visões e ilusões políticas uma análise crítica e cristã das ideologias

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  • Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)Anglica Ilacqua CRB-8/7057

    Koyzis, David T. Vises & iluses polticas: uma anlise e crtica crist das ideologias

    contemporneas / David T. Koyzis; traduo de Lucas G. Freire. So Paulo: Vida Nova, 2014.

    352 p.

    BibliografiaISBN 978-85-275-0586-4Ttulo original: Political Visions & Illusions: A Survey and Christian Critique of

    Contemporary Ideologies

    1. Cristianismo e poltica 2. Ideologia Aspectos religiosos 3. Cristianismo I. Ttulo II. Freire, Lucas G.

    14-0422 CDD 261.7

    ndice para catlogo sistemtico:

    1. Cristianismo e poltica

  • Copyright 2003, de David T. KoyzisTtulo original: Political Visions & Illusions: A Survey and Christian Critique of Contemporary IdeologiesTraduzido da edio publicada pela InterVarsity Press, Downers Grove, Illinois, EUA.

    1a edio: 2014

    Publicado no Brasil com a devida autorizao e com todos os direitos reservados por Sociedade Religiosa Edies Vida Nova, Caixa Postal 21266, So Paulo, SP, 04602-970.www.vidanova.com.br | e-mail: [email protected]

    Proibida a reproduo por quaisquer meios (mecnicos, eletrnicos, xerogrficos, fotogrficos, gravao, estocagem em banco de dados etc.), a no ser em citaes breves com indicao de fonte.

    ISBN 978-85-275-0586-4

    Impresso no Brasil / Printed in Brazil

    Superviso EditorialMarisa K. A. de Siqueira Lopes

    Coordenao EditorialJonas MadureiraFabiano Silveira Medeiros

    Edio de TextoMarcelo Brando Cipolla

    CopidesqueWilson Almeida

    Reviso de ProvasFernando Mauro S. Pires

    Superviso de ProduoSrgio Siqueira Moura

    DiagramaoSonia Peticov

    CapaWesley Mendona

    Todas as citaes bblicas, salvo indicao contrria, foram extradas da verso Almeida Sculo 21, publicada no Brasil com todos os direitos reservados por Sociedade Religiosa Edies Vida Nova.

    A marca FSC a garantia de que a madeira utilizada na fabricao do papel deste livro provm de florestas que foram gerenciadas de maneira ambientalmente correta, socialmente justa e economicamente vivel, alm de outras fontes de origem controlada.

  • S u m r i o

    Prefcio 9

    1. introduo: ideologia, religio e idolatria 15 Poltica e ideias 18 Histria e definies 20

    A ideologia numa perspectiva crist 26 Pr-requisitos para o surgimento de ideologias 27 A ideologia como um fenmeno religioso: esboo de definio 32 Classificao das ideologias: esquerda e direita 42 Discernindo os espritos nas ideologias 46

    2. LiberaLismo: a soberania do indivduo 50 Os diversos significados do liberalismo 52 O credo liberal 56 O liberalismo tardio e o crescimento do Estado 63 O bem e o direito: subsidiando escolhas 73 O Estado espiritualmente vazio: a privatizao das crenas

    fundamentais 78 Pecado e salvao no liberalismo 82

    3. conservadorismo: a histria como fonte das normas 87 O doente e a doena: o credo conservador 91 Nossa grama mais verde que a do vizinho 95 Quais tradies? Quando? 100 O conservadorismo e o cristianismo 108 O conservadorismo e o Estado 113

    4. nacionaLismo: a nao deificada 117 O credo de um sculo inteiro 125

  • 6 V i s e s e i l u s e s p o l t i c a s

    Nacionalismo cvico e nacionalismo tnico: Estado versus tribo 131 A viso nacionalista do Estado 136 Lealdade patritica: uma devoo moderada 140 O nacionalismo e os cristos 143

    5. democracia: Vox populi vox Dei 149 Estrutura e credo 149 Do liberalismo democracia 155 As tentaes majoritria e totalitria 160 Democratizao sem limites 166 Recapitulao do credo e da estrutura: democracia direta

    versus democracia representativa 172 Representao: seguir ou liderar? 175 Democracia e justia: comentrio final 180

    6. sociaLismo: a salvao pela propriedade comum 183 Um mundo de socialismos 184 Uma viso transformadora 189 Da democracia ao socialismo 192 Propriedade comum e ideologia socialista 197 Meios e fins: a igualdade e como alcan-la 204 A viso marxiana e o marxismo 207 Distribuio equitativa de recursos econmicos 214

    7. transcendendo as ideoLogias: afirmando a pluriformidade social 221

    Uma resposta crist e bblica 226 Uma cosmoviso crist: criao, queda e redeno 229 A ordem da criao: correo de algumas concepes errneas 235 Discernindo os espritos: pluralismos e pluriformidade 244

    8. rumo a uma aLternativa no ideoLgica: duas abordagens crists 260

    O papel da doutrina social catlica romana 260 O princpio da subsidiariedade: afirmando a sociedade civil 263

  • 7Sumrio

    A Reforma: Joo Calvino e Johannes Althusius 269 Desenvolvimentos na Holanda: Groen van Prinsterer

    e Abraham Kuyper 271 Soberania das esferas: uma afirmao no hierrquica da

    sociedade civil 277 A contribuio de Herman Dooyeweerd 283

    9. o estado e sua misso: promovendo a justia no mundo de Deus 294

    Justia e responsabilidade diferenciada 304 A justia e o Estado 314

    ePLogo: rumo ao futuro 319

    bibLiografia seLecionada 323

    ndice remissivo 343 ndice remissivo 339

  • P r e f c i o

    A distncia entre viso e iluso , s vezes, assustadoramente pequena. Todos queremos enxergar com a mxima clareza possvel. Podemos at nos orgulhar, da nossa capacidade de entender e interpretar o mundo como ele realmente . No entanto, em nosso contnuo esforo para compreender o mundo que nos cerca, nossa observao inevitavelmente filtrada por uma ou mais cosmovises. Uma cosmoviso ou o que os alemes chamam de Weltanschauung no ainda um modelo terico passvel de verificao ou refutao pelos meios comuns de demonstrao. Ao contrrio, a cosmoviso uma viso pr-terica, arraigada num compromisso religioso bsico, em interao com a experincia ordinria da vida.

    Porm, toda viso est sujeita distoro, e damos o nome de iluses s vises distorcidas. Uma iluso nos d uma falsa interpretao do mun-do, mas sua falsidade nem sempre imediatamente evidente para todos, ao menos primeira vista. Pelo contrrio, uma iluso pode ser persuasiva a ponto de convencer um sem-nmero de pessoas de que suas pretenses representam a verdade total. Apesar disso, at mesmo as iluses tm um fundo de verdade, pois o prprio mundo para o qual elas olham um dado inescapvel. Poderamos concluir da que precisamos de algum meio, talvez at de um dom da graa de Deus, que nos capacite a entender a complexa relao entre essas vises e iluses opostas, por um lado, e o mundo que elas tentam interpretar, por outro.

  • 10 V i s e s e i l u s e s p o l t i c a s

    Caso se trate somente (por exemplo) de verificar se uma senhora de 35 anos e uma menina de 8 anos atravessaram a rua para ir loja de brinquedos, parece que no precisamos ir alm do nosso poder ordinrio de observao. quando tentamos analisar essa experincia comum de modo mais profun-do que podemos deparar com interpretaes conflitantes. Estamos, por aca-so, vendo duas pessoas isoladas dedicando-se a um empreendimento comum mediante um acordo mtuo de seus interesses prprios? Estamos observan-do dois membros da burguesia que vo realizar uma transao comercial de um bem suprfluo, usando o tempo livre viabilizado pela condio pri-vilegiada que possuem no sistema capitalista de produo? Estamos, talvez, enxergando duas cidads de um determinado Estado tirando vantagem da proteo que este lhes oferece para atravessar em segurana uma via pblica movimentada e entrar no estabelecimento de uma sociedade empresarial de responsabilidade limitada? Ou estamos vendo simplesmente me e filha numa relao familiar assimtrica, caracterizada pelo mtuo amor e devo-o? Num certo sentido, possvel vermos tudo isso, pois cada uma dessas interpretaes nos revela uma faceta da realidade completa.

    Contudo, se aceitarmos qualquer uma dessas verses como uma descri-o completa da realidade, no estaremos apenas dando nosso mero assenti-mento evidncia dos sentidos; essa evidncia estar sendo filtrada por uma cosmoviso que molda a nossa experincia, embora esta tambm molde a cosmoviso at certo ponto. Esse fato tem importantes implicaes para a poltica. So muitos os debates acirrados no mbito poltico que no acon-tecem simplesmente porque um ou outro lado se recusa a aceitar os fatos ou a ser razovel (como tantas vezes ouvimos), mas, sim, porque ambos os lados se pautam por vises diferentes da realidade, aliceradas em paradigmas mutuamente excludentes. Apesar disso, mais adiante veremos que, na ver-dade, muitas dessas concepes polticas distintas, seja qual for o seu rtulo ideolgico, tm origem numa nica cosmoviso religiosa que v o cosmo como um sistema essencialmente fechado, sem referncia a um criador ou redentor. Em resumo, apesar do aparente conflito entre as diversas ideolo-gias, no fundo todas elas so subespcies de uma categoria mais ampla, que ser definida no captulo 1: a idolatria.

    No tenho a pretenso de ter criado essa tese. Outras pessoas a defen-deram antes de mim, notadamente o economista cristo holands Bob

  • 11Prefcio

    Goudzwaard em diversos livros seus, entre os quais Capitalism and Progress [Capitalismo e Progresso] e Idols of Our Time [dolos da Nossa Era].1 No co-meo da minha carreira, fiquei profundamente impressionado com a forma como Goudzwaard isolou a ligao entre ideologia e idolatria. Ao ler Idols of Our Time, me convenci de que essa ligao precisava ser trabalhada de modo mais detalhado, aplicando-a a cada ideologia. Assim, Goudzwaard foi e con-tinua sendo uma das principais influncias que formaram meu pensamento.

    Sou grato tambm a duas outras pessoas que muito impactaram minha maneira de pensar. James W. Skillen esteve por muito tempo frente do Center for Public Justice [Centro para a Justia Pblica, Washington, D.C.] e da organizao que o antecedeu, a Association for Public Justice [Associao para a Justia Pblica]. Skillen certamente uma dessas pessoas que s cres-cem em sabedoria e conhecimento a cada ano que passa. Seus escritos so uma fonte abundante do discernimento que, embora de forma limitada, tentei expressar neste livro. No que se refere especialmente s questes aqui tratadas, aprendi muito com ele: sobre a extenso da fidelidade de Deus sua criao, at mesmo diante da nossa incredulidade; e sobre o quanto as ideo-logias so deficientes no seu entendimento do carter do Estado como ins-tituio poltica diferenciada, com seu lugar prprio no mundo de Deus. O fato de termos dado ouvidos s diversas vozes ideolgicas que distorceram nossa vida neste mundo no anula o fato de que ele ainda pertence a Deus e que, por sua graa preservadora, o impacto do pecado continua limitado. Tambm verdade que, embora os adeptos de vrias teorias tentem reduzir o Estado a alguma outra coisa uma associao voluntria que no se dis-tingue de um clube privado, uma sociedade comercial, um ponto focal para a lealdade comunitria , a experincia pr-terica facilmente capaz de diferenciar a comunidade poltica de outras estruturas comunitrias, como a famlia. A misso estatal de promover a justia, mesmo que tenha se per-vertido de alguma forma, tende inevitavelmente a reemergir. Isso tambm fruto da graa preservadora de Deus.

    Tambm devo muito ao meu amigo e colega Albert M. Wolters, que, apesar de sua alegao possivelmente irnica de ter pouco interesse pela

    1 Bob Goudzwaard, Idols of Our Time, Downers Grove: InterVarsity Press, 1984.

  • 12 V i s e s e i l u s e s p o l t i c a s

    poltica enquanto tal, ajudou-me a compreender a ligao entre as ideolo-gias e a heresia gnstica da Antiguidade, a qual alega que a fonte do mal no est em nossa rebelio contra Deus e sua Palavra, e sim num problema estrutural da criao. No ato de no estabelecer diferena entre a estrutura da criao e seu sentido espiritual, os seguidores das diversas ideologias ten-dem a pressupor que a salvao vem da libertao da humanidade em rela-o a alguma faceta da criao de Deus; concomitantemente, eles depositam sua confiana em alguma outra faceta da prpria criao.

    Muitas outras pessoas me influenciaram ou desempenharam um papel mais direto na minha forma de pensar. As que mais contriburam foram as seguintes: Abraham Kuyper, estadista cristo holands e polmata, cujas re-flexes sobre a poltica e a sociedade foram construdas em resposta se-cularizao generalizada dos Pases Baixos durante o sculo 19; Herman Dooyeweerd, que foi por vrias dcadas catedrtico de Filosofia do Direito na Universidade Livre de Amsterd e cuja filosofia crist tem me ajudado enormemente a compreender a natureza da poltica e do Estado; Jean Bethke Elshtain, da Universidade de Chicago, cujos escritos mostram um raro grau de bom senso motivado pelo esforo de se manter ao largo dos vrios pro-gramas ideolgicos; Paul Marshall, da Freedom House (Washington, D.C.), e Mary Ann Glendon, da Escola de Direito da Universidade Harvard, cujos textos sobre direitos humanos demonstraram quanto complexa a reivin-dicao de direitos numa poca em que estes so vistos como a resposta para qualquer controvrsia poltica; Roy A. Clouser, cujo livro The Myth of Religious Neutrality [O Mito da Neutralidade Religiosa],2 juntamente com outros escritos, elucida o carter dos vrios tipos de crena religiosa e suas respectivas compreenses do mundo criado por Deus; Bernard Zylstra, que foi meu mentor no Institute for Christian Studies [Instituto para Estudos Cristos, em Toronto] e me apresentou aos escritos de Hannah Arendt, Leo Strauss, George Grant e Eric Voegelin; Jacques Maritain, cuja aplicao de uma perspectiva neotomista catlica romana s mais diversas reas da ativi-dade humana tem uma abrangncia impressionante; Yves R. Simon, cujas

    2 Roy A. Clouser, The Myth of Religious Neutrality, Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1992.

  • 13Prefcio

    reflexes sobre a autoridade e seu lugar numa sociedade democrtica con-tinuam a fazer sentido dcadas depois de terem sido formuladas; David L. Schindler, cuja abordagem catlica agostiniana compreenso das ideologias muitssimo parecida com a abordagem desenvolvida no presente livro; H. Richard Niebuhr, cujas reflexes pioneiras sobre a relao entre cristianis-mo e cultura impactaram diversos pensadores na segunda metade do sculo 20; Hannah Arendt, Sheldon S. Wolin e Bernard Crick, os quais entendem que a poltica simplesmente poltica uma forma insubstituvel, se bem que no utpica, de permitir que interesses diversos e potencialmente conflitantes coexistam em paz; e George Grant e Christopher Lasch, um canadense e um americano que compreendem, acima da maioria, que o embate ideolgico contemporneo nem sempre o que parece ser e reconhecem que a popular diviso dicotmica entre esquerda e direita no debate poltico contempor-neo simplista, na melhor das hipteses, e enganadora, na pior.

    Devo tambm reconhecer as contribuies de outras pessoas que leram e comentaram os rascunhos deste livro ou ajudaram, de alguma forma, na sua composio. Alm de Skillen e Wolters, incluo: John Hiemstra (The Kings University College, em Edmonton, Alberta), Fred VanGeest (Dordt College, Sioux Center, Iowa), Anthony Wells (Secretrio de Correspondncia do Exmo. Sr. William Hague, ex-lder do Partido Conservador do Reino Unido); John Fawcett (Biblioteca Memorial Buswell, Wheaton College, Wheaton, Illinois), William G. Witt (Igreja Episcopal), Donald Leach (Wellesley College), Edward A. Goerner (Notre Dame University, Indiana), Elaine Botha, Robert MacLarkey, Harry van Dyke, Jacob Ellens, Michael Goheen, Justin Cooper e outros colegas no Redeemer University College, John Bolt (Calvin Theological Seminary, Grand Rapids), Paul Brink (Eastern University, St. Davids, Pennsylvania), Michael C. Hogeterp (Igreja Crist Reformada), Gary Miedema (Tyndale College, Toronto) e, final-mente, Douglas R. Johnson, grande amigo e colega de graduao, que me apresentou aos escritos de Kuyper e Dooyeweerd h mais de trinta anos. Meus agradecimentos vo tambm para o Redeemer University College por ter coberto parte das despesas ligadas preparao deste livro. Todas essas pessoas e instituies contriburam de alguma forma para este projeto. Naturalmente, a responsabilidade por qualquer imperfeio minha.

  • 14 V i s e s e i l u s e s p o l t i c a s

    Finalmente, quero fazer uma dedicatria dupla. Primeiro e acima de tudo, este livro dedicado aos dois grandes amores da minha vida, minha esposa, Nancy, e minha filha, Theresa; o amor delas por mim maior do que eu jamais poderia imaginar. Quando comecei a escrever este livro, eu era solteiro. Agora sou um homem de famlia, experincia que enriqueceu deveras o meu entendimento dos assuntos aqui considerados. Em segundo lugar, dedico este livro aos meus alunos do passado, do presente e do futuro, que estimulam meu pensamento. Eles tm sido sempre leais para comigo e tm me trazido a mensagem da graa de Deus ao longo dos anos.

    Soli Deo gloria. A Deus somente seja a glria.

  • 1i n t r o d u o

    Ideologia, religio e idolatria

    Vivemos numa poca extraordinria. At pouco tempo atrs, parecia que o mundo estava preso num impasse apocalptico entre as duas superpo-tncias e suas ideologias rivais. Durante os quarenta anos da Guerra Fria, ambos os lados gastaram imensa energia tentando converter os coraes e as mentes dos povos do mundo, seja ao comunismo, seja democracia liberal. Embora consideraes antiquadas sobre o interesse nacional tenham feito parte desse longo conflito, a Guerra Fria, especialmente nos seus anos finais, foi singular no sentido de ter sido antes de tudo um choque entre ideias opostas. Durante esse perodo, uma desero para o outro lado como, por exemplo, as de Kim Philby ou Arkady Shevchenko no era tanto uma questo de trair a ptria quanto de declarar uma crena nos ideais que alimentavam o sistema poltico e econmico do pas rival. Naquele con-texto, toda a noo de lealdade ptria tinha uma conotao diferente em relao a outros conflitos do passado. bem verdade que a Guerra Fria no foi o primeiro conflito ideolgico da histria, mas foi provavelmente o que mais durou.

    Apesar disso, na era ps-Guerra Fria se que podemos cham-la assim , a tradicional lealdade a esses conjuntos de ideias que apropriadamente podemos denominar ideologias vem sofrendo um abalo indito. Um dos fa-tores mais drsticos foi o colapso do comunismo, que ocorreu rapidamente no final de 1989 no Leste Europeu e acabou levando dissoluo da prpria

  • 16 V i s e s e i l u s e s p o l t i c a s

    Unio Sovitica no final de 1991. Embora para muitos de ns, do lado de fora, isso tenha sido uma surpresa, os que estavam ali dentro, especialmente os cristos, pareciam entender que o sistema marxista-leninista no perdu-raria. Com efeito, justo afirmar que, no final, a ideologia j estava morta havia algum tempo, ao menos no corao do povo. Em 1989, as aparncias finalmente passaram a refletir a realidade viva da crena real das pessoas.

    Uma transio no menos dramtica foi o fim inesperado e surpreenden-temente rpido do apartheid na frica do Sul atravs da atuao de F. W. de Klerk e Nelson Mandela. Durante dcadas, os africneres1 tinham crido ou tinham tentado convencer-se de que o mtodo para resolver problemas numa sociedade plural era separar, pela fora, os diversos grupos tnicos e permitir que cada um deles se desenvolvesse nos seus prprios termos, sob instituies polticas separadas. O apartheid era arraigado, ainda, num nacionalismo tnico que celebrava a glria da vida africner: sua histria, seu idioma e at mesmo seu tipo particular de cristianismo reformado. Ao fim do apartheid, at os brancos na frica do Sul estavam em sua maioria convictos de que essa poltica tinha sido altamente destrutiva. O que acon-teceu para que o apartheid fosse finalmente abolido foi nada menos do que a morte de um tipo de f nacionalista.

    Talvez com menos intensidade, ns ocidentais tambm temos experi-mentado renitentes dvidas e inquietaes diante de nossas prprias ideo-logias, especialmente o liberalismo e a democracia. O liberalismo, como veremos, se baseia numa crena na primazia do indivduo. Hoje, ao que pa-rece, estamos sofrendo as consequncias de um individualismo exacerbado, evidenciadas em diversas patologias sociais graves. A insistncia nos direitos sem a nfase compensatria nas responsabilidades nos priva de quase todo fundamento para uma comunidade genuna, fato que os americanos tm descoberto com grande pesar. At a democracia, que valoriza a comunidade muito mais do que o liberalismo, degenerou e vem se transformando em

    1 Os africneres so sul-africanos de origem holandesa, alem ou francesa huguenote. Sua chegada frica se deu com o estabelecimento de uma base comercial no Cabo da Boa Esperana por Jan van Riebeeck, em 1652, para a Companhia Holandesa das ndias Orientais. Seu idioma, o africner, derivado do holands.