Repblica (1976-2012) 199

    2.1. A portugalidade: emigrao, dispora, lngua e cultura portuguesas 201 2.2. A portugalidade: homenagem e evocao de personalidades 208 2.3. A portugalidade como arma de arremesso poltico 209 2.4. Definies para o conceito de portugalidade 210 2.5. A portugalidade: educao, associativismo e juventude 210 2.6. A portugalidade: as relaes dos portugueses com o povo judeu e o Grupo 211

  • xv

    Jernimo Martins 3. O discurso parlamentar, a utilizao da palavra portugalidade e o seu contexto 215

    Captulo IV

    A tentativa de fixao de um perfil para o portugus e a portugalidade produzida na bibliografia

    229

    1. Em Defesa da Portugalidade, de Alfredo Pimenta (1947) 249 2. Iderio de portugalidade. Conscincia da Luso/Tropicalidade, de Antnio Ferronha (1969)

    255

    3. Por uma portugalidade renovada (1973) e Portugal e o Futuro (1974), de Antnio de Spnola

    279

    3.1. Por uma portugalidade renovada (1973) 279 3.2. Portugal e o Futuro (1974) 290

    4. A Histria de Portugal e a portugalidade. A viso de F. da Cunha Leo atravs de O Enigma Portugus (1960) e do Ensaio de psicologia portuguesa (1971)

    294

    4.1. O Enigma Portugus (1960) 294 4.2. Ensaio de psicologia portuguesa (1971) 286

    5. A portugalidade enquanto Biografia de uma Nao, de Domingos Mascarenhas (1982)

    301

    6. D. Nunlvares Pereira: um exemplo de portugalidade 307 7. As relaes entre Portugal e Espanha e a portugalidade 310

    7.1. O ponto de vista de Jos Fernandes Fafe 310 7.2. A perspetiva de Antnio Sardinha 317 7.3. Almeida Garrett: Portugal independente ou ligado a Espanha? 325 7.4. F. da Cunha Leo: as diferenas entre portugueses e espanhis 328 7.5. A defesa de uma Unio Ibrica, de A. H. Oliveira Marques (1975 e 1976) 331

    8. Antnio Quadros: uma viso teleolgica da portugalidade 336 9. Agostinho da Silva: a portugalidade no mundo lusfono 345 10. A introduo portugalidade de Vtor Manuel Adrio (2002) 358

    10.1. A Academia de Letras e Artes e a portugalidade 365 11. Mitologia , esoterismo e portugalidade 367 12. A obsesso de Onsimo Teotnio Almeida pela portugalidade 372

    Captulo V A lusofonia: equvocos e constrangimentos de um termo pouco consensual 385

    1. A construo da lusofonia 387 2. A ideia de Imprio e o caso portugus 401

    2.1. Os estudos ps-coloniais como resposta da periferia ao domnio do centro 405 2.2. Ps-colonialismo: o caso portugus 408 2.3. Ps-colonialismo, imprio e lusofonia 415

    3. A CPLP 437 4. Lusofonia e portugalidade 446 5. Clivagens nos mdia 454 6. Equvocos da lusofonia 458

    Concluses 469

  • xvi

    Bibliografia 487

    Anexos 527

  • xvii

    Lista de Tabelas

    Tabela 1: Frequncia da utilizao da palavra portugalidade nos discursos dos deputados da Assembleia Nacional por legislatura (12-01-1935 a 24-04-1974)

    198

    Tabela 2: Frequncia da utilizao da palavra portugalidade nos discursos dos deputados da Assembleia da Repblica por legislatura (03-06-1976 a 14-09-2012

    213

    Lista de Grficos

    Grfico 1: Frequncia da utilizao da palavra portugalidade nos discursos dos deputados da Assembleia Nacional por temas (12-01-1935 a 24-04-1974)

    197

    Grfico 2: Frequncia da utilizao da palavra portugalidade nos discursos dos deputados da Assembleia Nacional por ano (12-01-1935 a 24-04-1974)

    198

    Grfico 3: Frequncia da utilizao da palavra portugalidade nos discursos dos deputados da Assembleia Nacional por legislatura (12-01-1935 a 24-04-1974)

    199

    Grfico 4: Frequncia da utilizao da palavra portugalidade nos discursos dos deputados da Assembleia da Repblica por temas (03-06-1976 a 14-09-2012)

    212

    Grfico 5: Frequncia da utilizao da palavra portugalidade nos discursos dos deputados da Assembleia da Repblica por ano (03-06-1976 a 14-09-2012)

    214

    Grfico 6: Frequncia da utilizao da palavra portugalidade nos discursos dos deputados da Assembleia da Repblica por legislatura (03-06-1976 a 14-09-2012)

    214

    Grfico 7: Frequncia da utilizao da palavra portugalidade na Assembleia da Repblica por partido poltico (03-06-1976 a 14-09-2012)

    215

  • xviii

  • 1

    Introduo, questes metodolgicas e organizao da investigao

    1. Introduo

    Confesso que foi apenas em 2010 que, pela primeira vez, ouvi falar em portugalidade.

    Tratou-se de uma palavra que, de imediato, me provocou uma grande interrogao. Eu, que em

    quase toda a minha vida profissional havia sido jornalista e realizado, por conseguinte, vrias

    entrevistas e reportagens, utilizando diariamente o portugus como instrumento integrante do

    meu processo produtivo, sentia-me desconcertado perante uma palavra, aparentemente simples,

    mas para a qual eu no conseguia fazer corresponder qualquer significado, uma vez que nunca

    me tinha deparado com ela. Tratou-se de uma situao que, para alm de intrigante, me causou

    algum embarao devido minha impossibilidade explicativa.

    Tudo aconteceu enquanto conduzia numa autoestrada portuguesa, ouvindo um debate

    radiofnico sobre um assunto do qual j no me lembro, mas em que retive aquela palavra que

    parecia ter feito rudo no discurso dos intervenientes. At ao meu destino, a portugalidade j

    no me saiu mais da cabea, pelo que, logo que pude, fui pesquisar na Internet na tentativa de

    ver esclarecida a minha curiosidade. Tratar-se-ia de um neologismo?

    A tentativa de esclarecimento revelou-se problemtica: havia portugalidades para todos

    os gostos e feitios: desde marcas de eletrodomsticos a ela associados, a textos em blogues

    relacionados com alegadas marcas identitrias ligadas a Portugal, passando pela

    afirmao/diferenciao de Portugal quando colocado perante outro pas, mormente em relao

    a territrios de lngua oficial portuguesa, que tinham sido colnias portuguesas, ou pela definio

    dos dicionrios online, onde a palavra era traduzida polissemicamente como: Qualidade prpria

    do que portugus, Carter especfico da cultura ou da histria de Portugal ou Sentimento

    de amor ou de grande afeio por Portugal. Estas propostas no me satisfizeram, uma vez que

    estavam ancoradas em conceitos problemticos, remetendo para uma possibilidade

    interpretativa bastante alargada e com um recorte subjetivo. No local onde me encontrava

    consegui, tambm, consultar o dicionrio de lngua portuguesa publicado pela Porto Editora,

    utilizado tradicionalmente pelos estudantes do Ensino Secundrio, mas o espetro das minhas

    dvidas no diminuiu, j que o sentido difuso de portugalidade parecia, definitivamente, querer

    ganhar forma. O referido dicionrio ia mesmo mais alm do que as propostas eletrnicas

    consultadas, associando a palavra a um sentido verdadeiramente nacional da cultura

    portuguesa. Ou seja: acrescentava-se mais uma possibilidade interpretativa que tornava o

    significado da palavra ainda mais problemtico.

  • 2

    Na altura escrevi pouco mais de uma pgina sobre a portugalidade, sublinhando o

    leque de interrogaes e inquietaes que o assunto me suscitara. Desde logo, um olhar bem

    delimitado entre a noo de eu/ns (Portugal/portugueses) com a de outro/outros,

    especialmente o que no fosse portugus, mas com ligaes a Portugal, numa perspetiva

    claramente colocada num patamar superior ao binmio eu/ns, em relao ao binmio

    outro/outros, sublinhando alegadas caractersticas prprias definidoras do que seria o

    portugus. Mesmo se, do outro lado, estivesse um pas que tivesse sido ex-colnia portuguesa

    e vivesse j em autodeterminao, livre, portanto, do jugo colonizador, mas de onde emergiam,

    no entanto, as marcas portuguesas, como uma espcie de denominao de origem, no

    obstante a descolonizao haver ocorrido j em 1975.

    ideia de portugalidade parecia-me pois, haver uma associao com os

    Descobrimentos portugueses, nomeadamente em relao s suas consequncias - como a

    existncia de uma lngua comum e da imposio das formas de viver europeias -, no seguimento

    de um domnio dos descobridores lusos sobre os povos indgenas dos territrios conquistados1.

    Estas seriam as marcas da portugalidade que, mediante as pistas interpretativas da

    dicionarizao mainstream, poderiam ter correspondncia com o conceito utilizado na

    atualidade e que viria a despertar a minha curiosidade sobre o sentido a atribuir ao vocbulo.

    No satisfeito com esta primeira constatao, e na sequncia de uma investigao mais

    abrangente que decorreu das muitas interrogaes sobre o facto de a utilizao da palavra

    portugalidade no ser assdua -, cheguei concluso de que a sua cunhagem era apontada

    como tendo ocorrido nas dcadas de 50 e 60 do sculo XX, como constatei atravs do portal

    Ciberdvidas da Lngua Portuguesa, o que faz com que seja um produto do Estado Novo,

    perodo em que foram enaltecidos, atravs da propaganda, os feitos dos portugueses, com

    destaque para os Descobrimentos2.

    De resto, das pesquisas que efetuei sobre a portugalidade constatei no existirem

    muitas publicaes especficas sobre o assunto. Sobre Portugal e os portugueses, existe uma

    vasta obra publicada, nomeadamente por parte de escritores, historiadores, socilogos,

    ensastas, filsofos e outros pensadores. Mas ser que isso tem que ver com portugalidade? A

    1 exceo das ilhas da Madeira, dos Aores e de Cabo Verde, que no tinham populao quando foram descobertas pelos portugueses, todos os outros territrios j eram habitados, pelo que h quem defenda que, em vez de Descobrimentos, a expresso mais correta relativa chegada dos portugueses a estes territrios deveria ser achamento. 2 No seguimento destas pesquisas, fiz uma primeira abordagem problemtica da 'portugalidade' no Congresso Internacional "A Europa das Nacionalidades. Mitos de Origem: discursos modernos e ps-modernos", que se realizou na Universidade de Aveiro (9-11 de maio de 2011), atravs de uma comunicao intitulada O equvoco da portugalidade, de que resultou a publicao de um artigo [Sousa, V. (2014). 'O Equvoco da 'Portugalidade''. In Batista, M. M, Franco, J. E. & Cieszynska , B., Europa das Nacionalidades. Imaginrios, Identidades e Metamorfoses Polticas. Coimbra: Grcio Editor/Programa Doutoral em Estudos Culturais (353-370)].

  • 3

    palavra, desde logo, parece afastar quem investiga a problemtica das identidades, para isso

    contribuindo, por exemplo, a opacidade do termo, o seu prprio significado, ou a ideologizao a

    que remete ou pode remeter. S muito ao de leve existem referncias noo de

    portugalidade, muitas vezes substituda pelo termo lusitanidade que, a meu ver, poder ser

    interpretado da mesma forma que a portugalidade. No obstante no discurso poltico se

    encontrarem com mais frequncia aluses portugalidade mesmo que isso acontea de

    forma tnue -, nomeadamente de forma mais evidente desde o ano 2000, creio que elas no

    tm uma importncia de forma a naturaliz-la no discurso, muito embora esse possa ser o

    objetivo de quem a utiliza. Como se compreender atravs da presente investigao, a

    portugalidade no se pode circunscrever apenas denominada direita parlamentar (o que

    seria expectvel, a julgar pela sua associao ao Estado Novo). De resto, produo bibliogrfica

    sobre a portugalidade aconteceu com mais frequncia exatamente durante o perodo em que

    vigorou o Estado Novo, evidenciando uma lgica apologtica relativa propaganda do regime por

    parte de quem perorou ou escreveu sobre o assunto. H, inclusivamente, quem tenha escrito,

    como se ver, um Iderio da portugalidade, onde esto fixados os princpios gerais sobre o

    assunto, associando-o maneira de ser dos portugueses e ao legado que deixaram aos povos

    das suas ento colnias, e que era necessrio alimentar atravs da fixao de princpios

    relativos portugalidade e ao luso-tropicalismo.

    Entre a portugalidade mtica e a que se encontra no domnio da poltica, ainda

    subsistem perspetivas de vrios investigadores que a fazem assentar num alegado destino

    histrico de Portugal, reabilitando dessa forma a lgica da primeira Histria de Portugal, escrita

    no sculo XVI por Fernando Oliveira, abrindo a porta ao que se pode interpretar, nos dias de

    hoje, como uma dinmica tendente a um regresso de caravelas.

    Tambm h quem defenda que a portugalidade surgiu por oposio hispanidade e do

    perigo, ou apenas receio, de a hegemonia espanhola se poder alastrar a Portugal. O que

    aconteceu durante o perodo que ficou conhecido pelo reinado dos Filipes que chegou ao fim

    com a defenestrao de Miguel de Vasconcelos e a reabilitao da independncia nacional.

    Atribui-se mesmo a Antnio Sardinha, grande referncia do Integralismo Lusitano, a paternidade

    da portugalidade, ainda que se omita que o prprio, muito embora tenha defendido Portugal e

    a sua independncia, era tambm defensor, como se ver, do pan-hispanismo, o que coloca,

    desde logo, em causa a ideia de que teria sido um dos mestres da portugalidade, a par de

    Salazar. Seria, no entanto, um outro integralista, Alfredo Pimenta, quem pela primeira vez

  • 4

    escreveu e discorreu sobre o conceito de portugalidade, num opsculo datado de 1947. Foi

    durante o Estado Novo que os referidos nacionalistas enfatizaram e reinventaram alguns mitos

    de origem e o perfil alegadamente prprio do que era o portugus, num caldo de cultura onde a

    portugalidade era primordial referncia.

    No por isso de estranhar que, aps a Revoluo do 25 de abril, tenha havido um

    hiato na utilizao da palavra portugalidade, como que a acompanhar o corte ideolgico entre a

    palavra e o novo regime resultante da queda do Estado Novo. H, no entanto, algumas

    publicaes sadas nos anos 80 do sculo XX tentando reabilit-la, atravs da evocao dos

    feitos dos portugueses, por via dos Descobrimentos e das marcas deixadas em territrios

    africanos, asiticos e americanos.

    Muito embora a utilizao da palavra portugalidade junto da classe poltica seja muito

    tnue, aos poucos foi sendo reintroduzida no discurso poltico e, embora de forma pouco

    significativa, a sua importncia sublinhada devido s personalidades que estiveram associadas

    a essa situao. Quando, por exemplo, o atual presidente da Repblica, a primeira figura do

    Estado, utiliza a palavra portugalidade nos seus discursos, em ocasies diversas, isso constitui

    um facto relevante que, devido ao seu peso institucional, pode ter implicaes relativamente

    amplitude da introduo do termo e do seu conceito.

    No que a meu ver, a portugalidade no devesse ser integrada na dicionarizao

    portuguesa, mas pelo facto de subsistir, no entanto, a problemtica relativa ao sinnimo a

    atribuir palavra j que, aqueles que existem, e que podem ser lidos atravs dos dicionrios de

    utilizao mais comum, como se viu, do um lastro interpretativo que no permite fixar o termo

    de forma inteligvel e objetiva. Para alm disso, a viso do mundo j no obedece a uma lgica

    de unidade, como acontecia no tempo dos Descobrimentos, uma vez que a fragmentao

    decorrente de vrios fenmenos, como foi o caso da globalizao, estilhaou aquela que era tida

    como verdade nica, multiplicando as interpretaes do mundo e, por consequncia, as vrias

    verdades que se refletem, nomeadamente, na problemtica das identidades nacionais, porque

    rejeitam desde logo os essencialismos, como no caso da portugalidade se pode inferir.

    Esta proposta vai no sentido de se saber at que ponto a marca da portugalidade,

    profusamente difundida em pleno Estado Novo, sublinhando alegadas caractersticas adstritas ao

    povo portugus, numa relao apologtica a esse regime, afetou, por via da propaganda e da

    ideia de imprio ultramarino, as dinmicas relacionais com os povos das ex-colnias

    portuguesas, plasmadas na ideia de lusofonia, um conceito ps-colonial, mas com um lastro que

  • 5

    se reporta poca dos Descobrimentos portugueses. Lusofonia conceito hiperidentitrio que,

    na sua etimologia, remete para Portugal e que, talvez por isso, faa com que o termo no seja,

    ainda hoje, consensual, isto apesar de, como se ver, j sobre ele se terem escrito inmeras

    opinies com vrios e heterogneos recortes e perspetivas. O que no deixa de ser irnico, j

    que, apesar de se tratar de uma palavra ps-colonial, remete para uma centralidade do pas

    colonizador. A lusofonia ter seguido a dinmica da francofonia, que surge no final da dcada de

    40 do sculo XX na sequncia da descolonizao francesa, embora no caso portugus tenha

    surgido mais tarde, apenas depois de 1975 e da consumao das independncias coloniais

    correspondentes. Basta consultar, para o efeito, o Dicionrio Etimolgico da Lngua Portuguesa,

    de Jos Pedro Machado, publicado pela primeira vez em 1952, e em cuja segunda edio, de

    1967, no se contempla qualquer entrada relativa s palavras portugalidade e lusofonia.

    nesse quadro que surgiu o ttulo da presente investigao: Da portugalidade

    lusofonia, em que se pretende congregar pistas para responder pergunta: De que se fala,

    quando se fala de lusofonia?. Ser que se est perante a extenso de uma alegada

    portugalidade? Ou trata-se, afinal, de um espao cultural, inscrito num patrimnio imaterial,

    ligado por uma lngua comum? Em contexto ps-colonial, que debate sobre o outro possvel

    fazer-se? Se existe um outro ps-colonial, de quem se trata? Quem o outro ps-colonial? Que

    mudanas na dinmica relacional eu-outro/outro-eu foram operadas aps a descolonizao?

    Nesta investigao pretende-se questionar at que ponto o conceito de identidade nacional faz

    sentido em plena globalizao multicultural/intercultural, especialmente quando esta se

    relaciona com as comunidades imaginadas (Anderson, 1993 [1983]), nomeadamente as do

    antigo Imprio, que representava a nao longe' (Richards, 1993).

    Partindo da expresso outrar-se, associado heteronmia de Fernando Pessoa, que

    levou ao limite uma lgica de despersonalizao enquanto fenmeno de fazer-se outro, adotando

    vrias personalidades, dando-lhes vida e independncia prprias implicando a emergncia de

    um novo ser, diferenciado do anterior, portador de uma nova forma de estar no mundo (mas que

    tambm pode ser definida pela atitude de transformao decorrente do contacto com o novo e o

    diferente, seja atravs de novas culturas, linguagens ou atravs do pensamento)3, pretende-se

    3 Em Fernando Pessoa, existe a transformao do eu como um outro que pode ser enunciado como eu poder ser tu sem deixar de ser eu porque o eu enunciado mltiplo: O eu pretensamente centro da personalidade uma iluso ficcional, sendo que a personalidade adquirida por hbito ou defeito existencial, uma vez que o eu feito de eus (Gomes, 2005: 95-96). A heteronmia pessoana criou para a lngua portuguesa o verbo outrar-se e o substantivo outragem, confundiu o papel das pessoas verbais que tm como objetivo localizar o facto no tempo e espao sem, no entanto: o eu heteronmico [ser] tambm um no-eu (Ele) ancorado na terceira pessoa verbal; o eu de Fernando Pessoa fala sempre de um Ele, isto , fala da perspetiva da alteridade, fala como o outro, observa observando-se a partir do espelho sgnico (idem, 96). Pessoa foi nico na sua heteronmia, muito embora as referncias a um outro sejam recorrentes ao longo dos tempos no quadro da literatura, de que so exemplos Teixeira de Pascoaes (Eu sou todas as criaturas e todas as cousas. Eu, na verdade, no sou eu); Mrio de S

  • 6

    observar no o discurso de e sobre o outro para uma procura de ns prprios, mas identificar

    eventuais modalidades de interpenetrao identitria entre ns e o outro, no relevando, por

    conseguinte, qualquer eventual caracterstica identitria. Uma dinmica em que outrar-se se

    refere compreenso da existncia de outras/novas maneiras de relacionamento com o outro,

    em que esto subjacentes a criao de uma nova tica e uma perspetiva cultural diferente. ,

    afinal, uma via de contgio dupla, em que o eu e o outro interagem na base de uma relao

    que assenta no respeito e na confiana e em que um e outro se perdem em resultado desse

    encontro, numa diluio que faz emergir uma outra relao que j no apenas a do eu e o

    outro de forma separada.

    Trata-se de um objetivo que, partida, poder ser de difcil concretizao, uma vez que

    emana de uma dinmica com recortes utpicos. Basta, para tanto, ter presente as posies

    sobre diversas matrias do pas colonizador em relao aos pases que foram seus colonizados

    (e vice-versa), que muitas vezes se assumem como clivagens evidentes entre ambos, j que a

    descolonizao fsica no implica, necessariamente, a descolonizao das mentalidades. por

    essa razo que os equvocos existentes vo complicando o percurso da lusofonia, que muitas

    das vezes parece estar armadilhado, no obstante as partes integrarem um coletivo como o

    lusfono, numa lgica de paridade que o estatuto de pases independentes lhes confere.

    Embora esta lgica possa parecer contraditria, isso s acontecer, porm, para quem

    assuma a lusofonia como uma extenso portuguesa, adotando o princpio de que a

    portugalidade fez, avant la lettre, parte integrante de uma poltica estratgica do Estado Novo,

    exportada nomeadamente para as ento colnias ultramarinas, numa descodificao que, na

    atualidade, se faz da relao entre o outro e ns, que teve a gnese no framework anterior e

    que, consequentemente, juntou muitos anticorpos impeditivos de ambiente relacional, onde as

    trocas com o outro podero ser afetadas.

    Segundo Jacques Lacan, a relao do sujeito com o outro inventa-se atravs de um

    processo de bem-estar (Lacan, 1973), enquanto Albert Jacquard sustenta que essa relao est

    para alm da felicidade e existe para que ela nos torne conscientes, tanto mais que

    justamente porque o outro no idntico a mim que pode participar na minha existncia

    (Jacquard, 1997: 14), mesmo que dessa coexistncia, como normal, resulte tenso. Dessa

    forma, Alain Mons refere que o processo metafrico supe uma cena do outro, sugerindo que a

    Carneiro (Eu no sou eu nem o outro/Sou qualquer coisa de intermdio:/Pilar da ponte do tdio/Que vai de mim para o outro); Rimbaud (Je est un autre); Walt Wittman (Do I contradict myself?/Very well then I contradict myself;/(I am large, I contain multitudes); ou Jean Paul Sartre (Lenfer, cest les autres).

  • 7

    alteridade funciona a na sua radicalidade enigmtica, [que provoca] esse efeito de estranheza

    assim que a metfora est em jogo (Mons, 1998: 266). Nesse sentido, observa que o pr o

    mundo em metfora, ou a possibilidade de uma distncia em relao origem, parece uma

    necessidade vital para o vnculo comunitrio o que signifca que a identidade se pode definir,

    nesse contexto, como uma realidade movedia (idem, ibidem).

    por isso que a minha convico, o meu propsito de investigao, releva da perspetiva

    de que no pode haver lusofonia em conjugao (ou em simultaneidade) com portugalidade.

    Trata-se de uma ideia de partida que decorre do percurso por mim efetuado antes mesmo do

    desenvolvimento da presente investigao, que me haveria de provocar uma viso mais ampla

    da problemtica em apreo. De facto, ambos os termos so hiperidentitrios, remetendo para

    uma mesma origem, uma vez que a portugalidade pressupe um sublinhado de alegadas

    caractersticas portuguesas, conceo referida exclusivamente a Portugal, enquanto a lusofonia,

    se bem que na sua etimologia remeta para luso, abrange outros pases, que falam o portugus,

    abarcando por isso um lastro que vai para alm do seu significado imediato j que convoca

    um espao cultural constitudo por vrios pases que, no obstante tenham sido ex-colnias

    portuguesas, so independentes e autnomos e integram hoje a comunidade internacional. A

    expectativa que a perspetiva que desenvolvi possa ser validada no final desta investigao.

    De resto, minha convico que esta investigao pode contribuir para promover a

    reflexo que ainda est por fazer sobre a portugalidade, as suas origens, respetivas marcas, e

    interpretaes, nomeadamente na prpria lusofonia.

    2. Questes metodolgicas

    A proposta metodolgica que se apresenta, assenta na hermenutica,

    fundamentalmente na interpretao de textos. O objetivo ser proceder desconstruo dos

    eventuais nveis de significao que se venham a encontrar, no numa lgica destruidora, mas

    com o fito na desmontagem e decomposio dos elementos da escrita, atravs da diffrance,

    como assinalou Jacques Derrida (1982 [1971]). Para tanto, pretendo faz-lo em relao ao texto

    em si mesmo, mas tambm atravs do estabelecimento de comparaes entre textos,

    promovendo a leitura de hipotticos pontos comuns e alegadas divergncias de perspetiva,

    contextualizando-os. A este propsito, Moiss de Lemos Martins (2011) observa que essa tarefa

    de ler e interpretar textos e imagens no circunscrevendo o seu mbito a um objetivo apenas

    com preocupaes acadmicas, mas tambm cvicas -, faz do investigador um hermeneuta.

  • 8

    Apesar de se tratar de um caminho que foge regra geral da maior parte dos cientistas

    sociais que, como assinala o mesmo autor, so mais adeptos das ferramentas-fetiche da

    profisso, no entanto, estribado numa lgica que permite quebrar com o statu quo, no

    obstante possa levantar dvidas de carter terico-metodolgico, uma vez que aproxima o

    trabalho ao do filsofo e do crtico literrio (Martins, 2011). Tanto mais que todo o verdadeiro

    processo hermenutico () vive da tentao que explicar e compreender estabelecem entre si

    podendo, por opo metodolgica, acentuar-se mais o processo explicativo, do que o

    compreensivo ou o seu inverso, muito embora nunca se possa dispensar um plo de

    movimento hermenutico em favor do outro (Martins, 2011: 68). Ou, como refere Paul Ricoeur

    (2013 [1987]), a hermenutica constitui uma teoria da interpretao dos discursos, assumindo-

    se como dialtica entre explicao e compreenso. O que significa que explicar a tentativa

    de descrever a referncia (um facto ou um objeto externo), e em que as hipteses, leis e teorias

    so submetidas verificao prtica da realidade; enquanto compreender se afirma como o

    significado das mensagens (a sntese do contedo proposicional do discurso). O filsofo j tinha

    fixado o conceito de hermenutica no artigo intitulado Existncia e hermenutica (1965),

    integrado no livro O conflito das interpretaes: ensaios de hermenutica (1969):

    Ao propor religar a linguagem simblica compreenso de si, penso satisfazer o desejo mais profundo da

    hermenutica. Toda interpretao se prope a vencer um afastamento, uma distncia, entre a poca

    cultural revoluta, qual pertence o texto, e o prprio intrprete. Ao superar essa distncia, ao tornar-se

    contemporneo do texto, o exegeta pode apropriar-se do sentido: de estranho, pretende torn-lo prprio;

    quer dizer, faz-lo seu. Portanto, o que ele persegue, atravs da compreenso do outro, a ampliao da

    prpria compreenso de si mesmo. Assim, toda hermenutica , explcita ou implicitamente, compreenso

    de si mediante a compreenso do outro (Ricoeur, 1978 [1969]: 18).

    Paul Ricoeur compara, ainda, o texto a uma partitura musical, com o leitor a assumir-se

    como um maestro que segue as instrues inscritas nessa partitura. Nesse sentido, refere que

    compreender no o mesmo que repetir o evento do discurso num evento semelhante, mas

    implica gerar um novo acontecimento, que comea j com o texto em que o evento inicial se

    objectivou (Ricoeur, 2013 [1987]: 106). O texto possui, assim, um sentido autnomo fixado

    pela escrita, o que pode impedir a compreenso da inteno do autor, pelo que o mal-

    entendido da decorrente possvel e at inevitvel, sendo que o problema da interpretao

    correta j no pode resolver-se por um simples retorno alegada situao do autor (idem,

  • 9

    107). As interpretaes no so, assim, todas idnticas, pelo que o texto enquanto todo e

    enquanto totalidade singular (idem, 109) pode comparar-se a algo que pode ser visto de

    diferentes ngulos, mas nunca de todos os ngulos ao mesmo tempo. O que significa que a

    reconstruo do todo tem um aspeto perspetivstico semelhante ao de um objeto percebido

    (idem, ibidem). Nesse sentido, ser sempre possvel estabelecer uma relao de uma mesma

    frase de modos diferentes a uma ou a outra qualquer frase, mesmo que esta possa albergar a

    ideia-ncora do texto: No acto de ler est implcito um tipo especfico de unilateralidade. Esta

    unilateralidade fundamenta o carcter conjectural da interpretao (idem, ibidem). Dessa

    forma, h interpretaes que Ricoeur considera mais vlidas do que outras, pelo que sempre

    possvel argumentar a favor ou contra uma interpretao, confrontar interpretaes, arbitrar

    entre elas e procurar um acordo, mesmo se tal acordo fica alm do nosso alcance imediato

    (idem, 112).

    Com esta investigao pretende-se contribuir com uma interpretao decorrente das

    anlises que me proponho desenvolver, numa perspetiva necessariamente qualitativa, assente,

    obviamente, numa lgica subjetiva, que decorre da circunstncia de quem investiga e da sua

    prpria idiossincrasia. De resto, o confronto entre a objetividade e a subjetividade inscrito no

    quadro cientfico esteve associado de forma direta investigao quantitativa por oposio

    qualitativa. Em causa estava o grau de confiabilidade, representatividade e relevncia de cada

    tipo de metodologia, prevalecendo a lgica mais positivista da primeira em relao segunda,

    tendo vigorado at dcada de 1960, altura em que se diluiu o equvoco. Neste quadro, a

    perspetiva qualitativa assumiu-se como uma das escolhas possveis, a par da perspetiva

    quantitativa, ou mesmo ambas em simultneo, mas nunca numa lgica de contraposio de

    uma em relao a outra (Flick, 2004).

    Esta dicotomia comentada por Boaventura de Sousa Santos ao assinalar que as

    tradicionalmente consideradas barreiras ao desenvolvimento das Cincias Sociais j so

    vivenciadas nas denominadas Cincias Naturais, o que provocou uma ampla reviso da

    epistemologia da cincia moderna. Nesse sentido, a predominncia do fluxo de metforas das

    Cincias Naturais para as Cincias Sociais j faz o caminho inverso, uma vez que so as

    primeiras que recorrem s segundas, que por sua vez se assumem como um tanque de

    analogias (Santos, 1988 [1987]).

    Esta aproximao poder estar, no entanto, a desvirtuar o que esteve na base do

    nascimento das Cincias Sociais e Humanas, como assinala Moiss de Lemos Martins

  • 10

    sustentando que, hoje, ao nvel cientfico, no se promove a reflexividade, uma vez que se aposta

    na construo e no na desconstruo (Pinto-Coelho & Carvalho, 2013). E, tendo presente que a

    sociedade est em constante movimento, a cincia, atravs dos mtodos e das tcnicas, est a

    converter a contingncia da vida em eternidade, numa lgica que, aparentemente, serve ao

    funcionamento da sociedade atual, em que o interesse social se mede pela quantidade de

    tecnologia e de cincia aplicadas (idem, ibidem). E, sendo o discurso ao, o investigador que

    deve ser o protagonista da ao uma vez que o discurso performativo, sendo que os mtodos e

    as tcnicas devem estar disponveis para serem utilizados sempre que se justifiquem. Segundo

    Michel Foucault, uma teoria s til se possibilitar condies para que os objetivos sejam

    atingidos, como acontece com uma caixa de ferramentas, sendo necessrio que a teoria

    funcione para l de si prpria. Se no for utilizada, isso significa que ainda no tem o seu peso

    especfico, ou ainda no o seu tempo, pelo que se utilizam outras eventuais teorias ou se

    refazem as existentes (Foucault, 2010 [1975]). Deste modo, recorreu-se referida caixa de

    ferramentas, por exemplo, para proceder a alguma anlise de contedo, nomeadamente quando

    se analisaram as bases de dados do parlamento portugus relativamente utilizao da palavra

    portugalidade e que se explicar na altura prpria. Em relao s fontes consultadas, foram

    utilizadas publicaes, necessariamente datadas, uma vez que a portugalidade tambm ela

    est datada, sendo que a propaganda do regime do Estado Novo incentivou a edio de vrias

    obras relativas a esta temtica. Paralelamente, foram utilizadas vrias publicaes atuais,

    nomeadamente dos prprios mdia, provando que o assunto pode considerar-se como estando

    na ordem do dia, no sendo, pois, de estranhar que estejam includos nesta investigao vrios

    artigos de opinio e notcias sados, por exemplo, nos jornais.

    Este procedimento pode colidir, no entanto, com as linhas de fora da comunidade

    cientfica, nomeadamente no campo das cincias aplicadas. que o pensamento de Foucault

    no obedece a critrios lineares, compostos como se sabe, pelas tradicionais etapas, que

    alegadamente transmitem conforto para a grande maioria dos protagonistas que esto

    presentes nos diversos locais de produo de conhecimento. neste quadro que Moiss de

    Lemos Martins sustenta poder diagnosticar-se um dos problemas atuais das Cincias Sociais e

    Humanas, que consiste na dificuldade em situ-las do ponto de vista da compreenso, uma vez

    que a lgica dominante privilegia as aes que visam o estabelecimento de mdias, de perfis e

    de ratings (Pinto-Coelho & Carvalho, 2013), numa forma que parece ser deliberada de

    subjugao aos mtodos quantitativos.

  • 11

    Lisa Bortolotti sustenta existirem duas maneiras de identificar a funo de uma

    atividade, neste caso a atividade cientfica: ou subjetivamente, olhando para as intenes

    primrias das pessoas envolvidas na actividade, ou objetivamente, olhando para aquilo que

    efectivamente os resultados da actividade acrescentam (Bortolotti, 2013 [2008]: 54-55) e que

    nem sempre podem ser coincidentes. A diferena de perspetiva entre as duas lgicas de fazer

    cincia tambm sublinhada por Rober E. Stake: Os investigadores quantitativos privilegiam a

    explicao e o controlo; os investigadores qualitativos privilegiam a compreenso das complexas

    inter-relaes entre tudo o que existe (Stake, 2009: 53). Assim, do ponto de vista do paradigma

    qualitativo, o investigador considerado como parte do objeto de estudo, avanando para o

    conhecimento da realidade social atravs da compreenso de acontecimentos.

    Moiss de Lemos Martins assinala que as prticas humanas esto em relao direta

    com a temporalidade e tm um tempo local, que o tempo da experincia, embora tambm

    tenham um tempo contextual: o tempo de um dado campo social, com relaes de fora que

    correspondem a posies sociais assimtricas dos atores sociais, a posies de mais ou menos

    poder num dado campo social (Martins, 2011: 63-64). O que quer dizer que entre o tempo da

    experincia e o tempo contextual anda o tempo da prtica (idem, 64).

    Dos vrios modelos de ao social (entendida esta de forma aberta enquanto esforo

    organizado no sentido de alterar o establishment) existe um que parte do princpio de que o

    indivduo autnomo, livre e racional e um outro, que mais caro a Moiss de Lemos Martins,

    que articula as nossas aces com um quadro de constrangimentos histrico-sociais que nos

    so impostos, seguindo a hiptese de que as prticas so determinadas por um campo de

    foras sociais (como o caso de Pierre Bourdieu, em O que falar quer dizer, 1982) e

    tambm por estados de poder (como acontece com Michel Foucault no livro A Ordem do

    Discurso, 1999 [1970]) (Martins, 2011: 64).

    Filipe Verde refere que toda a tentativa de objetivao escapa ela prpria a essa

    objetivao, uma vez que os recursos do intelecto no so completamente formalizveis

    (Verde, 2009: 16). O que implica que tanto a noo de verdade como a de provado no sejam

    coincidentes, deitando por terra os sonhos do Iluminismo, em que se pensava que o processo de

    objetivao poderia ser controlado. O que significa que compreender algo no o mesmo que

    compreender a compreenso, e a compreenso de natureza a no ser jamais completamente

    compreendida (idem, ibidem).

  • 12

    Para alm dos meios tcnicos de produo e transmisso, o processo de anlise deve

    incorporar as relaes sociais, a estrutura das instituies sociais e as suas interaes ocorridas

    nos momentos de produo e apropriao das formas simblicas. Na perspetiva de Alain Mons,

    o pr o mundo em figuras efectua-se numa ordem simblica que unifica o disperso, sendo que

    a tendncia antifigurativa das modernidades [se] inscreve nesse contexto (Mons, 1998: 250).

    A reflexo sobre esses estudos e as suas interaes pode permitir uma produo de significado

    pela via, por exemplo, da utilizao de uma metodologia da interpretao das formas simblicas,

    atravs da hermenutica da profundidade. Como defende John Thompson (1995), isso

    decorreria de uma dinmica assente na reconstruo criativa do sentido, explicando o que dito

    ou representado, com a possibilidade de produzir uma rutura entre a interpretao e a

    reinterpretao (entre a superficialidade e a profundidade).

    O escritor Gonalo M. Tavares nas suas Breves Notas sobre Cincia (2006) glosa

    sobre toda esta problemtica e sobre a busca da verdade por parte do cientista. por isso que

    sustenta que a Histria das cincias se encontra sempre ligeiramente atrasada em relao

    Histria dos Desejos. H metforas famosas, peguemos nelas. como se os cavalos fossem o

    Desejo e a carroa puxada por eles a cincia (Tavares, 2006: 26). Isso no invalida, no entanto,

    que seja o cientista com o seu chicote que direciona cavalos e carroa (idem, 27) e que, ao

    enveredar por terenos psicanalticos poderemos dizer que a infncia, os prazeres, os medos,

    guiam o chicote do cientista (idem, 28). J se o caminho assentar numa lgica mstica

    poderemos dizer que o Destino que guia a infncia, os prazeres e os medos de um indivduo

    (idem, 29), o que significa que, no obstante as investigaes cientficas dependerem de Deus,

    do Acaso ou do Destino (ou do que lhe quiserem chamar), o facto que, apesar de tudo

    dependem tambm da Razo (idem, 30). A minha convico , no tanto apesar de tudo,

    como defende Gonalo M. Tavares, mas diria que acima de tudo, que as investigaes cientficas

    dependem fundamentalmente da razo, como o caso da presente, muito embora o

    cruzamento com um iderio mtico, simblico, messinico e, algumas vezes esotrico, parea

    querer desviar o caminho percorrido dos trilhos definidos por uma razo tendente a ser o mais

    objetiva possvel (o que, como j se viu,no deixa de ter caractersticas problemticas), mas que

    se distancia do positivismo puro e duro.

    O escritor sustenta, assim, que a metodologia serve para alcanar o incio, deixando

    claro que Tu no usas uma metodologia. Tu s a metodologia que usas, esclarecendo desta

    forma a sua perspetiva: Tu no chegas a um resultado. Tu chegas a uma metodologia, ou Tu

  • 13

    no provas um facto ou uma teoria. Tu provas uma metodologia (Tavares, 2006: 62). Refere

    que o olhar da comunidade cientfica desenvolvido pelo centro do olho, muito embora os

    grandes investigadores o faam pelo canto do olho (idem, 76), o que conduz ideia da

    existncia de desequilbrio na investigao, e que lhe suscita a seguinte reflexo: Investigar sem

    desequilbrio avanar em cima de lama: algum se afunda (Tavares, 2006: 38).

    Associando a ideia de tdio investigao cientfica questiona se Um investigador

    cientfico infeliz no um bom investigador cientfico?; e se Um investigador cientfico

    apaixonado no um bom investigador cientfico? (Tavares, 2006: 38). So dois problemas

    diferentes, refere o escritor colocando-se na pele do homem com tdio, sendo que este,

    assumidamente, no poder ser um bom investigador.

    No que me diz respeito, tdio foi o que jamais senti no desenvolvimento da presente

    investigao. Ao contrrio, ela suscitou-me crescentemente um sentimento de inquietao, de

    curiosidade, mas tambm de satisfao pelo caminho percorrido, pelos objetivos atingidos, e

    que se pode traduzir numa sensao de alvio e tranquilidade psicossomtica, evoluindo para

    um reconfortante prazer.

    3. Organizao da investigao

    Os eixos interpretativos da presente tarefa assentaram numa srie de autores que tm

    estudado e refletido sobre a problemtica da identidade que abarca as temticas da

    portugalidade e da lusofonia. Incluem-se, para tanto, as perspetivas clssicas da identidade e

    as correspondentes roturas de escala decorrentes do ps-modernismo, observando as

    mudanas operadas. Convocaram-se, assim, vrios autores nacionais e estrangeiros -, dando

    nota das vrias conceptualizaes da temtica estudada. Procedeu-se de forma interdisciplinar,

    como se impe numa rea como so as Cincias da Comunicao, convocando, portanto,

    outras disciplinas das Cincias Sociais como a Histria, a Sociologia e a Antropologia.

    Em termos de organizao, esta investigao est dividida em cinco captulos. No

    primeiro captulo Das noes clssicas de estado, nao e de estado-nao crise de

    paradigmas e s suas implicaes na formao da identidade nacional disserta-se sobre a

    problemtica da identidade luz de uma narrativa clssica, abordando os conceitos de estado,

    de nao e de estado-nao, para posteriormente se evidenciarem as diferenas decorrentes da

    globalizao e s subsequentes crises de paradigmas. Nessa perspetiva, destaca-se a

    subjetividade da identidade atravs do mapeamento de algumas teorias sobre o nacionalismo e

  • 14

    da prpria identidade nacional. Dar-se- algum destaque memria coletiva e Histria, antes

    de se abordar a questo do patriotismo e de se focar o caso concreto de Portugal, em que se

    refletir sobre a existncia de uma cultura portuguesa. Da relao entre os portugueses e a

    questo da identidade, mostrar-se-o os resultados de trs diferentes estudos, realizados em

    pocas diferentes, terminando o captulo com uma abordagem marca Portugal.

    No segundo captulo, que dedicado ao perodo do Estado Novo, a presente

    investigao incidir no modus operandi daquele regime, mapeando os seus aspetos mais

    significativos que desembocaram na cunhagem da palavra portugalidade. Assim, dar-se-

    destaque propaganda do regime, ao imprio colonial, ao luso-tropicalismo e Exposio do

    Mundo Portugus (1940). Algumas marcas da portugalidade na sociedade portuguesa atual

    so realadas atravs do que se denomina por Representaes da portugalidade, que no so

    mais do que uma amostragem que tenta evidenciar os vrios contextos em que a portugalidade

    utilizada (so dados 31 exemplos). J no terceiro captulo, aborda-se a temtica da

    portugalidade atravs da observao do discurso parlamentar portugus, em dois momentos

    diferentes: nos discursos dos deputados da Assembleia Nacional (1935-1974) e da Assembleia

    da Repblica (1976-2012), terminando o captulo com a utilizao e respetiva contextualizao

    da palavra portugalidade no discurso parlamentar portugus.

    No quarto captulo far-se- uma abordagem tentativa de fixao de um perfil para o

    portugus, observando a utilizao da palavra portugalidade atravs da bibliografia. Mapeiam-

    se, para o efeito, seguindo uma lgica cronolgica, as produes bibliogrficas desde Alfredo

    Pimenta (Em defesa da portugalidade, 1947), Antnio Ferronha (Um iderio de

    portugalidade e a Conscincia da Luso/Tropicalidade, de 1969), a Antnio de Spnola (A

    portugalidade renovada, 1973) e Portugal e o Futuro, 1974). Disserta-se sobre a temtica

    da Histria de Portugal e a portugalidade, atravs da viso de F. da Cunha Leo (O Enigma

    Portugus, 1960) e Ensaio de psicologia portuguesa, 1971), integrando o livro de Domingos

    Mascarenhas, Portugalidade - Biografia de uma Nao (1982), destacando o caso de D.

    Nunlvares Pereira como exemplo de portugalidade (atravs do livro de Antnio Maria M.

    Pinheiro Torres, Nun'lvares Pereira, heri e monge, catolicidade e portugalidade, de 2005).

    Nessa perspetiva, referir-se- as relaes entre Portugal e Espanha e a portugalidade,

    sobretudo atravs do ponto de vista de Jos Fernandes Fafe, Antnio Sardinha, Almeida Garrett,

    F. da Cunha Leo e de A. H. Oliveira Marques, para alm da viso teleolgica da portugalidade

    de Antnio Quadros e da portugalidade observada no mundo lusfono de Agostinho da Silva. O

  • 15

    captulo termina com a Introduo portugalidade de Vtor Manuel Adrio (2002), que

    constitui uma abordagem mitologia portuguesa e portugalidade esotrica, em que se

    integra a publicao de Srgio Franclim, A Mitologia Portuguesa, Segundo a Histria Inicitica

    de Portugal (2009), terminando com Onsimo Teotnio Almeida e a sua obsesso pela

    portugalidade, na esteira da aorianidade enquanto reivindicao bairrista.

    Por ltimo, no quinto captulo, aborda-se a construo da lusofonia, reportando-nos

    ideia de Imprio e ao caso especfico de Portugal, equacionando, tambm, o funcionamento

    nesse quadro da Comunidade dos Pases de Lngua Portuguesa. Salienta-se, tambm, a

    comparao entre os conceitos de lusofonia e de portugalidade, dando relevo s relaes entre

    o ex-colonizador e os ex-colonizados atravs da observao de notcias publicadas atravs dos

    mdia. Termina-se o captulo, colocando em evidncia os equvocos que a lusofonia encerra e

    que necessrio desconstruir.

    Exprimo a esperana de que esta tese possa contribuir para compreender e trazer a

    lume uma temtica cada vez mais recorrente na sociedade portuguesa, como combate a uma

    crise generalizada, em que se apela identidade nacional e ao patriotismo, apesar da fluidez do

    conceito e da experincia de cada um. O que desemboca, muitas vezes, na ideia de

    portugalidade que, no entanto, no assumida quando algum com ela confrontada,

    limitando-se a desviar rapidamente a questo, encerrando eventuais problematizaes, adotando

    uma atitude que se afasta de uma postura interpretativa, assente numa lgica de assim

    porque , partindo do princpio de que ela natural. Mas, como se ver, no h nada de

    natural na portugalidade. Para alm disso, a expectativa que a esta investigao, depois de

    trilhar um caminho de desconstruo, como enunciado anteriormente, contribua para trazer

    colao novas questes, designadamente para clarificar eventuais caminhos de interpretao em

    relao s temticas da portugalidade e da lusofonia na contemporaneidade, com os olhos

    postos no futuro.

  • 16

  • 17

    Captulo I

    1. Das noes clssicas de estado, nao e de estado-nao crise de

    paradigmas e s suas implicaes na formao da identidade nacional

    1.1. O estado, a nao e o estado-nao

    Na parte dedicada s formas de Governo no livro que escreveu sobre Cincia Poltica

    (1998), Jorge Miranda adverte para a relativa confuso de conceitos e a multiplicidade de

    termos relativos s formas de estado, tipos de estado e de regime. A mesma advertncia feita

    por Bresser-Pereira (2008), que se refere ideia de estado enquanto uma organizao e como

    sistema constitucional-legal ou diludo no conceito de estado-nao ou pas. Convm, por isso,

    discernir entre estado e nao, conceitos que assumem, de forma justaposta, um sentido

    diferente ao que tm separadamente. Enquanto a nao consubstancia uma realidade

    sociolgica, necessariamente subjetiva, o estado assume-se como uma realidade jurdica,

    assente na objetividade.

    O conceito estado, com o sentido que ele hoje assume enquanto comunidade

    poltica de carter soberano na ordem interna e na ordem internacional (Bobbio, 1976) - aparece

    pela primeira vez no livro O Prncipe, de Maquiavel, em 1513. Foi, no entanto, mais tarde,

    durante o sculo XVII, que surgiu a ideia de Estado ligada a caractersticas bem definidas,

    relativas ao exerccio da soberania dos pases, tendentes a proporcionar a defesa, a ordem, o

    bem-estar e o progresso aos grupos sociais.

    Segundo Bresser-Pereira, a instituio fundamental das sociedades civilizadas, antigas

    ou modernas, o estado. Ele est localizado no cerne tanto das duas principais instituies

    poltico-territoriais da antiguidade () como nos modernos (Bresser-Pereira, 2008: 1), o que

    quer dizer que o Estado coincide com o Governo, a administrao de um pas, ou de uma

    sociedade poltica. Para Anthony Giddens, um Estado existe quando h um aparelho poltico

    que governa um dado territrio, cuja autoridade apoiada por um sistema legal e pela

    capacidade para usar a fora para implementar as suas polticas (Giddens, 2009 [2001]: 450).

    Um conceito que tambm caro a Karl Deutsch (1976) que se refere ao Estado como sendo

    uma mquina organizada para o desenvolvimento e implementao de decises polticas e para

    a imposio de leis e regras de um governo.

    Trata-se de uma ideia j muito antes defendida por Max Weber, para quem o Estado

    responsvel pela organizao e pelo controlo social, pois detentor do monoplio da violncia

    legtima, nomeadamente o poder de coero por via legal (Weber, 1967 [1921]). Naquela que

  • 18

    conhecida por Tese de Weber que decorre do seu texto de 1919, A poltica como vocao

    -, a actividade poltica do Estado definida de trs formas: pela existncia de um territrio

    delimitado; pela existncia de indivduos; e, por ltimo, pela fora que o meio da poltica.

    Refira-se que Weber via o Estado como um lugar de burocracia, sendo que os interesses estatais

    se centravam nos interesses polticos dos poderosos, numa lgica que consubstancia a ideologia

    marxista, em que o Estado encarado como uma representao dos interesses da classe

    dominante, e por consequncia, como opressor das classes dominadas. Para Marx, o Estado

    no constitui uma relao contratual, mas a legitimao permanente dos interesses da classe

    opressora. Uma situao que sempre foi observvel na Idade Antiga, na Idade Mdia e na Idade

    Moderna na relao entre o rei ou o imperador com os servos e os escravos e, na Idade

    Contempornea, entre o dono dos meios de produo e o proletariado. J mile Durkheim

    advogava que o Estado servia para manter a vida da sociedade, tendo dessa forma um papel

    moralizador que garantia os seus direitos.

    O Estado , por conseguinte, um conceito poltico que conta com a adeso resultante da

    vontade de um povo que constitui uma nao (ou por povos de diferentes nacionalidades), para

    que se submeta a um poder pblico soberano, resultante da sua prpria vontade, e que lhe

    confere unidade poltica. Ser por isso que Hauriou (2003) o refere como a instituio das

    instituies, salientando que o Estado constitui um grupo humano, centrado num territrio, com

    orientaes sociais, polticas e jurdicas claras, orientado para o bem comum, criado e mantido

    por uma autoridade fiscalizadora. Hauriou considera mesmo que o poder executivo deve ser

    apreciado de um ponto de vista poltico e no de forma jurdica, o que conduz ao

    estabelecimento de uma clara distino entre estado (Governo) e nao.

    O conceito de nao implica uma ideia de identidade, de histria coletiva, o que muitas

    vezes no coincide com o que se entende por Estado. A atestar esta observao est o caso

    da Catalunha e a sua relao com Espanha: reivindica-se a nao catal, dentro do Estado

    espanhol. Burdeau (1981) sustenta que o conceito de nao pertence ao domnio cultural,

    enquanto soma das pessoas que comungam a origem, lngua e histria, numa espcie de

    comunidade das comunidades. Define-a como um grupo humano no qual os indivduos esto

    unidos por laos materiais e espirituais, tendo a conscincia do que os distingue dos indivduos

    componentes de outros grupos diferentes. Quando se aborda o conceito de nao, deve ter-se

    em ateno a conjugao de vrios fatores j que ela composta por elementos naturais

  • 19

    (territrio), histricos (tradies, costumes, religio, leis...) e psicolgicos (crenas comuns,

    conscincia nacional...).

    Bresser Pereira refere que o Estado constitui a instituio abrangente que a nao usa

    para promover seus objectivos polticos (), o instrumento por excelncia de ao coletiva da

    nao ou sociedade civil, enquanto a nao a sociedade que compartilha um destino

    comum e logra ou tem condies de dotar-se de um Estado tendo como principais objetivos a

    segurana ou autonomia nacional e o desenvolvimento econmico (Bresser Pereira, 2008: 3).

    Nesta perspetiva, a ideia de nao no se anula, mesmo que esta esteja repartida entre vrios

    Estados, ou porque vrias naes congregaram esforos para a formao de um Estado.

    Finalmente, o estado-nao a unidade poltico-territorial soberana formada por uma

    nao, um estado e um territrio. Denomina-se por estado-nao um territrio com os seus

    limites bem fixados, com um Governo e uma populao coesa. A ideia de estado-nao nasceu

    na Europa em finais do sculo XVIII, incios do sculo XIX. Provm da poca do Iluminismo em

    que emerge uma nova conceo do direito natural, como observa Freitas do Amaral, sendo este

    concebido de forma racional, humanitria e subjetivista, dele decorrendo os direitos individuais

    dos cidados, que so direitos originrios, inerentes natureza humana e, por isso mesmo,

    oponveis ao Estado (Amaral, 1998: 14). Baseou-se na procura da verdade atravs da teoria da

    deduo rompendo com a tradio, a f e a autoridade, at a aceites como principais pilares do

    conhecimento, e em que a razo passou a ser a fora constituidora da dinmica do estado-

    nao, principalmente ao nvel da administrao dos povos. Nesse sentido, como refere Anthony

    Giddens, os Estados modernos so estados-naes formados assentes na ideia de cidadania,

    reconhecendo que a populao tem direitos e deveres comuns e esto conscientes de fazerem

    parte do estado, e pelo nacionalismo, o sentido de fazerem parte de uma comunidade poltica

    mais ampla e unificadora (Giddens, 2009 [2001]: 450).

    A emergncia do estado-nao teve um efeito psicolgico decorrente da pertena do

    indivduo estrutura por ele formada, facto que lhe confere um sentimento referencial que traz a

    reboque sentimentos de segurana, de certeza e de enquadramento civilizacional. O estado-

    nao consolida-se atravs de uma ideologia, de uma estrutura jurdica, da sua soberania sobre

    um determinado povo que ocupa um territrio com fronteiras, que dispe de uma moeda prpria

    e, tambm, de foras armadas prprias.

    O aparecimento do estado-nao corresponde fase nacionalista do Ocidente e ao seu

    processo de industrializao, na sequncia de investimentos tecnolgicos, fomentando as

  • 20

    economias nacionais e gerando capacidades militares por parte dos Estados. A pertena a

    determinado grupo assente numa nao (com uma cultura, uma lngua e uma histria prprias)

    foi, por exemplo, sempre uma das marcas dos europeus nos ltimos sculos. Foi nessa senda

    que ocorreu a transformao do nacionalismo em ideologia, que os europeus entre os quais os

    portugueses -, acabariam por transportar para as suas campanhas expansionistas, como se ver

    mais frente.

    Estas so as vises clssicas de nao, estado e de estado-nao. Quanto ao ltimo, por

    via da globalizao e das transformaes da decorrentes, alterando a forma como os diversos

    pases se posicionam no contexto internacional, vai assentando arraiais a ideia de que ele est

    em declnio. Mais frente se vero as novas lgicas decorrentes das ruturas de escala

    provocadas pela globalizao, nomeadamente as consequncias que isso acarretou no seio dos

    prprios estados, numa crise de paradigmas que alterou as noes que eram tidas como

    estveis.

    1.2. A subjetividade da identidade nacional: Teorias sobre a identidade

    No obstante Peter L. Berger e Thomas Luckmann salientarem a existncia de mltiplas

    realidades, h uma que se apresenta como sendo a realidade por excelncia: a da vida

    quotidiana, apelidada de realidade predominante e, por isso, admitida como sendo a realidade

    (Berger & Luckmann, 1999 [1966]: 33). Muito embora essa constatao faa sentido,

    nomeadamente para se poder circunscrever o olhar para um objetivo concreto, o certo que

    no existe nenhuma realidade objetiva. A atest-lo, bastar ter em ateno a noo de que a

    linguagem simblica vai para alm da prpria realidade e, por isso mesmo, se constitui como

    um dos seus principais componentes, que lhe d, por conseguinte, um recorte subjetivo. que a

    legitimao decorrente do universo simblico evidencia realidades diferentes da que existe na

    vida quotidiana, constituindo produtos sociais, com uma histria. No caso individual, por

    exemplo, em que a realidade da vida quotidiana se apresenta como um mundo intersubjetivo:

    Esta intersubjectividade diferencia com nitidez a vida quotidiana de outras realidades (idem:

    35), acrescentando que a identidade um elemento-chave evidente da realidade subjectiva e,

    tal como toda a realidade subjectiva, encontra-se em relao dialctica com a sociedade (idem:

    179). Por isso tem um recorte dinmico, no se desenvolvendo de forma estagnada nem

    esttica, j que decorre da prpria sociedade que feita de mudanas constantes. A identidade

    , ento, formada por processos sociais que so determinados pela estrutura social e, uma vez

  • 21

    cristalizada, mantida, modificada ou mesmo remodelada pelas relaes sociais (idem,

    ibidem). Por outro lado, as identidades produzidas pela interaco do organismo, da

    conscincia individual e da estrutura social reagem sobre a estrutura social dada, mantendo-a,

    modificando-a ou mesmo remodelando-a (Berger & Luckmann, 1999 [1966]: 179). Pode, pois,

    dizer-se que as sociedades tm histrias em que emergem identidades especficas, que so

    feitas por pessoas tambm elas com identidades especficas. Berger e Luckmann constatam

    que, se se tiver em ateno esta dialtica, pode ser evitada o que reputam de enganadora

    noo de identidades colectivas, sem precisar de recorrer singularidade () da existncia

    individual (idem, ibidem).

    A identidade de um indivduo est sujeita a uma luta de afiliao s realidades, por vezes

    conflituantes. A sua localizao social final na estrutura institucional da sociedade acabar

    tambm por influenciar o corpo e o prprio organismo. O que quer dizer que os processos

    relacionados com a formao e conservao da identidade so determinados pela estrutura

    social.

    Para Berger e Luckmann, a identidade constitui um fenmeno que emerge da dialctica

    entre indivduo e sociedade (Berger & Luckmann, 1999 [1966]: 180). J os tipos de identidade,

    por outro lado, so elementos de certo modo estveis da realidade social objectiva (sendo o

    grau de estabilidade, por sua vez e como evidente, determinado pela sociedade), constituindo

    o tema como uma certa forma de teorizao em qualquer sociedade, mesmo quando so

    estveis e a formao das identidades individuais bastante desprovida de problemas (idem,

    ibidem). nesse sentido que sublinham que as teorias sobre a identidade esto sempre

    integradas numa interpretao mais geral da realidade: So embutidas no universo simblico

    e nas suas legitimaes tericas, variando com o carcter destas (idem, ibidem). O facto de as

    teorias sobre a identidade estarem integradas em teorias mais abrangentes sobre a realidade,

    deve ser entendido em termos da lgica subjacente a estas ltimas (Berger & Luckmann,

    1999 [1966]: 180-181).

    Nesta perspetiva, a teorizao sobre a identidade no poder prescindir de tomar

    conhecimento das transformaes de identidade que de facto aconteceram, e ser, ela prpria,

    transformada no processo (idem: 185). Os autores advertem, no entanto, para o facto de a

    identidade poder vir a tornar-se problemtica ao nvel da prpria teoria, sendo que o seu

    estabelecimento social subsequente, e concomitante poder gerador de realidade, pode ser

    concretizado atravs de qualquer nmero de afinidades entre o pessoal teorizador e os vrios

  • 22

    interesses sociais (idem, ibidem), existindo a possibilidade histrica de manipulaes

    ideolgicas por parte de grupos com interesses polticos.

    A identidade de um indivduo est, assim, sujeita a uma luta de inscrio em realidades

    por vezes conflituantes. Os universos simblicos so criados para legitimarem a estrutura

    institucional criada, assumindo-se assim como um conjunto de crenas que visam tornar a

    estrutura institucionalizada plausvel e aceitvel para o indivduo, mesmo que tenha essa noo

    e/ou no concorde com a lgica subjacente instituio. Como um sistema ideolgico, o

    universo simblico coloca tudo no seu devido lugar, percecionando explicaes para que se

    faam as coisas da forma como as fazemos. Fazem parte desse universo simblico os

    provrbios, as mximas morais, a mitologia, as religies, as tradies metafsicas e outros

    sistemas de valores. Eles assumem todas as formas (mais ou menos sofisticadas) tendentes a

    legitimar as instituies estabelecidas (Berger & Luckmann, 1999 [1966]).

    1.3. O nacionalismo e a identidade nacional

    O nacionalismo conjunto de smbolos e crenas que proporcionam o sentido de se

    fazer parte de uma comunidade poltica nica (Giddens, 2009 [2001]: 452) - embora

    identificado originalmente com a burguesia (classe que teve um papel decisivo na formao dos

    ), decorre da revoluo capitalista, constituindo-se como uma das cinco grandes ideologias da

    sadas. Para alm do nacionalismo, contabiliza-se o liberalismo, o socialismo, o eficientismo e o

    ambientalismo. De todas, a nica que no universal o nacionalismo, uma vez que se

    circunscreve a cada nao. (Bresser-Pereira, 2008: 11).

    Sobre os conceitos de nao e de nacionalismo, ainda se est longe de obter uma

    nica explicao convincente para os definir, embora esta temtica tenha, ao longo dos tempos,

    concitado o interesse de vrios investigadores que, no entanto, nos proporcionaram

    interessantes e teis estudos, sobre os quais vrios estudiosos direcionaram as suas

    investigaes. Nesta investigao foram escolhidos alguns postulados relativos temtica do

    nacionalismo, na sua maioria, que adotaram o princpio de que a partir da anlise da nao

    como artefacto cultural (como representao), que ser possvel conceptualizar a identidade

    nacional e explicar a sua relevncia nas sociedades contemporneas, especialmente nos

    domnios cultural, social e poltico (Rovisco, 2000: 2).

    A escolha dos autores, obedeceu a um propsito direcionado para o objetivo deste

    estudo, que pretende relevar a viso das temticas adstritas ao nacionalismo para perceber o

  • 23

    contexto e os pilares em que assentou, nomeadamente, o Estado Novo portugus (nao,

    estado, ptria, cultura nacional, antiguidade dos factores nacionais, tradies, disseminao da

    conscincia nacional, convergncia cultural, simbolismo, ritual, fascismo, folclore e propaganda).

    A maior parte das perspetivas assenta na existncia de um sentimento cultural comum

    entre os membros de uma mesma nao, que decorre da existncia de um passado que se

    cruza com e entre eles, podendo mesmo estar ligado a uma etnia dominante, criado sobre

    tradies (inventadas ou reapropriadas), mitos e lendas fundadores, bem como da tradio oral.

    A fundao do estado-nao colocada na modernidade e assimilada como uma

    representao decorrente das vrias mudanas sociais e polticas, como so os casos da

    burocracia, da secularizao, da industrializao e da comunicao de massas (Rovisco, 2000).

    Orientando-se numa postura declaradamente construtivista, os autores que se tm

    dedicado compreenso da nao rejeitam veementemente a ideia, cara aos pensadores

    nacionalistas, de que ela seja encarada enquanto entidade eterna e imemorvel. Ao contrrio

    dos autores nacionalistas, que defendem que a nao, como o indivduo, o culminar de um

    longo passado de esforos, sacrifcio e devoo (Renan, 1990: 19), os autores construtivistas

    rejeitam a ideia de que a nao constitua uma entidade eterna.

    E, no obstante ser quase consensual a ideia de nao enquanto construo, o facto

    que a sua origem bem como a do nacionalismo -, no colhe unanimidade, designadamente

    quando se pretende explicar o carcter inescapvel da identidade nacional nas sociedades

    contemporneas (Rovisco, 2000: 3). Questiona-se, ento, se a identificao com a nao

    decorre da modernidade (como a maioria dos autores defende) ou se existem elementos

    culturais pr-modernos a ponderar quando surgem discusses assentes numa lgica de

    pertena a uma nao (Rovisco, 2000).

    Desde os anos 60 do sculo XX que se vive numa era assente no desenvolvimento das

    Tecnologias da Informao e da Comunicao (TIC), com o consequente incremento da

    velocidade e da alterao do conceito de tempo. A fragmentao subsequente e a integrao de

    novas realidades desembocou na crise de paradigmas (Lyotard, 1986 [1984]; Martins, 2011),

    que conduziu crise de identidade, como se ver mais frente.

    Segundo Ernest Gellner, o termo nacionalismo seja como sentimento, ou enquanto

    movimento - pode ser entendido como um princpio poltico que defende que a unidade nacional

    e a unidade poltica devem corresponder-se. O que consubstancia uma teoria da legitimidade

    poltica que exige que as fronteiras tnicas no atravessem as fronteiras polticas. Um

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    movimento nacionalista , por conseguinte, aquele que assenta num sentimento nacionalista, ou

    por ser caracterizado pelo estado de clera causado pela violao desse princpio ou o estado

    de satisfao causado pela sua realizao (Gellner, 1993: 11).

    Com o livro Naes e Nacionalismo (1993), Gellner assumiu-se como um terico de

    referncia relativamente temtica do nacionalismo, sustentando tratar-se de um acontecimento

    especfico da sociedade moderna, sendo que o princpio poltico do nacionalismo que a

    unidade nacional seja igual unidade poltica (Gellner, 1993:13). Da mesma forma refere que

    existe uma violao intolervel quando se d o caso de os governantes pertencerem a uma

    nao diferente, o que pode fazer com que uma unidade poltica territorial [possa] tornar-se

    etnicamente homognea quando mata, expulsa ou assimila todos os no-nacionais (idem,

    ibiem).

    O autor observa, de incio, duas vertentes na construo de uma teoria da nacionalidade:

    uma composta pela vontade e pela cultura, a adeso voluntria e a identificao, a lealdade e a

    solidariedade; e outra onde coabitam o medo, a coero e o constrangimento. De forma seletiva,

    o nacionalismo utiliza aspetos herdados historicamente, como as culturas e/ou a riqueza cultural

    j existentes.

    Embora a ideia-mestra na obra de Gellner assente no facto de os nacionalismos

    produzirem as naes, a verdade que o autor admite a hiptese de as naes poderem ser

    anteriores emergncia dos nacionalismos, exemplificando com a existncia, na poca

    medieval, de estados dinsticos que coincidiam com a mesma lngua e a mesma cultura. O que

    quer dizer que o nacionalismo no um produto que decorra exclusivamente da industrializao,

    embora reconhea ter recortes de modernidade. Para Gellner, o aparecimento das naes e do

    nacionalismo centra-se no contraste entre as sociedades agroletradas e industriais e o impacto

    geral da industrializao, que motivaram, ambas, mudanas de fundo na sociedade decorrentes,

    nomeadamente, da mobilidade social e da diviso do trabalho, o que promove a criao de uma

    cultura comum, alimentada pela implementao de um sistema escolar de massas. Sobre a

    antiguidade de fatores nacionais que podem pesar na lgica nacionalista, Gellner sublinha que

    muitas naes so detentoras de ncleos antigos genunos, havendo outras que os inventaram

    numa ao oriunda da sua prpria propaganda, havendo algumas inteiramente destitudas dos

    mesmos.

    Para alm das excees referidas em relao ao perodo medieval e aos estados

    dinsticos correspondentes a uma lngua e a uma cultura comuns, evidenciadas em Naes e

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    Nacionalismo, que tem vindo a ser seguido, bem como na obra pstuma Nacionalismo

    (1998), o leque vai aumentando o que, segundo Jos Manuel Sobral (2003) poder mesmo

    colocar em causa as anteriores teorizaes de Gellner. Assim, este autor, para alm de admitir a

    existncia de uma articulao entre o estado e as zonas lingustico-culturais na Europa ocidental

    antes dos impactos da teoria nacionalista e da industrializao, refere a existncia de culturas

    nacionais no Centro da Europa e uma cultura nacional j bastante desenvolvida entre os

    polacos, sendo que a zona dos Balcs j era palco de intensos conflitos nacionalistas antes do

    advento da indstria (Gellner, 1998).

    Outro autor que se dedicou a esta temtica foi Eric Hobsbawm. As suas ideias cruzam-

    se com as de Ernest Gellner, nomeadamente no que nao diz respeito, encarada enquanto

    realidade recente e como entidade social, somente pelo facto de estar ligada ao estado-nao:

    As naes no fazem estados e nacionalismos, o contrrio que verdadeiro (Hobsbawm,

    1994 [1990]: 9-10). O estado-nao constitui, assim, o elemento crucial da nao moderna,

    pelo que o nacionalismo moderno, no contexto do sculo XVIII, s existe numa relao direta a

    um conceito de soberania popular assente num estado independente. Hobsbawm observou, no

    entanto, que Gellner no concedeu a devida ateno forma como foi visto e recebido o

    nacionalismo por parte da generalidade dos cidados que so o objecto da aco e propaganda

    levada a cabo pelas elites polticas, governantes ou activistas de movimentos nacionalistas

    (idem: 10-11). Aproxima-se, porm, de Gellner ao defender que as naes emergiram na

    sequncia das revolues do sculo XVIII (Frana e EUA) e do princpio do sculo XIX, tendo

    decorrido de um contexto especfico de desenvolvimento econmico, tecnolgico e de

    transformao social e poltica. Utiliza, por isso, o conceito de nao no sentido moderno

    considerando que os governos, antes de 1884, no estavam ligados ao conceito de nao, como

    d