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TÍTULO: A SENTINELA TÍTULO ORIGINAL. The Night Watchman AUTOR: RICHARD ZIMLER GÉNERO: ROMANCE Tradução de José Lima Porto Editora DEP.lEGAl364049113 ISBN 978-972-0-04490-7 1.ª edição: outubro de 2013 Reimpresso em novembro de 2013. Este livro respeita as regras do Acordo Ortográfico da Lingua Portuguesa. Esta obra foi digitalizada e corrigida pelo Serviço de Leitura Especial da Biblioteca Municipal de Viana do Castelo. Destina-se unicamente a pessoas com necessidades especiais e não tem fins comerciais. Contactos do Serviço de Leitura Especial: Tel.: 258 809 340 E-mail: [email protected] Porto Editora Rua da Restauração. 365 4099-023 Porto I Portugal www.portoeditora.pt Execução gráfica Bloco Gráfico, Lda. Unidade Industrial da Maia. CAPA: Richard Zimler Autor de O Último Cabalista de Lisboa

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TÍTULO: A SENTINELA

TÍTULO ORIGINAL. The Night Watchman

AUTOR: RICHARD ZIMLER

GÉNERO: ROMANCE

Tradução de José Lima

Porto Editora

DEP.lEGAl364049113

ISBN 978-972-0-04490-7

1.ª edição: outubro de 2013

Reimpresso em novembro de 2013.

Este livro respeita as regras do

Acordo Ortográfico da Lingua Portuguesa.

Esta obra foi digitalizada e corrigida pelo Serviço de Leitura Especial da Biblioteca Municipal de Viana do Castelo. Destina-se unicamente a pessoas com necessidades especiais e não tem fins comerciais.

Contactos do Serviço de Leitura Especial:

Tel.: 258 809 340

E-mail: [email protected]

Porto Editora

Rua da Restauração. 365

4099-023 Porto I Portugal

www.portoeditora.pt

Execução gráfica Bloco Gráfico, Lda.

Unidade Industrial da Maia.

CAPA: Richard Zimler

Autor de O Último Cabalista de Lisboa

A Sentinela

«Richard Zimler tem um fulgor de génio que todos os romancistas ambicionam mas poucos alcançam

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The Independent

CONTRA CAPA: A SENTINELA

Até que ponto um único assassinato pode iluminar a crise moral em que se encontra o país?

6 de julho de 2012. Henrique Monroe, inspetor-chefe da Polícia Judiciária, é chamado a um luxuoso palacete de Lisboa para investigar o homicídio de Pedro Coutinho, um abastado construtor civil. Depois de interrogar a filha da vítima, Monroe começa a acreditar que Coutinho foi assassinado ao tentar defender a perturbada adolescente do violento assédio sexual de algum amigo da família. Ao mesmo tempo, uma pen que o inspetor descobre na biblioteca da casa contém alguns ficheiros com indícios de que a vítima poderá também ter sido silenciada por um dos políticos implicados na rede de corrupção que o industrial montara para conseguir os seus contratos.

Tendo como pano de fundo o Portugal contemporâneo, um país traído por uma elite política corrupta, que sofre sob o peso dos seus próprios erros históricos, Richard Zimler criou um intrigante policial psicológico, com uma figura central que se debate com os seus demónios pessoais ao mesmo tempo que tenta deslindar um caso que irá abalar para sempre os muros da sua própria identidade.

ABA DA CONTRCAPA: «Zimler usa a literatura para lembrar as terríveis abominações que levam o ser humano a destruir e a humilhar outros seres humanos […] e para apontar um caminho de redenção, de expiação e de ação jubilatória»

Público

«Richard Zimler é um romancista de uma erudição extraordinária»

The Literary Review

«Richard Zimler é um escritor emblemático e de indispensável leitura»

Helena Vasconcelos

«O dom que Zimler possui de pôr a descoberto o horror das injustiças humanas e ainda assim encontrar verdades universais e poesia na existência do dia a dia […] faz dos seus livros uma leitura indispensável»

The Jerusalem Post

ABA DA CAPA: Richard Zimler nasceu em 1956 em Roslyn Heights, um subúrbio de Nova Iorque. Fez um bacharelato em Religião Comparada na Duke University e um mestrado em Jornalismo na Stanford University. Trabalhou como jornalista durante oito anos principalmente na região de São Francisco. Em 1990 foi viver para o Porto, onde lecionou Jornalismo, primeiro na Escola Superior de Jornalismo e depois na Universidade do Porto. Tem atualmente dupla nacionalidade, americana e portuguesa. Desde 1996, publicou dez romances, uma coletânea de contos e dois livros para crianças.

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«Não é de modo nenhum garantido que a nossa personalidade individual seja o único morador da nossa aparência corpora... Todos nós fazemos coisas tanto acordados como a dormir que nos deixam surpreendidos. Talvez tenhamos colocatários nesta casa em que vivemos.»

Oliver Wendell Holmes

«Aquilo que antes se acreditava ser uma aberração rara, o distúrbio de personalidade múltipla, consiste na realidade num mecanismo de sobrevivência altamente— evoluído, adquirido por certas pessoas que se confrontam com traumas graves e prolongados.

Deborah Bray Haddock, The Dissociative Identity Disorder Sourcebook

Dedicatória e Agradecimentos

Para o Alexandre. E para os meus amigos e leitores portugueses.

Estou extremamente grato aos agentes da Polícia Judiciária de Lisboa e do Porto que se dispuseram a falar comigo acerca do seu trabalho, respondendo pacientemente a todas as minhas inúmeras perguntas:

José Brás, Veríssimo Santos Milhazes e José Carlos Nunes. Quaisquer erros que possam surgir neste livro acerca dos métodos de investigação seguidos pela polícia são da minha exclusiva responsabilidade. Esclareça-se também que as opiniões e ações expressas neste romance não visam refletir as opiniões ou ações de algum ou alguma agente em particular. Qualquer semelhança entre as personagens deste romance e quaisquer reais agentes da Polícia Judiciaria é pura coincidência:

Um agradecimento especial a Alexandre Quintanilha, Cynthia Cannell, Peggy Hageman, Jordi Roca e Isabel Silva por terem lido o manuscrito deste livro e pelas suas preciosas sugestões. Estou particularmente grato ao meu tradutor José Lima.

Um grande abraço para Chris Boreggio e Jo Coldwell.

«Talvez as nossas segundas oportunidades sejam os únicos fantasmas que alguma vez nos aparecem.»

Henrique Monroe

Capítulo 1

Enquanto eu passava os olhos pelas notas que tinha sobre a mesa, o suspeito sentado à minha frente dizia-me que nem ele nem a mulher tinham tido filhos, mas que não havia noite de há um mês para cá em que ele não fosse ver o filho à cama.

Não percebo... Que filho? - perguntei.

O meu filho imaginário. Fazemos sempre alguma coisa juntos, os dois.

Os seus olhos atentos pareciam ansiar pela minha confiança. Enquanto sopesava as minhas opções, ia soprando o chá fumegante.

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Muito bem, e então que idade tem esse seu filho imaginário? - perguntei, ao mesmo em o que anotava a data no meu bloco: «sexta-feira, 6 de julho de 2012, 10hI7.

Sete anos - responderam o suspeito. - Pelo menos, na maior parte das vezes. Pode depender das minhas fantasias do momento. - Mordeu o lábio e levantou o olhar para o teto, como se sentisse a necessidade de uns instantes para compor a sua história.

Vá lá, tanto eu como você merecemos mais do que me vir para aqui inventar essas histórias disparatadas - disse eu, e apontei para o monte de processos empilhados em cima da cadeira atrás da minha secretária. - Tenho ali pelo menos uns vinte casos a exigir a minha atenção, por isso se está só a fingir que...

Nunca lhe acontece pôr-se a imaginar como as coisas poderiam ter sido diferentes? - interrompeu ele num tom desesperado. Bebeu

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um gole rápido do copo de água. Compreendi que era a energia nervosa que o movia. Chamava-se Manuel Moura. Tinha trinta e dois anos, mas parecia mais novo, com um ar de estudante universitário. Era professor de Química do ensino secundário.

Então isso do filho inventado é mesmo a sério? - perguntei.

Nunca falei mais a sério em toda a minha vida.

E ele tem um nome? - perguntei, e senti a ligeira, a ténue, a hesitante perda de equilíbrio que por vezes nos invade quando damos um passo para dentro da história de outra pessoa.

Miguel.

E como é ele?

Tem o cabelo preto e fino com franja e uns olhos verdes enormes…Uma expressão viva, inteligente. Esboçou um largo sorriso pela beleza que criara. Um miúdo brilhante, sociável. E corajoso… realmente corajoso.

Moura tinha cabelo castanho-claro, penteado para o lado com cuidado, e os óculos de aros metálicos davam -lhe um ar tímido e reservado a lembrar um pouco o Harry Potter. Como eu achava que envenenar a mulher era tudo menos corajoso, disse:

Dá a impressão de que está a querer dizer-me, mas sem o dizer de facto, que o Miguel sai à mãe.

Moura levantou as mãos como que rendendo-se - mau grado seu à verdade que eu acabara de adivinhar, tirando depois os óculos e limpando os olhos. Parecia mais adulto sem eles - mais sincero, também.

Observou atentamente o meu gabinete, para a esquerda, para a direita, de novo para a esquerda, esticando o pescoço de um modo que noutras circunstâncias teria parecido cómico.

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Nenhuma fotografia da sua família na secretária, nenhum quadro... Isto é um pouco frio aqui - disse ele. - Não quer nada de pessoal no seu gabinete?

Sem o saber, tinha tocado numa das minhas permanentes fontes de mal-estar no trabalho. Talvez a minha linguagem corporal me tivesse denunciado.

Regras da polícia - disse eu. - Nada que o distraia a si, nem a mim.

Os inspetores que se veem nos filmes dão sempre aos gabinetes um ar bastante pessoal - explicou ele.

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Muito do que se passa nas séries de televisão não tem nada a ver com o que acontece aqui.

E quase sempre resolvem os casos em quarenta e oito horas.

Aposto que deve ver a CSI - disse eu num tom cansado; não era a primeira vez que faziam comparações desfavoráveis entre mim e os polícias de investigação das séries televisivas.

É verdade, sou um grande fã da série, da que se passa em Las Vegas.

Bem, a questão é que as séries policiais são feitas para o ter sentado na ponta do sofá, e isto... aqui, fiz um gesto circular com a mão a indicar o meu gabinete e, de um modo mais geral, a dimensão em que ele existia - ... isto, Sr. Moura, dá-se o caso de ser aquilo a que quase toda a gente chama a vida real. As pessoas por estes lados raramente são divertidas e, aqui entre nós, algumas poderiam ser consideradas bastante incompetentes. Como muito bem sabe, foi preciso uma semana inteira para o laboratório nos mandar os resultados das análises a substâncias tóxicas no corpo da sua esposa. E mesmo assim só com grande insistência minha.

Mas percebeu que o responsável era eu logo que recebeu o relatório? - perguntou ele num tom esperançado.

Parecia ansioso por ter uma melhor opinião sobre mim, o que me surpreendeu como sendo ao mesmo tempo ingénuo e cativante.

Professor de Química, envenenamento com cianeto... Não é preciso ser um génio para juntar as duas coisas - disse eu.

Baixou o olhar como se reconsiderasse se deveria abrir-se comigo. Para reconquistar a sua confiança, inclinei-me para ele e sussurrei num tom conspirativo:

Sou conhecido por desafiar as regras quando é preciso. - Rodei a caneca de café onde ponho as esferográficas de modo a que ele pudesse ler os dizeres em grandes letras azuis: I BLACK CANYON. - Foi a minha mulher que a mandou fazer para mim - disse eu. - Tem uma galeria de peças de cerâmica.

Sorriu com grata surpresa - provavelmente como o seu filho imaginário faria - e perguntou:

Onde é Black Canyon?

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Na América... No Sudoeste do Colorado.

Bem me parecia que falava com um ligeiro sotaque! - anunciou orgulhoso.

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Nasci lá perto.

Deve ser mesmo longe... Quer dizer, não só geograficamente.

É um mundo diferente.

Deve ser. - Baixou os olhos, considerando as suas opções. Quando os levantou de novo, voltou a parecer interessado em falar-me naquilo que mais contava para ele, mas à sua própria maneira particular. - O meu filho é realmente amoroso - disse. - Toda a gente gosta dele.

Bebi um gole rápido de chá e escrevi no meu bloco: «Vida de fantasia do suspeito»; fosse um sinal de discernimento ou de insanidade, era o tipo de coisas que eu gostava de pôr no papel. Tinha resmas de fotocópias de notas de interrogatórios em casa, embora continuasse a ser um mistério o que tencionava fazer com elas.

Toda a gente, quem? – perguntei.

Outros professores, vizinhos…Para onde quer que vamos, todos percebem que ele é especial.

Moura prosseguiu contando- me que pensar no filho imaginário era a única maneira de conseguir adormecer à noite. Enquanto falava, mantinha as mãos enclavinhadas. Dava a impressão de precisar de se controlar firmemente.

Ia acenando a cabeça, ansioso por nos convencer a ambos da veracidade daquilo que estava a dizer. Contou-me que a mulher deixara a vida deles num turbilhão rumo ao desastre quando se envolveu com o professor de Filosofia da sua escola.

Portou-se como uma verdadeira puta! - disse ele num tom enfurecido.

Murmurei para os meus botões: «Good authors, too, who once knew better words... »

O que é que disse? - perguntou.

Às vezes saem-me sem querer versos de canções em inglês ...

É um tique nervoso - expliquei.

Não há problema. Mas sabe o pior? - perguntou em tom de mofa. - O gajo com quem ela andava metida é um perfeito asno!

Mas é claro que ela não pensava o mesmo - disse eu, desafiador.

E parece-me que tinha todo o direito de pensar o que quisesse.

Talvez tivesse - admitiu ele.

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Talvez tivesse ou tinha mesmo? - insisti; suspeitos que tratam mal as mulheres tendem a fazer me esquecer a minha tática de lhes ganhar a confiança.

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Tem razão - concordou Moura, mas percebi que era apenas para me calar.

Oiça, vou dizer-lhe uma coisa que tive de aprender quando era muito novo - disse eu. - Os homens que consideram mulheres e namoradas propriedade sua são responsáveis por mais do que a quota que lhes cabe da infelicidade no nosso mundo.

Sim, acredito que sim - admitiu ele. - E há quanto tempo é polícia?

Há dezassete anos.

Deve ter visto algumas coisas nada bonitas durante esse tempo todo.

Pensei em dizer «a crueldade nunca sai de moda», mas soou-me muito a frase feita - fazia-me lembrar demasiado Philip Marlowe ou algum daqueles detetives das histórias que eu lia em miúdo, tentando desvendar a solução dos mistérios policiais.

Então o que é que o senhor e o Miguel fazem juntos enquanto tenta chegar à terra dos sonhos? - perguntei em vez disso.

A maior parte das vezes vamos até à praia, na Caparica. Agarro-lhe a mão e corremos até à beira-mar. Ele gosta de ficar parado a ver a areia a deslizar-lhe debaixo dos pés... Faz com que sinta que está a patinar. Põe-se a rir. E eu também!

Moura explicou que também levava o filho à Feira da Ladra, o enorme mercado de velharias por trás do Panteão, pois o rapazinho era doido por ferramentas agrícolas antigas e utensílios de cozinha - como o pai, naturalmente. Diante da jaula dos tigres no Jardim Zoológico de Lisboa, Miguel disse ao pai que gostava de ser feroz, de não ter medo e de ter uns dedos afiados como navalhas. Gostaria de correr pelas florestas dos Himalaias. «E queria que ninguém conseguisse apanhá-lo! acrescentei, como se isso fosse uma condição absoluta, Sublinhei duas vezes uma tal esperança, pois parecia-me a maneira de Moura dizer que passara muito tempo temendo que a mulher e os amigos pudessem apanhá-lo a ele e se apercebessem de que afinal não era o tipo tão ingénuo e tão bonzinho que pensavam.

Nesta altura da sua fantasia no zoo, Moura pegava em Miguel ao colo, abraçava-o com todo o alívio que lhe dava o ter finalmente encontrado uma companhia em quem podia confiar e dizia-lhe que, também ele, sempre desejara ser grande e poderoso, mas que até aí nunca ousara dizer isso a ninguém.

Sustentando o meu olhar, implorando a minha compreensão com a ensombrada profundidade dos seus olhos, Moura confessou que era

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um grande conforto poder dizer ao filho que nunca se tinha achado suficientemente forte. Desde os meus dez ou onze anos, era o que eu desejava dizer a alguém. Mas só fui capaz de o confessar ao Miguel. Não havia mais ninguém em quem pudesse confiar.

As lágrimas assomaram-lhe às pestanas e convenci-me de que era isto o que ele mais desejara contar-me desde o momento em que nos encontrámos. Uma semana antes, tinha ido a casa dele para lhe fazer algumas perguntas sobre a morte da mulher, e ele deve ter vislumbrado algo em mim que lhe deu a esperança de que eu o pudesse compreender. E neste momento deve também ter percebido que era a sua última oportunidade de explicar uma coisa importante sobre si próprio a outra pessoa.

Mas agora confessou-me também a mim o seu segredo - fiz-lhe notar.

Porque a minha vida acabou - disse ele, enxugando os olhos. - Por isso pouco importa. Provavelmente terei... não sei, uns cinquenta anos quando sair da prisão. Ou se calhar até mais.

Esperou que eu o contradissesse com um cálculo mais otimista.

Como não o fiz, desviou os olhos para aquilo que pensava ser o seu futuro. O queixo tremia-lhe; preparava-se para um longo combate.

Ouviu-se o telefone tocar na sala contígua. Através do vidro que separava o meu gabinete da sala onde dois dos meus inspetores tinham as secretárias, vi a nova agente da minha equipa, Lucinda Pires, atender o telefone.

Moura soltou um suspiro profundo, apaziguador, e disse:

Pensava realmente que o Miguel tinha mudado tudo. Mas se calhar foi estupidez minha acreditar que ele podia fazer com que as coisas fossem diferentes.

O tom desesperado na sua voz comoveu-me e, com um sobressalto, apercebi-me de que usara as suas fantasias sobre um filho não apenas para conseguir adormecer, mas também para tentar evitar cometer um crime. Tinha querido fazer o que estava certo. Tinha lutado e tinha fracassado.

Gostava de o ajudar - tornar a sua passagem pela prisão mais suportável.

Não foi estupidez - disse eu. - Mas talvez... talvez precisasse de esconder ainda mais profundamente as suas fantasias ... E manter-se firme

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até ter a certeza de conseguir falar com sua mulher sem lhe fazer mal.

Talvez possam ainda servir de ajuda de certa maneira... para aguentar tudo isto, quero eu dizer.

Sentindo compreensão na minha voz, voltou-se para a parede e começou a soluçar. A desolação dele apanhou-me desprevenido, e senti Gabriel erguendo-se por trás de mim, o que

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era estranho, pois nenhum perigo me ameaçava. Pelo menos, foi o que pensei nesse momento.

Oiça, senhor Moura - disse eu em voz baixa, na esperança de o trazer de volta a mim -, o senhor acha que o seu filho imaginário irá crescer consigo? Quer dizer, daqui a vinte anos, quando o senhor sair da prisão, será que o Miguel andará pelos trinta anos ou continuará com sete?

Ele esfregou os olhos e soltou novo suspiro.

Preferia que continuasse um miudito - respondeu. - Mas não sei bem se isso agora tem algum interesse.

Compreendendo que tanto ele quanto eu estávamos a precisar de um assunto mais leve por uns minutos, levei-o a falar sobre a escola.

À medida que começou a relatar os seus problemas com os miúdos que copiavam nos exames, senti que Gabriel se retirava. Invadia-me uma sensação de ligeireza. E pouco depois desapareceu completamente, deixando atrás de si um vazio com a forma exata da minha curiosidade acerca dele.

Assim que eu e Moura começámos a conversar, compreendi pela sua esforçada procura das palavras certas que não tinha há muito tempo ninguém com quem se abrir. Talvez fosse esta a primeira vez.

Quando entrei nos meandros do crime propriamente dito, Moura disse-me que tinha usado cianeto por atuar de forma rápida e segura.

Não queria que a minha mulher sofresse sem necessidade - explicou-me. - E não me importava que se revelasse nas análises. - Encolheu os ombros como que a mostrar que nunca fora intenção sua frustrar os nossos esforços.

Mesmo assim, podia ter tentado fugir depois - disse eu.

Ainda pensei em ir para o Brasil. Mas, ao ver a minha mulher morta, ao olhar para a cara dela... vi naquela imobilidade, naquele silêncio forçado ... qualquer coisa sobre nós os dois e sobre o nosso destino. Sobre como as coisas tinham começado e no que vieram a dar. E o que significava estar casado. Nesse momento percebi que fugir não tinha nenhum interesse.

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Aquelas palavras deixaram-me pouco à vontade. Talvez por ele ter compreendido uma coisa importante acerca do seu casamento tarde de mais.

É difícil preparar o cianeto? - perguntei, um pouco desapontado comigo próprio por abandonar uma conversa que poderia revelar-se mais significativa.

É canja - disse ele, com um gesto desvalorizando a dificuldade.

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Esforçou-se por não sorrir. Era evidente que achava que não seria grande coisa mostrar-se muito orgulhoso das suas habilidades. Era um sujeito estranho - tanto se mostrava desesperado como de um momento para o outro parecia pronto a assumir o papel de estrela do seu próprio espetáculo televisivo. Levado por um palpite, perguntei:

Anda a tomar algum medicamento?

Um antidepressivo – respondeu. – O meu médico achou que podia ajudar. Durante uns tempos não parava de pensar em suicidar-me. Embora neste momento esteja aqui na Judiciária e em vias de ir para a prisão. Não sei se hei-de considerar isto um progresso.

Riu-se sem vontade - o riso de um homem que acabara por não chegar nem de perto aonde sempre esperara. Bebi o meu chá. Estava cansado de falar com suspeitos que tinham arruinado toda e qualquer hipótese de felicidade que lhes fora dada. E que traíam as pessoas que amavam. Os seus impulsos destrutivos deixavam-me exausto.

Quando Moura voltou a pôr os óculos, percebi que gostava de parecer mais novo do que era; como uma camuflagem. Talvez fosse até um pouco mais perigoso do que eu imaginara. Era possível que tivesse até inventado a sua fantasia para me conquistar - que tivesse pressentido desde o primeiro momento que poderia levar-me com essa estratégia.

Entrei para a PJ em 1994 e desde então fora já completamente aldrabado por dois sociopatas nos interrogatórios. Tanto um quanto outro tinham estado sentados exatamente no mesmo sítio onde Moura agora se sentava. O Número Um era caixa num banco, tinha um sorriso irresistível e vivia com os pais em Almada. Revelara-se um contador de histórias apaixonante. Falámos sobretudo da sua coleção de moedas. Estava convencido da sua inocência até que um dos nossos cães-polícias nos levou aos corpos do pai e da mãe dele, enterrados debaixo do empedrado do pátio de sua casa. O Número Dois era uma bonita enfermeira do Hospital Santa Cruz no Estoril. Era capaz de rir, chorar ou explodir

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numa fúria indignada a seu bel-prazer: uma Meryl Streep dobrada em português. Estava convencido de que ela era vítima de uma odiosa conspiração, mas veio a descobrir-se que tinha matado pelo menos nove pacientes com injeções de morfina.

Se alguma coisa o trabalho na polícia me ensinou é que se pensamos que não podemos ser aldrabados estamos muito enganados.

Moura continuou a contar-me como tinha deitado o pó de cianeto no molho picante de tomate que certo dia fizera para o jantar.

A minha mulher gostava de comida muito picante - explicou.

Alguém bateu à porta do gabinete. Moura sobressaltou-se como se tivesse ouvido uma explosão.

Calma, não há problema - disse eu.

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A inspetora Pires enfiou a cabeça dentro do gabinete. Tinha entrado para a Judiciária só há uma semana.

Desculpe, senhor inspetor - disse ela. - Houve um crime.

Onde?

Em São Bento. Na Rua do Vale.

Era a minha semana de serviço, o que significava que me eram entregues todos os crimes de maior importância comunicados pela PSP. Os agentes da Polícia de Segurança Pública eram quase sempre os primeiros a chegar ao local porque as chamadas de emergência para o 112 seguiam para eles.

OK, Lucinda, diga aos técnicos de investigação para irem para a Rua do Vale de imediato. Eu vou para lá logo que puder.

Muito bem, chefe - disse a inspetora Pires, acrescentando em tom de advertência: - A PSP diz que a vítima era uma pessoa rica e bem relacionada, com muitos amigos no Governo.

Saí para falar com ela, fechando a porta atrás de mim.

Eu sei que está só a proteger-me, inspetora, mas não é provável que um cadáver vá telefonar a algum dos seus amigalhaços manda-chuvas a queixar-se por eu ter demorado mais uns minutinhos a interrogar um suspeito. Não tenha medo da PSP.

Muito bem, chefe. Desculpe.

Falara em tom simpático, mas deu-me a impressão de ela ter ficado à beira das lágrimas; por isso, pus-lhe a mão no ombro e acrescentei:

Não queria ser bruto. É que este suspeito deixa-me baralhado.

Uma coisa que pode fazer por mim é ligar para o Dr. Zydowicz. Quero que ele fique com este caso.

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Zydowicz era o médico-Iegista chefe. Tinha acabado de voltar para o trabalho depois de dois meses de baixa por doença. Não éramos obrigados a ter um médico-Iegista sempre à mão, mas eu preferia ter um por perto em casos mais importantes.

Voltei para o gabinete para terminar o interrogatório de Moura. Ele acabava de beber o resto da água quando entrei. Passados alguns minutos, tínhamos chegado a um acordo sobre o texto exato das suas declarações. Assim que acrescentou a sua assinatura numa letra miudinha e cuidada, devolveu-me a esferográfica e disse num tom esperançado:

Se calhar não sou assim tão má pessoa.

Hesitei na resposta a dar-lhe; queria ser sincero, mas parecia-me que não tinha sentido feri-lo inutilmente.

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Às vezes as pessoas ficam tão perdidas que não conseguem encontrar o caminho de volta para si próprias. Acho que foi isso que se passou consigo. Mas também lhe digo que nunca ninguém entrou no meu gabinete para ser interrogado a considerar-se má pessoa.

Sentia-me tentado a dizer mais alguma coisa, mas ele tinha dado de tal maneira cabo da sua vida tranquila que os danos eram irreparáveis, e isso parecia dar-lhe o direito a ficar com uma ou duas ilusões. Mesmo assim, pressentiu que eu lhe ia dizer mais alguma coisa.

Força, eu aguento - disse ele.

Olhei-o atentamente para me assegurar de que falava a sério. Confirmou com um aceno de cabeça enérgico.

Desculpe ter de lhe dizer isto, mas acredita mesmo que o seu filho imaginário o considerará um bom pai quando descobrir que o senhor lhe envenenou a mãe?

Também pensei nisso - reconheceu, endireitando-se na cadeira.

Parecia contente por as nossas cabeças funcionarem da mesma maneira.

Foi por isso que fiz as coisas de modo a que nunca o venha a saber.

Nunca mais volta a pensar nele? - perguntei num tom cético.

Ignorando a minha pergunta, disse numa voz agradecida:

O senhor é bom tipo. E sabe ouvir as pessoas. Obrigado. Tive sorte em ter sido o senhor a última pessoa com quem falei. Não se preocupe, vai ter muita gente com quem falar na prisão. E há de haver lá muitos que vão ficar felicíssimos por terem um amigo especialista em Química. Pode ser até que...

Levando as mãos ao peito, respirou sofregamente e começou a tossir.

Que se passa? – perguntei.

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Baixou os olhos, respirando como um peixe fora de água.

Não queria ter de contar ao meu filho - disse numa voz entrecortada. - Nem a mais ninguém. - Deixou-se tombar em cima da secretária, as mãos aferradas às bordas, os nós dos dedos brancos.

O que é que fez? - perguntei, sobressaltado.

Fechou os olhos. As mãos largaram a mesa.

Não vale a pena chamar a ambulância.

Merda! - berrei.

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Precipitei-me para ele, enquanto a cabeça lhe descaía sobre o tampo da secretária com um som cavo. A mão direita endireitou-se com um esticão e mandou pelos ares a caneca I BLACK CANYON e todas as minhas esferográficas. Tinha os olhos abertos, mas já sem verem nada do nosso mundo. Um fio de sangue corria-lhe do nariz.

A inspetora Pires saiu a correr do gabinete do lado. Gritei-lhe que chamasse uma ambulância.

E diga aos médicos que tragam um antídoto para cianeto!

Tomei o pulso de Moura e senti uma pulsação ténue, mas regular.

Levantando-o da cadeira, estendi-o no chão, deitado de costas, de modo a que o coração não tivesse de se esforçar muito. Reparei num pequeníssimo quadrado de papel de alumínio junto a uma das pernas da mesa.

Não me faça uma coisa dessas! - disse eu, mas uns segundos depois o coração deixou de bater. Sentindo que isto era um teste em torno do qual girava o meu próprio direito a estar vivo, ajoelhei-me a seu lado e pressionei-lhe com força o esterno, depois inclinei-lhe a cabeça para trás e fiz duas tentativas de respiração artificial.

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Capítulo 2

Quando os médicos confirmaram o que eu já sabia, acabei a vomitar o pequeno-almoço na sanita. Lavando a cara com água quente no lavatório, fixando no espelho a estonteada fragilidade que se lia nos meus olhos, reescrevi uma e outra vez a minha conversa com Moura, dandolhe todas as garantias de que ele precisava para não pôr termo à vida.

A sensação do sopro de vida que tentei instilar-lhe ainda me cobria os lábios, como uma crosta salgada. Seria o sentimento de culpa que me puxava de volta à infância? Ou simplesmente qualquer homem que observasse durante tempo suficiente a sua própria cara confusa acabaria por descobrir o rapaz que morava dentro de si e que compreendera pela primeira vez que haveria de cometer muitos erros ao longo da vida?

Fechei-me à chave dentro de uma retrete porque queria estar a sós com o miúdo de dez anos que eu tinha sido. Aí, o crescente da lua brilhava ainda como uma lanterna sobre a nossa casa no Colorado. Rajadas de um vento gélido dobravam os ramos estéreis das macieiras, e eu ouvia o ruído como que de ossos estalando que os pés do meu pai faziam ao pisar o gelo a caminho de casa.

«Ei, Hank, olha o que eu apanhei aqui!»

O meu pai agarrou em Ernie e atirou-o para cima de um monte de neve perto das escadas que davam para a porta de entrada e chamou-me com um gesto.

«Anda cá, Hank!»

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Page 14: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

Quando me aproximei, pegou-me pelo braço e abraçou-me desesperadamente. Tremia. Pensei que estava a chorar, mas, no momento em que me afastou de si, mostrava um sorriso trocista. «Sabes uma coisa, meu filho? Vou fazer ao Ernie a mesma coisa que o inverno do Colorado está a fazer às nossas macieiras!»

Empurrou-me com força e eu caí ao lado do meu irmão. Ao levantar os olhos, vi-o tirar um saco de plástico transparente do bolso de trás das calças...

Do interior do gabinete, telefonei ao meu irmão. Sentiu de imediato o pânico na minha voz.

Que é que tens? - perguntou.

Problemas no trabalho.

Mas estás bem?

Estou - respondi. - E tu, tudo bem? De repente fiquei preocupado contigo.

Por aqui tudo bem. As roseiras estão uma maravilha. Ah, e havias de ver as...

Achas que o pai ainda nos consegue descobrir passados todos estes anos? - interrompi. Caraças, Hank, aonde foste buscar isso?

Responde só à pergunta que te fiz!

Bem sabes que é impossível. Mesmo que ainda esteja vivo, do que eu duvido, não sabe uma palavra de português. E nem eu nem tu constamos na lista telefónica. Se ele conseguisse encontrar-nos, já o teria feito. Há mais de vinte e cinco anos que cá estamos.

Era uma coisa que me deixava muitas vezes furioso, a maneira como Ernie podia mostrar-se tão seguro de estarmos a salvo do nosso pai e tão inseguro em relação ao resto, mas nesse momento era tudo o que eu precisava de ouvir.

Lembras-te de como ele dizia as coisas mais tremendas numa voz tão suave? - perguntei. - Era para nos mostrar como estava em paz consigo próprio e com Deus.

Ouvi a respiração alarmada de Ernie.

Não contaste a ninguém o que lhe aconteceu, pois não? - perguntou-me, pensando ter adivinhado que eu tinha outros problemas.

Ia ser muito pior para nós se fizesses uma coisa dessas. A polícia de lá pode ainda suspeitar de que ele não desapareceu simplesmente ... De que nós fizemos alguma coisa que não fizemos.

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Não contei nada.

Não podes contar a ninguém, nunca. Nem mesmo à Ana! - insistiu ele num tom angustiado. Não conto. Não fiques assim.

Então o que aconteceu? - perguntou numa voz menos brusca.

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Pensando no historial de Ernie com comprimidos, não ousei falar-lhe no suicídio de Moura, por isso disse apenas:

Houve um suspeito que morreu aqui na esquadra.

No demorado silêncio que se seguiu, apercebi-me de que temera que Ernie tivesse morrido naquele dia de dezembro em que o meu pai o tinha descoberto debaixo do alpendre. Às vezes, quando passo uns dias sem falar com o meu irmão, dá-me a impressão de que o meu pai o asfixiou mesmo, nessa altura ou noutra qualquer, e que toda a minha vida adulta foi um sonho.

Mantém-te longe do sangue - disse-me então o meu irmão. - E olha para os dois lados antes de atravessares a rua.

Este último conselho era o nosso código em pequenos para a necessidade de tomar sempre todas as precauções. Disse que sim, mas quando chegou o momento de desligar não conseguia fazê-lo; detinha-me tudo o que não ousava mas era necessário dizer. Acima de tudo, queria garantir a Ernie que mataria o pai se ele aparecesse - que entrara para a polícia para me certificar de que teria a calma necessária para lhe enfiar uma bala mesmo entre os olhos - e faria desaparecer o corpo de maneira a que ninguém fosse capaz de o descobrir.

Quando voltei para o meu gabinete, a inspetora Pires tinha apanhado todas as esferográficas que estavam espalhadas pelo chão. Depois de lhe agradecer, fui ao gabinete do diretor Crespo explicar o que se tinha passado com Moura. O olhar impaciente dele, como que a dizer «despache-se», desorientou-me de tal maneira que me esqueci de como se dizia «respiração artificial» em português e disse «CPR» em inglês. Odiava sentir que dava a impressão de estar alheado e desarmado - como se tivesse caído borda fora deste mundo.

Onde tinha ele o cianeto? - perguntou Crespo quando terminei.

Estendi-lhe o pedaço de papel de alumínio que encontrara.

Aqui. Estava caído no chão.

Tenha cuidado com isso! - disse ele, levantando a mão. - Pode ter ainda algum veneno.

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Dobrando a folha em quatro, disse-lhe que ia pedir aos técnicos de laboratório para o eliminarem. E enfiei-a no bolso da camisa, para a guardar.

Crespo sacou de uma pastilha elástica de um pacote - andava a ver se conseguia largar o tabaco há mais de quatro anos, desde que entrara em vigor a lei que proibia fumar dentro dos edifícios.

Oiça, Monroe - disse ele no tom apaziguador que adotava quando fazia um esforço para não mostrar até que ponto estava chateado comigo -, o senhor não podia fazer nada. Escreva isso no seu relatório e continue com o que tem a fazer. - Contornou a secretária e deu-me uma palmadinha no ombro. - Aquele tipo era pirado, um falhado. Não pense mais nisso.

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Uma raiva, súbita e imperativa, fez-me recuar, afastando-me dele.

Não vejo o que fez dele um falhado - disse eu.

Enquanto mascava gulosamente a pastilha, Crespo mediu-me com os olhos, avaliando até que ponto poderia ser sincero comigo.

Todos sabemos que a vida é quase sempre uma porcaria, Monroe, mas continuamos a lutar. Os falhados desistem. É tão simples como isso.

Eu sabia que desistir não era nada simples, mas receava ser capaz de lhe gritar algum impropério caso começasse a discutir com ele. Disse para mim próprio que Crespo não valia o esforço de o fazer entender quantos anos de desespero é preciso sofrer para conseguir a coragem de caminhar até ao extremo da vida e dar o salto.

Em tom conciliatório, Crespo disse:

Oiça, não vai ganhar nenhuma medalha por levar estas coisas a peito. Vá mas é à Açoriana beber um brandy quando se vir livre desta papelada toda. Você está branco como a cal.

Eu não bebo, Sr. diretor.

Porra, Monroe, um brandy não é beber, é sobreviver!

Fui lavar as mãos e escrevi o relatório. Nessa altura deviam ser umas onze horas. Ana devia estar na galeria. Foi Liliana, a assistente, quem respondeu. Quando a minha mulher atendeu, contei-lhe o sucedido com Moura.

Fiz mesmo merda - concluí. - Não precisava de ser tão espertinho.

Ouve, Hank, se ele tinha cianeto escondido, quer dizer que decidiu acabar com a vida muito antes de ter começado a falar contigo.

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Falava naquela voz ponderada que normalmente me servia de caminho para escapar ao inferno, mas não desta vez.

Eu... eu identifiquei-me com ele - gaguejei, e expliquei-lhe como ele tinha inventado um filho para se forçar a seguir o bom caminho.

Ouve lá, ele disse que tinha tido sorte em seres tu a fazer o interrogatório - retorquiu ela. - Por isso, deixa de te culpabilizar.

Palavras de consolo, sem dúvida, mas a morte continuava alojada na minha nuca latejante e no fatal entorpecimento das minhas mãos; o sangue e a pele recordam o que o espírito esquece.

Um Valium podia ajudar, mas eu tentava não tomar medicamentos durante a parte da manhã. Não podia deixar de ir para a Rua do Vale, por isso prometi a Ana fazer o possível para chegar a casa cedo e depois peguei na arma. Só no parque de estacionamento me apercebi de que me tinha esquecido da gravata de cordão e voltei atrás para a ir buscar; contar com um pássaro de

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prata de uns sete centímetros para me proteger era uma coisa idiota, mas o meu irmão insistia sempre nisso.

Quando cheguei ao carro, a inspetora Pires estava ao volante a ver a lista de filmes no Público. Ouvindo-me aproximar, levantou os olhos; estavam vermelhos e lacrimejantes. Já me contara entre soluços - que até esse dia nunca tinha visto ninguém morrer.

Não falámos durante o caminho. Conduzindo pelo meio do trânsito barulhento, as mãos aferradas ao volante como quem tivesse acabado de tirar a carta. As inúmeras ideias que me ocorriam para tentar meter conversa - mas sem o fazer - acabaram por me deixar nervoso.

E, então, algum filme interessante? - perguntei, finalmente.

Falaram-me num novo filme com a Angelina Jolie, mas não consegui ver onde passa. - Num tom veemente, acrescentou: - Oiça, chefe, lamento imenso o que se passou.

Você não fez nada de errado - disse eu.

Se o chefe não tivesse saído para ir falar comigo, se calhar não...

Ele ia tomar o cianeto, de qualquer maneira - interrompi, repetindo o que a minha mulher me dissera.

É possível - disse ela, com a cara franzida.

Vamos para o local do crime. Nada do que dissermos agora pode mudar o que aconteceu.

Muito bem, chefe.

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Parecia resignada com a sua insatisfação, mas eu devia ter tentado mostrar-me mais convincente; enquanto descíamos a Calçada do Combro, acrescentei:

Todos nós sentimos necessidade de contar a nossa história, e depois de o ter feito a vida deixou de ter sentido para ele.

A inspetora Pires respirou profundamente, contendo-se. Deu-me a sensação de que precisava de aguentar até um último e pouco simpático pensamento sobre si própria.

Parece que todas as pessoas da sua idade acham a Angelina Jolie o máximo - disse-lhe.

Estou a ver que o chefe não acha - respondeu ela, claramente tão contente como eu por deixar a conversa entrar por temas triviais.

Vi a Lara Croft uma vez com a minha mulher e os miúdos. Era como uma banda desenhada de má qualidade. A Jolie é capaz de ser uma pessoa muito interessante, mas como atriz...

Se calhar, representar não é o forte dela!

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Ri-me. Nos lábios dela desenhou-se um sorriso reticente - o primeiro desde que tínhamos começado a trabalhar juntos. Compreendi que a morte de Moura possivelmente mudara a forma e o sentido de tudo o que agora acontecesse entre nós.

Quer que lhe diga o que o agente da PSP que está de serviço me contou sobre o crime? perguntou.

Boa ideia.

Em palavras rápidas e seguras pôs-me a par do caso sem ter de consultar as suas notas. Impressionante. Mas não fui capaz de apanhar a maior parte do que ela disse. Quando fechei os olhos para acalmar o latejar das têmperas, calou-se.

Acho que vai ter de começar do princípio - pedi -lhe. - Desculpe.

Disse-me que a vítima se chamava Pedro Coutinho. Tinha sido morto a tiro na sala de estar de sua casa. O corpo fora descoberto há cerca de uma hora e um quarto pela empregada. A mulher, Susana, e a filha, Sandra, estavam de férias no Algarve, com o cão da família, um caniche chamado Nero. Tinham fechado a casa e partido para Lisboa mal souberam do crime. Observei a inspetora Pires furtivamente enquanto falava. Tinha um perfil reservado. Com os seus cabelos pretos e a postura rígida e direita lembrava uma dançarina de flamenco. Se fosse mais novo, teria feito algumas perguntas insinuantes que me pudessem levar a um relance

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sobre os seus mistérios interiores, mas tinha quarenta e dois anos e estava farto de treinar novos inspetores.

A inspetora prosseguiu, contando-me que os agentes da PSP destaca dos para o local tinham encontrado o caderno de endereços de Coutinho na gaveta do fundo da sua secretária na biblioteca, e que nele constavam os números de telemóvel de uma data de ministros. Também tinham encontrado um exemplar da Olá! na mesinha de cabeceira com uma reportagem toda espampanante sobre as férias que a sua família passara em Goa no passado mês de fevereiro. Pelos vistos, gostava de ser fotografado sem camisa provavelmente para mostrar o seu físico de pugilista.

A concluir, disse-me que a esposa e a filha deviam estar de volta a Lisboa a meio da tarde.

Que idade tinha a vítima? – perguntei.

Ele franziu o nariz.

Esqueci-me de perguntar, chefe - disse-me. - Desculpe.

Não tem importância. E como se tem aguentado o Nero?

O caniche?

Sim.

Ela fitou-me como se eu fosse doido varrido.

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Desculpe - disse eu. - A minha mulher e os meus filhos dizem que me armo em engraçado nos momentos menos adequados, mas é só para tentar não ir ao fundo.

Fiquei com a suspeita de que não iríamos fazer mais nenhuma tentativa de humor, mas passados alguns instantes ela disse:

Pergunto-me se o Nero também aparece em tronco nu nas revistas mundanas.

Esperemos que se sinta suficientemente confiante para fazer isso retorqui.

Rimo-nos ambos - mas de modo um pouco exagerado, como pessoas conscientes de que o muito mau dia que estávamos a ter ia ficar ainda pior.

O meu telemóvel tocou. Era Mesquita, o subdiretor da Polícia Judiciária para todo o território português.

Muito bem, oiça, Sr. inspetor-chefe - disse ele. - Disseram-me que estava a caminho da Rua do Vale. É assim?

É sim, estamos a chegar.

Ótimo. Verifique que se faz tudo conforme as regras. E, se houver alguma fuga de informação para os jornais, mando-o pendurar pelos tomates. Entendido?

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Perfeitamente.

Ótimo. E, se começarem a pressioná-lo, diga a quem quer que seja que se vá foder e ligue para mim. Pouco me importa que seja até o primeiro- ministro. Entendido?

Desligou sem esperar pela minha resposta. Quando disse à inspetora Pires quem tinha ligado e que não devia falar do caso com ninguém, ela fitou-me com um ar inquieto.

Diga lá - disse eu.

Acha que a vítima poderá ter informações comprometedoras sobre pessoas importantes do governo?

Acabaram de me avisar que pode acontecer que o primeiro-ministro telefone; por isso, diga-me lá o que acha, inspetora.

Estacionámos na Travessa do Alcaide, a uns cem metros do nosso objetivo; sempre gostei de ter uns minutos ao ar livre antes de ver sangue.

Enquanto nos dirigíamos para a casa da vítima, passou por nós aos estremeções um dos antigos elétricos de Lisboa, com um monte de miúdos pendurados comungando com o Deus do Perigo, que ainda tinham todo o direito de adorar naquela idade. O lixo voava sobre as pedras da calçada e um rádio vociferava notícias sobre a nossa infindável crise económica. O desemprego subira acima dos quinze por cento e mais de metade de quem não tinha emprego quinhentas mil pessoas - vivia dos subsídios do Estado. Um inquérito recente a nível nacional

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revelara que sessenta e nove por cento dos estudantes universitários tencionavam emigrar depois de se formarem. E os nossos míseros salários - os mais baixos da Europa - tinham há uns tempos sido considerados demasiado elevados por Paul Krugman, um economista que recebera o prémio Nobel, e um painel de especialistas mundiais.

Ao passarmos por uma casa degradada com um buraco enorme que alguém tinha feito a pontapé na parte de baixo da porta, senti cair na cabeça duas grossas gotas de um líquido qualquer. Rezei para que não tivesse sido nenhum dos gordos pombos de Lisboa a usar-me mais uma vez para treinar a pontaria. Ao erguer os olhos, descobri umas festivas sardinheiras vermelhas observando-me de dentro da sua floreira pintada de um amarelo-canário. Animador. Ainda havia quem se pudesse dar ao luxo de ter flores e pintura fresca. Enxuguei o cabelo com o lenço que trago sempre no bolso de trás.

O vento trazia o cheiro das pedras aquecidas da calçada, de azeite e fermento. Ao alargar o cordão da gravata, reparei que tinha o colarinho suado.

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Passo o verão a pedir chuva e os meus filhos a pedirem mais sol - disse à inspetora. - Acha que ainda vamos chegar aos trinta e dois graus?

Passámos há pouco por uma farmácia e o letreiro marcava vinte e sete graus.

Só vinte e sete? Parece muito mais quente.

Porque não há brisa nenhuma.

Se eu fosse o Raymond Chandler - disse eu -, acho que era a altura de lhe dizer que há homens e mulheres que fazem coisas loucas e violentas no verão em dias assim quentes e sem brisa. Especialmente quando perdem os empregos e desprezam os seus governantes.

É capaz de ser verdade - retorquiu.

Costuma ler policiais, inspetora? – perguntei.

Leio, sim, chefe… sobretudo os clássicos americanos. Especialmente Dickson Carr.

Era pois uma mulher que gostava de romances policiais do género «mistérios de porta fechada» - o que provavelmente significava que o que mais apreciava era responder a desafios impossíveis.

O estreito passeio periclitante apenas permitia a passagem de uma pessoa e por isso deixei a inspetora Pires seguir à minha frente. Ela voltava-se de vez em quando para se certificar de que eu não me tinha perdido ou sido atingido por outro pingo dos vasos de sardinheiras. A sua preocupação fazia-me lembrar a minha permanente preocupação com Ernie quando éramos pequenos.

A inspetora seguia com as mãos atrás das costas, ligeiramente inclinada para diante, como que vergada por algum pesado pendente que trouxesse ao pescoço. Será que continuava a duvidar de que não tivera qualquer responsabilidade na morte de Moura?

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Oiça, inspetora - disse eu, aproveitando um abrandamento no trânsito para caminhar ao lado dela -, alguns dos polícias mais antigos gostariam que você nunca tivesse entrado para a Judiciária. Chegam a fazer piadas sobre si. Faça por não lhes ligar. Os mais novos acabarão por a aceitar como colega se conseguir aguentar-se bem. Venha falar comigo se houver alguma chatice maior.

Está bem, obrigada, chefe - disse ela, mas sem entusiasmo.

A julgar pelo seu olhar, insistentemente fixado no chão, apercebi-me de que a deixara embaraçada. Típico de um homem a entrar na meia-idade e com tão pouca experiência com mulheres.

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Diga-me uma coisa - perguntei -, costuma ir à praia da Caparica?

Voltou-se para me olhar de frente.

Como?

O Moura, o nosso professor de Química... costumava levar lá o filho imaginário.

Estive algumas vezes na Caparica, sim.

Oiça, inspetora, quando estamos só nós os dois, porque não me trata por Henrique?

Se... se é assim que prefere - replicou, embora a ansiedade que se lia na sua hesitação me dissesse que era pouco provável que seguisse a nossa combinação.

Fiz-lhe um gesto a dizer-lhe para avançar.

E que tal é a Caparica? - perguntei.

Muito bonita - disse ela, voltando-se por instantes -, embora nos fins de semana haja gente de mais. Nunca lá foi?

Não. Na minha terra não havia praias. O barulho das ondas ainda me deixa nervoso. E toda aquela areia... Mas a minha mulher vai com os miúdos ao Guincho às vezes. Gosta mais das praias bravias. Como dos homens.

O último comentário destinava-se a valer-me mais uma risada, mas a minha saída americanizada tinha sido demasiado subtil.

Onde fica a sua terra, chefe? - perguntou a inspetora.

Porque quer saber?

Porque vamos trabalhar juntos, chefe.

Oh, vão ser só uns dois anos, Lucinda - disse-lhe. - É Lucinda, não é?

Luci - respondeu ela.

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Bem, Luci, não falta muito para que se veja livre de mim.

Ela desviou o olhar. Será que vi nela desapontamento?

Não tem nada a ver consigo - tranquilizei-a. - O diretor substitui sempre os meus inspetores de dois em dois anos. Não quer que ninguém trabalhe comigo durante muito tempo. De certeza que já ouviu falar nisso.

A inspetora Pires confirmou com um aceno da cabeça, claramente embaraçada pelo que tinha ouvido dizer sobre mim.

A Rua do Vale era uma velha rua magra e cansada - com uma largura que apenas permitia a passagem de um carro de cada vez - que dava para as imponentes colunas da Igreja de Jesus, com um aspeto demasiado

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grandioso para um bairro tão degradado, Quem construíra aquele santuário tinha querido lembrar aos moradores que Deus estava sempre ao virar da esquina - apesar de nada indicar que Ele pudesse estar.

A primeira casa à nossa esquerda - sem pintura e num triste estado de conservação - estava tapada por andaimes. Uns trinta metros mais adiante, encontrava-se um pequeno ajuntamento de vizinhos já de vigia ao lado da porta de entrada da casa da vítima: um homem de idade, com uma camisola interior enxovalhada, todo torcido e anguloso, e quatro mulheres, a mais nova com um bebé ao colo envolto numa mantinha azul.

A inspetora Pires insistiu:

Mesmo assim, gostava de saber onde cresceu.

Num rancho no Oeste do Colorado – respondi. Vá aos mapas do Google, procure Black Canyon do Gunnison National Park e desloque o cursor uns trinta e tal quilómetros para a esquerda. E depois saia de lá o mais depressa que puder porque não há absolutamente nada que fazer para os turistas a não ser servir de espetáculo a umas quantas cobras-cascavel esfomeadas e outros tantos lojistas bêbados.

Apesar do meu cinismo, a expressão dela iluminou-se.

Estive no Parque Nacional das Montanhas Rochosas há quatro anos.

O Filipe e eu fornos acampar ao Oeste americano na nossa lua de mel.

Ia dizer «Também lá estive», mas não queria conversas sobre a terra onde tinha nascido, os portugueses de um modo geral não gostam de desistir dos seus preconceitos sobre a América.

Quer dizer que é casada? - perguntei.

Sou. O Filipe acabou de se doutorar em Antropologia - disse ela, orgulhosa.

Filhos?

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Ainda não. E o senhor, chefe?

Dois, o Nathaniel e o Jorge. Quando não nos podem ouvir, eu e a minha mulher chamamos lhes Godzilla e King Kong, Sabe Deus o que eles nos chamarão a nós.

Luci riu-se, o que me agradou - e permitiu-me por um instante fugaz imaginar que os acontecimentos dessa manhã não teriam um efeito permanente no meu trabalho.

O ajuntamento estava agora apenas a uns cinquenta passos de nós. As pessoas observavam nos de olhos esbugalhados, curiosos, deviam calcular

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que éramos da polícia, mesmo não usando farda. Ao chegarmos ao nosso destino, o velhote perguntou num tom brusco:

Você é polícia?

Sou, sim.

Mastigou a informação enquanto me inspecionava, desconfiado. Se a minha vida fosse o western dos anos 50 que às vezes desejava que fosse, haveria de o ver cuspir para o chão entre nós.

O n.º 24 da Rua do Vale era uma casa de três andares com a pintura cor-de-rosa a destacar-se do reboco. À porta, encontrava-se um agente da PSP ainda novo, lendo um daqueles jornais gratuitos que invariavelmente acabam arrastados e rolando pelas ruas ressequidas uma versão lisboeta das ervas secas que esvoaçam pela aridez do Oeste americano. Enquanto eu o cumprimentava, a rapariga com o bebé perguntou-me se tinham matado Pedro Coutinho.

Desculpe, minha senhora, não estou autorizado a comentar o caso - disse eu.

Se não o tivessem matado, então que raio vinha o senhor cá fazer? - retorquiu o velhote com um esgar venenoso.

Mais logo vamos dar uma volta pelo bairro para interrogar as pessoas - disse-lhe, a ele e aos outros - e nessa altura logo lhe contamos alguma coisa do que soubermos.

A porta da frente era blindada; o rodar da chave fazia mover seis linguetas na parede. Depois de me reunir a Luci no átrio, ela perguntou-me:

Essa sua gravata é do Colorado, chefe?

Com um sobressalto, apercebi-me de que a deixara à porta.

Sim. É um thunderbird. Foi-me oferecida por um índio sioux meu amigo.

Tem amigos índios? - exclamou com o entusiasmo de uma rapariguinha.

Só um... O nome de homem branco dele era Nathan. Era um winkte.

Um winkte?

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Um bobo que é também um homem sábio. São loucos por profissão. Vestem umas roupagens bizarras e fazem tudo ao contrário.

A parte de cima é a parte de baixo, dentro é fora. Para eles, o normal é o que há de mais estranho. - E, o que é mais importante no meu caso,

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são capazes de descobrir o que se perdeu, poderia ter acrescentado se conhecesse melhor Luci. Mas, em vez disso, disse: - Às vezes precisamos de virar tudo do avesso. Os winktes são as únicas pessoas com poderes suficientes para o fazer.

Não se riu nem fez nenhum sorrisinho irónico, o que era muito bom sinal - e o único que esperava dela, porque senão não teria levado para aí o assunto.

Avançámos pelo átrio. O chão de tacos escuros estava tão encerado que brilhava como um espelho. Dois jarrões chineses do tamanho de um homem, pintados com sinuosos dragões doirados, defendiam a porta da sala de estar. Ao lado de um deles via-se um exaurido ficus num grande vaso branco e um regador vermelho cheio até às bordas.

Enquanto vestíamos as batas lilases, e pantufas, a inspetora Pires disse.

Passámos uns belos dias nas Montanhas Rochosas. Tirando a altitude. O Filipe perdeu-se durante uma caminhada a três mil metros e por pouco não o encontrávamos a tempo.

É preciso mantermo-nos hidratados nas altitudes elevadas disse-lhe eu, mas falava num tom ausente; tinha já avistado o morto estendido no tapete branco de felpa no meio da sala de estar.

Entrei. Tinham enfiado uma meia cinzenta na boca da vítima, apertada com uma gravata enrolada na cabeça com duas voltas e atada com um nó. Era de um azul-cobalto com riscas escarlates e fora tão firmemente atada que os lábios tinham ficado retesados e o nariz sobressaía de modo grotesco, como a tromba de um inseto. Estava deitado sobre a barriga em frente a uma parede de um amarelo-pálido, coberta com quadros dignos de um museu, incluindo um pequeno de Paula Rego com uma rapariga muito aprumada enfiando comida na boca de um macaco. Havia uma toalha verde felpuda à volta da cintura da vítima, e a camisa azul estava desabotoada. Nas costas, como uma mancha, via-se o buraco da bala com uma borda de sangue. Era um homem baixo e encorpado, com umas mãos enormes e fortes. O cabelo grisalho era espesso e cortado rente. Parecia-se um pouco com Pablo Picasso.

Na parede por trás dele viam-se cinco carateres numa escrita asiática, cada letra do tamanho do meu polegar. Eram de um castanho de um tom familiar - a cor do sangue seco. Ao percorrer os carateres com o olhar, senti o começo de uma dor de cabeça latejante,

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que sugeria que em breve era capaz de perder o rasto de mim mesmo.

Para permanecer onde estava - e manter a minha identidade - concentrei-me no morto.

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Uma substância semelhante a iogurte rosado fora espalhada na sua cara e orelha esquerda; e viam-se duas embalagens vazias de Adagio - com sabor a morango - atiradas para o tapete. Diria que a vítima tinha uns quarenta e cinco ou cinquenta anos, mas era difícil saber ao certo; a morte faz sempre com que os corpos me pareçam de cera - uma ilusão que a minha mente suscita como proteção, dissera-me o psicólogo da polícia.

Os pulsos da vítima estavam atados atrás das costas com uma grossa corda de nylon branca. Uma poça de sangue empapava o tapete.

Esforçando-me por manter o olhar afastado daquela mancha espessa, ajoelhei-me ao lado dele. Levantei-lhe o braço. A julgar pela rigidez recalcitrante, percebi que o rigor mortis atingira o seu máximo umas horas antes. Debaixo da toalha confirmei o que o nariz já tinha suspeitado quanto ao enorme pavor final do homem.

Pela etiqueta vi que a gravata era da Zara, uma marca de vestuário presente praticamente em todos os centros comerciais de Portugal. Tinha ainda o preço marcado: 19,95 euros. Dava a impressão de que o assassino, ao deixá-lo ficar, me mandava uma mensagem mostrando como a vida deste homem era ordinária.

Sondei a meia na sua boca com a ponta de um lápis; estava enfiada profundamente, o que significava que fora quase impossível para a vítima respirar ou engolir. A gravata contorcera-lhe os cantos da boca, onde se viam crostas de sangue. Não lhe deve ter sido possível gritar nem mesmo implorar que lhe poupassem a vida.

O cinzento-azulado dos lábios mostrava sem margem para dúvidas que tinha morrido asfixiado. Quando me imaginei no seu lugar, senti os tomates contraírem-se e a garganta secar, e quando Luci me tocou no ombro dei um salto inesperado. Surpreendentemente, a minha dor de cabeça tinha desaparecido, e tive a impressão de me ter afastado do corpo da vítima uns trinta centímetros ou mais. Baixei os olhos para as mãos. Gabriel não escrevera nenhuma mensagem para mim; em vez disso, tinha feito o desenho de um pau rodeado por doze pintas, o símbolo sioux de uma ameaça que nos deixa encurralados.

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Capítulo 3

O assassino conduz-me através da casa até me levar ao ponto que pretendia, de olhos postos na conclusão da sua obra. Ajoelhado, busco na cara deformada do morto o porquê da sua morte, à escuta daquilo que não me pode dizer. E, apesar de ter consciência de que os seus lábios cinzento-azulados nunca mais pronunciarão uma palavra, a expectativa de ouvir um sussurro com os seus derradeiros pensamentos resiste pacientemente dentro de mim, de braços cruzados, sem vontade de se retirar.

Prova, suponho, de que nunca fui capaz de aceitar o frio trato unilateral que a morte faz connosco.

Uma confissão: quando atravesso em pontas dos pés as minhas insónias durante a noite, surpreendo-me por vezes a procurar formas nas pinturas de Ernie que se revelem como

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mensagens em código da minha mãe. Se ela fosse viva, seria capaz de a compreender melhor agora - e de lhe oferecer mais do que as minhas palhaçadas. Por isso, talvez seja o meu próprio desejo de uma segunda oportunidade aquilo que sempre ouço quando não consigo adormecer. Talvez as nossas segundas oportunidades sejam os únicos fantasmas que alguma vez nos aparecem.

O polícia que se tinha ocupado do caso até à minha chegada apresentou-se corno sendo Marcos Soutelo e perguntou-me se queria que fizesse um resumo do acontecido.

Com o passar dos anos, fui reparando que os agentes da PSP têm tendência para começar os seus relatórios com algum pormenor pouco habitual, e quanto mais perturbador melhor. A minha teoria era de que

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a atmosfera irreal dos locais do crime - o silêncio rígido, acusador dos mortos sob toda a emoção - fazia com que sentissem necessidade de se assegurar de que partilhamos as mesmas ideias sobre o que é incomum e inesperado. E tranquilizados, portanto, quanto ao que é normal. No entanto, sentia-me afortunado em comparação com eles; eu tivera a sorte de aprender ainda muito novo que o normal não existe.

A vítima não parece ter cinquenta e nove anos, pois não? - começou Soutelo e, como que esperando surpreender-me ainda mais, acrescentou que Coutinho se tinha casado com uma ex-hospedeira da TAP vinte e dois anos mais nova. - Chama-se Susana Soares - disse ele -, e a julgar pelas fotos que estão na biblioteca é uma brasa!

Se Luci não estivesse a meu lado, haveria de me sentir obrigado a responder com algum comentário afirmando as minhas credenciais de virilidade, estilo «há tipos que têm a sorte toda», mas sendo assim pude perguntar se o casal tinha filhos. Mudando o tom para um registo mais profissional, provavelmente por ter pressentido alguma leve censura, Soutelo respondeu que tinham uma filha, Sandra, de catorze anos e que andava no oitavo ano no Liceu Francês. Prosseguiu, dizendo-me que a vítima era dona de uma empresa de construção civil com escritórios em Paris e em Lisboa e que, além desta casa e de outra no Algarve, tinha um enorme apartamento perto da margem do Sena frente à Torre Eiffel. Tinha-se mudado de Paris para Lisboa quatro anos antes. O seu carro, um Alfa Romeo Spider, estava numa garagem privada próxima. Nenhum dos vizinhos até então interrogados tinha ouvido qualquer disparo no dia anterior. A empregada doméstica descobrira o corpo às dez horas nessa manhã. O nome dela era Maria Grimault.

Pensei que o senhor ia querer falar já com ela. Está à sua espera na cozinha. A porta é ali - disse Soutelo, apontando.

Enquanto me debatia com o impulso para ficar onde estava - e manter-me em segurança longe de um caso que não me sentia ainda preparado para investigar -, o mais experiente dos técnicos de investigação, Eduardo Fonseca, vinha a descer as escadas na sala de trás, abraçado à sua Nikon, a cara espreitando qual uma raposa sob o capuz do blusão. Disparou duas fotografias rápidas - o flash deixando-nos ofuscados - com a alegria de um puto a experimentar um presente de aniversário.

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Henrique Monroe, apanhado em flagrante no local do crime! exclamou.

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Tal como a maior parte dos portugueses, Fonseca pronunciava «Monroy», em vez de Monroe. Eu desculpava-lhe isso e a maneira de falar aos berros porque ao mesmo tempo era o homem mais simpático que conhecia.

Apertou-me a mão entre as suas como sempre fazia. Depois de o apresentar a Luci, disse-lhe: Era capaz de apostar que já fotografou o corpo.

Claro. Agora ando a fotografar tudo o que me chama a atenção.

Afastou o capuz da cara. O suor tinha-se acumulado na testa formando pequenas franjas. Parecia-se cada vez mais com um chihuahua à medida que envelhecia - uns olhos minúsculos e fundos, e uns pulsos tão delgados e pálidos como um aipo. Era bom que comesse mais.

E que cortasse no tabaco. Apesar de ele afirmar que o alcatrão e a nicotina do cigarro eram as únicas coisas que o mantinham em pé.

Há quatro coisas que precisa de saber para já, Monroe - disse-me num tom rápido, profissional. - Uma: encontrámos beatas de cigarro nos cinzeiros daqui da sala de estar e no quarto de dormir da vítima.

Quatro Marlboro Lights e dois Gauloise Blondes aqui, e mais um Marlboro no quarto. Não havia marcas de bâton em nenhum deles. Dois: há uma pegada de sangue na camisa de Coutinho. Três...

Espere aí - interrompi. - Essa pegada está suficientemente completa para identificar o sapato?

Está, sim, e já a fotografei. Três: encontrámos fragmentos de plástico e umas coisas que parecem bocadinhos de esponja aqui no tapete. Colhi amostras.

Um silenciador? - perguntei.

Sim, uma garrafa de limonada com pedaços de esponja, diria eu.

Quatro: descobrimos...

Isso funciona mesmo? - interrompeu Luci.

Sim, mas só com armas de pequeno calibre. Que é o ponto número quatro: descobrimos a cápsula da bala, calibre 9, e o próprio projétil. Saiu pelas costas de Coutinho e ficou alojado na parede perto das escadas. É o Bruno que tem as duas coisas. - Leu os meus pensamentos e antecipou-se à pergunta seguinte: - Está no andar de cima, à procura de mais pegadas de dinossauro.

Pegadas de sangue - expliquei a Luci.

O Bruno é o Bruno Vaz - acrescentou Fonseca. - Uma verdadeira cassete, por isso vejam lá o que dizem.

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Receio que esteja a ir depressa de mais para mim - disse Luci, como quem se desculpa.

É do PC - explicou Fonseca. - Se falarem em política ele liga logo a cassete. - Fez o gesto de girar o dedo em círculo, fingindo que ressonava.

O Sudoku já deu uma vista de olhos ao corpo? - perguntei.

Sudoku era o nosso perito biomédico e um mestre a resolver os puzzles numéricos japoneses. O verdadeiro nome dele era João Ferreira.

Está em casa com gripe, coitado, mas o Bruno e eu temos tudo sob controlo. - Fonseca aproximou-se de mim e acrescentou num sussurro: - A vítima teve uma convidada na cama a noite passada. E apostava cem euros em como é ela a autora desta merda toda. E outros cinquenta em como é de França e fuma Gauloises Blondes.

Desculpe, mas a Ana fez um corte no meu orçamento para apostas - disse eu. - Não gosta de ver o Godzilla e o King Kong a passarem fome. O Dr. Zydowicz já chegou?

Ai, ele também se vem juntar à festa hoje? Caramba, isto vai parecer o raio de uma reunião das Nações Unidas!

Exatamente. Tirou fotografias das letras asiáticas na parede?

Celtamente - respondeu Fonseca, imitando a vénia de um japonês respeitoso.

Resmunguei contra o mau gosto, o que só fez com que ele soltasse uma gargalhada.

Quando acabar esse divertimento todo - disse eu -, mande-me por e-mail as fotografias. As letras foram escritas com sangue?

Sim, e também colhemos uma amostra. Vai ver que é sangue da vitima, muito provavelmente.

Há quanto tempo está morto?

Umas dezoito a vinte e quatro horas, tendo em conta que isto aqui é uma sauna e que ele se decompõe a uma velocidade warp 9.

O Fonseca é um velho fã da série Star Trek - expliquei a Luci.

Quando lhe perguntei se tinha recolhido o telemóvel da vítima, Fonseca disse- me que procurara em todos os sítios mais óbvios e que não o encontrara.

Cem brasas em como o criminoso o levou - disse ele a Luci.

Dá-me a impressão de que era asneira apostar contra si - respondeu ela.

Tem aí uma menina esperta! - disse ele, para mim, e lançou-lhe uma piscadela insinuante.

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Uma inspetora esperta! - exclamei eu em tom de advertência, contente por o picar e ao mesmo tempo por falar a sério.

Oh, caraças, Monroe, bem sabe que não era para ofender. E, voltando-se para Luci, disse: - Desculpe. É só por ser nova na profissão e ter... o quê? Catorze anos?

Ela espetou o indicador.

Dezoito? Vinte?

O entusiasmo infantil de Fonseca fez Luci sorrir.

Vinte e sete - respondeu.

Bem, ao lado aqui deste burro velho e rabugento - disse ele, acenando o polegar na minha direção -, parece uma menina. - Oh, adivinhe o que eu fiz, Monroe! - acrescentou e, sem esperar pela minha resposta, exclamou: Fotografei as páginas todinhas do caderno de endereços da vítima!

Porque fez isso?

Lembra-se do caso do Mercedes Desaparecido?

Fora uma bronca famosa. Tinha-se passado em 1984. Um embaixador português tinha sido preso por ter atropelado um parceiro de negócios mesmo em frente da casa do homem, em Benfica. O Mercedes do suspeito foi apreendido, naturalmente, e por isso o fotógrafo de serviço não se deu ao trabalho de tirar fotos dos guarda-lamas amolgados e com marcas de sangue nem de mais coisa nenhuma. Pelo menos foi o que disse aos superiores, embora mais tarde toda a gente suspeitasse de que tinha sido subornado. Infelizmente, o carro desapareceu nessa mesma tarde.

Sem Mercedes e sem fotografias - e com uns quantos movimentos de liquidez no Ministério da Justiça -, o embaixador livrou-se de ir a julgamento. De vez em quando ainda dou com a sua cara anafada e satisfeita nas páginas do Público, o jornal que Ana lê. Com os anos, tornou-se um católico fervoroso e pontifica contra a adoção por casais homossexuais e a reprodução medicamente assistida. Presumo que entrará no céu subornando alguém.

Bom trabalho, Fonseca - disse eu. - E o caderno de endereços onde está?

À sua espera no primeiro andar, em cima da secretária da biblioteca. Sabe uma coisa, Monroe? Este Coutinho era um homem de quatro ministros!

Assobiei, só para o deixar feliz.

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Tem os números de telemóvel de quatro ministros no caderninho - explicou a Luci, radiante. - Mais um record lisboeta! - Limpou uma grande gota de suor do queixo com um movimento teatral. - Palpita-me que vamos encontrar outras prendas no computador... Talvez os números das suas contas na Suíça! Alguém está numa de um passeio até Zurique?

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Onde estava o computador? - perguntei.

Também em cima da secretária da biblioteca. Um MacAir. Lindo!

Mandámo-lo para o Joaquim.

Joaquim era o sénior dos especialistas em informática do nosso serviço tecnológico.

Então o que vai fazer a seguir? - perguntei.

Aqui a Nicki e eu temos um encontro marcado no quarto da vítima. - Encostou os lábios ao obturador da máquina fotográfica. Estava a dar espetáculo para Luci.

Para desviar dela as atenções, disse:

Inspetora Pires, veja se consegue encontrar um telemóvel numa casa de banho ou noutro sítio igualmente improvável. Eu vou para a biblioteca.

Embora Fonseca tivesse tirado fotografias de todas as páginas, queria ter o caderno de endereços nas mãos antes de fazer fosse o que fosse, por isso subi as escadas atrás dele, enquanto lhe dava as instruções recebidas de não falar no crime, nem sequer com a mulher ou com os filhos.

Felizmente ele já tinha ligado o ar condicionado na biblioteca. As paredes eram de painéis de madeira; as estantes estavam cheias de livros do chão até ao teto. Tudo perfeitamente arrumado, exceto um dicionário de Francês- Farsi que se via de través numa estante de baixo, junto da secretária, para onde fora atirado.

Na parte da frente da sala havia um armário com portas de vidro fechado à chave contendo edições antigas de autores franceses clássicos, como Zola e Stendhal. Também aí se viam os CD de Coutinho sobretudo Piaff, Polnareff, Aznavour e outros cantores franceses populares nos anos de 1960 e 1970. A pequena secção de música clássica era constituída quase na totalidade por Eric Satie e Claude Debussy.

A secretária era daquelas antigas e pesadonas, escura, com pernas a imitar patas de leão. O caderno de endereços estava ao lado de um

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elegante telefone preto. Era de camurça, com a cor exata das folhas dos cedros que cresciam no nosso rancho. Coutinho tinha uma letra compacta e cuidada, embora os esses e gês maiúsculos apresentassem uns enfeites arrebicados. Ana diria que provavelmente ele espantaria as pessoas à sua volta com ocasionais floreados de exuberância.

Encontrei rapidamente os contactos dos quatro ministros; estavam todos na letra G, numa secção intitulada «Governo»: José Pedro Aguiar Branco, Defesa Nacional; Miguel Macedo, Administração Interna; Paula Teixeira da Cruz, Justiça; e Miguel Relvas, Assuntos Parlamentares. Folheando o caderno de A a Z, descobri também os números de telemóvel de António Amorim, o empresário da nossa maior exportadora de cortiça; Mariza, a conhecida fadista; e Fernando Gomes, um antigo presidente da Câmara do Porto. Havia ainda os

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telemóveis d vários contactos importantes em França, incluindo o de Ségolène Royal, que figurava como ex-dirigente do partido socialista francês

Na parede, por cima da secretária, via-se a capa de uma revista emoldurada, a Exame, com Coutinho diante do seu Alfa Romeo desportivo vermelho, com um ar confiante e refinado mas também com um brilhozinho de malícia nos olhos, como que a mostrar ao leitor que não estava ainda tão velho que não fosse capaz de se escapar de casa às duas da manhã, pegar no carro e fazer a Avenida da Liberdade a mais de cento e sessenta à hora, um dos passatempos favoritos dos corredores falhados de Fórmula 1 da nossa cidade. Interpretei o carro faiscante na capa como sendo a sua maneira de nos mostrar que era alguém que em segredo gostava de correr riscos. E que não se envergonhava dos enormes lucros que fazia num país na bancarrota.

O cabeçalho da capa da revista dizia: AO VOLANTE PARA LONGE DA CRISE ECONÓMICA. Era difícil não antipatizar com ele e com os editores, especialmente ao pensar que o meu vencimento tinha sido cortado em cerca de vinte por cento nos últimos dois anos, e que eu e Ana tínhamos agora de recorrer às nossas poupanças para pagar a hipoteca da casa.

Por baixo do caixilho da capa havia seis aguarelas emolduradas com uma rapariguinha - nua e exuberante. Tinham sido executadas com os traços largos e amplos da caligrafia oriental. A que chamava mais a atenção era uma em que ela corria numa praia, os braços estendidos à sua frente, como se perseguisse a sua própria capacidade de ser alegre.

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As calças azuis de linho da vítima estavam dobradas no assento de uma poltrona no quarto. No bolso direito da frente havia uma gorda carteira de couro - recheada com cerca de quatrocentos euros em notas. No bolso esquerdo havia um isqueiro de ouro e uma corrente de prata com a insígnia da Alfa Romeo. Na mesinha de cabeceira via-se um maço de Marlboro Lights com metade dos cigarros e um cinzeiro de cerâmica céladon cor de jade. Coutinho - ou alguém na família - tinha obviamente um interesse pela China ou pelo Japão. O assassino, muito possivelmente, forçara-o a escrever os carateres asiáticos com o seu próprio sangue; mas com que propósito?

Um dos cantos da mesa estava cheio de fotografias da mulher e da filha da vítima. Eram loiras e bonitas e, numa imagem particularmente evocativa, tirada na praia, mostravam ambas o mesmo olhar enfadado, de alguém sem paciência para o fotógrafo. Possivelmente, Coutinho levava demasiado tempo a focar, o que devia ser causa de muita irritação e de muitas piadas da família.

De volta ao andar de baixo, encontrei a inspetora Pires a examinar os quadros da sala de estar.

Paula Rego é demasiado famosa para ser ignorada, mesmo por um gatuno sem cultura nenhuma - disse ela. Apontou para um desenho de Fernando Pessoa a ler um jornal. - E aquele é do Júlio Almeida, um artista promissor de que ultimamente se fala muito nos jornais. Deve valer uns bons milhares de euros, no mínimo.

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O que quer dizer que, se o nosso homem era um ladrão, devia andar obviamente à procura de alguma coisa que considerava mais valiosa.

O que poderia ser, na sua opinião? - perguntou ela.

Talvez projetos de negócios que ainda não fossem do conhecimento público. Ou propostas de empreitadas públicas. E, então, encontrou algum telemóvel?

Ainda nada.

Experimentei as chaves de Coutinho na porta da frente. A segunda delas funcionou. Pusemo-nos a imaginar que ele tinha ouvido algum ruído enquanto se vestia e que descera as escadas para ir ver o que era.

A julgar pela altura a que se encontrava o buraco na parede, a bala tinha-o atingido quando estava em pé. Três marcas no tapete branco mostravam que se arrastara de joelhos em direção à parede onde estão os quadros.

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Ele arrastou-se em direção ao assassino para implorar que lhe poupasse a vida - arrisquei, pensando no que eu faria na mesma situação. - Ou talvez esperasse ter ainda forças suficientes para se atirar a ele e o enfrentar. - Enquanto expunha as minhas especulações, o cheiro pestilento a carne que emanava do corpo atingiu-me. Ou abríamos todas as janelas da casa ou Luci, veja se consegue ligar o ar condicionado. - Tinha reparado nele ao entrar na sala e apontei para o sítio por cima do antigo mapa da Europa na parede. - Senão, vamos ter de usar máscara.

Enquanto ela estava às voltas com os botões do aparelho, ajoelhei-me junto ao corpo, a mão a tapar a boca e o nariz. A pegada de sangue estampada na manga da camisa mostrava o desenho da sola do sapato: umas nervuras finas entrecruzando-se em forma de bumerangue. Levantando o tecido com a ponta da esferográfica, descobri uma nódoa negra acima das costelas. Nesse momento começou a ouvir-se o zumbido do ar condicionado e senti como que as pontas dos dedos do ar fresco passar-me pela nuca.

Você é uma verdadeira salva-vidas - disse eu a Luci, quando ela se colocou a meu lado. Apontei o corpo com um gesto. - Dois assaltantes, diria eu. Um atou a corda à volta dos pulsos e enfiou-lhe a mordaça na boca enquanto o outro empunhava a arma.

Ou então foi o assassino que o obrigou a atar a mordaça a si próprio - observou ela - e depois apertou-lha e passou aos pulsos. - Fixando a vítima, acrescentou em voz solene: - Sentindo que não iria conseguir safar-se, deixou cair a cabeça de qualquer maneira e esperou que a morte o levasse.

Pode ser que sim, mas eu diria que é mais provável que o assassino lhe tenha dado uns bons pontapés para lhe tirar a vontade de lutar.

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Mostrei -lhe as nódoas negras no flanco da vítima. - Há pessoas que acordam todos os dias com uma vontade danada de fazer mal a alguém. Infelizmente para nós, não andam com nenhum sinal particular.

São o professor de Química com ar de Harry Potter e o carpinteiro que canta baladas country enquanto arranca as ervas daninhas na horta.

Não tinha pensado referir o meu pai, mas havia alturas em que coisas dessas me saíam sem aviso.

Quando eu examinava as cicatrizes cirúrgicas atrás das orelhas de Coutinho, David Zydowicz, o médico-legista, entrou arrastadamente na sala. Os olhos baixos, de pálpebras descaídas, abriram-se com satisfação

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quando me avistou, mas traíam cansaço também. Tinha envelhecido imenso nos dois meses a seguir ao enfarte. Visitara-o duas vezes no hospital. Os seus passos haviam-se tornado um frágil balancear.

Está a ver se ele se lavava como deve ser? - perguntou David no seu português cantado do Brasil. Era de São Paulo e judeu. O pai dele sobrevivera a Treblinka. Por solidariedade, David tinha mandado tatuar no braço o número com que o pai fora marcado no campo de concentração, o que era o mais comovente testemunho de amor filial que eu conhecia.

Era um amigo da Catherine Deneuve - disse eu, usando o nosso calão para designar as pessoas que faziam liftings para tirar as rugas da cara.

David arrastou-se para mais perto de mim.

Mas não um dos melhores amigos - fez notar, abanando as mãos ossudas. - Eu fazia melhor de olhos fechados. - Tirando as luvas de látex, continuou: - Quando saí do hospital decidi também apanhar umas quantas injeções de colagénio.

Mas as rugas ficam-lhe muito bem, dão-lhe uma expressão clássica! - protestei.

Ele fungou, trocista.

Estava falando de minha bunda, Henrique - e deu uma palmadinha no traseiro ao dizer isto. - Minha mulher me disse que se tornou um balão com todo o ar saindo. Já não tinha nada que agarrar.

Rimo-nos os dois, para desvalorizar a estranheza de se ver tão diminuído. Inclinou -se sobre o cadáver e cheirou.

Grau quatro – disse ele. Costuma dar uma graduação aos maus cheiros, de um, praticamente indetetável, a dez, uma nota que nunca dera, pois era o fedor de Hitler e dos seus capangas a apodrecer na Geena, o inferno judaico. - Depois de dar uma boa vista de olhos, eu o limpo um pouco.

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Enquanto David fazia pressão sobre o ponto onde lhe doíam as costas, apresentei-o a Luci. Franzindo os olhos, fez incidir sobre a cara dela um foco de deleite masculino. Mesmo naquele estado debilitado, a sua libido dançava o samba.

Indo mais uma vez em socorro dela, tirei do bolso da camisa o papel de alumínio de Moura.

Isto talvez tenha vestígios de cianeto - disse eu, dirigindo-me a David. - Importa-se de me eliminar isto?

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Pegou na folha de alumínio e enfiou-a no bolso da bata.

Onde foi arranjar cianeto, meu filho? - perguntou.

Era de um suspeito que se suicidou esta manhã. Tem sido um dia infernal.

Sinto muito - disse ele, dando-me uma palmadinha no braço.

Voltando-me para Luci, disse-lhe:

Está na hora de entrevistar a empregada.

A Sr.ª Grimault era uma mulher de idade, com qualquer coisa de pardal, o cabelo apanhado num rolo grisalho apertado e as mãos grandes e no dosas de uma camponesa. Usava uns brincos dourados em forma de coração e um agradável perfume a lavanda. Quando entrámos, estava a juntar leite fumegante ao seu café. Levantou os olhos para nós, com uma expressão atenta, curiosa e inteligente. Mereceu desde logo a minha confiança.

Depois de nos apresentarmos, perguntei-lhe se era francesa, e ela disse que era de Braga, mas que o marido nascera em Rouen. Com um olhar esperançado, perguntou-nos se queríamos provar o seu pão de ló, mas não me senti com estômago para o teste. Luci agradeceu, recusou também, dizendo que tinha de manter a linha, mas eu insisti com ela para comer meia fatia só para não desapontar a senhora.

A cozinha era toda em aço inoxidável e mármore branco, tirando a parede por baixo dos armários, que estava decorada com azulejos portugueses centenários formando figuras geométricas azuis e amarelas. Era evidente que alguma igreja de aldeia tinha sido saqueada.

A senhora Grimault pediu-me que tirasse um prato que estava numa prateleira alta para dar a Luci, e por uns segundos voltei a sentirme com quinze anos, feliz por poder ajudar a tia Olívia em casa.

Depois de estarmos todos confortavelmente sentados, perguntei:

Então há quanto tempo trabalha a senhora para a família Coutinho?

Há quase quatro anos. Fui contratada logo depois de o Dr. Coutinho ter voltado para Portugal. Explicou que ele queria uma empregada que falasse francês e a seguir rompeu em lágrimas, dizendo espontaneamente que de certeza a Sr.ª Coutinho ia sentir imenso a morte do marido.

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E, quanto à filha, calculava que ia passar por um longo período de sofrimento silencioso. Quando lhe perguntei porque dizia isso, ela disse

que tanto Sandra quanto o pai tinham por hábito esconder as suas emoções. Acrescentou que eram ambos viciados no trabalho e, para reforçar

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a sua opinião, contou-me que Coutinho voltava a Lisboa uma ou duas vezes por semana durante o verão para vigiar as obras que a empresa estava a fazer. Nesse momento, preferi não dizer que a verdadeira razão por que ele vinha à cidade tantas vezes talvez fosse a infidelidade.

Infelizmente, ela não fazia a mínima ideia de quem seria o visitante que tinha fumado dois Gauloises Blondes.

Sr. inspetor - disse ela, com um olhar grave -, o senhor acha que o assassino esteve cá a noite passada e que falou uns instantes com o Dr. Coutinho, não acha?

É possível, minha senhora, mas aqui entre nós, duvido. Uma pessoa tão cuidadosa como o criminoso com que estamos a lidar de certeza que sabia que as beatas de cigarros podiam ser usadas como prova. O mais provável é terem sido deixadas por um amigo, que possivelmente foi a última pessoa a ver o seu patrão com vida.

A Sr.ª Grimault disse que tinha chegado precisamente às dez e quatro minutos da manhã e que abrira a porta com a sua chave. Não vira nem ouvira nada de estranho. Explicou que durante as férias de verão da família no Algarve ela vinha a casa duas vezes por semana para a arejar, limpar um pouco e regar as plantas de dentro. O jardim tinha um sistema de rega automático. Trouxera um pão de ló porque uns dias antes Susana lhe tinha dito, ao telefone, que o Dr. Coutinho vinha passar dois dias a Lisboa. Ele gostava de doces e ela orgulhava-se dos bolos que fazia.

Tinha-me ocorrido que a chave da entrada podia ter sido copiada pelo criminoso e, embora a Sr.ª Grimault me jurasse que nunca a emprestara a ninguém, não podia dizer o mesmo em relação à família.

A cozinha está impecável – disse eu. – Foi assim que a encontrou?

Sim. Quando cheguei não havia pratos para lavar, nem sequer do pequeno-almoço. O Dr. Coutinho deve ter jantado fora ontem à noite e não devia ainda ter comido os cereais do pequeno almoço.

Encontrei um iogurte Adagio no frigorífico, assim como um pouco de queijo e dois limões.

O Dr. Coutinho era capaz de viver só de queijo e doces - disse a Sr.ª Grimault.

Quando é que deu com ele esta manhã? - perguntei.

Mal entrei na sala de estar. - Fechou os olhos e estendeu uma mão, lentamente, fazendo-o com esforço, como se estivesse a chegá-la a

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uma chama. - Toquei-lhe no ombro - disse ela num sussurro. - Pensei que pudesse estar ainda vivo, mas... - Poisou o braço em cima da mesa com melancólico desamparo. - Depois liguei para o 112.

Depois de ter entrado, em algum momento saiu de casa?

Não. Fiquei sentada no átrio.

Mas não há nenhuma cadeira no átrio - fiz-lhe notar.

Sentei-me no chão. Sentia-me mal e a minha primeira ideia foi sair de casa para apanhar um pouco de ar, mas não consegui ir tão longe.

Estava novamente à beira das lágrimas, e insisti com ela para beber uns goles de café. Quando se acalmou, perguntei-lhe:

Quando é que decidiu regar a planta do átrio?

Ela mostrou um olhar atónito.

Deixou lá o regador – expliquei.

Meu Deus, esqueci-me completamente! – Numa voz lenta e segura, revendo a sua manhã tal como lhe tinha ficado na memória, disse: - Depois de ter chamado o 112, pensei que, se seguisse a minha rotina do costume, talvez ficasse mais calma. Quer dizer, se conseguisse fazer de conta durante alguns minutos que não tinha acontecido nada. Mas, mal peguei no regador, fui-me abaixo outra vez. - Soltou um suspiro de frustração. - Sr. inspetor, parece que isto é um sonho... uma coisa absolutamente impossível.

Tendo em conta o que aconteceu, até era bom - observei, mas ela abanou a cabeça, como que a lamentar não ter sido mais forte. Respondendo à pergunta seguinte, disse-me que Coutinho comprava quase todas as gravatas na loja da Hermès na Avenue George V, em Paris. Na sua opinião, ele nunca tinha comprado nada na Zara.

Agora vou fazer-lhe uma pergunta indelicada - adverti-a. - Tinha conhecimento de algum caso extraconjugal em que ele pudesse estar envolvido?

Ela recolheu a cabeça como uma galinha e disse numa voz crispada:

É coisa de que eu nunca saberia nada.

Há outras vidas que podem estar em risco - fiz-lhe notar. Na altura, não acreditava nisso, mas queria fazer um pouco de pressão.

Diante do meu insistente aceno de cabeça, a Sr. a Grimault confessou numa voz reticente que talvez tivesse reparado umas doze vezes que havia vincos no lado da cama de Susana em alturas em que pensava que só o Dr. Coutinho estava em casa.

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Mas não, não faço ideia de quem era a mulher - apressou-se a acrescentar. Uma vez tinha dado com uma toalha com marcas de um bâton que ela não conhecia. Continuando a adivinhar o sentido que os meus pensamentos seguiam, disse ainda: - O Dr. Coutinho e a Dona Susana são boas pessoas, respeitadores um do outro. Não acredito que haja alguém que lhe quisesse mal. Era simpático e generoso. Bom em quase tudo o que fazia e tinha muito talento.

Muito talento? - perguntei.

Repare nas aguarelas que estão na biblioteca. E a que está no quarto da Sandi.

Aquelas da rapariguinha?

A alegria de me surpreender iluminou-lhe o olhar.

Fê-las quando a Sandi era pequenina - prosseguiu a Sr.ª Grimault -, mas ele ainda pegava nos pincéis uma vez ou outra. - Executou duas rápidas pinceladas no ar e deu uma risadinha. Parecia o Zorro a pintar!

Parece que tinha um interesse particular pelas culturas asiáticas.

Mais do que interesse, Sr. inspetor! Depois de se ter formado em Engenharia, trabalhou em Tóquio dois anos. Sabia falar japonês! - Os olhos da velhota abriam-se desmesuradamente como que para abrangerem a enorme dimensão de todas as aventuras que o patrão devia ter tido. Dominada pelo deleite, desfez-se em lágrimas. - Peço imensa desculpa - disse em voz baixa.

Luci abriu a boca pela primeira vez:

Está a portar-se muito bem - disse ela, apertando com força as mãos da senhora.

Depois e mais algumas palavras amáveis de Luci, a Sr.ª Grimault continuou, dizendo-nos que Coutinho tinha dois telemóveis. Tentei os dois números, mas respondia-me sempre a mesma mensagem: «Número não atribuído.» Pedi a Luci que verificasse se tinham sido feitas algumas chamadas para aqueles números nas últimas vinte e quatro horas.

E, quando estiver com as mãos na massa, arranje uma lista das chamadas que a vítima fez e recebeu nas últimas duas semanas - acrescentei. Deixei para o fim o pormenor mais importante: - Esta manhã, quando chegou, a senhora teve de dar várias voltas à chave ou a porta estava no trinco?

Ela refletiu um pouco.

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Tive de dar várias voltas. Lembro-me porque, ao rodar a chave, me veio à ideia que não estaria ninguém em casa. Agora vejo que o Dr. Coutinho deve ter fechado a porta à chave por alguma razão.

Não. O assassino é que a fechou ao sair - disse eu. - E cometeu um erro.

Porque diz isso?

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Porque agora temos a certeza de que tinha a chave.

Pode não ser assim, chefe - disse Luci rapidamente. - Podia tê-la tirado ao Dr. Coutinho.

Rebusquei os bolsos e saquei das chaves com o emblema da Alfa Romeo. Abanei-as no ar.

Podia, mas não o fez. Estas chaves estavam ainda nas calças do Coutinho.

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Capítulo 4

Depois de acompanhar a Sr.ª Grimault à porta e de lhe dizer para não comentar o caso com ninguém, pus-me a examinar os quadros da sala de estar. Coutinho comprara apenas obras figurativas. A minha favorita era um Carlos Botelho mostrando uma cascata de casas, em tons esbatidos de cor-de-rosa, amarelo e azul, caindo para o Tejo.

Quando voltei para a cozinha, Luci estava a lavar o prato em que comera o bolo. Disse-me que tinham acabado de lhe dizer que não haviam sido feitas chamadas de nenhum dos telemóveis da vítima desde a hora do assassinato.

A esta hora, o criminoso provavelmente já destruiu os cartões

Sim dos dois telemóveis – disse eu.

Para nos impedir de seguir a pista?

Sim. Mas também tenho o palpite de que ligou para o Coutinho a certa altura e não queria que nós descobríssemos isso.

Acha que a vítima conhecia o assassino?

Luci, há aqui ódio de mais para ser apenas um assalto falhado ou uma agressão ocasional. E aquela mensagem em japonês que o assassino provavelmente obrigou Coutinho a escrever... É até possível que algum sarilho em que se tenha metido no Japão há muitos anos tenha vindo ter com ele.

Deparámos com David Zydowicz sentado numa poltrona que tinha trazido para junto do cadáver, fazendo incidir a sua lanterna nas unhas de Coutinho.

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As marcas são só de uma luta muito curta - disse ele. - O nosso homem foi atingido por um tiro, depois deram-lhe pontapés acima das costelas com ele caído de joelhos e finalmente foi atado. - Desligando a lanterna, disse a Luci: - Pegue aí no seu bloco de notas, menina, e eu conto-lhe uma história de embalar.

David observava os gestos rápidos de Luci com um olhar afetuoso, como se ela fosse uma miudita a exibir um truque de cartas para o avô. E como se houvesse apenas dois reinos: a velhice e a juventude. Quando ela acabou os preparativos, ele tirou os óculos como que a

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chamar ao de cima uma parte mais profunda de si próprio e começou a falar na voz de autoridade que me tinha conquistado quando o conheci:

A vítima foi atingida com uma bala na barriga, mas não me parece que tenha perfurado o revestimento do estômago ou qualquer outro órgão vital, embora só o possa saber ao certo quando fizer a autópsia.

Seja como for, levaria pelo menos meia hora a esvair-se em sangue. Embora, como você sabe, Henrique, não tenha sido isso o que aconteceu.

Não, para o melhor ou para o pior, não teve essa sorte. - Diante do olhar perplexo de Luci, acrescentei: - Os lábios têm uma cor azulada... Falta de oxigénio.

David descalçou uma das luvas e tirou um rebuçado do bolso. Enquanto ele tirava o papel amarelo em que estava embrulhado, disse-lhe:

Quem fez isto teve prazer em ver a vítima sofrer.

Não posso dizer nada quanto às emoções, Henrique... Isso é mais o seu campo. Mas é verdade que Coutinho deve ter tido uma boa dose de sofrimento.

«Era como se o meu peito e a minha cabeça estivessem a ser esmagados», foi assim que o meu irmão, aos seis anos de idade, descreveu a sensação de asfixia.

E a morte deu-se há quanto tempo? Entre dezoito e vinte e quatro horas? - perguntei.

Mais perto das vinte e quatro. - David voltou a pôr os óculos.

Muito bem, eis como eu vejo as coisas - comecei. - Depois do duche, Coutinho desceu as escadas para investigar os ruídos que tinha ouvido. - Dei uns passos em direção à parede dos quadros e empunhei uma arma fictícia. - O assassino surpreendeu-o aqui. - Apontei para o fundo das escadas e puxei o gatilho imaginário. - A nossa vítima tombou de joelhos e começou a arrastar-se. O assassino deu-lhe um pontapé e pisou-o nas costas para o dominar e para o obrigar a pôr os braços

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atrás das costas e a juntar os pulsos. Atou-lhos, depois enfiou-lhe uma meia usada na boca e amordaçou-o.

Enquanto David acenava a cabeça em concordância, Fonseca descia as escadas com um sorriso malicioso estampado na cara.

Madame X era uma morena - anunciou folgazão. - E tinha cabelo comprido.

Muito?

Ele afastou as mãos uns sessenta centímetros.

É bom saber isso - disse eu -, mas aposto que ela vai cortá-lo um bom bocado mal saiba que Coutinho morreu. E se calhar pintá-lo também.

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Porque diz isso? - perguntou Luci.

As mulheres que têm casos com homens casados em geral preferem guardar segredo quanto à sua identidade. E a última coisa que ela quer é ver o seu nome associado a um crime.

Mas se estava aqui escondida quando Coutinho foi morto - disse David - pode ser que se sinta obrigada a aparecer e contar o que viu e ouviu.

Só que se ela estava aqui deve estar mais do que aterrorizada neste momento.

Fonseca troçou:

Vocês são de uma ingenuidade arrepiante! Com um velho rico como este, muito provavelmente estava metida no golpe! E, se assim for, bem podem esquecer a hipótese de a encontrarem em Lisboa. Há muito que se pirou daqui!

Saquei do telemóvel e liguei para a Sr.ª Grimault, que confirmou que Susana Coutinho era loira natural, e Sandra também. Para tentar localizar o silenciador de fabrico caseiro e os telemóveis desaparecidos da vítima, encarreguei Luci de ir buscar um saco de plástico à cozinha para onde pudesse despejar todos os caixotes de lixo das vizinhanças. Segundos depois, já ela voltara para a sala acompanhada de Bruno Vaz, o tal técnico de laboratório que tinha na cabeça uma cassete comunista. Homem de sessenta anos, determinado e forte, cabeça rapada, uns olhos castanhos de peixe de aquário e os gestos assertivos de quem dirige uma orquestra, Vaz tinha um estilo único que nos fazia ficar à espera de surpresas maravilhosas e talvez mesmo de um pouco de feitiçaria uma vez ou outra. E fazia realmente um trabalho magnífico. Infelizmente, todos os meus esforços para conquistar a sua amizade tinham sido vãos;

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para além do seu visceral desprezo por tudo o que fosse americano, parecia considerar-me pessoalmente responsável por tudo e mais alguma coisa, desde o golpe de direita no Chile até ao uso do inglês como língua franca mundial. Não contribuía nada para a nossa amizade o facto de ter sido preso pela polícia política portuguesa em 1970 e torturado na prisão de Caxias devido à sua filiação no Partido Comunista. Antes de a vaga informe dos seus sentimentos em relação a mim se ter transformado num destilado de implacável antipatia, Vaz confessara-me - os olhos iluminando-se com revivido significado - que a sua prisão fizera com que o resto da vida lhe parecesse insignificante. Tinha sido claramente a sua Idade de Ouro. A vida em Portugal em 2012 - com bancos falidos, centros comerciais às moscas e telenovelas imbecis – devia parecer-lhe ridícula em comparação com estes tempos.

Vaz disse-me que tinha descoberto uma data de impressões digitais no frigorífico e nos armários.

Mais pegadas de dinossauro? - perguntei.

Não. Ou o nosso homem descalçou os ténis ou os limpou bem.

As marcas das solas pareceram-me ser da Converse.

Sim, ou então uma imitação. Digo-lhe logo que consiga identificar o modelo.

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Quando me perguntou se podia levar a camisa e a gravata da vitima, virei-me para David e ele fez-me sinal com a cabeça a dar-me luz verde. Usando o tom galhofeiro que se tornara o meu escudo contra a hostilidade de Vaz, disse-lhe:

São todas suas. E as calças estão no quarto.

Oiça, Monroe - rosnou ele -, muito antes de você chegar a Portugal já eu trabalhava a recolher provas de crimes. Por isso, se não confia em mim, é melhor dizer-mo na cara!

Não estou a perceber - disse eu, espantado. - Que é que eu fiz agora?

Ele acha que não devia ter pedido minha aprovação, Henrique disse David num tom cansado. Será que Vaz não gostava de David por ele ser brasileiro e judeu?

Talvez os seus ideais políticos se tenham transmudado em desconfiança em relação a estrangeiros. Talvez nunca tenham sido outra coisa.

Ah, estou a ver - disse eu, permitindo-me um ar zangado por ser em defesa de David. Tentei lembrar-me de uma advertência mordaz

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que pudesse alterar as coisas entre mim e Vaz, de uma vez por todas. De repente, senti-me incapaz de imaginar passar mais dez anos a esquivar-me aos seus insultos, mas não me ocorreu nada. - Sabe, Vaz, investigar crimes talvez seja a única coisa em que você eu somos realmente bons optei por dizer, confiando na verdade. - Por isso, sugiro que continuemos o nosso trabalho antes que as provas percam a paciência connosco.

Vaz fitou-me com os olhos franzidos e percebi por experiência que estava a fazer pontaria, por isso apressei-me a acrescentar:

A sua tarefa neste momento é simplesmente dizer-me o tamanho dos ténis que ele usava.

Quarenta e três, muito provavelmente - respondeu num tom rancoroso. - Também pode ser quarenta e quatro, dependendo do modelo.

Dirigindo-me a David, disse:

Tanto um tamanho como outro são bastante grandes para um português.

Sim, só que os moços de hoje são maiores do que os pais deles ...

Melhor alimentação.

Oiça, Monroe - disse Vaz, como se a minha conversa com David estivesse a fazê-lo perder tempo -, o que acha se eu for ver o carro da vítima antes de levar as roupas? Alguma objeção? Parecia tão ansioso como eu por pôr alguma distância entre nós.

Faça o que lhe parecer melhor - respondi. Vou dar-lhe uma mão e tirar umas fotos - disse Fonseca. A sua piscadela de olho significava que achava que o colega era capaz de estar a

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precisar de que o acalmassem. Só quando Fonseca se afastou, compreendi que a riqueza ostensiva de Coutinho deixara Vaz fora de si.

Depois de os dois técnicos terem saído para a garagem privada onde Coutinho tinha o carro, disse a Luci que quando fosse à procura do silenciado r do criminoso devia também ver se encontrava uns ténis de homem ou um par de luvas. Ao ouvir a porta da entrada fechar-se atrás dela, tive um estremecimento de alívio.

As mulheres novas e bonitas deixam você nervoso? - perguntou David.

Deixam. E fãs de Che Guevara também. Pelo menos hoje...

O suicídio daquele suspeito esta manhã mexeu bastante comigo, acho eu. Mas oiça uma coisa, David, gostava de falar consigo sobre algo bastante diferente.

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David sentou-se, com as mãos juntas nos joelhos, a impaciência de uma criança a brilhar-lhe nos olhos; estava contente por ter voltado ao trabalho... e por estar fora de casa, ao fim e ao cabo.

O assassino deve ter reparado na pegada na camisa - comecei -, mas não fez o mínimo esforço para a limpar ou disfarçar. Sabia que podia deitar fora os ténis num caixote do lixo qualquer e que provavelmente nós não os encontraríamos. Mas acha que podia também estar com medo de que Coutinho resistisse se tentasse despir-lhe a camisa?

Perante a morte, as pessoas podem descobrir em si extraordinárias reservas de energia. Mas, mesmo assim, o assassino só tinha de esperar uns minutos para tirar a camisa a ele sem esforço nenhum.

Só que provavelmente não queria arriscar demorar muito no local. E também pode ser que se tenha revelado mais difícil do que ele supunha ver um homem morrer asfixiado.

Certo.

E mais uma coisa. Se havia uma amante envolvida, ela deve ter ficado escondida no quarto durante todo o tempo em que Coutinho lutava pela vida. Nesse caso, depois de o assassino ter saído, ela deve ter-se escapulido pela porta da frente. E provavelmente fechou-a à chave.

O que significa que o assassino podia não ter a chave, como a princípio pensei.

Vai ter de a encontrar para ter a certeza - comentou David.

Até pode acontecer que ela tenha visto de relance quem matou o seu amante - sugeri.

Ou pelo menos ouvido a voz dele. - David baixou os olhos para o corpo, e eu tive o pressentimento de que estava a pensar em como ele próprio escapara por pouco à morte. Ao fim de algum tempo, disse:

O que também quereria dizer que ela podia ter salvado a: vida deste pobre desgraçado... se tivesse ligado para o 112.

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Com o assassino aqui, devia estar completamente acagaçada.

Mas e depois? - A expressão perturbada de David mostrava-me que não estava disposto a deixá-la escapar assim tão facilmente.

Levantou-se e levou mais uma vez a mão às costas doridas.

Deve estar desesperada por manter em segredo a sua relação com Coutinho. - Pôs-me as mãos no peito e deu-me um pequeno empurrão, como que para me obrigar a manter o equilíbrio. O que significa, meu rapaz, que ela vai fazer tudo por tudo para impedir você de a descobrir.

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A sala de jantar de Coutinho ficava no rés do chão, e no meio da divisão via-se uma mesa retangular de mogno suficientemente grande para vinte lugares. Em cada ponta havia pesados candelabros de prata com uns braços sinuosos e ornamentados na base com folhas de acanto enroladas. Teriam vindo da mesma igreja que os azulejos da cozinha? Começava a pensar que Coutinho tinha trazido para casa uma aldeia portuguesa inteira.

A porta das traseiras dava para o jardim, onde uma palmeira de uns nove metros de altura montava guarda sobre um estrado circular de madeira. Ao lado, no meio do relvado descuidado havia um pequeno lago com peixes, ornamentado com uma garça de bronze numa atitude orgulhosa segurando um peixinho no bico levantado. Depois do relvado, o verão transformara a buganvília antiga, que amarinhava a todo o comprimento do muro por trás da casa, numa cascata de pétalas rubras. À volta do seu tronco nodoso estendia-se uma massa de agapantos erguendo no ar as suas efusivas borlas azuis.

Senti a silenciosa e invisível necessidade de sol oculta sob todo aquele verde. Ao mesmo, tempo tive a noção do meu próprio desejo de me agarrar às coisas boas da vida que tinha conquistado.

Espreitando por cima do muro das traseiras, reparei que uma das casas vizinhas estava encimada por uma claraboia de vitrais a que faltavam dois dos vidros. A maior parte do telhado tinha também abatido.

Ao voltar à biblioteca, examinei atentamente o as fotografias da mulher e da filha da vítima. Ver Coutinho com o braço à volta da cintura da filha – dando-lhe marradinhas no pescoço e fazendo-lhe cócegas amoleceu a opinião que tinha dele. Sandi devia ter oito ou nove anos na fotografia e esquivava-se com deliciada alegria.

Na fotografia maior, com uma moldura dourada, a cara da rapariga era mais adulta e expressiva. Empunhava um livro escolar como um escudo enfrentando a objetiva e, embora fixasse a lente com um ar que pretendia ameaçador, via-se que estava prestes a rebentar em gargalhadas. A mãe tinha a cabeça poisada no ombro da filha e fixava a objetiva com ar pensativo, e íntimo também - com o à-vontade de quem revela o seu verdadeiro eu, nascido de um amor profundo, parecia-me. O meu palpite era que Coutinho mandara ampliar a fotografia

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devido ao muito que a dedicação da mulher significava para ele - e talvez também porque mostrava que Sandi estava a crescer.

No quarto ao lado, o do dono da casa, via-se por cima da cama a enorme tela de um centauro musculoso - executado com os movimentos ágeis das pinceladas rápidas de Coutinho. O corpo delgado e vigoroso do animal era preto, e os olhos humanos - de um azul de fresco medieval - eram intensamente inteligentes e estranham entes vigilantes. «Estou a ver-te», parecia afirmar a criatura mítica. Era bem possível que Coutinho o tivesse concebido como um aviso à mulher. Subi ao último andar da casa, onde ficava o quarto de Sandra. No patamar estava um calor sufocante com um cheiro intenso a pó.

O chão de tacos do quarto era um campo minado de livros e CD espalhados à toa. No entanto, a cama estava feita com a perfeição de um colégio militar. Calculei que os pais tivessem estabelecido um acordo com ela: se fizesse a cama todos os dias, eles proibiam a Sr.ª Grimault de entrar no quarto. A minha mulher e eu acordámos algo semelhante com Nati, o nosso filho mais velho.

Mal levantei os estores, a luz oblíqua iluminou o pavimento e subiu para a coberta amarela da cama da miúda até às almofadas a condizer. As paredes e o teto tinham sido pintados de preto, o que me pareceu uma escolha estranha, mas também perfeitamente de acordo com o poster de um vampiro adolescente que assombrava a parede por cima da secretária. Sangue escorria-lhe da boca e fazia o melhor que podia para parecer sinistro, embora a pose de estrela de cinema e o penteado de uma perfeição digna de Hollywood tornassem os seus esforços inúteis. Um tapete persa bastante gasto com arabescos azuis e dourados levava da cama ao toucador, de estilo simples e utilitário. Por cima dele, havia um espelho mexicano, com figuras mascaradas dançando à volta da moldura.

Espalhados pela cama viam-se animais de peluche e bonecas: catorze ursos, quatro gatos, três Barbies, um Homem-Aranha e um grande panda barrigudo com uns olhos azuis enormes. Os olhos gigantescos - e a inclinação do pai para a cultura japonesa - fizeram-me pensar que aquele urso devia ter sido inspirado num desenho animado japonês.

Apostaria em como fora o pai que lho tinha comprado.

Ao lado da cama, sete pares de ténis coloridos, desde o azul-escuro ao rosa-elétrico, pendiam de pregos espetados na parede. Os meus favoritos

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eram uns de uma cor verde-limão com cordões dourados. Sandra devia gostar de dar nas vistas. Admirava a sua coragem.

Numa prateleira de madeira que ia da secretária até à parede preta do fundo havia centenas de CD, a maior parte de rock americano e inglês. Uma mesinha de vidro por baixo da janela estava reservada para as fotografias de Nero, um cão cinzento e que parecia cheio de energia. A língua rosada comprida parecia estar sempre de fora.

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Sandra tinha em cima da mesa de cabeceira um livro de vampiros com o título Queimada e três CD: Day & Age, dos Killers; Lungs, de Florence + the Machine; e Let England Shake, de P. J. Harvey. Já tinha ouvido falar na P. J. Harvey, mas nos outros não. O despertador de Sandra servia também de leitor de CD. Marcava 11h47.

Com a sensação de que faltava alguma coisa, andava às voltas pelo quarto. Uma mancha escura na barriga do urso de peluche chamou-me a atenção. Toquei-lhe, a cabeça começou a latejar-me e senti alguém aproximando-se por trás de mim. Antes que pudesse voltar-me, senti uma pancada na nuca.

Dei por mim com os olhos postos nos pulsos, sem saber onde me encontrava. O coração batia descompassado e tinha os lábios secos.

Suava como se tivesse corrido em busca de segurança. A boca sabia-me a tabaco.

O meu bloco de notas encontrava-se caído a meus pés. Estava sentado na cama de Sandra. O despertador marcava 12h19. Tinha passado mais de meia hora.

Percebi que, poucos momentos antes, pegara no pulso do meu irmão para o impedir de cair; estávamos em pé em cima do telhado da nossa casa no Colorado.

Ao fechar os olhos, tive a certeza de que a casa no meu sonho não só estava na minha memória como era um desenho da minha memória. O telhado e todos os quartos por baixo dele - o quarto que partilhei com Ernie, sobretudo - encontravam-se no sítio onde guardara tudo o que eu vivera. Subindo para o telhado e levando comigo o meu irmão, estava a tentar situar acontecimentos que esquecera havia muito tempo esperando, penso, encontrar momentos do passado que me ajudassem a resolver este caso.

Quando me levantei, uma pressão familiar na mão esquerda levou-me a esticar os dedos. Atravessando a palma da mão e estendendo-se pelo polegar lia-se: «H: memórias más debaixo da cama da rapariga.

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Quadro de Almeida no sítio errado. Dá uma vista de olhos ao dicionário de Francês- Farsi. Porque não tem a Sandra nenhuma fotografia de si própria?»

Por baixo da última linha, Gabriel desenhara flechas cruzadas, um sinal de que queria estar novamente comigo - e rapidamente.

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Capítulo 5

A primeira vez que recebi uma mensagem na palma da mão tinha oito anos. Estava escrita em tinta azul, com letras sinuosas do tamanho de formigas. Li-a sentado no sofá às flores do nosso alpendre de madeira. A letra não se parecia nem com a da minha mãe nem com a minha. A mensagem dizia: «H - o teu pai vai querer pôr-te à prova a ti e ao Ernie na sexta - feira. Por isso, a seguir à escola leva o Ernie para longe de casa e volta só depois de escurecer,»

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Quem poderia tê-la escrito? E como tinha sido rabiscada na minha mão sem que desse por isso?

Imaginando que aquilo poderia criar-me problemas com o meu pai, corri para a torneira ferrugenta nas traseiras de nossa casa e limpei as letras.

Já conhecia histórias que os miúdos mais crescidos me tinham contado sobre casas assombradas e, nessa noite, enquanto examinava os restos de tinta azul na palma da mão - fazendo incidir nela a luz da lanterna, sentado debaixo dos lençóis -, cheguei à conclusão de que algum fantasma tinha entrado em contacto comigo. A ideia não me deixava assustado; a mensagem pretendia proteger-me, concluí, e ser observado por alguém vindo do além-túmulo provocava em mim um estremecimento semelhante ao dos miúdos prestes a embarcar numa grande aventura potencialmente perigosa. Comecei a chamá-lo «Espetro», por me lembrar o super-herói fantasma que aparecia em várias das revistas da coleção de banda desenhada que o meu pai me oferecera.

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Não sei como formei as minhas ideias sobre o Espetro, mas acabei por acreditar que se tratava de um adulto que fora vencido na batalha contra uma doença fatal uns anos antes. Decidi que tinha quarenta e sete anos na altura da sua morte e que crescera a poucos quilómetros de nossa casa, num velho casinhoto abandonado por onde eu passara centenas de vezes, perto da Estrada Nacional 92.

Quando era vivo, o Espetro tinha cabelo castanho crespo e um olhar amável. Andava sempre de jeans e T-shirt exceto quando ia à igreja. Era esguio e musculoso. Tinha uma expressão compreensiva e cansada da vida, e um andar desconjuntado e cansado, por lhe terem acontecido coisas realmente más quando era novo. E também por estar muito doente. Nunca se casara nem tivera filhos.

Decidi que ele voltara dos mortos para me ajudar.

Pouco antes de receber a sua primeira mensagem, estivera a observar o meu pai a gritar com Ernie por ele ter feito xixi na sua poltrona favorita quando aí adormeceu. O meu irmão tinha quatro anos nessa altura, e os berros do meu pai fizeram com que rompesse num choro desatado. O meu coração começou a bater como um tambor pois sabia que o meu pai ia agarrar em Ernie e abaná-lo até ele se calar, e o corpo do meu irmão ia ficar lasso e os olhos mortiços, quase sem vida. Depois apareceu-me aquela mensagem na mão, já eu não estava na sala de estar e sim sentado fora de casa. Primeiro senti-me partido ao meio - como se estivesse em dois sítios ao mesmo tempo.

Depois de ter apagado a mensagem, encontrei Ernie no quarto que partilhávamos, debaixo dos cobertores, a dormir deitado de barriga para baixo.

A sugestão do Espetro fazia-me todo o sentido; por isso, na sexta-feira, mal cheguei a casa da escola, disse à minha mãe que ia com Ernie a uma festa de anos. Era mentira, naturalmente, a primeira das muitas que eu lhe diria nos dois anos que se seguiram. Ela poisou o livro que estava a ler aberto em cima dos joelhos e disse: «Faz como te parecer melhor, querido.»

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Agora, passados trinta anos, parece-me estranho que a minha mãe me tenha confiado Ernie a tarde toda até ao anoitecer, tendo eu apenas oito anos. Mas ao mesmo tempo parecia-me normal; nessa altura, a bem dizer, a minha mãe não chegava sequer a vestir-se. Durante o dia, quando o meu pai estava na serração, ela dormia, bem aconchegada nos cobertores, ou lia um livro, embora uma vez ou outra, quando eu ia

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ao quarto e cantava para ela ou dançava à volta da cama para a fazer rir, ela encontrasse energia para enfiar uns jeans e uma blusa, descer até à cozinha e fazer uma tarte para mim e para Ernie ou dar um passeio lá fora connosco.

Às vezes íamos os três apanhar flores. A minha mãe disse- me uma vez que as flores silvestres eram a maneira que o sol tinha de conhecer a terra. Adorava ouvi-la dizer estas coisas engraçadas com o seu sotaque português. E sentia-me no centro do mundo quando a via enfeitar, mesmo que fosse com as mais modestas margaridas, a velha jarra esbeiçada que trouxera de Portugal e de que gostava tanto. Era amarela e tinha uns coelhos azuis pintados. Costumávamos chamar-lhe «a jarra dos coelhos da mãe».

As tartes que fazia eram geralmente de maçã, porque tínhamos um pomar com maçãs McIntosh plantadas pelo anterior dono.

Depois da sua morte descobri no roupeiro dela, por trás dos casacos usados, uma caixa de medicamentos e percebi que tomava doses enormes de Valium e que o meu pai comprava os comprimidos no Mortinsons em Gunnison, pois era esse o nome e o endereço da farmácia que se lia nos rótulos. Percebi também que ela devia saber que eu às vezes rebuscava a sua mesinha de cabeceira, senão seria aí que guardaria os comprimidos.

Por essa altura, a minha mãe tinha deixado de conduzir. O meu pai devia preferir tê-la enfiada em casa sem se mexer como uma inválida apática.

Era na primeira gaveta da mesinha de cabeceira que a minha mãe guardava o estojo de primeiros socorros. Tinha lá aspirina Bayer para crianças, compressas de aze, mercurocromo, pomada Polysporin e uma data de outras coisas úteis. Por baixo de tudo isso, havia umas brochuras vistosas de cruzeiros na Europa. Lembro-me sobretudo das imagens de Veneza porque imaginava milhares de miúdos italianos a irem para a escola a nado e acreditava que os professores tinham de ter toalhas nas salas de aula para eles se secarem. Na gaveta a seguir, estavam guardados os livros de poesia da minha mãe: Fernando Pessoa, Pablo Neruda, Camões... E também um baralho de cartas com imagens dos monumentos de Lisboa, como a Torre de Belém e o Mosteiro dos Jerónimos, nas costas. Nessa altura achava estranho que ela as guardasse, pois quase nunca queria jogar rummy ou póquer comigo e com Ernie.

Depois de eu e o meu irmão termos vindo viver para Portugal, descobri um velho exemplar quase a desfazer-se dos Vinte Poemas de Amor de Neruda que Ernie trouxera e onde ela sublinhara estas linhas:

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Hei de trazer-te das montanhas flores alegres, campainhas,

avelãs escuras, e cestas de beijos.

Quero fazer contigo o que a primavera faz com as cerejeiras.

Ao ler estes versos no livro da minha mãe, fiquei gelado, por me lembrarem o meu pai a dizer-me: «Vou fazer ao Ernie o que o inverno do Colorado faz às nossas macieiras.» Compreendi então mais claramente do que nunca que ele possuía um dom para reconhecer o que havia de mais belo no mundo e para o destruir.

Na gaveta do fundo da mesinha da minha mãe havia um envelope castanho com fotografias dos pais dela e da irmã mais velha, Olívia, que vivia em Portugal. A de que eu mais gostava era uma com as duas irmãs na praia da Caparica, quando a minha mãe tinha doze anos e a minha tia Olívia dezanove. Nas costas, nos rabiscos difíceis de decifrar do meu avô, lia-se a data: agosto de 1954. Tinha também-escrito os nomes das duas, Maria Antónia e Maria Olívia.

Na fotografia, a minha mãe é esguia e tem um aspeto atlético e vivaz, e a tia Olívia, morena, pequena e sensual, como uma jovem Frida Kahlo. Empunham as duas uma raquete de pingue-pongue e sorriem. Trago essa fotografia na carteira. Gosto de levar as duas irmãs comigo para todo o lado.

Depois da morte da minha mãe, o meu pai costumava levar-me a mim e a Ernie a passear pelo Colorado e pelo Novo México. Vimos a águia-real no Parque Nacional das Montanhas Rochosas e passámos um fim de semana num motel em Santa Fé que tinha chifres de veado por cima do balcão da receção. Deixou-nos mesmo dormir com ele a maior parte das noites, Ernie de um lado e eu do outro, e mantinha a mão em cima da minha cabeça a noite toda, por eu ter decidido que não conseguia dormir se ele não estivesse exatamente no sítio onde devia estar.

Talvez tudo o que fiz na vida tenha tido como origem a complexidade do meu pai. E talvez cada um dos casos que investiguei tenha sido uma nova oportunidade de decifrar o mistério que eternamente me fixava do fundo dos seus desconfiados olhos castanhos - que, para o melhor e para o pior, são também os meus. Às vezes, quando não consigo dormir, penso em como me pareço cada vez mais com ele, e isso quase sempre me leva a perguntar a mim próprio se a necessidade de o compreender terá determinado a minha vida até à mais ínfima volta e reviravolta.

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Se calhar até o ter querido ter filhos se deva a ele - para tentar perceber o que via quando olhava para mim e para Ernie.

Será que todos levamos a vida que levamos porque temos de saber por que razão as coisas aconteceram da maneira que aconteceram, e se elas poderiam ter-se combinado de um modo diferente para produzir algo mais terno e significativo e permanente?

Tenho duas fotografias da minha mãe de 1980. Sei que as tirei no verão, porque o meu pai me comprou uma Canon no fim do ano escolar. Nas duas fotografias, a minha mãe tem um ar gasto, como se tivesse passado tanto tempo a subir uma encosta que se sentisse demasiado

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exausta para prosseguir, apesar de ter só trinta e oito anos na altura - ainda nova, embora os olhos pareçam pisados e o cabelo lembre cordas velhas e esfiapadas.

Sei que se pode estar morto em vida por ter visto a minha mãe. E sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que ela nessa altura - e ainda há muitos dias em que não consigo compreender porque sou como sou. Hoje sei também que todo aquele Valium que ela tomava a devia impedir de pensar com clareza sobre si própria. Talvez tudo tenha a ver com isso, no fundo.

Não olho para as fotografias dela muitas vezes. Estão guardadas na minha mesinha de cabeceira, no fundo de tudo, onde mais ninguém possa ver até que ponto ela estava já morta.

Nunca disse a Ernie que tinha aquelas fotografias; prefiro que ele guarde imagens mais felizes da nossa mãe na sua lembrança. Esquecer como eram as coisas pode ser uma bênção.

Não faço ideia de onde possam estar os negativos. Não consegui encontrá-los quando chegou o momento de vir para Portugal. Espero que os novos donos do rancho no Colorado os tenham descoberto e deitado fora; não gosto de imaginar os negativos das fotografias da minha mãe retidos num sítio onde ela foi tão infeliz; a morte deve servir-nos de libertação, se não para mais nada.

Naquela sexta-feira a seguir à mensagem do Espetro, peguei em Ernie e conduzi-o ao longo do riacho, a cerca de meio quilómetro da nossa casa, até um prado onde o meu pai e eu costumávamos praticar tiro ao alvo. Levei também um cobertor, pois, embora estivéssemos em fins de maio, encontrávamo-nos a uns dois mil metros de altitude e à

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noite a temperatura descia abaixo de zero. Vivíamos bastante afastados dos nossos vizinhos mais próximos, um casal que andava pelos oitenta anos, chamados Johnson. Tanto o Sr. Johnson como a mulher eram surdos, achava eu nessa altura. Agora, apercebo-me de que deviam preferir não se imiscuir no que se passava no nosso rancho.

Ernie fazia birras tremendas e tinha imensa energia; era um miúdo capaz de nos deixar loucos: se não o vigiássemos de perto podia pôr-se a puxar o fio de um candeeiro para fora da tomada ou espalhar o caixote do lixo na cozinha. Hoje compreendo que era apenas levado pela curiosidade, mas naquela altura as suas ações pareciam ter por fim sermos os dois castigados pelo meu pai.

Em criança, Ernie vivia à superfície dos seus sentidos. Estava sintonizado de um modo especial para o chilrear dos pássaros pela manhã. E para as cores. O canto e os guinchos deles acordavam-no ao amanhecer e ele esgueirava-se da cama em pijama e punha-se a olhar pela janela como se estivesse a observar o Pai Natal e as suas renas a prepararem-se para as aventuras da véspera de Natal. Ernie tinha cabelo castanho-escuro curtíssimo e uns grandes olhos verdes líquidos que dardejavam em volta a todo o momento, com as mesmas pestanas compridas que se veem em muitos portugueses. E um cheiro muito próprio e que eu adorava - como papas de aveia quentes.

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Ernie tinha a cara redonda e terna da minha mãe. Eu herdara o ar chupado, meio faminto do meu pai, e os mesmos olhos escuros e sérios, bem como os seus lábios finos, quase inexistentes.

Tenho quase a certeza de que os meus lábios me dão um ar de alguém em quem não se pode confiar. Mas gosto dos meus olhos. Acho que mostram que sou uma pessoa refletida. A maior parte das vezes, gosto que haja em mim esse traço do meu pai, embora nunca o diga. É só mais um dos muitos segredos que cultivo a sós quando mais ninguém me vê.

«Parecem-me folhinhas de fetos.» Era o que a minha mãe dizia das pestanas de Ernie. Só que dizia a frase meio em português por não confiar muito no seu inglês.

Não sei se Ernie era bonito como rapaz, mas tinha uma espécie de aura sobrenatural quando estava feliz. E uma timidez acrescida na presença de adultos que os levava a procurarem espicaçá-lo. Quando era bebé, as pessoas na rua estavam sempre a pedir para pegar nele ao colo ou a passar-lhe a mão pelo cabelo.

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A minha mãe dizia que ele tinha os olhos mais vulneráveis e mais bonitos que ela vira e, se bem que fosse o amor a falar, era também um facto inegável. Às vezes penso que os olhos de Ernie sempre tiveram a silenciosa profundidade de alguém que viu e testemunhou coisas de mais.

Quando a minha mãe elogiava o aspeto de Ernie talvez estivesse também a dizer que havia ainda alguma coisa de bonito em si, embora se tivesse tornado quase impossível vê-lo. Espero que fosse isso em parte o que ela queria dizer. É o que desejo todos os dias da minha vida.

O meu pai deve também ter pressentido que Ernie não era como os demais. E provavelmente reparou que ele - mesmo em criança - se parecia imenso com a mãe e quase nada consigo.

Sei que desiludi a minha mãe. Essa é para mim a coisa que mais me custa admitir.

Mas, enfim, na tarde daquela sexta-feira, quando o Espetro me escreveu pela primeira vez uma mensagem, desci com Ernie até ao nosso riacho. Ele começou por fazer uma birra por eu me ter esquecido de levar comida. Para o distrair ia-lhe perguntando os nomes das flores silvestres que encontrávamos. Nessa época do ano, o prado fazia lembrar um jardim botânico, e todas aquelas corolas amarelas, roxas e escarlates pareciam tão ansiosas como nós por aquecer ao sol depois de um longo inverno. E por serem reconhecidas por aquilo que eram.

As preferidas de Ernie eram umas flores escarlates que cresciam em tufos, chamadas «pincéis de índio», que pareciam fazer cócegas nos dedos quando lhes tocávamos. A nossa mãe uma vez mostrou-nos como secar flores entre as páginas de um livro, e, por isso, de vez em quando, colhíamos «pincéis de índio» para os meter no meio do American College Dictionary que ela me dera de prenda de anos. Dizia que eu e Ernie precisávamos de ter um inglês perfeito se quiséssemos ser bem-sucedidos na América.

Dizia sempre que Ernie ia ser cientista, por ter aquele género de curiosidade inesgotável e ávida em relação às coisas mais simples. Era também o que eu achava.

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A mim, dizia-me que haveria de certeza de ser uma estrela do basebol, mas só por ser esse o meu sonho. Secretamente, desejava que eu estudasse música e viesse a ser pianista ou talvez cantor.

Depois de andar uma hora às voltas com Ernie, só me apetecia sentar-me e descansar, mas ele desatava a choramingar de cada vez que

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o deixava só. Era como se tivesse pilhas e estivesse programado para uma erupção de lágrimas sempre que eu lhe largava a mão.

Depois de o sol ter desaparecido atrás da crista de uma montanha ao longe, avistámos uma perua. Estava num ninho por baixo de um carvalho enorme, e eu e Ernie aproximámo-nos em bicos de pés, de mãos dadas, naturalmente, aspirando a escuridão trazida pelo vento, tensos por termos de nos manter absolutamente em silêncio. Contámos doze filhotes na erva, soltando aqueles sons agudos como o arranhar de um violino que costumam fazer só para darem a saber à mãe onde estão.

Quando chegámos a casa, estava tão derreado que mal conseguia segurar-me em pé. Passava um pouco das nove. O meu pai jazia inconsciente no sofá da sala. Tresandava a tequila e charutos, e despira a camisa e as calças, mas tinha ainda a roupa interior e o boné de basebol dos Milwaukee Braves. Do gira-discos chegava-nos a voz arranhada de Bessie Smith. Era um velho disco de setenta e oito rotações com uma etiqueta púrpura.

Fui ao quarto dos meus pais e disse à minha mãe que Ernie estava morto de fome. Encaminhámo-nos em bicos de pés para a cozinha. Ela abriu uma lata de feijões cozidos Heinz e aqueceu-os no fogão com um pouco de molho de tomate e água. Pus Ernie em cima de uma cadeira e, enquanto os dois observávamos aquele líquido espesso borbulhar e fervilhar, contei baixinho à minha mãe que tínhamos visto uma família de perus.

Ernie e eu empanturrámo-nos no quarto. Ele enfiava a colher na tigela comum, mas esta só lhe chegava à boca meio cheia, depois de deixar cair uma boa parte dos feijões no pano da louça que lhe tinha atado à volta do pescoço. Quando terminámos, enfiámos os pratos e os talheres debaixo da cama à espera de uma ocasião para levarmos tudo para a cozinha. Trouxe também alguns livros. Lera ao meu irmão [ames e o Pêssego Gigante e A Portagem Fantasma antes de ele conseguir sequer pronunciar as primeiras palavras. A maior parte das vezes batia com as mãos nas ilustrações e fazia aqueles sons patetas dos miuditos pequenos.

Antes de nos deitarmos, a minha mãe disse que fora uma sorte estarmos fora durante a tarde porque o meu pai tinha chegado a casa extremamente furioso, e tão bêbado que mal conseguia manter-se direito até para fazer xixi. Foi nesse momento que tive a certeza de que o Espetro me dera um bom conselho.

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O meu pai saía com os colegas do trabalho e bebia de mais todas as sextas-feiras; era o dia em que recebiam. Não percebia isso quando era pequeno. Mas o Espetro sabia-o. Por isso é que

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pôde avisar-me para não estar em casa naquela tarde. Sabia muito mais do que eu. Talvez por ser adulto.

A partir de então, o Espetro passou a escrever mensagens na minha mão mais ou menos uma vez por semana, na maior parte das situações para me avisar quando havia a certeza de que o meu pai iria ficar de tal modo bêbado que teria uma ressaca terrível. Quase em seguida, o Espetro começou a falar das provas que o meu pai me iria impor. Tornouse muito mais rápido do que eu a encontrar Ernie. Salvou o meu irmão de ficar gravemente ferido em diversas ocasiões, quando eu nunca teria descoberto a tempo onde ele estava.

Foi desse modo que acabei por me aperceber de que o Espetro era muito mais eficiente do que qualquer pessoa a descobrir pistas. Era capaz de decidir rapidamente o que era importante e significativo numa sala - o que fora retirado ou acrescentado, por exemplo. Os testes do meu pai haviam-no treinado nisso. Tinham feito com que ele passasse a ser como aquelas pessoas cegas que ouvem sons ínfimos e distantes que os outros não conseguem distinguir.

Em miúdo imaginava que o Espetro não tinha as emoções das pessoas vivas. E que era por isso que conseguia concentrar-se na busca de Ernie excluindo tudo o resto. Mas hoje sei que ele entra em pânico. Na verdade, acho que conhece melhor o medo do que qualquer pessoa que eu alguma vez tenha conhecido, incluindo o meu irmão.

Os miúdos não têm experiencia que lhes permita reconhecer o que é excecional ou único, e eu partia do princípio de que todos eram iguais a mim e recebiam mensagens nas mãos ou noutra qualquer parte do corpo. Só quando falei nelas à minha mãe é que percebi que eu tinha mais sorte do que as outras pessoas. Ela disse-me que nunca recebera mensagens dessas e que não conhecia ninguém que as tivesse recebido. Disse- me para nunca falar nisso - especialmente ao meu pai - porque ninguém iria acreditar ou compreender. Seria o nosso segredo.

«O nosso segredo», disse ela em português, com a mão pousada na minha cabeça, como se me abençoasse, o que me dava a impressão de que queria continuar a tomar conta de mim na sua maneira muito própria e a maior parte das vezes silenciosa. Embora, se quisesse ser mauzinho,

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pudesse dizer à sua inútil maneira. Por não nos defender, a mim e a Ernie, com suficiente energia. Tento não pensar nisso, mas penso.

É obviamente possível que pouco antes de morrer ela tenha imaginado que isso seria a única coisa que faria com que o meu pai fosse bom para nós. Não que eu o tivesse compreendido então. Nessa altura, parecia-me apenas que ela nos abandonadara.

Quando eu tinha onze anos, em setembro de 1981, fomos ouvir um grande pregador de Denver - um professor de Teologia chamado Thurmond - que no seu sermão nos disse que os anjos na verdade não existem. São metáforas, disse ele, para mostrar que Deus olha por nós. As palavras daquele homem idoso deixaram-me aturdido como se tivesse apanhado um

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choque elétrico, porque me apercebi nesse mesmo instante de que ele não sabia o que estava a dizer.

Foi então que decidi deixar de chamar Espetro a quem quer que fosse que me mandava as mensagens. Em vez disso, passei a dar-lhe um nome de anjo, e escolhi Gabriel, muito embora nunca me tivesse passado pela cabeça que ele fosse um arcanjo bíblico; teria de ser bastante mais louco do que era para pensar que um poderoso anjo bíblico iria descer do Céu para nos visitar no nosso rancho no Colora do rural e me ajudar a aguentar as provas do meu pai. Porque então, se nos pudesse visitar com essa facilidade, não teria ele salvado a vida da minha mãe? Não, imaginei que o meu Gabriel não passaria de um anjo pouco importante, e que era possível que, tal como as pessoas, houvesse mais do que um anjo com o mesmo nome. E concluía que muitos deles apenas dispunham de uma parte ínfima do poder de Deus - insuficiente para nos salvar da morte.

Gabriel chamava-me sempre H nas suas mensagens, por isso passei a chamá-lo G. De cada vez que recebo uma mensagem dele, fico sem saber de mim. Habitualmente desapareço por um período entre dez minutos e uma hora. Nunca sei para onde vou.

As mensagens que recebo são sempre em letra de imprensa nunca em letra manuscrita.

A certa altura - devia eu ter doze ou treze anos -, comecei a achar que G tomava posse do meu corpo. Embora durante muito tempo não tivesse a certeza disso, pois nunca retomei consciência sabendo o que me tinha acontecido. Nunca pedi a Ernie para me dizer o que tinha eu andado a fazer, porque não queria que ele soubesse que eu não estivera ali - no meu corpo, quero eu dizer.

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Habitualmente, sinto as têmporas a latejar quando G pretende apossar-se de mim. Mas, se ele chegar realmente depressa, numa emergência, não me é dado qualquer alerta - a entrada dele provoca-me uma sensação semelhante à de uma palmada na nuca.

Passei a ter a certeza de que G toma posse de mim desde que certa vez pedi a um colega da polícia que me observasse enquanto eu examinava as roupas empapadas de sangue do dono de um restaurante que tinha sido esfaqueado até à morte. Passou-se há dezasseis anos.

Ver sangue de feridas abertas faz com que eu desapareça, embora às vezes consiga manter G à distância se me mostrar suficientemente determinado.

O meu colega contou-me que desatei às voltas pelo local do crime como se as paredes do restaurante estivessem prestes a abater-se sobre nós. As poucas palavras que lhe dirigira tinham sido em inglês. Também lhe pedira um cigarro, apesar de já não fumar.

Gabriel sabe português, estou certo disso, mas recusa-se a escrevê-lo. Anda de um lado para o outro no local de um crime como se a sua mente estivesse em chamas. Talvez porque no seu mundo haja uma contagem decrescente sempre prestes a chegar a zero.

Quando eu tinha catorze anos, desapareci durante uma semana por duas vezes. Nesse tempo andava a beber de mais. Na verdade, passei a maior parte do sétimo e do oitavo anos

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mergulhado numa névoa de cerveja. Depois de uma noite inteira nos copos em Gallup, certa sexta-feira, fui para a cama em março e acordei em abril. Perder dez dias foi uma coisa que me deixou tremendamente assustado.

Voltei a mim com uma tatuagem no braço. Costumo dizer às pessoas que é uma águia americana, e que a fiz levado por sentimentos patrióticos. Mas é um Thunderbird, o espírito dos raios e do trovão dos índios. Nathan, o meu amigo sioux, contou-me uma vez que essa ave poderosa e sábia me protegia a partir do mundo dos espíritos, e acho que G queria que eu me lembrasse disso.

Hoje, a única droga que tomo é Valium. Provavelmente não devia fazê-lo, mas é a única coisa que me acalma quando entro em pânico.

Um dia comi um botão de peiote com Nathan. Estávamos sentados no quintal da sua cabana nos arredores de Crawford. Mergulhei num sono pesado, sentado no estrado de madeira, e acordei com ele a dançar à minha volta, com um toucado de plumas na cabeça e guizos nas mãos. Dava a impressão de que dançava há horas.

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Mais tarde disse-me que tinha estado o tempo todo sentado a meu lado.

Durante as semanas que se seguiram, sonhei repetidamente que era transportado para um lugar seguro por uma enorme ave cinzenta que me deixava sempre num cume protegido por cima do Black Canyon.

Gabriel foi à escola em meu lugar quando desapareci nesses dez dias. Os meus professores disseram-me depois que eu me tinha mostrado particularmente calado nas aulas - o que fora uma agradável surpresa.

Quando voltei a mim, tinha uma mensagem sua escrita na mão: «H - Tem cuidado com o teu corpo senão não deixarei que fiques com ele!»

Agora não bebo, nem mesmo vinho ou cerveja. É um risco demasiado grande. Não poderia olhar para Ana nem para os meus filhos da mesma maneira se eles soubessem da existência de Gabriel. Porque eles não olhariam para mim da mesma maneira. Haveriam de pensar que sou louco ou perigoso. E Ana poderia não querer voltar a falar comigo. Mas, ainda que ela conseguisse dominar a sua raiva - e o seu medo daquilo que se escondia em mim -, não gostaria de alguma vez dar a G a oportunidade de falar com ela e com os miúdos. Não gostaria que ele lhes contasse o que aconteceu a Ernie e a mim quando éramos crianças. Porque possivelmente não acreditariam nele. Bem vistas as coisas, poderiam até não acreditar em mim. E, se não acreditassem em nós, não poderia continuar casado. Ser-me-ia impossível voltar a confiar em Ana alguma vez.

Agora, compreendo que G venha ter comigo quando me sinto ameaçado ou quando alguém que amo está em perigo, embora às vezes não entre em ação quando eu esperaria. Creio que ele percebe quando não pode fazer nada por mim.

Talvez venha mais para me ajudar a mim do que a Ernie. Não sei.

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Quando éramos pequenos, isso ia dar praticamente no mesmo; por isso, é possível que ele não veja grande diferença.

Gabriel nem sempre partilha comigo tudo o que pensa. É astuto. E, embora as suas suspeitas nem sempre se revelem justificadas, já me ajudou a descobrir provas de crimes que serviram para mandar para a prisão algumas pessoas bastante más.

Não me parece que G deixe que a afeição, ou considerações triviais, se interponha no seu caminho. Estou bastante convencido, na verdade, de que era capaz de matar os assassinos, violadores e pedófilos que

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interrogo se tivesse a certeza de poder escapar - ou seja, de não me meter em sarilhos. Talvez assim seja porque, estou certo, se lembra de muito mais coisas do que nos aconteceu no Colorado do que eu próprio. De facto, penso que o meu pai continua a estar vivo onde quer que G viva. Isso não pode ser muito bom para a sua paz de espírito. Embora também se possa dar o caso de ter ocasião de ver o meu pai dançar o tango com Ernie nos braços uma vez ou outra. Ou a ensinarlhe a melodia de uma canção da Patsy Cline. Também eu gostaria de ver essas coisas - estar lá nos bons momentos. Gostaria muito.

Pouco antes de me casar, fui à Biblioteca da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa consultar o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. Aprendi aí que a identidade das pessoas que tenham sido aterrorizadas em crianças nem sempre se fixou. Podem desenvolver uma ou mais identidades separadas de modo a conseguirem lidar melhor com situações insuportáveis.

Há duas frases nesse livro que me valeram o meu primeiro ataque de pânico. Não sei reproduzi-las literalmente, pois não ousei voltar a lê-las, mas era qualquer coisa como isto: «As pessoas com transtorno dissociativo de identidade tendem a ter pelo menos uma personalidade que acredita que merece ser punida - mesmo espancada, brutalizada ou assassinada. Muitas vezes foi isso que os abusadores lhes disseram quando eram crianças.»

Depois de ter lido isto, não conseguia respirar e, quando uma dor aguda me fendeu o peito, pensei que era um ataque cardíaco. Mas não gritei por socorro. Poisei a cabeça na mesa onde estava a ler e fechei os olhos. Pensei que era bom que morresse, pois evitaria que Ana se casasse com alguém tão perturbado como eu.

Quando me senti com forças para me levantar, dirigi-me para o carro e fiquei sentado lá dentro umas duas horas. Compreendi que desde o dia em que Ernie nasceu eu tinha passado a vida a lutar para sobreviver, sem descanso. Continuava mesmo a lutar quando à noite ficava estendido na cama completamente imóvel.

O meu maior medo era poder alguma vez magoar os meus filhos ou Ana. Foi por essa razão que pedi à minha mulher que aprendesse a usar uma arma pouco depois de nos termos casado. Bem sei que para a maior parte das pessoas isto parece coisa de loucos. De certeza que foi isso mesmo que ela achou, e recusou-se a ir sequer a uma das lições que eu tinha marcado para ela.

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Acho que é bom que a maior parte das pessoas não acredite que alguma vez venha a ter necessidade de usar uma arma para se defender.

Para onde vai G quando não está a controlar o meu corpo? Será que há um lugar onde ele exista de facto?

Se alguma vez me sentir realmente tentado a fazer mal a Ana ou aos meus filhos, pego no carro e dirijo-me a um sítio para lá de Évora, na estrada nacional n.º 256, um local isolado que já escolhi, enfio o cano da pistola na boca e puxo o gatilho.

A segunda coisa de que tenho mais medo é perder a razão e não voltar a mim - nunca mais. O que significaria que passaria a estar morto mesmo continuando vivo, porque teria desaparecido tudo o que faz de mim o que sou.

Nunca mais voltaria a ver Ana, os miúdos ou Ernie.

Por vezes acordo ensopado num suor gelado por saber ter desaparecido mesmo nos meus sonhos.

Depois de ter lido o que dizia sobre mim o Diagnostic and Statistical Manual af Mental Disorders, jurei nunca mais ler uma única palavra sobre os meus distúrbios. E jamais falar disso com ninguém. Odiava ficar a saber que as capacidades que me serviam de salvação ao mesmo tempo me contaminavam de maneiras que os médicos tinham classificado. Não queria que nenhum psiquiatra me tratasse com drogas destinadas a matar Gabriel. Ele merecia viver, mesmo que por breves minutos de cada vez e sempre a contrarrelógio.

Não há dia em que não me preocupe com a possibilidade de os meus filhos terem herdado de mim algum problema genético.

As pessoas não imaginam o que a violência faz às crianças. Gostam de viver num mundo de ilusão e precisam de acreditar em finais felizes. Mesmo os funcionários do hospital que intervêm nos casos não gostam de se dar ao trabalho de preencher os impressos e de se arriscar a receber ameaças de algum pai indignado. Sei que é assim porque nunca houve ninguém da escola ou das autoridades de Delta County que aparecesse a investigar o que o meu pai fazia a Ernie.

Quando fomos ao hospital depois da nossa primeira prova, o médico acreditou no que o meu pai lhe contou - que tinha sido eu quem ferira o Ernie. O meu pai disse que Ernie e eu estávamos a brincar com as tesouras de podar. «Naquela balbúrdia perderam as estribeiras», disse ele.

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«Balbúrdia.» Foi essa a palavra que usou. Nunca mais consegui dizê-la em voz alta desde esse dia no hospital, nem nunca a direi.

Quando o médico olhou para a minha mãe a ver o que dizia, ela confirmou com um aceno de cabeça. Percebi pelo modo esquivo como baixou os olhos que tinha alguma esperança de que

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ele percebesse que estava a mentir, mas não percebeu. Lembro-me de que o médico era alto, tinha uns grandes óculos de aros pretos, como Buddy Holly, e um ar inteligente, um pouco como todas as pessoas que usam óculos o têm aos olhos das crianças. Baixou o olhar para mim como se eu não valesse nada. «Vê se te portas bem, meu menino!», rosnou, com um dedo de advertência apontado a mim. «Porque juro pelo Livro Santo que, se isto volta a acontecer, trato de arranjar maneira de te mandarem para uma casa de correção por uns bons anos!» «Estás a ouvir, Hank!», disse-me o meu pai, como quem tivesse procurado inúmeras vezes ensinar-me a ser bom para o meu irmão. «Para a próxima, não poderei fazer nada por ti.»

O que li na biblioteca da Faculdade de Psicologia em Lisboa fez-me também compreender que Gabriel possivelmente não era um anjo nem mesmo um fantasma. A não ser, evidentemente, que se defina «anjo» como uma parte de nós que olha pelas outras e que guarda todos os que amamos. E que viveu coisas tão terríveis que nunca pode sentirse inteiramente à vontade, no seu mundo ou no nosso.

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Capítulo 6

Todo o assassinato é um sinal de fracasso - fracasso em perdoar, em compreender, em conseguir justiça de outra maneira. Em encontrar uma porta de saída.

Por isso pergunto-me que fracasso se esconderá ensopado em sangue no tapete de Coutinho.

O mais provável é que um dos seus amigos ou conhecidos, com cuja mulher ou namorada Coutinho mantinha uma relação, não tenha conseguido convencê-lo a pôr termo ao caso, embora também me parecesse possível - dada a realidade do setor da construção civil em Portugal- que ele tivesse pago subornos para conseguir contratos lucrativos e acabado por se meter com algumas pessoas muito perigosas e pouco escrupulosas.

O que me dizia mais sobre o assassino era a mordaça, que implicava que ele e eu partilhávamos um medo muito especial: o da voz de outro homem. E do que ele seria capaz de nos mandar fazer.

Na sala de estar, apercebi-me de que Gabriel tinha retirado todos os quadros da parede. David estava ainda a examinar a vítima. Pedi-lhe que tomasse as medidas necessárias para que o corpo fosse levado dali; a mulher de Coutinho e a filha deviam estar a chegar, e eu não queria que elas o vissem estendido numa poça de sangue. Mais tarde, compreendi como isso mostrava até que ponto o suicídio de Moura me tinha perturbado, por não ter percebido que Susana poderia preferir ver o marido em casa e não na morgue.

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«H: memórias más debaixo da cama da rapariga. Quadro de Almeida no sítio errado. Dá uma vista de olhos ao dicionário de FrancêsFarsi. Porque não tem a Sandra nenhuma fotografia de si próprias»

Ler novamente a mensagem de Gabriel fez com que me apercebesse de que estava à espera de ver fotografias de Sandi no seu quarto porque os meus dois filhos têm dúzias de fotografias

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suas e dos amigos afixadas em painéis de cortiça. Seriam eles um caso raro ou seria antes esse o caso da filha do homem assassinado?

Depois de ter molhado o lenço na torneira da cozinha e apagado a tinta da palma da mão, fui dar com Fonseca a espalhar o pó para recolha de impressões digitais na maçaneta da porta que dava para o jardim.

Quer mais um cigarro? - perguntou ele animado, contente por ter um cúmplice no crime.

Não, obrigado. - Saí para o sol, porque o calor, ao envolver-me, haveria de me ajudar a reentrar no meu corpo. Quando me senti capaz de falar com alguém, pedi a Fonseca que acabasse a sua tarefa e voltasse para o laboratório, de maneira a poder testar as provas que tinha já recolhido. Disse-lhe também para selar a biblioteca; fora aí que Coutinho estivera nos momentos que antecederam a sua morte e eu não queria que ninguém lá entrasse, nem mesmo a Sr.ª Coutinho.

Mas o Vaz já voltou para o laboratório - respondeu perplexo. - Ele disse-lhe que ia para lá, não disse? Porque, se não disse, um de nós vai ter de falar a sério com ele.

Mentir pareceu-me a opção mais segura.

Ele disse qualquer coisa em voz baixa quando eu estava ao telefone com a sede, mas não lhe-prestei muita atenção. Parece que este crime me deixou um pouco distraído.

É por causa deste sangue todo. O Monroe sabe como fica quando vê sangue. - Puxando a tira transparente que tinha comprimido contra a maçaneta, levantou-a e mostrou um emaranhado de impressões digitais. - Adoro o meu trabalho! - exclamou, radiante.

Vendo que não lhe retribuía o sorriso, perguntou:

Foi só este caso que o deixou tão nervoso?

Contei-lhe o que se tinha passado com Moura. Numa voz desafinada de tenor e com acentuada pronúncia portuguesa, cantou «Mama said there'll be days like this.»

The Shirelles, 1961 - disse eu.

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Como raio se lembra de tantas canções americanas antigas e esquece tantas conversas? perguntou.

Você é o campeão dos investigadores legais, descubra!

O riso reconhecido de Fonseca fez com que me sentisse mais seguro. Luci veio ter connosco. Nada de ténis nem de luvas e nada de silenciadores caseiros disse ela com um encolher de ombros desalentado. Tinha a cara toda suja e suava as estopinhas.

Sugeri-lhe que fizesse uma pausa, mas insistiu em ajudar-me a recolocar os quadros na parede. Era bem verdade - tal como G dera a entender na sua mensagem - que a moldura do desenho de Almeida era demasiado pequena para ter dado origem ao quadrado de tinta descolorida na

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parede onde estava pendurado. Ali estivera um quadro ligeiramente maior. Teria o Almeida sido posto pelo assassino para substituir um quadro roubado? Procurámos em vão por toda a sala o prego onde poderia ter estado pendurado.

G deve ter consultado o dicionário de Francês- Farsi e encontrado alguma coisa que queria que eu visse; por isso, a seguir fomos para a biblioteca. Ao folhear o livro, descobri um pequeno encaixe cavado entre as páginas 302 e 457. O esconderijo continha uma pen informática do tamanho de um isqueiro pequeno. Mostrei-a a Luci.

O Coutinho devia estar a ver alguns destes ficheiros quando ouviu os barulhos em baixo - disse eu. - Tinha tirado a pen e voltou a pô-la no esconderijo, mas não quis dar-se ao trabalho de arrastar uma cadeira para junto da estante e voltar a guardar o dicionário no devido sítio na prateleira de cima.

Pus-me de pé numa cadeira de modo a poder chegar à prateleira onde o livro estivera, mas só me serviu para ficar com os dedos cheios de pó. Estendi a Luci as chaves de Coutinho.

Feche a porta por dentro e depois volte a abri-la. Vamos ver se os ruídos se ouvem bem daqui. Passados uns trinta segundos, ouviu-se o tilintar de vidros. Luci subiu as escadas a correr e reapareceu na biblioteca com um sorriso ameninado. O seu entusiasmo encantava-me; compreendi que provavelmente lhe tinha dado gozo andar a remexer nos caixotes do lixo.

E então? - perguntou ela com vivacidade.

O Coutinho deve ter ouvido a chave a rodar na fechadura - disse eu.

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Então provavelmente pensou que era a amante que voltava para trás... que se tinha esquecido de alguma coisa. Ou talvez já tivessem combinado que ela voltaria.

Se não for isso, pode ser que tenha pensado que a mulher e a filha tinham voltado inesperadamente.

E, se estava a consultar os ficheiros - especulou ela -, quer dizer que o portátil ainda devia estar ligado quando foi lá abaixo ver quem tinha entrado.

Luci, para já preferia que não dissesse a ninguém que encontrámos esta pen - disse eu, ansioso por pesquisar os ficheiros antes de os passar aos técnicos. Enfiei-a num dos sacos onde se guardam as provas e meti-o no bolso do casaco.

Liguei para Joaquim, o nosso génio informático, e ele confirmou que a bateria do MacA ir estava totalmente descarregada quando lhe chegou às mãos. Aceitou dar-lhe uma vista de olhos no fim de semana.

Ao voltar para o andar de baixo, pedi a Fonseca que pesquisasse impressões digitais no quadro do Almeida e depois o voltasse a pôr na parede.

Não quer que o leve para o laboratório? - perguntou, surpreendido.

Page 60: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

Ainda não. Posso precisar dele para ajudar a Sr.ª Coutinho alembrar-se.

Entreguei -lhe então o dicionário de Francês- Farsi de Coutinho e pedi-lhe que o reservasse como prova, explicando-lhe que guardara uma pen que encontrara num compartimento cortado nas páginas do livro.

Vou eu o que há na pen durante o fim de semana e dou-lha na segunda-feira – acrescentei. E, voltando-me para Luci, disse-lhe: - E agora eu e você vamos investigar o quarto da filha.

E depois? - perguntou ela.

Depois, vamos interrogar todos os vizinhos. Depois, almoço.

Almoço? Mas por essas horas já vai estar escuro! - disse ela, rindo-se.

Os seus olhos ganharam uma intensidade encantadora. Luci devia sonhar com o trabalho de inspetora desde criança; os sintomas eram-me familiares. E, palpitando sob esta descoberta, havia uma outra muito mais importante para mim: eu trabalhava com mais confiança com uma mulher como colega.

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Ao chegarmos ao quarto de Sandi, peguei no panda que estava em cima da almofada e passei-o a Luci.

Há aí uma mancha que provavelmente é de sangue. Dê isto ao Fonseca quando o vir.

Mas a filha estava no Algarve quando o pai morreu. Não estou a ver como...

Faça-me essa vontade - interrompi. Deixei-me cair na cama. - Agora, diga-me o que ouviu dizer acerca dos meus métodos.

Só que o senhor às vezes fica numa espécie de transe, chefe.

Pode ser mais concreta?

Disseram-me que o senhor normalmente não diz uma palavra.

E que mais? - Sorri, para a pôr à vontade.

Os homens dizem que o senhor se põe a correr pelo local do crime. E que quando fala pode ser bastante ordinário.

Mais alguma coisa?

Luci mordeu os lábios.

Diga! - insisti. - Não me ofendo.

Que o senhor... que é como se ouvisse vozes a dizer-lhe o que deve fazer... o que deve procurar.

Page 61: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

Não, Luci, isso não é verdade. E também não vejo mortos. - «Embora gostasse de ver», acrescentei para os meus botões. - Agora, se faz favor, pegue no bloco e tome nota do que eu faço.

Passando a cabeça por entre as pernas, espreitei para debaixo da cama. Havia um amontoado de roupas no chão. Ajoelhando-me, tirei-as para fora. Um volume dentro de uma das pernas de umas calças de ganga chamou-me a atenção - cuequinhas manchadas de sangue. Pulas em cima da mesinha de cabeceira para não se perderem.

No bolso havia uma pequena lanterna.

O estrado de madeira sob o colchão ficava demasiado baixo, o que não me permitia deslizar por inteiro, mas estendendo- me no chão consegui enfiar um pouco a cabeça. A luz da lanterna revelou uma coisa metálica e brilhante colada à cama com fita adesiva. Nesse momento, a minha cabeça começou a latejar e uma mão familiar puxou-me para fora...

Luci estava sentada a meu lado no relvado do jardim, espreitando por cima do muro das traseiras para a casa vizinha, o perfil grave.

O meu coração batia apressado, se bem que o mundo girasse lentamente à minha volta, como se eu estivesse no meio do prato de um

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gira-discos. Era uma sensação desnorteante, que muitas vezes me assaltava no after-time, como lhe chamava. Limpei o suor comichoso da testa. Ao erguer os olhos, reparei que estava sentado à sombra da palmeira. Havia uma pequena felosa esverdeada empoleirada na ponta de um ramo, como se estivesse a espreitar por uma janela oculta. Pensei: «Há um mundo de pequenas coisas de que quase nunca nos apercebemos, mas que está sempre presente.»

Luci viu que me espreguiçava e começou a falar, mas pedi-lhe com um gesto que esperasse; a voz demoraria ainda um minuto ou dois a voltar-me. Agarrei a pistola, ansiando pela confiança que me transmitia - compacta, espessa, precisa. Estendi-me de costas e fechei os olhos, que se encheram de lágrimas sem motivo aparente. A exaustão tem as suas próprias razões.

Quando me sentei, foi para sentir o abraço da tristeza que por vezes me assalta depois de Gabriel me deixar, uma tristeza cheia de tudo o que nunca poderia vir a acontecer - sobretudo, que a minha mãe nunca viesse a conhecer-me já homem. Levados pelo hábito, os meus olhos procuraram o que havia de mais bonito à minha volta - a buganvília de um vermelho-rubi que trepava pela parede das traseiras. Fechando os olhos, imaginei -a a envelhecer como num filme a alta velocidade, começando como um broto a responder ao apelo do sol, rompendo do solo húmido do inverno, amarinhando pelos ares, empinando-se e contorcendo-se como uma corda mágica, saltando por cima da pedra escura e quente, desabrochando e volteando, cintilando com o desejo de mais vida.

Quando me pus de pé, engoli um dos tranquilizantes que sempre trago na carteira.

Vitaminas - expliquei a Luci. Repus a pistola no coldre. - Quanto tempo estive ausente? perguntei.

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Ela consultou o relógio.

Trinta e um minutos.

Abri a mão esquerda e li: «H - Pergunta ao Ernie sobre a navalha.

E não deixes que os mortos te façam esquecer os vivos!»

Encontrei alguma faca? - perguntei a Luci.

Encontrou, sim. - E mostrou um saco de recolha de provas. A lâmina tinha mais de doze centímetros de comprimento. O cabo era preto.

Onde estava?

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Presa com fita-cola ao estrado da cama da miúda.

Ela precisava de a ter à mão numa emergência. O que significava que quem quer que andasse a persegui-la podia entrar-lhe no quarto sempre que quisesse.

Será que o homem, ou mulher, que matou o pai dela era o mesmo que a atormentava?

Luci estendeu-me o saco com a faca. A lâmina parecia ser de aço inoxidável. Quando a inclinei, um reflexo cintilante devolveu-me o olhar inquisitivo do rapaz que eu fora. Mostrava-se espantado - mas muito agradado, também - ao ver como uma coisa tão perigosa podia caber tão perfeitamente na sua mão.

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Capítulo 7

No segundo saco de provas que Luci me passou havia um pau fino com um pequeno ovo de madeira na ponta.

O que acha que é isto, chefe? - perguntou ela.

É um honeydripper - respondi em inglês, pois não sabia como se dizia em português, mas expliquei-lhe que era uma espécie de colher de madeira para tirar o mel de um boião. - Onde o encontrou?

Estava metido numa dobra dos lençóis da cama da miúda.

Mais alguma coisa? - perguntei.

Na última gaveta da secretária, encontrou também três pães secos, já pretos com bolor e a cheirar muito mal. – Apertou o nariz a reforçar o efeito cómico. – O senhor abriu a janela e atirou-os fora.

É tudo

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Foi tudo o que o senhor me entregou, chefe – disse ela, dando ênfase à diferença de significado.

Fiquei com alguma coisa para mim? – perguntei, encolhendo-me interiormente, esperando que G não tivesse gamado mais do que um bocado de chocolate; aparentemente, não havia muito no sítio onde ele vivia.

O senhor tirou uma coisa qualquer de baixo do colchão da miúda – disse Luci. Guardou-a no bolso esquerdo.

Continuávamos sentados no jardim da vítima, à sombra da palmeira, e coloquei o conteúdo do bolso sobre a relva. Viu-se rolar um anel de mulher – uma pequena turquesa redonda engastada num aro

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de prata. Ali estava na palma da minha mão, como um mau augúrio; parecia-me que Sandra só o teria escondido porque alguém ameaçara tirar-lho - ou lhe tinha já tirado outros objetos de valor.

A meu pedido, Luci trouxe-me um copo de água. Felizmente, não se pôs a fazer perguntas enquanto eu bebia. Imaginei que lhe tinham ensinado a ser discreta desde muito nova, mas talvez isso não fosse mais do que o meu maior desejo nesse momento. Perguntei-lhe se lhe tinha dito alguma coisa quando guardara o anel.

Não, mas, quando o meteu no bolso, sorriu-me, como se fosse uma brincadeira.

G estivera a pô-la à prova, esperando que ela reagisse mal àquele roubo, ansioso por me provar que não devia confiar nela. Já antes tentara minar as minhas relações com outros colegas – e mesmo com Ana.

Para ele, todos os adultos eram potenciais inimigos.

Falei consigo ou não disse nada? - perguntei.

Quando andava a rebuscar freneticamente o quarto da miúda e lhe perguntei se precisava de ajuda, o chefe disse- me para eu calar o bico.

Disse-o em inglês, put a lid on it!

Desculpe ter sido mal-educado consigo. E quando é que escrevi umas palavras na palma da mão?

Isso foi depois, no jardim, enquanto fumava. - Ajoelhou-se a meu lado. - Posso falar à vontade, chefe? - perguntou, e, quando lhe fiz sinal que sim, disse: - Há quanto tempo tem estes... ataques?

Desde criança. Agora leia-me as suas notas sobre o que fiz ao certo.

Primeiro gostava de lhe dizer uma coisa - começou ela, interrompendo-se logo e abanando a cabeça como que a repreender-se. Tinha os olhos postos na distância e procurava as palavras

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certas, a mão levantada para me pedir que não a interrompesse, o que me parecia um gesto muito maduro para uma mulher tão nova.

Vagas de calor pairavam acima do estrado onde nos encontrávamos, como que tentando manter-me no centro de um mundo de segredos. Era frequente, no after-time, ocorrerem-me ideias estranhas, e percebi - com uma sensação de ter sido aldrabado - que nunca seria uma mulher jovem como Luci. Ou a minha mãe. O que teria ela sentido quando me deu à luz? Júbilo, terror, gratidão...?

Chefe... - disse Luci, para chamar de novo a minha atenção.

Sim, o que é?

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Sabe uma coisa? O senhor não é nada como me tinham dito que era. - Sorriu para me mostrar que se sentia aliviada.

Como assim?

Davam a entender que era difícil e... uma ameaça. Mas o senhor acaba de me abrir os olhos para uma coisa em que eu nunca tinha pensado.

Que coisa, Luci?

Até onde serei capaz de ir para ajudar pessoas que precisam de mim. Pessoas que nem sequer conheço.

Alguns momentos de compreensão mútua parecem chegar de muito longe, como se tivessem demorado anos na viagem até nós. Foi o que senti possuir-me: Luci estava disposta a ver o que se escondia sob a superfície. Era como se o próprio desejo de ter um colega de trabalho em quem pudesse confiar a tivesse ido desencantar.

Comecei a esfregar a palma da mão tentando apagar o que G escrevera para que ela não visse que as suas palavras me tinham tocado profundamente.

E até onde seria capaz de ir? - perguntei.

Gostava de pensar que era capaz de arriscar tanto quanto o senhor acabou de arriscar.

Recorrendo ao decoro profissional para disfarçar a ambiguidade dos meus sentimentos por finalmente ter encontrado a compreensão de uma colega, disse:

Obrigado, Luci, mas agora gostava de ouvir as suas notas.

Só mais uma coisa, chefe. Sei alguma coisa sobre esse género de distúrbios. Sou formada em Psicologia e…

Luci, fiquemos por aqui! Disse-me uma coisa muito bonita. Seria uma pena dar cabo disso respondi, num tom brusco, na esperança de evitar uma discussão.

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Mas, se me deixasse acabar, se calhar...

Não, por favor, não faça isso. Leia-me antes as suas notas - interrompi. - Faça o que quiser, mas nunca diga uma palavra sobre isto a ninguém. Senão... senão não podemos voltar a trabalhar juntos.

Ferida nos sentimentos, havia na sua voz, agora, uma concisão cortante enquanto me contava como eu tinha atirado para o chão os CD e livros da estante de Sandi, afastado num rompante cobertores e lençóis e tirado o colchão. No quarto do dono da casa, provoquei a mesma desordem.

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Embora os meus colegas já devessem estar habituados ao meu comportamento frenético nos locais do crime, sabia que Vaz e alguns outros haveriam de me ridicularizar ao saberem que fizera as cenas do costume.

Tinha de arrumar um pouco a desordem antes de deixarmos a casa.

Chefe? - disse Luci.

Estou aqui.

Depois de ter acabado no quarto do dono da casa - disse ela, com a voz ganhando intensidade, o senhor precipitou-se para a cozinha e pôs-se a revistar os armários. Tirou de lá uma tablete de chocolate. Desculpe que o diga, chefe, mas o senhor parecia um cão esfaimado a devorá-la. A minha cara deve ter revelado um pouco da vergonha que me crispava por dentro, porque ela disse.

Não é isso. O senhor fazia aquilo por piada. Estava a representar para mim.- Riu-se suavemente, contente por ter conseguido reconhecer a brincadeira escondida do chefe... Se era disso que se tratava.

Depois do chocolate - prosseguiu -, o senhor encheu um copo de leite e bebeu um gole, mas não gostou. Cuspiu-o no lava-loiça. - Fez uma careta. - Aquilo era o género de leite que se pode guardar meses numa prateleira, com sabor a giz.

E depois?

Ela leu as suas notas: - «Rebuscou as casas de banho e a biblioteca, e a pequena arrecadação no andar de cima. A seguir pediu um cigarro ao Fonseca e foi fumar para o jardim.» - Levantou os olhos para mim e, no seu rosto, havia uma expressão de espanto. - Não creio que alguma vez tenha visto alguém fumar com tanto prazer, chefe. E também me fitou por instantes com uma expressão que é difícil de descrever...

Uma expressão de superioridade divertida... - sugeri; era um olhar em que G se especializara, como viera a descobrir pelas pessoas que tinham ficado ofendidas com o seu comportamento em ocasiões anteriores.

Um pouco isso. E depois perguntou-me se eu era nova na equipa.

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Respondi que sim e o senhor disse: «Boa sorte, Luci.» O que foi estranho. Porque eu não lhe tinha dito o meu nome, e o senhor a princípio disse que não fazia ideia de quem eu era.

Estava a pô-la à prova - retorqui; pareceu-me dever-lhe pelo menos uma pequena explicação.

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Por que razão?

Como você disse, para ver até onde era capaz de ir para dar uma ajuda.

Talvez seja assim, chefe - disse ela, depois de ponderar a possibilidade -, porque, depois de ter acabado de escrever na mão, o senhor disse: «Estamos-lhe muito agradecidos.» Eu perguntei «nós quem?», e o senhor respondeu: «o Hank e eu.» Depois tirou duas fumaças, apagou o cigarro e perguntou-me se gostava de Lisboa.

E que respondeu?

Que sim. E perguntei-lhe a mesma coisa. O senhor sorriu. Um lindo sorriso, chefe. E disse: «A princípio estar cá custou-me, Luci, custou-me muito. Mas acabei por me habituar, talvez até por gostar. Por o Hank gostar,» Depois revirou os olhos e tombou prostrado, como... como uma marioneta que ficasse de repente sem nenhum fio a segurar-lhe a cabeça e os braços. Ficou nessa posição durante uns instantes e depois foi-se levantando aos poucos. E aqui o temos de novo! - Inclinando a cabeça, acrescentou: - Sente-se mesmo bem, chefe?

Estou ótimo. Fez tudo muito bem, Luci, mas agora temos de voltar ao trabalho. E não se esqueça de guardar isto só para si. É muito importante.

Levei uns minutos a pôr em ordem o quarto do andar de cima, depois ajudei Luci a vasculhar a sala e a cozinha à procura de mais alguma pista que o assassino pudesse ter deixado. Enquanto nos dedicávamos a esta tarefa, ela ia-me lançando um olhar de quando em quando, ansiosa por receber um sinal de confirmação do entendimento que tínhamos estabelecido. Era uma coisa que me deixava pouco à vontade. No entanto, fazia-me um aceno de cabeça de cada vez que a apanhava a olhar para mim e esse pequeno sinal de reconhecimento parecia bastar-lhe. O outro inspetor da equipa, Manuel Quintela, chegou pouco depois e conduzi-o para o exterior para ele interrogar os vizinhos de Coutinho. Manuel era um homem desengonçado, trabalhador e brilhante, mas incapaz de evitar que a sua impetuosidade juvenil se comunicasse às mãos e à voz, o que frequentemente irritava os colegas, pois quase todos os polícias - pelo menos, a julgar pela minha experiência - gostavam de se considerar profissionais acima dessas coisas. Quintela ficou com a parte de cima da rua; Luci e eu com a de baixo. Não tardou que descobríssemos que o artista que desenhara o retrato de Fernando

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Pessoa que estava na parede da sala de Coutinho - Júlio Almeida - vivia com a mulher, Carlota, mais abaixo no mesmo quarteirão. Depois de lhe ter explicado o que acontecera, Almeida disse-me que Coutinho o tinha reconhecido num café próximo uns seis meses antes e que mais tarde viera tomar chá a sua casa e lhe pedira para ver alguns desenhos recentes. Acabou por comprar o pequeno retrato de Pessoa. Almeida não fazia ideia do sítio onde o quadro ficara

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exposto na casa da vítima. Coutinho dissera-lhe que se sentia mais ele próprio quando pintava com pincéis japoneses. Tinha convidado Almeida e a mulher para jantar, mas nunca ligara a marcar o dia. Antes de eu sair, Carlota referiu-se ao prédio em construção quase ao fundo da rua, coberto de andaimes, dizendo que estava abandonado há mais de dez anos. Nas vizinhanças corria o boato de que tinha sido recentemente comprado por Isabel dos Santos, a rica e poderosa filha do Presidente perpétuo e ditador angolano, José Eduardo dos Santos.

No decorrer das duas horas que se seguiram, ficámos a saber que na Rua do Vale nenhum dos vizinhos de Coutinho ouvira tiros nem vira alguém entrar ou sair da casa nos últimos dois dias. Estávamos então perto das quatro da tarde, e o Valium e o calor faziam com que tivesse a sensação de andar a arrastar-me por quilómetros de dunas de areia. Disse a Luci que lhe dava três quartos de hora para ir comer qualquer coisa e pedi a Quintela que voltasse para a sede para escrever o relatório preliminar sobre o crime e o comunicar ao Ministério Público. Pedi-lhe ainda que ligasse para o escritório de Coutinho e solicitasse uma lista dos nomes e telefones de todos os que trabalhavam para ele em Lisboa.

Assim que saíram, larguei dali sem nenhum destino na ideia, ansioso por uns minutos sem nada que fazer. Acabei por dar comigo sentado num banco em frente da Assembleia da República, debaixo de uma árvore gigantesca - seria uma faia? - que deve ter nascido ali há uma centena de anos, numa cidade de carruagens puxadas a cavalos e de navios veleiros que Fernando Pessoa terá conhecido nos anos de 1920.

Alguém poderia ter predito as interseções das nossas vidas? Poderia aquilo que hoje soube sobre o assassinato de Coutinho oferecer abrigo a alguém daqui a cinquenta anos ou criar-lhe mais sofrimento?

Reclinei - me no banco roído pelos bichos e descalcei os sapatos e as meias. O meu único vizinho - estendido num dos outros bancos - era um sem-abrigo, barbudo e sem camisa, com umas mãos sujas e inchadas,

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como batatas acabadas de ser arrancadas da terra. Dormitava com a cabeça em cima de um saco da Lufthansa a abarrotar.

Joguei o meu jogo instantâneo com o vagabundo, vivendo a sua vida, do nascimento à morte, em apenas alguns segundos.

Voltei a ligar o telemóvel, na esperança de ter alguma mensagem que me fizesse companhia. Havia dois SMS, o primeiro da minha mulher: «Bebe!», escrevia ela, pois eu desidratava quando me enervava e muitas vezes acabava por ficar com a garganta irritada. O outro era de Ernie: «Sonhei contigo na noite passada.»

Reconfortado pelos cuidados deles, fechei os olhos para melhor sentir a brisa que me acariciava o cabelo e os ombros. O Valium por essa altura tinha-me deixado quase sem peso, e eu ouvia os carros passando a grande velocidade. Ernie fixava-me do alto de um choupo, sorridente por ter chegado antes de mim ao topo da árvore. Felicitei-o com o gesto do polegar

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levantado até sentir um sobressalto de medo no peito. «Olha que podes cair!», gritei. «Não te mexas!»

Como se não me tivesse ouvido, fez um aceno com os braços e, graças à alquimia que transcende as leis da realidade desperta, o movimento da sua mão, de um lado para outro, transformou-se no toque do meu telemóvel. Era Fonseca. Disse-me que Susana e Sandra Coutinho tinham chegado a casa, e que ele já havia recolhido um conjunto das suas impressões digitais.

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Capítulo 8

Susana Coutinho estava na cozinha, com as costas apoiadas ao frigorífico descalça, um copo de whisky com gelo encostado à testa. Na mesa via-se uma garrafa de Glenlivet quase cheia junto ao último quarto do pão de ló da Sr.ª Grimault. Apresentei-me, a mim e a Luci, mas quando lhe estendi a mão ela não fez nenhum movimento para a apertar.

Diga-me onde tem as aspirinas, que vou buscar-lhas - disse eu.

Obrigada, acabei de tomar três - replicou numa voz rouca. Sorriu amavelmente, um sinal muito generoso dadas as circunstâncias.

Depois dirigiu-se para a janela das traseiras e olhou para fora erguendo-se em pontas de pés. Era loira e bronzeada, cor de canela. - Estava a ver o nosso cão - disse ela. - Só fizemos uma paragem durante a viagem para cima. Coitado, estava desesperado.

Usava três argolas douradas no tornozelo esquerdo e uma quarta - com pedras preciosas vermelhas e amarelas engastadas - no direito; a Índia devia estar na moda entre o jet-set português. Uma nódoa de gordura no bolso de trás dos shorts fez-me pensar que ela se tinha limitado a vestir as roupas que usara na véspera, antes de partir para Lisboa.

Quando se voltou novamente para mim, foi com uma expressão sofredora:

Desculpe, mas, se esta dor de cabeça piorar, vou ter de me estender um bocado.

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Os olhos eram esverdeados e tinham aquela expressão cansada, gasta, que estava habituado a ver quase sempre nas mulheres e nos maridos das vítimas de crimes. Ou ela nada tinha a ver com a morte de Coutinho ou era uma atriz notável.

Tirou um maço de Marlboro Lights de uma pequena bolsa de couro pendente das costas de uma das cadeiras da cozinha e acendeu um cigarro com gestos abruptos. De cada vez que tirava uma fumaça via-lhe as faces cavadas de modo alarmante. Depois de lhe apresentar as minhas condolências, perguntei-lhe onde estava a filha.

A última vez que a ouvi, estava lá em cima no quarto dela - respondeu, com uma indiferença cáustica, que parecia indicar que houvera uma discussão entre elas. Afastou do pescoço o cabelo despenteado com uma mão irritada. As unhas eram compridas e de um vermelho-vivo.

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Ansioso por despachar a pergunta mais difícil, quis saber onde tinha passado o dia anterior. A irritação franziu-lhe os lábios, gretados e secos, com um aspeto despido, como que a precisar de bãton.

O senhor não faz ideia nenhuma de quem matou o meu marido, pois não? - perguntou, lançando-me um olhar ressentido com os olhos semicerrados.

E, nesse mesmo momento, toda a boa vontade que sentira da parte dela se desvaneceu.

Recolhemos um bom número de indícios - disse eu, escolhendo as palavras com cuidado, de modo a não a pôr fora de si -, mas até agora ainda não temos nenhuma pista segura.

Deu a impressão de tomar o meu tom conciso como um sinal de estar a omitir informações.

O meu marido e o ministro da Justiça eram amigos! - avisou- me. - Muito bons amigos!

Guardei para mim as respostas ácidas que me ocorreram, por não ver de que poderiam servir as questiúnculas. E também porque havia a ténue possibilidade de ela estar a querer dizer que podia conseguir um reforço das tropas se fosse caso disso, embora eu não tivesse a mínima possibilidade de confirmar esta hipótese pela sua expressão; ela olhava a delicada gola da sua blusa de um azul pálido enquanto mexia num botão desapertado.

Se falar com o ministro servir para a tranquilizar - disse eu -, então...

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Arrancando o botão solto, atirou-o contra a parede. O botão fez ricochete e saltitou chão fora. Sei que estou a aborrecê-la - disse eu -, mas, se não tratarmos disto agora, vou ter de voltar cá amanhã.

Boa ideia, volte amanhã!

Nesse caso, a senhora não vai poder ficar aqui hoje nem passar cá a noite. Isto terá de ficar selado como local do crime.

O senhor pensa que pode pôr-me a andar da minha própria casa? - disse ela num assomo de indignação.

Senhora Coutinho, é precisamente o que estou a tentar evitar assegurei -lhe.

O riso desdenhoso dela fendeu-me dolorosamente, e fiz um movimento interior de afastamento,

Se quiser – disse-lhe, evitando que os meus verdadeiros sentimentos transparecessem na voz -ligue para o ministro e diga-lhe que não me quer aqui.

Estendi-lhe o telemóvel, mas ela recusou-o e dirigiu-me um olhar fulminante.

Se quiser sentar-se e responder às minhas perguntas - prossegui-, prometo tentar despachar isto rapidamente.

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Passando diante de nós num rompante, foi buscar um cinzeiro de vidro preto ao aparador, apagou nele o cigarro num gesto vindicativo e sentou-se à mesa da cozinha. Encarou-nos, a mim e a Luci, com um ar enfadado. Sentámo-nos os dois em frente dela.

«Regadores», era assim que eu e Fonseca nos referíamos às viúvas das vítimas que choramingavam durante o primeiro interrogatório para nos convencerem da sua inocência. A Sr.ª Coutinho era um «poço seco».

Depois de acender outro cigarro, bebeu um rápido gole de whisky e teve um ataque de tosse. Observando os seus esforços para respirar, compreendi que se iria embebedar hoje e ficar esparramada na cama, possivelmente acreditando que a sua perda lhe pareceria um pouco menos horrível na manhã seguinte. Quando repeti a pergunta, respondeu:

Estava na nossa casa de praia. A Sandi, a nossa filha, pode confirmar. E também tivemos um convidado, Jean MoreI, um velho amigo do Pedro, de Paris. Passámos o dia juntos.

Pedi-lhe o número de telefone dele e ela deu-mo sem consultar o telemóvel, acrescentando num tom aborrecido:

É verdade, inspetor, sei de cor o número do Jean!

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E que quer isso dizer ao certo? - perguntei, embora tivesse já antecipado o panorama geral do jardim das delícias terrenas que ela me iria descrever.

O meu marido estava a par do que havia entre mim e Iean - disse ela, cortante. Por isso, agradecia-lhe que me poupasse ao espetáculo da sua indignação moral.

Raramente me sinto suficientemente seguro de mim próprio para me indignar moralmente com o que quer que seja - retorqui, na esperança de reconquistar as suas boas graças.

Como se não me tivesse ouvido, disse:

Há anos que não havia nenhuma intimidade entre mim e o Pedro. E ele gostava do Jean. São velhos amigos... eram velhos amigos.

Sentira obviamente a necessidade de deixar isso claro de imediato, o que me deu a ideia de que - apesar do seu aparente à-vontade - os ângulos daquele triângulo poderiam ter sido penosamente agudos uma vez ou outra.

E quando é que o Sr. Morel chegou a Portugal? - perguntei.

Há uma semana.

Esteve em Lisboa ontem?

Ela revirou os olhos perante a minha insinuação.

O Jean é um verdadeiro cordeirinho. Além disso, apanhou ontem o avião para Paris.

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Desta vez leu corretamente o meu pensamento e acrescentou:

Partiu do aeroporto de Faro, inspetor, não de Lisboa.

Ele fuma? - perguntei.

Fuma, mas, tanto quanto sei, isso ainda não é considerado crime capital. - Aspirou longamente, desafiadora, o cigarro para reforçar o que acabava de dizer. Devia ter uns bons pulmões.

E fuma Gauloises Blond? - perguntei.

Ela estremeceu; tive a impressão de que a abalara na sua atitude de confortável condescendência. Contei-lhe o que sabia sobre as beatas de cigarros que tínhamos encontrado.

Mas o Jean... Tenho a certeza de que partiu de Faro - disse ela, desviando os olhos para as suas dúvidas como se elas começassem a acumular-se rapidamente. - Ele... ele não iria voltar para Lisboa.

Havia qualquer coisa de falso naquele gaguejar, e ocorreu-me que ela estava de facto a fazer teatro e a dar o seu melhor para incriminar o amante.

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Há verdades acerca de nós próprios que apenas reconhecemos quando alguém procura enganar-nos; ao observar a Sr.ª Coutinho desviando o olhar, como se precisasse de conceber qual seria a melhor estratégia para me levar à certa, compreendi que por natureza eu não era muito dado a perdoar.

Ah, agora percebo - disse ela, como se tivesse sido parva por não o ter compreendido antes, e com fingido contentamento continuou:

Uma das amiguinhas de Pedro deve ter decidido fazer-lhe uma visita.

Antes que eu tivesse oportunidade de lhe perguntar se sabia o nome de alguma delas, uma rapariga esguia de menos de vinte anos entrou na cozinha.

Sandra tinha um olhar apagado e umas olheiras enormes e escuras. O cabelo loiro e espesso, bastante curto, erguia-se em tufos espetados. Usava um casaco de malha de homem azul-claro, debruado a branco, com cotovelos puídos e pendentes. Chegava-lhe aos joelhos.

Imagino que tivesse ainda o cheiro do pai. Trazia uns ténis Converse cor-de-rosa vivo com cordões de um amarelo-vivo e meias púrpura. Tinha o ar de uma boa atleta. E de rapaz.

Parecia impossível que fosse a rapariga reservada quase mulher que eu vira nas fotografias favoritas do pai. Comecei por me apresentar, mas ela interrompeu-me.

Alguém entrou no meu quarto! - disse à mãe num tom indignado. - Não sei quem foi, mas tiraram os lençóis e andaram a remexer nas minhas gavetas!

Page 72: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

Fui eu - disse.

Os olhos dela cresceram de raiva. Olhei para a Sr.ª Coutinho a pedir ajuda, mas ela estava de novo à janela. Era extraordinariamente eficaz a recusar-se a dar ajuda.

Andávamos à procura de pistas - expliquei à rapariga. - Desculpe.

Luci clareou a garganta e disse:

Eu ajudo-a a mudar os lençóis.

Eu não quero mudar os lençóis! - guinchou a rapariga, tão alto que senti pele de galinha nos braços.

A Sr.ª Coutinho serviu-se do whisky com um à-vontade que lhe vinha da prática. Observando-a, senti abrir-se no peito um ferrolho de pânico que me fez compreender que o meu Valium estava a perder efeito.

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Estou a investigar o que se passou com o seu pai - expliquei a Sandra. Tirei do bolso o anel de turquesa que Gabriel encontrara e estendi-lho. - Isto deve ser seu.

O senhor não tinha nenhum direito de ter tirado isso da minha cama - disse ela, a voz apagando-se num frágil sussurro. Olhou para mim com uma expressão desolada. - O meu pai... dizia sempre que não podemos pegar nas coisas das outras pessoas.

Peço imensa desculpa - disse eu.

Sandra cerrou o punho em torno do anel e voltou-se para a mãe. A sua necessidade de perdão e o medo de já não o merecer - dobrava-lhe os ombros, mas a mãe não olhava para ela.

«Há crueldade nesta casa», pensei. «E a Sr.ª Coutinho não se importa que eu veja isso. Talvez seja precisamente o que pretende que eu compreenda sem ter de mo dizer,»

Sandra, esse casaco é do seu pai? - perguntei amavelmente, não querendo aventurar-me em novas questões sérias para já.

Sim, era o preferido dele - respondeu timidamente. - E o meu também.

O brilho de uma borboleta no alfinete que trazia na gola - de esmalte vermelho e azul chamou-me a atenção.

E onde arranjou esse alfinete tão bonito?

Oh, isto... - Virou a gola e encolheu os ombros como que para minimizar o seu valor. - Foi um presente dos meus pais. Da última vez que fiz anos. Só que... só que às vezes já não me parece uma borboleta.

Então o que poderia ser?

Ela mostrou uma expressão perdida.

Page 73: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

Não faço ideia.

Parecia precisar que eu percebesse que a morte do pai tinha mudado a forma de tudo na sua vida - retirara significado mesmo aos objetos mais insignificantes.

Talvez pudéssemos agora falar um pouco sobre o seu anel - disse eu. Queria perguntar-lhe porque o escondera, mas ela tapou a cara com as mãos e desatou a chorar.

Luci deu um passo na direção dela.

Vou ajudá-la a fazer a cama, se...

Deixe a minha filha! - berrou a Sr.ª Coutinho, contornando a mesa, precipitada. Quando encostou os lábios ao topo da cabeça de Sandi,

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a rapariguinha apertou os braços à sua volta e agarrou-a como se estivesse a ser arrastada para o mar.

Havia alguma coisa de surpreendente em ver uma adolescente chorar, cedendo a tudo como que estivera a debater-se, como se eu estivesse a observar o modo como o mundo nos submerge a todos caso alguma vez baixemos a guarda. Susana conseguiu fazer com que a filha parasse de chorar com palavras carinhosas que lhe ia sussurrando. Desviei os olhos daquele momento de intimidade. Luci lançou-me um olhar demorado que interpretei como querendo. dizer: «Não esperava que isto ficasse tão mal tão depressa.»

Anda, querida, precisas de descansar - disse a Sr.ª Coutinho a Sandi.

Enxugou os olhos da miúda com um lenço de papel, sorrindo encorajadoramente.

Sandi apertou as mãos à volta da barriga, como se tivesse sido abandonada.

Nunca mais volto a ver a papá, pois não? - perguntou à mãe.

Schh. Falamos lá em cima depois de te deitares. - A Sr.ª Coutinho tomou a filha pelo braço.

Mamã, onde é que a bala atingiu o pai? Foi... nas costas?

Oh, Sandi, para que queres saber uma coisa dessas?

Não sei, parece-me importante.

Falamos nisso mais tarde.

Nunca mais vou poder pedir-lhe desculpa. Foi tudo culpa minha, mamã!

A Sr.ª Coutinho agarrou as duas mãos da filha.

Ouve uma coisa! - disse ela numa voz zangada. - O que aconteceu não tem nada a ver contigo!

Se eu tivesse sido mais simpática com ele, se calhar...

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O papá sabia que tu gastavas dele - interrompeu a Sr.ª Coutinho, a voz tremente. - É só isso. que conta.

Sandi voltou-se para mim enquanto a mãe a levava da cozinha. Tirou o alfinete e colocou-o em cima do aparador perta da parta. Dirigindo-se a mim e a Luci, disse:

Quem leva uma coisa, tem de deixar outra em seu lugar.

Porque diz isso? - perguntei.

Porque era o que o meu pai me dizia sempre.

E porque me diz isso neste momento!

Porque está a investigar a morte dele. Pode ser importante saber tudo.

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A Sr.ª Coutinho passou o braço por cima do ombro da filha e conduziu-a para fora da divisão. Eu imaginava que muitas das coisas que o pai lhe dissera haveriam de pulsar com significados ocultos durante as semanas que se iriam seguir. Mas a questão agora era saber o que teria ela levado em lugar do alfinete que deixara?

Assim que elas saíram, os olhos de Luci cerraram-se firmemente.

Estava pálida e tremia-lhe o queixo.

Tem sido um dia difícil, e já são horas de ir para casa - disse-lhe eu.

Não estava apenas a mostrar-me compreensivo com uma nova recruta; eu próprio precisava urgentemente de ficar algum tempo sozinho.

Pus termo aos protestos de Luci, fazendo da minha sugestão uma ordem.

À porta, pedi-lhe que, a caminho de casa, ligasse para a sede e lhes pedisse para verificarem se MoreI tinha embarcado em algum dos voos de Lisboa para Paris no dia anterior.

De volta à cozinha, o silêncio da casa parecia-me excessivamente expectante - como que à espera de que eu compreendesse coisas que possivelmente não podia ainda conhecer. Por isso, cortei um Valium ao meio e tomei metade. Pouco depois, a Sr.ª Coutinho entrou como que deslizando, descalça, num caftã azul de mangas largas com uma gola bordada com um entrelaçado dourado. Usava um bâton de um rosa pálido e o cabelo cor de mel penteado em volutas delicadas. Trazia uns brincos de pérolas negras e cintilantes do tamanho de avelãs. Tinha todo o aspeto de se ter preparado para os paparazzi.

Enquanto se servia de outro whisky, o seu telemóvel tocou. Verificou de quem era a chamada, depois fechou-o e enfiou-o no fundo da carteira de mãe.

As más notícias espalham-se depressa – disse ela em tom crítico. Sentou-se no lado oposto ao meu com um suspiro teatral e bebeu um demorado gole do whisky.

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A sua filha está bem? - perguntei.

Mordiscou um bocado de pão de ló.

O senhor desculpe - disse ela -, mas não sei o que nesta altura poderá querer dizer bem. Gostava de saber por que razão ela haveria de precisar de pedir desculpa ao seu marido.

A Sr.ª Coutinho levantou as sobrancelhas e fitou - me com um olhar altivo.

E isso será realmente da sua conta?

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Tenho todo o empenho em descobrir quem matou o seu marido, e perguntas inconvenientes é uma coisa que normalmente faz parte do processo.

Do processo? - perguntou ela, como se eu tivesse dito uma enormidade.

Talvez fosse a palavra errada. O meu português não é perfeito, como certamente já reparou.

O senhor é americano ou inglês?

Americano.

Os olhos dela iluminaram-se.

Nova Iorque é a minha cidade favorita em todo o mundo! - proclamou.

Nunca lá estive - disse eu.

Não? É pena. Oiça, Sr. Monroe, as adolescentes metem ideias malucas na cabeça. E ultimamente ela não se tem portado muito bem comigo e com o Pedro. Além disso, todos nós temos coisas a lamentar quando morre alguém que amamos. - Abanou a cabeça com desalento.

Pensamos em tudo o que poderíamos ter feito melhor.

É muito verdade - respondi.

A Sr.ª Coutinho endireitou-se na cadeira e fitou-me com a cabeça um pouco de lado, como se eu fosse tão esquisito que ela só conseguisse medir-me de um ângulo enviesado.

E o senhor, o que é que lamenta, inspetor Monroe?

Censurando a minha resposta verdadeira, disse:

Muito pouco, hoje em dia. As lamentações nunca me levaram a lado nenhum.

Achei - me demasiado esperto mal o disse, mas era uma resposta que tinha preparado há muito, desde os meus primeiros tempos de namoro com Ana.

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A Sr.ª Coutinho assentiu amargamente, como se o que eu dizia confirmasse as suas próprias dúvidas sobre a possibilidade de redenção. Sentindo que me oferecia uma oportunidade, disse-lhe:

Vou precisar de toda a sua cooperação para resolver este caso.

Porque será que tenho a impressão de que vai continuar a fazer-me perguntas difíceis? perguntou ela, e o seu esgar pareceu-me um pedido para a tratar com mais gentileza.

Imagino que tenha telefonado a Iean Morel depois de ir deitar a sua filha. Não é que me importe, mas preciso de saber o que ele disse.

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Estendeu a mão para os cigarros e sacou um do maço.

Não telefonei - disse ela como se esperasse mais de mim.

Sr.ª Coutinho, a senhora não é tão boa atriz como pensa - disse eu, mas estava a fazer bluff. Na verdade, não conseguira interpretar a sua expressão.

Ela fitou-me com os olhos semicerrados, como que a tirar as medidas para a corda com que gostaria de me enforcar.

Se não ligou a Morel para saber se ele partiu de Faro ou de Lisboa prossegui -, então devia ter ligado. Era o que eu teria feito.

Os seus esforços para se mostrar compreensivo só pioram as coisas, Sr. Monroe. É demasiado americano para o meu gosto. - Levantou-se, agastada.

Não pretendo entrar em discussão consigo - expliquei. - Não sou bom nisso. Ao primeiro sinal de discussão, fujo e escondo-me. - Quando me fitou com uma expressão cética, acrescentei: Sou muito bom a fugir, Sr.ª Coutinho.

Ela riu-se com um toque de admiração - como quem reconhece ter sido desarmada com habilidade - e replicou em tom de desculpa:

Talvez não queira acreditar depois da maneira como falei consigo, mas também não gosto de discussões. Possivelmente porque em geral as perco sempre. - Segurou um cigarro entre os lábios, ficando com ele ali pendurado. - Também aprendi a ser bastante rápida a fugir, inspetor. - Com um traço do humor amargo que eu agora reconhecia ser uma parte essencial da sua personalidade, acrescentou: - Se bem que o Pedro e a Sandi fossem ainda mais rápidos e normalmente conseguissem apanhar-me:

«Ela quer que eu saiba que eram dois contra um nesta família», pensei. E insisti na pergunta: Então o que é que Morei lhe disse?

Acendeu o cigarro. Exalando o fumo de forma um pouco espetacular, disse:

Veio de carro a Lisboa para falar com o Pedro na sexta-feira de manhã cedo e quando saiu desta casa o meu marido estava perfeitamente vivo.

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A que horas saiu ele?

Por volta das dez e meia. Havia um voo da TAP para Paris às onze e quarenta, e seguiu nele.

E de que falaram, ele e o seu marido?

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Após um momento de hesitação, puxou uma cadeira para si.

É muito simples - disse ela. - Há alguns meses disse ao Pedro que queria o divórcio, mas ele convenceu-me a esperar até a Sandi fazer dezoito anos. Mostrou-se inflexível em não querer magoá-la mais do que ela já estava.

O seu marido mostrava-se muitas vezes inflexível?

Não compreendo a pergunta.

Era frequente zangar-se?

Não nos zangamos todos uma vez ou outra?

Mas nem todos arranjam inimigos por causa disso. A julgar por aquilo que aconteceu, ele arranjou um dos piores.

Oiça, a minha vida não é o mar de rosas que lhe dei a entender há pouco. Havia vezes em que eu e o Pedro nos sentíamos encurralados no casamento. Houve uma ocasião em que depois de desatar aos berros comigo ele perdeu as estribeiras de tal modo que até a Sandi, a sós comigo, naturalmente, me disse que era capaz de ser boa ideia separarmo-nos. Mas, nessa altura, assim que concordei em esperar pelo divórcio, ele voltou a mostrar-se amável. Não era como eu, conseguia mudar de disposição de um momento para o outro. E mostrar-se tão seguro de si que era uma coisa de nos fazer perder o fôlego. - Encolheu os ombros, como que resignada a que o marido fosse uma criatura que ela nunca conseguiria entender. - Seja como for prosseguiu -, o Iean disse-me que tinha vindo de carro a Lisboa ontem de manhã para pedir ao Pedro que reconsiderasse. Que consentisse no divórcio, quero eu dizer. Foi um impulso do momento. - Numa voz atravessada pela mágoa, acrescentou: - O Iean está apaixonado por mim, inspetor Monroe. Diz ele que é a primeira vez que está realmente apaixonado. E, veja bem, tem sessenta e dois anos! - Revirou os olhos como se isso fosse uma loucura. - Mas não queria o divórcio já só por causa do que sentia por mim. Tinha a forte sensação de que a Sandi andava mal por nós estarmos juntos.

É padrinho dela e tem-lhe uma grande afeição.

E como reagiu Pedro à sugestão dele?

Mais uma vez, mostrou-se contra a separação.

Então ele e Morel discutiram.

A cólera insinuava-se novamente na sua expressão.

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Sim, mas, como lhe disse, quando o Jean saiu daqui, o Pedro estava perfeitamente vivo.

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A sua filha sabia da relação com Morel?

Pensava que o senhor tinha dito que preferia evitar discussões.

E prefiro, mas quero resolver este caso.

Pagam-lhe na mesma, ainda que não descubra quem matou o Pedro - disse ela num tom neutro.

Isso é verdade - respondi -, mas a senhora merece saber o que aconteceu ao seu marido.

Porquê?

Toda a gente merece saber o porquê das coisas más que lhes acontecem.

Lançou-me um olhar penetrante.

Embora o senhor nunca o tenha descoberto.

A observação manifestava uma tal consciência das pequenas pistas que eu negligenciara que isso mudou todos os meus sentimentos em relação a ela. E também me deixou embaraçado, pois tinha sido incapaz de ver claramente o que se passava entre nós até então.

Não, na realidade, nunca descobri - reconheci.

E nem sempre apanha os assassinos que persegue, pois não?

Pensando em Moura, respondi:

Para o melhor e para o pior, isto não é como nas séries de televisão.

Há muito tempo que tenho consciência disso - replicou, com um risinho de aversão. - Oiça, inspetor, não fazia ideia de que o Jean tencionava vir cá. Caso contrário, tinha-o impedido.

Ele disse-lhe se estava mais alguém aqui quando falou com o seu marido?

Não falou nisso.

Pedi à Sr.ª Coutinho que me pusesse em contacto com Morel por telefone. Depois de ela lhe explicar quem eu era, passou-me o telefone.

Falava num inglês aceitável. Confirmou que tinha estado em casa de Coutinho no dia anterior, um pouco depois das dez da manhã, tendo vindo do Algarve num carro alugado. Pedro não lhe parecera nervoso nem pouco à vontade. Disse que saíra sem ter conseguido qualquer concessão da parte de Pedro. Não fazia ideia se alguma amante de Coutinho estaria escondida em casa enquanto os dois conversavam.

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Morel confirmou que tinha apanhado o voo da TAP para Paris às onze e quarenta. Acrescentou que antes de embarcar ligara do aeroporto

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para o seu velho amigo a pedir desculpa pela discussão que tinha provocado, mas que o telefone de Coutinho estava desligado. Voltou a telefonar quando chegou a Paris, mas continuava sem ligação.

Seria Morel insidioso a ponto de telefonar para um morto duas vezes, na ideia de lançar uma futura investigação policial numa pista falsa?

Disse a Morel que o queria ver em Lisboa assim que possível, e ele respondeu que já tinha feito uma reserva para o voo da TAP do dia seguinte. A chegada estava prevista para as 12h45. Depois de desligar, perguntei à Sr.ª Coutinho se sabia onde poderiam estar os telemóveis do marido. Ela abria um buraco no pão de ló com movimentos descuidados da mão.

Se não os tinha nos bolsos nem estavam na secretária da biblioteca, não faço ideia onde estarão – disse ela. – Não os encontrou?

Não, o assassino deve tê-los levado.

O assassino... - As lágrimas insinuaram-se por entre as pestanas. Depois de enxugar os olhos, sacudiu a cabeça como que para desvalorizar a sua mágoa e sorriu, um esforço que parecia discretamente heroico.

Acho que devia beber outra coisa em vez de whisky - disse-lhe.

E eu acho que a sua mulher lhe deve dizer bastantes vezes para guardar as suas opiniões para si! - declarou ela, mas com um toque de humor.

Admiti que tinha razão, e ela disse:

Neste ponto, inspetor Monroe, penso que lhe cabe dizer à viúva enlutada umas palavrinhas de consolo.

Talvez fosse melhor ligar para uma boa amiga depois de eu ir embora e pedir-lhe que fique aqui a fazer-lhe companhia.

Se tivesse uma boa amiga, era o que faria.

Tem de haver alguém em quem confie.

Caraças, Monroe! Ainda não percebeu que quando dizemos às pessoas aquilo de que mais precisamos elas fazem tudo o que podem para não nos darem isso? Oiça, e se eu e o Iean estivermos a dizer a verdade? - Uma nova possibilidade fê-la sobressaltar-se; levou então as mãos à cabeça. - Oh, meu Deus... e se a Sandi continuar a achar que a culpa é dela?

Dobrada sobre o seu medo pela filha, começou a chorar em silêncio. Fui para junto da janela. Pelo canto do olho, observei a cinza do seu

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cigarro quase a cair. De perfil, parecia mais velha - e dava a sensação de ter acabado de compreender que se afastara tanto de tudo o que sempre sonhara que nunca conseguiria voltar a onde queria estar.

Entretanto, enquanto observava Nero a dormitar debaixo da palmeira, compreendi, por contraste, que não desejaria estar em nenhum outro sítio. Deve parecer uma estranha conclusão, mas já antes reparara que me sentia bastante bem a falar com pessoas que viviam os piores momentos das suas vidas. Então, davam-me uma impressão de serem reais, o que quase nunca sentia. Talvez fosse essa até a razão por que me tornara polícia.

O silêncio da Sr.ª Coutinho, como que imersa em transe, fez com que eu voltasse para a mesa da cozinha. A expressão dela - perdida e vulnerável levou-me a dirigir-lhe a palavra:

A minha mãe morreu num acidente de carro quando eu tinha onze anos - disse-lhe.

Eu próprio fiquei surpreendido com esta confissão: na verdade, parecia não ter saído da minha boca.

Ela acenou a cabeça esperando que eu lhe contasse mais alguma coisa. Acrescentei:

Há dias, mesmo depois de tantos anos; em que ainda não consigo acreditar no que aconteceu. Vou por uma rua fora e o irremediável daquilo, e como isso determinou todo o resto da minha vida, faz-me parar ali mesmo. Por isso, já vê, a verdade é que sou a última pessoa no mundo a poder dar-lhe conselhos sobre como ultrapassar um trauma como este.

E o entanto conseguiu continuar a viver a sua vida.

Não tinha por onde escolher. Tinha um irmão mais novo.

E eu tenho a Sandi. É isso que está a querer dizer?

Não era a minha intenção, mas possivelmente era o que eu diria se tivesse de me arriscar a dar-lhe algum conselho.

A vida tem sido tantas vezes uma desilusão - observou ela.

E, quando não foi uma desilusão, Monroe, foi ainda pior. - Aguentando o meu olhar, como quem diz «olhe para isto», levou as costas da mão à boca e limpou o bãton dos lábios, que lhe marcou a cara com riscos rosados.

Enquanto tirava os brincos das orelhas, o tempo pareceu suspender-se, porque vi claramente que ela queria que eu compreendesse que

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nunca seria a pessoa que fora antes da morte do marido. Atirando-os na minha direção, disse:

Dê-os à sua mulher. - Com um sorriso irónico, acrescentou: - Ela merece uma prenda de vez em quando por conseguir aturá-lo.

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Pus os brincos em cima da mesa. As pérolas negras eram ligeiramente ovaladas, como pequenos ovos escuros.

Vamos deixá-los aqui por agora - propus.

Seja um bom menino e ponha-os no bolso se quer evitar uma discussão.

Fiz o que me disse, embora tivesse decidido deixá-los no meu gabinete para o caso de ela os querer de volta daí a uma ou duas semanas.

Poça, o que eu odiava bâton quando era nova! - disse a Sr.ª Coutinho .- Levei anos a habituar-me. – Soltou uma risada inconsiderada e juntou as mãos em oração.- Que Susana Coutinho descanse em paz.

Viva Susana de Lencastre. - Brindou à sua transformação, ao voltar a ser a mulher que era antes do casamento, erguendo o copo. - O que me faz lembrar, Monroe, que se calhar contam comigo para identificar o meu marido.

A Sr.ª Grimault identificou -o. Mas posso tomar as disposições necessárias para ir ver o corpo quando se sentir preparada para isso.

Engoliu em seco.

O corpo... Caramba, dito assim, é horrível!

Receio que as outras possibilidades soem ainda pior.

Levantou a mão a evitar que eu dissesse quais eram, embora não fosse essa a minha intenção.

Acho que nunca acreditarei no que aconteceu se não vir o Pedro.

Olhou para os azulejos das paredes e voltou a ficar ausente. Ao fim de algum tempo, perguntou: - Havia muito sangue? - Falava como se de muito longe.

Receio bem que sim, no sítio por onde a bala entrou. - Indiquei-o batendo na barriga.

E aquelas letras japonesas na parede, foi o Pedro que as fez com o seu próprio…?

Pensamos que sim.

A Sr.ª Coutinho estremeceu.

Acha que o Pedro fez aquilo quando estava a morrer? Como uma derradeira mensagem?

Diga-me a senhora... Parece escrito por ele?

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Não conheço a caligrafia dele em japonês a ponto de saber se a mensagem foi escrita por ele. Já sabe o que quer dizer?

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Não, mas vou investigar isso hoje. O seu marido alguma vez falou em qualquer coisa má que lhe tenha acontecido no Japão... Inimigos que possa ter feito, problemas de negócios em que se tenha envolvido?

Não, nada. Falava sempre do tempo que lá passou como se tivesse sido a sua maior aventura. - Abanou a cabeça. - O Jean nunca o poderia ter matado, sabe - disse ela, em voz baixa, a indicar que era simplesmente um facto. - E eu também não. Não sou apenas boa a fugir de discussões, inspetor. Também sei esperar quando é preciso, e esperar mais quatro anos por um divórcio não ia tornar a minha vida mais difícil do que ela já era.

Acredito em si - disse eu, e era verdade, mas talvez Morel lhe tivesse mentido sobre o que fizera. Se ele não aparecesse em Lisboa no dia seguinte, ficaríamos a saber a verdade.

Diga-me mais coisas sobre o que o assassino fez ao Pedro - pediu ela. O temor que se lia nos seus ombros encurvados fazia-me lembrar a filha.

Talvez seja melhor esperar até amanhã - sugeri.

É assim tão terrível?

Disse que sim com a cabeça. Soltando um gemido, deixou cair o copo em que estava a beber, que se estilhaçou no chão. O gelo deslizou pelo pavimento. Quando levantou os olhos, estava à espera de ver desespero no seu olhar, mas era a raiva que faiscava

Veja se não se esquece de interrogar o raio dos que estão associados aos negócios do meu marido! - exclamou.

Alguém em particular?

Todos em particular! - gritou. Vibrava de fúria. - Inspetor, deixe-me dizer-lhe uma das coisas mais úteis que o Pedro me ensinou: parta do princípio de que qualquer transação em Portugal é suspeita até prova em contrário!

Então, o seu marido pagava luvas para conseguir empreitadas? perguntei.

O senhor é parvo? Claro que pagava! Fale com Rui Sottomayor, o contabilista dele. Sabia tudo dos negócios do Pedro de trás para a frente, e eram amigos desde miúdos. - Num tom de cinismo divertido,

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acrescentou: - Mas, se quiser poupar algum tempo, basta fazer uma lista de todos os políticos que têm de assinar as autorizações de construção de um centro comercial na porcaria desta república das bananas! A lista dos responsáveis que o Pedro tinha de subornar devia ser a mesma, mais coisa menos coisa.

Procurou na lista de contactos do telemóvel o número de telefone de Sottomayor e ditou-mo. Em resposta às minhas perguntas seguintes, disse que nunca vira quaisquer notas que o marido tivesse escrito sobre as suas transações ilegais. E que nunca falara em nomes de pessoas que tivesse subornado.

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Ele achava que era melhor para mim não saber nada de concreto disse ela.

Esclareceu depois que nunca dera as chaves de casa a ninguém, nem mesmo a Jean Morel. E Sandi também não, tanto quanto sabia, mas ia perguntar-lhe. Fomos ver o armário onde a família guardava as cópias das chaves de casa, mas não faltava nenhuma.

Disse- me também que nunca vira o marido com outra mulher desde que se tinham mudado para Lisboa e não sabia os nomes de nenhuma das suas amantes.

Aprendi com ele a olhar para o lado - explicou.

Pedi-lhe que me seguisse até à sala de estar e mostrei-lhe o desenho de Fernando Pessoa feito por Almeida.

Sabe dizer-me se isto esteve sempre aqui? - perguntei.

Não tenho a certeza. Porquê?

Acho que o assassino o mudou de lugar.

Porque havia ele de fazer isso?

Não faço ideia.

Fez um gesto de desdém, abanando as mãos na minha direção.

Tudo o que está nas paredes pertencia ao Pedro. - Passeou um olhar hesitante pela sala. Os olhos exaustos abrindo-se e fechando-se. Comprou todas estas coisas tão bonitas, e agora... Sabe uma coisa que levei anos a compreender? Em tempos eu era o seu mais estimado obje tdart. - Fez estalar os dedos. - Mas, um dia, assim sem mais nem menos, o Pedro trocou-me por algo mais contemporâneo. Quando percebi isso, deixei de ligar a todas as coisas belas que ele trazia para casa. Não me interprete mal… ele mostrava-se pesaroso. Caraças, e de que maneira! Chorou como uma criança da primeira vez que lhe fiz ver que me andava a enganar. «Oh, queridinha, desculpa, eu devo estar louco

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para te andar a magoar desta maneira!», dizia ele. Levei meses a perceber que me tinha trocado de vez. Fui muito estúpida, não fui? Porque era simples: estava a envelhecer. Os homens não gostam das mulheres que têm o mau gosto de envelhecer. Sou eu que lho digo, Monroe!

Lançou-me um olhar carregado como se eu fizesse parte de alguma conspiração masculina. Apontei para o desenho de Almeida e perguntei:

Será que a sua filha sabe o que estava aqui antes?

Provavelmente. Ela e o pai adoravam ir às galerias de arte. Eu pergunto-lhe quando ela se sentir melhor.

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Desculpe mais uma pergunta indelicada, mas aqueles guinchos da sua filha... Ela alguma vez gritou daquela maneira?

Monroe, o pai dela acabou de ser assassinado. Que esperava que ela fizesse?

É verdade, mas...

Meu Deus, o que o Pedro adorava aquela miúda! - cortou ela.

Ele queria fazer tudo bem desta vez.

Desta vez?

Este era o segundo casamento dele. Tinha dois filhos... um rapaz e uma rapariga do primeiro. Depois do divórcio, a ex. - mulher virou -os contra ele. Há pelo menos quinze anos que não os via, desde a adolescência deles. A coisa que mais temia, acho... era que eu pudesse virar a Sandi contra ele se nos divorciássemos.

Gostava de saber por que razão a Sandi achava que tinha de esconder o anel - inquiri.

Oiça, ela tem passado por uma data de problemas ultimamente.

Entre outras coisas, os miúdos na escola metem-se com ela desde que cortou o cabelo. Talvez isso tenha alguma coisa a ver.

Foi ela própria que o cortou?

Foi. Pegou na tesoura e... - A Sr.ª Coutinho fez uns gestos no ar de quem corta à toa. - A Sandi disse que queria ter um ar mais edgy.

Tive de ir ver o que queria dizer a porcaria da palavra no raio de um dicionário de inglês! Edgy! Já ouviu coisa mais estúpida?

Quando é que ela fez isso?

Há uns três meses. - Revirou os olhos. - E queria também pôr um piercing na língua, mas eu disse-lhe que nem pensar!

Passou-se alguma coisa de especial com ela por essa altura?

Como por exemplo?

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Qualquer discussão mais dura consigo ou com o seu marido?

Não. A Sandi nunca foi de discussões, para dizer a verdade. Pelo menos há muito tempo. A técnica dela era dar uma boa facada bem funda até fazer sangue e depois afastar-se enquanto estávamos ainda em estado de choque.

Por acaso passou algum tempo longe de si, há uns três meses, quando poderia ter-lhe acontecido alguma coisa de grave?

Page 85: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

Não.

Nenhuma viagem?

Bolas, o senhor realmente não larga, pois não? - perguntou.

Durante a Páscoa foi passar uns dias com o pai a casa do Jean perto de Paris. Ele tem uma casa enorme na Normandia. Lindíssima. Foi com duas amigas.

E correu tudo bem?

Divertiu-se imenso. Adora França... Prefere França a Portugal.

E quem não prefere? Este país é um beco sem saída para os miúdos da idade dela. - A Sr.ª Coutinho passou a mão pela cabeça a desfazer um nó no cabelo. - Tem filhos, Monroe?

Dois rapazes.

De que idade?

Sete e treze anos.

Ela soltou um assobio, como que de advertência.

Os rapazes são mais imaturos do que as raparigas, mas espere até o mais velho chegar aos quinze anos ou coisa assim. Nessa altura é que começa a ser difícil, a fazer coisas realmente loucas e a esquecer-se de falar consigo como deve ser. Em parte são coisas desta geração, ao que me dizem. Gostam de vampiros e do YouTube e de descarregar tretas da internet estilo Lady Gaga.

Depois de anunciar que estava com sede, conduziu-me de volta para a cozinha. Enquanto se servia de um sumo de laranja, peguei nos meus dois sacos de recolha de provas. Quando voltámos a sentar-nos, mostrei -lhe o honeydripper.

Isto estava enfiado debaixo do lençol de cima da cama da sua filha - disse eu.

Gosta de doces. Herdou isso dos dois, de mim e do Pedro, por isso não posso negar a nossa culpa. - Levantou as duas mãos. - Estou pronta para as algemas, inspetor.

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Onde é que ela arranjou isto? Nunca vi uma coisa destas em Portugal.

Em Nova Iorque, no verão passado. Passámos lá uns dias.

Tirei a faca do outro saco.

E isto estava debaixo da cama. Faz alguma ideia de porque a teria ali?

Ela examinou-a com indiferença e deixou-a tombar em cima da mesa.

Não vejo o que isto poderá ter a ver com o assassinato do Pedro.

Page 86: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

Mesmo assim, gostava de saber.

Juntou num montinho as migalhas de bolo espalhadas em cima da mesa enquanto pensava no que iria dizer.

É uma questão delicada. Por favor, não ponha isto em nenhum relatório oficial.

Tudo bem.

Quando, há oito meses, a Sandi teve o período pela primeira vez, ficou assustada com o sangue. - Recostou-se na cadeira, cruzando os braços em cima do peito como que para se lembrar da necessidade de ser cautelosa. - A pobre da miúda tinha pesadelos... Monstros que se esgueiravam para dentro de casa para me perseguirem a mim, ao Pedro e a ela. O psicólogo disse-nos que todos estes programas de televisão e filmes com raparigas perseguidas, atormentadas por psicopatas, criaram uma espécie de síndroma. Hoje em dia, algumas raparigas vivem num constante estado de medo. É uma loucura. Enfim, quando os pesadelos começaram, a Sandi disse-me que queria ter uma faca junto dela na cama. Odiei a ideia, mas psi disse que não fazia mal… era uma espécie de escape provisório.

Ela alguma vez lhe disse que uma pessoa real a ameaçava?

Não.

Há quanto tempo anda ela na terapia?

A Sr.ª Coutinho afastou o olhar enquanto fazia o cálculo.

Há quase dois meses.

Tem a certeza de que ninguém lhe fez mal antes disso... Fisicamente, quero eu dizer? Talvez na escola. Algum miúdo que andasse a meter-se com ela. Ou algum professor.

Ela diria alguma coisa. Pelo menos ao pai. Ele teria tratado disso. Era muito bom a tratar desse género de coisas - acrescentou acintosamente.

Só para ter a certeza, importa-se de lhe perguntar?

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Claro, mas não se esqueça de que, sempre que eu procuro ter uma conversa séria, ela me olha fixamente e faz de conta que escreve num teclado. É o que chama «fazer delete»,

Isso parece-me um pouco...

Desnecessário? - interrompeu. - E cruel? - Riu-se amargamente

O objetivo é esse, Monroe. Perguntou porque é que ela precisava de pedir desculpa ao Pedro. A razão é essa... Ela «deletou-o» bastante nos últimos tempos. E a mim também. - Levantou-se de um salto, abriu o frigorífico e tirou uma maçã. - Oiça - disse ela, acenando a maçã na minha direção -, sei que o senhor quer que eu esteja muito preocupada com o que a Sandi está a passar neste momento, e preocupo-me, mas também preciso de um ou dois dias para mim, só

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para ficar ligeiramente doida. - Bateu com a porta do frigorífico e deu-lhe um pontapé com força.

Imaginei a filha dela estendida na cama, às escuras, apertando a faca na mão.

É mau sinal a Sandi ter escondido o anel no quarto dela - disse-lhe.

Deu uma grande dentada na maçã, com determinação.

Porque diz isso, inspetor?

Porque isso significa que quem quer que seja que ela temia não respeita os limites normais nem fronteiras. Não havia nenhum lugar seguro. Pelo menos, a Sandi pensava que não.

Então por que raio não me disse nada, nem a mim nem ao Pedro?

Começo a ter a impressão de que isso tinha a ver com a outra vida do seu marido... com as amantes dele. E ela não podia conversar sobre isso com nenhum de vocês.

E isso é importante para este caso porque...?

E se a pessoa que ameaçava a Sandi for a mesma que matou o seu marido?

Ninguém podia ameaçar a Sandi aqui nesta casa. É impossível.

A senhora também disse que não era possível que Morel tivesse estado em Lisboa ontem.

Fixou-me como se eu a tivesse traído.

Os pais nunca sabem de tudo o que se passa com os filhos - disse eu. - E se a amante do Pedro fosse casada? Talvez o marido tenha ameaçado o Pedro quando a Sandi estava com ele. Ou talvez ela tivesse deixado claro que não queria a Sandi por perto.

Pode ser que sim, mas isso...

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O anel era um presente do seu marido? - interrompi.

Era. O Pedro deu-lho quando ela fez doze anos.

A Sandi estava a guardar uma coisa que ele lhe dera num sítio ultrasseguro. Talvez estivesse a tentar garantir a segurança do pai. As crianças pensam assim... de forma mágica. Vou precisar de lhe fazer umas perguntas.

A dona da casa pegou-me na mão.

Por favor - sussurrou -, dê à Sandi uns dois dias para fazer o luto sem ter de responder a perguntas.

Cheguei à conclusão de que é sempre melhor interrogar logo os familiares da vítima.

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Eu conheço a minha filha, inspetor. Se a interrogar agora, vai fazer com que ela se feche cada vez mais. Não lhe arranca nem uma palavra.

Senti o apelo à minha empatia, mas sabia também que estaria a estabelecer um mau precedente caso deixasse a Sr.ª Coutinho ditar o ritmo da minha investigação.

A que horas costuma ela levantar-se?

Por volta das oito.

Amanhã às nove e meia venho cá para falar com ela, mas prometo não a pressionar. Mais tarde, virá cá um técnico do laboratório para falar com Morel e recolher uma amostra de ADN. Mas ele liga-lhe antes de vir.

Muito bem. Obrigada.

Outra coisa, queria que a Sandi não dormisse no quarto dela. Descobri uma mancha que pode ser sangue num dos peluches e, até ter a certeza de quem é, preferia que ela dormisse consigo ou noutro quarto.

Está bem, eu digo-lhe.

E nenhuma de vocês deve tocar em nada na biblioteca nem na sala de estar. Se acha que não conseguirão respeitar isso, não poderei deixá-las cá ficar.

Não há problema.

Escrevi o meu número de telefone nas costas de um dos meus cartões de visita, para a Sr.ª Coutinho me poder ligar quando se sentisse preparada para ver o corpo do marido. Depois de lho entregar, estendi-lhe os brincos de volta, mas ela fechou o meu punho em redor deles e disse:

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Se apanhar o assassino, ofereço-lhe também o desenho do Almeida.

Na sua letra laboriosa, de quem já bebeu bastante, escreveu então uma lista dos amigos e colegas de trabalho que tinham vindo a casa deles nos últimos meses, embora continuasse a negar que algum tivesse ameaçado Sandi. Ao todo, havia dezassete visitantes, incluindo MoreI. Susana consultou a agenda e descobriu que em maio tinha dormido fora em duas ocasiões durante viagens de negócios do marido.

Ao reler as minhas notas uma última vez, redescobri o críptico comentário que Sandi me fizera: «Quem leva uma coisa, tem de deixar outra em seu lugar.» Quando perguntei à Sr.ª Coutinho que significado poderia ter a frase, em especial para a filha, ela respondeu que não fazia ideia. Perguntei -lhe se a filha alguma vez tinha sido apanhada a roubar alguma coisa dos pais ou de alguém na escola, mas ela limitou-se a revirar os olhos como se eu não regulasse bem.

Não é o estilo dela, Monroe. Pode ser incrivelmente malcriada, mas não é ladra!

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Disse-lhe que não tinha mais nenhuma pergunta por agora e que eram horas de ir embora, mas ela pediu:

Não, por favor, preciso que me diga como é que o assassino atingiu o Pedro... antes de o ir ver. Quero estar preparada. - A minha hesitação deve ter-se notado, pois acrescentou: - Eu aguento.

Sentei-me com ela à mesa da cozinha.

O seu marido foi manietado e amordaçado - comecei. - Infelizmente, a mordaça estava tão apertada que ele ficou sem conseguir respirar. E...

Enquanto lhe contava o que o assassino fizera ao marido, ela manteve-se virada para a parede, as mãos enclavinhadas no regaço, os olhos baços, absorta na imensa dimensão daquela morte. E convencida - pareceu-me - de que isso seria a pior coisa que poderia acontecer-lhe. No entanto, pensando agora nisso, pode até ser que já tivesse apreendido um relance de algo muito pior que estava para vir.

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Capítulo 9

Parecia possível que Coutinho tivesse discutido as suas conquistas sexuais com Rui Sottomayor, seu amigo de infância e contabilista; por isso, quando seguia de táxi para casa, decidi ligar-lhe. Foi então que ele ouviu pela primeira vez a notícia da morte do velho amigo e, numa voz entrecortada, me disse que tinha de me ligar a seguir. Quando telefonou, explicou me que Coutinho nunca lhe dissera quem eram as suas amantes e que não lhe parecera que estivesse mal da última vez que tinham falado, dois dias antes, na quarta-feira. Sottomayor negou saber fosse o que fosse sobre subornos que a vítima pudesse ter pago. Quando o informei - exagerando um pouco - que Susana Coutinho me garantira que ele me daria nomes e números, disse-me friamente: «Receio bem que ela tenha sobrevalorizado a minha intimidade com os negócios do marido.»

Para o pressionar, pedi-lhe para estar no meu gabinete na segunda-feira às dez da manhã em ponto e se preparar para um interrogatório pormenorizado. Calculei que, se passasse o fim de semana preocupado, me daria o nome de pelo menos algum funcionário menos importante que Coutinho tivesse subornado, e eu pudesse a partir daí ir subindo os escalões.

A seguir telefonei para o inspetor Quintela e depois para Fonseca e Luci. Quintela disse-me que enviara havia duas horas a Bruno Cerveira do Ministério Público o nosso relatório sobre o assassinato. Fonseca concordou em passar pela casa da Sr.ª Coutinho no dia seguinte para

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colher uma amostra do ADN de MoreI. No entanto, já sabia que a mancha no panda de peluche de Sandra era realmente de sangue e que não era da vítima. Por insistência minha, prometeu ter todas as provas examinadas a meio da tarde de segunda-feira. Luci disse-me que Morel apanhara realmente o voo da TAP de Lisboa para Paris, tal como dissera. Tinha também confirmado que Morel ligara para o telemóvel da vítima duas vezes nesse dia, tal como

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também dissera. No dia seguinte eu tinha de ficar com os meus filhos durante a tarde, enquanto Ana estava na galeria. Por isso, Luci concordou em ir ela a casa da Sr.ª Coutinho ao princípio da tarde para interrogar Morel, coordenando a hora da sua visita com a de Fonseca. Estivemos a ver o que ela devia perguntar ao francês, repetindo tudo umas duas vezes, pois estava muito nervosa com o seu primeiro interrogatório a solo. A seguir falei com David Zydowicz, que confirmou que Coutinho morrera asfixiado. Precisou que o falecimento ocorrera entre as nove e as onze horas do dia anterior. A bala tinha entrado pela barriga e saído pelas costas sem atingir nenhum órgão vital. A ferida profunda no peito fora causada por um pontapé tão violento que lhe fraturara uma costela. A contusão nas costas indicava que o assassino o tinha pisado, comprimindo-o de cara para baixo contra o tapete da sala; havia uma fibra branca do tapete presa entre as pestanas do olho direito. David prometeu fazer uma autópsia completa logo no princípio da manhã seguinte, mas não esperava encontrar mais nada de interessante.

Tinha deixado para o fim a chamada que mais temia e fiz a ligação mal o táxi me deixou à porta de casa. Vaz disse-me que só me podia dar a marca dos ténis que deixaram a pegada na camisa da vítima na tarde de terça-feira. O seu tom gélido mostrava claramente que tinha recuperado toda a sua má vontade contra mim, maldosa e sem sentido.

Fui invadido por uma sensação aguda de tremenda tristeza, de vazio, ao entrar no prédio onde morava. Sentia a cabeça como que envolta numa espessa camada de vidro; tinha tomado Valium a mais.

Sentei-me nas escadas gastas, uma mão a tapar a boca, na esperança de que nenhum dos meus vizinhos me ouvisse a cair numa tristeza despropositada. Lembrando-me dos olhos baços, sem vida, de Moura, pensei: «Abriu-se em mim uma fenda no momento em que ele morreu.»

Quando me levantei, antecipei a gélida reação de Ana quando lhe dissesse que ia dedicar umas horas ao caso no dia seguinte; depois de

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ver o meu ordenado cortado pelo governo no outono de 2011, fizera-me prometer que deixaria de trabalhar aos fins de semana.

Quando finalmente consegui subir as escadas, a nossa porta de entrada pareceu-me um adereço cénico, tal como tudo o que me esperava do outro lado - para o marido e o pai que eu aprendera a ser - me parecia fingido.

Mal entrei, Jorge, o meu filho de sete anos, correu para mim, cantando em altos berros a canção da série American Dad: - «Gee, it's good to say, good morning U.S.A!»

Desde que uns meses antes percebera que eu tinha passado a infância no Colorado, ficava deliciado com qualquer referência à América, mesmo nos desenhos animados.

Jorge atirou-se contra a minha barriga; adora sentir o impacto. Eu provavelmente também adoraria se tivesse menos de um metro. Quase sem fôlego, envolvendo nos meus braços a sua

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agilidade de colibri, sentia-me como que salvo de um perigo. Por um breve momento de revelação, apercebi-me de como este seu pequeno corpo ia ganhando forma por uma imparável vontade de crescer.

Estava descalço, pois não permitimos sapatos dentro de casa, e tinha o dedo grande do pé pintado às riscas vermelhas, brancas e azuis.

Belo desenho! - disse eu, apontando o pé.

Foi a mamã que fez!

Ana estava debruçada sobre o computador à secretária, na sala de estar, num estilo sexy e descuidado, com a camisola interior cor-de-rosa vivo sem mangas e calças de treino cinzentas, muito concentrada, um lápis amarelo aferrado nos dentes. Atara o cabelo castanho num rabo de cavalo, exceto a madeixa púrpura que tinha tingido no dia do seu quadragésimo aniversário e que sempre deixava solta sobre a orelha esquerda.

Eu sabia que estava proibido de a interromper, e Jorge também, por isso ficámos os dois de mãos dadas à espera. Quando ele começou a contorcer-se, pedi-lhe para, por favor, não fazer xixi nas calças, e ele correu para a casa de banho. Ana chamou-me com um aceno.

O toque das suas mãos e dos lábios trazia-me sentimentos de gratidão de tal modo irresistíveis que não havia em mim defesa contra eles. E, de um momento para o outro, a minha vida parecia ser novamente minha.

Vou já tratar do esparguete - disse ela. - A sopa de castanhas já está pronta.

Sopa de castanhas?

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É do Leonardo.

Tens a certeza de que é comestível? - perguntei, fazendo uma careta de gárgula para reforçar o efeito cómico; ultimamente, Ana andava a experimentar algumas receitas dos Cadernos de Cozinha de Leonardo da Vinci e a sua tentativa anterior - sopa de limão e laranja - tinha deixado toda a gente derreada, com exceção de Jorge, que lhe adicionara uma colher de mel bem cheia e a sorvera como uma verdadeira sobremesa líquida.

Não comeces! - advertiu-me com um dedo ameaçador; mostrar-se indignada era o papel que desempenhava no nosso número privado de teatro cómico. - Que horas são? - perguntou. Consultei o relógio.

Quase sete. Então, como vai a escrita? – perguntei; A Ana estava no terceiro ano da sua tese de doutoramento sobre violência contra os transsexuais.

Falei hoje ao telefone com a Gena - respondeu ela.

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Gena tinha nascido homem em Pistoia, Itália, em 1972, embora tivesse crescido em Miami, e fora espancada quase até à morte em Brooklyn uns meses antes, por dois homens que a atacaram quando ia para a Biblioteca Pública.

Está melhor? - perguntei.

Está e acabou de ir à Florida fazer uma visita aos pais pela primeira vez desde a agressão. Não a convidaram para ficar em casa deles e por isso teve de ir dormir a um motel.

Não sei porque ainda tenta convencê-los a aceitá-la como é.

Nem ela sabe! - Ana virou a cabeça para trás e lançou-me um olhar cético. - Não me pareces muito mal - observou.

A maior parte das pessoas é boa a fingir-se de doente; eu sou bom a fingir que estou bem.

Desfiz-lhe o rabo de cavalo e aproximei o cabelo de modo a respirar a sua fragrância quente. Ela afastou-me gentilmente com a mão.

OK, deixe-me só rever mais um bocadinho e depois pode cheirar tudo que quiser, senhor inspetor-chefe.

Fui dar com Jorge a acabar a função na casa de banho. Impaciente por me falar da aula de desenho na escola, virou-se demasiado depressa e regou a parede e a bainha das minhas calças com um último arco caprichoso.

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Aguente isso aí, senhor bombeiro! - exclamei. Fi-lo girar de volta para que o jato acertasse na sanita e depois entrelacei o meu próprio jato no dele, o que o deixou a rir-se. Instantes depois, enquanto eu limpava o xixi do chão com papel higiénico, ele voltou a correr à casa de banho para me mostrar o desenho que fizera nessa tarde: três casas, todas inclinadas para a esquerda, como sempre, como se fortes rajadas de vento lhe soprassem dentro da cabeça. E todas sem telhado. A minha preferida era uma com o que parecia uma raposa com um enorme chapéu de cowboy à porta. - Quem é a raposa? - perguntei.

A quê?

A raposa - repeti, usando a palavra portuguesa; o meu filho conhece melhor os nomes dos animais em português.

Não é uma raposa! É o Ernie! - disse-me, como se tal coisa fosse óbvia. Será que já tinha percebido que o meu irmão de mais de um metro e oitenta era no íntimo uma astuta criaturinha da floresta?

Lavei a cara com água fria e tirei a gravata de cordão e o relógio de pulso. Em cima da mesa de jantar, tinha à minha espera uma carta de recusa de uma das vinte e uma galerias de arte portuguesas a quem enviara fotografias das pinturas do meu irmão dois meses antes. Amachuquei-a numa bola e deitei-a ao lixo.

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No andar de cima, vesti uns boxers. Dei com Nati estendido em cima da cama de barriga para baixo, lendo um velho livro, sem nada vestido tirando os boxers com as figuras do Coiote dos desenhos animados do Bip Bip que lhe tinha comprado quando ele fizera treze anos. A ventoinha em cima da cómoda levantava-lhe as mechas compridas como chicotes do sedoso cabelo castanho, que lhe caíam para a testa, mas parecia nem dar por isso. Dava a impressão de um rapaz numa solene viagem rumo a si próprio.

Assim que me ouviu, fechou o livro que estava a ler com um gesto brusco.

Pornografia? – perguntei.

Nati revirou os olhos.

Não tens piada nenhuma, pai.

Claro, mas não desarrumes nada.

Havia canetas de feltro de todas as cores do arco- íris espalhadas pelo tapete, o cobertor estava enrolado no chão e via-se um caroço de maçã em cima da almofada, mas o que ele dissera não era uma piada.

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Um mau dia? - perguntou, quando me sentei, virando-se de lado para me olhar de frente e apoiando a cara na mão.

Um dia em cheio: um suicídio e um assassinato e, para completar a dose, uma miúda que andam a assediar. E tu, que tal? A avó Vera cometeu algum crime contra a humanidade hoje? Quase. Levou-nos ao Museu Gulbenkian e fingiu que estava a ter um desmaio por causa do calor para não termos de esperar na fila.

Nati imitou a avó, completando com uma mão tremente sobre o peito resfolegante. Falou usando o forte sotaque dela, que tornava quase indecifrável o seu português; ela e o marido tinham emigrado de Buenos Aires para Portugal em 1978. Ana tinha nessa altura oito anos. Tiveste direito à musse de abacate? - perguntei .

Duas doses. E nem te atrevas a contar á mãe!

Era outra das nossas piadas habituais: que Ana tentava limitar o nosso consumo de doces e que nós tínhamos de os sacar às escondidas.

A musse de abacate na cafetaria da Gulbenkian era o número um na nossa lista de sobremesas favoritas em Lisboa.

Deitei a cabeça ao lado da de Nati e resisti ao impulso de lhe dar um beijo, sabendo como ele ultimamente se mostrava melindroso com as manifestações de afeição física. Era tranquilizante sentir o seu hálito:

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Nathaniel John Monroe, o rapaz que fizera de mim pai. Sempre nos entendemos bem, os dois, e, mesmo quando discutíamos - o que nos últimos tempos era bastante frequente -, nunca me pareceu que tivéssemos esquecido que pertencíamos à mesma equipa. Ilusão ou milagre?

Pôs-se a puxar-me os pelos das sobrancelhas. Gostava de ver como alguns brancos nasciam entre os outros castanhos. Eu imaginava-me um bichinho entregue aos seus cuidados, o que fez surgir a questão: seria uma coisa aborrecida ou maravilhosa reincarnar como hamster? Decidi fazer-lhe a pergunta.

Uma alta chatice - replicou com autoridade. - A Binky uma vez teve um porquinho-da-índia. A única coisa que ele fazia era comer e andar a cheirar tudo em volta e a largar cocós por todo o lado na gaiola. E só durou um ano. Com os hamsters deve ser a mesma coisa.

A Binky era a melhor amiga de Nati. Os pais dela eram de Goa.

Ouve, Nati, o nariz de um hamster é não sei quantas vezes mais sensível do que o nosso - fiz-lhe notar. - Cada segundo que passa oferece-lhe um universo de cheiros dignos de investigação.

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Já percebeste que quando falas de animais pareces um manual escolar?

Um dia tenho de te levar ao Colorado... para veres os esquilos e os cães da pradaria e as águias. E os perus! Só os perus selvagens valem a viagem. - Comecei a imitar o grugulejar irritante que os filhotes dos perus fazem. Ser tocado por Nati pode deixar-me um bocado pateta.

Queres uma massagem nas costas, não é? - perguntou.

Não tinha sido essa a minha intenção, mas aceitei gratamente. Enquanto despia a camisa, ele pôs o livro em cima da mesinha de cabeceira com a capa para baixo, mas vi que era um romance que eu lhe recomendara cerca de um ano antes, Moby Dick. O ter de espreitar o título do livro fez- me sentir em casa; a minha mãe também era uma leitora discreta.

Nati colocou-se rapidamente atrás de mim e massajou-me os ombros. As aulas de ténis tinham-lhe dado umas mãos fortes. Cerrando os olhos com um suspiro de satisfação, lembrei-me dele quando recém-nascido, a dormitar de cara encostada à minha barriga. A confiança do meu filho em mim - muito embora a sua nua e perfeita fragilidade significava que eu chegara à linha da meta de uma corrida em que participava há quase trinta anos. Podia finalmente parar de correr.

Achas que um dia te há de apetecer carregar na tecla delete de cada vez que me vires? - perguntei.

Que conversa é essa?

A filha do homem que foi assassinado carrega numa tecla de delete imaginária sempre que a mãe tenta falar com ela - expliquei.

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Não prometo nada, pai, mas farei o possível por não te apagar diante de outras pessoas – disse ele laconicamente.

Muito simpático da tua parte - respondi em tom sarcástico, mas sabendo muito bem que só me podia censurar a mim próprio pelo seu sentido de humor. - Alguma vez viste um panda de peluche com uns grandes olhos azuis e um ar vagamente japonês? - perguntei. - Havia um assim no local do crime.

Não, mas posso ver no Google daqui a bocado, se quiseres.

E por que razão haveria uma miúda de catorze anos realmente bonita de cortar o cabelo para se parecer com um rapaz?

A filha da vítima outra vez? - perguntou.

Respondi com um «sim» gemido, enquanto ele carregava com força nos nós que eu tinha nos ombros.

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Talvez seja fufa - disse ele prazenteiro.

Estávamos a falar em inglês, como sempre faço quando estou sozinho com os meus filhos, mas Nati usou o calão português. Voltei-me e lancei-lhe um olhar interrogativo.

Nos dias que correm, há uma data de lésbicas na televisão, e tu de vez em quando deixas-me ver - informou-me em tom de vítima. Ultimamente, nunca perdia uma oportunidade de se queixar por ele e o irmão mais novo não poderem ver televisão durante a semana. Era uma regra que tínhamos adotado no ano anterior, quando Jorge começou a repetir a todo o momento os slogans dos anúncios. E também porque todas as más notícias sobre a nossa economia tinham começado a deixar Ana em pânico ao ver os nossos rendimentos cada vez mais reduzidos.

As miúdas lésbicas nem sempre querem ter ar de rapaz - disse eu. - Isso é uma ideia feita.

Não, é um estereótipo - corrigiu ele.

Nati, por acaso já percebeste que há ocasiões em que podes estar a mostrar-te esperto de mais?

Revirou os olhos. Ouviu-se o aviso do relógio da cozinha e Jorge berrou «Pai!», como se eu tivesse ensurdecido nos últimos quinze minutos.

Estás capaz de acordar os mortos! - gritou-lhe Ana em resposta.

Voltei a vestir a camisa. Jorge subiu as escadas a correr e apareceu à porta, ofegante, com a camisa salpicada de molho de tomate. Estava nu da cintura para baixo. Infelizmente, Nati é completamente imune aos encantos de Peter Pan do irmão e disse:

Onde raio deixaste as calças, Dingo?

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Chama-lhe Dingo, depois de ter concluído - acertadamente, receio bem - que o rapaz tinha tendência para comer como um cão selvagem.

Ficaram sujas - respondeu Jorge. Segurava firmemente a colher que a mãe pelos vistos lhe dera para provar o molho. - Jantar! - acrescentou quase sem fôlego.

Nati sentou-se.

Já tínhamos chegado a essa conclusão, meu cromo - disse ele.

Cala o bico! - gritou Jorge em resposta, e desataram os dois a chamar nomes um ao outro em português.

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«Pelo menos os monstros que criei são bilingues», pensei.

Se vão brigar - disse, levantando-me de um salto -, então, é melhor irem buscar as luvas de boxe e venderem bilhetes, seus pataratas.

Pelo menos assim sempre posso ganhar uns patacos.

Desatei aos saltos como um canguru, desferindo murros imaginários contra Jorge, que correu de encontro à minha barriga. Nati fungou de desdém.

Papá, não te esforces tanto - disse ele, num tom de tal modo semelhante ao da mãe que me desatei a rir. Depois de eu ter posto Jorge às cavalitas nos ombros, Nati empurrou-nos para fora do quarto.

A seguir ao jantar, Jorge foi buscar o caderno de desenho, sentou-se nos meus joelhos e desenhou-me a mim e à mãe nas janelas dos seus fantásticos casarões sem telhado, inclinados para a esquerda. Às nove menos um quarto, despertei de uma breve soneca para dar com Nati a descer as escadas. Vestia uns jeans rasgados nos joelhos e a T-shirt azul com letras cor-de-rosa no peito dizendo «Las Rosas Flour Company» que encomendara pela internet e que vestia para as saídas importantes. Ia ao cinema com Binky e mais dois amigos. Quando Ana se recusou a autorizá-lo a chegar depois da meia-noite, Nati lançou-me um olhar franco, expectante, e foi nesse momento que compreendi que a massagem nas costas tinha por objetivo valer-lhe uma dispensa especial para essa noite.

Que ias fazer se fossem a algum lado a seguir ao cinema? - perguntei, ainda tão entorpecido por estar a dormitar que não pensei que isso pudesse acabar numa discussão.

Pensamos ir dar uma volta pelo Bairro Alto.

A imagem do meu filho a entrar num bar escuro, barulhento e rançoso deu-me volta ao estômago. Pressentindo a derrota, Nati acrescentou logo:

É perfeitamente seguro, e vamos todos em grupo. Ou, se quiseres, podemos ir até outro sítio mais perto de casa.

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Prefiro manter o contrato que fizemos - disse-lhe. - Quando fizeres quinze anos podes sair até depois da meia-noite... mas só em grupo.

Isso já foi há mais de um ano!

Tentei levá-lo pela razão, mas ele dizia que os meus argumentos eram «tretas» e «irrelevantes». Antes de eu ter conseguido pensar numa

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solução de compromisso, saiu disparado de casa para esperar pela mãe da Binky lá fora.

Levei Jorge para a cama. Enquanto o despia, ele cantava: «Sabe bem pagar tão pouco!», a canção de um anúncio dos supermercados Pingo Doce.

Um só anúncio por noite era um grande progresso; por isso, disse-lhe que estava a portar-se muito bem e tapei-o com os cobertores. Depois de verificar que a porta de entrada estava bem fechada, deixei-me cair exausto na cama. Ana estava quase a chegar ao fim de Casei com um comunista, de Philip Roth.

Gostava de ir ver o Ernie no fim de semana - disse-lhe, aconchegando a almofada. Senti que era o melhor momento para acrescentar que ia trabalhar no caso. Na manhã seguinte, mas não disse nada.

Então vai amanhã – propôs Ana – porque no domingo tenho o ceramista brasileiro da exposição que estamos a organizar e preciso de ti para o jantar que vamos ter com ele. Só fala de si próprio. Sozinha não poderia sobreviver.

Enrolei os pés nos dela, para lhe aquecer os dedos sempre frios.

Não te zangues, mas se calhar também vou ter de trabalhar umas horas no novo caso durante a manhã.

Ela lançou-me um olhar fulminante.

Como está o tempo aí na terra dos chalados?

Eu sei que não devia fazer horas extraordinárias, mas se tu visses a mulher e a filha do tipo que foi assassinado... - Expliquei-lhe como Sandi Coutinho me tinha parecido perturbada. Ana começou a franzir o sobrolho quando lhe contei que a rapariga desatara em altos guinchos, mas compreendi, depois de tantos anos juntos, que aquilo significava que a minha mulher já tinha cedido.

Depois perguntei:

Será que a tua mãe, ou o teu pai, poderá ficar com os miúdos umas horas amanhã...

Não. Vão ver uns amigos a Cascais. Eu posso ficar por aqui até um pouco antes do meio-dia, mas tens de estar em casa depois disso. E o King Kong e o Godzilla vão ter de ir contigo a casa do teu irmão.

Page 98: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

Mas eu posso querer passar lá a noite.

Tudo bem, isso deixa-me uma noite livre das obrigações de esposa e mãe. Mas trata de estar de volta durante a tarde de domingo.

Precisas de uma noite livre? - perguntei-lhe, ofendido.

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Ela lançou-me um olhar cético, depois beijou-me na testa para suavizar o que diria a seguir. Estás a tentar dizer-me que não precisas de uma noite livre das obrigações de marido e de pai de vez em quando?

Exatamente, é isso mesmo que estou a dizer.

Ana revirou os olhos porque sabia que eu estava a mentir e voltou à sua leitura. Passei-lhe a mão pela curva da anca e ao longo da perna, pondo à prova a imagem que tinha dela na minha memória. Parecia-me sempre mais elegante do que me lembrava.

Ana...? - disse eu, para lhe chamar a atenção.

O que é?

Ficaste perturbada da primeira vez que tiveste a menstruação? - Ela poisou o livro e fitou-me com um olhar interrogativo; por isso, acrescentei: - Preciso de o saber por causa da filha da vítima do crime.

Acredite ou não, senhor inspetor-chefe, ver sangue correr por entre as pernas não é propriamente a coisa mais divertida que há. Se acontecesse aos homens, de certeza que já havia enciclopédias escritas sobre o mais ínfimo aspeto da coisa.

Pois - disse eu, momentaneamente desinteressado nas ramificações feministas da minha pista de investigação. - Falaste sobre isso com a tua mãe? - perguntei.

Ana deu uma fungadela sarcástica.

Estás maluco? A minha mãe nunca falou comigo sobre nada que tivesse a ver com sexo! Vai fazer sessenta e oito anos em outubro e tenho a certeza de que ela ainda não deu sequer uma boa olhadela à sua própria vagina. As mulheres judias argentinas da sua geração não faziam isso.

Bem, esperemos que o teu pai tenha tido alguma ocasião de ver isso de perto!

A piada valeu-me uma boa gargalhada de Ana, o que me fez sentir melhor quanto à sua necessidade de se ver livre de mim e dos miúdos de vez em quando.

Como chegaste à conclusão de que era uma coisa perfeitamente normal? - quis eu saber.

Perguntei a algumas amigas mais velhas. Elas explicaram-me o funcionamento dos ovários. Uma delas até me fez um desenho de uma vagina, para o caso de alguma vez surgir ocasião para eu usar a minha. O clítoris tinha o aspeto de um quiabo. Fiquei horrorizada!

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Passei-lhe suavemente a mão pelo rabo. Ela não se importou. Era uma permanente surpresa - e fonte de gratidão - que me deixasse tocá-la onde me apetecesse.

Agarrou-me o pénis com uma mão e fixou-me intencionalmente, mas com todo o Valium que tinha tomado não ia conseguir ficar com pau.

Desculpa, estou que não me aguento - disse eu.

Às vezes há surpresas; por isso, vou continuar mais um bocadinho, se não te importas - disse ela.

Mi casa es su casa.

Enquanto ela me massajava com a mão, eu ia-lhe contando como Sandra Coutinho ficara assustada com o período e escondera as cuequinhas ensanguentadas numa das pernas das calças.

Talvez não quisesse que os pais soubessem que lhe tinha chegado o período – sugeriu Ana.

E isso podia levá-la a querer parecer-se com um rapaz? Quer dizer, ela cortou o cabelo a si própria e ficou curtíssimo. Mesmo com mau aspeto.

Talvez ande a pensar noutras raparigas.

Foi o que o Nati disse. Mas a questão é que a Sandra Coutinho tem só catorze anos.

Hoje em dia os miúdos pensam nesse tipo de coisas mais cedo.

Ou talvez estivesse simplesmente farta dos cabelos compridos. - Deu um apertão à minha pila. Às vezes um charuto é apenas um charuto,

Dr. Freud.

E um boneco de peluche é sempre apenas um boneco de peluche?

Não estou a perceber.

Havia sangue num panda de peluche que encontrei na cama dela.

A miúda pô-lo entre as pernas quando estava menstruada e apertou-o - disse Ana, num tom de quem sabe do que fala.

-Costumavas fazer isso?

Eu era uma miúda muito prática, usava uma toalha. Um boneco de peluche é muito mais difícil de lavar sem estragar.

Então talvez ela quisesse que os pais reparassem que o panda tinha ficado sujo.

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É possível. - Largou-me e voltou a pegar no livro. Ao voltar uma página, caiu uma flor seca. Ana estendeu-ma, e eu juntei-a a um pequeno monte que já tinha em cima da minha mesinha de cabeceira. Era uma espora brava, com a sua cor púrpura descorada para um azul- pálido.

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Ernie enfiava sempre flores entre as páginas dos livros que nos oferecia.

Nunca sabíamos quando um hibisco amarelo fino como papel se iria despegar de um livro de história ou uma flor de jasmim de algum romance do século XIX.

Abri Deaf People in Hitler's Europe; o meu último projeto de leitura era sobre a guerra dos nazis contra as pessoas com deficiência. Mas não li muito até Jorge me ocupar por inteiro o espírito. Ultimamente andava a pensar que ele poderia revelar-se gay. Como o tio. Se é que Ernie o era realmente, pois não tinha a certeza de que ele alguma vez tivesse tido relações sexuais. A conclusão a que antes tinha chegado e a que agora voltava a chegar era que não queria que o meu filho tivesse muita pressa de crescer.

Daí a pouco Ana apagou a luz do candeeiro de leitura. Não valia a pena esforçar-me por adormecer antes de Nati chegar a casa; por isso, desci as escadas em bicos de pés e fiquei a ver um jogo de basebol na ESPN. Será que rebater bolas nos Milwaukee Brewers alguma vez me tinha surgido como o futuro que desejava para mim?

O jogo não me conseguia prender a atenção. Levei o portátil para a mesa de jantar e liguei a pen que trouxera de casa de Coutinho. Tinha apenas uma pasta, «Férias de Natal». Lá dentro havia doze ficheiros:

Phu Ket 2011, Londres 2010, Nova Iorque 2009, Egito 2008, Cabo Verde 2007, Brasil 2006, Japão 2005, Vietname 2004, Califórnia 2003, Itália 2002, Praga 2001, St. Barth's 2000.

Comecei à cata de informações sobre os subornos de Coutinho no ficheiro de «Phu Ket», mas depois de hora e meia cheguei à conclusão de que só havia, neste e nos outros onze ficheiros, a habitual miscelânea de nos deixar a dormir em pé de retratos em pose e fotografias turísticas estilo postal ilustrado.

Só retive duas fotografias. A mais antiga tinha sido tirada no Japão em 2005 e mostrava a vítima inclinada sobre uma grande folha de papel azul, desferindo uma longa pincelada sobre a sua superfície. Devido à exposição lenta, o pincel de bambu tinha o aspeto de um leque desdo brando-se, e os olhos de Coutinho estavam tão intensamente focados no trabalho que, se a vida fosse uma banda desenhada, e não o que é, haveria dois raios laser a sair-lhe dos olhos.

A outra fotografia fora tirada em Trafalgar Square em 2010; Susana estava envolta num voluptuoso casaco de peles branco, com uma gola preta espetacularmente decotada. O seu sorriso ostensivo, de gatinha

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sensual, parecia demasiado ensaiado e falso. Pedro exibia um chapéu de feltro preto cingido por uma faixa verde-esmeralda e fumava um charuto gargantuesco. Teriam eles discutido antes de tirarem a fotografia?

Havia nos olhos dele uma cintilação de malícia efervescente. Tinham o ar de um AI Capone furioso e uma matrona armada em coelhinha da Playboy.

Se fora Sandi a tirar a fotografia, então, tinha um excelente olho para o macabro - uma Diane Arbus em botão. Muito provavelmente queria expor o que um casamento falhado fizera dos seus pais. Ou talvez tivesse descartado dezenas de outras oportunidades de documentar o declínio da sua família antes de se permitir tirar esta fotografia.

É possível que tivesse passado anos a fazer o melhor que podia para não quebrar o encanto.

Ouvi a chave do meu filho a rodar na fechadura enquanto eu observava uma versão de Coutinho e da mulher muito mais novos num refúgio à sombra de palmeiras em St. Barths, Era do Natal de 2000.

Sandra seria uma pequena Buda rechonchuda e Susana uma jovem mãe linda de morrer.

Nati entrou em casa aos tropeções, exatamente à meia-noite e vinte e um minutos e a cheirar ligeiramente a cerveja, mas não lhe disse nada por chegar tarde nem por possivelmente ter sido seduzido por uma Super Bock. Guiei-o até às escadas em espiral.

Louis Vuitton - disse ele quando começou a subir.

Como?

O designer de malas. O teu panda é dele. É um objeto de coleção.

Por isso, se puderes, fica com ele. Eu vendo-o por ti no eBay e dividimos o lucro a meias. Obrigado, fico com ele assim que os tipos do laboratório já não precisarem dele.

Seria possível que Sandra tivesse decidido dar cabo do seu peluche mais valioso como maneira de se certificar de que os pais iriam reparar até que ponto estava perturbada?

Quando disse a Nati que íamos visitar o meu irmão no dia seguinte e passar lá a noite, estava à espera de que ele refilasse, mas limitou-se a acenar com a mão a mostrar que tinha ouvido e continuou a subir em direção ao seu quarto. Adormeci pouco depois de voltar para a cama, mas acordei às quatro da manhã no quarto de Jorge. Estava sentado na espreguiçadeira para onde ele atirara as roupas sujas. Tinha em cima dos joelhos

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uma vela acesa no castiçal em forma de estrela que herdara da minha tia Olívia. O portátil estava no chão, a meu lado.

Na minha mão, G tinha desenhado um apertado círculo de estrelas protetoras à volta de duas penas e escrevera: «H - Nunca fez mal nenhum confirmar que estão sãos e salvos.»

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Capítulo 10

Recordo a primeira prova do meu pai como se uma porta se tivesse fechado com força atrás de mim no momento em que ele me arrancou da cama. De facto, era capaz de apostar que foi então que comecei a separar-me de mim próprio, se bem que Gabriel só me tenha escrito a sua primeira mensagem seis meses mais tarde. Da maneira como vejo as coisas, deve levar algum tempo a que uma segunda pessoa ganhe vida dentro de nós.

Foi num sábado, dia 4 de junho de 1978. Acordei no escuro, sentindo que me aferravam a boca pesadamente. Sem poder respirar, esbracejei e debati-me contra o que me parecia uma parede acolchoada.

O riso profundo do meu pai fez- me estremecer e senti a sua mão enorme largar-me. Sentei-me, respirando com sofreguidão.

A cabeça do meu pai inclinou-se para mim.

Tens de estar pronto para tudo, meu filho!

O seu sussurro esponjoso, embebido em rum, parecia-me o início de uma doença séria.

Sim, pai - respondi, ainda respirando a custo.

Ele acendeu a luz com um gesto rápido. Vestia uma T-shirt branca e uns jeans deslavados. Esticou os braços atrás das costas e inclinou-se para diante - um ritual matinal. Tinha aprendido ioga no tempo em que estudava Engenharia na universidade de Wisconsin. Ainda então continuava a fazer o pino antes do pequeno-almoço. A inversão do fluxo sanguíneo mantinha-o vigilante, dizia.

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Filho, nunca se sabe quem nos pode apanhar desprevenidos - explicava-me então como se isso fosse uma grande verdade protetora, mas o que dizia não fazia sentido; os nossos vizinhos mais próximos, os Johnsons, viviam a quase um quilómetro de distância e tinham oitenta e tal anos.

Eu fizera oito anos havia pouco, mas sabia já que faltava ao meu pai alguma coisa de importante, embora não fizesse ideia do que pudesse ser. Não era evidente - como o facto de Ernie não conseguir pronunciar o seu próprio nome, dizia «Eeenie», ou de a minha mãe passar o dia todo sem se vestir. A certa altura da minha infância, acabei por acreditar que, por mais tempo que vivesse, nunca viria a compreender tão pouco de qualquer pessoa ou de qualquer coisa como aquilo que compreendia do meu pai.

A cama do meu irmão estava vazia; o cobertor, no chão. Senti um aperto ao ver que ele tinha desaparecido e que a cama estava naquele estado - o género de pavor que nos dá volta às tripas, como quando percebemos que o professor nos vai chamar na aula e não sabemos a resposta ou nos esquecemos de fazer os trabalhos de casa.

Onde está o Ernie? - perguntei.

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À nossa espera. Vá lá, levanta-te! - disse ele, batendo na minha almofada.

Estou com muito sono - respondi, fazendo a minha voz soar sonolenta; havia alturas em que o meu pai podia mostrar-se calmo e compreensivo. Porém, se as minhas teorias sobre ele são corretas, tratava-se apenas de uma imitação do comportamento generoso que observava nos outros.

Talvez fosse essa a razão por que se casara com a minha mãe, no fundo; para ter alguém que pudesse estudar de perto - de maneira a perceber como se comportavam as pessoas normais. Posso facilmente imaginá-lo, por exemplo, a ensaiar o modo como havia de me sorrirem frente a um espelho, horas a fio, até atingir uma imitação perfeita da cintilante afeição nos olhos dela.

Toca a levantar, seu mandrião! - ordenou.

Enquanto passava as pernas para fora da cama para me levantar, a minha confusão parecia-me uma coisa viva, perseguindo a própria cauda. Na verdade, nunca obtive resposta às minhas perguntas mais importantes sobre como era possível que tudo fosse tão difícil.

Hoje penso que faltava ao meu pai a imaginação para sentir o que os outros sentiam. A minha mãe, Ernie e eu éramos para ele meros

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adereços de palco - todos o eram -, e a única razão por que por vezes nos achava quase tão interessantes como a sua coleção de discos, ou o seu velho Plymouth, era porque podia fazer com que nós - e não essas coisas - chorássemos ou sorríssemos ou lhe implorássemos que parasse.

Hank, não podes estar assim com tanto sono - disse o meu pai.

Dormiste pelo menos oito horas. - Eu percebia pelos olhos dele, arregalados e dardejantes, como se estivesse lançado num plano secreto, que tinha tomado comprimidos para aguentar a ressaca.

Nessa altura, já compreendera que o meu pai vivia num mundo de «nós-contra-eles», embora então não o pudesse exprimir assim. E levei anos a compreender que eu fazia parte do «eles», apesar de me dizer que eu era um de «nós».

Soprava um vento gélido que atravessava a janela, e por isso o meu pai atirou-me o casaco de malha. A sorte dele era que Ernie ainda não tinha idade de ir para a escola; caso contrário, o professor muito provavelmente haveria de notar o que se estava a passar e não seria fácil convencê-lo de que eu tinha ferido o meu irmão a brincar aos polícias e ladrões. No meio da «balbúrdia», como disse o meu pai quando fomos ao hospital. Se bem que, agora que penso nisso, o momento escolhido pode não ter nada a ver com a sorte. Deve ter calculado que se queria roubar-nos, a mim e a Ernie, alguma coisa que nunca mais poderia ser-nos restituída tinha de ser antes de o filho mais novo começar a ir para a escola.

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Quem pensa que não há pessoas capazes de planear com anos de antecedência como destruir uma vida, nunca teve de aprender o que eu tentei durante muito tempo esquecer. Teve sorte. Os movimentos do meu pai eram demasiado determinados para que estivesse ainda bêbado. Os copos de bar em bar em Gunnison tinham-se desvanecido com o que dormira no sofá da sala.

Estou convencido de que tomava anfetaminas para curar as ressacas. Pode até acontecer que tenha sido um pioneiro no uso das metanfetaminas; certa vez, contou-me que um dos músicos de Patsy Cline tomava isso durante as digressões, embora pudesse estar a inventar.

E pode muito bem ser que eu esteja a querer que os químicos expliquem algo muitíssimo mais complexo.

O meu relógio marcava seis e dez da manhã. Enquanto abotoava o casaco de malha, reparei que a meia-lua andava a jogar às escondidas

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com o lusco-fusco - emprestando à névoa do amanhecer um branco fantasmagórico e fazendo com que as montanhas de um púrpura quase negro parecessem macias e como que de algodão. Imaginei que, se conseguisse sobreviver à escuridão, o sol que surgisse de trás das colinas a leste haveria de fazer com que fosse impossível alguma coisa acabar mal.

Talvez todas as crianças nasçam com uma crença no deus-Sol. Pode ser até que tenham sido as crianças a criá-lo.

O meu pai conduziu-me escadas abaixo. Eu vinha em calças de pijama e pantufas, e tinha também posto o meu cachecol preferido, por isso, as minhas recordações dessa manhã parecem surgir-me através do filtro de um cheiro feito de lã e comichão. E através do castanho-escuro do cachecol, mesmo que isso não faça muito sentido.

Aonde vamos? - perguntei ao meu pai.

Aguenta os cavais! - respondeu, e, ao chegarmos ao fundo das escadas, segurou-me os ombros e fitou-me com um olhar amável.

É assim, Hank. Escondi o Ernie. E tu tens de o encontrar. É um novo jogo que vamos passar a jogar a partir de agora.

Entrou na cozinha, abriu o frigorífico e espreitou lá para dentro.

Os seus bíceps esticavam o tecido das mangas da T-shirt. A lanterna chinesa redonda, oscilando por cima da mesa da cozinha, derramava uma luz avermelhada, subaquática, à sua volta e dava-lhe às costas um halo, como se estivesse em chamas.

O meu pai usava muitas vezes frases feitas como «aguenta os cavais». Pode ser que o que quer que lhe faltava o tornasse também preguiçoso em relação ao modo como falava.

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Ouvia-se a música riscada de um disco antigo na aparelhagem da sala. Uma pista, haveria eu de compreender depois. Ele deixava sempre pistas quando nos punha à prova, mas inicialmente eu não era muito bom a decifrá-las.

Quem está a cantar? - perguntou-me.

As Andrews Sisters - disparei em resposta com uma presteza exibicionista. - E a canção é a Elmer's Tune.

Lindo menino. E de que ano é a Elmer's Tune?

Não tenho a certeza da resposta que dei, mas estava errada, e o meu pai ficou muito desapontado, pois gostava que eu memorizasse todos os pormenores sobre os seus velhos discos.

Ouvindo o ritmo saltitante das Andrews Sisters e observando o meu pai a espreitar mais uma vez para dentro do frigorífico, senti-me

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tenso com a necessidade de fugir. Mas, mesmo que conseguisse chegar à estrada e apanhar uma boleia até Denver, não serviria de nada, pois Ernie ficaria então sozinho e entregue ao meu pai. E, onde estivesse Ernie, eu estava também.

Há quem diga que não podemos estar em dois lugares ao mesmo tempo, mas a minha experiência é diferente. Na verdade, talvez seja esse o principal sintoma do que quer que haja de errado em mim.

OK, basta de engonhar, são horas de ires procurar o teu irmão! disse ele num tom brusco.

Aproximei-me, esforçando-me por parecer realmente pequeno e inofensivo.

Porque o escondeste, papá?

As costas da mão dele acertaram-me em cheio na cara.

Ai! – explodi. – Isso dói!

Cala o bico! Não estou a brincar. Se não o encontrares, vou fazer uma coisa que mais ninguém conseguirá fazer melhor, e tu, meu amigo, serás o responsável.

Os seus lábios eram uma fenda de fúria. Percebi que estava à espera de que eu lhe perguntasse o que faria a Ernie, e eu não queria perguntar, mas sabia que, se não o fizesse, ia ficar ainda mais furioso. Por isso, fiz-lhe a pergunta.

Vou cortar-lhe um dos polegares! - respondeu o meu pai com uma voz de satisfação.

Não me lembro do que lhe respondi. Acho que fiquei espantado de mais para dizer alguma coisa.

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Disse ao Ernie que seria o polegar esquerdo - acrescentou -, mas pode ser que lhe faça uma surpresa e lhe corte o direito. Ou os dois!

O meu pai nunca nos fizera nada que exigisse raios X ou uma operação, se bem que a minha mãe tenha tido de dar entrada nas urgências do hospital de Grand Junction quando ele lhe partiu o nariz. Enquanto fiquei ali especado a perguntar-me se devia acreditar nele, vi-me a correr sem parar até Crawford. Iria ao Black Cat Café e comeria um daqueles bolos de canela peganhentos, escondido na casa de banho, que cheirava a alfazema e tinha um papel de parede com desenhos de botas de cowboy.

Sabia que se pudesse viver na casa de banho do Black Cat Café seria feliz para o resto da vida. O meu pai tirou do frigorífico uma embalagem de sumo de laranja Tropicana e sentou-se à mesa da cozinha com um longo suspiro. Bebeu um

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grande gole diretamente da embalagem e limpou a boca com a mão.

Olhando para o relógio, disse:

OK, Hank, tens exatamente dois minutos para encontrar o teu irmão. A começar... agora!

Os meus pensamentos dispersaram-se em centenas de diferentes direções, tentando identificar o propósito do que ele queria que eu fizesse.

Abrindo a faca de mato, pôs-se a tratar das unhas. Limpava aos jeans a sujidade que ia tirando.

A faca tinha um cabo de madrepérola que nos dava vontade de o levantar contra a luz para o ver cintilar. Comprara-a numa loja em Grand Junction com espingardas nas paredes.

Em junho de 1978, o meu pai tinha quarenta e três anos, era esguio e forte como uma vedeta de futebol americano, de cabelo castanho eriçado, curto, como os espinhos de um ouriço-cacheiro. Usava quase sempre um boné de basebol dos Milwaukee Braves, mesmo quando dormitava no sofá. Dizia que era uma peça de coleção, porque pouco depois de ele o ter comprado os Braves haviam -se mudado para Atlanta.

Tinha um grande sorriso cordial - e havia nele também algo de viril e assertivo, como num polícia ou num guarda-florestal. Era frequente ir para os copos com os amigos do trabalho e por vezes vinham para nossa casa, mas nunca gostei do cheiro a cerveja que emanava deles nem do modo como me tratavam por «puto» e por isso saía sempre que apareciam. Recebíamos também uma data de telefonemas de mulheres que queriam falar com ele, mas nunca vieram a nossa casa. Na altura, não achava esquisito que elas ligassem; pensava que eram colegas de trabalho do meu pai na serração.

O meu pai fumava todas as noites um charuto a seguir ao jantar.

Não me importava com o fumo asfixiante que espalhava por toda a casa, mas quando mais tarde ele nos punha na cama, com aqueles dedos a tresandar a tabaco, fechava os olhos o mais que podia e imaginava estar noutro sítio, bem longe dali.

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Já perdeste trinta segundos, Hank - disse o meu pai. - Vá lá, meu filho, vai ver se descobres o teu irmão.

Desatou a cantar acompanhando as Andrew's Sisters. Tinha uma bela voz de tenor que me deixava orgulhoso. Sempre que me pedia que cantasse com ele, eu sentia que finalmente aterrara no planeta certo depois de uma data de falsas aterragens noutros errados. O meu pai dizia

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que teria entrado para o coro de Patsy Cline se ela não tivesse morrido num desastre de avião. Às vezes chegava a contar isso aos turistas que encontrávamos na cidade. Dizia-me que eu devia tentar ser cantor quando fosse crescido e formar um duo com Ernie, como os Everly Brothers.

O que quer que eu faça, afinal, pai? - perguntei.

Ele apontou a faca para mim.

Que cales o bico e encontres o teu irmão!

Fui ver nos armários da cozinha. E depois na arrecadação das vassouras.

Estás tão frio que os teus pés se estão a transformar em blocos de gelo! - disse ele, balançando nas duas pernas de trás da cadeira, com um, sorrisinho de satisfação como se estivesse a ganhar algum concurso.

Dirigi-me para a sala. Procurei por trás das duas poltronas, por baixo do sofá e no meio das dobras brilhantes das cortinas amarelas que a minha mãe comprara por terem, como ela dizia, «uma cor muito alegre».

Outra coisa que só compreendi demasiado tarde é que alguém comprar cortinas para se alegrar pode ser muito mau sinal. Pode até querer dizer que não irá viver muito mais tempo. Acabei por sair de casa, enfiando- me por baixo do alpendre. O solo era húmido e tinha um cheiro sigiloso, como se fosse possível alguém esconder-se ali durante muito tempo sem ser encontrado. «Ernie, estás aí?», sussurrei, porque o espaço entre o chão e as ripas de madeira se estendia até bastante longe e ficava tão escuro como o nosso armário quando lá nos fechávamos. Estremeci, não porque tivesse frio, mas porque uma vez eu e Ernie tínhamos visto nesse mesmo sítio uma enorme cobra castanha que bem podia ser uma cascavel.

Nenhuma resposta. Chamei por ele mais umas quantas vezes.

Disse até «Sou eu, o Hank», embora depois me parecesse estúpido tê-lo dito. Disse-lhe que descobrira uma maneira de nos livrarmos deste jogo sem que lhe acontecesse nada de mal, mas a verdade é que não tinha ideia nenhuma do que estava a fazer.

Não ouvi resposta e então, num súbito palpite, corri à volta da garagem. Quase nesse mesmo instante, avistei Roxanne, a gata de peluche de Ernie, presa na janela do Plymouth do meu pai. Era uma gata azul, com missangas pretas a servir de olhos, e Ernie tinha-lhe desenhado uns grandes lábios vermelhos com uma caneta de feltro.

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O focinho redondo, cheio, espreitava para fora, como se estivesse a tentar captar a minha atenção.

Ao contrário do que pensara, Ernie não estava no carro. Nem por baixo dele. Talvez estivesse num dos caixotes castanhos de arrumação.

Calculei que o tempo se esgotava e por isso fui a correr ter com o meu pai.

Tem de estar na garagem! - anunciei, convencido de que a iminência de o encontrar me valeria mais um minuto ou dois.

Porque achas isso, meu filho? - perguntou o meu pai.

Mostrei-lhe Roxanne.

Estás a desiludir-me. Podes ser muito estúpido, sabias? E o teu tempo acabou há vinte segundos, de qualquer maneira.

Não é justo - protestei. - Devias dar-me mais um minuto por estar quase a encontrá-lo!

Pela maneira como seguiu, passando por mim sem me ligar, percebi que Ernie e eu estávamos metidos num grande sarilho. Avançava de peito inchado como quando se preparava para dar uma lição à minha mãe, que era o que ele dizia quando a espancava.

Corri até ele.

E se fôssemos tomar o pequeno-almoço? Estou cheio de fome.

Empurrou-me para o lado e abriu o armário com a parte da frente em cana entrançada onde guardava a coleção de discos de 78 rotações.

Ernie estava lá enfiado, acocorado. O pai tinha-o amordaçado e atara-lhe as mãos.

Ao ver o meu irmão todo manietado e assim agachado, senti que alguma coisa se desprendia no meu peito - uma coisa importante. Por vezes, quando hoje penso nisso, julgo que era um sinal de que o meu mundo estava prestes a mudar para pior e nunca mais seria o mesmo. Quantas vezes terei perguntado a mim próprio se o meu pai pretendia realmente ferir tão gravemente Ernie? Talvez as drogas que tomava para as ressacas o levassem a ver tudo o que nos fazia como um longo e interminável jogo de competição e forçar-me a procurar Ernie não passasse de uma pequena parte da sua estratégia para atingir uma vitória definitiva. É muito possível que nem ele conhecesse as suas próprias intenções.

Gostaria de pensar que o meu pai compreendeu mais tarde que fora longe de mais naquela ocasião e que lamentava o que tinha feito, mas tenho a certeza de que isso é só porque gostaria de que ele fosse

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como as outras pessoas - e alguém de que pudesse gostar sem me envergonhar.

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O olhar de Ernie era aterrorizado. Mas não gemia nem tentava gritar. Era o que mais me assustava: o seu silêncio. Tinha apenas quatro anos e já aprendera que era melhor não soltar um pio, mesmo se estivessem para lhe cortar um polegar.

Esforço-me por não ver demasiadas vezes a imagem de Ernie agachado no armário do meu pai. Sobretudo, tento não me ver na posição dele. Apesar do que dizem os psicólogos nos programas de televisão, reviver certas memórias não nos faz bem absolutamente nenhum. Ernie apertava os dois polegares dentro dos punhos. Atraí a atenção dele com um aceno da mão e tentei dizer-lhe com o olhar que ia fazer com que o pai ficasse de tal modo zangado comigo que se esqueceria do resto.,

O Ernie está muito assustado, papá - disse eu, para ganhar tempo.

Pois, meu filho, claro que está! - retorquiu no tom de alguém feliz com o sucesso alcançado.

Será que admirava realmente a sua obra, ou assim soava a sua voz aos ouvidos de uma criança que aprendia a odiar?

E também deve estar cheio de fome sem o pequeno-almoço disse eu.

Dei um passo para junto do meu irmão, depois outro e, como o meu pai não me deteve, avancei direito a Ernie para me ajoelhar junto a ele e o desatar. Rezei para que o meu pai me agarrasse a mim, se acaso ficasse tão furioso que não conseguisse conter-se de fazer mal a um de nós. Mas esperava que não me partisse o braço ou a perna, porque senão não poderia jogar basebol o verão inteiro.

Comecei a desfazer o nó da mordaça na boca de Ernie. Era feita da mesma corda de nylon que o meu pai usava para atar os feijões e os tomates da horta.

Estou aqui, Ernie - sussurrei, e dei-lhe um apertão no braço para ele saber que eu não me iria embora.

Mas tocar-lhe foi afinal a coisa que não devia ter feito; desatou a tremer e a gemer como se tivesse caído num rio glacial através do gelo.

Merda! - rosnou o meu pai, e agarrou-me pelos cabelos, puxando-me para trás com tal força que fui de encontro ao sofá. Senti um gosto a sangue nos lábios quando me pus de joelhos.

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Quando o meu pai ergueu a faca de mato, a sala pareceu tornar-se mais escura à minha volta. Deixa-o em paz! - gritei.

Terá a minha mãe ouvido o meu grito? Era impossível não o ter ouvido. Hoje suspeito de que ela estava à escuta à porta do quarto, demasiado atemorizada para soltar um pio e demasiado entorpecida pelo Valium para descer as escadas e nos ajudar, porque, minutos mais tarde, quando as subi a correr e lhe disse que tínhamos de ir imediatamente para o hospital, dei com ela sentada na cama já vestida e os olhos tão apagados que compreendi que devia ter ouvido tudo o que se tinha passado.

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Cerca de um ano mais tarde, quando fiquei em casa com gripe e não fui à escola, confessou-me que também ela vivia aterrorizada com o meu pai. Não sei bem porque me terá contado isso. Creio que eu devia suspeitar de que ela tinha medo dele depois das lições que ele lhe dava, mas as suas palavras deixaram-me muito chocado e depois ficaram a pesar-me durante várias semanas como qualquer coisa estragada dentro de mim.

Hoje vejo que devia ter implorado ao meu pai que me levasse a mim em vez de Ernie. Pode ser que tudo tivesse sido muito diferente.

Mas talvez a verdade seja que eu estava demasiado aterrorizado para tomar o lugar do meu irmão. A não ser assim, que poderá explicar ter passado mais de trinta anos envergonhado com o modo como me portei nesse dia?

O meu pai agarrou Ernie pelo braço e forçou-o a pôr-se de pé. Cortou a mordaça e as cordas à volta dos pulsos. O meu irmão começou aos guinchos quando ele o agarrou pelo braço e o levantou no ar, e torcia-se e dava tais pontapés que o pai voltou a pô-lo no chão e lhe deu uma forte pancada na nuca.

Quando me levantei, um faiscar metálico relampejou aos meus olhos como um jato de ácido, e havia sangue - muito sangue - correndo pelo lado da cabeça de Ernie e pela sua cara.

O meu pai erguia na mão o que tinha cortado e disse:

Estás a ver o que fui obrigado a fazer por tua causa, Hank! Estás a ver a que ponto me obrigaste a chegar! Há qualquer coisa de mau em ti, meu filho!

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Capítulo 11

Acordei no sábado às seis da manhã. Apesar de não ter dormido mais do que algumas horas, senti-me revigorado, enérgico e ansioso pelo silêncio solitário da sala de estar. Retirando o bloco de notas da gaveta de roupa interior, deslizei sem ruído escadas abaixo através da frágil escuridão. A mesa do pequeno-almoço acolheu-me para o interior de um universo muito para além do tiquetaque de qualquer relógio. Enquanto sorvia o café, agarrei-me com força à minha ilusão favorita de que todos os que amava estavam em segurança. E, no interior do apertado halo tépido formado pelo candeeiro por cima de mim, pus-me a trabalhar no meu projeto secreto: «Haiku de uma infância no Colorado.» Apenas Ernie conhecia a sua existência.

Primavera, colibri

Zumbindo entre dois irmãos

Pêndulo de rubi.

Um homem que sabe não estar a ser observado pode escrever o que quiser, mesmo arriscando parecer tolo. Pode viver nesta parte da sua memória, onde as coisas boas foram guardadas e protegidas, e escrever notas crípticas de vinte e uma sílabas exatas para o rapaz que já foi.

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Quando ouvi os guinchos de Ana ao abrir a torneira do duche, subi os degraus dois a dois, louco por vê-la. Porém, ela esquivou-se, afastando-se de mim quando tentei beijá-la. Com a água a escaldar-lhe as costas, encolheu os ombros e disse num tom ofendido:

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Ai, agora vais ser simpático? - Os seus olhos manifestavam uma tal tristeza que estendi a mão na sua direção, mas ela recusou-a com uma palmada.

Que é que eu fiz? - perguntei desesperado.

Estás a dizer que não te lembras? - retorquiu, incrédula.

Devia estar meio a dormir. Tive um dia difícil ontem e...

Não quero ouvir! - interrompeu ela. O queixo tremia-lhe.

O bater do coração fazia-me vacilar de um lado para outro. A água escorria-lhe pelos ombros e colava-lhe o cabelo ao pescoço. Decidi não fazer nenhum movimento; haveria de sobreviver a esta querela, como já acontecera tantas outras vezes durante os primeiros anos de casamento, quando G tentara sabotar a nossa relação. Ao fim de algum tempo, ela voltou a cara para mim e pegou-me na mão. Havia tristeza nos seus olhos, mas também perdão.

Bem sabes como sou quando estou meio a dormir - disse eu.

Digo e faço coisas de que não me lembro pela manhã. É uma forma de sonambulismo. A minha mãe tinha a mesma coisa. Agora diz-me o que fiz eu, por favor.

Estavas a ver fotografias no teu portátil. Quando te perguntei quem eram as pessoas das fotografias, disseste-me: «Mete-te na merda da tua vida!»

Depois de lhe ter pedido desculpa, ela deixou que a beijasse. Falei-lhe na pen da vítima do crime e em como aquele caso estava a lançar a confusão na minha cabeça. Ela assentiu com um ar tão entristecido que eu entrei no duche de boxers e T-shirt e a abracei.

Hank, que estás a fazer? - perguntou ela, chocada.

Não sei bem - respondi, rindo.

A água quente a envolver-me despiu-me de inibições. Comprimi o meu desejo contra a sua anca e sussurrei-lhe o que pretendia. Mal a penetrei, Jorge chamou por nós. Recorrendo a algumas hábeis contorções, Ana conseguiu passar a cabeça pela ponta da cortina do duche.

Espera um minuto, querido! - gritou ela.

Jorge entrou na casa de banho daí a momentos.

Tenho fome! - guinchou.

Vai comer um prato de cereais, querido - respondeu-lhe ela.

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Queria dizer-lhe mais alguma coisa, mas a minha incessante e lenta persistência fê-la estremecer. Levantando-a o mais silenciosamente que

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podia, passei as pernas dela à minha volta e encostei-a à parede. Ela soltou um gemido, o que me pareceu um triunfo.

Que foi, mamã? - perguntou Jorge numa voz preocupada.

Ana estava já então de olhos semicerrados e não podia responder.

Está tudo bem - disse eu. - A mamã e eu estamos só a tomar um duche.

Ana puxou-me para dentro de si o mais profundamente que eu conseguia. O perfume da sua nuca lembrava-me lã natural. Mais ninguém tinha o cheiro maravilhoso de Ana.

Papá? - continuou Jorge.

Sim.

Tenho fome.

Logo que acabarmos, vou fazer-te o pequeno-almoço.

Quero panquecas!

Combinado! Agora, deixa-nos sozinhos alguns minutos, querido.

Refilando ruidosamente, saiu da casa de banho a bater os pés. Porém, a força determinada do seu mau humor apenas servia para me encher de admiração por ele - e também para mudar o rumo dos meus pensamentos enquanto fazia amor; sentia um desejo tão intenso de me vir dentro de Ana que seria capaz de fazer mais um filho - ali mesmo, naquele momento.

A seguir, fomos ocupar-nos de Jorge, mas ele já tinha voltado a adormecer. Com o queixo encostado ao ombro de Ana, olhei pela janela, admirando o chilrear exuberante das andorinhas e a névoa rosada que começava a pintar as velhas casas do Largo de Santa Marinha de cores delicadas. Lisboa era sagrada àquela hora, e o seu encanto degradado, emaciado, dava-me a sensação de ter entrado num conto de fadas.

Seria mesmo pena deixar que os nossos problemas económicos destruíssem tudo isto - disse eu, e, num momento de loucura passageira, pensei que, antes de as condições piorarem, e mais pessoas começarem a emigrar, devia convidar toda a gente que vivia ali no largo para um chá e um bolo.

Confessara-lhe que talvez quisesse ter outro filho, enquanto nos vestíamos. E, agora, ela reagia, dizendo:

Não seria justo trazer ao mundo outro filho em Portugal. Além do mais, a população mundial já é excessiva.

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Só que o Ernie não vai ter filhos. Nós podemos ter três e a média da minha família será apenas de um e meio.

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Ela deu-me um beijo na cara, a sua maneira de dizer que não.

Não nos podemos dar a esse luxo - disse ela.

Agarrei-lhe as duas mãos.

O Ernie agora está a tomar conta de mais dois jardins, por isso deixou de recorrer às nossas poupanças. A partir de agora vamos ficar bem.

De volta ao andar de baixo, sentei-me de pernas cruzadas no sofá, em silêncio e no quentinho, a sonhar com um novo bebé nos braços.

Impaciente por partilhar estas boas emoções, liguei a Ernie e disse-lhe que à tarde ia a casa dele com os miúdos - talvez até para o almoço se conseguisse acabar a tempo o que tinha para fazer.

A sério... hoje? - perguntou, entusiasmado.

Certa vez, Ernie e eu tínhamos visto um esquilo disparar como um raio por um plátano acima, cerca de vinte metros até ao topo, com uma amêndoa que lhe havíamos dado, eufórico com a sua boa sorte mas também temendo que algum rival lha pudesse roubar. Aquela pequena bola de pelo cinzento, balançando-se num ramo delgado, alerta contra possíveis ladrões, era tal qual Ernie quando recebia uma boa notícia.

Sim, mas a Ana não pode ir. Está com muito trabalho na galeria... imensos turistas de verão. Que pena. E quando é que vocês vêm? - Depois, para suavizar a sua curiosidade, disse: - Mas não quero obrigá-los a marcar nenhuma hora.

Espero que seja possível sairmos por volta do meio-dia, e, nesse caso-estaríamos aí por volta das-duas menos um quarto. Envio-te um SMS quando estivermos a sair.

Silêncio. O meu irmão estava a pensar em tudo o que teria de fazer antes de chegarmos: esconder das crianças os medicamentos que andava a tomar, verificar as fechaduras das portas, ir apanhar verduras...

Apressá-lo só iria deixá-lo nervoso, por isso atravessei a sala até à janela que dava para o largo. Lisa, a miudita de cabelo escuro que vivia no primeiro andar do nosso prédio, andava a passear o gato persa branco da família com uma trela.

Rico, achas que o Jorge e o Nati comiam beringela com arroz e talvez uma salada?

Comem qualquer coisa que decidas fazer. És um cozinheiro excelente.

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Têm de ser um bocadinho flexíveis.

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Ernie, não achas que os miúdos já sabem o género de comida que aí tens?

Desculpa. É dos nervos. Ontem deixaste-me assustado. Podemos voltar ao princípio?

Era o que eu e Ernie costumávamos perguntar sempre que o outro se irritava.

Tudo bem - concordei.

Fora a tia Olívia quem inventara a técnica de recomeçar do princípio as conversas. Não estava preparada para cuidar de um miúdo descontrolado de catorze anos e do seu irmão morbidamente calmo. Aprendera a dizer, de cada vez que a levávamos às lágrimas: «Podemos começar, do princípio?» O mais curioso é que daí a um ano ou dois Ernie e eu tínhamos desenvolvido a capacidade de reiniciar as nossas emoções sempre que ela nos pedia, como se por obra de alguma magia que tivesse pronunciado.

Talvez todos nós precisemos de pelo menos um mágico na nossa vida. Nós tivemos a tia Olívia. Que tremenda sorte a nossa por ela se ter mostrado tão pronta a receber-nos em sua casa!

Ah, preciso de uma coisa! - exclamou Ernie. - Depois de virares para a Quinta da Vidigueira, vais ver uma quinta abandonada com umas romãzeiras. Apanha-me algumas flores. Se não te importares, claro.

Claro que não me importo.

Sabes, Rico, as flores de romãzeira são exatamente da cor do pôr-do-sol no Colorado! - Num sussurro, acrescentou: - Espero que a Ana não fique zangada por te roubar por uma noite. Se ela se zangar, não precisas de dormir cá.

Ernie precisava de que eu soubesse que ele era ambivalente em relação a ficarmos lá ou não. E ao mesmo tempo estava a pôr-me à prova.

Uma parte dele desejava que eu o desapontasse - para lhe provar a inutilidade de querer fazer parte da nossa família.

A Ana fica mas é contentíssima por se ver livre de nós um dia por semana - disse-lhe eu.

Riu-se.

OK, então olha para os dois lados antes de atravessares a rua.

Depois de ter desligado, servi-me de mais café e voltei para a mesa do pequeno-almoço. Estava a pensar no belo par de patetas que eu e Ernie éramos.

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Daí a alguns minutos telefonou um jornalista da TSF. Eram ainda oito e dez.

Quem é que lhe deu o meu número? - perguntei.

Um amigo.

Que amigo?

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Ele ignorou a minha pergunta e disse-me que precisava apenas de cinco minutos do meu tempo para falar no assassinato de Coutinho.

Perturbado, respondi-lhe numa voz mais dura do que era minha intenção que o nosso Serviço de Relações Públicas lhe daria muito mais do que cinco minutos e desliguei.

Quando ouvi Ana a descer as escadas, escondi o bloco de haikus debaixo do rabo. Nestes momentos, sentia que tinha mais segredos do que provavelmente deveria ter.

Enquanto a minha mulher engolia à pressa os seus flocos de aveia com mirtilos, Mesquita, o subchefe da Polícia Judiciária, telefonou.

Bom dia, Sr. inspetor-chefe - começou. - Já viu os jornais de hoje? - O seu tom era falsamente animado.

Não, chefe, desculpe. Para dizer a verdade, acordei há pouco.

Ana fez uma careta ao perceber que estava ao telefone com um superior.

Diga-me uma coisa, alguma vez o penduraram pelos tomates? - perguntou Mesquita.

Não, mas calculo que era coisa para me dar cabo do dia.

Já me tinham dito que o senhor era capaz de tentar ter piadinha.

É um defeito que tenho, chefe. Além disso, a minha mulher está aqui ao meu lado e eu gosto de a ter divertida. – Acenei a Ana e ela acenou em resposta.

Com o movimento dos lábios, Ana perguntou:

Quem é?

Mesquita - respondi do mesmo modo.

Ana pegou na caixa dos cereais e precipitou-se para a sala. Detestava ouvir chamadas de trabalho porque achava que eu cedia mesmo aos pedidos mais extravagantes dos meus chefes.

Vá comprar o Correio da Manhã - disse Mesquita - e depois ligue-me.

Tinha dois jornalistas à minha espera à porta do prédio, um da Visão e outro da Antena 2. Assediaram-me com perguntas o caminho todo até ao Largo da Graça. Parecia que os meus quinze minutos de

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fama tinham finalmente chegado, mas, para meu espanto, descobri que já não os ambicionava.

Comprei o Correio da Manhã e fui tomar um café à Concha, o meu poiso habitual. O artigo sobre Coutinho vinha na segunda página e contava que fora morto a tiro, amordaçado e abandonado agonizante na sua sala de estar.

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Podia apostar que a fuga de informação partira de Vazo Liguei para Mesquita para lhe dizer que ia ver o que se passava e que depois lhe voltava a ligar.

Como a resposta não o satisfizesse, disse:

Estou a ser pressionado para escolher outra pessoa para investigar o caso.

Aquela informação foi como uma estalada na cara. Recuando vacilante em imaginação, respondi.

Não me parece que faça muito sentido, chefe. Recolhemos uma data de provas ontem e estamos ainda a...

Não, não está a perceber, Monroe - interrompeu ele. - Estou a ser pressionado para arranjar alguém mais facilmente... digamos, influenciável. Não é que eles cheguem a dizer isso. Limitam-se a insinuar que você é um tipo demasiado solitário e que ouve vozes e que...

Realmente não me parece que...

Esteja calado e deixe-me falar! Oiça, quero que faça o que for preciso para resolver o caso rapidamente. O que for preciso! Compreende?

Estaria ele a sugerir que eu me metesse por vias ilegais apenas um dia depois de me ter dito para fazer tudo como mandam as regras? Ia perguntar-lhe o que queria ele dizer ao certo, mas desligou sem mais.

Talvez pela milésima vez desde que era polícia, desejei poder falar com os meus colegas em inglês, pois nessa língua era de longe melhor a perceber os subentendidos.

Em casa, encontrei Jorge ajoelhado no chão da sala, ainda de pijama, a meio metro da televisão, a cara iluminada pelo branco azulado intermitente do ecrã. Ana estava à secretária, concentrada nos seus e-mails.

Enquanto preparava as panquecas com morango para o meu filho - o seu prato favorito - pus-me a imaginar uma armadilha para a pessoa responsável pela fuga de informação para a imprensa. Comecei por telefonar a Vaz.

Hoje é sábado, Monroe - disse ele, num tom rabugento, como se eu não o soubesse.

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Expliquei-lhe que o portátil de Coutinho continha pormenores sobre os subornos que tinha pago recentemente a um industrial de Madrid relacionado com o ministro do Interior espanhol. O pagamento fora feito para conseguir um contrato para a construção de um centro comercial perto de Salamanca. Eu tinha sido avisado de que havia membros do governo espanhol que poderiam tentar desviar o curso da nossa investigação.

E que raio tem tudo isso a ver comigo? - perguntou ele.

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A nossa cozinha dá para a sala, e eu estava a ver o meu filho, de gatas, a imitar um leão de um desenho animado, e achei isso de tal modo mais fascinante do que Vaz que pensei: «Já perdi tempo de mais com esta besta estes anos todos.»

O senhor é bastante desagradável- disse-lhe, para que constasse.

Porque não vai mas é para a América, que é a sua terra? - replicou em resposta.

Até que enfim que o disse! - exclamei.

Você pensa que somos todos um bando de parolos incompetentes aqui em Portugal. Acha que o único sítio avançado no mundo é lá de onde você veio!

O senhor não deve estar mesmo a dizer que eu acho que o interior do Colorado era um sítio desenvolvido para um miúdo! - Irrompi numa risada sem esperar pela resposta.

Por essa altura, a panqueca estava feita e deitei-a num prato. Jorge e Ana fitavam-me com uma expressão interrogativa por eu me estar a rir.

O que raio tem tanta piada? – perguntou Vaz.

Respirei fundo algumas vezes, para me acalmar.

Apesar do que lhe disseram nas reuniões do Comité Central, não tive responsabilidade nenhuma no golpe de estado no Chile nem na eleição do George W Bush uma vez e meia.

De que está você a falar?

Quando pus o prato do pequeno-almoço no chão em frente do meu filho, ele roçou a cabeça na minha perna, como um filhote de leão agradecido. Respondi a Vaz:

Não lancei nenhuma bomba sobre o palácio presidencial de Allende. Nem sequer sei pilotar um avião. A sua informação interna sobre mim está toda errada. Embora possa reconhecer que não ligo muito ao que a sobrinha dele escreve.

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A sobrinha dele?

Isabel Allende. A Casa dos Espíritos. O meu irmão achou-o maravilhoso, mas o realismo mágico tem em mim o efeito de um comprimido para dormir.

Estava à espera de um protesto indignado, ou talvez de uma pequena risada, hesitante, mas Vaz desligou sem mais uma palavra. Se ao menos me desprezasse pelo que eu era e não pelo que não era.

Jorge farejava os morangos à volta do prato com o seu focinho imaginário enquanto os ia mordiscando. Quando lhe acenei, soltou um rugido feroz, o que, dadas as circunstâncias, me pareceu reconfortante.

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A seguir liguei para Fonseca e contei-lhe a mesma versão, atribuindo a nacionalidade francesa ao industrial corrupto. O projeto de construção passou a ser um prédio de escritórios em Toulouse. Em cada chamada que ia fazendo, ia dando uma nacionalidade diferente ao alvo de corrupção e situava o local de construção noutro país.

No andar de cima, enquanto me vestia, Nati veio ter comigo, sorvendo uma caneca de chá de hortelã. Sentia-me otimista em relação ao plano para apanhar o bufo da minha equipa e dei-lhe um beijo rápido na cara. Como o apanhei de surpresa, Nati não rezingou nem se esquivou.

Consegues tornar um ficheiro invisível? - perguntei-lhe enquanto enfiava os jeans.

Seja mais claro, inspetor-chefe.

Estou a pesquisar a pen do tipo que foi assassinado. Preciso de saber se é possível criar um ficheiro que ninguém veja a não ser que introduza uma password ou saiba exatamente o que procurar.

Deve ser, mas é melhor perguntares a um especialista em informática. - Nati bocejou. - Ouve, papá, a que horas vamos a casa do tio Ernesto?

Ultimamente, Nati achava muito divertido tratar Ernie pelo seu nome português, provavelmente porque o meu irmão se vestia como um cantor de música country americano e parecia muito mais um Ernie.

Por volta do meio-dia - respondi. - E leva uma muda de roupa.

Não escapo a ter de dormir lá, pois não?

Não, o teu tio está a contar contigo. - Fixei-o atentamente. - Acredites ou não, ele acha que tu ainda és um rapazinho bonzinho que seria incapaz de beber um gole de cerveja sem primeiro pedir autorização ao seu querido pai.

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Nati fez a sua carinha de anjo a que nós chamávamos cara de tartaruga. Não é que eu fosse nessa.

Lembra-me de termos uma conversa sobre bebida a caminho de casa do teu tio - disse-lhe eu. Podes dispensar-me o sermão - retorquiu, franzindo o sobrolho.

Só bebi um gole.

Era por isso que cheiravas a uma strip joint em Durango?

O que é uma strip joint?

Um sítio onde as mulheres são pagas para se despirem e dançarem para os clientes.

Deve ser divertido - disse ele, fazendo o som de quem escarra.

Nati, há uma data de pessoas no mundo com uma vida chata.

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Quer dizer que costumavas ir a strip joints em Durango?

Por mais estranho que te pareça, tive uma vida antes de tu nasceres.

Pois, só que nunca me contaste como era - contrapôs, num tom ressentido. Desviou o olhar. De perfil, tinha uma expressão demasiado adulta para o meu gosto. - Alguma vez lamentaste eu ter nascido? perguntou.

Senti-me como se me tivessem atirado de um carro a alta velocidade.

A que propósito vem isso? - perguntei.

Nunca nos falas do Colorado. E... e eu disse uma coisa chata ontem.

O que disseste?

Disse que era de te «deletar».

Isso não foi chato! É o que todos os miúdos fazem, mais tarde ou mais cedo. Além disso - e pisquei o olho -, comigo não funciona. Eu sou in-deletável. - Peguei-lhe nas mãos e abanei-as entre nós como uma ponte. Era uma brincadeira que fazíamos muitas vezes quando ele era pequeno. - Ouve, Nati, nunca lamentei que tu nascesses. É uma coisa que nunca poderia lamentar. E não falo do Colorado porque nunca aconteceu lá nada de interessante.

Mas como eram os teus pais?

Como toda a gente.

Como toda a gente, mas como?

Pus- me a rebuscar a pilha de livros sobre o Holocausto em cima da minha mesinha de cabeceira para afastar a pressão do seu olhar.

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A minha mãe ficava em casa e cozinhava - disse eu. - O meu pai trabalhava numa serração. O Ernie e eu acabávamos por passar a maior parte do tempo sozinhos.

Tens alguma fotografia dos teus pais?

Peguei no livro The War Against the Jews porque tinha estatísticas no fim e eu podia fingir que estava a analisá-las.

Parece-me que não - respondi.

Ele revirou os olhos.

Com quem és mais parecido, com a tua mãe ou com o teu pai?

Tenho o nariz e o cabelo da minha mãe; a boca e os olhos do meu pai. Uma combinação infeliz... A minha carreira de modelo podia ter sido um sucesso se fosse o contrário.

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Então, o Ernie deve ter a boca e os olhos da tua mãe

O Ernie não é parecido com nenhum deles. - Não era verdade, mas a última coisa de que precisava era ter o meu filho mais velho a suspeitar precisamente daquilo que o meu pai suspeitara.

De certeza que não tens nenhuma fotografia dos teus pais? Quer dizer, procuraste bem?

Não trouxe nenhuma para Portugal. Além disso, os vampiros não se veem nas fotografias.

Não tens piada - disse ele.

Fui à janela e pus a cabeça de fora. A brisa era já tépida. Quando me voltei, descobri que Nati continuava à espera dos avós que eu lhe devia dar. Imaginava que este dia haveria de chegar, mas teria preferido adiá-lo mais uns anitos.

Deves ter fotografias da tua casa, pelo menos - insistiu, num tom esperançoso.

Eu não tenho. O Ernie talvez tenha uma ou duas. Perguntamos-lhe isso hoje.

E ambos os teus pais morreram?

Tenho a certeza absoluta de que já te contei tudo isto antes.

Conta outra vez. Eu devia ser muito pequeno e não me lembro.

Não eras nada muito pequeno.

Mas gostava de ouvir tudo outra vez - disse ele, num tom zangado. - Que é que te custa?!

A minha mãe morreu primeiro. Tinha eu onze anos. O Ernie sete.

Num acidente de carro, não foi?

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Sim, embateu de frente contra uma árvore... um álamo. Era a maior árvore da estrada para a cidade mais próxima.

Nati franziu o nariz.

Deve ter sido horrível.

Foi. Especialmente para o Ernie - respondi.

E para ti?

Detestava a ideia de Nati sentir pena de mim.

Aguentei-me o melhor que podia.

E o teu pai?

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Oh, a princípio ficou perturbado, mas depois pôs-se bem. Eu passei a encarregar-me de lavar a roupa, e acho que ele nem sequer reparou que ela já não existia.

Não é isso. Queria dizer quando é que o teu pai morreu?

Estive quase para lhe dizer a verdade, só para me ver livre daquilo de uma vez por todas, mas isso iria levar a perguntas sobre a polícia e como é que tinham localizado o carro do meu pai, mas nunca o haviam encontrado a ele, e como é que um homem de quarenta e nove anos desaparece sem deixar rasto.

O meu pai morreu três anos depois da minha mãe - respondi.

No mesmo mês, acho que disseste tu uma vez.

Então, afinal sempre te lembras.

Pai, diz lá!

Morreram no mesmo dia do mês de maio, no dia 2 - disse eu.

Mas com um intervalo de três anos.

Isso parece uma coisa impossível.

Ter-lhe-ia feito mais sentido se eu pudesse dizer: «Ele decidiu desaparecer no mesmo dia em que a minha mãe morreu», mas estava já demasiado envolvido na minha mentira.

Aconteceram-me uma data de coisas estranhas durante a vida disse eu. - A mim e ao Ernie. Podes até dizer que eu e ele somos um íman para as coisas estranhas e improváveis. Mas, para te dizer a verdade, sempre pensei que o meu pai tivesse arranjado as coisas de maneira a poder morrer no mesmo dia da minha mãe.

Como podia ele ter feito isso?

Os médicos às vezes dão às pessoas uma overdose de morfina se elas estiverem a sofrer de mais. Às escondidas, naturalmente. Penso que o meu pai pode ter pedido isso.

De que é que ele morreu?

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Cancro do pâncreas. - Ouvira dizer que era sempre fatal e insuportavelmente doloroso...

E foi então que tu e o Ernie vieram viver com a tia Olívia?

Exatamente.

Nati sorveu um gole de chá.

E onde é que andaste na escola em criança?

A uns oito quilómetros de nossa casa, numa casinha de tijolos.

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Está tudo muito baralhado na minha cabeça, tirando a ginástica. Eu gostava de basebol. Era um lançador realmente bom. - Na verdade, nunca tinha sido lançador, mas estava a gostar de mentir tão bem. - Então, foi realmente só um gole de cerveja? - perguntei.

Foi meia garrafa. Mas fiquei enjoado. Não precisas de te preocupar.

Ainda bem, porque tivemos alguns bêbados violentos na nossa família

Quem?

O meu pai.

O meu avô era um bêbado? - perguntou ele num tom espantado.

Sim, só que ele não era teu avô.

Se era teu pai, quer dizer que era meu avô. Ipso facto.

Ipso facto?

A Sr.ª Laredo ensina-nos latim, para nos ajudar no português.

Podes dizer à Sr.ª Laredo que é preciso mais do que biologia para fazer de alguém teu avô. - Na linguagem codificada que eu e Ernie tínhamos inventado, acrescentei: - A certeza podes ter de que nos não merecia ele.

Eu não sou o tio Ernesto - disse ele, ressentido.

Traduzi:

Podes ter a certeza de que ele não nos merecia.

Porque era bêbado?

Entre outras coisas.

Mas acabaste de dizer que os teus pais eram como toda a gente!

Nati estava convencido de que me apanhara, mas eu tinha a resposta pronta.

Metade das pessoas que viviam por aqueles lados era alcoólica disse-lhe, num tom ligeiro. Caraças, o Mayor Anderson não se segurava em pé de setembro a maio. Tinham de forrar o escritório dele com plásticos de bolha!

Nati lançou-me um olhar cético; talvez calculasse que eu tinha usado as mesmas frases antes - o que era verdade, pois experimentara-as

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a primeira vez com a mãe dele no nosso segundo encontro. Porém, o Mayor Anderson era bastante real. O meu pai costumava ir caçar alces com ele na San Juan National Forest. «Dois

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bêbados a disparar sobre tudo o que mexe.» Sempre pensei que podia dar um bom título para o guia de viagens deles para o estado do Colorado.

O teu pai era violento? - perguntou Nati.

Berrava imenso.

Contigo e com o Ernie?

E com a nossa mãe. Com ela ainda era pior.

O que é que ele lhe berrava?

Nati, para que serve isto tudo, podes dizer-me? - perguntei.

Diz lá!

Acusava-a de ser desmazelada. - Mais uma mentira, mas não lhe ia dizer o que ele chamava à nossa mãe; tinha jurado nunca repetir aquelas palavras em voz alta.

A tua mãe também berrava com ele?

Não.

E tu e o Ernie?

Não.

É esquisito.

Talvez. Naquela altura parecia-me normal. Aprendi desde muito novo que as coisas normais podem ser as mais estranhas de todas.

Papá, não tens de estar sempre a tentar ser engraçado - informou-me, como se estivesse a fazer-me um grande favor.

Há um dramaturgo chamado Oscar Wilde que uma vez escreveu: «Se quiseres dizer a verdade às pessoas, fá-las rir, senão elas matam-te» por mais surpreendente que possa parecer cheguei exatamente à mesma conclusão que o Sr. Wilde quando era apenas uma criança.

Era o teu pai que tinha uma coleção de discos?

Que coleção de discos? - perguntei, batendo-me à conquista de um Óscar.

A mamã uma vez disse que tu sabias todas aquelas canções antigas porque o teu pai tinha mil discos, mesmo alguns... já me esqueci de como ela lhes chamou. Quando tocam a uma velocidade diferente.

De setenta e oito rotações. É verdade, ele tinha discos de setenta e oito rotações de uma data de pessoas incríveis.

Como por exemplo?

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As big bands, todos os grandes cantores de blues... Mas os de que eu mais gostava eram os do Eddie Cantor e do AI Jolson. Imitava bastante bem o AI Jolson. - Ajoelhei-me, abri os braços como que para dar um abraço ao meu filho e arranquei com uma parte de Swanee.

Acho horroroso - disse-me com um trejeito de desapontamento.

Tinha atuado para ele em vez de ter confiado nele. E também eu estava um pouco desapontado comigo, mas que podia fazer?

O horroroso era muito popular nos anos de 1930 - repliquei. Como concessão, acrescentei: - Costumávamos ouvir os discos do meu pai durante o inverno inteiro. Às vezes dançávamos.

Dançavam?

Sim, eu e o Ernie e o meu pai. Ele ensinou-nos o jitterbug, o fox trot e o tango. Divertíamo-nos imenso. O meu pai podia ser um bêbado, mas tinha estilo! A minha mãe às vezes dançava comigo e com o Ernie também, mas só quando o meu pai não estava em casa.

Mas tu nunca danças.

Eu era um miúdo, Nati! Fazia uma data de coisas que agora não faço.

Ficaste com alguns dos discos?

Não. Não sei o que lhes aconteceu. - «Regámo-los com gasolina e fizemos uma fogueira de vinil tão grande que o cheiro chegou aos cães da pradaria dos confins do Utah», era a resposta que tinha escondida debaixo da língua; se o dissesse, Nati haveria de perguntar porque não os tínhamos oferecido a alguma organização de caridade ou a uma escola, e eu não sabia bem se iria engolir a desculpa de que não passávamos de duas crianças. E talvez tivesse de explicar também que o meu irmão não quisera deitar-lhes fogo e que tinha chorado durante três dias a fio depois disso.

Nessa altura, calculei que acabara de esgotar a minha ração diária de mentiras e então soltei o longo suspiro que me tornara famoso na família e disse:

Já tomaste o pequeno-almoço?

Não.

Posso fazer-te uns ovos mexidos com piripiri como tu gostas.

Ná. Prefiro Weetabix. - Afastou-se, abatido, depois voltou-se e fitou-me com um ar compungido. - Desculpa ter sido chato para ti ontem.

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Apetecia-me abraçá-lo por ser tão bom para mim, mas ele ia torcer-se todo.

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Tudo bem - disse eu. - Ouve,-Nati, pode ser que não me lembre muito de como era a minha vida antes de tu apareceres, mas lembro-me de tudo sobre ti.

Ele fez que sim com a cabeça, tentando disfarçar o desapontamento por trás de um sorriso que me pareceu tão generoso que quase lamentei não lhe ter contado a verdade.

Ao ver os meus e-mails, descobri que Fonseca me tinha enviado uma fotografia dos carateres asiáticos escritos com sangue na sala da vítima, acompanhada de um link de onde poderia descarregar todas as páginas do caderno de endereços de Coutinho. Tendo em conta os antecedentes da vítima, parti do princípio de que os carateres eram japoneses e, no site da Universidade Nova de Lisboa, localizei o número de telefone do gabinete e o endereço eletrónico de um professor de Japonês, Yosoi Kimura. Como ninguém atendeu, deixei uma curta mensagem a pedir-lhe que me contactasse. Enviei-lhe também um e-mail e juntei-lhe a fotografia que Fonseca me mandara.

Eram quase nove horas, e eu tinha de sair para a conversa com Sandi.

Bati à porta, e Susana Coutinho surgiu-me envergando calças de caqui e T-shirt; não pusera bâton nem maquilhagem - ainda convencida, aparentemente, de que se sentiria melhor na personificação da mulher que fora antes de casar. No entanto, as olheiras denunciavam a noite mal dormida. Depois de me ter convidado a entrar com um movimento irritado das mãos, disse:

Tive uma trabalheira danada para convencer a Sandi a falar consigo, Monroe.

A expressão desagradável era uma tentativa para me fazer sentir culpado.

Vou tentar ser o mais rápido possível- assegurei-lhe.

Conduziu-me ao jardim. Sandi estava sentada à mesa em cima do estrado, sob a sombra oblíqua da palmeira, rígida e sombria, como alguém que tivesse sido injustamente punido. Desviou o olhar, mal deu por mim. Devia ter tomado duche pouco antes da minha chegada: o cabelo estava molhado e com a risca de lado, o que lhe dava o ar de um rapazinho aplicado. Suspeitei de que a mãe tinha insistido com ela para que se penteasse. Vestia ainda o casaco azul do pai, que lhe caía dos

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ombros até aos joelhos. Calçava uns ténis de um cor-de-rosa vivo com cordões amarelos. As meias eram verde-esmeralda. A sua necessidade de cor parecia significar que havia muito em comum entre ela e Ernie.

Aproximando-me da Sr.ª Coutinho, disse em voz baixa:

Gostaria de falar com a sua filha a sós, se não se importar.

Nem pensar! - retorquiu secamente.

Ela fala mais à vontade se a senhora não estiver a ouvir.

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Talvez, mas eu não a deixo sozinha.

Pode observar-nos da janela da cozinha. Se vir alguma coisa que não lhe agrade, pode intervir imediatamente.

Soltou um suspiro.

Isto é um absurdo. A Sandi não sabe nada sobre o assassinato do seu pai. Está a perder o seu tempo.

As pessoas muitas vezes não têm consciência das coisas que sabem.

Fungou com desdém, como se eu tivesse dito uma banalidade embaraçosa.

Tudo o que sei - disse ela - é que, se o senhor a perturba, arranjo maneira de o ministro da Justiça o pôr a andar!

Tomei-a pelo braço, esperando reconquistar um pouco da confiança a que tínhamos chegado no dia anterior. Lançou-me um olhar demorado e duro com os seus olhos emaciados, tentando adaptar-se às indesejáveis surpresas que eu lhe provocava, pareceu-me.

Diga-me uma coisa, Monroe, o senhor é sempre assim com toda a gente que acaba de conhecer? - perguntou.

Assim, como?

Invasivo. E imprevisível.

Espero que sim, mas vou perguntar à minha mulher para ter a certeza.

Ela mostrou-me um sorriso relutante - divertido e irritado ao mesmo tempo. Sem que eu lho tivesse pedido novamente, voltou para a cozinha.

Bom dia - disse eu a Sandi, ao mesmo tempo que me sentava no estrado.

Ela fitou-me com uns olhos apagados, como que para me mostrar que não fazia a menor intenção de participar ativamente na conversa. Ao volante, a caminho do encontro, decidira começar por lhe fazer perguntas sobre as razões por que escondia o anel de turquesa e tinha uma faca debaixo da cama, pois tais medidas de proteção implicavam

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que se sentia ameaçada. Porém, em resposta às minhas perguntas, Sandi replicou:

Não tem nada com isso. - Usou o tom de uma adolescente tentando sem o conseguir, mostrar-se arrogante.

Se calhar podíamos começar do princípio - disse eu. - O seu pai pareceu-lhe nervoso ou preocupado nestes últimos dias?

Ela revirou os olhos. Podia facilmente imaginá-la a «deletar-me» mentalmente.

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Deduzo que isso signifique que não notou nenhuma diferença no comportamento dele sugeri.

Não, nenhuma.

Alguma vez ouviu alguém a ameaçá-lo?

Não.

Alguma vez emprestou a sua chave de casa a algum amigo ou a alguém que andasse a trabalhar em vossa casa... um carpinteiro, um canalizador... ?

Não, nunca.

Ao passar os olhos pelas minhas notas, descobri uma coisa que esperava sacudi-la da sua atitude defensiva.

Porque perguntou ontem à sua mãe se a bala tinha atingido o seu pai pelas costas? perguntei.

Ela baixou os olhos como se eu a tivesse apanhado numa armadilha.

Não... não me lembro - gaguejou.

Uma bala pelas costas tem algum significado especial para si?

Não, porque haveria de ter?

Talvez porque isso significaria que o seu pai tinha sido traído por alguém que conhecia.

Mas a minha mãe disse-me que ele não foi morto pelas costas.

Por isso que importância tem isso agora?

Enquanto eu procurava uma boa maneira de sair deste impasse, Sandi disse numa voz frágil, apagada - dando um primeiro passo hesitante na minha direção:

Sempre pensei que o meu pai era tão forte que nada de mal lhe poderia acontecer.

Pensava que ele seria sempre capaz de se defender. Mas uma pessoa que é atingida pelas costas não tem essa possibilidade. Era isso que queria dizer?

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Não sei bem... Talvez.

Tem alguma ideia de qualquer motivo que pudesse levar alguém a querer fazer mal ao seu pai? - perguntei.

Não.

Está a ver alguém que pudesse odiá-lo?

Ninguém odiava o meu pai - replicou como quem afirma um facto óbvio. - Não era esse género de pessoa.

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Pelo canto do olho, reparei na Sr.ª Coutinho observando-nos da janela da cozinha. Fumava desalmadamente.

Então, não faz nenhuma ideia de quem possa ter-lhe feito mal? perguntei.

Nenhuma. Desculpe. Gostava de o ajudar, se pudesse.

Ansiando por pôr um pouco mais à vontade antes de lhe fazer uma nova pergunta que a pudesse irritar, disse-lhe:

Pode voltar a dormir no seu quarto esta noite, se quiser.

Obrigada.

Há mais uma coisa que preciso que me diga - continuei. - Mas tenho medo de que fique outra vez zangada comigo, como ontem.

A minha mãe diz que eu fico demasiado zangada e nervosa com tudo. Mas vou tentar não ficar.

Preciso de saber se alguém a tem ameaçado - disse eu.

Sandi abanou a cabeça energicamente.

Não, ninguém.

Sandi, é importante para mim saber se alguém tem implicado consigo - insisti.

É isso mesmo! - explodiu ela, num lamento. - Ninguém! Quem me dera que tivesse havido, mas não houve! Foi só na minha cabeça...

O que é que foi só na sua cabeça?

Pesadelos... pesadelos terríveis! E não havia meio de-acabarem!

A sua mãe falou-me nisso. Alguém que se introduz em sua casa e lhe faz mal a si e aos seus pais.

É isso!

Alguma vez conseguiu ver quem era essa pessoa?

Não, é sempre à noite. Só consigo ver um vulto a entrar em casa.

Um homem?

Não sei bem.

Um fantasma... Alguma coisa sobrenatural?

Não sei.

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A expressão dela cedeu novamente à amargura. De repente compreendi melhor o seu sentimento de culpa.

Falou à sua mãe sobre os pesadelos, mas não ao seu pai. Não é assim?

Ela assentiu entre lágrimas.

Nunca tive oportunidade de o avisar do que lhe poderia acontecer.

Tem a certeza de que a sua mãe nunca disse nada ao seu pai sobre esses pesadelos?

Tenho. Ela disse que não o queria alarmar. - Falava como se estivesse a fazer tudo para perdoar à mãe. Sem o conseguir.

Há mais alguma coisa que me possa dizer sobre os pesadelos?

Não. Faço tudo para não me lembrar deles. - Começou a passar um dedo pelos veios da madeira da mesa. Tive a sensação de que queria perguntar-me alguma coisa, mas sem o ousar.

Digo-lhe tudo o que quiser saber - disse eu.

Vai apanhar a pessoa que matou o meu pai?

Vou tentar.

Então, não tem a certeza de conseguir?

Não. Nunca posso ter a certeza.

Já tem alguma ideia de quem possa ser?

Suspeito de que seja alguém que o seu pai conhecia. E talvez também a Sandi e a sua mãe. É uma das razões por que precisava de falar consigo imediatamente.

Estava à espera de que ela sugerisse algum nome sem que eu lhe perguntasse, mas começou a passar o dedo pela mesa ainda com maior afinco. Passei os olhos pelos meus apontamentos para a aliviar um pouco da pressão a que a estava a sujeitar.

Há um quadro que talvez tenha sido mudado de lugar na sala de estar - recomecei, ao fim de algum tempo. - O que lá está agora é um do Júlio Almeida... um desenho de Fernando Pessoa. Sabe que obra estava naquele sítio antes?

Sandi levantou os olhos surpreendida.

O desenho do Almeida sempre ali esteve - respondeu de modo assertivo.

Tem a certeza?

Sim. O meu pai gostava dele naquele sítio - disse, como alguém que se levantasse em sua defesa.

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É só porque o retângulo de tinta mais escura na parede por trás do Almeida podia ser uma indicação de que tinha havido ali um quadro maior. A sua mãe disse que a Sandi às vezes ia com o seu pai às galerias de arte. Por isso, pensei que poderia ser capaz de o identificar.

Não vejo que importância isso poderia ter - disse ela, tentando de novo parecer superior.

Tudo o que muda de sítio num local de crime é importante.

Mas nada mudou! - berrou ela.

Susana Coutinho saiu pela porta da cozinha e precipitou-se para nós.

Agora já chega! - rematou de imediato.

Virando-me para Sandi, decidi correr o risco de parecer ridículo.

Merece ser protegida da pessoa que a ameaçava. Voltarei para falar consigo. E prometo fazer tudo o que puder para a ajudar. - Estendi-lhe o meu cartão. Não há vultos vagos que me façam parar. Nem pesadelos. Nem pessoas que têm prazer em fazer mal a meninas pequenas.

Ao sair, pedi à Sr.ª Coutinho que voltasse a pensar em qual seria o quadro que tinha desaparecido e ela disse:

Tenho uma vaga ideia de que era um retrato, mas realmente não passa de uma suposição.

Um retrato de quem?

Uma mulher de idade...? - disse ela, como se fosse uma pergunta sem resposta.

Alguém que o seu marido conhecia? Alguém da família?

Não me parece. Oiça, Monroe, talvez não fosse sequer uma mulher idosa. Como já disse, isto sou eu a tentar adivinhar.

Tem alguma fotografia da sala onde se possa ver que quadro era?

Porque está a fazer um problema tão grande de uma coisa sem importância?

Acho que o assassino levou o quadro... por qualquer razão especial. Porque, se estivesse interessado em obras que pudesse vender por muito dinheiro, teria levado o da Paula Rego e o do Almeida. E também acho que a Sandi está a mentir quando diz que não sabia que quadro era.

Porque haveria ela de mentir?

Pensei que talvez a senhora me pudesse dizer.

Sou só mãe dela, não tenho dons de telepatia - disse numa voz irritada. Num tom mais conciliatório, acrescentou: - Mas prometo ver se há fotografias. E descobrir se a Sandi lhe mentiu.

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Depois de lhe ter agradecido, o meu telemóvel tocou; era David Zydowicz. Disse-me que tinha acabado a autópsia e confirmado todas as suas descobertas do dia anterior. Também achou que o corpo de Coutinho podia ser entregue à família.

Depois de desligar, informei disso a Sr.ª Coutinho e lembrei-a de que Luci e Fonseca passariam lá à tarde. Disse-lhe também que voltaria a falar com ela na segunda-feira de manhã, ou até antes. Eram dez menos um quarto quando me vi novamente na Rua do Vale. Liguei para Luci e pedi-lhe que perguntasse a Morel e à Sr.ª Grimault se sabiam alguma coisa sobre o quadro que tinham mudado na sala. Ainda com algum tempo, decidi visitar as casas onde no dia anterior ninguém respondera, mas os moradores nunca tinham falado com Coutinho nem ouvido tiros na manhã de quinta-feira.

Cheguei a casa ao meio-dia menos vinte. Jorge correu a receber-me à porta, com a sua pequena mochila já às costas. Disse-me que a mãe tinha acabado de sair. Assim que apertámos os cintos, já instalados no Passat de Ana, mais fiável do que o meu velho Ford, enviei um SMS a Ernie avisando-o de que estávamos a sair. Nati sentou-se a meu lado como copiloto, com o mapa do Automóvel Club aberto em cima dos joelhos. Parecia ter ultrapassado o seu desapontamento em relação a mim e quase sem parar para respirar - como se largado monte abaixo desatou a pôr-me a par dos últimos disparates cómicos e trágicos na escola. Quando entrámos na autoestrada, confessou-me que andava preocupado com um projeto sobre música brasileira que tinha de fazer. Se bem que, mesmo sob a apreensão e as dúvidas, me desse a impressão de que se sentia à vontade no meio da intrincada complexidade da sua vida.

Jorge ia no banco de trás com a sua girafa de madeira, a que dera o nome de Francisco. Ao passarmos a ponte sobre o Tejo, pôs-se a abanar o Francisco para cima e para baixo por trás da minha cabeça enquanto me perguntava na sua voz de girafa, agudíssima e esganiçada: «Há perigo de encontrarmos leões por estes sítios?»; «Quando é que paramos para comer umas folhinhas nos ramos das árvores?»

Havia uma brincadeira entre nós que era o Francisco ter sempre uma opinião oposta à minha sobre tudo. Era então que eu fazia uma voz furiosa e lhe repetia incessantemente para «calar o bico!» Esta expressão punha Jorge a rir-se às gargalhadas. Na viagem, eu não parava de ofegar, com a língua de fora, e de me queixar do calor; o Francisco respondia com uma voz gaguejante de frio que estava «ge-ge-gelaaado!».

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Acabámos por ser apanhados pelo trânsito intenso quando seguíamos para Setúbal. Continuava no entanto a sentir-me deliciado com a maneira como Nati passava o dedo ao longo da linha que assinalava a auto estrada para me mostrar o caminho a seguir. Gostava do ar sério com que ficava perante quase tudo o que tinha de fazer. Mas só quando avistámos o castelo de Montemor-o-Novo no topo do monte me deixei invadir pela sensação de liberdade que o campo me dá. «Ninguém no Colorado ouviu falar neste lugar», pensava, estremecendo por me sentir livre. Daí a pouco, o horizonte abriu-se em panoramas tranquilizadores de cadeias de colinas salpicadas de manchas prateadas de oliveiras. Desci o vidro para sentir o cheiro a terra, intenso e sensual, das flores estivais e da erva ressequida. Quando parámos

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para meter gasolina, os miúdos compraram qualquer coisa para comer enquanto eu enchia o depósito, depois sentaram-se na borda do passeio junto do aparelho para medir a pressão dos pneus enquanto lavava o para-brisas. Nati petiscava umas batatas fritas e Jorge devorava uma barra de chocolate. Bebiam uma Coca-Cola a meias. Acenei-lhes. Eles acenaram em resposta. O absurdo de acenar aos meus filhos mesmo quando estavam a poucos metros de mim nunca deixou de me dar a sensação de ter penetrado num mundo de ternura onde só podem acontecer coisas boas.

O Alentejo não tinha nada de monumental- nem montanhas com cimos de neve nem morros altaneiros como no Oeste americano -, mas as casas caiadas e as ruas calcetadas exibiam uma tal ordem e limpeza, e a variedade de verdes das suas paisagens era tão docemente tranquilizadora - como um sonho de criança que tivesse tomado forma - que parecia ser o sítio perfeito para mim e para os miúdos.

No entanto, cerca de dez minutos depois de termos deixado a estação de serviço, reparei num Fiat branco todo amolgado que parecia estar a seguir-nos. Recusava-se a ultrapassar-me mesmo quando eu abrandava. Com o coração a saltar-me do peito, segui devagar para a berma de gravilha da estrada. Quando o Fiat chegou a uns cinquenta metros, a minha apreensão explodiu em raiva.

Não te mexas! - ordenei a Nati. - E tu fica quieto também! disse, voltando-me para Jorge.

Que se passa, papá? - perguntou Nati, ansioso.

Dei-lhe uma palmadinha na perna.

Vai correr tudo bem. Fiquem aqui.

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Há momentos em que somos pouco mais do que uma única emoção dominante. Fui buscar a arma ao porta-bagagens. De uma coisa estava certo: não sentiria o mínimo remorso por matar alguém que fosse uma ameaça para os meus filhos.

Ao volante do Fiat via-se um homem novo de cabelo escuro e curto.

Dirigi-me para ele empunhando a arma. Ele arrancou e começou a descrever um círculo apertado. Foi então que disparei para o ar.

Ele parou com um rangido. Tinha uma cara descarnada e por barbear. Berrou qualquer coisa pela janela, mas não entendi o que disse; sentia o sangue a latejar-me nos ouvidos.

Saia do carro! - gritei.

O homem empurrou a porta e saiu com as mãos em cima da cabeça. Era alto e desengonçado. Deveria ter trinta e poucos anos.

Não dispare! Sou jornalista. - Esforçou-se por disfarçar com uma risada o seu terror, mas o que lhe saiu mais parecia um gemido.

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Que me quer você? - perguntei

Queria falar consigo sobre Pedro Coutinho. Estava à espera de que deixasse os seus filhos num sítio qualquer e fosse para a sede da polícia. Quando o vi seguir para a auto estrada fiquei sem saber o que fazer e, por isso, vim atrás de si. Desculpe.

Baixei a arma. Ele baixou os braços.

Queria entrevistá-lo - explicou-me. - Trabalho para o Record.

Que raio tem um jornal desportivo a ver com o Coutinho? - perguntei.

Ele era um grande adepto do Sporting.

Diga-me uma coisa, os jornalistas neste país pensam que podem fazer o que lhes apetece?

É uma reportagem importante. Se não a conseguir posso perder o emprego. Os tempos estão difíceis.

E o senhor acha que pode usar a crise económica para se justificar de me assustar a mim e aos meus filhos!

Oiça - disse ele, apelando à minha compreensão -, e se falássemos só uns minutos? Seria uma grande ajuda.

Exibiu o que devia considerar um sorriso sedutor. Pior: tomou o meu silêncio atónito por assentimento.

Parece-me que era melhor gravar a nossa conversa - disse ele.

Nem pense! - disse eu.

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Então, tomo só algumas notas - propôs, num tom amistoso, e desta vez tive a certeza de que se fizera propositadamente desentendido quanto ao significado das minhas palavras. Por esta altura sentia já a cabeça a pulsar; G tinha-se colocado atrás de mim. Respirei profundamente para o manter ao largo.

Oiça, não volte a seguir-me ou enfio-lhe um balázio! - disse eu.

Agora entre no carro e ponha-se a andar daqui!

Depois de ele ter arrancado na direção de Lisboa, voltei a guardar a arma no porta-bagagens. Jorge abriu a porta do carro e correu para mim. Quando me alcançou, já G tinha desaparecido.

Era só um jornalista - disse eu ao miúdo, abraçando-o, mas ele deve ter pressentido a minha ansiedade e começou a choramingar.

A porta da frente abriu-se e voltou a fechar-se com estrondo. Nati olhava-me de cenho carregado na berma da estrada. Enxuguei os olhos de Jorge e levei-o de volta para o carro. Nati entrou também. Depois de me ter enfiado atrás do volante, pedi desculpa a ambos.

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Porque nos seguia ele? - perguntou Nati.

Ando a investigar a morte de um tipo que conhecia uma data de pessoas importantes.

Pensando nas coisas más que me poderiam acontecer, recolhi-me num silêncio sombrio enquanto nos púnhamos a caminho. Nati fixava o mapa de modo convincente, mas percebia que ele continuava em pânico - e furioso comigo. Felizmente, Jorge tinha Francisco para lhe fazer companhia no banco de trás e entretinha-se em animada conversa com ele sobre os amigos da escola.

Ei, papá, as montanhas no Colorado são muito grandes? - perguntou Jorge na voz esganiçada de Francisco quando saíamos da N354 em direção à estrada para o fim do mundo que nos levaria a casa de Ernie.

Tenho de pensar um bocado - respondi; continuava nervoso.

Daí a pouco, avistei as romãzeiras abandonadas de que Ernie falara. Pensei que poderíamos apanhar uns minutos de sol. Nati ficou à espera dentro do carro, falando ao telemóvel com Binky. Enquanto Jorge e eu apanhávamos as flores de um tom alaranjado brilhante, disse-lhe: Às vezes, pequenino, as montanhas do Colorado são tão grandes como o céu inteiro.

Então não há sol?

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Não, desaparece. E também não há lua nem estrelas. As montanhas são tudo. Mas o mais estranho é que aquele género de tudo tem dois lados.

O meu pai costumava dizer-nos isso, a mim, ao Ernie e à minha mãe. Nunca tinha percebido muito bem o que ele queria dizer até agora.

Jorge pôs as últimas flores no meu cestinho de vime.

Quais dois lados? - perguntou.

O lado que se vê e o lado que não se vê.

«Em qual desses lados vivias tu e o tio Ernie?» Jorge não me fez a pergunta. Mas, se o tivesse feito, teria respondido: «Isso mesmo... no lado que ninguém podia ver,»

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Capítulo 12

A entrada para a compra da casa de Ernie levou-nos um terço do que ganháramos com a venda da nossa casa no Colorado. Saiu-me barata porque as paredes e o telhado estavam em ruínas. E também porque os mais de dois hectares de olival e de vinha, invadidos pelas ervas daninhas, estavam cobertos de lixo, garrafas partidas, bidões e até a armação enferrujada de uma cama de ferro. Na minha primeira visita, quando atravessei o que em tempos fora a porta de entrada, vi um gato bravo - branco, com uma cauda cinzenta - que assomou de sob umas telhas rachadas, bufou satanicamente e depois se eclipsou, tentando convencer-me o melhor

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que podia de que era um mau augúrio. No entanto, para mim, tornou-se desde logo evidente, com a mesma certeza fácil com que um leitor volta a página, que tinha já decidido comprá-la; do seu elevado pedaço de terra, Ernie poderia esquadrinhar o horizonte em todas as direções. Na primavera, teria a resguardá-lo um mar de flores silvestres - mantendo-o ao mesmo tempo fornecido de materiais floridos para o seu trabalho artístico.

A reconstrução começou no dia 9 de dezembro de 1996. Lembro-me da data precisa porque tinha conhecido Ana três dias antes e estava já loucamente apaixonado. Depois de terem erguido pilares de aço, os trabalhadores deitaram abaixo todas as paredes interiores. No dia 4 de abril de 1997, um sábado, apercebi-me de um pequeno saco esgarçado espreitando de entre um monte de entulho. Lá dentro havia algumas moedas castanhas com verdete, as bordas irregulares e um cheiro

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acre. Ernie e eu contámos cinquenta e quatro moedas, todas iguais, com o retrato de um monarca com uma coroa de louros num lado e um anjo no outro. Nessa semana, dias depois, um negociante em moedas de Lisboa identificou-as como sendo sestércios romanos do século IV. Eram de bronze e tinham sido cunhados em Constantinopla. A figura real na face da moeda representava o imperador Constantino. O que tínhamos pensado ser um anjo era na verdade a Vitória Alada, o equivalente romano da deusa grega Niké. Infelizmente, não valiam tanto quanto pensáramos - apenas uns quantos milhares de dólares. Por isso, acabámos por ficar com elas.

A nossa descoberta veio anunciada no Diário de Notícias do dia 19 de abril de 1997, um domingo. No fundo da página sete via-se uma fotografia da tia Olívia comigo. Ernie deu à imagem o nome de «Tia Olívia e a bomba-relógio romana», por ela segurar o saco esfiapado das moedas afastado do corpo como se estivesse prestes a explodir e reduzir-nos a cinzas.

A tia Olívia vestia uma saia de linho de um cor-de-rosa de urze e uma blusa branca bordada; tinha escolhido o seu melhor colar de pérolas e um lenço de seda violeta que lhe havíamos oferecido quando fizera sessenta anos. Tinha postos os óculos com os espessos aros de tartaruga que lhe davam um ar de pessoa erudita e inteligente - que era. Um esquilo com óculos. É o que ela parece nas fotografias que guardo na minha mesinha de cabeceira. Tinha sessenta e três anos em 1997, era alegre e continuava a ir a pé ao mercado de Évora todas as manhãs comprar fruta e verduras, sempre devotada a Ernie e a mim. Porém, a surdez estava já a tornar-se um incómodo, e lembro-me de que o fotógrafo teve praticamente de lhe gritar as indicações, pois ela não estava habituada a ler nos lábios.

As objetivas deixavam a tia Olívia nervosa e paralisada; por isso, tive de me manter junto dela, mostrando um sestércio na mão levantada. Seguro-o apertado entre o polegar e o indicador, sorrindo como um convidado num programa de televisão americano porque o fotógrafo insistia em que eu fizesse um sorriso realmente grande. Ernie poderia ter entrado também para os arquivos do Diário de Notícias, mas no último momento encolheu-se.

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Será que a família romana que viveu na Villa Ernesto - nome que depois demos à casa - viera de Constantinopla? Ou os sestércios das variedades cunhadas no Império estariam dispersos por toda a Europa? Nunca consultei nenhum especialista; preferia o mistério.

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Assinar os papéis de uma casa que fora habitada pelo menos durante mil e seiscentos anos significava muitas coisas para mim, mas, acima de tudo, que fazia agora parte de uma história que se estendia para além do meu tempo e espaço. No dia em que Ernie se mudou para lá, compreendi que eu quisera fazer parte de uma coisa maior do que eu próprio desde que nós os dois éramos pequenos.

Assim que os trabalhadores deram a obra por terminada, em março de 1998, contratei um homem que negociava em pedra e mandei descarregar uns duzentos e cinquenta quilos de uma espécie de seixos lisos, cinzentos e brancos, semelhantes às pedras do rio que noutros tempos colecionávamos no Colorado. Ernie e eu espalhámo-los às pazadas numa vala de cerca de um metro de largura a toda a volta da casa. Ninguém poderia chegar à porta de entrada sem que Ernie se apercebesse.

Como retoque final, plantámos vinte e quatro laranjeiras, que nos davam pelos ombros, a ladear a estrada escalavrada que levava à casa e a que o meu irmão insistia em dar o nome de Via Enrico. Tínhamos projetado uma fonte com Pan a tocar flauta junto à porta da frente, mas por essa altura só nos restavam dois mil dólares no bolso.

Continuava, porém, a lamentar nunca termos posto um Pan a receber os visitantes e comecei mentalmente a esculpi-lo de novo enquanto passávamos pelas minúsculas casinhas caiadas da Quinta da Vidigueira, a última aldeia antes da casa de Ernie. Um toque de telemóvel arrancou me aos meus devaneios. Encostei à berma ao ver que era Luci. Disse-me que estava já na casa da vítima, Morel também e Fonseca tinha ligado a dizer que ia a caminho. Para mim, a prontidão com que Morel se dispusera a regressar a Lisboa mostrava que era pouco provável que tivesse alguma coisa a ver com o crime, mas continuava a existir uma possibilidade de ter ameaçado Sandi de uma qualquer maneira. Por agora, esperava que Luci conseguisse refrescar-lhe a memória e que ele se lembrasse de ter visto um casaco ou qualquer outra peça de roupa que nos ajudasse a identificar a amante de Coutinho.

Depois de desligar, telefonei a Susana Coutinho. Estava de ressaca.

Numa voz áspera e enrouquecida, disse-me que se lembrara de que Pedro tinha tirado umas fotografias à sala onde deviam ver-se alguns dos quadros, mas que não conseguia encontrá-las.

Depois de eu desligar, Nati perguntou:

Com quem estavas a falar?

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Com a mulher do homem que mataram. - Dei-lhe uma palmadinha na perna. - Daqui a poucos minutos estamos em casa do Ernie. Gostava de ter uma conversa contigo sobre copos antes de lá chegarmos.

Preferia que não me viesses com um grande sermão - disse ele, carregando o sobrolho.

Vou tentar ser rápido. Daqui a dois meses, quando fizeres catorze anos, podes começar a beber meio copo de vinho ao jantar. Ou de cerveja. Na minha opinião, parece-me bastante acertado. E prudente, dada a história da nossa família.

Prudente?

Devidamente cauteloso.

Eu conheço a palavra, papá. - Revirou os olhos.

Nati devia ter decidido que tornar a conversa difícil para mim também era acertado.

Por outras palavras - continuei -, estou a pedir-te que te abstenhas de beber por pouco mais de um ano. - Falei em «abster-se» para deixar claro que não estava disposto a limitar o meu vocabulário só para evitar que ele se risse de mim. - Fica combinado?

Ele baixou os olhos, considerando as suas opções.

O Francisco está com fome - chilreou Jorge, e enfiou a cabeça por entre os assentos à espera da minha resposta. - Quer uma sanduíche de atum.

Estou a ter uma conversa importante com o teu irmão. Volta a pôr o cinto de segurança, se fazes favor.

Quero uma sanduíche de atum - refilou em português, para o caso de o inglês não ter tido impacto suficiente em mim. Para reforçar a minha inaptidão, exclamou: - Como as que a mamã faz!

Deixa-o em paz, Dingo! - cortou Nati.

Cala o bico! - retrucou o miudito, à espera de me arrancar pelo menos um riso. Um clone meu de sete anos, Deus me perdoe. Antes de ter tido oportunidade de lhe mostrar o meu sorriso paternal, Nati virou-se para ele:

Tu é que calas o bico, meu cromo!

Jorge desatou a chorar; devia estar ainda nervoso por causa do meu confronto com o jornalista.

Muito obrigado! - disse eu a Nati.

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Não tens de quê - respondeu, em tom hostil.

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Jorge soluçava. Estávamos em queda livre para o inferno. E eu nem sequer me tinha apercebido de que estava a cair.

Disse ao pobre do miúdo para sair do carro, tomei-o nos braços e encostei-lhe a cabeça contra o meu peito. As lágrimas quentes corriamlhe pela cara e respirava com dificuldade. Passaram dois carros a toda a velocidade. Palpei-lhe o pulso e vi que tinha o coração acelerado. Levei-o para a sombra de um sobreiro, sentei-o na erva e pedi-lhe para olhar para mim.

Olha para os meus olhos - disse-lhe com um sorriso animador.

Jorge arquejava com a ansiedade, mas fiz o melhor que podia para lhe mostrar que nunca deixaria que nada de mau lhe acontecesse. Depois de um ou dois minutos, a respiração acalmou e a expressão animou-se.

Mas o suor continuava a correr-lhe pela cara. – Muito bem – disse eu. Limpei-lhe a cara com um lenço de papel. O pulso dele voltara ao normal. Com alguma sorte, o meu também não tardaria a voltar.

Eram quase duas horas da tarde quando parámos no espaço coberto de gravilha frente à casa de Ernie, ao lado do seu Chevrolet lmpala enferrujado. Rosie, a cadelita com pelo de arame, precipitou-se para nós, vinda do meio do matagal depois das laranjeiras, e atirou-se aos pneus da frente do meu carro para os morder.

Quando Jorge abriu a porta do carro e esticou os braços para Rosie, ela desatou a cabriolar em círculos apertados, extáticos, e depois saltou para cima dele, a latir. Momentos depois, Ernie saiu de casa com as mãos enfiadas nos bolsos da frente dos jeans coçados. Vestia o casaco de cabedal e uma camisa branca. Na parte de trás do chapéu de cowboy tinha espetada uma pena verde. Era um toque de nativo americano que lhe ficava muito bem, talvez por dar impressão de querer lembrar-nos de que éramos de muito longe daqui - de um mundo completamente diferente, na verdade. O cabelo castanho e farto caía-lhe sobre os ombros. Estava descalço e trazia já postas as luvas cirúrgicas.

Observando-me com um sorriso disfarçado, fazia-me lembrar, como tantas outras vezes, o autorretrato de Albrecht Dürer - um que tínhamos visto com a tia Olívia, no Prado, em Madrid, e de que ele comprara um póster. Estou certo de que nesse dia Ernie compreendera uma coisa importante sobre a pessoa que queria ser, naquele momento de identificação com o artista alemão há muito desaparecido.

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Mais tarde disse-me o que tinha sido: «Eu posso habitar o meu próprio mundo.»

Ainda antes de ter consciência sequer de ter aberto a porta do carro, já eu me dirigia ao encontro de Ernie. Ver o meu irmão mais novo deixava-me vazio de tudo o que não fosse a necessidade de o ter nos braços. Tirou o chapéu e sorriu-me naquele seu modo furtivo. Abraçámo-nos e aspirei o seu cheiro a papas de aveia. Esfreguei a minha cara na dele, para que a lixa da sua barba crescida pudesse lembrar-me de que era já um homem. Esfregou a cara na

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minha, o que sempre me transmitia a sensação de que éramos irmãos num mito ou num sonho, crianças da floresta aprendendo a reconhecer-se pela pele.

Ter ali Ernie, são e salvo, e adulto, com uma vida independente no meio das suas flores e árvores, era uma coisa tão grande e profunda, com emoções de tal forma complexas, que não havia sequer palavras para expressar como isso continha tudo o que jamais realizei na vida e tudo o que alguma vez poderia sonhar realizar. Abraçámo-nos durante mais tempo do que aquilo que a maior parte das pessoas acharia apropriado porque precisávamos disso para nos separarmos.

Quando finalmente nos largámos, Jorge correu de encontro à barriga do tio. Ernie soltou um arquejo, pois era isso que o miúdo esperava, e depois deu-lhe um beijo na cabeça.

O Francisco está esfomeado! - declarou Jorge, erguendo a girafa. E quer atum!

Desculpa, só tenho beringela estufada e uma grande salada. Mas é tudo fresco, fresco, fresco... apanhado esta manhã na horta!

Ernie esperava que o seu entusiasmo conseguisse compensar o erro na ementa. Mas nestes últimos meses Jorge tinha descoberto o prazer - e o poder - de ser inflexível.

O Francisco quer atum! - choramingou, e desatou a bater o pé como faz quando está cansado. Agarrei-o então com um rugido e atirei-o por cima dos ombros, o que lhe provocou umas valentes gargalhadas; continuava a ser uma esponja para a ternura, graças a Deus.

Rosie ladrou furiosa por estarmos a divertir-nos sem ela.

Olá, tio - disse Nati a Ernie, contornando o carro para ir ter com ele.

Olá, Nathaniel - respondeu o meu irmão.

Nati inclinou-se para um beijo, ao mesmo tempo que procurava manter uma certa distância. Com o meu irmão, dava muitas vezes a impressão de não saber o que fazer das mãos e dos pés.

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Tens fotografias da Ponderosa? - perguntei a Ernie. - O Nati queria vê-las. E, se tiveres alguma fotografia dos velhotes, podias também mostrá-la. - Contava que Nati me desse alguns pontos por me lembrar do seu pedido logo à chegada, mas ele esquivou-se ao meu olhar, mostrando-me que não me perdoara ainda o que quer que fosse que eu fizera de errado.

Pode ser que consiga desencantar uma ou duas fotografias do sítio onde vivíamos - disse Ernie ao sobrinho, usando o sotaque do Colorado para o efeito cómico -, mas não tenho nenhuma dos teus avós.

Depois de o pôr no chão, Jorge começou a girar em círculos estonteantes, explorando ao máximo a vertigem e tentando captar a minha atenção. Agarrei-o e prendi-o entre as pernas, que era o que ele pretendia. Enquanto Rosie lhe lambia as mãos, ele levantou os olhos para mim murmurou:

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Papá, as flores!

Vai buscá-las! - murmurei em resposta, empurrando-o para o carro.

O cesto com as flores de romãzeira estava no banco de trás. Jorge esgueirou-se lá para dentro e saiu com tal entusiasmo que metade se espalhou pelo chão. Rosie desatou a farejá-las, com as narinas escuras dilatadas e soprando. Jorge, Ernie e eu pusemo-nos de joelhos a apanhá-las.

Obrigado, ervilhinha-de-cheiro - disse Ernie, recebendo as flores que o sobrinho lhe entregava. Mereces o prémio do Jogador Mais Valioso do dia!

Os miúdos e eu levámos as bagagens para dentro, enquanto Ernie punha o cesto de flores em cima da mesa de trabalho, uma antiga porta de carvalho que ele recuperara de uma lixeira em Évora uns anos antes. Rosie tinha ficado lá fora, arranhando a porta de rede e fixando-nos com a sua expressão mais solitária, mas segundos depois - não sendo dotada para o melodrama - desistiu e desapareceu a correr.

A Villa Ernesto não tinha divisões - nada de quartos ou armários onde um intruso pudesse esconder-se. Nem espelhos.

O sol de julho dera às cortinas amarelas uma cor dourada, e o cheiro a terra dos campos entrava casa dentro pelas janelas abertas. Os rapazes e eu descalçámo-nos. Jorge deslizou pelo chão de madeira até às roseiras que rodeavam a cama de Ernie. Aspirou o perfume de um ramo de botões vermelhos. Voltando-se para nós, disse numa voz de anúncio:

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Mais perto do que pode pensar! - Era o slogan de um cartaz do Corte Inglês que ele devia ter visto no caminho de Lisboa até ali.

Ernie disse:

Experimenta as rosas cor de fogo, Ervilhinha.

Jorge aspirou profundamente as flores mais vistosas e fez girar a cabeça como se estivesse prestes a desmaiar com o perfume, depois deixou-se cair de costas em cima da cama. Sempre que tinha o meu irmão por perto, transformava-se num artista de circo, constantemente ansioso por ser o centro da atenção do tio.

Ernie tinha colocado uma fotografia emoldurada de Patsy Cline por cima da cabeceira da cama. Li em silêncio a dedicatória: «To Bill's kids, Kisses, Patsy,» Vestia uma saia de tecido escocês e um chapéu de cowboy, seduzindo a câmara com aquele seu olhar descarado de rainha dos rodeos que ela levara à perfeição. Tocando com a ponta do dedo no coração que ela desenhara por cima do i de Kisses, lembrei-me de como o meu pai nos contara que a minha mãe ficara «caidinha por ele» no Joes Steaks em Washington D.C. Era caloira na Marymount College. Tinha recebido uma bolsa de estudos atribuída pela Igreja em Portugal.

Se o meu pai não a tivesse encantado com as suas lérias sobre a última tournée de Patsy, e não a tivesse beijado com uma paixão abrasadora à porta da residência universitária, Ernie e eu nunca teríamos nascido. E a minha mãe ainda estaria viva. O que prova, poderá dizer-se, uma

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coisa espantosa: que tudo o que aconteceu na nossa vida significou que milhentas outras coisas nunca viriam a acontecer.

A minha mãe disse-me que, antes de casar, o meu pai se mostrara «maravilhoso». Uma vez, fizemos os dois uma lista das palavras portuguesas que ela usaria para o descrever quando se conheceram: maluco, elegante, espirituoso, sedutor. Contou-me que o meu pai lhe cantou canções românticas de Cole Porter. E que fora também o primeiro homem com mãos suficientemente firmes para a conduzir através de uma pista de dança. Foi só depois de se casarem que ele começou a maltratá-la. A minha mãe nunca compreendeu a razão dessa mudança. A minha teoria é que ele nunca mudou; apenas fingiu maravilhosamente bem que era maravilhoso.

O meu irmão examinou a fotografia de Patsy Cline olhando-a por cima do meu ombro.

A Patsy desenhou um coração - disse-lhe, apontando. - Não me lembrava disso.

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Foi a única vez que nos cruzámos com a fama - respondeu ele - e foi antes de nascermos.

Não estou a perceber - disse Nati.

Passei-lhe para as mãos a fotografia.

O meu pai era um dos roadies da Patsy - expliquei. - Ela deu-lhe esta fotografia autografada em 1962. Ele e a minha mãe só se casaram em 1966 e eu vim ao mundo quatro anos mais tarde. Ele pediu à Patsy que assinasse a fotografia para os futuros filhos, para mim e para o Ernie.

Wow, o avô devia ser muita fixe!

Tenho a certeza de que Nati disse «avô» para me desafiar; por isso, repliquei em tom de aviso:

Se te parece fixe, então é porque tens algum problema grave de entendimento.

Mas afinal quem é a Patsy Cline’ perguntou Nati, devolvendo a fotografia ao tio.

Uma cantora country - disse Ernie. - Era a maior!

Nunca ouvi falar nela.

O meu irmão cantou um pouco de Walking After Midnight - afinado e na sua bela voz de barítono -, mas Nati revirou os olhos e disse que lhe soava antiquado.

És capaz de ter razão - respondeu Ernie. - Seja como for, a Patsy morreu num acidente de avião em 1963.

E isso foi o fim da carreira do meu pai na música - anunciei numa voz de contentamento.

Como assim? - perguntou Nati.

Nessa altura ele já era conhecido. Ninguém lhe daria emprego depois de a Patsy morrer.

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Conhecido como?

Fodia tudo em que se metia.

Nati olhou-me espantado, porque se contavam pelos dedos as vezes em que eu dissera um palavrão diante dele. Atirei o saco de viagem para cima do futon. Sentindo que as minhas emoções estavam prestes a descarrilar, comecei a considerar os prós e os contras de tomar um Valium.

Ernie arrancou-me às minhas cogitações batendo palmas.

Chega de conversa! Todos para a mesa!

A caminho, detive-me diante da mesa de trabalho de Ernie para examinar a sua última pintura. Uma figura esguia e amarela com braços emaciados escalava uma montanha negra, sinistra, em forma de pirâmide,

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feita de ramos e sementes queimados. O sol - um círculo delicado de flores da cor do fogo chamadas cordão de frade - fundia-se acima do pico em vagas de violeta e azul. No canto da paisagem, num vale fértil em forma de taça, que parecia simultaneamente uma proteção e uma prisão, viam-se dois homens minúsculos e uma mulher idosa. De cabeça levantada e as bocas abertas, tinham um ar atónito diante da vista - e constrangido pela perigosa muralha de trevas em frente. Estavam em pé, de mãos dadas, como figuras de papel recortado, querendo ajudar-se uns aos outros, mas intimidados.

Percebi que eu era o homem azul de cabeça cor de laranja; Ernie representava-me sempre com esporas silvestres e papoilas da Califórnia. Uma vez dissera-me que eram as flores que lhe ocorriam sempre que pensava em mim.

A compleição frágil da mulher e a sua forma angulosa e desajeitada davam a entender que nunca atingiria o cume.

É a primeira vez que pões a mãe numa pintura tua - disse a Ernie, que levava uma jarra de gladíolos cor-de-rosa para a mesa.

Percebeste logo que era ela? - perguntou, com um sorriso grato.

Claro - assegurei.

O meu irmão chamou os rapazes para a mesa. Na saladeira de cerâmica preta viam-se verduras cultivadas por ele, coroadas por flores de chagas amarelas e cor de laranja. Não faltava uma garrafa das grandes de Coca-Cola para Nati e Jorge, e um jarro de sumo de cenoura para Ernie e para mim.

Os toalhetes - da Tailândia - eram de seda cor-de-rosa cintilante, e os copos – mexicanos espessos e azuis, com umas bolhas esverdeadas que se tinham formado no vidro. Dava-me muitas vezes a impressão de que Ernie era um homem recentemente curado de cegueira - procurando sempre rodear-se de cor.

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Jorge e eu ocupámos os lugares habituais, mas Nati preferiu esperar até a comida ser servida. Ficou à janela que dava para o roseiral do tio.

À vontade - disse Ernie. Enfiando as luvas de cozinha da tia Olívia em forma de árvore de Natal, abriu com estrondo a porta do fogão e retirou a caçarola de barro branco com a beringela estufada. Poisou-a na mesa em cima de uma base de azulejo e recuou para verificar se estava bem assente. Achando que não se encontrava no sítio certo, deslocou-a um pouco para junto da saladeira. Ainda não estava bem, e chegou-a mais para junto da borda da mesa.

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A vida era para Ernie muitas vezes um jogo de xadrez consigo próprio. Apressá-lo faria apenas com que perdesse o jogo, por isso disse-lhe que não havia problema nenhum quando pediu desculpa por levar tanto tempo a ter tudo pronto. Nati olhava pela janela. Imaginei que estaria a ver-se a si próprio a caminho da estrada para Évora e a apanhar um autocarro para casa.

Depois de Ernie ter mudado as coisas pela sétima vez, Jorge perguntou-me o que estava o tio a fazer. Já lhe tinha explicado antes, mas esquecera-o. «Ele precisa de ter tudo no alinhamento certo.»

Finalmente, quando Ernie tinha tudo nos sítios que considerava certos, sentou-se ao lado de Jorge, e Nati deixou-se cair na cadeira junto a mim do outro lado da mesa. O meu irmão pediu me para dizer a oração de graças. Aproveitei a oportunidade Rara estabelecer uma trégua com Nati

Agradecemos o solo do Alentejo e as plantas pelas dádivas que hoje nos dão - comecei. Estamos gratos a Ernie pela sua horta e pelos seus cozinhados, e a Jorge e Nati por se terem privado de um sábado em frente da televisão e da internet. Solenemente pedimos desculpa por quaisquer erros que tenhamos cometido desde a última vez em que estivemos juntos. «Solenemente» era uma palavra da tia Olívia. Podia ainda ouvir a sonora redondeza com que ela a pronunciava. A minha tia incluíra-a em muitos dos encantamentos destinados a transformar dois rapazes perdidos em qualquer coisa semelhante a dois homens.

Ámen - disse Ernie, sorrindo-me ao reconhecer a linguagem cifrada com que eu agradecia à nossa tia.

Estava à espera de uma expressão de está-tudo-perdoado na cara do meu filho mais velho, mas ele desviou o olhar como se eu estivesse a interferir nos seus pensamentos. O silêncio tenso de Nati durante o resto do almoço era como um anúncio de néon a relampejar: «Estou chateado, e a culpa é do meu pai!» Na altura da sobremesa - os famosos biscoitos de chocolate e canela -, o rapaz amuado deu uma palmadinha na barriga, disse que estava cheio e, de Moby Dick na mão, foi procurar refúgio no alpendre protegido por uma porta de rede. Jorge ficou com sono a meio do terceiro biscoito, poisou a cabeça na mesa e fechou os olhos.

Está na hora da tua sestinha - disse Ernie, tirando-lhe o resto do biscoito dos dedos lassos e oferecendo-mo. Pegou em Jorge ao colo e

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levantou-o. Depois lançou-me um olhar apreensivo. - Posso? - murmurou.

Caramba, Ernie, já sabes que não precisas de perguntar - respondi num tom aborrecido.

Ernie levou Jorge para o futon e aconchegou-o com movimentos rápidos e precisos. Apercebi-me de como admirava o meu irmão mais do que qualquer outra pessoa, e reparar no encantamento que se lia nos seus olhos enquanto enfiava uma almofada debaixo da cabeça do meu filho valeu o dia. Era como se tivesse conseguido oferecer-lhes, a ele e a Jorge, a prenda de que mais precisavam. Tinha já levado Ana a prometer-me que se eu morresse antes de os miúdos serem adultos ela faria com que Ernie fosse uma presença constante na vida de Jorge. Com o meu irmão, o meu filho haveria de aprender a rodear-se de coisas simples e belas - e talvez até a deixar de temer o silêncio. E o meu irmão não ficaria tão destroçado com a minha morte se soubesse que havia um miúdo a contar com ele.

Ernie voltou para junto de mim em bicos de pés.

Magoa-me que ainda me peças autorização - disse-lhe.

Sai-me sem pensar.

O miúdo acha que tu és esquisito, mas perfeito.

Isso é um paradoxo - observou.

Para ele não é. Ter sete anos tem claras vantagens.

Depois de termos lavado a louça, Ernie foi buscar as fotografias do nosso rancho. Tirou as luvas de látex, deduzindo que o sobrinho se sentiria-mais à vontade com ele se tivesse um ar «um pouco menos pirado», como me disse com m sorriso cúmplice.

Fiquei atrás das cortinas a observá-los. Nati sentou-se no velho banco que tínhamos pintado de amarelo alguns anos antes e Ernie, numa das cadeiras de vime. Deixou que o meu filho fosse passando as fotografias em silêncio e depois contou-lhe como costumávamos andar à procura de escorpiões nas bordas do Black Canyon e como o interior do Colorado tinha sido a nossa verdadeira terra natal.

Tudo o que víamos na natureza aceitava-nos, ao teu pai e a mim, tal como nós éramos - disse ele.

E os teus pais não? - perguntou Nati.

O nosso pai não.

Ele dizia-te coisas horríveis aos berros, não era?

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Ernie agarrou na gravata de cordão - com uma figura de prata de Kokopelli, o deus travesso do Sudoeste americano - e olhou para fora, para o horizonte.

Ele não queria, Nati, mas era o que fazia.

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Inundou-me um sentimento de culpa por estar a invadir a privacidade deles, e então mudei-me para a mesa de Ernie e passei o dedo em volta das pétalas que formavam a silhueta da nossa mãe na sua última pintura. Quando voltou para casa, disse-me que a conversa entre os dois parecia ter corrido bem, depois lavou as mãos no Lava-loiças. Assim que acabou, peguei nos meus sacos de recolha de provas e pedi-lhe para irmos dar uma volta.

Quando seguíamos a caminho do grande maciço de alfarrobeiras, frondosas, de ramos grossos, atalhamos para o roseiral, e Ernie pegou num louva-a-deus de cima de uma folha. O inseto, que se confundia comum rebento de planta, tinha uma cor castanho-esverdeada, umas patas compridas espinhosas e uma cabeça serena, nobre, levantada - o bailarino do mundo invertebrado. Ernie disse-me que um mês antes espalhara dois mil louva-a-deus bebés na horta. Encomendara-os de Espanha. Iriam devorar os afídeos e outras pragas de insetos durante todo o verão. Às vezes conseguiam esgueirar-se para dentro de casa, e até para a sua cama, mas não se importava.

À sombra da mais velha e copada das suas alfarrobeiras, sentados na manta verde que Ernie trouxera, estendi-lhe o saco que continha a faca de Sandra e contei-lhe que a encontrara debaixo da cama dela. Ficou com os olhos esgazeados de apreensão.

Porque me mostras isso, Rico?

Tinha uma mentira preparada.

Lembras-te de como costumávamos esconder os nossos pratos do jantar debaixo da cama quando não nos apetecia lavá-los logo? Pensei que talvez tivesses alguma ideia da razão que a terá levado a esconder a faca.

Abanou a cabeça. Iria jurar que estava a esconder-me alguma coisa.

E ele percebeu que percebi, o que o deixou nervoso. Passados instantes, levantou-se e caminhou pelo declive suave da encosta em direção ao leito seco do riacho onde algumas vezes encontrámos cogumelos comestíveis. Segui -o até o apanhar enquanto ele procurava atrás de um carvalho tombado. Mostrei-lhe o honeydripper.

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Também encontrei isto... Enfiado num canto da cama da miúda.

Porque estás tão preocupado em saber o que se passa com ela? - perguntou.

Porque ela se recusa a dizer a quem quer que seja quem a está a magoar ou a ameaçar. Acha que a sua única proteção é o silêncio. E tanto tu, Ernie, como eu sabemos muito bem que isso nunca será suficiente.

Quando ele se afastou, não o segui. Voltei para casa e sentei-me no futon com o nosso saco de moedas romanas nos joelhos. Nesse momento, aquele peso tilintante significava para mim que o passado por vezes nos envia mensagens e que algumas delas podem mudar as nossas vidas no presente. Contemplava Jorge a dormir, lamentando que ele em breve crescesse e se

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afastasse de mim como o irmão mais velho - e esperando ser capaz de o deixar seguir o seu caminho sem me opor.

Ernie voltou daí a meia hora. Os joelhos das calças estavam sujos de terra. Teria ele estado a rezar?

Apanhou a moeda romana que lhe atirei e fez um aceno cúmplice com a cabeça, como se soubesse que à minha maneira também eu estivera em comunhão com os deuses menores.

Dá-me só algum tempo e eu digo-te o que souber - disse ele.

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Capítulo 13

Não tentes enganar-me - disse Ernie, em tom ressentido. Amachucava entre as mãos uma bola de basebol coçada.

Estávamos sentados no alpendre de pedra, sob uma espessa ramada de kiwis, que baloiçavam pendentes como brincos castanhos e felpudos. Jorge continuava na sua sesta. Nati lia Moby Dick à sombra de uma laranjeira na Via Enrico.

Não estou a tentar enganar-te! - protestei, embora estivesse.

Lembrei-me de repente de ti a esconderes uma faca no nosso quarto quando eras pequeno.

Ele atirou-me a bola e virou o braço esquerdo para me mostrar as marcas irregulares das cicatrizes.

Como achas que arranjei isto?

Pensava que tinha sido o pai a fazer isso quando eu não estava por perto.

Não. Não são suficientemente fundas para serem obra dele.

Voltou-se olhando a casa com uma expressão apreensiva - o mesmo rapaz silencioso, de olhos sempre atentos, que na escola titubeava as respostas e nunca confiava nas palavras, uma outra maneira de dizer que nunca lhe tinham sido de grande ajuda. Há momentos para que nunca se está preparado, e eu pressentia que este seria um deles.

Diz-me no que estás a pensar - pedi-lhe.

Comecei a cortar-me em criança - disse ele.

Senti um baque no coração.

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Com uma faca?

Sim.

Page 147: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

Porquê?

Às vezes sentia que o peito me ia explodir. Cortar-me aliviava-me.

E não te doía?

Claro que doía! - Atirou a cabeça para trás e soltou uma boa gargalhada. - Mas quando doía mesmo a sério eu ficava completamente entorpecido.

Abriu as mãos e abanou-as. Atirei-lhe a bola de volta.

Fazias isso muitas vezes? - perguntei.

Talvez uma vez por semana.

Atirou a bola ao ar e apanhou-a com uma mão.

Mesmo quando eras realmente pequeno?

Não. Só quando o pai desapareceu. Comecei a ter medo de que ele voltasse e me levasse e que tu nunca mais conseguisses encontrar-me.

Ainda te cortas? - perguntei. Sentia, suspensa em mim, a esperança de que ele não o fizesse. Receava respirar.

Não, nunca.

Não acreditei; tinha respondido com demasiada determinação. No entanto, havia entre nós um acordo tácito de não nos perseguirmos nos nossos refúgios; por isso, deixei-me ficar calado. Equilibrou a bola em cima do ombro e, inclinando-se ligeiramente para o lado, fê-la rolar pelo braço até à mão. Era uma habilidade que o nosso pai nos ensinara e que Ernie dominava. Tinha a certeza de que estava a dizer-me na língua do nosso passado que poda ser tão reservado como eu.

Ouve, Rico - disse ele -, arranja uma pediatra para ver os braços e as pernas da rapariga. E outras partes do corpo mais... íntimas, também.

Enquanto eu magicava no que poderia ter levado Sandra Coutinho a ferir-se a si própria, Jorge gritou «Papá!». Estava a acenar-me do alpendre, com o pijama vestido.

Não venhas cá para fora descalço! - berrei. - Vai vestir-te!

Jorge voltou para dentro. Ernie e eu fingimos estar a observar diferentes áreas do horizonte; às vezes, a nossa intimidade pesava-nos demasiado.

Jorge apareceu de calções e T-shirt, com os seus adorados Puma, uns ténis vermelhos de cano alto com emblemas azuis dos lados.

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O meu irmão pediu-lhe, por favor, para não pisar os louva-a-deus. Depois sentou-o em cima do joelho a brincar aos rodeos. Ernie era um cavalo chamado Pillsbury empinando-se loucamente

Page 148: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

e Jorge, um veterano grisalho dos rodeos chamado Ferndale Hawkins, um nome que Ernie e eu tinha-mos inventado em pequenos.

Ferndale não parava de tombar ao chão, de sacudir a poeira e de voltar imediatamente para cima do Pillsbury, embora se queixasse de que Ernie se empinava de mais. O meu irmão relinchava e abanava a cabeça a exprimir o seu desacordo. Fazia um belo cavalo.

Vendo Jorge sacudido para cima e para baixo, esbracejando, rindo-se perdidamente, compreendi que era um rapazinho resistente.

Depois de dizer «Por favor, Pillsbury, já não aguento mais», Jorge deixou-se cair para trás no colo do tio, ofegante. Passado os braços em volta do pescoço do meu irmão, fechou os olhos e contou-nos numa voz sonhadora que queria ir a Langley Falls, na Virginia, antes de a escola recomeçar no outono. «É onde o Roger vive», disse ele ao meu irmão, e lá tive de explicar o que era o American Dad e o extraterrestre em forma de pera e com uma sexualidade ambígua que conquistara o coração de Jorge.

A propósito, entrámos então no tema das viagens de sonho. Disse-lhe que adorava visitar o Grand Canyon.

Talvez possamos ir na primavera - arrisquei.

Nunca mais saio de Portugal - declarou Ernie, como se perante um juiz.

Se fosses comigo e com a Ana, não te aconteceria nada de mal disse eu.

Podias vir comigo a Langley Falls! - chilreou Jorge. - Ias gostar do Roger!

OK, Ferndale - assentiu o meu irmão, poisando as mãos na cabeça do meu filho -, quando tu e o Roger chegarem a acordo sobre a visita, informa-me da data.

Moonfish! - exclamou Jorge; era o nome de um jogo que jogavam, e que Jorge adorava usar para apanhar o tio desprevenido.

Ernie apertou as bochechas de Jorge de maneira que os lábios formassem uma espécie de bico e ele pudesse imitar um peixe tropical atravessando, aos beijos, as águas cálidas e cristalinas. Ernie fez o mesmo chupando as suas próprias bochechas.

Tu também, papá! - exclamou Jorge.

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Enquanto sulcávamos as águas do nosso recife de coral privativo, um lagarto emergiu de entre as ervas. O meu filho soltou um guincho.

O bicho tinha uns vinte e cinco centímetros de comprimento e a cabeça de um azul vivo - um dinossauro em miniatura.

Jorge refugiou-se atrás de Ernie.

O que... o que é aquilo?

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É inofensivo - tranquilizou-o o meu irmão.

Mas tem uma cabeça azul! - exclamou Jorge, como se isso fosse um sinal de perigo.

Porque é um lagarto de água - explicou Ernie.

Vive na água? O que faz ele aqui?

Anda à procura de comida, acho eu - disse o meu irmão.

Caramba, que belo animal! - exclamei. - «O mundo é belo!» - proclamou Jorge na sua voz de publicidade.

É de um anúncio aos perfumes Kenzo - expliquei a Ernie.

A cabeça do minúsculo dinossauro era azul com pintas pretas; o dorso, de um verde-esmeralda, e o ventre, de um laranja-amarelado.

A cauda, comprida e ondulante, tinha um tom rosa-pardo.

Pusemo-nos à sua roda, a observar aquele desajeitado arco-Íris de quatro patas avançando vagarosamente por entre as ervas delgadas semelhantes a trigo que havia entre nós.

Não acredito que haja em Portugal um lagarto mais bonito do que qualquer outro dos que vimos no Colorado - disse eu.

Parece tão sozinho - choramingou Jorge. - Podemos levá-lo para casa, papá?

Não, está melhor aqui, meu querido.

É aqui que ele precisa de estar - concordou Ernie, e na sua cara espalhou-se aquela expressão ufana com que costuma ficar quando compreende alguma coisa importante, o que me levou a aperceber-me de que descobrira um trunfo para derrotar quaisquer argumentos que eu usasse para o convencer a acompanhar-nos na viagem. Voltando-se para Jorge, mas falando comigo, disse: - Se tirasses este lagarto dos sítios que ele conhece, mesmo que fosse para o lugar mais maravilhoso do mundo, era capaz de perder toda a sua cor.

Quando Ernie e Jorge se afastaram para ir ver como as oliveiras gozavam o verão, regressei para casa para fazer algumas chamadas.

O meu telemóvel tocou maio liguei. Era Yosoi Kimura. Tinha um sota que japonês marcado, mas o seu português era muito bom.

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Os carateres que me mandou são os do nome Diana - disse ele.

E o nome «Diana» tem algum significado especial na cultura japonesa?

Bem, pode significar «grande buraco». Só que nesse caso estaria escrito em carateres de estilo chinês. Da maneira que estão, são apenas um nome.

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Depois de agradecer a Kimura e de desligar, liguei o portátil e consultei as fotografias que Fonseca tirara ao caderno de endereços de Coutinho. Havia duas Dianas na lista, uma com uma morada de Lisboa, a outra de Coimbra. Anotei os nomes completos e os números de telefone no meu bloco e depois telefonei ao inspetor Quintela.

Disse-me que tinha na sua posse uma lista das chamadas feitas e recebidas vela vítima durante as duas últimas semanas. Verificou os números que lhe li e não tardou a concluirmos que Coutinho não falara com nenhuma das duas Dianas. Tinha falado apenas com duas mulheres além da esposa e da filha durante a última semana: Fernanda Aleixo, a sua secretária, e uma arquiteta chamada Maria Teresa Sanderson. Ligara para a secretária uma vez na terça-feira e duas vezes para a arquiteta na quarta-feira, véspera da sua morte.

Foram demoradas as conversas com a Sr.ª Sanderson? - perguntei.

Cerca de seis minutos, a primeira, e um pouco mais a segunda.

O nome dela diz-me qualquer coisa - disse eu.

Está ligada por casamento a uma das famílias do vinho do Porto. Disseram-me que aparece de vez em quando naquelas revistas pirosas de celebridades, assim como o nosso morto.

Diga-me que mais descobriu sobre ela.

Até agora, tudo o que sei é que trabalhava no projeto de uma urbanização que o Coutinho estava a construir nas margens do estuário do Sado.

Mas isso não é uma zona protegida?

Parcialmente... Há uma parte que fica na reserva natural do estuário do Sado.

Sabe se a urbanização do Coutinho ficava dentro da área da reserva?

Não. Mas isso não seria ilegal?

Precisamente - disse eu. - Veja se arranja um mapa com a delimitação da reserva e outro que mostre exatamente a localização do projeto

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de urbanização. Por acaso tem o endereço do gabinete onde trabalha a Sr.ª Sanderson?

Sim, tenho-o aqui algures nas minhas notas...

Leu-mo. Ficava na Rua Alexandre Herculano. Dali, Teresa Sanderson poderia pôr-se na Rua do Vale em menos de meia hora a pé.

Telefonei à Sr.ª Sanderson do alpendre. Mal me apresentei, disse-me que estava à espera de que a polícia entrasse em contacto com ela.

Ouvindo o meu sotaque, mudou para inglês. Explicou-me que tinha feito todos os seus estudos em Londres.

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Então leu as notícias sobre o crime? - perguntei.

Li, hoje de manhã. Imaginei que, mais cedo ou mais tarde, vocês se iriam voltar para os associados de negócios do Pedro.

As suas relações com ele eram só essas?

Que quer dizer com isso? - ripostou num tom afrontado.

Desculpe-me ser tão direto, mas andava a dormir com ele?

Sr. inspetor, eu não durmo com homens casados. Cometi esse erro uma vez quando era nova e estúpida, e jurei para nunca mais.

Então de que falaram, a senhora e o falecido, nas últimas conversas ao telefone?

De fontes.

Que tipo de fontes?

Fontes decorativas... para os terrenos do projeto de urbanização.

Ele disse-me que as pessoas endinheiradas as achavam chiques. O que é verdade, embora normalmente sejam demasiado forretas para pagar uma boa manutenção. Aqui entre nós, muitas vezes tenho a impressão de que os portugueses constroem coisas bonitas só para depois as deixarem cair aos bocados. Seja como for, o Pedro e eu tivemos uma discussão. Quem ganhou?

Vou dar-lhe uma pista... Quem paga as contas é ele. Mas convenci-o a reduzi-las de quatro para duas.

Então a urbanização fica dentro da área da reserva natural?

Ela respondeu com silêncio.

Vou descobrir isso mais cedo ou mais tarde; portanto, mais vale dizer-mo já.

Acrescentámos uma estrada de acesso que fica na área da reserva reconheceu, recalcitrante. Só isso?

E um centro comercial pequeníssimo.

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Ri-me por ela dizer «pequeníssimo» como se isso bastasse para o crime não ultrapassar os limites do bom gosto.

Oiça, Sr. inspetor - disse ela, num tom zangado, como se eu a tivesse ofendido -, ali, a ria já estava comprometida por causa de uma fábrica que fechou há anos e que estava a cair aos bocados!

Vai poder explicar isso no tribunal - contrapus.

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Garanto-lhe que recebemos todas as autorizações necessárias.

Mas não recebeu a minha!

Estou perfeitamente convencida de que não precisávamos dela, Sr. inspetor.

O tom condescendente da sua réplica acendeu-me uma fogueira no peito.

Deixe-me explicar-lhe como funciona a democracia – disse eu num tom ácido. - Os meus impostos pagam a conservação das terras públicas. Cada centímetro de cada reserva e de cada parque nacional de Portugal pertence-me a mim, à minha mulher e a todos os cidadãos deste país.

Essas ideias talvez façam sentido na América, mas nada irá parar aquele projeto ali. O Pedro já abriu os alicerces.

Quem assinou isso?

Isso das assinaturas era com o Pedro.

Mudei de assunto para evitar pregar-lhe outro sermão agressivo.

Ela afirmava que não conhecia Coutinho muito bem e que nunca se tinha encontrado com ele fora do escritório. Nunca falara nem com a mulher dele nem com a filha. Concordou em enviar os planos da urbanização para o meu gabinete na segunda-feira de manhã cedo. O seu tom frustrado e aborrecido, destinado a convencer-me de que perdia o meu tempo, apenas serviu para me convencer do contrário.

A seguir, liguei para Luci. Disse-me que Jean Morel parecia genuinamente abalado com o assassinato de Coutinho. Afirmava nunca ter empunhado uma arma na vida, e ela acreditava que era verdade.

Que tamanho calça ele? - perguntei.

Quarenta e um. Pedi-lhe para descalçar os sapatos e mos mostrar, só para ter a certeza.

Luci acrescentou que Morel não fazia ideia de quem poderia andar a dormir com o seu velho amigo. Não reparara em roupas de mulher na última visita que fizera à vítima e não sabia nada de quaisquer

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inimigos que Pedro Coutinho pudesse ter feito no Japão. Coutinho nunca lhe falara em nenhuma Diana.

Lendo atentamente as notas que tirara, Luci disse-me que Morel tinha identificado o quadro que faltava na sala de estar como sendo um pequeno retrato não assinado do século XIX de uma jovem aristocrata, que Coutinho descobrira num antiquário em Nova Iorque há cerca de um ano. Disse que o amigo se apaixonara pelo retrato à primeira vista e que o tinha comprado de imediato. Não sabia ao certo se Sandi estava com o pai quando ele o adquirira. Quanto ao

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desenho do Almeida, antes estava na biblioteca de Coutinho, o que significava que eu agora poderia ter a certeza de que o assassino tivera tempo para subir ao piso superior.

Será que o assassino já sabia da existência do retrato do século XIX e tencionava roubá-lo desde o princípio? Se assim fosse, então quer dizer que já tinha estado em casa da vítima.

Depois de Luci ter acabado de me ler as suas notas, liguei para a Sr. Coutinho. Estava pior da gripe. Num murmúrio dificultoso, disse-me que Pedro nunca lhe falara em nenhuma Diana.

Não se lembrava de quaisquer pormenores relacionados com a mulher do retrato que Morel tinha identificado e não fazia ideia das razões que poderiam levar alguém a roubar um quadro anónimo.

E quanto a Maria Teresa Sanderson? - perguntei. - Alguma vez ouviu falar nela?

Não.

Então fale-me de Fernanda Aleixo - disse eu.

Bolas, o senhor está realmente perdido, não está? – perguntou, como se estivesse a abandonar todas as esperanças que depositara em mim. - A Fernanda é uma mulher nos seus cinquenta e tal anos, gorda como um tomate, e a fulana que o senhor procura é mais nova e mais bonita do que eu, Sr. Monroe. Ou será que ainda não percebeu o que põe os portugueses de meia-idade a cantar no chuveiro?

Nessa noite, Jorge serviu-se duas vezes do risoto de beterraba e basílico, mas Nati examinou a comida no prato como se eu a tivesse envenenado. Todas as minhas tentativas para falar com ele eram recebidas com um olhar fulminante. Mesmo assim, quando chegou a hora de dormir, deixou que lhe desse as boas-noites sem me virar as costas nem resmungar. E sem carregar na tecla dele te. Um pequeno triunfo.

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Acordei uma vez durante a noite por precisar de ir à casa de banho e descobri um gosto a chocolate na boca. Tinha em cima da barriga um papel dobrado em dois. Fui até ao alpendre em bicos de pés e puxei a corda de uma lanterna chinesa que pendia do teto. Borboletas noturnas de um branco-azulado volteavam em torno da luz de um vermelho líquido.

Ao abrir o papel, verifiquei que se tratava de uma impressão de uma das fotografias das férias de Coutinho em Phu Ket no Natal de 2011: à esquerda, via-se uma praia em forma de crescente, bordejada de palmeiras delgadas; à direita, um mar cor de turquesa com um veleiro ao longe. Alguém desenhara um círculo a tinta verde em volta de um retalho de céu brilhante. Dentro dele, havia várias linhas numa letra tão minúscula que não a conseguia ler. As letras pareciam fazer parte da própria fotografia.

Virando a mão, li: «H - As ínfimas luzinhas vermelhas acabaram por denunciar o segredo.»

Dei com o meu portátil ainda aberto em cima da mesa de Ernie. Junto ao teclado via-se o papel de um chocolate Arcadia amachucado numa bola. Levando o computador para fora, abri o ficheiro de Phu Ket e descobri a fotografia que G tinha imprimido. Era a décima nona da série,

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e via-se um denso aglomerado de pontos brilhantes vermelhos na área que ele delimitara com um círculo na fotografia. Numa ampliação de mil por cento, as luzinhas transformaram-se numa fiada de números, assim como somas em euros e datas. Na primeira linha lia-se: 82 125 10 1461 1010 4 611 26: dez mil euros - 1 de junho.

Havia doze linhas semelhantes. Uma lista de subornos com nomes em código?

Abri o ficheiro das fotografias tiradas um ano antes, no Natal de 2010, quando Coutinho e a família tinham estado de férias em Londres. Na décima nona fotografia via-se Sandi em pé no exterior de uma loja de roupas, protegendo os olhos do sol. Por cima do seu ombro esquerdo pairava um aglomerado semelhante de luzinhas. Quando as ampliei, a lista indicava valores que iam de quatro mil a vinte e dois mil euros.

Ouvindo passos, voltei-me. Ernie abriu a porta de rede e avançou em passos arrastados para junto de mim.

Eh, que se passa? - perguntou sonolento.

Estou só a acabar os trabalhos de casa.

Pareces muito contente.

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Acho que encontrei o que procurava.

Rosie empurrou a porta de rede com o focinho e esgueirou-se para fora. Deixou-se cair aos meus pés com um suspiro resfolegante.

Vê se deixas a porta bem fechada quando te fores deitar - disse o meu irmão, e deu-me um beijo no topo da cabeça antes de voltar para dentro. Rosie deixou-se ficar. Ouvia-a já ressonar suavemente.

A pasta de férias mais antiga era de 2000. Se a minha tese estivesse correta, iria encontrar o registo dos subornos que Coutinho pagara durante os últimos doze anos. Teria de contactar um especialista para trabalhar na descodificação dos nomes.

Minutos depois, quando verificava a lista de 2008, a porta de rede abriu-se de novo e Nati apareceu em passos de zombie de T-shirt e boxers.

Estás OK? - perguntou.

Estou ótimo. Ouve, tenho uma pergunta para ti... O que farias para colar letras microscópicas numa fotografia no computador?

Tens informações secretas que precises de esconder?

Eu não, a vítima.

Nati bocejou e coçou a axila. Rosie avançou para ele e fitou-o com uma expressão implorante. Pegando nela ao colo, disse-me:

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Fazes copy do texto que queres colar, defines a superfície da fotografia onde o queres pôr e depois fazes paste. Como é que não sabes estas coisas?

Nasci há muito tempo. Ainda os dinossauros vagueavam pela Terra.

Nati despediu-se com um gesto de mão.

Espera aí - pedi-lhe num sussurro. - Porque estavas zangado comigo?

Pareceu-me não saber ao certo o que dizer.

Não ouviste nada do que te disse no carro quando vínhamos para cá.

Não é verdade. Lembro-me de que me falaste da tua batalha com comida na cantina e da rapariga que começou a ressonar na aula de Matemática, e...

Não - cortou ele -, tu ouves metade do que digo e depois dizes alguma coisa que achas que tem piada. Isso não é ouvir.

Tudo bem. Estou a ouvir, agora - respondi.

Nati sentou-se e disse-me que andava preocupado com o seu projeto sobre Bossa Nova. Ficara baralhado com acordes e harmonias que não conhecia. Só tinha até sexta-feira para acabar, e cada minuto que

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passava longe de casa deixava -o em risco de não conseguir. Começara a entrar em pânico a caminho de cá.

«Tudo tem sido um potencial desastre para este rapaz desde os seus cinco anos», pensei. Era algo que aprendera e esquecera pelo menos uma dúzia de vezes ao longo dos últimos oito anos.

Assegurei-lhe que conhecia - de cor - todos os álbuns gravados por João Gilberto desde 1959 até 1977.

Meu filho, tens diante de ti um especialista em Bossa Nova!

Não me pareceu convencido, e então cantei-lhe em voz baixa as primeiras notas de Corcovado.

Nada mal - disse ele, lutando contra a vontade de sorrir, ainda renitente em abandonar as suas ansiedades.

Disse-lhe que no dia seguinte lhe dava uma ajuda e, embora não se tenha atirado para os meus braços, como eu esperava, pelo menos deixou que o acompanhasse de volta à cama. Assim que ficou aconchegado na roupa, fiz-lhe uma festa no cabelo para que adormecesse com a ideia de que estava com ele nos meus pensamentos, apesar de não ser verdade. Cogitava, antes, no que poderia ter levado Sandra Coutinho a cortar-se a si própria com aquela faca - à noite, quando estava só. E se Ernie ainda o faria.

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Capítulo 14

Acordei abraçado à almofada, que me tapava os olhos. Sentando-me, à luz suave e inclinada do amanhecer, o meu olhar poisou em Jorge dormindo na cama do meu irmão. Haviam afastado os lençóis com os pés.

Ernie, encostado ao meu filho, tinha o nariz afundado no cabelo castanho e macio do rapazinho, a mão enorme e áspera enrolada à volta da sua cintura. O braço de Jorge pendia ao lado da cama, estendido para Rosie, que ressonava no seu pequeno tapete vermelho, a cabeça enfiada nas patas dianteiras. O miúdo tinha vestido o seu adorado pijama com o Tweety canários graciosos em barquinhos, remando através de nuvens fofas. Ernie, completamente despido, tinha apenas na cabeça a fita sioux com missangas que usava para prender o cabelo quando os miúdos lá estavam.

«Se eu fosse um artista como o Ernie, era isto que pintaria», pensei.

E, então, tive a sensação de uma mão a bater-me na cabeça por trás. Momentos depois, vi-me ajoelhado diante de Jorge, que soluçava. Encontrávamo-nos no exterior da casa. O meu filho estava nu, com o pijama a seu lado na gravilha do chão. Nati implorava-me que deixasse de aterrorizar o irmão. Rosie rosnava-me e ladrava como se eu a tivesse espancado.

Tinha atravessado o tempo e o espaço.

Nati dava-me puxões no braço.

Para de o assustar, pai! Deixa-o em paz!

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Levantando-me, tomei Jorge nos braços e encostei-lhe os lábios à cara, molhada de lágrimas. A cadelita corria à minha volta, rosnando, de dentes à mostra.

Segura a Rosie antes que ela me morda! - disse eu a Nati.

Ele agarrou-a. À medida que o choro de Jorge amainava, perguntei a Nati o que se passara.

Tu não sabes? - Tinha uma expressão tensa e desesperada. Rosie contorcia-se nos seus braços.

Não. Diz-me.

Agarraste o Dingo e começaste aos berros, para que te dissesse o que o teu irmão lhe tinha feito, e ele desatou a chorar. Correste para fora de casa com ele nos braços, despiste-lhe o pijama e estiveste a examiná-lo por todo o lado e… - Nati, ofegante, perdeu o fio do que dizia.

Ok, já percebi – respondi – Agora diz-me onde está o teu tio.

Em casa.

A porta estava encostada. Virei-me para Jorge e disse-lhe:

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Venho já. O Nati toma conta de ti e volta a vestir-te.

Não! - gritou o miudito por entre lágrimas. Passei-o a Nati antes que o meu sentimento de culpa me envolvesse por completo.

Ernie estava sentado no chão entre a cama e a parede, os joelhos encostados ao peito, escondido atrás de um maciço de roseiras. Tinha tapado os olhos com as mãos. Estava nu. Fechei a porta atrás de mim para manter Rosie lá fora.

Hank, não te aproximes! - gritou, quando me encaminhei para ele.

Ajoelhei-me a seu lado.

Desculpa! - disse eu.

Não devia ter deixado o Jorge vir para a minha cama! - Sangue escorria-lhe das mãos e gotejava para o chão.

Tive um acesso de soluços. Acontecia-me às vezes - com o excesso de emoções.

Feriste-te na cabeça - disse eu, e comecei a levantá-lo, mas ele afastou - me com tal brusquidão que caí para trás.

Ernie tremia de raiva. Não ousei tocar-lhe novamente.

Dois homens sentados um ao lado do outro, sentindo que tudo o que tinham - e que alguma vez teriam - era um ao outro.

Deixa-me ver essa ferida - sussurrei.

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Não. Podes apanhar alguma coisa! - avisou.

Que queres dizer com isso?

Posso ter alguma doença grave. Até posso ter sida.

Como é que podias ter sida?

Estive com mulheres.

Que mulheres? Onde?

Em Évora.

Prostitutas?

Ele disse que sim com um aceno da cabeça.

Tomaste precauções?

Claro que sim, mas isso não é nenhuma garantia.

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Tive a sensação de que o tempo se detinha. O corpo pesava-me com a necessidade de ficar precisamente onde estava. Tínhamos de nos manter o mais quietos possível - sem fazer o mínimo ruído - para podermos sobreviver a tudo o que pudesse correr mal.

Lá fora, Jorge recomeçara a soluçar. A necessidade de o ter nos braços feria - me as mãos.

Nati, traz cá o teu irmão! - gritei.

Nati surgiu no limiar da porta.

O Dingo vai ficar OK - declarou. - Conheço a receita. - Falava com uma determinação adulta que nunca antes lhe vira. Devia ter observado como eu fazia para acalmar o irmão, sem que eu desse por ela.

Se precisares de ajuda, chama-me - disse-lhe, num tom grato. - Eu vou logo.

Ernie tinha começado a baloiçar-se para trás e para diante. Afastei-lhe as mãos dos olhos, que se encheram de lágrimas quando me viram, assim como os meus.

Vai-te embora! - disse ele, zangado.

A ferida não é funda. Não demora a estancar.

Com Ernie, era importante que eu tomasse conta da situação no momento certo, por isso despi a T-shirt, enrolei-a à volta da mão e apertei-a com força contra o ferimento. Os meus movimentos eram rápidos e seguros. Devia ter percebido que não esquecemos como tratar uma ferida.

Vai-te embora! - gritou Ernie irritado, e empurrou-me mais uma vez com força.

Estou-me nas tintas se apanhar o que tu tens! - gritei em resposta, e espalmei a mão contra a ferida. Ernie recuou encolhendo-se e recusou-se

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a falar, dando a impressão de se refugiar naquele espaço fechado dentro de si onde ninguém o poderia encontrar. Portanto, recolhi o seu sangue com a ponta dos dedos e passei-os pela cara, o pescoço e o peito. - Olha para mim! - ordenei. - Estamos nisto juntos. Sempre estivemos e sempre estaremos.

Os olhos pestanejaram, cerrando-se, e Ernie caiu desamparado nos meus braços. Era como se voltasse a ter seis anos.

Não há nada na minha vida que valha a pena se tu não estiveres bem - disse-lhe. - Gostava que fosse diferente, mas não pode ser. Tenho a certeza de que contigo se passa o mesmo.

Chamado de volta a mim por aquela dura verdade que fazíamos o possível por calar, procurou a minha mão. Entrelaçarmos os dedos significava que tínhamos superado mais uma prova. Ao fim de algum tempo, disse-lhe:

És capaz de precisar de levar alguns pontos.

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Não quero ir ao hospital. Se for preciso, dou -os eu.

Não sabes fazer isso.

Sei, sim. Já o fiz antes. E tu também.

Não me lembro.

Seja como for, sabes fazê-lo.

Fui eu que te fiz o ferimento? - perguntei.

Não. Bati com a cabeça na parede.

Porquê?

Vi como estavas a examinar o Jorge - disse Ernie, com um olhar cortante, ressentido.

Fiquei desvairado. Acontece. Foi o suicídio de ontem e depois o assassinato. Quando fico muito transtornado, perco-me... - Era nesse momento que eu devia ter falado de G ao meu irmão; tive a intuição de que chegara a altura, mas sentia que uma mão me apertava o pescoço. Desviei a sua atenção, dizendo: - Odeio que te magoes a ti próprio!

Ele abanou a cabeça com desapontamento.

Não estás a perceber? Isto não é nada... Só que me controlo o melhor que posso quando os miúdos estão cá. Mal tu te vais embora... Por isso é que não posso ir contigo ao Grand Canyon. Ou a qualquer outro lado. Queres correr o risco de o Nati e o Jorge verem o que posso fazer a mim próprio quando estou realmente mal?

Quer dizer que continuas a cortar-te! - exclamei num sussurro que era um grito.

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Há outras coisas muito piores que uma pessoa pode fazer a si própria! - replicou Ernie. Levantei a mão para o impedir de entrar em mais pormenores naquele momento.

Diz-me onde está o estojo de primeiros socorros. O resto logo se vê.

Ernie apontou para uma caixa debaixo da mesa. Antes de a ir buscar, lavei as mãos na cozinha e dei uma olhadela lá para fora. Jorge voltara a vestir as calças do pijama e Nati estava a atar-lhe o cordão da cintura. Compreendi - como quem simplesmente faz a soma de uma coluna de algarismos - que nunca mais deixaria Portugal. Ernie e eu morreríamos aqui. Nunca voltaríamos para casa.

Renunciar para sempre à América obrigar-me-ia a repensar uma data de coisas. Mas estava contente por finalmente ter compreendido a verdade: que a vida que eu e Ernie agora tínhamos era a única que alguma vez teríamos, ainda que não fosse aquela que devíamos ter herdado.

Page 160: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

Os rios subterrâneos podem conduzir-nos a regiões insuspeitadas do coração e, observando os meus filhos a brincar ao berço do gato com um cordel comprido que Nati deve ter encontrado em casa, imaginei -os a meu lado à procura de fósseis na borda do Black Canyon.

Fiz-lhes um aceno por sentir necessidade de lhes mostrar, só com um olhar, que Portugal me bastaria desde que os tivesse por perto.

Olha, papá! - exclamou Jorge, entusiasmado, mostrando-me o paraquedas que Nati o ajudara a fazer com a corda.

Está lindo! Vou já aí ver.

Nati virou-se para me observar. OS seus olhos tinham uma expressão tão preocupada que compreendi que Ernie estava certo; não podia permitir que visse o tio - ou a mim - nos seus piores momentos.

Voltando para dentro de casa, descobri Roxanne, a velha gata de peluche de Ernie, dentro do estojo de primeiros socorros. Quando a levei ao nariz, estava à espera do cheiro a papas de aveia do meu irmão, mas o seu pelo curto e eriçado estava impregnado do odor a cânfora da caixa. Pondo-a de novo no sítio, reparei numa pilha de velhos discos de 78 rotações do meu pai embrulhados num plástico transparente.

Embebi uma bola de algodão em álcool e apliquei-a sobre o ferimento de Ernie.

Merda! - murmurou ele.

Eu só digo palavrões em inglês.

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Só tinha dez anos quando vim para cá. O português penetrou mais fundo na minha cabeça do que na tua. Tu ainda falas com alguns erros.

Achas? - perguntei, fazendo-me de parvo.

De vez em quando falhas o conjuntivo. Às vezes nem sei como os teus colegas de trabalho percebem o que dizes.

Quando é que te transformaste no Noam Chomsky?

Riu-se, e a tensão nos ombros atenuou-se; metermo-nos um com o outro era uma maneira de evitarmos que a nossa dependência mútua nos sufocasse.

Vi a Roxanne - disse-lhe, com um sorriso, de maneira a mostrar-lhe que não me importava. Pois... Salvei-a das chamas quando tu foste a casa buscar mais petróleo. – Sob aquela resposta displicente, detetava-lhe a curiosidade nervosa em saber se eu também teria visto os discos. Melhor para ti - respondi, no nosso código, acrescentando: - Fico contente por teres salvado o que desejavas.

Acenou a cabeça para mostrar que me tinha entendido, apertando a mão com força.

Page 161: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

Ouve - disse eu -, ponho-te uma ligadura quando isso estancar. - A verdade é que ele continuava a recear que tivéssemos de ir ao hospital.

O silêncio que deixámos instalar-se entre nós - enquanto prestávamos atenção aos carros que passavam zunindo na estrada principal era também um modo de mostrarmos a nossa gratidão. Como pudeste pensar que eu era capaz de fazer mal ao Jorge daquela maneira? - perguntou finalmente, e abanou a cabeça de forma a fazer-me compreender que a pergunta era também uma reprimenda.

Só uma maneira de responder me parecia suficientemente séria.

O pai alguma vez... te obrigou a fazer alguma coisa de que tu nunca me tenhas falado?

Não. E a ti? - Fez uma careta para me mostrar que há muito suspeitava do pior.

Não. Houve algumas coisas em que tivemos sorte. - Uma revelação levou a outra, e acrescentei: - Ouve, Ernie, não sei nada sobre o que tu fazes na cama. Embora não tenhas de me dizer, naturalmente.

Ele pôs os olhos no chão - um ângulo que parecia constituir outra pequena parte da nossa herança.

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Foi sempre com prostitutas? - perguntei.

Sempre não, mas a maior parte das vezes.

Alguma vez tiveste uma namorada? - Perante o seu silêncio, abri o ferrolho de um enorme portão que estivera à nossa espera durante anos. - Ou um namorado. Para mim é indiferente.

Ernie começou a torcer uma madeixa de cabelo por trás da meia orelha.

Ernie, se há coisa que aprendi na vida é que temos de aproveitar o amor, venha ele de onde vier, e na forma que escolher assumir.

Compreendendo a ambivalência dos altos e baixos das esperanças do meu irmão, fui levado a confessar-lhe uma coisa que nunca pensei poder dizer:

Tive algumas experiências com rapazes na adolescência. Durante muito tempo isso deixava-me embaraçado. Talvez ainda me deixe.

Mas isso é problema meu... Não é porque o que fiz estivesse errado. No fundo, sei que era certo. Porque cada uma das confusões mais loucas em que me meti, cada um dos beijos, me levou até à Ana, e isso foi uma coisa boa.

Nem namorado, nem namorada - murmurou ele.

Lançou-me um sorriso dissimulado, inibido - como que sacudindo a derrota -, e olhou-me nos olhos.

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Apesar de tudo, tive os meus momentos de amor verdadeiro.

Afastei-me porque «momentos de amor verdadeiro» era o que há muito desejava para ele, mas sem fé de alguma vez ouvir essas palavras a não ser nos meus sonhos. De modo a encontrar um lugar dentro de mim para tão grande gratidão antes que ela se desvanecesse, pedi-lhe que segurasse a minha camisa contra o ferimento e se aproximasse da janela. Lá fora, Nati levantava Jorge pela cintura para ele poder chegar a um limão do limoeiro que tínhamos plantado junto à chaminé. De volta ao chão, Jorge agarrou o fruto entre as mãos, a rebentar de alegria, como se tivesse roubado o ovo de ouro do ganso. Encantava-me a tremenda diferença de temperamentos dos meus filhos. E compreendi que podia ter-me poupado a milhares de noites insones, dominadas pela angústia, se tivesse tido mais confiança no meu irmão e nas suas capacidades de adaptação. Quanto à conversa que estávamos a ter - e a cautelosa atenção que mostrávamos um pelo outro - era uma parte da vida que eu não quereria perder por nada deste mundo.

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E deu-se então o verdadeiro milagre: pareceu-me que a tia Olívia entrava em casa trazida pela brisa rescendente a terra e passava por mim para ir ter com o meu irmão. «Ela haveria de gostar de estar aqui connosco», pensei, como se espíritos e fantasmas se guiassem pelos padrões dos vivos, e só estremeci no momento em que a sua presença deixou de parecer perfeitamente razoável. Disse a Ernie o que ela nos teria dito se ali estivesse:

Tu mereces mais amor do que qualquer pessoa que conheço. - «Merecer» não conta grande coisa neste mundo - respondeu.

Sabes isso tão bem como eu.

Considera as minhas palavras um feitiço - disse eu, surpreendido por ter acertado numa resposta que se ajustava tão perfeitamente à minha intenção.

Ernie aceitou a minha mudança de interpretação com um sorriso irónico; muda-se o embrulho e a prenda muda também.

Quando voltei a minha atenção novamente para ele, um louva-a-deus verde - do tamanho de um palito - estava pousado na sua coxa. Tinha-lhe agarrado a ponta de um dedo com as patas ásperas em forma de L. O olhar de Ernie era atento e sério - o olhar estudioso do biólogo amador que era desde os três anos, atraído pela gravidade vermelha e amarela das flores silvestres do Colorado.

O meu medo de ser tocado é grande de mais para que o sexo possa ser bom para mim ou para qualquer outra pessoa - confessou.

Os primeiros esforços são uma coisa terrível para toda a gente assegurei -lhe.

Rico, eu quase sempre peço desculpa logo a seguir. E, a bem dizer, todas as pessoas com quem dormi aceitam as minhas desculpas. Sabes o que isso quer dizer? - Revirou os olhos. - Sou um desastre.

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Estávamos agachados entre a cama e a parede, atrás de uma roseira vermelha resplandecente, e Ernie movia o dedo para trás e para diante a testar a aparente e imperturbável boa vontade de uma criatura que parecia habitar a Terra há centenas de milhões de anos, antes mesmo de os seres humanos terem surgido. Eu estava pintado com riscas de sangue como um cherokee e ele nu e a sangrar. No olhar irónico que trocámos podia ler-se o já familiar «lá voltámos nós a Cascos de Rolha», como sempre que dávamos por nós a chegar a um ponto que nunca poderíamos ter previsto.

Pousei a ponta do indicador numa mancha de sangue na camisa que ele continuava a segurar contra a testa e desenhei-lhe na cara algumas riscas.

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Agora todos podem ver que pertencemos à mesma família.

Membros da tribo de Rivermouth - disse ele, já que o significado original de Monroe era «rivermouth», foz, em gaélico.

E orgulhosos membros do clã dos Coelho - acrescentei, pois o apelido da nossa mãe era Coelho.

Passados alguns instantes, Ernie murmurou:

Ouve, Rico, sei que tu às vezes ficas dominado por alguém.

Será que, tal como eu, também ele teria sentido que chegara o momento de falar de Gabriel? A maneira como desviou o olhar dava-me a entender que não devia sentir-me obrigado a responder.

Não sei ao certo se é isso que realmente acontece - disse eu.

Franziu os lábios, desagradado.

Pelo menos um dia por ano, devíamos ser capazes de dizer um ao outro as coisas como elas são realmente.

Então, há quanto tempo é que sabes? - perguntei, esforçando-me em vão por evitar que a vergonha continuasse à espreita na nossa conversa.

Desde que éramos crianças. Tu desapareces e há alguém que toma o teu lugar, embora não saiba quem é.

Observei os músculos que se desenhavam sinuosos pelos seus ombros e braços, e como as mãos pareciam grandes de mais para o corpo. Ernie era forte e saudável - o modesto herói do western português de segunda categoria em que a sua vida se transformara.

Por que razão a nossa mãe nunca nos dissera quem era na realidade o pai de Ernie? Talvez pensasse que soubéssemos. E talvez fosse esse o caso.

Retirei a camisa da testa de Ernie para dar uma olhadela ao ferimento, que praticamente deixara de sangrar. Tirei com os dedos um bocado de cabelo que tinha ficado colado.

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Ata lá essa juba e vem para a tua cama falar comigo.

Sentado no colchão de Ernie, recostei-me a uma almofada junto à parede. Ernie tirou da mesa de cabeceira uma fita para o cabelo, fez um rabo de cavalo apertado e deitou-se a meu lado. Devagar, cautelosamente, pausando e recomeçando, hesitante - com uma voz que parecia pertencer a outra pessoa -, contei ao meu irmão a primeira mensagem que G me escrevera na palma da mão. Continuei, falando-lhe das vezes em que ele se submetera às provas que o nosso pai tinha planeado para mim, sempre atento ao olhar de Ernie, em

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busca de qualquer sinal de ceticismo, mas não vi nada. Compreendi que, contando-lhe tudo o que sabia, estava a cumprir uma promessa feita há muito tempo sem mesmo ter consciência disso. Finalmente podia dar-lhe testemunho de todas as vezes em que G lhe salvara a vida.

Expliquei a Ernie que achava que tudo o que ele sofrera tinha tornado G mais atento.

É excelente a identificar os aspetos essenciais de uma paisagem, uma sala, uma fotografia, ou, mais precisamente, o local de um crime.

Viu-se obrigado a tornar-se assim. E tem-me ajudado a resolver uma data de casos.

Alguma vez se engana? - perguntou Ernie

Uma vez ou outra deu - me falsas pistas mas mesmo quando isso acontece, não me importo. Porque a verdade, Ernie, é que ele vê coisas que eu não vejo... conexões subtis. Distingue rapidamente o que tem importância daquilo que é insignificante. Viu-se obrigado a desenvolver essa capacidade porque sempre que aparecia era já pouco o tempo com que contávamos. Acho que deve ter também uma memória fotográfica. E uma assombrosa facilidade em encontrar o que estava perdido, o que durante muito tempo me deixou espantado.

Agora já não?

Não. Quando convivemos com uma coisa extraordinária durante trinta anos, se calhar acabamos por nos habituar.

Talvez ele consiga esse grau de concentração porque não se deixa distrair pelo género de sentimentos complexos que as pessoas normais têm. Talvez esteja demasiado empenhado em fazer frente à infelicidade para pensar noutras coisas.

Pode ser - concordei. - Nem sequer sei ao certo se ele dorme. Parece que está sempre a pensar nos meus casos. Tenho a impressão de que mesmo quando eu estou a dormir ele está a tentar resolvê-los.

Às vezes, quando me encontravas, Rico, eu percebia que não eras tu - admitiu Ernie. - Via-te demasiado controlado, demasiado decidido. E houve uma vez em que me disseste que o pai não era o meu pai.

E tu o que respondeste?

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Perguntei-te como sabias e tu respondeste: «Não são parecidos em nada, miúdo.»

Teria Gabriel compreendido muito antes de mim que Ernie podia não ser filho do meu pai? Embora ele pudesse estar apenas a querer

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dizer que a personalidade do meu irmão era completamente diferente da do nosso pai.

Eu tratava-te por «miúdo» muitas vezes? - perguntei.

Sim, como se fosses um adulto. E a tua voz tinha um tom profundo que não era o teu.

Que mais te disse eu?

Que nunca confiasse nas pessoas crescidas... Que confiasse apenas no Hank.

Isso não te deixou assustado?

Não. Nessa altura, eu já tinha amplas provas de que G estava ali para nos ajudar aos dois.

Ernie prosseguiu dizendo-me que tinha pensado que G desaparecera da minha vida, pois há anos que não o via e porque ele, Ernie, deixara de precisar de ser salvo. Quando lhe disse que nem Ana nem os miúdos sabiam que G partilhava o meu corpo, o meu irmão passou a língua pelos lábios, como fazia sempre que se via forçado a decidir entre várias más opções.

Não podia falar de G a Ana sem lhe contar também umas quantas coisas sobre o pai expliquei. Obriguei-o a prometer que nunca revelaria nada aos meus filhos sem o meu acordo. Depois falei-lhe no assassinato de Coutinho e na conversa que tivera com a mulher e a filha dele e em como o caso parecia estar a provocar estragos nas minhas emoções. E nas de G. - Estou a ficar com a ideia de que Sandi foi ameaçada ou até maltratada por alguém que conhecia - disse eu. E que o pai dela pode ter sido assassinado por a defender.

O meu irmão lançou-me um olhar onde transparecia a dúvida de que a sua opinião fosse bem recebida. Levantou-se e foi buscar os jeans.

Diz lá, estou a ouvir - disse eu.

Depois de enfiar as calças, voltou a sentar-se diante de mim.

Ouve, Rico, se a filha da vítima se autoflagela, isso quer dizer que há alguém ou alguma coisa a atormentá-la, e a única maneira de.

Ernie deteve-se a meio da frase quando Nati e Jorge surgiram à porta, de mãos dadas, ansiosos, crianças a precisarem de adultos. Assim que abri os braços, Jorge correu para mim. Enchi-o de beijinhos, a que ele chamava pipocas, e aconchegou a cabeça entre os meus joelhos.

Nati ficou à porta. Tinha um ar prostrado e exausto, como se tivesse sido atingido por um raio.

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Foste um herói, meu filho - disse eu. Vendo que ele não avançava, propus: - Que dizes a umas panquecas à moda do Colorado feitas pelo tio? - E dirigindo-me ao meu irmão: - Pronto para entrar em ação, chefe?

Deixa-me só ver se arranjo aí uns ovos! - exclamou no seu mais esmerado sotaque arrastado do Oeste.

Merda! - disse Ernie num sussurro gritado e, pela maneira como arrancou a fita com que atava o rabo de cavalo, sacudindo depois o cabelo, concluí que Nati tinha reparado na marca que o nosso pai lhe deixara depois de eu ter falhado a primeira prova. Quando me voltei para o meu filho para o tranquilizar, já ele tinha fugido a correr.

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Capítulo 15

Fui dar com Nati sentado no assento de trás do carro. Pelo modo ambíguo como se esquivou ao meu olhar interrogativo, tive a certeza de que queria que fosse ter com ele, mas que não mo pediria. Como se tivesse finalmente desvendado o sentido de um poema obscuro, apercebime de que andava há semanas a tentar mostrar-me que já não era um rapazinho e que a nossa relação tinha de mudar. Com treze anos apenas e tão impaciente por entrar no alvorecer da idade adulta.

Quando cheguei junto dele, resisti ao impulso de o puxar para mim. Recusar-me esse reconforto físico fez-me lembrar os tempos em que tinha aquela idade e sentimento desolado e desesperançado de ver todas as minhas mais ávidas perguntas sobre mim ficarem sem resposta.

Sei que estás a crescer - murmurei. - Desculpa se isso às vezes é difícil para mim.

Como resposta poisou a cabeça no meu ombro.

Sonho muitas vezes com os tempos em que tinha a tua idade disse eu. - Trinta anos evaporam-se, e eu vejo-me a perguntar-me se alguma vez começarei a fazer a barba ou serei capaz de fazer amor.

Com que é que sonhas quando sonhas que és da minha idade? perguntou ele.

Imagino quase sempre paisagens As montanhas cobertas de neve, a glicínia a trepar pelo nosso pátio Muitas vezes estou na rua

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principal da cidade próxima do sítio onde vivíamos. Parece-me perfeita de mais para ser real.

Nati endireitou-se no assento.

Crawford, não era?

Era. Sabes, há algumas semanas, escrevi um dos sonhos que tive.

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Estava num armazém a comprar um postal para mandar para Portugal.

Só que não conhecia ninguém aqui quando vivia lá.

A quem querias mandar o postal?

A tia Olívia, acho eu. Ou talvez a ti e ao Jorge.

Mas nós ainda não tínhamos nascido... Disseste que eras um miúdo.

Tu viste a fotografia da Patsy Cline... aquela que ela autografou para mim e para o Ernie. Nati, o coração não está tão preso ao tempo como pensamos.

Nati acenou a cabeça a mostrar que tinha compreendido, e eu apercebi-me com um sobressalto de que teria preferido que não tivesse; talvez fosse melhor que ele não sentisse ainda o comprimento e a largura da sua vida. Se pudesse ter sido completamente franco com o meu filho naquele momento, teria dito: «Ser pai é para mim uma constante surpresa. Provavelmente porque tudo parece passar demasiado depressa.»

Pai, o que aconteceu à orelha do tio Ernie? - perguntou ele.

A vantagem de uma grande mentira sobre o nosso passado é que, uma vez construí da uma fachada realmente sólida, ficamos perfeitamente à vontade para descrever tudo o resto como na realidade era.

Tínhamos toneladas de máquinas agrícolas - respondi num tom despreocupado -, e a orelha do Ernie ficou presa numa moto cultivadora.

O que é uma motocultivadora?

Uma máquina para revolver o solo e o preparar para a sementeira.

Baixei a janela do carro do meu lado. Senti na cara um sopro de ar quente.

Daqui a pouco temos de começar a regar a horta do Ernie - disse eu. - As plantas estão todas com a língua de fora.

Os teus pais levaram o Ernie ao hospital? - perguntou Nati.

Sim, fomos para o serviço de urgências em Grand Junction.

O ferimento deve ter sangrado imenso.

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Podes crer! - Encolhi os ombros, como se isso fosse o menor dos males. - O meu pai disse-nos para nos sentarmos em cima de um cobertor velho para proteger os estofos do carro.

Disse o quê? - perguntou Nati numa voz chocada.

O Plymouth dele tinha uns bancos brancos todos chiques, em cabedal verdadeiro. Ele adorava-os. Picaria furioso se o Ernie os tivesse sujado com sangue.

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O teu pai era maluco ou quê?

O carro dele era um '56 Belvedere. Vermelho e branco e com uma espécie de asas na parte de trás. Era lindo! Uau! O teu tio e eu tínhamos a sensação de que éramos celebridades quando andávamos no carro, como astronautas numa parada! Eu era o Neil Armstrong e o Ernie, o Buzz Aldrin. - Acenei à multidão imaginária que nos rodeava como se estivesse numa daquelas cenas do noticiário a passar em câmara lenta.

E no hospital como foi? - perguntou Nati.

O tio Ernie estava em estado de choque quando lá chegámos.

Quase sem pinga de sangue. Os médicos disseram que ele era tão novo que a parte da orelha que se tinha perdido iria voltar a crescer quase toda.

Mas não cresceu.

A princípio sim, mas depois teve uma infeção e isso deitou tudo a perder.

Que idade tinha Ernie?

Quatro anos.

Deve ter apanhado um susto de morte.

Ah, pois. Todos nós. - Nati parecia estar à espera de mais drama e emoção da minha parte, mas eu já tinha esgotado a minha dose anos antes. - O teu tio e eu chorámos anos a fio por causa daquilo - disse eu.

Mas depois compreendemos que as coisas eram assim mesmo e não iriam mudar. A tinta secou e nunca mais poderia ser apagada. - Dei uma palmadinha na perna do meu filho. - Apesar de tudo, não me é difícil imaginar um universo paralelo, e implacável, no qual Ernie teria morrido nesse dia. Vou contar-te um segredo, Nati... Não há um dia da minha vida em que esse universo não me deixe gelado.

Devias ficar aqui no mundo real, pai - retrucou Nati, como se isso fosse tão simples como estar à conversa comigo no carro da mãe.

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E fico... a maior parte do tempo. Mas só de pensar no que poderia ter acontecido ao Ernie... É por isso que me sinto tão feliz por tu teres tido a oportunidade de o conhecer. Eu sei que ele é esquisito, e que tu...

Não faz mal, pai, eu gosto dele... gosto muito dele. Só que às vezes me faz perder a paciência.

Sim, tem esse efeito sobre as pessoas - assenti, secamente.

E então como é que a cabeça dele ficou presa na motocultivadora?

Ele era uma criança curiosa... e andava sempre a sair de junto de mim.

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Felizmente, Nati não perguntou como é que um miúdo de pouco mais de quatro anos tinha conseguido ligar uma motocultivadora.

Pai, o tio Ernie pode usar o rabo de cavalo se quiser. Por mim, não me importo.

Diz-lhe isso. Ele ficara contente. Mas claro que também temos de ver se o Dingo está preparado.

Ficámos sentados no confortável silêncio que criáramos entre nós.

Nati digeria a nova informação sobre o pai e o tio. E talvez, tal como eu, estivesse a pensar na velocidade com que este momento voava em direção ao passado. Parar o tempo - ainda que só por um dia - seria o passe de magia que mais desejaria poder realizar.

Desculpa o susto que te preguei há bocado - disse eu.

Ficaste completamente passado.

Vi o Jorge na cama do Ernie e, por um segundo, pensei que o Ernie era o meu pai. Devia estar ainda meio a dormir.

O teu pai era assim tão mau?

Era, Nati, era. Embora uma vez ou outra também fosse realmente fantástico.

Não entendo.

Nem eu. E acho que também nunca hei de entender.

O pequeno-almoço foi panquecas à moda do Colora do, o que pedia puré de maçã com o ovo. Enquanto os miúdos lavavam os pratos e Ernie trabalhava na sua última pintura, fui arrastando a mangueira pelo jardim de azáleas - vinte e sete pés, e todas elas à sombra dos toldos vermelhos e amarelos que Ernie e eu compráramos no mercado de Évora e que tinha atado a estacas, já que as flores tendiam a ficar queimadas nos dias mais quentes do verão. Dei às plantas toda a água que podiam aguentar, criando o lamaçal que as raízes pareciam apreciar.

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Daí a uma hora, andava eu a arrancar as flores murchas dos hibiscos, Luci ligou-me.

Boas notícias! - exclamou, num tom animado. - Lembra-se do prédio que estava em obras na Rua do Vale, com os andaimes? Um dos trabalhadores que por lá andava viu uma mulher a sair de casa do Coutinho na manhã em que ele foi morto... Por volta das dez horas. Tentou meter conversa, mas ela mandou-o à merda. Só hoje de manhã é que ele viu a notícia sobre o crime nos jornais e foi à esquadra dos Restauradores. Tenho aqui à minha frente um retrato dela feito a partir da descrição da testemunha.

Estou em casa do meu irmão. Ele tem fax. Mande-me o retrato.

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Claro, chefe, mas atenção, não está grande coisa. Ela trazia um chapéu que lhe encobria parte da cara, e o homem só a viu bem por uns segundos, quando ela lhe lançou um olhar furioso. Mas reparou que tinha uma tatuagem esquisita nas costas da mão.

Que tatuagem?

O número trinta. Vou mandar-lhe um fax com o desenho.

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Capítulo 16

Enquanto durou o jantar com o ceramista egocêntrico de Ana, eu ia observando furtivamente os olhos furiosos da mulher que fora talvez a amante de Coutinho. Ao escolher as costas da mão para a tatuagem, pretendia manifestamente que o número 30 fosse visível não só para si como para os outros. Será que lhe acontecera uma daquelas coisas que mudam a vida das pessoas quando tinha trinta anos?

«Tudo mudou nesse ano porque eu...»

Escusei-me logo a seguir à sobremesa e escapei-me para a rua com a ideia de ligar à única pessoa que conhecia capaz de me ajudar a reduzir a lista dos vários desfechos possíveis para aquela frase. David Zydowicz dissera-me que tatuara no braço o número do pai no campo de concentração antes de ele se submeter a uma operação ao coração em 1982.

O meu pai fugia de mim sempre que eu tentava falar com ele sobre o que passara na Polónia - contou-me David -, por isso esse foi o único modo que encontrei de lhe dizer o que precisava de dizer sem necessidade de palavras.

Que género de coisas precisava de dizer?

Que nunca mais o deixaria sozinho no sofrimento. E ainda outras coisas, mas não sei como as dizer em voz alta. Talvez por serem importantes de mais.

Quanto ao número trinta, David disse-me:

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É um numeral; por isso, talvez o que ela precisava de dizer estivesse também para além das palavras.

De volta à mesa do jantar, dei-me conta das várias deixas da minha mulher para que dissesse alguma coisa de bem-humorado ou de memorável ao seu artista, mas não conseguia pensar em mais nada que não na minha investigação. Mais tarde, já em casa, Ana disse-me que eu poderia pelo menos ter parecido interessado no artista. Felizmente, não ficou aborrecida durante muito tempo.

Contrariamente ao habitual, adormeci mal poisei a cabeça na almofada. Acordei com o retinir do telefone de casa. Saltei da cama, com a certeza de que tinha acontecido alguma coisa a Ernie.

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Desculpe tê-lo acordado, Henrique.

Para meu alívio, era a voz do inspetor-chefe Romão, de serviço naquela semana. Dei uma vista de olhos ao relógio; eram sete e catorze.

Não faz mal- retorqui. - Que se passa?

Más notícias - respondeu, e explicou que Susana Coutinho tinha chamado o 112 duas horas antes, por ter encontrado Sandi inconsciente na cama. - A miúda tomou uma mancheia dos comprimidos de dormir da mãe.

Oh, caraças! Onde está ela agora? - perguntei. Tinha a sensação de estar em pé no cimo de um frágil pináculo muito acima daquela conversa.

No hospital Por favor não fique à rasca, mas os médicos não conseguiram estabilizar-lhe a tensão arterial Foi dada como morta às quarenta, e sete.

Não disse nada. Tinha caído num oceano gélido - milhas de mar a perder de vista até ao horizonte - de tudo o que deveria ter sido capaz de prever.

Ana espreguiçou-se atrás de mim.

Algum problema? - perguntou sonolenta.

Levantei a mão a pedir-lhe que esperasse. O peso fatal que sentia no braço fez com que me apercebesse de que haveria de carregar comigo aquele momento por muitos anos.

Odeio cada vez mais este caso - disse eu, mais de mim para comigo do que a Romão.

Tem de aguentar, Henrique.

A miúda deixou alguma carta? - perguntei.

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Nada. Oiça, ainda tentei falar com a mãe, mas ela só quer falar consigo.

«Susana quer dizer-me que nunca há de recuperar», pensei. «Quer que eu saiba a verdade mesmo que minta à família.»

Monroe, agora não me deixe pendurado! - pediu Romão, impaciente.

Vou falar com a Sr.ª Coutinho - disse eu, percebendo que tudo o que ele queria era que eu o livrasse da situação.

Que aconteceu? - perguntou Ana, mal desliguei.

Sentei-me na borda da cama sem sequer dar por isso. Os braços dela enlaçaram-me. Contei-lhe da overdose de Sandi num murmúrio tenso. Esforçava-me por conter um grito; se o soltasse, calculei que não pararia durante muito tempo.

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Se me tocassem quando estava agitado, sentia-me preso numa armadilha; por isso, estendi-me de costas e pus uma almofada em cima dos olhos. Nunca mais me levantar parecia-me a melhor opção.

Um homem imagina que não dirá outra palavra - nem aos colegas, nem à mulher, nem aos filhos nem ao irmão. Diz de si para consigo que entrará em greve contra a iniquidade que se esconde sob todas as coisas, mas sabe que será na realidade contra a sua própria perda de controlo.

Ana disse-me baixinho que ia telefonar para o emprego a avisar que chegaria mais tarde, para poder estar comigo, mas a sua generosidade era a segunda coisa que sentia não merecer naquele momento, e por isso calei-me.

O telefone desatou a emitir uns ruídos insistentes; devia ter colocado mal o auscultador.

Podes desfazê-lo à martelada! - rosnei.

Depois de Ana ter reposto o auscultador no descanso, escancarou a janela. Uma brisa seca entrou pelo quarto trazendo consigo o chilrear das andorinhas. Era tranquilizador tomar consciência de que havia um mundo para além de todas as nossas inquietações, mas eu não queria ser reconfortado; caso não conseguíssemos ir mais longe, devíamos pelo menos ser capazes de sentir o tormento que tinha forçado uma miudita a pôr termo à própria vida. Vieram-me as lágrimas aos olhos, mas apenas pela razão muito egoísta de não poder suportar a ideia de voltar a assumir as minhas funções

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profissionais e enfrentar Susana Coutinho. Ana poisou a mão nas minhas costas como que a querer saber em que estava eu a pensar, mas não lhe disse, porque haveria de parecer uma loucura: «Se uma andorinha entrar pela janela e poisar em cima de mim ou da cama, acreditarei em Deus e em que temos todos uma vida eterna à nossa espera, e voltarei a aprender a rezar. E talvez, se me sentir generoso, me perdoe por tudo o que poderia ter feito e não fiz.»

Nenhuma das andorinhas aceitou o desafio, naturalmente. Era apenas um dos jogos impossíveis-de-ganhar que eu inventava quando queria ter a certeza de ser incapaz de impedir que coisas más acontecessem. E para me lembrar de que não havia Deus nenhum, ainda que a tia Olívia tivesse vivido na certeza de que Ele olhava por cada um de nós.

Depois de a informar das notícias chocantes sobre Sandi, Ana começou a falar comigo numa voz sussurrada, mas deixei de a ouvir mal ela pronunciou as palavras «Tens de aprender...». Em vez disso, levantei-me disposto a vestir as roupas de trabalho. Assegurei-a de que me sentia melhor. Fiz até uns passos de dança idiotas para lho provar coisa que me levou a odiar-me mesmo enquanto o fazia, como se fosse possível transformar o que tinha acontecido numa farsa.

Ana lançou-me um olhar irritado.

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Para com isso! Detesto que te ponhas a fazer figuras tristes. - Arrastou-me de volta para a cama e fez-me sentar a seu lado. Afastando-me o cabelo dos olhos, disse: - Tens um perfil lindo. – Semicerrando os olhos para reforçar o efeito cómico, acrescentou: - Digno de uma estátua romana.

Não me agrada a ideia de não me poder mexer.

Chiu! Sabias que às vezes me ponho a imaginar que eras um nobre romano numa vida passada. É por causa daquelas moedas antigas que tu e o Ernie encontraram. Inventei toda uma história sobre ti.

Não era a primeira vez que era levado a interrogar-me sobre se a vida secreta de Ana não seria tão vasta como a minha.

Que história? - perguntei.

Tu vivias com o Ernie e o resto da tua família na Villa Ernesto no século IV. Tinham um jardim enorme. E uma quinta com oliveiras e vinhas e figueiras. Faziam azeite que mandavam para Roma. Tu e o Ernie eram famosos por causa do azeite. Azeite Lusitano de Enrico e Ernesto! - Ana fixou-me com um olhar incisivo. - Uma das razões por

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que foram atraídos para aquelas velhas ruínas é porque uma parte de vocês se lembrava de que os dois patetas que hoje são já ali tinham vivido.

E eu também era polícia nesse tempo?

Não, já te disse - resmungou ela. - Eras um nobre. Vigiavas a produção do teu famoso azeite. Seja como for, aquele saco de moedas que vocês encontraram... foste tu quem o escondeu ali há mil e seiscentos anos e por isso é que conseguiste encontrá-lo!

Naquele momento, a improbabilidade de ter vivido há mil e seiscentos anos não me parecia muito diferente da de ser quem agora era.

Ana tomou as minhas mãos nas suas.

Agora diz-me lá porque é que a Sandi é tão importante para ti.

Não se pode devolver as prendas que recebemos na infância... – murmurei em jeito de resposta, mesmo não sendo essa a minha intenção.

Ana olhou-me confusa. Levantei-me para ir buscar as calças.

Tenho de ir trabalhar - rematei.

Primeiro diz-me de que prendas estavas a falar - disse ela.

Ana franziu os lábios e fitou-me com um interesse tão confiante que decidi revelar-lhe um pouco mais sobre o que era viver no lado da montanha que ninguém podia ver, mas, ao pegar

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nas calças, as chaves do carro caíram do bolso. Ela agarrou-as e não mas quis devolver. Disse que eu não estava em condições de guiar e insistiu em levar-me a casa de Coutinho.

Opus-me à ideia num tom quezilento, mas ela recusou os meus argumentos com um gesto da mão e saiu para pedir a Nati que olhasse por Jorge. Secretamente sentia-me grato por ela tomar decisões por mim. Nessas alturas, Ana lembrava-me um mestre de xadrez que quase sempre sabia contrariar as minhas jogadas mais astutas.

Do lado de fora do quarto do meu filho, ouvia-os, ela e Nati, a falar em voz baixa, mas sem distinguir as palavras, e pensei: «Tenho ali as pessoas de quem mais gosto, mas este caso tornou-se de tal maneira obsessivo para mim que nem sequer me importa ouvir o que estão a dizer um ao outro.»

Enquanto atravessávamos a cidade, ia ensaiando a melhor maneira de expressar as minhas condolências a Susana Coutinho, mas tudo o que me ocorreu me soava a forçado e completamente descabido. Ana ainda estava de pijama azul às riscas e com uma das minhas velhas

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T-shirts brancas. Adorava sair com o que tinha usado para dormir. Dizia sempre que isso lhe dava a sensação de viver numa pequena aldeia e não numa grande cidade. Disse-lhe que tinha a certeza de que ia dar erros de gramática ao falar - acontecia-me sempre que estava nervoso. Ela não proferiu palavra até estacionarmos. Depois, fez-me uma festa na cara e declarou:

Tu és muito boa pessoa. E a senhora Coutinho vai perceber isso.

Se tivesse de responder, diria que as boas pessoas eram precisamente as que acabavam numa estrada de montanha no Colorado tão desfeitas que nada nem ninguém as poderia consertar. Achando que a sua primeira tentativa não a tinha levado a lado nenhum, disse:

Ouvir o que as pessoas sentem que precisam de te dizer é mais importante do que falar sem dar erros de gramática.

Só que não ouvi o que a Sandi estava a tentar dizer-me.

Provavelmente porque ela não sabia ainda o que queria dizer!

Mas eu devia ter sido capaz de perceber o que se estava a passar pela maneira como ela olhava para mim.

Os olhos de Ana fuzilavam.

Desde quando és adivinho?

Estou a falar em ser sensível ao que as pessoas em dificuldades não se permitem dizer.

Ouve, há uma coisa que tens de saber: nunca conseguirias demover aquela miúda mesmo que lhe lesses os pensamentos. Tu eras um estranho para ela!

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Não podes ter a certeza! – disse eu, desesperado. – Não sabes o efeito positivo que podemos ter nas pessoas com quem nos encontramos, mesmo que só por uns minutos. É uma das melhores coisas da vida: haver pessoas desconhecidas capazes de nos ajudar. - Fechei os olhos, comprimindo com força a escuridão por ter falado de modo rude.

Há lugares no Colorado onde podemos vislumbrar a paisagem à nossa volta até uma distância de mais de trinta quilómetros em qualquer direção e só vemos rochas antigas e o reflexo da luz do sol - disse eu. - E esses lugares estão ainda dentro de mim.

Não sei bem porque lhe disse tal coisa. Mas talvez Ana soubesse.

Black Canyon deve ser um lugar perigoso para uma estrangeira como eu - disse ela.

Nunca deixaria que alguma coisa de mal te acontecesse.

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Pois não, eu sei que não. - Tirou a minha gravata de cordão com uma kachina - uma deusa nativo-americana - de dentro da sua mochila. Era de prata com incrustações de coral vermelho, o talismã mais poderoso que possuía. Tinha-me sido dado por Nathan pouco antes de eu deixar o Colorado. Dissera-me que a kachina fora feita pelo pai dele, que tinha aprendido com Alce Negro.

Nathan disse-me também que o talismã impediria que mesmo o mais maléfico dos demónios «maléfico» era uma das suas palavras favoritas - descobrisse o nome secreto que ele me dera. E lembra-te, Hank - acrescentou, a mão crestada pelo sol sobre a minha cabeça -, um demónio que não saiba o teu nome não te pode fazer mal.

Estendi a mão para pegar na gravata de cordão, mas ela disse:

Deixa-me ser eu a pôr-te a Debbie.

Debbie era o nome que Ernie tinha dado à kachina por lhe parecer o mais improvável para uma deusa nativo-americana - e portanto inútil para quem quer que pudesse querer fazer-lhe mal a ela, ou a nós.

Inclinei a cabeça diante de Ana, e enquanto ela passava o cordão de couro em volta do meu pescoço senti o seu poder - tenso, decidido, criativo - e a sua autoconfiança, o que antes de mais nada me atraíra nela por a ter achado um grande mistério.

Por instantes, parecia que tínhamos crescido juntos - e que estávamos a participar num ritual muito para além do nosso tempo e espaço.

Pensava que não acreditavas em magia - disse-lhe ao endireitar a cabeça.

Mas acreditas tu - retorquiu.

Enfiei a coroa de Debbie por dentro do colarinho. As suas bordas agudas de prata, comprimidas na palma da minha mão, pareciam ser pontos de contacto entre mim e tudo o que nunca compreendera sobre o mundo, mas pelo que estaria eternamente grato.

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A minha mulher sorriu como sempre fazia quando me via como um desafio.

Tu vês coisas horríveis, Hank - disse ela -, mas não desistes. Fazes tudo para que as coisas de em certo. Era o que eu queria dizer quando te disse que eras um bom homem.

Mas talvez isso não tenha nada a ver com coragem ou com qualquer coisa que se possa considerar... louvável.

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Não? Então com o que é que tem a ver?

Pela primeira vez respondi com a verdade, embora não compreenda porque o fiz.

Porque só as pessoas em sofrimento me parecem absolutamente reais. E tenho necessidade de estar com elas para ter a certeza de ser também real.

Olhando-me com uma expressão cética nos olhos franzidos, Ana perguntou:

E é essa a única razão por que tentas resolver estes crimes horríveis?

Talvez não seja a única razão. Penso que as outras explicam porque vivo à custa de Valium.

Ela sorriu, como eu esperava, e estreitou os lábios contra os meus.

Pensei o que sempre penso quando Ana me beija: «Nunca imaginei que não teria de passar a vida sozinho.»

Era a simplicidade e o calor com que os nossos corpos se uniam - como animais que no frio do inverno procuram confortar-se mutuamente - que me permitia separar-me dela. Ana agarrou-me no ombro quando eu ia a sair do carro.

Dê-me uma ligadinha se precisar de mais magia, Sr. inspetor-chefe.

Enquanto o carro se afastava, peguei novamente na kachina. Quando me voltei para a casa de Coutinho, vi-me como que numa ponte que levava diretamente do Colorado a Lisboa. Perguntava a mim próprio se Nathan se sentiria orgulhoso do homem em que eu me tinha tornado; talvez fosse essa a razão por que o ouvia dizendo-me: «Hank, tens de descobrir que demónio conseguiu desvendar o verdadeiro nome da Sandi.»

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Capítulo 17

Um homem de idade e cara descarnada atendeu quando bati à porta da casa dos Coutinho. O cabelo prateado e espesso estava penteado com cuidado. Os olhos azuis tinham uma expressão de cansaço.

Jean Morel? - perguntei.

Oui. Et qui êtes-vous?

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Quando me apresentei, disse num inglês com um forte sotaque e carregado de ressentimento:

Chegou tarde de mais!

Depois de uma breve reflexão, tentando reduzir tudo o que sentia a uma simples frase, respondi:

Cometi o erro de subestimar até que ponto as coisas estavam mal. Lamento muito. Como se está a aguentar a Sr.ª Coutinho?

Não se está a aguentar nada - respondeu. Não me convidou a entrar.

Preciso de falar com ela - pedi.

Não, não, não - replicou ele, agitando o dedo como se eu fosse um miúdo da escola.

Estou em funções oficiais da polícia - disse eu. O tom de autoridade na minha voz fez-me compreender que a animosidade dele trouxera de novo ao de cima o meu papel de agente da Judiciária.

Morel barrava-me o caminho com os braços cruzados no peito um gesto que mereceu o meu respeito ainda que limitando as minhas opções. Poderia tê-lo afastado com a maior das facilidades, mas em vez disso desviei os olhos para a rua, para a Igreja de Jesus, procurando na

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sua arcaria mergulhada em sombra as palavras certas, capazes de impedir que dois desconhecidos se pusessem a discutir num mau momento.

Não as vislumbrei, mas uma mulher idosa, esguia, com cabelo acobreado e brilhante, num corte simples em franja, e um vestido branco, comprido e solto, ao gosto hippy, veio à porta e rompeu o impasse. Tinha uns óculos de sol de aros escuros colados com fita gomada, um fio de contas de âmbar que lhe chegava aos joelhos e uma blusa camponesa bordada. Num francês preciso e cuidado fez notar a Morel que Susana me tinha chamado.

Segui-a para o interior da casa; ela tirou os óculos e apresentou-se como sendo a irmã mais velha de Pedro Coutinho, Sylvie Freitas. Tinha uns olhos grandes, líquidos, raiados de vermelho e com olheiras. Inclinando-se para uma mesinha baixa, pegou num leque fechado. A tensão dos tendões da mão quando o levou ao peito mostrou-me que não voltaria a largá-lo tão cedo. Disse-me que chegara na noite anterior para ajudar a olhar por Sandi e Susana. Vivia em Cascais.

Na sala de estar, o tapete branco onde Pedro Coutinho ficara estendido a esvair-se em sangue tinha sido removido, deixando à mostra o soalho de madeira escura.

Sentando-se junto da mesa da cozinha, Sylvie explicou-me - com hesitações e pausas desesperantes - o que se tinha passado na noite anterior. Sempre que lhe faltava a voz, abanava junto à cara o leque com figuras de gansos pretos e dourados a voar num céu azul. Parecia ser japonês – um presente do irmão, supus.

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A Sandi estava surpreendidamente bem – disse Sylvie. – Até deixou o seu caniche Nero andar a correr atrás dela pelo jardim durante algum tempo e conseguiu comer um pouco de esparguete ao jantar. Foi deitar-se cedo. Susana ficou sentada a seu lado até ela adormecer. Sylvie falava num tom que o sofrimento tornara áspero. Optara pelo inglês porque Morel não conseguia acompanhar a conversa em português. Havia qualquer coisa de uma cadência escocesa nas suas vogais e, quando lhe perguntei a razão, disse-me que tinha estudado História da Arte na Universidade de Edimburgo nos anos de 1960. Não deixou de me dizer que nos seus anos de estudante vivera numa comunidade, para grande embaraço dos pais. Tive a sensação de que queria dar-me a entender que fora a ovelha negra da família. Talvez estivesse a procurar distanciar-se do irmão e dos seus sarilhos.

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Perguntei-lhe, a ela e a Morel, se Sandi tinha posto o anel de turquesa. Queria saber se achara que deveria escondê-lo mesmo estando para morrer em breve. Nenhum deles, porém, tinha reparado nisso.

Não vimos nela nada fora do habitual - disse Sylvie, como que concluindo.

Não é bem assim - corrigiu o francês com um movimento da cabeça, escusando-se. Levantou-se, tirou um maço de Gauloises Blondes do bolso da camisa e sacou um cigarro. Rebuscou o bolso das calças de onde tirou o isqueiro, elegante e de ouro, o que me lembrou que tinha entrado num mundo que normalmente apenas entrevejo nas capas das revistas.

A Sandi dá-me um presente a seguir ao jantar – explicou Morel. E mais tarde, antes de se ir deitar, dá-me um beijo de boas-noites.

Não era costume? - perguntei.

Com lágrimas nos olhos, respondeu:

Não. Ela não é... - Bateu com o punho na testa e olhou para Sylvie a pedir ajuda.

Afetuosa - sugeriu ela.

Ela não é afetuosa comigo há alguns meses.

Qual foi o presente?

Morel acendeu o cigarro.

Um livro de cozinha. Vou buscar.

Dirigiu-se para a sala de estar e voltou com um enorme volume intitulado Cozinha Tradicional Portuguesa.

A Sandi diz que a mãe não cozinha... nem sequer ovos ... e que por isso eu tenho de cozinhar. Diz ela que os avós deram o livro, mas ela quer que eu fique com ele. Eu recuso, mas ela insiste. Compreende, inspetor?

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É a maneira de ela dizer que me aceita. - Morel fez com os lábios um som, um sopro bem gaulês. - Nem imagina o alívio que isso representa para mim. E apesar disso a história acaba da pior maneira possível.

Decidi não fazer notar que frequentemente as pessoas que tencionam matar-se oferecem aos outros as coisas que mais estimam, mas Sylvie devia já ter as suas suspeitas e soltou um som curto, estrangulado, ao mesmo tempo que passava a mão pelo pescoço. Quando Morel a fitou preocupado, disse-lhe que estava a precisar de mais um café. Talvez receasse que ele se fosse abaixo se soubesse a verdade. Pedi também um café para mim; participar naquele pequeno ritual talvez me ajudasse a conquistar a confiança deles.

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Enquanto enchia a cafeteira, Morel disse-me que Susana descera ao piso inferior às quatro da manhã por não conseguir dormir. Tinha dado com Nero sentado na cozinha - «com um ar infeliz» - e deixara-o ir para o jardim. Morel fora ter com ela passado pouco tempo. Ficaram a conversar na sala. Susana foi ver como estava Sandi cerca das cinco e um quarto e viu a caixa dos comprimidos - Victan - na mesinha de cabeceira, ao lado de uma garrafa de vodca meio vazia. A respiração dela era perigosamente fraca.

A Susana chamou o 112 - disse Sylvie.

Morel começou a deitar a água fervente no filtro do café.

Algum de vocês mexeu em alguma coisa no quarto da Sandi? - perguntei.

Procuramos alguma carta - respondeu Morel-, mas não encontramos. Não tiramos nada do sítio.

Ótimo. Preciso de dar uma vista de olhos. Mais tarde, virá cá um técnico da Judiciária. Onde está a Susana?

Na cama - respondeu Sylvie. - Infelizmente, vamos ter de a acordar daqui a pouco.

Porquê?

O funeral do Pedro. É hoje, às duas da tarde. - Notando a minha surpresa, encolheu os ombros e acrescentou: - É demasiado em cima da hora para mudar a data. Há amigos que vêm de Paris.

Levei os dedos à testa para pressionar as têmporas: a palavra «funeral» desencadeara um pulsar insistente. Gabriel já estava atrás de mim, observando e à espera.

Preciso de mostrar uma coisa a Susana - disse eu a Sylvie, na esperança de que uma conversa ativa evitasse que G tomasse o comando.

Tirei do bolso o retrato da mulher que tinha sido vista a sair da casa de Coutinho na manhã da sua morte e expliquei as razões que me levavam a estar tão interessado em identificá-la, mas nem Sylvie nem Morel a reconheceram. Assim como nunca tinham visto uma tatuagem com o número trinta.

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Não me parece que sirva de alguma coisa mostrar o desenho à Susana neste momento acrescentou Sylvie. - O médico dela esteve cá e deu -lhe um sedativo.

Morel estendeu-me o café.

Leite ou açúcar? - perguntou.

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Inspetor...? - Sylvie levantou as sobrancelhas com uma expressão interrogativa.

Estava voltado para ela, o que me pareceu estranho. Tinha também uma esferográfica na mão. Se precisa de papel, posso ir buscar algum - disse Sylvie.

Levei algum tempo a compreender o que me estava a dizer. Só então respondi:

Muitas vezes escrevo na mão quando não quero correr o risco de me esquecer de alguma coisa importante.

Leite ou açúcar? - repetiu Morel,

Nada - respondi. Peguei na chávena que me estendia e sentei-me de novo.

Os rabiscos na palma da mão estavam escritos no código que Ernie e eu tínhamos inventado em crianças. Decifrei, dizia: «A boa esposa queria que tu compreendesses que nesta casa aconteceram crueldades. E por isso... »

A mensagem acabava de forma abrupta, provavelmente porque Sylvie tinha interrompido G.

Depois de um gole de café, disse a Sylvie:

Queria pedir-lhe que levasse os desenhos lá acima a Susana.

Acorde-a se for preciso. Diga-lhe que Monroe precisa da ajuda dela.

E pergunte-lhe se a filha tinha o anel de turquesa posto.

Mal Sylvie saiu, Morel sentou-se a meu lado e ofereceu-me um cigarro. Pela primeira vez em anos, aceitei. Era possível que apenas quisesse uma curta trégua nos meus hábitos, ou talvez procurasse o conforto de um antigo vício, mas e se G se tivesse esgueirado sorrateiramente através da fronteira entre nós e influenciado a minha decisão?

Fumar fazia-me sentir à beira de um precipício - qualquer movimento em falso far-me-ia deitar tudo a perder.

Morel levantou-se e passou o dedo ao longo de uma fiada de azulejos decorativos na parede, traçando os contornos do esmalte brilhante, amarelo e azul. Observando-o, apercebi-me de que, à medida que envelhecem, pela maneira como se movem - a sua vacilante graciosidade, os homens se tornam um teste à nossa solidariedade e ao nosso medo de morrer.

Quando reparou que o observava, voltou-se para mim, de novo com as lágrimas nos olhos, como se tivesse visto na minha expressão maior empatia do que estava à espera.

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Tocado pela solidão que se lia nos seus olhos, disse-lhe:

Foi uma grande perda para si.

Conheço Sandi desde que nasce - explicou. - Sou o padrinho.

Acha que Susana estará em condições de falar comigo mais logo?

Duvido muito. - Sem mais explicações, voltou a fixar o olhar nos azulejos.

Tem alguma ideia sobre quem possa ser o assassino do seu amigo? - perguntei. Experimentei uma segunda fumaça no cigarro, mas soube-me ainda pior do que a primeira.

Não, nenhuma.

A princípio, pensei que poderia ter sido o senhor a matá-lo.

Ele abanou a cabeça, como que desapontado comigo, e voltou a sentar-se. Ao fim de algum tempo, fechou os olhos como se estivesse a ouvir uma música ao longe. Aspirando profundamente o cigarro, deixou sair as volutas de fumo pelas narinas. A sua distância parecia uma espécie de perfeição, o que me levou a pensar se não teria também sido sedado pelo médico de Susana.

Quando lhe fiz a pergunta, respondeu:

Tomo um comprimido que Sylvie me dá. - Pôs as mãos ao alto como que a mostrar que não tinha por onde escolher. - O mesmo comprimido que Sandi toma - acrescentou numa voz amargurada. Pelo modo como apagou o cigarro, ausente, e, por isso, com excessiva persistência, tive a impressão de que estava a considerar até onde poderia ir no desabafo. Sabe, o que acontece é muito injusto, inspetor. Pedro tem tristeza demasiada na sua vida mais do que um homem deve ter - replicou.

A que está exatamente a referir-se?

O primeiro casamento é uma grande tristeza.

«Porque estará ele a dizer-me isto?», pensei para comigo. Mais tarde, nessa semana, quando divagava no meu quarto do hospital, cheguei à conclusão de que Morel devia estar a dar-me uma pista - talvez sem ter perfeita consciência disso - sobre as razões por que o amigo tinha sido assassinado.

Então o que aconteceu durante o primeiro casamento? - perguntei.

Frédérique, sua mulher... ela vira os filhos contra Pedro. Ela diz ele engana-a, o que é verdade, e eles divorciam. Ela diz a seus filhos que Pedro não quer dar dinheiro e que ele tenta roubar a casa. - Morel fez um gesto de desdém. - Isso não é verdade. Mas todos estão tão

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zangados. É uma má ópera francesa, pior que Offenbach! Então Pedra desiste. Ele dá a Frédérique o que ela quer. Ele paga para Marie e Pierre ter uma boa educação, mas mesmo assim eles não falam com ele. A última vez que ele vê os filhos... deve ser há quinze anos. Os meninos nessa altura são adolescentes. Isso é porque ele está tão sempre com Sandi.

Uma segunda oportunidade - comentei.

Exactement.

Frédérique ainda é viva?

Provavelmente, mas não falo com ela há anos.

Estará em Paris?

Ou Bordéus. Ela é de lá.

E Marie e Pierre?

Não tenho ideia.

Morel pestanejou, semicerrando os olhos, e voltou ao seu estado de apatia. Ou fingiu. Pareceu-me que depois de ter dito o que precisava de dizer estava ansioso por se escapar daquele tempo e espaço.

Havia um exemplar do Público dobrado em cima da bancada junto ao fogão. Peguei nele e fui até à janela. Talvez a opinião de Morel sobre o divórcio fosse distorcida. Podia ser que Coutinho tivesse tentado arruinar a vida da ex-mulher. Quem sabe se algum trauma recente não teria ressuscitado todo o sofrimento passado e a tivesse levado a vingar-se do ex-marido ao fim de tanto tempo.

Em cima do peitoril da janela havia um cinzeiro de cristal, ainda com duas pontas de cigarro da noite anterior. Juntei-lhes uma terceira.

Não encontrei nenhum artigo sobre o crime no jornal, o que significava que quem passara a informação para os jornais não tinha mordido o meu anzol. Ao ouvir passos nas escadas, voltei-me para a porta e descobri que o espaço girava lentamente à minha volta. Quando estendi a mão para o peitoril da janela para me segurar, o jornal que tivera nas mãos estava caído no chão. Sylvie entrou na cozinha quando eu o apanhava. Agora tinha a esferográfica na mão esquerda.

Inspetor, o senhor está bem? - perguntou ela.

Por instantes perdi o equilíbrio - respondi. - Que tal a Susana?

Nunca viu a mulher com a tatuagem do seu desenho. Disse também que a Sandi não tinha o anel no dedo. Não faz ideia de onde ele possa estar.

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E disse que faria o possível por falar consigo ao fim da tarde. Mas não promete.

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Ao agarrar no desenho, reparei que a mensagem na minha mão estava agora completa. G tinha escrito: «Então a miúda bateu a bota completamente sozinha?»

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Capítulo 18

No hall de entrada, liguei para David Zydowicz e contei-lhe o que se passara com Sandi, acrescentando que queria que fosse ele a autopsiá-la. Abafando a voz, pedi-lhe para procurar nódoas negras e outros sinais indicadores de que ela fora forçada a tomar uma overdose. Ele concordou e liguei a Luci pedindo-lhe para ir ter comigo imediatamente.

Estava eu a limpar a mensagem de G da mão quando tocou a campainha. Sylvie precipitou-se da cozinha, apertando o leque contra o peito, e abriu a porta a duas raparigas.

Bom dia, minha senhora - disse a mais nova. A franja negra chegava-lhe às sobrancelhas. Tinha o ar de uma estrela pop dos anos de 1960, uma aspirante a Cher de catorze anos.

A outra rapariga era alta e mais esguia, e tinha puxado o cabelo loiro e comprido para a testa. Agarrava-o como se fosse uma tábua de salvação, e mantinha os lábios cerrados. Usava uma blusa branca, larga, com mangas de sino compridas, o que parecia dar-lhe uma graça de bailarina.

As raparigas não se moveram, retidas pela timidez.

Entrem, entrem! - convidou Sylvie, e apresentou-mas como sendo as melhores amigas de Sandi.

Mónica - a aspirante a Cher - deu-me um beijinho na cara. Joana - a bailarina tensa - estendeu o braço o mais que podia para me cumprimentar.

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A Sandi... está bem, minha senhora? - perguntou Mónica numa voz hesitante.

Vamos sentar-nos um bocado na cozinha para eu vos contar tudo - propôs Sylvie. Conduzindo as raparigas diante de si, lançou-me o olhar de quem tem pela frente uma tarefa quase suicidária.

Joana foi a primeira a entrar na cozinha. Morel estava ao fundo, junto à janela, passando a mão pela barba crescida.

Joana! - exclamou ele com viva surpresa.

Quando o viu, a rapariga pareceu ficar sem fôlego e levou as mãos à boca. Mónica, pondo-se ao lado da amiga para ver o que a tinha deixado tão assustada, rompeu em lágrimas.

Oh, mes petites, qu' est-ce qu'il y ar - perguntou ele numa voz perturbada. - Que se passa? Mónica encurvou os ombros e apertou a mão contra o coração.

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Foi só... foi só porque fomos apanhadas de surpresa - respondeu em francês, embora me parecesse manifestamente mentira.

Joana também deve ter percebido como soava falso e, para disfarçar o erro, acrescentou:

Não fazíamos ideia de que estava cá. E ultimamente temos andado muito nervosas. Desculpe... peço imensa desculpa.

Não faz mal, não se preocupe - tranquilizou-a MoreI.

Encaminhou-se para as raparigas de braços abertos e deu-lhes um abraço. Ao separar-se de Joana, pegou-lhe no queixo com a mão e fitou-a com um olhar caloroso, de um júbilo paternal. Ela respondeu com um sorriso de comprazimento. Era uma atriz acabada.

«Nada do que se vê entre eles é o que parece» pensei, ainda que a necessidade de decifrar todas as suas interações me desse a certeza de ter uma pequena vantagem sobre eles - ao fim e ao cabo, estava agora preparado para notar todas as tentativas de se enganarem uns aos outros e a mim.

Como é que se conhecem? - perguntei.

Conhecemos todos a última vez que Sandi vem a França - respondeu ele. - Joana e Mónica... elas vêm com ela. Passam um fim de semana comigo na minha casa na Normandia. Até montam meus cavalos! Passamos bons tempos juntos, não?

Muito bons - retorquiu Joana, e acenou convictamente com a cabeça para me convencer de estar a dizer a verdade.

«É importante para ela enganar toda a gente que aqui está, inclusive eu», pensei, o que significava que o perigo representado por Morel

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real ou suposto - era tão grave que nem mesmo a polícia a podia proteger.

Sylvie pegou numa cadeira para si e pediu às raparigas para se sentarem, uma de cada lado. Apertou nas suas as mãos delas. Disse-lhes que tinham de ter coragem.

Ao ouvir o que acontecera, Joana levantou-se de um salto, respirando com dificuldade, e Mónica rompeu em soluços. Sylvie fez sinal a Morel para que ajudasse Joana enquanto ela confortava Mónica. MoreI convenceu a rapariga a sentar-se de novo e ajoelhou-se a seu lado, mas, quando tentou pegar-lhe nas mãos geladas para as aquecer, ela soltou-se e precipitou-se para o canto oposto do compartimento, junto à porta para o jardim. Encolhendo-se no canto formado pelas duas paredes - uma criança pequena procurando enfiar-se dentro dos tijolos e do reboco em busca de segurança -, começou a chorar. Sylvie aproximou-se e, pondo-se atrás dela, agarrou-a pelos ombros.

Morel tirou um cigarro do maço, mas deixou cair o isqueiro. Tendo-se baixado

Tendo se baixado para o apanhar, os seus olhos surpreenderam o meu olhar.

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Dois homens espelhando a sua inutilidade, reconhecendo que apenas Sylvie seria capaz de ajudar as amigas de Sandi, porque era mulher.

Morel levantou as mãos, deixando-as cair de seguida, como que a exprimir o nosso fracasso mútuo, e durante o segundo que levou a fazer isso tive a impressão de compreender mais acerca dele - acerca do facto de ter sido apanhado numa série de acontecimentos que escapavam ao seu controlo ou autoridade - do que na meia hora anterior.

Infelizmente, aquela minha recente perceção de quão perdido se sentia fez com que a reação da miúda para com ele parecesse inexplicável.

Assim que as lágrimas se acalmaram, Joana voltou em passo arrastado para a mesa, de cabeça baixa, desculpando-se, dizendo numa voz fraca, frágil, embaraçada - apegando-se à insignificância para se sentir mais segura -, que não se sentia a mesma desde que soubera da morte do pai de Sandi.

Joana contou-nos que Sandi tinha ligado para ambas na tarde anterior. Assoando-se a um lenço de papel, disse que Sandi lhes contara como o pai tinha morrido, mas que se recusara a dizer como se sentia.

As três amigas combinaram voltar a falar nesse mesmo dia ao fim da tarde, mas Sandi não voltou a ligar a nenhuma delas. Mónica e Joana

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tinham tentado, uma e outra, falar com ela, mas o telemóvel estava sempre desligado. Por isso, acabaram por decidir ir a casa dela.

Onde está o telemóvel da Sandi? - perguntei a Sylvie.

Tem-no a Susana - disse ela.

Quando interroguei as miúdas sobre as razões por que Sandi andava tão perturbada nos últimos meses, Mónica explicou-me que ela andava a ser cruelmente atormentada pelos rapazes da escola por ser o que eles chamavam uma «menina rica mimada». Aparentemente, tornara-se um alvo fácil para os colegas cujos pais tinham perdido os empregos ou visto os salários cortados desde o princípio da crise económica com que nos debatíamos. Sandi começou a ver-se a si própria como uma pária. Tinha decidido assumir uma imagem mais rebelde.

Foi por isso que cortou o cabelo tão curto? - perguntei.

Sim. Pensava que isso acabaria com as provocações - disse Mónica. - Mas não funcionou acrescentou com amargura. - Os rapazes começaram foi a gozá-la por ter um aspeto esquisito. Para que Morel compreendesse, Sylvie repetiu-lhe em francês o que Mónica dissera.

Também acha, Joana? - perguntei. - Acha que os problemas da Sandi começaram por andarem a troçar dela?

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A miúda mordeu os lábios e fez um aceno de assentimento. Morel deve ter chegado à mesma conclusão que eu; juntou as mãos numa posição de quem reza e implorou em francês:

Ma petite, se sabes de alguma coisa que nós desconheçamos, peço-te por tudo que nos digas. Joana esbugalhou os olhos e lançou a cabeça para trás, como se ele a tivesse encostado à parede. Julguei que o iria acusar aos gritos de ter planeado o assassinato do pai de Sandy e ameaçado a sua amiga. Mas, com um ar de deplorável derrota, limitou-se a encostar a cabeça à mesa e a chorar.

O olhar de esperança perdida que me lançou um momento antes de as lágrimas lhe inundarem os olhos deu-me a entender que queria que eu percebesse que Morel era um inimigo tão superior às suas capacidades que não havia esperança para ela. Para me distanciar do seu desespero e pensar melhor em tudo aquilo, disse que precisava de fazer uma chamada e saí para o jardim. Seria a ideia do divórcio tão odiosa para Sandi que ela teria implorado ao pai que não o permitisse? Morel poderia ter descoberto o papel desempenhado por ela, e, quando isso

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aconteceu, ter-se virado contra Sandi e tê-la ameaçado. Vendo que, mesmo assim, a rapariga não desistia das suas objeções ao divórcio, Morel decidira libertar Susana recorrendo à única maneira que lhe parecia possível: arranjar forma de lhe matar o marido.

Enquanto dava voltas ao jardim, compreendi que, se tudo aquilo fosse verdade, então Sandi teria concluído que Morel era o responsável pela morte do pai. Poderia ter-lhe dito na noite anterior que suspeitava de que fora ele a planear - ou mesmo a levar a cabo - o assassinato do seu velho amigo. Talvez ele a tivesse dominado e forçado a engolir uma overdose de tranquilizantes.

Quando voltei para a cozinha, Sylvie acariciava o cabelo de Mónica. Os olhos da rapariga estavam vidrados pela incredulidade. Joana repousava a cabeça no tampo da mesa, de olhos fechados.

MoreI, em pé junto da janela das traseiras, fumava com ar ausente, os olhos postos no céu. Nada na sua expressão ou postura indicava qualquer preocupação com o que as duas raparigas pudessem dizer sobre ele. Sentei-me ao lado de Joana e pousei-lhe a mão no ombro. Quando ela abriu os olhos, disse-lhe que lhe agradecia a ajuda que me dera. Sentindo o seu gesto reticente, levantando e deixando cair as costas, vi-me como que num daqueles sonhos em que fazemos coisas que nunca faríamos na vida real.

Quando tocaram à campainha, Morel prontificou-se a ir ver quem era. Segundos depois, Luci entrava na cozinha atrás dele. O modo rígido e artificial como me sorriu fez-me crer que andava a repensar a sua carreira na polícia.

Pedi a Sylvie e às duas miúdas para esperarem ali enquanto eu e Luci examinávamos o quarto de Sandi. Para afastar Morel de Joana e Mónica, pedi-lhe que nos acompanhasse.

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Encontrámos uma garrafa de vodca Absolut e uma embalagem vazia de Victan em cima da mesinha de cabeceira da rapariga, junto a um livro de vampiros que andava a ler - Queimada - e dois dos três CD em que eu tinha reparado no dia anterior: Day & Age, dos Killers, e Let England Shake, da P. J. Harvey. A capa do CD que faltava tinha uma mulher jovem, de pele clara, mas de momento não conseguia lembrar-me nem do título nem do nome da banda.

Via que Luci estava à espera de que eu lhe pedisse para me dizer o que se passava, mas não havia tempo.

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Se começar a ver que não vai aguentar - disse-lhe -, saia do quarto um bocado.

Não, chefe, não é preciso - respondeu, num tom profissional.

Estou bem.

Calcei as luvas e dei um abanão a Queimada, mas não vi nenhuma carta de suicídio nem outra coisa cair de entre as páginas do livro. Nos dois CD também não havia nada de anormal.

O texto da contracapa do livro dizia que era sobre uma jovem vampira chamada Zoey Redbird com um coração destroçado e uma «alma desfeita».

A cama estava por fazer. As bonecas e os animais de peluche estavam juntos, muito bem arrumados em cima da secretária. Dei-lhes uma rápida vista de olhos, enquanto Luci via as gavetas da cómoda. Verifiquei também debaixo da cama, mas desta vez não havia roupas desarrumadas, nem faca colada no canto do colchão.

Quando emergi de sob a cama, Morel perguntou-me se podia ir ver como estava Susana.

Tudo bem, mas isto agora é uma investigação oficial - disse-lhe num tom severo. - Por isso, não quero que fale com a Joana nem com a Mónica sem eu estar presente. E traga o telemóvel da Sandi quando voltar para baixo.

Num palpite, pensando que Sandi poderia ter deixado o anel - ou quem sabe um bilhete de suicídio - no sítio onde antes encontrara coisas de valor para ela, tirei o colchão de cima do estrado. A um canto via-se o seu computador portátil. Parecia estar ali à minha espera. Estremeci perante a ideia de que Sandi sabia que eu iria levantar o colchão depois da sua morte por já o ter feito antes. Tinha subestimado a sua inteligência.

Talvez tenha deixado uma explicação para o seu suicídio no portátil - disse Luci.

Penso exatamente o mesmo. - Passei-lhe o computador. - Dê-lhe uma vista de olhos, mas, se não encontrar nada de interessante, leve-o ao Joaquim. Quero que ele veja todos os ficheiros criados desde sexta - feira.

Luci sentou-se à secretária com o portátil, enquanto eu procurava nas prateleiras o terceiro CD que Sandi tinha em cima da mesinha de cabeceira. Uma compressão repentina nas costas deu-me a entender que Gabriel exigia a minha atenção.

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Não descobri o CD que faltava. O relógio do quarto marcava 9h47. Fui espreitar o corredor. Não havia sinal de Morel.

Pegue no seu caderno de apontamentos - disse a Luci.

Quando recobrei os sentidos, encontrava-me no andar de baixo, na sala de estar. Tinha nas mãos o CD em falta: Lungs, de Florence + The Machine. Apercebi-me de que, momentos antes, dentro de mim, era noite, muito depois da meia-noite, e que eu fugia a correr com o meu irmão.

Luci estava sentada no sofá, estendendo-me o anel de turquesa de Sandi. Disse-me alguma coisa, mas apenas apreendi alguns fragmentos. Abanei a mão a pedir-lhe que esperasse um momento e fechei os olhos até conseguir formar alguma palavra. Quando os voltei a abrir, ela declarou:

O chefe pediu-me para lhe guardar o anel.

Peguei nele e examinei-o.

Onde é que o encontrei?

No armário de medicamentos na casa de banho dos pais. Ao que parece, foi onde a Sandi encontrou os comprimidos para dormir da mãe.

Mostrei o Lungs.

E isto?

No armário das bebidas. Onde a Sandi encontrou a vodca.

«Quem leva uma coisa, tem de deixar outra em seu lugar...» Sandi confiara que depois da sua morte eu me lembraria das últimas palavras que me dirigira - e que descobriria os seus tesouros escondidos. O que queria dizer que já decidira pôr termo à vida quando falámos na cozinha na sexta-feira - e provavelmente tinha já um plano traçado. Rapariga espantosa! Se ao menos tivesse ouvido o que ela não ousou dizer-me!

Estava à espera de encontrar dentro da caixa do CD um recado para mim ou para a mãe, mas nem sequer tinha as letras das canções. Devia querer que quem encontrasse o disco o ouvisse. Ela, ou outra pessoa, escrevera à mão o título num disco sem mais nada, o que provavelmente significava que tinha sido descarregado da internet.

De volta à cozinha, Mónica disse-me que Lungs era o CD favorito de Sandi, e que ela citava muitas vezes partes das letras das canções, mas nem ela nem Joana se lembravam dos versos de que a amiga tanto gostava.

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Tinham as duas, um ar infeliz e tenso. Pedi-lhes que não saíssem até termos a possibilidade de falar e pedi a Luci que as levasse para fora.

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A sós com Sylvie e Morel, avisei-os de que os jornalistas poderiam começar a telefonar para eles e pedi-lhes que não falassem com ninguém acerca do caso.

Já começaram - disse Sylvie, com um franzir de sobrolho irritado. - Embora não faça ideia de como arranjaram o meu número.

É um país pequeno. Um amigo dá o seu número na sexta-feira e na segunda-feira já metade de Portugal o sabe.

No exterior, Luci segurava o portátil de Sandi debaixo do braço enquanto conversava com as duas miúdas. Nessa altura já tinha decidido falar a sós com Joana, que me transmitira de forma muito clara o seu silencioso desespero.

Onde mora? - perguntei a Mónica.

Na Alameda.

Chamei-lhe um táxi na Calçada do Combro, estendi ao taxista uma nota de dez euros e pedi-lhe para entregar o troco à rapariga. Antes de partir, Mónica voltou para junto de Joana e travaram uma breve conversa em voz baixa. Disse a Luci para chamar alguém da sede para levar o computador e o telemóvel de Sandi, visto que decidira encarregá-la de seguir Morel para onde quer que ele fosse. Enquanto ela subia a rua de volta a casa, o táxi de Mónica arrancou.

Assim que fitei Joana, ela puxou para diante o cabelo e segurou-o com ambas as mãos. O seu olha era suspeitoso e apreensivo.

Mora longe daqui? - perguntei num tom delicado.

No Estoril, Sr. inspetor. Vou a pé até ao Cais do Sodré e apanho o comboio.

Vamos os dois de táxi - propus. - Assim temos tempo para conversar.

Prefiro ir sozinha, se não se importa.

E que me diz a isto...? No caminho para a estação eu digo-lhe o que penso de tudo e a Joana pode dizer-me onde é que me enganei.

Esforcei-me por dar um tom convidativo às minhas palavras - e deixar claro pela minha expressão que precisava muitíssimo da sua ajuda -, mas ela mordeu os lábios outra vez e olhou-me com um ar de culpa.

Sr. inspetor, eu não vivo no Estoril - disse.

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O meu telemóvel tocou. Não reconheci o número e desliguei-o.

Pois não, também me parecia.

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Venha comigo - disse ela, e começou a descer a rua sem esperar pela minha resposta. A sua súbita resolução deixou-me surpreendido.

Quando estávamos fora do alcance da casa dos Coutinho, Joana disse-me onde morava. Era na Lapa.

Toque à campainha daqui a meia hora - disse-me.

Sem esperar por resposta, seguiu rua abaixo. Nunca olhou para trás, embora uma vez tenha parado com um estremecimento, como se sacudisse uma emoção indesejável.

Assim que voltei a ligar o telemóvel, Mesquita, o chefe da Polícia Judiciária, telefonou-me.

Você desligou-me o telefone na cara, Monroe? - rosnou.

Estava a interrogar uma pessoa

Não me volte a fazer uma coisa destas! Está a ouvir?

Estou sim, chefe. Peço desculpa.

E então sacou alguma coisa interessante no interrogatório?

Talvez. Tenho de falar com mais uma pessoa e logo saberei.

Oiça, parece que acabou com as fugas de informação - comentou ele, num tom de aprovação.

Fiz tudo por isso.

Foi pressionado por alguém importante até agora?

Não, talvez estejam todos à espera de ver o que descubro.

Pode ser que sim - disse ele, mas na sua voz lia-se a dúvida.

Depois de ter desligado, a exaustão parecia tomar conta de mim, e sentia a boca seca, pelo que decidi fazer uma pausa e entrar num café.

Mesmo em frente a um pequeno largo na Rua da Esperança, um mendigo gorducho, com um boné de basebol dos Yankees, a barba grisalha e emaranhada de um gnomo saído de um conto de fadas, montava guarda.

Depois de pegar nos meus cinquenta cêntimos, fez-me a continência.

Teria percebido que eu era da polícia?

Um gato preto dormia numa almofada branca em cima do balcão, pouco higiénico mas encantador, como que posando para uma fotografia que ninguém tiraria, à semelhança de metade de Portugal. Bebi um sumo de laranja natural enquanto lhe fazia festas na barriga de caxemira e pedi uma sanduíche de queijo e tomate à jovem brasileira ao balcão.

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Na casa de banho, molhei a cabeça com água fria e puxei para trás o cabelo. Enquanto fazia o meu xixi, o improvável Elvis que acabara de criar no espelho rachado sugeriu que um Valium me curaria todos os males, mas consegui largá-lo sem seguir o seu conselho. De volta ao balcão, liguei para Joaquim. Luci já lhe dissera que iria receber o computador e o telemóvel de Sandi. Pedi-lhe que começasse pelos ficheiros dos últimos três dias e depois fosse recuando semana a semana, até à Páscoa, se necessário. Além de qualquer informação sobre o suicídio, devia procurar tudo o que a rapariga pudesse ter escrito sobre andar a ser molestada por Morel ou qualquer outra pessoa.

Na rua, o gnomo sem-abrigo pegou na sanduíche que lhe tinha comprado e fez-me mais uma continência. Logo depois de cruzar a transversal seguinte, tive a sensação de que uma mão me agarrava o casaco pelas costas e comecei a tombar...

Estava de joelhos no passeio quando voltei a mim. Tinham passado sete minutos - tempo suficiente para Gabriel ter saboreado um cigarro a julgar pelo gosto que sentia na boca. Aonde iria isto parar, e estaria eu aqui quando isso acontecesse?

O meu telemóvel tocou. Vi o número de Ernie no visor.

Que se passa? - perguntou ele, mal atendi.

Quem me dera saber - respondi.

O meu irmão explicou-me que eu tinha acabado de lhe ligar e pedir que viesse a Lisboa. Estavas a gozar comigo? - perguntou.

Porque haveria eu de gozar contigo?

Bem sabes que não posso ir a Lisboa! Porque me obrigas a dizer-te isso?

Não fui eu, foi o G - confessei.

Que queres dizer?

Ele é que te disse para vires! Não fui eu. Agora diz-me exatamente o que te disse.

Disse: «Vem para Lisboa, onde eu posso olhar por ti!» E depois desligou.

Ele anda a tomar o comando com mais frequência - expliquei.

A fronteira entre nós os dois está a desaparecer. Não sei como isto acabará... se é que alguma vez acabará.

O meu irmão não disse nada, provavelmente por estar a pensar na melhor maneira de me tranquilizar, mas a minha cabeça encheu-se de

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todas as coisas terríveis que lhe poderiam acontecer quando estávamos separados. Pedi-lhe que carregasse a pistola que lhe comprara e que a tivesse junto à cama.

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Se o pai aparecer, tens de lhe dar um tiro! - ordenei.

Caramba, Rico, não percas a calma. Ele nunca há de vir a Portugal. Isso acabou.

Ernie, ainda não percebeste que nunca há de acabar.

Estamos a falar de coisas diferentes - disse ele.

Não estamos, não! Carrega a pistola como te mostrei. E dispara.

Ele não precisa de mais do que um segundo.

Desliguei antes que ele pudesse discordar. Tinha a camisa empapada em suor. Comprei uma garrafa de água numa mercearia indiana minúscula e tomei um Valium com o último gole. Cheguei ao apartamento de Joana alguns minutos depois. Ela premiu o botão do intercomunicador que abria a porta para eu entrar no edifício. Ao deixar o apertado elevador no último andar, ligou-me o inspetor Quintela para me dizer que Sottomayor, o contabilista da vítima, tinha acabado de chegar à sede.

Quando pode o senhor estar cá? - perguntou.

Não posso. Fale com ele. E quero que lhe pergunte o nome da última pessoa que o Coutinho subornou. Se tivermos um, será mais fácil chegarmos aos outros. Ameace-o com a prisão se tiver de ser.

Posso bater-lhe?

Era o típico sentido de humor de Quintela, e esforcei-me por rir, mas soou a falso. Quando toquei à campainha de Joana, foi Mónica quem veio abrir.

Ei, pensei que a tinha mandado para casa! - exclamei.

Ela fez um sorriso descarado.

Achámos que era melhor ficarmos juntas!

Percebi que ela e Joana em circunstâncias mais favoráveis eram capazes de algumas diabruras de verão. Sabia também que a triste conta de três menos uma iria provavelmente mantê-las em estreito contacto para resto da vida.

Mónica estendeu-me uma nota de dez euros.

Não posso aceitar que me pague o táxi!

Tentei devolver-lhe o dinheiro, dizendo que eu é que tinha insistido para que o apanhasse, mas ela recusou-se a pegar nele.

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Aguenta firme! - exortava Joana à amiga, simulando uma voz heroica. Irrompeu na sala vinda da porta do fundo, manifestando uma divertida determinação em ganhar aquela pequena batalha.

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Joana trazia ainda a blusa larga, mas vestira uns shorts em tecido escocês que pareceriam mais adequados a um jogador de golfe de meia-idade. Estava descalça e limpava a cara com uma toalha. Cumprimentámo-nos com um beijinho na cara.

Estava a ferver - disse ela. Tinha o cabelo a pingar. Aos seus pés formava-se uma poça de água, mas ela não se importava.

«A confiança de uma rapariga que é cabeça de cartaz da sua própria vida», pensei.

Convidou-me a entrar para a sala de estar, que estava decorada como uma tenda do deserto: tapetes orientais cor de laranja e vermelhos cobriam as paredes, e do teto pendia um tecido amarelo estampado com estrelas pretas e brancas. O sopro fresco do ar condicionado fez-me estremecer de satisfação. Despi o casaco e alarguei o colarinho da camisa.

Desculpem - disse às raparigas -, mas Lisboa e eu temos ideias diferentes sobre o clima ideal. Enquanto Joana me foi buscar água mineral à cozinha, fixei as estrelas pairando acima de mim. Os pais dela vão muitas vezes à África do Norte - explicou Mónica. - Uma vez fui com eles... a Marraquexe. A Sandi também foi.

Comemos naquela grande praça que lá há e até andámos de camelo!

Joana voltou com a água e indicou-me uma velha poltrona de veludo vermelho. Ela e Mónica sentaram-se em frente a mim num sofá igualmente gasto.

Oiça, Sr. inspetor - começou Joana -, quero que saiba que não lhe contaria nada disto se a Sandi ainda estivesse viva.

O seu ar seguro deixou-me de novo desarmado.

Às vezes parece mais velha do que os anos que tem - declarei.

Os meus pais dizem-me a mesma coisa! - retorquiu com um sorriso de agrado.

Dava a impressão de ser uma miúda que tinha prazer em desafiar as expectativas dos adultos. Talvez as três amigas tivessem isso em comum.

Conte-me o que aconteceu ao certo em casa de Morel na Normandia - pedi. - Desde o princípio.

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Joana trocou as pernas cruzadas e inclinou-se para diante.

A Sandi, a Mónica e eu fomos lá passar quatro dias na Páscoa.

Dormíamos no mesmo quarto, a Sandi e eu numa cama antiga enorme e a Mónica numa cama pequena.

Tirando o pai de Sandi e Morel, contou Joana, não ficou mais ninguém lá em casa durante a visita delas, a não ser um velho cozinheiro francês, que apareceu duas vezes para fazer o

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jantar, e dois rapazes novos que trabalhavam nas cavalariças em part-time e tinham ajudado as raparigas a andar a cavalo.

Na segunda noite - prosseguiu Joana -, acordei às duas e meia da manhã, e a Sandi não estava a meu lado na cama. Imaginei que tivesse acordado e descido ao piso de baixo para comer qualquer coisa. Ou estivesse com medo e tivesse ido para o quarto do pai.

Porque haveria ela de estar com medo?

A casa de Monsieur Morel é gigantesca. E antiga.

O soalho range sob os nossos passos - acrescentou Mónica com uma careta.

E não ajudava nada que o pai da Sandi e Monsieur Morel se pusessem a brincar connosco durante o jantar a dizer que a casa estava assombrada - continuou Joana, -, O Sr. Coutinho chegou a contar que uma vez tinha visto um fantasma na cozinha com sangue a escorrer-lhe da boca.

O pai da Sandi dizia aquilo para nos divertir - acrescentou Mónica, revirando os olhos.

Às vezes - disse Joana -, parecia não ter a mínima ideia de que a Sandi era diferente dele.

Diferente, como?

Era uma pessoa insegura.

Falava como se essa tivesse sido a falha fatal de Sandi.

Cerca de meia hora depois de ter dado pela falta da Sandi - continuou Joana -, ela entrou em bicos de pés no quarto e sentou-se na ponta da cama. Começou a choramingar assim que me inclinei para ela. Não nos contou o que se tinha passado. Tapámo-la com um cobertor porque estava a tremer e ela acabou por nos dizer que Monsieur Morei tinha abusado dela.

As duas raparigas lançaram-me um olhar sombrio, e então retorqui:

Não fico chocado. Já ouvi praticamente de tudo nestes dezassete anos de trabalho na polícia.

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A Sandi tinha sangue entre as pernas - disse Joana, pondo os olhos no chão como uma rapariguinha que tivesse revelado uma coisa pela qual seria punida.

Tinha sido violada por Morel? - perguntei.

Pronunciar a palavra «violada» pareceu deixar-me isolado na minha metade da sala, do outro lado de uma barreira invisível que me separava das raparigas.

Joana tentou responder, mas faltou-lhe a voz. Cobrindo os olhos com uma mão, abandonou-se ao desespero. Enquanto Mónica a confortava, levantei-me e deixei vaguear o olhar de um lado para o outro de um tapete oriental - vermelho-escuro e cor de laranja brilhante -, pensando em tudo o que queria dizer às duas raparigas, mas não ousando invadir a sua intimidade.

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Depois de as raparigas se terem recomposto um pouco, Joana levantou para mim os olhos vermelhos do choro. A sua respiração parecia perigosamente hesitante.

Eu estava muito bem, mas de um momento para o outro deixei de estar - disse ela. - Peço-lhe desculpa, senhor inspetor.

Não tem de que pedir desculpa - respondi, voltando a sentar-me. - Gostava só de vos dizer uma coisa que pode ajudar.

Não sei bem se há alguma coisa que nos possa ajudar agora que a Sandi... - Mónica abanou a cabeça, sem acabar a frase.

Detesto forçá-las a isto, mas é muito importante que me contem o resto da história.

Claro. Nós sabemos que tem de ser – disse Mónica. Dirigindo-se a Joana, acrescentou: - Eu começo. Assim podes recuperar o fôlego.

Depois de beber um gole de água, começou: - A Sandi contou-nos que Monsieur Morel estava a ler no quarto com a porta entreaberta. Ouviu-a quando ela se dirigia para o quarto do pai e foi ter com ela. Convidou-a a ir para a cozinha e aqueceu-lhe leite, para a ajudar a dormir, disse ele. Depois, ela percebeu que ele tinha posto qualquer droga no leite porque começou a sentir-se muitíssimo fraca. Ele disse-lhe que a ia ajudar a voltar para o quarto, mas em vez disso levou-a para o dele. Mónica respirou profundamente. - E então... fez-lhe aquilo.

A Sandi fez-nos jurar que não diríamos nada - continuou Joana, com um tom de desaprovação na voz. A maneira grave como franziu o sobrolho deu-me a impressão de que se estava a lembrar, com amargura,

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do modo como tinha falhado em ajudar a amiga. - Disse-nos que o pai e a mãe nunca iriam acreditar nela, porque Morel era o amante da mãe e o melhor amigo do pai.

E ele também a ameaçou - acrescentou Mónica, com asco. - Disse-lhe que conhecia os casos do pai dela com outras mulheres e que haveria de arranjar maneira de as revistas de mexericos escreverem sobre isso.

E até afirmou que a culpa era da Sandi... que ela é que o tinha seduzido! - exclamou Joana, a voz fremente de desprezo.

Mas isso é falso! - gritou Mónica. - A Sandi não era dessas!

Quando Joana a beijou na cara, pensei com admiração: «Esta amizade é muito mais profunda do que qualquer outra em que eu pudesse ter tido parte-quando em da idade-delas.» E tive-o-pressentimento de que não teriam criado uma relação tão forte com Sandi se a sua lealdade não fosse também acima da média.

Joana disse:

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Monsieur Morel também disse à Sandi que sempre desejara tirar-lhe a virgindade e que, agora que o tinha feito, ela deixara de o interessar. E que não precisava de recear que ele voltasse a fazê-lo.

O meu olhar volveu-se para dentro quando me lembrei de que Sandi dera um presente - um livro de cozinha - ao homem que a tinha violado. Teria ela sido levada a esse gesto por precisar de sentir uma vergonha tão profunda que a impelisse a levar para diante o plano de se matar?

A questão parecia resolver um enigma que me intrigava há trinta e dois anos: por que razão uma mulher condenada à morte haveria de passar as suas últimas horas a tricotar um cachecol de quase dois metros com as cores do arco-íris para o seu carcereiro?

Sr. inspetor? - disse Joana

Estou a ouvir - respondi. - Então acha que a Sandi acabou por dizer aos pais o que Morel lhe tinha feito?

Ela jurava que não, mas descobri que estava a mentir. Seja como for, eles não fizeram nada. O Sr. Coutinho deve ter levado a sério a ameaça de MoreI. - Franzindo o sobrolho desdenhosamente, acrescentou: - Odiaria ver aparecer nessas estúpidas revistas de mexericos alguma coisa que prejudicasse a sua imagem.

Imagino que ela não tenha tido qualquer possibilidade de ir a um médico ou uma clínica no dia a seguir, depois de agredida por MoreI. Quer dizer, para ser examinada.

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Não, mas guardei uma coisa que prova o que ele lhe fez! - disse Joana num tom de triunfo vingador. Enfiou a mão no bolso dos shorts, tirou uma ampola de âmbar e levantou-se para ma mostrar. Continha um pedacito de tecido branco. - É um bocado de uma toalha com sangue.

Sangue de quem?

De Morel! - Voltou a sentar-se. - Quando tentava libertar-se, a Sandi arranhou-o com força nas costas. Ao chegar ao nosso quarto, limpou as mãos a uma toalha. Não suportava sentir o odor dele nela. Enquanto tomava um duche, rasguei uma ponta da toalha.

Muito inteligente - retorqui, embora soubesse que a sua astúcia não nos serviria de nada.

Com isso pode tirar o ADN do Morel, não pode? - perguntou ela.

Inclinou-se para mim e levantou os punhos como uma lutadora.

Devia ter passado três meses nessa esperança, porque no momento em que lhes prometi que iria entregar a ampola aos técnicos do laboratório, os olhos dela encheram-se de lágrimas. Esforçando-se por encontrar as palavras certas, Joana murmurou:

Obrigada, Sr. inspetor. Obrigada por ajudar a Sandi.

A sua expressão era radiosa. Tive o pressentimento de que seria desastroso revelar-lhes a impossibilidade de provar em tribunal que o sangue de Morel ficara nas unhas de Sandi

Page 197: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

quando ele a violara. O testemunho dela teria estabelecido essa relação. Mas, agora que estava morta, nunca viria a realizar-se julgamento nenhum.

Depois de as raparigas terem ido à cozinha buscar uma embalagem de sumo de maçã, partilhando-a, perguntei-lhes se Morel tentara voltar a fazer mal a Sandi, em casa dele ou dela. Mónica já tinha começado a entrançar o cabelo de Joana, com uma convicção e uma destreza impressionantes.

Ela nunca falou em nada desse género - disse Joana -, mas também não tenho a certeza de que nos contasse. Dizia que se sentia sempre suja. Mas sei que não acreditava no que ele lhe disse, que já não estava interessado nela. Por isso, fazia tudo o que podia para ter a certeza de que ele não a achava atraente.

Essa é que foi a verdadeira razão por que ela cortou o cabelo rente, não foi?

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Foi. E também começou a deixar de comer, para ficar ainda mais desinteressante. - Num tom de desaprovação, acrescentou: - Começou a usar saias e calças compridas para não se ver que era só pele e osso.

Lembrei-me de que Sandi usava um casaco do pai das duas vezes em que falei com ela. Tinha pensado que seria para se sentir reconfortada com o cheiro dele. Era claro que se tornara muito hábil em subterfúgios na altura em que a conheci.

Alguma vez viu a Sandi vomitar depois de comer? - perguntei, pensando que agora sabia por que razão tinha ela um honeydripper escondido na cama.

Ela disse-me que tinha começado a vomitar para evitar engordar. E contou-mo como se fosse um novo talento fantástico. Era de loucos!

E alguma vez a viu cortar-se a si própria?

Joana olhou-me com uma expressão atónita.

Cortar-se, como?

Com uma faca? Nos braços. Ou noutras partes do corpo.

Nenhuma das raparigas sabia nada disso, o que provavelmente queria dizer que Sandi tencionava enfiar a faca em Morel se ele ousasse entrar no seu quarto. Nem Joana nem Mónica se tinham apercebido de quaisquer tendências suicidas em Sandi.

Ainda que ela nos tenha dito que a morte do pai era culpa dela disse Joana. - Talvez tenha sido essa a razão por que fez aquilo.

Pensaria ela que a culpa era sua por não ter conseguido dizer nada ao pai sobre o augúrio de morte dos seus pesadelos, como originalmente fora levada a crer? Quando fiz a pergunta às duas raparigas, Joana disse que estava convencida precisamente do contrário: de que fora o

Page 198: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

que Sandi confessara ao pai que tinha acabado por a deixar mergulhada em sentimentos de culpa.

Ela deve ter dito ao pai o que Morel lhe fez - disse a rapariga. E o pai deve ter feito frente a MoreI. Morel percebeu então que precisava de silenciar o senhor Coutinho e pagou a alguém para o matar.

Era uma explicação bastante lógica. Só que essa possibilidade teria exigido uma improvável sequência de acontecimentos na casa de férias de Coutinho no Algarve. E que Susana Coutinho me tivesse mentido sobre alguma coisa crucial para a vida da filha.

Mónica parou de entrançar o cabelo da amiga e exclamou numa voz agitada:

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A Sandi deve ter começado a acreditar mesmo que Morel tinha razão quando lhe disse que ela o seduzira. Dava-me a impressão de que estava demasiado perturbada para conseguir pensar com clareza.

Sabe uma coisa, Sr. inspetor? - acrescentou Joana. - A Sandi também deixou de ter o período. Porque não andava a comer o suficiente.

Ficou contente por isso ter acontecido. Achava que nenhum homem a quereria se ela não tivesse o período. Talvez isso agora pareça não fazer muito sentido, mas quando ela nos disse fazia.

Mónica acabou a tarefa com um elástico. Joana inspecionou atentamente o entrançado perfeito; ficou bastante satisfeita. Depois de agradecer a Mónica, inclinou-se e pegou na revista Visão que estava na mesinha baixa entre mim e ela. Torceu-a num rolo apertado. Deu-me a sensação de que precisava de medir a sua própria força.

Vou tomar medidas para evitar que Morel se aproxime de vocês - disse eu, adivinhando o medo dela.

Ela fixou-me com um olhar ansioso.

Como pode conseguir isso?

Porque ele sabe que eu o considero um dos suspeitos e, por isso, vai mostrar-se o mais bem-comportado possível. E também mandei alguém vigiá-lo.

Mandou? - perguntou Mónica, surpreendida.

Quando confirmei que ele seria seguido dia e noite, se necessário, Joana bateu com a revista enrolada na cabeça de Mónica, soltando uma risadinha.

O meu desejo e a que a dedicação que mostrava uma pela outra as ajudasse a ultrapassar este trauma.

Em resposta à pergunta seguinte, as raparigas disseram-me que não sabiam se Sandi tinha contado ao psicólogo que fora violada.

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Ela disse-vos se Morel tinha tentado roubar-lhe alguma coisa? perguntei; estava a pensar no anel de turquesa.

Não. Nunca falou nisso - respondeu Joana. Mónica confirmou.

Podia ser, então, que, ao deixar de comer, os dedos tivessem ficado tão finos que o anel estivesse sempre a cair.

Já me lembro! - exclamou Mónica de repente.

O quê? - perguntou Joana.

«A felicidade atingiu-a como um comboio nos carris.»

Não estou a perceber - disse eu.

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O verso de Lungs de que Sandi mais gostava era parecido com isso.

Mónica cantou-o o melhor que se lembrava. Ficámos todos em silêncio a seguir. Joana fixou o olhar no vazio, claramente debatendo-se com uma nova onda de desespero. Parecia quase certo que as duas raparigas estavam a pensar, tal como eu, que a primeira experiência sexual de Sandi tinha sido um desastre - e um desastre intencional.

Sr. inspetor - perguntou Joana -, quando vai prender Monsieur

MoreI? Não pode prendê-lo já?

Temos de falar nisso - respondi.

Como assim?

O problema é que só consigo ver uma maneira de considerar Morel o assassino mantendo a lógica das coisas. E isso exige algumas verificações da minha parte. Sobretudo com a Sr.ª Coutinho, e ela ainda não está em condições de responder às minhas perguntas.

Nós contámos-lhe exatamente o que a Sandi nos contou! - exclamou Mónica em tom ofendido.

Não duvido, mas a vossa história só faz sentido se o pai da Sandi só tivesse sabido do que aconteceu à filha no último dia em que esteve no Algarve. Porque, se a Sandi lhe tivesse dito alguma coisa antes disso, ele nunca permitiria que Morel ficasse na sua casa de férias com ela lá. Já para não dizer que Morel não aceitaria um convite para ficar na mesma casa que a rapariga que ele violara três meses antes.

A não ser que seja uma pessoa nojenta e má! - exclamou Joana.

Sim, há pessoas dessas, é verdade. Mas se a Sandi tivesse contado ao pai que tinha sido violada teria havido com toda a certeza uma discussão violenta entre ele e Morel no Algarve.

E se calhar foi o que aconteceu! - disse Joana.

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Só que a mãe da Sandi disse- me que tudo tinha corrido bem.

Pode ser que ela não estivesse lá quando isso aconteceu.

Mesmo que não estivesse, teria sabido que houvera uma discussão grave em casa dela.

Talvez não tivessem chegado a vias de facto por Morel ter dito ao Sr. Coutinho que estava arrependido do que fizera - sugeriu Joana, insistente. - Concordou em manter-se longe de Sandi e da Sr.ª Coutinho e foi-se embora logo a seguir. Apanhou o Sr. Coutinho de surpresa em casa dele e deu-lhe um tiro. Ou pagou a alguém para o fazer.

E qual era o motivo?

Impedir que o Sr. Coutinho fosse à polícia.

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Então para evitar uma acusação por violação, que poderia não pegar, ia pagar a um assassino? Não é muito provável. Além disso, vocês disseram-me que o pai da Sandi odiaria ver o caso publicado nos jornais; por isso, nunca iria à polícia. Teria ficado com a Sandi na casa de férias. Haveria de querer ajudá-la.

Talvez ele tivesse coisas realmente importantes para fazer em Lisboa - sugeriu Joana, desesperada por validar a sua teoria. - O senhor não o conhece. Ele está sempre a trabalhar. É ou não é, Mónica?

É. Havia semanas a fio em que chegava a casa tardíssimo todas as noites.

Além disso - acrescentou Joana -, ele deixava a Sandi com a mãe. Na ideia dele ficava em segurança.

Embora nós saibamos que não estava a salvo nem com ela nem com ninguém - disse eu. Levantei-me e afastei-me das raparigas para pensar melhor. Uma das hipóteses é que Sandi tivesse dito à mãe exatamente o que se tinha passado, mas Susana se tivesse recusado a acreditar na história porque isso significaria ter de deixar o amante - e enfrentar um escândalo público.

Nesse caso, ter-se-ia convencido de que Sandi estava a mentir quando dizia ter sido violada, procurando evitar que ela deixasse Pedro e se casasse com MoreI. Se achasse que Sandi lhe mentira sobre uma coisa tão séria - e que poderia levar Morel a ser julgado pela prática de um crime - não teria mostrado grande compreensão pelos problemas da filha. O que poderia explicar a grande tensão que senti entre as duas durante o nosso primeiro encontro.

«Não acreditarem em nós e como assassinarem tudo o que temos de bom.»

Ernie e eu nunca tínhamos sentido necessidade de o verbalizar - compreendíamo-lo de cada vez que olhávamos um para o outro -, mas talvez fosse exatamente o que eu precisava de dizer a Susana para conseguir descobrir o que se tinha passado entre ela e Sandi. A não ser que...

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Outra possibilidade levava-me de volta a Joana e a Mónica; Sandi teria realmente mentido, mas não sobre a violação.

Falem-me mais nos homens que trabalhavam nas cavalariças de Morel- pedi-lhes.

O que quer saber?

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Que idade tinham? Onde viviam?

Tinham ar de ter vinte e tal anos. Eram da povoação mais próxima.

Andavam na universidade e só trabalhavam para Monsieur Morel em part-time.

Atiraram-se a vocês?

Diziam-nos umas piadas - retorquiu Mónica. Adivinhando a direção que tomavam os meus pensamentos, acrescentou: - Eram coisas inofensivas... A sério.

Acompanhavam-vos nos passeios a cavalo?

Um deles sim.

Lembra-se do nome dele?

Mónica voltou-se para Joana.

Era Bernard?

Acho que sim - disse joana, acrescentando: - Acha que ele poderia confirmar que Monsieur MoreI violou a Sandi?

A questão não é essa - respondi.

Então qual é?

Começo a pensar que MoreI não abusou dela... que quem abusou foi esse Bernard.

Isso é impossível! - declarou Joana com aquela sua confiança desarmante. - A Sandi não teria falado em Morel se não tivesse sido ele.

Não, a não ser que tenha pensado que poderia conquistar o vosso silêncio mais facilmente se vos convencesse de que era ele o homem que a atacara. Disse que Morel conhecia segredos do pai dela que poderia arruinar o casamento dos pais. Isso era uma maneira de fazer com que vocês ficassem caladas. E o plano dela funcionou... Nunca disseram nada até agora. Se ela vos tivesse dito que era um dos rapazes das cavalariças, teria sido quase impossível garantir o vosso silêncio.

Admito que é possível- disse Joana -, mas teria a Sandi realmente...

Vocês viram como MoreI se comportou convosco - interrompi.

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Não se mostrava nada preocupado com o que a Sandi poderia ter contado sobre ele, ou com o que vocês pudessem contar-me.

Não disse mais nada. Não queria acrescentar que Sandi poderia estar ansiosa por ir ter com Bernard ou com o amigo dele naquela noite. Ou com ambos. Poderia parecer-lhe uma aventura excitante.

Depois de a terem usado, os rapazes provavelmente convenceram-na de que ela os tinha provocado e de que, ao ir ter com eles às cavalariças

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ou a qualquer outro sítio da propriedade de Morel, tornara aceitável o que tinham feito. Disseram-lhe que ela andava a pôr-se a jeito.

Mas o que é que poderia tê-los levado a fazer uma viagem de milhares de quilómetros até Portugal e matar Coutinho três meses depois?

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Capítulo 19

Eu e Ernie fugimos de casa no dia 26 de junho de 1979, um sábado. Eu tinha nove anos e o meu irmão, cinco. As aulas haviam acabado nessa altura. Aproximava-se o fim da manhã, era quase meio-dia, e o nosso pai tinha acordado com uma ressaca monumental.

Estávamos no alpendre a tomar o pequeno-almoço quando ele começou aos berros a chamar por mim e por Ernie. O terror que se espelhou na cara do meu irmão mostrou-me que era melhor fazer alguma coisa rapidamente. Agarrei-o e desatámos a correr desabaladamente em direção a Crawford. Na minha opinião, o meu pai estava demasiado grogue para ir atrás de nós, e, depois de termos galgado a oscilante cerca de madeira da propriedade dos Johnsons, seguimos o caminho que dali levava à cidade.

Ernie e eu, a bem dizer, não trocámos uma palavra. Durante uma guerra temos tendência para ficar bem calados. Poupámos energias.

Contava que Nathan, que trabalhava no armazém da cidade, nos levasse de carro até Grand Junction ou outro sítio onde o meu pai não nos pudesse encontrar. Se ele não pudesse levar-nos, iríamos à boleia.

Mas Ernie escorregou numa curva do caminho que tinha ficado em péssimo estado com as chuvas da primavera. Caiu e resvalou por uma encosta coberta de ervas, uns bons dez metros. Quando cheguei junto dele, tinha sangue no ombro e num dos joelhos. Limpei-o o melhor que podia com as mãos. Ernie mostrava-se disposto a continuar, mas,

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ao estancar-lhe o sangue com a minha camisa, percebi o que já devia ser evidente - que o meu pai culparia a minha mãe por termos fugido e que ela não iria sobreviver à lição que lhe daria.

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Quando olhei em frente para ver onde Ernie e eu nunca haveríamos de ir, apercebi-me de que estávamos debaixo de uma enorme árvore frondosa, cada ramo curvado sob o peso de centenas de brincos de filigrana. Eram como esmeraldas brilhantes. Nunca tinha sequer reparado nisso. Fiquei tão espantado que recuei um passo.

«Uma beleza tão inesperada pode ser perigosa», pensava, embora nessa altura não fosse possível tê-lo formulado numa frase tão límpida.

Ainda hoje, quando vejo alguma coisa erguer-se acima de mim - que mais não seja a parede de um prédio -, aquela nogueira agiganta-se diante dos meus olhos e uma estrela cadente de surpresa e de maravilhamento atravessa cintilante toda a distância das minhas recordações. Arrastámo-nos de volta a casa. O meu pai saíra, mas a minha mãe estava na cama apertando um saco de ervilhas geladas contra a cara.

Depois da morte dela, pedi ao meu pai que construísse uma ponte por cima do riacho que passava no nosso terreno, embora fosse fácil atravessá-lo a pé, exceto quando chovia muito. Já não me lembro por quê.

Antes de o meu pai ter esvaziado as gavetas da minha mãe, roubei um baralho de cartas da mesinha de cabeceira - as tais com os monumentos de Lisboa nas costas. Dei vinte e seis cartas a Ernie e fiquei com as outras vinte e seis. Gostava da ideia de Ernie e eu só podermos jogar rummy ou póquer um com o outro.

Não é que devesse saber onde o meu irmão guarda a sua metade do baralho, mas sei. Está numa caixa de arrumações de plástico debaixo da sua cama, juntamente com os seus mapas do Colorado e os CD de cantores românticos, sentimentais, como Carlos Gardel e Bing Crosby. Ernie faz uma imitação muito boa de Carlos Gardel, mas como tem o cabelo demasiado comprido temos de fechar os olhos para experimentarmos o pleno impacto de estarmos ao lado de uma melodramática vedeta argentina garganteando Por Una Cabeza.

Lembro- me de estar com o meu pai a seguir ao funeral, com ele a dobrar os dedos bastante para trás, sobretudo para fazer Ernie rir. O meu pai era extremamente flexível e a liberdade de fazer o que quisesse com a mão era como ser capaz de voar.

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Lembro- me também de o meu pai dançar o tango com Ernie nos braços já depois da morte da minha mãe, Mieczyslaw Fogg a cantar com toda a alma em polaco no nosso velho gira-discos KLH, e eu a bater palmas naquele ritmo sub-reptício. Embora naquele tempo não o exprimisse por palavras, sei que estava a pensar no seguinte: «Apesar de tudo, eu e o Ernie tivemos sorte, porque não quereria ter outro pai, embora odeie aquilo em que ele se torna quando se zanga e não consiga compreender porque faz as coisas que faz.»

Era um daqueles momentos que sabia que haveria de guardar dentro de mim, num lugar secreto onde nunca ninguém o pudesse descobrir, porque pensar coisas boas acerca do meu pai era uma traição imperdoável tanto a Ernie como a mim. E à nossa mãe também, naturalmente.

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Gostava de levantar a pequena alavanca do nosso gira-discos KLH que mudava as rotações de 33 para 45 ou 78 por causa do ruído preciso e mecânico que fazia. Acho que me dava a ideia de que era possível alterar coisas importantes na nossa vida; bastava que conseguíssemos perceber onde devíamos concentrar a nossa energia e em que sentido a empurrar.

O meu pai tinha LP de Mieczyslaw Fogg, Hanka Ordonówna, Sefcia Górska, Zula Pogozelska e uma data de outros cantores polacos. Antes de eu nascer, comprara a coleção de discos de um estucador polaco que tinha posto um anúncio no Denver Posto

Quando dançava com Ernie, fechava os olhos e deixava-se guiar pela melodia. Para ele, girar e contorcer-se como Fred Astaire parecia tão fácil como respirar. Era um homem airoso. E bonito. Tinha orgulho em ser filho dele.

Gostava da sua boa aparência num género despretensioso - com o cabelo sempre despenteado e a barba de dois dias - que hoje me parece típica do Oeste americano, embora isso se possa dever ao facto de viver a milhares de quilómetros do Colorado e não saber realmente qual o aspeto dos homens de lá. Se a nossa vida familiar tivesse sido o filme hollywoodesco que eu gostaria que tivesse sido, o meu pai teria um cabelo de estrela de cinema, penteado para trás, e abriria caminho, dançando o tango, até ao coração de Ginger Rogers na cena mais espetacular. Passaria a lua de mel com ela em Acapulco à luz da Lua cheia.

Ele - e não Ernie, naturalmente - cantaria Por Una Cabeza na cena do clímax. A sua vida no Colorado - tal como eu, o meu irmão e a minha mãe - não passaria de uma cena cortada do filme.

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A minha mãe contou-me que tinha feito parte de um coro em Portugal, mas não me parece que alguma vez a tenha ouvido cantar. Era de Évora, uma pequena cidade a poucos centímetros para este de Lisboa no mapa de Portugal no nosso Collier's Atlas. Quando estava sozinho em casa, às vezes punha a ponta do dedo na marca de Évora no mapa e tentava imaginar os edifícios brancos da praça central.

O meu pai ficava irritável e maldoso quando estava bêbado, mas com a ressaca passava a ser perigoso. Será situação rara nos alcoólicos?

Nunca o descobri; há coisas que prefiro não saber.

Quando estava a sós comigo e com Ernie, a minha mãe por vezes falava português. Mas, se o meu pai estivesse por perto e tivesse estado a beber, não ousava fazê-lo. Dava-lhe uma estalada sempre que ela não falava em inglês.

Estás sempre a rebaixar-me aos olhos dos meus filhos com a porcaria dessas rábulas... e mesmo à minha frente! - berrava-lhe, com um esgar de desprezo como se ela fosse lixo.

Mas, para dizer a verdade, quando a minha mãe dizia mal dele insistia sempre em diluir as críticas, tornando-as menos incisivas. Não só em inglês, mas também em português.

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Agora, que sou adulto, posso ver que as estaladas e os murros lhe levaram a maior parte da combatividade, e que o Valium fez o resto. Talvez ter de olhar por mim e pelo Ernie também tenha contribuído para a deitar abaixo. Às vezes penso que foi o facto de nos ter por perto que a arrastou para as profundezas do seu mar de solidão e a submergiu por completo.

Ou, mais precisamente, foi o dever de nos criar, a mim e a Ernie, que a arrastou para o velho Plymouth Belvedere do meu pai e a pôs ao volante rumo a um encontro marcado com aquele álamo à beira da estrada.

Por outro lado, quando vejo os meus filhos a brincarem juntos, convenço-me de que éramos a única luz que alguma vez lhe chegava naquele fundo do mar onde vivia. Teria ela deixado o meu pai se nós não tivéssemos nascido? É uma questão em que não penso muitas vezes para não acrescentar à minha insónia um poço demasiado negro.

O que acho é que a nossa fuga e o ter sido espancada por causa disso foi o fim da minha mãe. A partir de então, deixou de sair de casa, mesmo para ir à igreja ou apanhar flores. A bem dizer, nunca mais se voltou a vestir.

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Talvez tenha sido enquanto segurava as ervilhas geladas contra a cara que imaginou a maneira de se libertar para sempre.

Provavelmente pensou que, se deixasse de estar presente, nós poderíamos fugir de casa. E que dessa vez seríamos bem-sucedidos. De certo modo, tinha razão, embora tivéssemos levado mais quatro anos para conseguir sair do Colorado. E apenas depois de o nosso pai nos deixar. As bebedeiras dele tinham-se agravado pouco antes do seu desaparecimento - tornaram-se tão más que às vezes acordava sem saber onde estava e pensando que a minha mãe ainda era viva.

Houve uma tarde em que o meu pai estava com uma piela de todo o tamanho e decidiu ir deitar-se, contou-me a minha mãe - num inglês que era uma má tradução do português. Disse-me que ele tinha emborcado tanto rum que «não se aguentava a si próprio e foi dormir urna sesta». Queria dizer que ele não se segurava em pé, mas, de tão nervosa, usara o verbo de forma errada, embora eu desejasse que não fosse engano e que o meu pai se detestasse quando se embebedava.

Nunca ousei odiar o meu pai até vir para Portugal. Quando vivia no rancho, estava convencido de que ele podia realmente ler os meus pensamentos e que, se visse que havia na minha cabeça alguma coisa de que não gostava, nos poria à prova, a mim e a Ernie, mais uma vez.

Os sioux consideram os álamos árvores sagradas. Nathan disse-mo depois de a minha mãe morrer. Julgo que queria explicar-me que ela tinha escolhido aquela árvore por saber que era venerável. Não creio, de facto, que achasse que tal informação reduziria o meu sofrimento. Talvez fosse necessário ter sido criado como sioux para compreender porque é que a espécie de árvore contra a qual ela embateu era importante.

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Nathan teria uns cinquenta e tal anos nessa altura, acho. Ernie e eu costumávamos ir visitá-lo à loja da cidade onde trabalhava. Vendia-nos pastilhas elásticas e alcaçuz. Quando não havia lá mais ninguém, falava-nos de Alce Negro, o grande curandeiro sioux - da sua aprendizagem e das suas viagens para Inglaterra com o Buffalo Bills Wild West Show, das suas visões e escritos. Mas, se entrava alguém na loja, fingia sempre que estávamos a falar de basebol ou de futebol. Nathan acreditava que eu fora abençoado à nascença por um thunderbird, uma ave sagrada. Não sei como chegou a essa conclusão. Por vezes sentava-me

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em cima do balcão de madeira onde estava a caixa registadora e deixava-me dar uma fumaça no seu cachimbo. Dizia que era ele que lhe dava o poder de profetizar o futuro e que por isso tinha a certeza de que eu e Ernie iríamos precisar de uma grande ajuda para chegarmos à vida adulta.

Nathan tinha dentro de si um sol luminoso, embora a maior parte das pessoas não o pudesse ver, naturalmente.

Certa vez, sentou Ernie na sua cadeira e rodou sete vezes em volta dele numa dança, murmurando uma prece sioux. «Isto vai ajudar a mantê-lo protegido mesmo quando tu não estiveres por perto, Rico», explicou-me.

Ernie, Nathan e a minha mãe eram as únicas pessoas que eu deixava que me tratassem por Rico.

Nathan tinha uma pele cor de canela, rugas profundas em volta dos olhos, um cabelo muito preto, que usava comprido e separado em duas tranças firmes, e uns olhos pequenos e fundos como contas de obsidiana. Não vestia as roupas tradicionais dos sioux. Usava jeans e T-shirt. As suas mãos eram calosas dos trabalhos de escultura em madeira que fazia.

Por vezes, ao fim da tarde, andava pela cidade com o cabelo solto, usando grinaldas de flores à volta do pescoço. Havia quem se risse dele e dissesse que queria ser uma mulher. Não sabiam - nem queriam saber o que era um winkte. Além de que não gostavam de índios.

Nesse tempo, não chamávamos a pessoas como Nathan «nativo-americano». Na cidade teriam troçado de alguém que usasse esses termos.

Era perfeitamente aceite rejeitar-se alguém só por ser sioux. E fazê-lo às abertas, com a certeza de que quase toda a gente concordaria.

A polícia podia prender um nativo-americano simplesmente por andar na rua. Era o que acontecia a Nathan sempre que saía de Crawford.

Uma vez passou uma semana na cadeia em Denver. Quando conseguiu voltar a Crawford, disse-me: «Lembra-te sempre disto, Rico, eles podem prender-te só por estares sentado num jardim a pensar!»

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Quando eu tinha uns cinco ou seis anos, Nathan explicou-me o que era um winkte: um bobo que é ao mesmo tempo um sábio. Um winkte é abençoado ao nascer com um duplo espírito, um masculino e outro feminino.

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Hoje penso que ele sabia muito sobre o que Ernie e eu passávamos em casa. Mas nessa altura não tinha consciência disso. Terá ele feito o meu pai desaparecer? Talvez haja coisas ao alcance dos winktes que estão muito para além daquilo que um polícia branco pensa que eles podem fazer.

Gostava que ele tivesse dado uma ajuda à minha mãe com a sua magia. Mas é possível que tenha tentado sem que eu desconfiasse.

A vida deve ter sido para a minha mãe uma grande luta diária quando chegou ao Colorado. Provavelmente, agarrou-se ao meu pai - um homem forte que dava a impressão de conhecer todos os códigos culturais secretos daquele novo país - como se ele fosse o seu parceiro de número no trapézio.

Dois de maio de 1981, um sábado. Tinha um jogo de basebol da Little League nessa manhã em Crawford. Ernie foi comigo a pé e ficou a ver-me jogar da última fila das bancadas, sentado ao lado de Nathan.

O meu pai era para ir, mas estava a curtir a bebedeira que apanhara com os amigos na véspera. A minha mãe ficou em casa, a tricotar na cama. Disse que queria acabar o cachecol que andava a fazer para o meu pai, pois só lhe faltavam uns trinta centímetros.

O cachecol tinha as cores do arco-íris. A minha mãe encomendara lã tingida com produtos naturais de uma loja chamada Art Fibers, de Santa Fé.

Desculpa, amor - disse-me quando me informou de que não podia ir ver-me jogar. - Talvez da próxima vez. - Falou em português.

Deu-me um beijo e aspirou profundamente o cheiro do meu pescoço.

É melhor do que flores do campo! - exclamou.

Seguidamente, segurou a cabeça de Ernie entre as mãos e disse-lhe que ele era o menino mais bonito do mundo, o que me deixou com ciúmes, embora aquele comportamento tão estranho me tenha preocupado mais do que qualquer outra coisa.

Devia ter adivinhado o que iria acontecer, mas não adivinhei.

Depois do jogo, Ernie e eu fomos para casa seguindo a pé a 92, a estrada que passava em frente do nosso rancho, quando avistámos o belo Plymouth Belvedere do meu pai mesmo à nossa frente, logo a seguir à velha casa meio arruinada do Mayor Anderson. Só que não estava estacionado e sim espatifado contra uma árvore enorme. A parte da frente ficara achatada contra o para-brisas e enfaixada à volta da árvore. Atrás do carro, encontrava-se um grande camião de reboque e,

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no outro lado da estrada, um carro da polícia de trânsito do Colorado.

O nosso pai estava a falar com o guarda. Gesticulava imenso, com o boné dos Milwaukee Braves na mão.

Percebi logo o que acontecera, mas não permiti que essa ideia me dominasse.

Talvez destruir o adorado Plymouth do meu pai fizesse parte da sua vingança. É possível também que tenha tomado o único caminho que lhe parecia razoável e nunca lhe tivesse ocorrido que estava a destruir aquilo que ele mais apreciava.

Ernie correu para lá. Eu não. Não queria entrar mais cedo do que o necessário naquilo que seria a minha vida a partir de então.

Assim que pegou em Ernie, o meu pai deve ter-lhe contado o que acontecera. O meu irmão desatou a berrar como se o estivessem a matar.

O guarda explicou ao meu pai que havia uma testemunha - um caçador de Boulder. O homem relatara que a minha mãe tinha acelerado em direção à árvore. Ia pelo menos a oitenta quilómetros à hora.

De volta a casa, encontrámos dobrado na mesa da cozinha o cachecol em arco-íris que a minha mãe acabara de fazer. Em cima, uma carta para o meu pai. Nunca soube o que escrevera. O meu pai agarrou nela e recusou-se a mostrar-ma quando lhe pedi. A única coisa que me disse foi que ela pedia desculpa por nos abandonar, a Ernie e a mim.

Nunca lhe perdoei não me ter mostrado a carta da minha mãe. Não vejo como poderia fazê-lo. Há vezes em que sinto que devia perdoar-lhe só para conseguir alguma az de esprito, mas jamais o farei.

O meu pai nunca usou o cachecol. Não sei o que lhe aconteceu.

Procurei-o uma vez ou outra nos anos que se seguiram, mas não o encontrei.

É possível que a minha mãe tenha simplesmente adormecido ao volante devido à grande quantidade de Valium e que tencionasse apenas ir até à cidade no carro do meu pai. Talvez quisesse ir até Denver e apanhar aí um avião para Nova Iorque e depois seguir para Lisboa. Ou talvez tenha tomado uma dúzia de comprimidos para não sentir dor ao partir a coluna quando embatesse na árvore sagrada que escolhera. Gosto de pensar que planeou tudo com tanta antecedência que foi capaz de evitar sentir fosse o que fosse no momento do impacto. Se bem que, quando estou desesperado por falar com ela e ser acarinhado,

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deseje por vezes que ela tenha sentido dores lancinantes durante dois ou três segundos. Bem sei que não devemos desejar tais coisas a alguém que amamos, claro, mas acho que a raiva de sermos abandonados ainda em crianças pode enfiar-nos ideias cruéis na cabeça.

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Capítulo 20

Antes de me despedir de Joana e Mónica, disseram-me que nunca tinham visto o pai de Sandi com outra mulher que não a esposa e que não reconheciam a cara do desenho feito pela polícia. Nunca haviam visto ninguém com o número trinta tatuado na mão.

Nessa manhã, Sylvie tinha-me dado o número de telefone do psicólogo de Sandi, Benjamim Loureiro. Liguei-lhe enquanto seguia para a estação de metro do Rato. Ele estava à espera de que a polícia o contactasse. Disse-me que Sylvie já o tinha informado da morte de Sandi.

O Dr. Loureiro respondeu cautelosamente às minhas perguntas, explicado que o sigilo profissional o obrigava a não entrar em espetos concretos do que Sandi lhe tivesse confiado. Disse-me que o tratamento da jovem paciente tinha a ver com dificuldades psicológicas que estavam a comprometer a sua saúde física, assim como com profundos sentimentos de autoaversão.

Os pais dela estavam a par da bulimia? - perguntei.

O senhor acha que ela tinha bulimia? - replicou ele.

Tinha um honeydripper na cama para provocar o reflexo de vómito - disse eu. - E contou às amigas que vomitava a seguir às refeições.

O Dr. Loureiro hesitou uns instantes, confirmando depois as minhas suspeitas. Em resposta à pergunta seguinte, disse-me que Sandi nunca falara em nenhum caso de abuso sexual. De facto, dissera-lhe que

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ainda era virgem. Tinham tido a primeira sessão de terapia na terceira sexta-feira de maio. Os distúrbios alimentares haviam começado algumas semanas antes. Loureiro achava que os problemas conjugais dos pais de Sandi - bem como a dificuldade de adaptação que sentira após a sua vinda de França - lhe tinham minado a autoconfiança. Além disso, Sandi começara a menstruar cerca de seis meses antes e as alterações hormonais no corpo haviam-lhe afetado gravemente a estabilidade. Nunca falara em suicídio, mas não o surpreendia que ela tivesse posto fim à vida; a privação alimentar provocara-lhe perigosas alterações de humor. Muito do tempo que passara com ela fora simplesmente dedicado ao estabelecimento de estratégias para uma alimentação saudável.

O psicólogo confirmou que Sandi tinha realmente sonhos em que intervinham intrusos violentos em casa dela e que punham em risco a sua família.

Loureiro telefonara a Sandi no sábado. Tinha-lhe parecido deprimida, mas estável. Haviam marcado uma sessão especial para a tarde de hoje.

Depois de Loureiro me ter lido as datas das sessões com Sandi, liguei para David Zydowicz e convenci-o a fazer a autópsia da rapariga o mais depressa possível. Quando lhe falei nos

Page 210: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

aspetos suplementares a que precisava de estar atento, perguntou-me que idade tinha ela; quando lhe disse, respondeu em tom crítico:

Pensei que era só no Brasil que as meninas começavam tão cedo.

Infelizmente, não foi por escolha dela.

A seguir tentei o telemóvel da Sr.ª Coutinho, mas estava desligado.

Consegui, porém, falar com Morel e pedi-lhe que lhe passasse a chamada.

Ela interrompeu-me a tentativa de lhe apresentar as minhas condolências.

Oh, Monroe, ainda está em Lisboa? - perguntou. A sua voz parecia-me alegre e como que drogada. - Mas esta ligação está horrível! Até parece que está a falar da Lua!

Oiça, Sr. Coutinho, precisava de saber se...

Sou toda ouvidos - interrompeu, em inglês, e fez soar um riso rouco, de fumadora.

Desculpe fazer esta pergunta, mas a Sandi alguma vez lhe falou em abusos sexuais de que pudesse ter sido vítima em casa de Monsieur Morel em França?

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Silêncio.

Sr.ª Coutinho, isto é importante - insisti. - Tente concentrar-se, por favor.

Pode tratar-me por Susana. Tenho a impressão de sermos já velhos amigos. Quer dizer, se tivesse amigos, o senhor seria um deles! Riu-se mais uma vez.

Susana, tente ouvir o que estou a dizer. A sua filha alguma vez falou em experiências sexuais que teve... experiências violentas que a podem ter perturbado profundamente?

Gosto muito de si, mas o seu português é abominável! - Dirigindo-se a Morel, disse-lhe: - Consegue compreender este português?

Ouvi a voz de Morel:

Susana não está muito bem. Volte a ligar mais tarde!

A Sandi pode ter sido violada; por isso, passe-me a Susana outra vez, agora!

Violada? O que quer dizer?

A Susana pode explicar quando eu acabar de falar. Dê-lhe o raio do telemóvel!

Passados instantes, Susana perguntou:

É o senhor outra vez, Monroe?

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Sim. Agora ouça bem, Susana. A Sandi alguma vez disse o que aconteceu em casa de Morel... sobre ser violentada ou molestada?

Depois de um instante de silêncio, atacou.

Quero o nome da pessoa que lhe contou uma coisa tão disparatada!

Duas amigas dela disseram-me isso.

Que duas amigas?

Joana e Mónica. Elas estavam com Sandi na casa de Morel na Normandia.

Elas foram... molestadas?

Não. Mas a Sandi contou-lhes o que lhe tinha acontecido.

Oiça, Monroe, o senhor levou-me a pensar em coisas que não fazem sentido. E eu não compreendo o que está a tentar dizer-me.

Joana e Mónica dizem que Sandi foi atacada quando estava em casa de Morei... em casa dele na Normandia.

Susana baixou o telefone e falou com Morel em francês, mas não consegui perceber o que dizia. Quando ela começou a soluçar, Morel retomou a chamada.

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Monroe, o senhor é um louco! - gritou. - Faz as coisas pior!

Aconteceu algo horrível a Sandi em sua casa. Preciso de saber tudo o que o senhor sabe.

Espere um momento.

Morel dirigiu-se a Susana em francês, num tom de comando, depois disse-me para esperar mais uns segundos enquanto saía do quarto dela. O choro foi diminuindo até ficar reduzido ao silêncio.

Oiça, Monroe, eu digo já ao senhor - disse ele. - Nós temos umas belas férias juntos em minha casa. Não sei sobre o que está a falar.

Então não aconteceu nada de mal com Bernard?

Quem é Bernard?

Um dos rapazes que trabalham nas suas cavalariças.

Bernard Mercier? O senhor acha que ele fez mal a Sandi? – perguntou Morel numa voz atónita.

Sim. Nunca suspeitou de nada de semelhante?

Não, nunca.

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E o outro rapaz das cavalariças? Como se chama ele?

François Savarin.

Alguma vez suspeitou de que ele fosse capaz de violência?

Não. É um bom rapaz. Conheço sua família há muitos anos.

Ainda trabalham para si, os dois?

Fraçois, sim. Mando Bernard embora.

Porquê?

Ele rouba de mim.

Quando?

Na Páscoa... quando Sandi e Pedro estão de visita.

Não disse que não tinha acontecido nada nessa altura?

Nada de mal com Sandi e as outras meninas! É isso que digo!

Então o que aconteceu exatamente com Bernard Mercier?

Pedro vê que ele rouba.

O que roubou ele?

Um livro importante. Eu tenho uma biblioteca valiosa. Ele rouba a primeira edição de Les Confessions, de Rousseau. Ainda não devolve. Diz que nunca rouba esse livro.

Mas Pedro Coutinho viu-o roubar o livro?

Exatamente

E despediu Bernard?

Que mais posso fazer?

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Bernard sabia que Pedro Coutinho o acusou de roubar?

Sim. Tenho de dizer porque eu não estou ali quando ele rouba.

Há quanto tempo trabalhava Bernard para si?

Desde quando ele é rapaz.

Há quantos anos?

Talvez... talvez dez anos.

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Antes de desligar, Morel deu - me os números de telemóvel dos dois trabalhadores das cavalariças. Quando desliguei, tinha já uma ideia clara do que acontecera.

Sandi fora violada por um ou por ambos os rapazes. O que ela dissera a Joana e a Mónica sobre ter sido drogada era provavelmente verdade; uma rapariga não inventa esse tipo de pormenores. Quem quer que a tenha violado deve ter-lhe dito que, agora que perdera a virgindade, deixara de lhe interessar; também neste caso não me parece que uma rapariga de catorze anos tivesse inventado um comentário tão cruel. E os meus muitos anos de experiência haviam-me ensinado que os pormenores verídicos tornam a mentira no seu todo neste caso, que Morel a tinha violado - mais fácil de manter.

Se a minha tese estivesse certa, então Sandi teria contado a verdade ao pai. Como não fora forçada a ir ter com os seus atacantes, o pai concluíra que a polícia não teria qualquer base para proceder a prisões.

Talvez considerasse até que a filha era em parte responsável pelo que se passara. Seja como for, é provável que lhe tenha dito para guardar segredo sobre o acontecido. Não devia sequer contar à mãe, pois Susana era capaz de ir à polícia, o que significaria que os jornalistas iriam saber disso. Para fazer Bernard Mercie pagar pelo crime - e te a certeza de que Sandi não o voltaria a ver -, Coutinho arranjara maneira de conseguir que ele fosse despedido. Apostaria que fora ele quem tirara da biblioteca de Morel a primeira edição de Les Confessions de Rousseau, dizendo depois que vira Mercier a roubá-la. A Coutinho devia ter parecido a solução ideal - e mais discreta.

Mercier viu-se sem emprego depois de dez anos de leais serviços a MoreI. Terá ficado furioso com a mentira de Coutinho, que lhe arruinou a reputação. E talvez com Sandi também. Muito possivelmente achava que não havia nada de que devesse envergonhar-se - afinal a rapariga fora ter com ele de sua livre vontade. Passara os últimos três meses a preparar a sua vingança. Talvez tivesse apenas planeado assustar Coutinho e as coisas tivessem descarrilado.

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Quanto a Sandi, deve ter ficado destroçada por o pai não ter feito qualquer esforço para a defender. Voejou desesperadamente durante três meses em torno da chama da vergonha, até que a sua resistência cedeu e acabou por ruir.

Para verificar a minha teoria, liguei a Luci e pedi -lhe que fosse até à biblioteca de Coutinho e procurasse Les Confessions no armário envidraçado e fechado à chave. Telefonei também ao inspetor Quintela e pedi-lhe para ligar o computador e me dar a data da primeira edição. Daí a um minuto, ou pouco mais, já a tinha: 1782.

Luci voltou a entrar em contacto comigo mal cheguei ao meu gabinete. Tinha nas mãos uma edição com uma encadernação de couro de Les Confessions, publicada em 1782.

O facto de ser uma primeira edição não era ainda uma prova absoluta de que Continho a roubara a Morel, mas na página de guarda do livro Luci descobriu um carimbo bastante delido onde se lia: J. Morel, rue du Floquet, Sacquenville.

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Que quer que faça com isto, chefe? - perguntou-me.

Traga o livro - respondi. Mas, mal acabei de o dizer, ocorreu-me que MoreI poderia ter-me mentido e ter estado implicado numa combinação para despedir Mercier. E encobrir o caso. A ser assim, também saberia que o livro estava no armário fechado de Coutinho. - Mudei de ideias - disse a Luci. - Ponha Les Confessions no sítio onde estava. É melhor não dar a entender que suspeitamos de que livro possa ter uma importância especial.

Pela janela lateral vi que o inspetor Quintela estava no seu gabinete; por isso, entreguei-lhe a ampola que Jana me dera e pedi-lhe que a passasse aos técnicos do laboratório. Se a minha teoria estivesse certa, o sangue no pedaço de toalha seria de Mercier ou de Savarin. Ou, na pior hipótese, de ambos. Pedi-lhe também para arranjar as listas de passageiros de todos os voos de e para Paris durante as duas últimas semanas e para verificar se Mercier ou Savarin constavam de alguma delas.

Depois de Quintela sair, lembrei-me de que Sandi poderia ter contado à mãe que fora violada, mesmo depois de o pai lhe ter dito para não o fazer. Em última análise, Susana poderia ter reparado na mudança de comportamento da filha e tê-la levado a confessar. Nesse caso, é bem possível que tenha discordado do marido no que respeitava à maneira de tratar a situação. Teria concluído que Pedro recusara a Sandi a ajuda e a compreensão de que ela precisava. Poderia ter-se mostrado inclinada

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a informar a polícia e ter sido impedida por ele. Muito provavelmente teria havido uma discussão violenta. Tudo isso explicaria por que razão, ao falar comigo, aludira à crueldade que existira naquela casa. Será que a culpa a levara a esperar que eu compreendesse a insinuação? Ao fim e ao cabo, ela tinha tomado parte no plano do marido para guardar silêncio sobre a violação da filha.

Tudo parecia encaixar, mas sentia que havia algo mais, algo que ninguém queria que eu visse faltava qualquer coisa, e estava relacionada com a necessidade de fazer com que os piores crimes desaparecessem como se nunca tivessem acontecido.

De volta à minha secretária, consultei o website de Florence + the Machine e encontrei as letras de Lungs. A canção Dog Days Are Over chamou-me a atenção imediatamente por falar de uma rapariga a quem a felicidade atingira como um comboio descontrolado. Também mencionava cavalos ameaçadores e, perto do fim, fazia uma analogia entre a alegria e ser-se alvejado pelas costas.

Frequentemente buscamos narrativas que nos ajudem a perceber a nossa vida, e tornara-se óbvio para mim que Sandi encontrara naquela canção uma resposta para a sua.

Vi duas vezes o vídeo de Dog Days Are Over no YouTube. A vocalista - Florence? - usava um vaporoso vestido branco e tinha a cara e as mãos pintadas dessa mesma cor. O cabelo era um capacete vermelho encaracolado. A canção começava num tom sussurrado e suave, e os movimentos das mãos, sinuosos e descompassados, faziam com que a sua dança parecesse espontânea, jovem, não profissional. Cerca de um minuto após o início da canção, começou a

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ouvir-se em fundo um bater de palmas sincopado; a vocalista começou a entoar as palavras como se tivesse ficado furiosa. Depois - pareceu-me -, Dog Days tornase um êxito num estilo Motown atualizado para adolescentes ansiosos por terem uma confirmação musical de toda a raiva que se lhes pedia que eliminassem.

Enquanto passava os olhos pela lista de chamadas feitas do e para o telefone de Coutinho para ver se tivera algum contacto com os dois rapazes franceses durante as últimas semanas, David ligou-me para o gabinete. Disse que tinha acabado de fazer a autópsia de Sandi e que não havia quaisquer vestígios de que tivesse sido forçada a tomar uma overdose nem ferimentos autoinfligidos. Estava à espera dos resultados

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dos exames a substâncias tóxicas para classificar a morte como suicídio, mas não via razões para suspeitar de qualquer outra causa.

Quando me disse que o peso dela estava a um nível perigosamente baixo, expliquei-lhe que sofria de bulimia.

Só mais uma coisa, Henrique - acrescentou num tom sombrio.

A Sandi estava grávida.

A revelação de David deixou-me pregado à cadeira.

Oh, meu Deus, de quanto tempo?

Cerca de três meses, embora o feto só tivesse dezasseis milímetros de comprimento. Estaria mais desenvolvido se ela comesse melhor.

Havia súbitas mudanças no acaso que poderiam fazer com que lhe parecesse inútil continuar a lutar, claro, e esta era uma delas.

Sabia que haveria de recordar para sempre a sólida curvatura da minha caneca de café, porque foi precisamente ao apertá-la com força que compreendi que Sandi deixara de se alimentar para que ninguém se apercebesse de que estava grávida. O que significava que tinha também matado à fome o filho por nascer - um crime com que apenas conseguira viver o tempo de decidir pôr termo à vida.

Confirmei na lista das chamadas feitas e recebidas por Coutinho que não tinha falado nem com Mercier nem com Savarin nas últimas duas semanas. Fonseca surgiu no umbral da porta enquanto me perguntava se deveria pedir à polícia francesa para interrogar os dois rapazes. Fez-me um apanhado das provas que ele e Vaz tinham recolhido na sexta-feira. Depois de excluírem as impressões digitais das pessoas da família e da Sr.ª Grimault, restavam as de seis outras pessoas, mas nenhuma delas constava da nossa base de dados. Também não havia cor respondência com a bala encontrada, o que significava que a arma do assassino não fora usada para cometer qualquer outro crime em Portugal.

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Fonseca tinha-a identificado como sendo uma Browning semiautomática, mas não encontrara quaisquer impressões digitais. Curiosamente, era um modelo que tínhamos usado na polícia até cerca de dez anos antes.

Como esperava, as manchas de sangue no panda de peluche e na roupa interior que encontrara debaixo da cama eram da própria Sandi.

Havia impressões digitais de Morel por toda a sala de estar, assim como o seu ADN nas beatas dos cigarros Gauloises. A palavra «Diana» em japonês fora realmente escrita com o sangue de Coutinho.

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Uma fibra que ficara presa na segunda letra mostrava que o pincel utilizado era de pelo de coelho.

Vamos ter de verificar os pincéis da vítima - disse eu a Fonseca.

Lançou-me um olhar circunspecto.

Já verifiquei. Os pincéis de Coutinho são de pelo de gato ou de marta.

De gato?

Nada de raro por aqueles lados. Descobri na Wikipedia que os japoneses usam-no muito para fazer pincéis.

Quer dizer que o assassino trouxe o seu próprio pincel de coelho para a festa.

Exato. O que significa que contava com sangue suficiente para a caligrafia. É alguém que prepara as coisas.

E quanto àquele bocadinho de toalha? De quem era o sangue?

Ainda não temos resultados. O Sudoku prometeu fazer a análise esta tarde. Ele liga para si.

Fonseca prosseguiu dizendo que Joaquim não tinha encontrado nada de interessante no computador de Coutinho - nem e-mails com ameaças nem provas de subornos feitos -, mas restavam-lhe várias centenas de ficheiros para ver. Quanto ao portátil de Sandi, ainda não tinha conseguido pegar nele. Sabia que eu estava com pressa e prometera levá-lo para casa à noite.

E as marcas dos ténis? - perguntei.

Eram de uns Converse, tamanho 43 - respondeu Fonseca.

Têm qualquer coisa de especial?

O Vaz diz que as solas não mostravam sinais de uso.

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Então o assassino comprou-os para o crime… É um tipo esperto – disse eu porque, mesmo que os encontrássemos, não poderíamos saber nada sobre a sua rotina diária por mais que espremêssemos as solas.

Antes de Fonseca sair, pedi -lhe que fosse a casa de Coutinho e investigasse o quarto de Sandi à procura de indícios. Prometeu-me ir lá ao fim do dia.

A nossa rececionista, Filipa, ligou-me quando estava a ouvir as restantes canções de Lungs.

Está aqui uma miúda gira chamada Joana à sua procura - disse ela num tom jovial.

Fui receber a rapariga ao cimo das escadas. Ela sorriu aliviada quando me avistou.

Tudo bem? - perguntei.

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Tudo, obrigada. - Trocámos um beijinho na cara. - Oiça, Sr. inspetor, e se trinta não for na verdade o número trinta? - perguntou.

A adivinha dela não me fez qualquer sentido.

Não estou a perceber - disse eu.

Uma das nossas professoras de Francês dá ioga duas vezes por semana a seguir às aulas. E tem uma tatuagem na mão direita. É como se escreve em sânscrito Om, a sílaba que os hindus cantam. Devia ter percebido logo que era isso, mas estava muito nervosa. Om é muito parecido com o número trinta quando se olha de repente. Se tiver um computador, mostro lhe.

De volta ao meu gabinete, Joana sentou-se na cadeira diante do computador e começou a escrever no teclado. Inclinei-me sobre o seu ombro, mas a sensação de uma espécie de posição pai-filha pareceu-me demasiado íntima e recuei um passo. Momentos depois, o motor de busca do Google apresentava-nos seis milhões e duzentas mil imagens da sílaba Om. Joana escolheu uma que surgia num desenho estilizado.

Sou um génio, certo? - perguntou, rindo-se.

É uma rapariga espantosa! - concordei. Apertando-lhe o ombro ligeiramente, contornei a secretária de modo a ficar de frente para ela.

Então, como se chama essa professora? - perguntei.

Joana levantou o lábio como fazem os burros.

O seu desenho não se parece muito com ela - retorquiu -, e não gostaria de a meter em sarilhos.

Ela deve ter estado em casa da Sandi quando o pai dela foi assassinado. O que significa que pode ter visto ou ouvido o assassino.

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É só porque... porque não quero que ela fique a odiar-me.

Se ficar a odiar alguém, não há de ser a si. Prometo.

Chama-se Maria Dias - disse Joana, e, enquanto eu anotava o nome, pegou no telemóvel e deu-me o número e o endereço da professora.

Como tem os contactos dela? - perguntei.

A professora Dias convidou-nos para almoçar, a mim, à Mónica e à Sandi, a seguir às férias da Páscoa. Gostava especialmente da Sandi.

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Capítulo 21

Maria Dias vivia na zona do Chiado, numa casa em frente do Nood, um restaurante de comida asiática que Jorge adorava porque os empregados africanos e brasileiros andavam com ele às cavalitas se lhes pedisse com suficiente descaramento. Por cima do intercomunicador do prédio, em letras vermelhas irregulares, alguém escrevera FUCK MOODY'S, um protesto contra a agência americana de rating que tinha descido a cotação do crédito de Portugal para o nível de «lixo» há quase exatamente um ano. Toquei para o apartamento de Maria Dias, no terceiro andar, perfeitamente convencido de que ela devia ter ido à praia, para escapar ao calor e à poeira da cidade, mas segundos depois ouvi-a perguntar quem era. Expliquei-lhe porque é que precisava de falar com ela. Abriu de imediato.

À porta, disse-me:

Encontrou-me mais depressa do que eu pensava, Sr. inspetor.

Tive sorte... Houve uma pessoa que há pouco me ajudou a identificá-la.

Entre. - Esboçou um sorriso tímido.

O apartamento era pequeno e com as paredes cobertas de pinturas figurativas; coisa que tinha em comum com o amante assassinado. O chão era de tatami. A um canto via-se uma estatueta de Buda, que me dava pela cintura, a meditar serenamente. A mobília era elegante, contemporânea e uniformemente branca.

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Chamou-me a atenção uma bonita aljava de couro, bastante gasta, pendurada por cima da porta da cozinha. As penas das flechas eram finas e cinzentas - quase iguais às que Nathan fazia.

Maria Dias estava descalça e pediu-me que tirasse os sapatos. Pulos ao lado de outros dois pares junto à porta. Usava umas calças pretas soltas e uma camisola cor-de-rosa de mangas cavas. Tinha uns braços flexíveis e bronzeados, uma cintura delgada - uma gazela com uns olhos verdes de pestanas longas. O cabelo preto estava curto e espetado. É provável que o tivesse cortado durante o fim de semana para evitar ser identificada. Calculei que tivesse uns

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trinta anos, mas havia no seu porte uma autoridade que me levava a pensar que poderia ser mais velha.

Surpreendia-me o seu estilo tão diferente do de Susana, mas esse era provavelmente um dos seus atrativos vara Coutinho.

Então, que lhe posso oferecer? - perguntou, mais uma vez com um sorriso tímido e reticente. Nada, obrigado. Acabei de tomar o pequeno-almoço.

Estreitou as mãos uma na outra como que à espera de que eu lhe desse uma oportunidade para se mostrar uma boa anfitriã, o que me levou a pensar que não deveria receber muitas visitas.

E que me diz a um chazinho? - perguntou.

Boa ideia. Com um pedaço de limão, se tiver.

Venha até à cozinha e vamos falando. O senhor parece estar desesperado por respostas.

A cozinha era pequena e bem organizada. No meio da mesa de mármore branco havia doze tacinhas de um amarelo-torrado, dispostas como pétalas de uma flor de lótus. Cada taça continha uma especiaria - açafrão-da-índia, colorau e outros pós de diferentes tons de vermelho, amarelo e castanho, que não consegui identificar. Não era de admirar que pairasse no ar um forte cheiro a caril.

Lindo - disse eu, apontando para a flor de cerâmica.

Fico contente que goste - respondeu amavelmente.

Depois de encher a chaleira, foi buscar as taças - pretas com um rebordo esmaltado azul - e pô-las na bancada. Hesitou uns instantes quando estendeu a mão para a gaveta dos talheres e depois foi quase às apalpadelas que tirou as colherinhas de chá. Isso, e o movimento contraído e determinado do queixo, revelou-me que devia preferir uns minutos de conversa ligeira antes de começar o interrogatório.

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Há quanto tempo faz ioga? - perguntei.

Desde miúda. Foi o meu pai quem me iniciou, na verdade... ioga e judo.

E há quanto tempo dá aulas de Francês no liceu?

Oito anos.

Um bom sítio para ensinar?

Adoro. Os miúdos são formidáveis. - Apontou para duas latas de chá Twinings numa prateleira alta. - English Breakfast ou Earl Greyt

English Breakfast.

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Erguendo-se em pontas de pés, empurrou a lata para fora da prateleira e apanhou-a habilmente.

Imagino que seja bilingue, em português e francês - disse eu.

Confirmou com um aceno de cabeça.

Embora me sinta mais à vontade com o francês.

Nasceu em França, filha de pais portugueses?

Exatamente. - Abriu a lata e aspirou demoradamente o chá, deliciada. Tinha um perfil bonito. Apostaria que os seus alunos faziam tudo para lhe agradar, e que era boa professora.

Disseram-me que a Sandi era sua aluna - declarei.

Sim. É uma rapariga maravilhosa. - Pois ando a lata, perguntou:

Então, como é que me descobriu?

Um trabalhador das obras viu-a sair da casa de Coutinho. Embora não seja muito parecida com o desenho que ele nos ajudou a fazer.

Foi a sua mão que a denunciou. A princípio, pensámos que a tatuagem era o número trinta.

Ela virou a mão para me mostrar o seu Om em letras cor de vinho.

É bonito - disse eu. - Mas porque escolheu a mão?

Para ser consciente - respondeu.

Consciente de quê? - perguntei.

De mim própria... De como funciona o meu corpo e o meu espírito. E do meu esforço para levar a vida que quero levar.

Que é... ?

Concentrada e calma, inspetor. E solitária. Entregue a mim própria.

Os laços conduzem ao sofrimento - retorqui, numa paráfrase de uma das Quatro Nobres Verdades do Buda, pelo menos tal como Ernie mas tinha explicado durante o seu estágio de filosofia oriental.

Estou impressionada! - disse ela. Os olhos brilharam-lhe com humor. Provavelmente pensara, como a maior parte dos portugueses,

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que todos os polícias são iletrados e fanáticos acima de tudo por futebol.

Sou o tipo de pessoa que sabe um bocadinho de uma data de coisas - disse eu.

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Um colecionador de factos. - Fez um aceno com a cabeça como quem sabe tudo sobre esse tipo de pessoas e não aprecia grandemente os seus métodos. - O que eu queria dizer, inspetor, era que não acredito num Deus que olhe por nós. Os budistas não acreditam nesse tipo de tretas. - Soava duro e deslocado na boca dela. - Nascemos sós e morremos sós - acrescentou, e fitou-me como que a desafiar-me para a contradizer. - Assim que aceitamos isso, começa o verdadeiro trabalho.

Parecia acreditar que a existência humana não passava de um longo inverno desprovido de sentido.

E então qual é o verdadeiro trabalho? – perguntei.

Aperfeiçoarmo-nos a nós próprios. O Buda é uma alma perfeita.

É o nosso modelo.

Como Jesus - acrescentei, pensando na tia Olívia.

Ela mostrou-se indignada.

Não, nada disso! Não há nenhum Deus como esse da Bíblia.

Nem nenhum filho de Deus! Nós não rezamos ao Buda, inspetor. Seria ridículo. Não tem nada de parecido com o cristianismo!

A sua aura de superioridade irritava-me - e parecia-me provinciana de um modo tipicamente português; todos os meus conhecidos que tinham adotado crenças orientais tendiam a agir como se fossem os primeiros ocidentais a fazer tal coisa. Achei que não devia dizer nada. Juntei as mãos atrás das costas e pus-me a olhar em volta, pensando agora que era bem possível surgir alguma discussão durante o interrogatório. E encarava-o com receio.

Ela parecia não dar pela minha indisposição. Depois de tirar um bule de um armário e o pôr em cima da bancada, deitou três colheres bem cheias de folhas de chá.

Então, será que o senhor é um crente cristão? - perguntou ela.

No seu tom de voz havia desaprovação.

Não praticante - respondi, enquanto ela tirava um limão do frigorífico. - Os meus pais e a minha tia eram. O meu irmão talvez ainda seja.

E a sua mulher? - Cortou uma rodela de limão e pô-la numa minúscula tacinha de vidro azul.

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É judia. Acho que os nossos filhos também são, mas não tenho bem a certeza.

Não tem a certeza?

Page 222: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

A minha mulher pensa que Deus foi inventado para manter as mulheres no lugar que lhes cabe, mas a minha sogra insiste em explicar-me que o judaísmo se transmite por via materna. O que, ao que me parece, faz com que os nossos filhos sejam judeus.

Quando a água começou a ferver, a minha anfitriã deitou-a por cima das folhas numa espiral cada vez mais apertada, gozando a precisão com que o fazia. Perguntei -lhe:

Então há quanto tempo andava envolvida com Coutinho? Em termos amorosos, quero eu dizer. Conheceram-se recentemente?

Ela sobressaltou-se, depois sorriu ironicamente e soltou uma gargalhada. Poisou a chaleira.

Onde está a piada? - perguntei, suspeitando de que se devesse ao meu português; tinha usado a palavra «envolvida», e talvez isso fosse uma tradução desajustada do inglês.

Tinha um ar ausente, como se não me tivesse ouvido.

O mundo atinge quase sempre o auge de beleza quando menos o esperamos - disse ela, claramente falando consigo. Depois, dirigindose a mim, acrescentou: - Oferece-nos presentes também, se estivermos prontos a recebê-los. - Fez um sorriso agradecido.

Exato - respondi, mas sem convicção; nesse momento, a minha recetividade às suas observações poéticas estava perto do zero.

Continuando a sorrir de si Rara si colocou o bule assim como as taças, num tabuleiro preto de laca. Tive a sensação de que a vida de todos os dias era uma sucessão de pequenos rituais cheios de significado para ela - uma tentativa de manter a ordem num mundo que parecia demasiado centrado em questões superficiais.

Vamos conversar para a sala - disse ela, e levou o tabuleiro para a mesa de jantar, uma antiga roda de carroça coberta por um círculo de vidro espesso verde. Passei a mão pela madeira escurecida pelo tempo e, levado por um palpite, perguntei-lhe se lhe tinha sido oferecida por Pedro Coutinho, mas ela disse-me que fora a avó.

Maria Dias pediu licença para ir à casa de banho enquanto o chá ficava em infusão. Assim que saiu da sala, atravessei em bicos de pés o tatami, dirigi-me para estatueta do Buda e carreguei-lhe com força nos

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ombros para sentir a solidez da sua determinação, pensando que numa outra vida Ernie teria decorado a sua casa daquele modo. Fiquei contente com a possibilidade de dar uma espreitadela ao que poderia ter sido. Era como entrar às escondidas nos sonhos do meu irmão. Assim que Maria Dias voltou e retomámos os nossos lugares, perguntei:

Coutinho era budista também?

Não, mas estudou o zen quando viveu no Japão. Por vezes ainda entoava cânticos e meditava. Comecei a suspeitar de que ela e Coutinho tinham sido feitos um para o outro.

Page 223: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

E como foi que se conheceram? - perguntei.

O Pedro viu-me numa reunião de pais há cerca de nove meses. A mulher dele não pôde ir. Depois das apresentações, pediu-me o meu número do telefone. Ligou daí a poucos dias. Sabia que não devia encontrar-me com ele, pois era casado, mas estava curiosa. E ele era um sedutor: brilhante, com graça, afetuoso... Acabei por me apaixonar, se bem que tenha deixado claro que não o poderia ver tantas vezes como seria seu desejo. Como lhe disse há pouco, preciso de muito tempo para mim.

Encheu as taças, sentando-se rigidamente, como se acabasse de se lembrar de que uma boa postura faz parte do ser consciente. Enquanto soprava o chá, fixou-me com um olhar inquisitivo. Pensei que me fosse perguntar se estava perto de apanhar o assassino do seu amante. Em vez disso, retorquiu:

Este momento está a ser muito diferente daquilo que eu tinha pensado.

Não consegui perceber se achava isso uma coisa boa ou má, o que me levou a outra conclusão: não conseguira ler muito bem as suas expressões - talvez por estarmos os dois a falar na nossa segunda língua.

Era até possível - concedi com relutância - que não fosse intenção sua mostrar-se condescendente para comigo minutos antes.

E de que maneira é este momento diferente? - perguntei, espremendo um pouco de limão no meu chá.

Tinha imaginado que, quando o senhor me descobrisse, eu ia entrar em pânico. E quase entrei, mas depois não.

Por razões egoístas, fico contente por isso não ter acontecido disse eu.

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Egoístas?

Assim é mais fácil falar consigo. Podemos começar agora?

Pensava que já tínhamos começado - respondeu, e lançou-me um sorriso malicioso, de criança. Parecia subitamente à vontade, como se alguma engrenagem tivesse mudado dentro de si. Tal como muitas das pessoas que conheço, talvez andasse a tomar antidepressivos.

Tirei o bloco de notas do bolso do casaco.

Estava em casa de Pedro Coutinho na altura em que ele foi assassinado? - perguntei.

Não. Saí cedo nessa manhã. O assassino ainda não tinha chegado.

Esforcei-me por disfarçar o meu desapontamento, mas ela disse:

Lamento. Gostava de o ter visto. O que ele fez ao Pedro foi horrível.

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Como sabe o que ele fez ao Pedro?

Li no jornal.

Deve ter sido um choque.

Foi horrível... o meu coração parecia querer saltar-me do peito.

Estava a começar uma aula, o que foi uma sorte, porque os meus alunos me acalmaram.

Uma aula? Pensei que estaria de férias em julho e agosto.

Durante o verão, dou aulas de ioga no Health Clube do Chiado.

Só duas vezes por semana: às terças e sextas. Ia começar a minha primeira aula da manhã e lá estava tudo no jornal.

Deve ter percebido que iríamos querer falar consigo, mas não se apresentou.

Estive quase para o fazer, mas uma história com um homem casado… E sabia que não seria de ajuda nenhuma. Ir à polícia só me criaria problemas na escola. E também por causa da família do Pedro.

Mais uma vez, fixou-me como que a desafiar-me para a contradizer.

Como cortou o cabelo, sou levado a concluir que estava determinada a não ser descoberta por nós - contrapus.

Falei num tom mais crítico do que tencionava. Ela passou a mão pelo cabelo num gesto tenso, como que a verificar se ainda estava tão curto como pensava.

Se pensa que era da polícia que eu tinha medo, está muito enganado - respondeu num tom ressentido.

Então de quem era?

Os seus olhos fulminaram-me.

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Inspetor, nunca lhe ocorreu que o assassino pudesse querer encontrar-me? É bem possível que julgue que eu estava lá quando matou o Pedro, o que significa que há de querer ter a certeza de que eu nunca o poderei identificar.

Não pensei nessa possibilidade porque tinha a impressão de que ninguém sabia ...

Claro que não pensou nisso! - cortou ela, acintosa. - Mas eu fiquei uma pilha de nervos! E é verdade, sim, cortei o cabelo. Se estivesse no meu lugar, não tratava de mudar de visual?

Sim, mas o que queria dizer era que não tinha pensado que alguém soubesse da vossa relação. A Sr.ª Coutinho não sabia de certeza.

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Não posso saber o que o Pedro contava aos amigos. Bem sabe do que os homens são capazes. tem alguma ideia de quem poderia querer fazer-lhe mal?

Ela negou com a cabeça.

O Pedro nunca falava de negócios comigo.

Está a partir do princípio de que se tratava de um inimigo do mundo dos negócios - comentei.

É a única coisa que faz sentido para mim.

Há alguém em particular que lhe ocorra de momento?

Já lhe disse, ele não falava comigo dessa parte da sua vida.

Na última noite que passaram juntos, ele falou num velho amigo chamado Jean Morel?

Não.

Alguma vez mencionou os nomes Bernard Mercier ou François Savarin?

Não, e nunca os ouvi.

Alguma vez falou da filha Sandi num contexto de qualquer coisa de... digamos violento que lhe tivesse acontecido há cerca de três meses?

Maria Dias esboçou um gesto repentino, fazendo recuar a cabeça.

Aconteceu alguma coisa de violento à Sandi?

Não estou autorizado a dizer. Mas Pedro Coutinho alguma vez lhe disse alguma coisa que a tenha levado a pensar que ela pudesse ter sido atacada?

Não. Mas ele não se sentia à vontade a falar da Sandi comigo. Eu era professora dela, e isso tornava as coisas embaraçosas.

Ele pareceu-lhe nervoso ou preocupado na manhã do crime?

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Não. Parecia... - Levou a mão à cabeça. Tive a sensação de que o facto de eu ter dito que Sandi fora vítima de violência produzira nela um efeito como que ligeiramente diferido. Virando a mão, contemplou o Om com uma expressão determinada. Ao fim de alguns instantes, disse: - Dê-me um momento. - Levantando-se, pois ou as mãos em cima das coxas, curvou-se para diante e fez uma série de dez respirações profundas. Depois, levantando-se nas pontas dos pés, esticou os braços por cima da cabeça, com as palmas unidas, e baixou-os muito lentamente ao longo do corpo, como que fechando as asas.

Não me era difícil imaginar Coutinho a pintá-la com os seus pincéis japoneses e atraindo-a depois para a cama. Bebi um demorado gole do chá, perguntando a mim próprio como reagiria um budista ao suicídio de uma aluna de quem gostasse.

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O que foi? - perguntou Maria Dias, vendo-me hesitar.

Custa-me dizer-lhe isto, mas a Sandi pôs termo à vida ontem à noite.

Ela inclinou a cabeça como se não me tivesse ouvido bem.

A Sandi tomou uma overdose de comprimidos - expliquei. - Foi dada como morta hoje pela manhã. Lamento ter de lhe dizer isto.

Ela levantou-se de um salto, os lábios cerrados, a expressão suspeitosa.

Está a mentir! - gritou. - E estou a perceber o que está a tentar fazer! Deve pensar que sou parva!

Não, estou a dizer-lhe a verdade. A Sandi tomou um punhado de comprimidos para dormir da mãe. Engoliu-os com vodca.

Maria Dias inclinou-se para mim, as mãos fincadas na mesa. A fúria enlouquecida que lhe lia nos olhos fez-me crer que era capaz de se atirar a mim.

Diga-me o que realmente se passou, seu estupor! - berrou.

A Sandi morreu hoje às sete da manhã - disse eu, abrindo as mãos e mantendo um tom de voz sereno, como aprendera a fazer com pessoas violentas. - E não temos razões para suspeitar de outra causa além de suicídio.

O seu olhar fixo enervava-me. Contando com a acumulação de pormenores para lhe ir diminuindo a raiva, acrescentei:

Disseram-me que os médicos não conseguiram estabilizar a tensão arterial. Tomou Victan... vinte comprimidos. Tirou-os do armário de medicamentos da mãe.

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Tinha um olhar vazio e puxava os cabelos.

Isso... é impossível - murmurou num tom ausente.

Desculpe provocar-lhe este choque. Compreendo que...

Merde! - berrou ela.

Enquanto eu me esforçava por encontrar algo que a pudesse ajudar um pouco, ela voltou-me costas e repetiu mais três vezes «merde», num sussurro gritado.

Precipitando-se para o quarto, bateu a porta com estrondo e fechou-se à chave. Os seus soluços levaram-me a atravessar a sala de ponta a ponta. Parei junto à janela que dava para o largo fronteira.

A luz pardacenta sobre o topo dos telhados trouxe-me lágrimas aos olhos. Quando os abri de novo, estava de pé junto à porta da cozinha, diante de um pequeno retrato. Não sentira o latejar na cabeça nem qualquer outro dos habituais sinais de aviso.

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O quadro representava uma mulher nova, numa roupagem branca e cintilante, de pé diante de um espelho, as tranças pretas - enroladas no topo da cabeça - atadas com uma fita comprida de cor púrpura. Olhava para a esquerda, e nos seus olhos havia uma surpresa exultante, como se um amigo ou um familiar inesperado tivesse acabado de entrar no quarto depois de uma longa ausência. A julgar pelo olhar ligeiramente voltado para baixo, deduzi que seria um filho, ou filha. O quadro fora executado ao estilo de Goya. E a mulher tinha a cara delicada e o olhar inteligente de Maria Dias. Poderiam ser irmãs. O que significava que, afinal, a obra de arte não fora roubada da sala de Coutinho; ele deve tê-la oferecido.

Baixei os olhos para a mão, mas não havia nada escrito.

A dona da casa saiu do quarto de lenço na mão. Tinha os olhos vermelhos. Dirigindo-se em passo arrastado para a pequena secretária junto ao Buda, pegou num pauzinho de incenso da gaveta de cima e inseriu a ponta na palma de uma mão de barro colocada numa das estantes. Depois de o acender, abanou o fumo na sua direção e inalou-o com prazer.

Desculpe tê-lo deixado sozinho - disse ela, voltando-se para mim, a voz vacilante.

Não há problema - retorqui.

Sentou-se e pegou no lenço de papel. Começou a rasgá-lo em pedacinhos, mas aplicadamente, como se fosse importante não voltar a perder o controlo.

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Gosto do quadro que o Pedro Coutinho lhe deu - disse eu, apontando para o retrato.

Sim, é muito bonito - respondeu, mas sem alma.

A mulher podia ser você... se tivesse vivido no século dezanove.

Sim, o Pedro achava que a semelhança era... - Não conseguindo encontrar a palavra que procurava, desistiu com um encolher de ombros.

Quando é que lha ofereceu? - perguntei.

Há cerca de um mês. - As lágrimas assomaram -lhe por entre as pestanas.

Vou buscar-lhe outro lenço - propus, levantando-me.

Não, é melhor deixá-las correr.

Para que repousasse uns instantes, pus-me a examinar o quadro mais uma vez. Decidi que a mulher estava pronta a lançar-se em direção ao filho que não se via no quadro. O artista quisera captar o instante antes desse movimento. Ao fazê-lo, tinha-a também pintado prestes a regressar à sua vida real e a abandonar a posição de modelo. Parecia-me algo de que valia a pena falar com Ernie.

Passado algum tempo, ela disse:

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Estou pronta para mais perguntas. - O seu esforço para sorrir fez-me lembrar a Sr.ª Coutinho. «Somos um país de mulheres corajosas, à falta de outras coisas», pensei.

Alguma vez pressentiu que a Sandi tivesse tendências suicidas? - perguntei.

Não.

Mas reparou que andava perturbada?

Claro, mas não lhe fiz nenhuma pergunta. Como lhe disse, o meu caso com o pai dela tornava as coisas muito embaraçosas.

Nem sequer lhe perguntou o que se passava quando ela veio cá a casa a seguir às férias da Páscoa?

Ela estremeceu.

Como sabe que a Sandi esteve cá?

As amigas dela, Joana e Mónica, disseram-me.

Não, não lhe fiz perguntas aqui, embora obviamente o devesse ter feito - disse ela num tom de arrependimento. Levantando-se, acrescentou: - Às vezes penso que devia tornar-me monja e não voltar a falar com outro ser humano pelo resto da minha vida. - Num tom de quem me desafiava a duvidar da sua sinceridade, acrescentou: - Que pensa disso?

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Penso que esta tem sido a pior semana da minha vida.

Olhou-me como se tivesse acabado de compreender que eu não era o pateta insensível que tinha imaginado. Depois de ter fixado mais uma vez o Om na mão, fechou os olhos e sussurrou um breve cântico.

Aproximando-se em passos rápidos da janela onde eu estivera, desapareceu por trás das dobras da diáfana cortina branca e olhou para fora.

Aposto que ele já partiu há muito - disse eu, suspeitando qual seria a preocupação dela.

Porque pensa isso?

Suspeito de que ele veio de França para matar Pedro Coutinho.

A estas horas já deve ter voltado. Quando tiver a certeza digo-lhe, depois de ter os nomes dos passageiros de todos os voos para Paris desde quinta-feira.

Obrigado

Passando os olhos pelos meus apontamentos, ocorreu-me uma derradeira pergunta:

Na última manhã em que estiveram juntos, reparou se o Pedro Coutinho tinha com ele algum dos seus telemóveis.

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Não, lamento muito.

Há mais alguma coisa que me possa dizer relacionada com o crime?

Ela abanou a cabeça, a dizer que não.

Só por uma questão de precaução - rematei -, se vir alguma coisa suspeita, ligue-me, de dia ou de noite. - Mostrei-lhe o meu cartão, dizendo: - Tem aqui o meu número. - Pu-lo em cima da mesa. - Talvez fosse melhor pedir a alguma amiga para ficar consigo durante uns dias. Não precisa de passar por tudo isto sozinha.

Mas é assim que as coisas são! - retorquiu abruptamente. - Estamos todos sós... sempre. E isto prova que não há nada que possamos fazer para nos ajudarmos uns aos outros!

Apertámos as mãos à porta. As dela estavam geladas.

Ao descer as escadas, ouvi o estilhaçar de peças de barro. Uma vida com Ernie dera-me uma boa ideia do que estaria ela a partir - a sua flor de lótus de especiarias - e a razão por que o fazia: porque era a coisa mais bonita que possuía.

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Capítulo 22

O inspetor Quintela veio ao meu gabinete trazer-me a informação de que não havia nenhum Bernard Mercier ou François Savarin em qualquer dos voos de ou para Paris das duas últimas semanas. Encostou-se ao umbral, mordendo o polegar. Disposto a pôr à prova a lógica do meu raciocínio, perguntei-lhe:

Oiça, Manuel, se quisesse matar alguém em Paris, como é que ia para lá?

Os olhos de Manuel brilharam com a presteza competitiva de um jovem aceitando o desafio de alguém mais velho.

Quem vou eu matar desta vez? - perguntou. Já tínhamos jogado este jogo antes.

Um construtor civil rico que você conheceu há poucos meses.

E qual o motivo por que o vou aviar?

Você foi despedido do seu emprego por ele ter dito que o viu roubar um livro valioso.

É uma coisa muito feia.

A sua ingenuidade parecia mais doce do que irritante, como normalmente acontecia.

Pois é - concordei -, e você ficou muito chateado com isso.

E então como é que iria para Paris?

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De carro, porque agora não há fronteiras. Ninguém poderia provar onde eu tinha estado. - Quintela deixou-se cair na cadeira em frente da minha secretária. - Não usaria cartão de crédito e evitaria as

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caixas de multibanco em Espanha e em França. Iria levantando bastante dinheiro em Portugal, mas, aos poucos, ao longo de umas semanas, para que ninguém que fosse investigar as minhas contas bancárias reparasse em qualquer coisa suspeita.

Talvez até durante um período de três meses - avancei.

Não me parece mal.

Vê-se que não é a primeira vez que pensa nisto - retorqui com um júbilo perverso na voz.

Ele apertou nas mãos o meu pesa-papéis - uma enorme pedra lisa do jardim de Ernie.

Passo o tempo a pensar em apanhar o estupor que atropelou o meu irmão - disse ele.

O irmão mais velho, Luís, tinha sido atropelado dez anos antes por um advogado espanhol a conduzir a alta velocidade, em Sitges, uma estância de férias perto de Barcelona.

E onde compraria a arma para o matar? - perguntei.

No mercado negro. E em Portugal, onde falo a língua suficientemente bem para não dizer nada que me pudesse identificar.

Mais alguma coisa?

Sim. Pintaria o cabelo de preto e compraria uma bela boina basca. Os catalães iriam pensar que o crime fora cometido por algum separatista da ETA. - Com as mãos, mostrou-me como poria a boina de lado, em jeito guapo, por cima do olho direito.

Começo a pensar que todos os polícias têm, pelo menos, um crime pensado lá no fundo das suas cabeças - disse eu. - Talvez seja até essa a razão por que escolhemos esta profissão.

Acha que é para nos impedir de fazer isso mesmo?

Não. Para aprendermos a fazê-lo sem sermos apanhados.

O seu riso revelou-me que achava que eu não estava a falar a sério, mas o meu olhar firme fez com que mudasse de ideias.

Então quem é que gostaria de matar, Monroe? - perguntou.

Havia na pergunta um pouco da simpatia ingénua que Manuel Quintela inspirava, assim como um dos seus defeitos fatais, a cândida in consciência de diversos dos mais básicos desejos humanos: neste caso, o de privacidade. Mas disse-lhe a verdade; usar uma máscara perante ele não me parecia já necessário.

Matava o seu pai? - replicou numa voz espantada.

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Ou matava-me ele primeiro a mim.

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Quintela coçou a cara rosada e juvenil, considerando uma possibilidade que nunca antes lhe tinha passado pela cabeça.

Sabe o que me chateia mais, Monroe? É que aquele sacana não passou um único dia na cadeia. Trago sempre o nome e a morada dele na carteira, não sei se sabe.

Chegou a ir a julgamento?

Não. Houve um inspetor catalão que me disse off the record que o gajo era amigo do Juan Antonio Samaranch. Lembra-se dele? - Quintela exibiu um esgar de desprezo. - É o estupor do fascista que foi dirigente do Comité Olímpico. O tal catalão disse-me que os tribunais espanhóis eram os mais corruptos da Europa. - Passou a língua pelos lábios carnudos com uma alegria maliciosa. - Disse ao tipo que se via logo que não sabia nada sobre Portugal!

Pedi a Quintela que me desse uma lista dos nomes dos passageiros dos comboios internacionais com partida ou chegada de Lisboa durante as duas últimas semanas. Pedi-lhe também que investigasse as contas dos cartões de crédito de Mercier e Savarin nas estações de serviço portuguesas a caminho de Paris.

Assim que voltei a ficar só, ocorreu-me que o assassino, ou assassinos, podia ter comprado em Lisboa os seus Converse novinhos em folha. Era possível que tivesse tido algum deslize e os tivesse pago com cartão de crédito.

Depois de ter eliminado as primeiras lojas de artigos desportivos da lista que vira no Google, recebi uma chamada de Sottomayor, o contabilista de Coutinho.

Hoje estava à espera de que a conversa fosse consigo - disse ele.

Desculpe, não me foi mesmo possível.

Estive a pensar melhor. Posso falar-lhe sobre os subornos, mas só pessoalmente.

Quando podemos encontrar-nos? - perguntei.

Estou aqui mesmo ao pé da sede da Judiciária.

Sottomayor tinha uma barba bem tratada, pintada num tom castanho tão escuro que lhe dava à cara uma tonalidade branca cadavérica.

Possivelmente por essa razão os olhos brilhantes pareciam ter o ar sofredor de um Cristo da iconografia russa. Trazia um casaco azul, mas tanto as calças quanto o colete eram de linho bege. Usava umas luvas de

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conduzir de cabedal preto e uma bengala de madeira com um castão de prata em forma de cabeça de pato.

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Parecia ter escolhido a excentricidade como maneira de singrar no mundo.

Mal nos cumprimentámos, declarou numa voz determinada:

Nunca testemunharei em tribunal sobre nada do que lhe vou dizer agora.

Convidei-o a sentar-se numa cadeira junto à minha secretária.

Então porque veio cá afinal? - perguntei-lhe, sentando-me em frente dele.

Puxou o lóbulo da orelha, como que a considerar as suas opções.

Embora não deseje ser envolvido diretamente, espero que o senhor possa usar o que lhe vou dizer para processar um dos políticos mais corruptos que Pedro subornou. - Sorriu amavelmente. - Não é que pense que o consiga.

Não?

Quando é que viu alguém ser julgado por corrupção neste país?

Então e o Isaltino Morais? - aventei; fora presidente da Câmara de Oeiras e tinha sido possível levá-lo a tribunal uns anos antes.

Sottomayor soltou um suspiro, descalçando as luvas.

Vê-se que o senhor não seguiu o caso.

Ultimamente não.

Pousou as luvas cuidadosamente em cima da secretária, sem pressas, satisfeito com os seus modos aristocráticos, o que achei, curiosamente, relaxante, como se tivesse sido transportado no tempo para um século antes.

Como talvez se lembre - começou -, Morais foi condenado em 2009 por corrupção, fraude e lavagem de dinheiro, e condenado a sete anos de prisão. Tudo isto por atos praticados em 1996. Recorreu, naturalmente, e a sentença foi reduzida para dois anos. Entretanto, concorreu novamente para o cargo de presidente da Câmara de Oeiras. Lembra -se dos resultados, por acaso?

Ganhou as eleições.

Provando-nos assim a todos - disse ele, numa voz deliciada - o pouco que as pessoas ligam quer à corrupção quer ao respeito que devem a si próprias. Nunca cumprirá qualquer pena. O Morais alguma vez aceitou subornos de Pedro Coutinho?

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Esqueça o Morais! Não passa de um zé-ninguém, um arrivista, um zero à esquerda que mal sabe ler e escrever - retorquiu desdenhosamente. Com aquela derrisão, Sottomayor parecia impaciente por me mostrar que o seu desprezo era o do Dinheiro Antigo pelo Dinheiro Novo. Recuperando a calma, continuou: - Sr. inspetor-chefe, o que estou a tentar dizer-lhe é uma

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coisa muito diferente. - Sacou de um cachimbo elegante e de um isqueiro de prata. - Importa-se?

É contra a lei.

Não respondeu à minha pergunta - disse ele, divertido por poder usar contra mim as minhas próprias palavras.

Continue - retorqui.

Abri a janela e recuperei a concha que em tempos tinha usado como cinzeiro antes da entrada em vigor da lei antitabágica. Depois de acender o cachimbo, desabotoou o casaco. Com o cachimbo entredentes, recostou-se, juntou as mãos atrás da cabeça e perguntou:

Joga futebol, Sr. inspetor-chefe?

Não.

Mas vê um jogo de Vez em quando?

Não, se o puder evitar.

Riu-se.

A minha opinião sobre si está a subir vários pontos. - Claramente satisfeito com o seu papel tutelar, disse: - O que quero dizer é que pessoas como o senhor e eu, que acham que as regras do jogo deveriam ser iguais para todos... são uma reduzida minoria. A maior parte das pessoas sente-se felicíssima se arranjar um bom emprego com a cunha de um amigo, ou uma autorização para construir uma casa de banho extra pagando um suborno. – Inclinou-se para mim, ansioso. - Estamos of! the record, não estamos?

Sottomayor causava-me uma impressão vertiginosa - como perante um fogo de artifício excessivamente espetacular. Quando confirmei, o seu olhar tornou-se profundamente sério.

O Pedro fazia todos os pagamentos pessoalmente e quase tudo em dinheiro - começou por dizer. - Usava luvas, para não deixar impressões digitais. Mas, uma vez ou outra, recorria a transferências bancárias. Comece por essas, Sr. inspetor-chefe. - O cachimbo apagara-se. Voltou a acendê-lo, chupando o fumo com uma gulosa aplicação. - As últimas transferências de que me lembro foram feitas para ganhar um contrato para uma urbanização em Coimbra. O Pedro fez pelo menos dois pagamentos

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para a conta de uma empresa nas ilhas Caimão. Isto foi na primavera de 2010. - Apontou-me a boquilha do cachimbo e piscou os olhos no meio do fumo que lançara. - Verifique as contas bancárias do Pedro em Portugal e em França e há de encontrar o nome do banco. Ou verifique os extratos bancários da Susana e da Sandi. Pode ser que tenha usado uma das contas delas para evitar qualquer associação direta com a transferência.

Usava essa estratégia muitas vezes?

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Só quando uma transação exigia especial... delicadeza. Agora, o nome que aparece na conta que recebe as transferências nas ilhas Caimão deve ser Alcino Lima. Mas tente convencer alguém no banco que recebeu o dinheiro a confirmar-lhe isso. – A sua atitude de gravidade rompeu-se e piscou-me o olho. – Se o seu encantador sotaque americano não lhe conseguir a informação de que precisa, ofereça um suborno. Não é nada de que não estejam à espera. Para isso, pode ter de apanhar um avião e ir até lá, naturalmente, mas é um sítio lindo. Bom para a pesca submarina! E com um excelente peixe fresco. Prove a salada de búzios... É a minha preferida. Põem-lhe uma data de sumo de lima. Quem haveria de dizer? Enfim, leve a mulher e os filhos... Vão adorar.

Como sabe que tenho mulher e filhos?

Acha que ia dizer isto tudo a um polícia duvidoso? Fiz a minha investigaçãozinha. Mil euros são capazes de lhe conseguir os documentos de que precisa. Dou-lhe o dinheiro agora se concordar em ir lá.

Tirou um envelope volumoso do bolso de dentro do casaco e estendeu-mo.

Estaria a oferecer-me dinheiro por algo mais do que seguir a pista de umas quantas transferências bancárias? Talvez pensasse que podia comprar a minha promessa de deixar o seu nome fora da investigação.

Recusei-o com um gesto.

Por favor, não se ofenda, Sr. inspetor-chefe. Estamos todos a viver tempos difíceis e quem poderia negar a um funcionário dedicado uns dias num paraíso tropical?

Quem é Alcino Lima? - perguntei, ansioso por pisar um terreno mais seguro.

Muito bem! - respondeu, voltando a guardar o envelope no bolso do casaco. - Mas se mudar de opinião é só dizer. Pode contar com a oferta especial dos bilhetes de avião, em executiva, se preferir. Quanto ao Sr. Alcino Lima era, naquela altura, o vereador do pelouro da habitação em Coimbra. Mas naturalmente é possível que a tal conta nas

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ilhas Caimão esteja em nome de alguém da família. Disseram-me que um sobrinho a estudar em Lisboa lhe faz chegar o dinheiro.

Peguei no meu bloco de notas e escrevi os nomes que ele me dera.

Quanto aos pagamentos que o Pedro fez em dinheiro, tem registos disso? - perguntei.

Não, era o Pedro que os fazia.

Onde?

Não sei. Discutia as quantias comigo muitas vezes e quem ia subornar, mas nunca me deu nenhuma informação sobre os registos.

Então como pode ter a certeza de que os fazia?

Page 235: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

Porque me disse que sim. Sempre me pareceu que os tinha em casa. Não faço ideia onde, se bem que, se um polícia bonito como o senhor experimentasse submeter-me a alguma tortura não muito exagerada - disse ele com um franzir divertido dos lábios -, faria por aguentar um bocado para lhe agradar e depois era capaz de sugerir a biblioteca de Pedro.

Sottomayor achara claramente útil dar-me a entender que era gay.

Se calhar para provar que confiava em mim e que eu devia confiar nele.

Mas começava a achar que ele pertencia a uma elite que tinha arruinado a economia e destruído a auto confiança deste país.

Na biblioteca, porquê? - perguntei.

Porque ele era o único que aí entrava. Tirando a Sr.ª Grimault.

A mulher dele nunca entrava na biblioteca?

Sottomayor bateu com a bengala no chão e lançou-me um olhar de desagrado.

O senhor conheceu a Susana, Sr. inspetor-chefe?

Sim.

E ficou com a impressão de que era uma apaixonada pela literatura francesa clássica... Proust, Zola, Anatole France...?

Pareceu-me uma pessoa inteligente - respondi.

Então não esteve muito tempo com ela.

O senhor é sempre assim tão maldoso? - perguntei.

Maldoso? - Riu-se com a ideia. - O senhor interpretou-me muito mal, Sr. inspetor-chefe. Eu gosto da Susana. Gosto muito dela! E era uma mulher tremendamente sexy quando Pedro casou com ela, posso dizer-lhe.

Lançou-me um olhar como que a desafiar-me a discordar.

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Muito bem - disse eu, incapaz de disfarçar a irritação na voz -, então por que razão Coutinho lhe falou sequer nos subornos que fazia?

Que interesse tinha ele nisso?

Gostava de ter alguém com quem pudesse partilhar o seu divertimento. Éramos amigos desde pequenos. E temos um sentido de humor muito parecido.

Quer dizer que se divertia com os subornos que fazia?

Page 236: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

Quando entrou no mundo dos negócios, ter de pagar a políticos era uma coisa que lhe dava volta ao estômago. Como estratégia defensiva, digamos assim, aprendeu a fazer disso um jogo. Acabou por lhe dar gozo propor valores absurdamente baixos e ver um presidente da camara ou um ministro regatear para receber mais. Gostava de expor a ganância deles. O melhor de tudo era ver desfazerem-se em cinzas todas as proclamações de serviço público. Sr. Inspetor, o senhor conhece um certo tipo de políticos portugueses que usam fatos italianos e que precisam de um Mercedes ou de um BMW para exibirem a classe que nunca tiveram? Bem, certa vez chamei puta barata a um deles, um tipo particularmente odioso, e o Pedra ficou furioso comigo. Disse que estes tipos não se parecem em nada com putas, nem mesmo com as mais baratas, porque uma mulher que oferece sexo em troca de dinheiro fornece um serviço útil à sociedade.

Então quem é que o Pedra corrompia?

Todos aqueles que tivessem de assinar as autorizações de que precisávamos e que mordessem a isca que ele lhes lançava, dizendo que gostaria de contribuir «para a sua causa política favorita», sendo que a causa favorita de qualquer político é a sua pessoa, não sei se está a ver. Sottomayor sorriu com a sua piada, mas eu navegava muito ao largo no mar - sem nenhum dos pontos de referência que me permitissem reconhecer Portugal - de modo que não me pareceu que o que dissera tivesse a mínima piada. Será que me tinham feito muitas propostas de suborno durante os últimos dezassete anos sem que eu sequer me tivesse apercebido disso? Gostava que me desse alguns nomes - disse eu.

Por onde quer que comece?

Quem recebia os maiores subornos?

Ministros e secretários de Estado. Os presidentes da Câmara recebiam menos, e os vereadores normalmente não iam além do preço de uma semana num hotel quatro estrelas na Madeira. Mas hoje em dia

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estão todos em saldo. Podem conseguir-se verdadeiras pechinchas para quem anda às compras.

O Coutinho pagava-lhes diretamente?

Normalmente pagava a algum familiar. Os primos são muito usados, especialmente se tiverem contas no estrangeiro. O Pedro fazia muitos pagamentos em França por projetos que andava a construir em Portugal e vice-versa.

Prosseguindo, Sottomayor deu-me os nomes de dois dos últimos quatro presidentes da Câmara de Lisboa e de três atuais vereadores. Falou também num antigo ministro do Interior e num atual secretário de Estado. Informou-me que um antigo presidente de um clube de futebol de Lisboa mantinha o record do maior suborno pago por Pedro: quarenta mil euros. A título de explicação, disse:

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O homem era amigo próximo de vários membros bem colocados do Partido Socialista, numa altura em que eram eles quem controlava a maior parte das câmaras importantes.

E quanto àquele centro comercial que Coutinho andava a construir na Reserva Natural do Sado?

Que quer saber?

A quem pagou ele?

Um vereador de lá recebeu quinze mil euros, tanto quanto me lembro... Um tal Jorge qualquer coisa. Mas o tipo ia usar essa quantia para pagar a outros políticos. Infelizmente, não faço ideia de quem eram nem de quanto receberam.

Quinze mil, só?

Sottomayor rui-se

Diga-me uma coisa, Sr. Inspetor-chefe, quando lhe pagam a si pela sua assinatura?

Mas quinze mil não é muito para um projeto de vários milhões.

Como lhe disse, há por aí umas pechinchas se se der ao trabalho de fazer uma pequena comparação de preços.

O meu passo seguinte parecia arriscado, mas o seu tom de perplexidade - com uns resquícios de desdém - levou-me a crer que o que dizia era totalmente verdade.

E se eu lhe dissesse que tenho a lista completa dos subornos pagos pelo seu velho amigo ao longo dos últimos doze anos? - avancei. - Só que está tudo em código.

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Nem uma nem outra dessas informações me deixaria surpreendido.

Porque...

O cachimbo voltara a apagar-se. Enquanto sacudia o tabaco apagado do fornilho para a minha concha-cinzeiro, disse:

Porque me disseram que o senhor era competente, e porque o Pedro era uma pessoa cautelosa. Não quereria que a polícia descobrisse no que andava metido... especialmente um polícia honesto como o senhor. Era capaz de lhe dar cabo de todo o divertimento!

Sabe alguma coisa sobre o código?

Pode ser. É só com números?

É.

É um sistema que inventámos quando éramos miúdos. A única coisa de que precisa é aquilo que chamávamos uma frase-mestra. Imagine a seguinte: «O meu cachimbo acabou de se

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apagar.» A primeira letra, «O», passa a ser o número 1; a segunda, «M», é o número dois; a terceira é o número 3, e assim por diante. É fácil. - Sacou da bolsa de tabaco e começou a encher o cachimbo. - Sem a frase-mestra será extremamente difícil decifrar o código. E nós inventámos maneiras de a distorcer a ponto de ser praticamente impossível alguém descobri la.

Qual era a frase que usavam quando eram miúdos?

O primeiro verso d'Os Lusíadas. - Sentou-se direito e abriu os braços de modo a abarcar a dimensão épica das suas palavras: - «As armas e os barões assinalados, que da ocidental praia lusitana.»

Depois de declamar o primeiro verso num português triunfante - como se representasse para a última fila de um teatro -, Sottomayor recostou-se na cadeira e soltou um suspiro exausto.

Se não for isso, Sr. inspetor, então receio não poder ajudá-lo. Se quer o meu conselho... esqueça o código e os subornos que ele fez em dinheiro. Siga a pista das transferências para as ilhas Caimão. É a única maneira de avançar. - Acendeu o cachimbo e soprou o fumo para o teto. Mais alguma coisa que possa fazer por si? - perguntou.

Só mais uma coisa - respondi. - Tanto quanto sabe, o Pedro esteve envolvido em quaisquer negócios no Japão, nos últimos tempos?

No Japão?

O assassino forçou-o a escrever o nome «Diana» em carateres japoneses na parede da sala de estar.

Diana? Por que razão?

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Não sei. Mas teria ele alguns negócios no Japão relacionados com obras?

Não que eu soubesse.

E o nome Diana terá alguma coisa a ver com a estadia dele no Japão quando era novo?

Não que me lembre.

E alguma ligação com a sua vida atual?

Não me faz lembrar nada.

Consultei as minhas notas uma última vez e dei por uma lacuna que precisava de preencher.

Como se arranjava Coutinho para poder fazer os subornos em dinheiro?

Tinha um cofre secreto em casa.

Onde?

Page 239: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

Não faço ideia.

E como fazia ele para juntar assim tanto dinheiro?

Toda a gente tem dinheiro à mão para uma emergência, Sr. inspetor.

Eu não tenho.

Ele riu-se novamente.

Mas quantos centros comerciais ou estádios de futebol construiu o senhor ultimamente?

Luci ligou-me pouco depois de Sottomayor ter saído e disse-me que Susana, Sylvie e Morel tinham utilizado um serviço de limusinas e iam naquele momento a caminho do cemitério da Ajuda para o funeral de Pedro Coutinho. Passada uma hora e meia, tendo eu acabado de eliminara décima segunda loja de artigos desportivos - sem nenhuma pista que me conduzisse aos ténis que o assassino pudesse ter comprado -, voltou a ligar para me dizer que a limusina tinha acabado de os deixar em casa.

E tenho más notícias - acrescentou. - A casa dos Coutinho foi assaltada enquanto nós estivemos fora. Foi vandalizada.

Pondo- me de pé, perguntei:

Deram por alguma coisa ter sido roubada? Não.

Fiquei a olhar pela janela como se estivesse a espreitar através do meu silêncio atónito. Depois lembrei-me do dicionário de Francês-Farsi

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de Coutinho; seria possível que os assaltantes tivessem andado à procura da pen que eu descobrira na cavidade aberta no livro?

Vasculharam a biblioteca?

Sim.

E o quarto da Sandi? - perguntei, esperando que não tivéssemos perdido as provas de como ela tinha passado as suas últimas horas.

Já alguma vez viu os efeitos de um furacão numa cidade pequena?

Faz alguma ideia de como é que eles entraram?

Ainda não descobri... não há portas forçadas nem janelas partidas. Chefe, se me permite que lhe diga com toda a franqueza, não sei como isto entra na sua teoria sobre os dois franceses das cavalariças de MoreI. Quer dizer, se fossem eles os responsáveis, então, o que tinham necessidade de voltar a casa dele.

A única ideia que me ocorria é que estávamos a lidar com dois casos diferentes: um assassinato cometido por um ou dois dos franceses e um assalto ordenado por um político na

Page 240: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

sombra. Enquanto explicava a minha teoria a Luci, decidi que era melhor certificarmo-nos de que não se tratava apenas de um caso de delinquentes que haviam aproveitado a ausência de uma família enlutada para roubarem.

Luci, está na sala neste momento?

Na cozinha.

Vá à sala e veja se roubaram algum dos quadros.

Segundos depois, Luci disse-me que a única que faltava era o desenho do Almeida que Fonseca tinha levado para o laboratório para ver se havia impressões digitais.

Veja se faltam algumas das joias de Susana - indiquei-lhe.

Pouco depois de ter desligado, lembrei-me de que havia ainda uma possibilidade de os dois crimes estarem ligados e voltei a telefonar-lhe.

Pedi -lhe para ir ver se Les Confessions continuavam na biblioteca de Coutinho.

Devia ter-lhe pedido para não o largar - confessei. - Se o Savarin e o Mercier assaltaram a casa, provavelmente levaram-no.

Mas para que haviam eles de o querer? - perguntou ela.

O Coutinho conseguiu que despedissem o Mercier tirando o livro da estante do Morel e dizendo que tinha sido o rapaz a roubá-lo. No lugar dele, o que eu faria era tirar o livro na primeira oportunidade

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que tivesse. Parecer-me-ia lógico, como corrigir uma injustiça. Já para não dizer que o livro deve valer uma pequena fortuna. Não me admiraria nada se faltasse uma mala inteira cheia de primeiras edições do Coutinho.

Mas o Mercier podia ter levado Les Confessions no dia do crime.

Não queria permanecer no local o tempo de o encontrar até porque o Coutinho estava a asfixiar no tapete da sala de estar. Os assassinos principiantes perdem muitas vezes o sangue-frio, Luci.

Mas porque haveriam de vandalizar o resto da casa? - perguntou ela.

O ódio deixa sempre atrás um rasto de destruição do caraças repliquei, e por uma vez não me importei de falar como os detetives privados dos anos quarenta.

Então se foi o Mercier, quer dizer que ele andou a vigiar a casa disse ela.

Mal as consequências da sua revelação se tornaram claras para mim, um calafrio fez-me estremecer fortemente.

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Grande verdade, Luci. Por isso, não perca tempo com as joias. Vá já à biblioteca e procure Les Confessions. É o único livro que sabemos que estava lá. Se já não estiver, é porque foi roubado.

Vou demorar um bocado a localizá-lo, chefe - disse ela num tom desalentado.

Anime-se... Esta é a melhor coisa que poderia ter acontecido! - exclamei.

Então porquê, chefe?

Porque, se foi o Mercier quem fez isto, quer dizer que há uma hora ainda estava em Lisboa e que provavelmente não conseguiu ainda sair do país.

Enquanto seguia para casa de Coutinho, dei instruções ao inspetor Quintela para ligar para os nossos contactos nas companhias de aviação e nos Caminhos de Ferro e pedir-lhes que impedissem a saída de Lisboa de qualquer passageiro chamado Bernard Mercier ou François Savarin. Luci telefonou-me logo a seguir. Estava na biblioteca, à procura de Les Confessions, mas pedira a Sylvie que verificasse as joias de Susana e não faltava nenhuma.

Daí a vinte minutos, quando bati à porta da casa de Coutinho, Sylvie veio atender. Tinha na mão uma taça alta rosada de champanhe e

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mexia-o com a elegante armação de um par de óculos de aros de metal.

Estava descalça, com umas grossas pulseiras de ouro nos tornozelos.

Apercebendo-se do meu olhar curioso, disse:

A Susana e eu estivemos na Índia no ano passado. - Levantando a taça, acrescentou com amarga ironia: - Como tirar proveito da pobreza dos outros! - Bebeu o champanhe de um único trago. Claramente, era a sua vez de se embebedar.

Alguma ideia sobre o que os assaltantes procuravam? - perguntei.

É o que lhe ia perguntar, inspetor.

Vejo que não tocaram em nada na sala de estar.

Isso é importante?

Deixa-nos duas possibilidades: ou eles já sabiam que o que, procuravam não estava aqui ou encontraram o que queriam antes de procurar aqui

Estou a perceber. Alguma ideia sobre como entraram? - perguntou.

Iria apostar que tinham uma chave.

Só que nós mandámos mudar a fechadura ontem.

E a porta das traseiras? Também mudou essa fechadura?

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Não, ainda não, ficou marcada para hoje. Mas eles podiam ter entrado por ali?

Porque não?

O jardim tem um muro de três metros a toda a volta.

Uma das casas por trás do jardim tem ar de estar abandonada há anos. Com uma escada, seria fácil galgar o muro. Vou pedir aos técnicos para verificarem se há pegadas ou outras provas.

Acha que quem fez isto matou o meu irmão?

É muito possível.

E como arranjou as chaves?

É muito fácil fazer cópias. Basta que alguém tire o porta-chaves ao seu irmão, à Susana ou à Sandi durante dez minutos.

Enquanto dizia isto ocorreu-me que Mercier poderia ter roubado as chaves a Sandi depois de a ter violado. Ela estaria demasiado perturbada para dar pela falta delas, o que daria tempo a Mercier para fazer as cópias. Depois, o chaveiro apareceria misteriosamente num sítio qualquer em casa no dia seguinte. Mesmo que ela se apercebesse do desaparecimento, não iria querer admiti-lo, porque seria forçada a explicar como é que Mercier tivera oportunidade de a roubar.

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Encontrei Luci sentada no chão da biblioteca, os olhos postos nas páginas de um livro com uma encadernação de couro, rodeada por uma série de outros, espalhados à toa. Não era difícil vê-la como uma criancinha sentada numa caixa de areia, perdida num mundo de livros de aventuras.

Apontou para as prateleiras, onde umas duas centenas de livros estavam já alinhados. Disse-me que estava a dispô-los por ordem alfabética. Ainda não tinha visto Les Confessions.

Que está a ler? - perguntei.

Oh, isto? É um livro do Sherlock Holmes em português... Uma edição que nunca tinha visto. Desculpe por estar a fazer uma pausa, chefe.

Não tem de que se desculpar, Luci.

Houve uma altura em que era capaz de dar tudo para ser o Dr. Watson - disse ela, abanando a cabeça, como que a desvalorizar uma fantasia disparatada.

E aqui a temos, poucos anos depois, no papel do próprio Holmes!

Luci lançou-me um olhar de dúvida.

Não me parece que eu e Mr. Holmes tenhamos muita coisa em comum. Tudo o que para ele é elementar, é para mim um mistério.

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Talvez assim seja, mas todos nós temos momentos de intuição, Luci. E vou precisar de que me avise quando chegar a sua vez. Na verdade, estou a contar consigo.

Ela sorriu, agradecida.

Sim, chefe. Muito obrigada.

Então qual é a história que está a ler?

A Faixa Malhada.

Uma das suas favoritas?

Quando era miúda, ficava aterrorizada ao pensar que o criminoso usava uma serpente venenosa para assassinar pessoas.

Sim, uma vívora dos pântanos da Índia - comentei.

O chefe até da espécie da cobra se lembra!

Quando se cresce no Colorado, Luci, saber identificar cobras pode ser uma questão de vida ou de morte. Embora, bem ou mal, Conan Doyle tenha inventado uma víbora dos pântanos indiana. - Dava a impressão de estar a querer impressioná-la, o que me fez sentir embaraçado, pelo que acrescentei: - Já chega de proezas de memória. Vamos lá voltar ao trabalho!

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A um canto da sala via-se um monte de vidros que haviam sido para ali varridos, perto do armário fechado que fora rebentado. Tinham levado os CD de música clássica, mas dava a impressão de que não faltava nenhuma das primeiras edições. Quando lhe chamei a atenção para isso, Luci disse:

Pois, não faz sentido nenhum. A não ser que houvesse nos CD qualquer coisa secreta.

Talvez não tivessem música - especulei.

Então o que teriam, chefe?

Umas quantas décadas de informações valiosas sobre subornos, calculo…Pormenores sobre transferências bancarias, talvez até os números de série das notas usadas para pagar subornos…Provas diretas de atos criminosos, mais do que simplesmente uma lista. Possivelmente até gravações de conversas com políticos corruptos. É provável que Coutinho tenha guardado uma data de informações para sua própria proteção. Estou a ficar com a impressão de que a pen que encontrámos era apenas para consultas rápidas.

Os franceses não iam estar preocupados com informações sobre as transações ilegais do Coutinho; por isso, voltámos à sua teoria de dois crimes diferentes.

Pelo menos por agora - concordei.

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Quando estávamos os dois à procura de Les Confessions, Morel apareceu na sala. Ia a caminho da cozinha para fazer mais café.

A Susana está melhor? - perguntei.

O senhor o que acha? - disse ele com um olhar azedo.

Já pode falar comigo?

Nem pensar.

Ouviu-se abrir e fechar a porta de entrada. Momentos depois, Sylvie gritou:

Chegaram os seus técnicos, inspetor.

Pedi a Fonseca e a Vaz que começassem pelo andar de cima, no quarto de Sandi e que a seguir inspecionassem cuidadosamente o jardim. Daí a cerca de uma hora, às cinco e quarenta e nove exatamente, encontrei Les Confessions.

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Capítulo 23

Encontrar Les Confessions punha de parte a minha teoria de terem sido os franceses a assaltar a casa de Coutinho, o que nos reduzia à possibilidade de estarmos perante um político corrupto à procura dos registos de contratos suspeitos. Provavelmente, arranjara uma qualquer maneira de saber que a pen de Coutinho estava escondida dentro do dicionário de Francês-Farsi. E agora parecia-me também possível que quisessem deitar mão ao próprio dicionário. Eis o que me levou a pedir a Luci para, depois de acabar o que tinha a fazer na biblioteca, ir à sala de provas da sede verificar se havia palavras ou frases assinaladas de uma qualquer maneira.

Deixei -a na biblioteca com a intenção de perguntar a Fonseca e a Vaz se haviam chegado a alguma conclusão quanto ao número de assaltantes, mas, ao alcançar as escadas, ouvi Sodoku a conversar na sala com Sylvie. No momento em que ia a descer, ele apareceu.

Sodoku! - chamei.

Ele fez-me um aceno e depois começou a subir as escadas. Encontrámo-nos a meio. Cortara o cabelo tão rente desde a última vez que o tinha visto que mais parecia um recruta do exército.

Está melhor da gripe? - perguntei.

Não estive doente - murmurou ele. - Disse isso aos outros só para evitar problemas. A Maria está de novo a fazer quimio.

Sinto muito. Espero que tenha rápidas melhoras.

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Vai-se andando aos poucos - disse ele.

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Dei-lhe uma palmadinha no braço.

Oiça, esperava que me telefonasse para me dizer alguma coisa sobre o sangue no pedaço da toalha! -lembrei-lhe eu.

Devia ter ligado, Henrique, mas da primeira vez que analisei a amostra deu-me um resultado esquisito, e por isso comecei tudo de novo. Mas deu-me o mesmo resultado. Então, achei melhor falar consigo pessoalmente. E acabei de chegar.

O que é que descobriu?

Não vai gostar do que vai ouvir.

Não há nada neste caso de que eu goste.

O ADN é da vítima.

Qual vítima?

Pedro Coutinho.

Quando recuperei a consciência, estava sentado num banco à sombra num pequeno jardim rodeado por um gradeamento preto que me dava pelo peito. Suava profusamente. Momentos antes tinha estado numa sala quente às escuras - húmida e quase sem arejamento.

Sentia os pulmões como que salpicados de ferrugem, e respirava com dificuldade. A boca e a língua tinham um gosto a tabaco; viam-se três pontas de cigarro esmagadas no chão junto ao meu pé direito. Agarrava na mão a minha kachina. A coroa da deusa fizera-me três furinhos na palma. Compreendi que estava à espera de que Nathan me dissesse onde esconder Ernie.

Uma velha minúscula, com um cabelo grisalho, de aspeto quebradiço, e uns binóculos de ópera ao pescoço, espalhava no chão migalhas que ia tirando de um saco de plástico, cercada por uma chusma de pombos vorazes. Desviei o olhar dela, pousando-o na minha mão esquerda.

«Vejo agora que possivelmente nós não queríamos saber que isto fosse possível.»

Gabriel sublinhara a mensagem com dois traços, mas eu não sabia a que se referia ele; por instantes, esquecera o que Sodoku me tinha dito.

Eram seis horas e vinte e sete da tarde. Olhando em volta, reconheci a enorme paineira branca atrás de mim. Estava na Praça da Alegria. A árvore tinha um tronco impressionante, engelhado como a pele de um elefante e eriçado de espinhos. Sentir a sua aguda aspereza na

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ponta dos dedos confirmava o que precisava de saber - que o mundo fora da minha cabeça era real.

Liguei o telemóvel.

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Fonseca: «Onde diabo está você?»

Luci: «Preciso de falar consigo.»

Mesquita: «Ligue o raio desse telemóvel!»

Ana: «Muitos beijinhos.»

Quando verifiquei as últimas chamadas efetuadas, descobri que G fizera dois telefonemas. O primeiro fora para Maria Dias. Durara quatro segundos, o que significava que não conseguira falar com ela e decidira não deixar mensagem. Suspeitei de que não quisera que mais alguém ouvisse o que tinha para lhe dizer, mas porque não me dissera a mim o que queria dela?

Não reconheci o segundo número. Ao ligar, descobri que era do Health Club do Chiado. A chamada de G durara sete minutos. Devia querer que Maria Dias lhe dissesse mais alguma coisa sobre Sandi.

Depois de falar com o rececionista do ginásio, lembrei-me da conversa que tivera com Sodoku. Muitas pontas dispersas de informação faziam agora sentido. Era como se conseguisse ver uma constelação complexa - na forma exata deste caso - onde antes não percebia mais do que pontos de luz. Agora, compreendia a razão por que Coutinho se mostrara tão desesperado por permanecer casado. Não conseguia suportar a ideia de perder Sandi precisamente quando mais a desejava. Teria ele sabido desde o dia em que ela nasceu - ao mesmo tempo que tocava com a ponta dos dedos na suave e secreta fenda do seu sexo - o que viria a fazer-lhe quando ela se tornasse mulher? Teria ele passado nove meses a rezar para que fosse menina?

Talvez tivesse implorado a Deus por um rapaz para que nunca se sentisse tentado a fazer mal à própria filha.

Fui atingido pela bizarra certeza de que este caso tinha de me vir ter às mãos; ao contrário da maior parte das pessoas, sentia - na pele e no coração - que havia homens capazes de planear durante muitíssimo tempo como fazer mal às pessoas que amavam. Seguir uma estratégia dava -lhes um propósito na vida.

Coutinho deve ter assustado Sandi com alguma atroz história de fantasmas em casa de Morel na esperança de que ela fosse para junto dele durante a noite. Ou teria ele conseguido aliciá-la de outro modo? Provavelmente andava há meses a minar-lhe a auto confiança.

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Sandi esforçara-se por se tornar o menos atraente possível durante as semanas que se seguiram à violação, mas a faca que mantinha debaixo da cama dizia-me que nem mesmo essa estratégia conseguira afastar o pai. Teria ela engravidado naquela primeira noite ou só mais tarde?

Tirara o anel que ele lhe dera no dia de anos, mas não conseguia deitá-lo fora. Queria que a mãe lhe perguntasse porque deixara de o usar e insistisse na pergunta. Queria que a mãe lhe dissesse que estava pronta para ouvir o que ela tivesse para lhe contar - e lhe prometesse acreditar em tudo o que ela lhe confiasse.

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Seria um paradoxo que as verdades que ficam por dizer acabam por nos roubar a voz?

Sandi nunca voltara para casa a seguir às férias em França. Aquela rapariga apenas existia num tempo anterior, que não estava já ao seu alcance.

Durante muito tempo parecera-me imperdoável continuar a sentir falta do meu pai todos os dias, e suponho que Sandi tenha sentido a mesma coisa, pelo menos durante algum tempo - a falta do pai que conhecera antes. E, no entanto, tal como eu, é possível que rezasse todas as noites para que morresse - que fosse mesmo assassinado. E com uma bala nas costas.

Sandi cortou o cabelo e, para se purificar, vomitava tudo o que comia. Deixou de menstruar. Talvez pensasse que a mãe haveria de ligar uma coisa à outra mais tarde ou mais cedo. E é mesmo possível que Susana Coutinho tenha ligado tudo. Se calhar era a maior atriz que alguma vez conheci. E a mais culpada.

A ser assim, então, provavelmente terá dito ao assassino profissional que contratara para não ser duro para com o marido. Mas talvez ele lhe tenha desobedecido. Ou, muito possivelmente, Susana terá cedido à raiva e ordenado que o filho da puta tivesse uma morte bem dolorosa. Assim que eu conseguisse aceder aos seus extratos bancários, talvez descobrisse que tinha levantado uma grande quantia em dinheiro semanas antes do crime. Mas, pensando no que o marido fizera à filha, será que eu tinha realmente vontade de provar que era ela a culpada?

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Capítulo 24

Ao tirar o maço de cigarros de Gabriel do bolso, descobri também uma lista das chamadas feitas e recebidas por Sandi durante a semana anterior. Deve ter sido Sodoku a dar-ma durante a nossa conversa, quando eu estava já sob o controlo de G.

Uma rápida ligação para o inspetor Quintela confirmou-me que fora ele a entregá-la a Sodoku para que ma desse.

Na tarde de sábado, Sandi recebera três chamadas que não atendera de Maria Dias, e mais uma no domingo. Não havia registo de qualquer tentativa de resposta por parte da rapariga. Contei um total de onze chamadas não atendidas de dois outros números; supus que se tratasse de Joana e de Mónica.

Quando liguei para Fonseca, ele atendeu aos berros.

Você simplesmente desapareceu, Monroe! Não pode fazer uma coisa dessas!

Desculpe. A Ana telefonou-me a dizer que o Jorge estava doente.

Está com febre?

Não. Dores de barriga. Comeu um cachorro quente estragado.

Mentir dava às minhas palavras uma curva fácil, confiante. - Agora está melhor, mas passou um mau bocado.

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Dê-lhe um beijinho do tio Eduardo. E você onde está?

Saí agora de casa. Não demoro nada. Que tem aí para mim sobre o assalto?

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Fonseca confirmou que o intruso, ou intrusos, tinha trepado pelo muro para o jardim; dois pequenos ramos da buganvília cor de rubi que serpenteava por cima do muro tinham sido arrancados havia pouco tempo. Além disso, seguira o trajeto do intruso, ou intrusos, até à propriedade adjacente e descobrira o que lhe pareciam ser as marcas da base da escada. Infelizmente, não tinha grandes esperanças de descobrir mais nada de útil; o intruso usara luvas e devia ter as chaves das traseiras, como eu suspeitara. Tudo o que ele, Vaz e Sodoku tinham conseguido arranjar era uma leve marca de pegada na capa de um CD no quarto de Sandi. Aparentemente fora feita por uns ténis de homem - de tamanho quarenta ou quarenta e um, na opinião de Vaz.

Pequeno de mais para o nosso assassino - fez-me notar Fonseca.

Por onde lhe parece que o assaltante começou as buscas? Perguntei.

Pelo quarto da miúda. Era o mais desarrumado.

E acha que era só um ou mais?

Estou a partir do princípio de que eram vários... Há uma data de estragos.

Quais foram as divisões onde não tocaram em nada?

A sala de estar, o quarto dos pais, a cozinha e a despensa. E o quarto de arrumos no andar de cima.

Fonseca era tão capaz como eu de tirar as devidas ilações; por isso, ambos percebemos que os assaltantes deviam saber que o que procuravam não se encontrava nessas divisões. O que significava que ou estavam a trabalhar com pessoas que já conheciam a casa de Coutinho ou eles próprios já lá tinham estado.

Já soube dos resultados do Sodoku? - perguntei.

Já. Esse Coutinho era realmente uma boa peça.

Então pode ser que a mulher o tenha mandado matar e pago a alguém para destruir o que restava das provas que o assassino a soldo deixara.

Se foi isso o que aconteceu, então ela merece a Medalha de Honra Fonseca!

Só que o plano dela não funcionou lá muito bem... A Sandi suicidou-se. Oiça, amanhã cedo vou tentar falar com os vizinhos com quem ainda não falámos. Também vou ver se consigo arranjar cópias dos extratos bancários de Susana Coutinho e dar uma palavrinha aos empregados do Coutinho. Conforme o que me disserem, posso voltar a precisar de si.

296

Page 249: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

Tudo bem - disse ele. - Ah, quase me esquecia. A Luci pediu-me para lhe dizer que ainda não tinha encontrado o dicionário de Francês- Farsi.

Saí do jardim em direção à Avenida da Liberdade. Estava a pensar em ir até à praça de táxis em frente ao Hotel Tivoli, mas acabei por não chegar lá.

Quando dei por mim, estava sentado com Jorge ao colo, na nossa sala de estar. Eram nove e vinte da noite. Estive ausente durante quase três horas. Jorge fazia desenhos num caderno, todo concentrado. Eu estava em calças de pijama e com a T-shirt de basebol dos Colorado Rockies. Tinha calçadas as pantufas às riscas azuis e vermelhas. Há talvez um ano que não sabia onde as metera. Pensava que estavam perdidas.

Ouvia-se baixinho o CD com The Chordettes entoando Mr. Sandman; Ernie e eu, quando éramos crianças, acompanhávamos em coro aquelas vozes que nos soavam estranhamente perfeitas como harpas.

Pondo Jorge no chão, levantei-me. Precisava de encontrar Ana e Nati. Imaginei que estivessem no andar de cima. Sentia, enrolado no peito, um grito desesperado, à espera de ocasião para se soltar.

Eh, por tua causa enganei-me! - protestou o meu filho, com aquela expressão amuada, de lábios franzidos, que costuma fazer quando me quer mostrar que não concorda com a maneira como está a ser tratado. - Agora fiquei com o desenho todo estragado!

Dava a impressão de estar prestes a lançar-me o lápis azul que segurava e levantei as mãos em escudo.

Onde está a tua mãe? - perguntei.

Sentou-se com um resmungo.

Foi deitar-se.

E o Nati?

Não sei. Se calhar está a ler. Está sempre a ler!

Já jantaste? Olhou-me com os olhos franzidos como se eu o estivesse a interromper demasiadas vezes. - Jorge, não sejas mal-educado admoestei.

Eu não sou o Jorge, sou o Francisco. - Tirou a girafa de entre as almofadas do sofá e abanou-a ao alto.

Revirei os olhos; ele revirou os dele. Mais uma vez o meu clone em miniatura. Quando ia a caminho da cozinha, gritou:

E quero um biscoito... de chocolate! E sumo de cereja!

Detive-me, voltei-me e lancei-lhe um olhar ameaçador.

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Page 250: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

Dou-te cinco minutos para um sumo e um biscoito, e depois vou pôr-te na cama, a ti e ao Francisco.

Não é justo.

Jorge, tive um dia muito difícil e tu estás a torná-lo ainda mais difícil.

Abanou as mãos na minha direção, imitando Roger, o extraterrestre de American Dad. Estava à espera de me arrancar a habitual gargalhada de perdão, mas abanei a cabeça num gesto de advertência. Ele resmungou e voltou ao desenho.

Na cozinha, descobri que G não me deixara qualquer mensagem.

No momento em que pegava no jarro de sumo de cereja, Mr. Sandman estava a acabar. E eu fiz o mesmo.

Acordei na cama ao lado de Ana. Dormia deitada de lado, a cara desviada de mim. «Finalmente acabou por acontecer», pensei. «Cheguei ao fim da lenta corrida encosta acima em que tenho andado desde os oito anos.» O vazio de perda dentro de mim parecia associado à falta de alguém para quem me voltar. Queria pedir ajuda a Ana, mas a sua respiração serena na ponta dos meus dedos - a sua existência fisicamente separada da minha - apenas me levava a crer que ela poderia não acreditar em mim. De qualquer modo, jurara a Ernie que nunca contaria a verdade a Ana. Inclinei-me para o outro lado e sentei-me.

Sabia que precisava de um plano que pudesse pôr rapidamente em prática. Tirei uma esferográfica da mesa de cabeceira e, pela primeira vez na vida, escrevi uma mensagem para G na mão, embora à medida que o fazia compreendesse que sempre soubera que aquilo algum dia acabaria por acontecer: «Tens de me largar. Ernie e eu ficamos bem.

Não dês cabo da minha vida.»

Levantei-me, desci as escadas em bicos de pés e sentei-me à secretária de Ana. Tirei uma folha de papel da impressora. Queria escrever um recado a explicar o que me estava a acontecer, mas apercebi-me logo de que qualquer coisa que lhe dissesse só serviria para a deixar confusa. Tinha de falar com o meu irmão, porque provar a Gabriel que Ernie estava em segurança era a minha única esperança de continuar a ser quem era e também de reestabelecer as fronteiras à minha volta.

Estava a pensar em telefonar ao meu irmão da pequena lavandaria fora da cozinha, de modo a não acordar Ana nem os pequenos, mas uns instantes depois de me ter levantado dei por mim novamente sentado.

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Estava na poltrona do quarto de Jorge, com ele profundamente adormecido, despido da cintura para baixo, apenas com uma das meias; as calças do pijama do Piu-Piu e a segunda meia estavam esquecidas no chão do quarto. O Francisco montava guarda encostado à mesinha de cabeceira. Não sei como, fora-me parar aos joelhos uma vela vermelha e comprida emergindo do castiçal em forma de estrela da tia Olívia.

Page 251: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

Uns círculos diáfanos de luz contraíram-se no teto quando me pus de pé.

O medo colava-se-me à respiração. O relógio marcava três e quarenta. Olhei para a mão: Gabriel tinha apagado a minha mensagem.

Quando fechei novamente os olhos para refletir, o mundo sofreu nova mudança.

Não grites com ele, mamã! - berrou Jorge.

Encontrava-me agora sentado na cama, completamente desperto, fitando Ana com um olhar furioso; ela, à porta, descalça, envolta na camisa de dormir vermelha, com um ar impaciente e preocupado. Abriguei - me atrás da poltrona do meu filho como que para me proteger.

A vela tinha ardido mais uns centímetros. Dei uma olhadela ao relógio: eram quatro e dezassete.

Ana olhava ora para Jorge ora para mim. Tinha a cara vermelha de raiva.

Que raio estavas tu a pensar? - perguntou ela.

Antes de conseguir responder, Nati apareceu por trás dela, peito à mostra, a coçar a barriga.

Que se passa? - perguntou numa voz ensonada.

Preciso de um minuto - pedi. Encolhi-me ao ouvir o som débil, fútil, da minha voz.

Podes ter o tempo todo que quiseres! - rosnou Ana, cada palavra uma ameaça. - Mas quero que saias desta casa!

Jorge rompeu a chorar. Pus-me de joelhos, abri os braços e ele correu para mim. Sentir a sua solidez e o instante pulsar da tão grande necessidade que tinha de mim no seu pequeno corpo, trouxe-me de volta.

Está tudo bem - disse-lhe eu, mas ele deu pela dúvida na minha voz e começou a soluçar.

Nem sequer sabes o que fizeste de errado, pois não? - perguntou

Ana com desprezo.

Abanei a cabeça.

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Desculpa. Estou baralhado. Deixa-me só ajudar o Jorge e depois falamos.

Nati passou ao lado da mãe para vir ter comigo.

Então, desapareceste por uns momentos, pai?

Falava calmamente, o que era estranho. Levantei Jorge nos braços e pus- me em pé. Encostei os lábios à sua cara.

Está tudo bem, querido, estou aqui agora.

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Nati exclamou:

Ó pai, escuta-me! Desapareceste?

Como ele me olhava fixamente, retorqui:

Sim, não estive aqui durante algum tempo.

E agora estás de volta? És tu?

Sou eu.

Voltou-se para a mãe.

Está tudo bem, mãe. Ele voltou.

Não estou a perceber nada - respondeu ela.

O espetáculo acabou, pessoal, toca a andar - disse Nati, imitando um polícia das séries de televisão a mandar os transeuntes saírem do local de um acidente. Era uma das suas rábulas. Como ninguém se riu, fungou desdenhoso. - Vocês são o público ideal, pessoal, mas agora tenho de ir à cozinha comer um donut.

Nati, estás maluco ou quê? - perguntou Ana. Passava o olhar de uns para outros como se tivéssemos formado um grupo unido contra ela. Eu agarrava com força Jorge, que começara a tremer.

Ana, peço perdão pelo que possa ter feito - disse.

Reagiu com uma expressão gelada.

Então o que fez o pai? - perguntou Nati a Ana.

Ana cruzou os braços diante do peito, num gesto protetor.

Isso é uma coisa entre mim e o teu pai - rematou num tom sombrio.

Nati encolheu os ombros, como se a mãe fosse imperscrutável. Todos os quatro parecíamos desligados do resto do mundo - numa ilha que eu fizera para nós. Ou que G fizera.

Pensei que ias para a cozinha - disse Ana a Nati.

Ouve, o pai às vezes desaparece - explicou-lhe ele, escolhendo cuidadosamente as palavras. Olhou para ela, depois para mim, esforçando-se por não tomar partido. - Pensei que sabias isso, mãe.

Nati, o que dizes não faz sentido nenhum - disse ela.

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Ele voltou-se para mim com uma expressão atónita.

Nunca lhe disseste nada?

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Não - respondi, porque mentir, pela primeira vez desde que me lembro, me pareceu uma péssima ideia.

Dirigindo-se à mãe, Nati continuou:

O pai vai-se embora e há outra pessoa que toma o lugar dele. Mordendo o lábio, dava a impressão de não lhe ocorrerem as palavras certas. Fitando Jorge, disse: - Dingo, faz-nos um favor. Para de chorar e diz à mamã o que se passa!

Jorge enxugou os olhos com os punhos.

Força, diz lá - insistiu Nati, num tom mais suave, em português, pois a língua tinha por vezes um efeito calmante sobre o miudito.

O papá às vezes fica a olhar para mim - respondeu, torcendo-se nos meus braços de maneira a ficar voltado para a mãe.

Quando? - perguntou ela.

Gostaria de me confundir com o meu filhito. Naquele momento, ocorreu-me que morrer não teria importância se ficasse dentro de Jorge.

Não sei. Olha, quando ele faz isso.

O quê?

Fica sentado a olhar para mim. - O miúdo apontou para a poltrona para onde tinha atirado a roupa suja. - Fica ali.

Nem Jorge nem Nati me tinham alguma vez dito uma única palavra sobre Gabriel. Eu não ousava fazer um movimento, com medo de que as minhas pernas cedessem.

Nati explicou:

Ele também olhava para mim… quando eu era mais novo. Ficava sempre sentado com aquele castiçal em forma de estrela. Era da tia Olívia, não era?

Assenti com um gesto da cabeça.

Uma ou duas vezes disse-me olá. Mas a maior parte do tempo não falava. Às vezes, quando eu era pequeno, pegava em mim e fazia-me festas no cabelo. E dava-me beijos por todo o corpo. Fazíamos uma brincadeira que era contarmos juntos os meus dedos dos pés, um por um. Ele chorava também, pelo menos ao princípio... mas eu percebia que não era por se sentir triste. Embora nunca me tenha dito porque era.

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Voltando-se para mim, sorriu-me com o mesmo sorriso generoso e divertido que sempre tivera desde criança. Naquele momento, fez-me sentir pouco à vontade, por não ter a certeza de o merecer.

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Que foi? - perguntou-me.

Houve muitas coisas boas que me aconteceram, mas não sei porquê - murmurei. - Tanta coisa que não consigo explicar.

Virei-me para Ana e com o movimento dos lábios disse:

Adoro-te.

Ela desviou o olhar como que medindo as suas opções.

Sabes, pai, às vezes não te entendo - disse Nati.

Se calhar não podes. Tens só treze anos.

Enfim... - retorquiu ele, no tom impaciente que os miúdos assumem quando dão pouca importância às excentricidades dos adultos. Ás vezes apanhava-o também a fumar. Ficava ali sentado a observar-me e a fumar. O Dingo e eu chamávamos-lhe a Sentinela. Habitualmente só aparece depois do pôr do Sol.

OK, Hank, quer dizer que fingias ser outra pessoa - suspirou Ana, convencida, como se finalmente ouvisse uma coisa que lhe fazia sentido. - Mas importas-te de me dizer porque fazias isso? Se era só para poderes fumar em casa... Porque se era só por isso, então...

Ana, é difícil de explicar - interrompi -, mas não era a fingir. Juro.

A Sentinela não é a mesma pessoa que o pai - disse Nati. - Quando ele chega, o pai desaparece.

Já ouvi que chegue! - gritou Ana. Fez um gesto a Jorge, girando a mão como que a puxar uma linha de pesca. - Anda cá, vais já comigo para a cama.

Ele precisa de nós os dois neste momento - pedi a Ana numa voz implorante, mas querendo realmente dizer: «Precisamos dos nossos filhos ao nosso lado ou o nosso casamento não sobreviverá a isto.»

Põe-no no chão, Hank.

Fiz o que ela dizia, mas o miudito ficou agarrado à minha perna.

Jorge - gritou ela -, anda já para o pé de mim!

Ele levantou os olhos na minha direção e fez uma careta como Roger, o extraterrestre.

Falamos depois, querido - disse-lhe eu. - Vai correr tudo bem.

O miúdo respirou fundo e começou a cantar a canção de American Dad enquanto se dirigia para Ana. Não chegou à parte do refrão porque ela o agarrou pela mão como se ele pudesse levantar voo.

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Ai! - berrou ele.

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Pois, ai! - retorquiu Ana furiosa. - E tu - exclamou, fuzilando

Nati com o olhar - já para o teu quarto!

Pensava que sabias tudo sobre a Sentinela - disse ele, encolhendo os ombros.

Saberia se me tivesses dito!

Não me faças uma coisa destas, mãe! Não é justo!

Nati, por favor - pedi -, vai lá para o quarto. Falamos depois.

Mas é que estou com fome - gemeu ele. - Não é a brincar, tenho mesmo fome.

Então vai para a cozinha e fica lá enquanto eu e a tua mãe conversamos.

Antes de sair da divisão, o meu filho lançou-me um olhar fulminante que queria dizer que nunca haveria de entender os adultos. Havia nele também uma ponta de divertimento; estava felicíssimo consigo próprio por ter mantido a calma quando os pais haviam perdido o controlo. Seria isso sinal de uma maturidade duramente conquistada ou a sua maneira de fingir que a nossa discussão não tinha importância nenhuma?

Depois de Ana ter levado Jorge para o nosso quarto, voltou para junto de mim com as minhas calças e sapatos na mão. Pô-los no chão e recuou dois passos, como se estivessem prestes a explodir.

Veste-te - ordenou. Fazia-me frente como um guarda prisional, fria e impenetrável. Nunca me passaria pela cabeça que tal fosse possível.

Os meus pensamentos voaram, e agarrei-me à ideia de que porventura me estaria a testar, a tentar obrigar-me a contar a verdade sobre mim e a minha infância, procurando também perceber se eu a considerava a pessoa mais importante na minha vida.

Ao fim de algum tempo, disse:

Escolhia-te a ti. A ti e aos miúdos.

De que estás tu a falar? - perguntou ela.

Sempre quiseste saber se te escolheria a ti ou ao Ernie.

Poça, Hank, eu nunca te obrigaria a fazer uma escolha dessas - respondeu numa voz desapontada. As suas palavras pairaram no ar como se eu tivesse mostrado estar enganado sobre o essencial em relação a ela. - Porque haveria de fazer isso?

Porque obrigar uma pessoa a escolher entre aqueles que ama é a melhor maneira de a destruir.

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Talvez seja verdade - respondeu ela. - Mas ainda não consigo dormir contigo esta noite. Veste-te... veste as tuas roupas.

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Não tenho para onde ir - respondi.

Hank, magoaste-me! - gritou ela. Os seus olhos marejaram-se de lágrimas.

Dei um passo para ela, devagar, as mãos abertas. Senti o nosso futuro vacilar mesmo diante de mim.

Ana... - O meu corpo estava dorido pelo desejo de a abraçar.

Ela recuou.

Não te aproximes. Não sei quem tu és. Depois de treze anos de casamento, acabo de perceber que não sei quem tu és!

Desculpa. Não queria magoar-te. Podes crer

Tu fizeste por me magoar! «Vê se te calas e pegas nisso!» Como pudeste dizer-me uma coisa dessas?

Não era eu.

Oh, meu Deus, não me venhas outra vez com essas tretas!

O desdém vincava-lhe a cara. E nesse momento apercebi-me de uma coisa que me parecia quase impossível: não dera pela lenta acumulação de queixas no peito dela. Camadas de gelo... Treze anos a dizer mentiras tinham criado aquele gelo entre nós.

Podemos voltar ao princípio? - perguntei.

Isso comigo não funciona. Isso está bem para ti, para o Ernie e para a tua tia Olívia.

Ana, ouve. Não me parece que ele quisesse magoar-te. Não sei grande coisa sobre ele, mas pelo menos sei isso. Não sabe como se há de comportar com as outras pessoas. Chama-se Gabriel. Foi o nome que lhe dei quando era miúdo. Possivelmente nunca esteve diante de uma mulher. E viu aqui a sua única oportunidade para... - Parei de falar porque a expressão impaciente dela me mostrava até que ponto o que eu dizia lhe parecia ridículo. Mas tinha de o dizer. - Tenta imaginar que tens uma única oportunidade de intimidade com alguém. Não eras capaz de arriscar tudo?

Ela soltou um suspiro.

Hank, achas que sou idiota?!

Claro que não. Estou só a tentar dizer-te que ele não é como tu pensas, que ele...

Não me obrigues a gritar outra vez - interrompeu ela. - Não quero inquietar os miúdos.

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Comecei a fazer uma lista mental de todas as coisas que não podia deixar que acontecessem. A primeira era que Jorge e Nati crescessem sem a minha proteção.

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Mas quero ficar contigo e com os miúdos - disse eu. - É tudo o que sempre quis.

Neste momento, o que tu queres não me interessa. Posso mudar radicalmente de ideias amanhã. É muito provável. Mas agora não. - A sua expressão era de desencanto.

Algo mais do que a vergonha levou-me a dar meia-volta, algo surgido das centenas de cicatrizes que Ernie tinha no corpo e das centenas de outras que eu trazia dentro de mim.

Fica com o Ernie - propôs Ana. - Ele toma conta de ti enquanto eu penso no que há a fazer. Vesti as calças. A tensa impaciência na sua expressão mostrava-me que desejava chorar, mas que não o faria. Pressenti uma abertura. Porém, os meus pensamentos espalhavam-se à minha volta como sombras aterradas. A única oportunidade de uma vida com sentido girava em torno deste momento, mas sentia-me incapaz de pronunciar sequer uma frase coerente.

Se me desses só quinze minutos - pedi-lhe -, explicava-te tudo. Estou a tentar lidar com demasiadas coisas ao mesmo tempo neste momento, Ana. É por causa deste caso. Parece que me escolheu a mim.

Identifico-me com a Sandi, e eu...

Porque haveria de acreditar em ti? - interrompeu ela.

Dentro da minha cabeça sentia a passagem rápida do tempo. Se ao menos pudesse fazer uma pausa, seria capaz de formular a frase mágica que me permitiria ficar.

Acariciei o ar entre nós. Era um gesto desajeitado, mas esperava que ela entendesse que eu queria dizer que, se fôssemos muito devagarinho, seria ainda capaz de fazer com que ela compreendesse.

Porque estou encostado à parede por tudo o que fiz de errado disse eu. Dei mais um passo na sua direção, mas ela ergueu os braços para me deter. Quando me apercebi de que lhe inspirava terror, todas as minhas esperanças desabaram, e as mãos tombaram-me ao longo do corpo.

Um homem observa os pés assentarem nas pedras da calçada, ouvindo cada um dos passos que dá, como se isso pudesse fornecer-lhe alguma chave para o futuro. Ligando o destino do seu país de adoção

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ao seu próprio destino, pensa: «Fomos desfeitos pelas nossas próprias mentiras.»

Agachei-me ao passar a esquina da sede da Judiciária, como se fosse algum criminoso num filme de série B à espera de se entregar ao romper do dia. Durante algum tempo, fiquei a observar um pombo a bicar uma côdea de pizza. Quando o telemóvel tocou, percebi que devia ser Ana, e o meu coração deu um salto, mas foi o nome de Ernie que apareceu no visor.

O Nati ligou para mim - disse ele, ofegante. - Contou-me o que se passou. Estava muito inquieto. O meu filho devia ter reconsiderado a sua comédia ou fingiu fazê-lo, para nos convencer a não discutirmos à porta fechada.

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Respondi a todas as perguntas de Ernie sobre o que se tinha passado entre mim e Ana, embora fosse incapaz de dar à explicação do desentendimento uma ordem e alguma coerência.

Ouve, vem já aqui para casa - interrompeu ele, finalmente.

Tenho de ficar em Lisboa. É onde estão os meus filhos e a Ana.

Mas não devias estar só - disse Ernie.

Quase não fazia sentido falar se não pudesse estar com Ana quando mais precisava dela. Deixei tombar o braço com o telemóvel.

Ernie gritava o meu nome e, como eu não respondia, continuou aos berros até eu não ter outra escolha senão levar de novo o aparelho ao ouvido.

Eu fico bem - disse-lhe.

Não ficas nada, Rico! Pega no carro e vem para cá. Peço-te, Rico!

Fui treinado para aguentar; por isso, podes voltar para a cama.

OK, ouve, Rico, vai para o teu gabinete e liga-me de lá. Preciso de saber que estás num sítio seguro.

Ernie - retorqui -, o sítio onde eu esteja no teu GPS não muda nada.

Christ, Rico, faz o que eu te digo uma vez na vida!

Vi que não valia a pena discutir.

Ligo-te quando chegar ao meu gabinete - disse eu.

Era mentira quando lho disse, mas, na falta de outro sítio para onde ir, acabei por me ver na sede da polícia daí a poucos minutos. Filipe, o nosso guarda-noturno, traz sempre maçãs para o trabalho. Apanhei com uma mão a Granny Smith que ele me atirou, o que me valeu um sorriso de admiração.

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Sentado à secretária, mandei um SMS a Ernie dizendo-lhe que estava no meu gabinete. Ele não ligou, o que me deixou aliviado. Com alguma sorte, teria já tomado o chá de valeriana e adormecido.

Estive a ver o vídeo de Dog Days Are Over no YouTube vezes e vezes seguidas, prestando atenção às mãos da cantora, tentando captar a mensagem oculta que ela transmitira a Sandi, mas só conseguia pensar em como fora estúpido por não ter percebido que Ana era mais importante do que os meus segredos. Ansiando por me escapar do canto onde me tinha encolhido, passei para os mapas do Google a ver imagens de Black Canyon.

As sombras ocultas

Nas tuas ásperas ravinas

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Não são tuas, são minhas.

Imaginei-me sentado no meio das escarpas do desfiladeiro, ouvindo o rio Gunnison a precipitar-se em torrentes, depois levantando os olhos para o retalho azul do céu a mais de seiscentos metros acima de mim. Empunhei a minha pistola Walther semiautomática. Parecia o parceiro ideal para um último ato mágico: prata e preto, e absolutamente seguro da sua própria mestria.

Pela segunda vez na vida, contei até dez com o cano de uma arma enfiado na boca. A primeira fora o meu pai quem mo enfiara. E também puxara o gatilho, mas - surpresa das surpresas não tinha carregado a arma. Dessa vez, desmaiara antes de descobrir que não ia morrer. E, quando recobrei os sentidos Ernie estava deitado a meu lado. Encontrávamo-nos debaixo de um monte tórrido de cobertores. Não compreendi porquê até ele me dizer que eu tinha ficado gelado depois de ter desmaiado. O que nenhum de nós sabia era que uma parte de mim nunca haveria de degelar completamente.

Desta vez, enquanto ia contando até ao momento da morte, uma coisa importante surgiu-me no espírito: o facto de a minha mãe se ter matado significava que eu nunca faria aos meus filhos o que ela me fizera a mim e a Ernie. Porque nunca poderia sujeitar Jorge e Nati ao que a minha mãe me sujeitara a mim e ao meu irmão quando espatifou o Plymouth do meu pai na estrada para Crawford, num tépido dia de primavera de 1981. Mais de trinta anos depois da sua morte, a minha mãe tinha de facto conseguido impedir-me de enfiar uma bala na cabeça.

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Depois de ter parado a contagem, percebi uma segunda coisa que me parecia ainda mais importante: a minha mãe também não tivera medo de morrer. Tudo o que aconteceu nesse dia deve ter-lhe parecido perfeitamente certo. «Foi simples, Hank», haveria ela de me dizer se tal lhe fosse possível. Ou seria isso apenas o que eu mais gostaria de acreditar? Com os mortos, parecia nunca ser possível obter respostas claras.

Despertei com o som de passos. Levantando a cabeça de cima da secretária, vi uma silhueta alta, esguia, no umbral da porta. O chapéu de cowboy na mão dizia-me que se tratava de Ernie, mesmo sabendo que ele nunca se afastaria tanto da sua quinta.

Quem és tu realmente? - ouvi-me perguntar, e, embora isso me parecesse impossível, vi a minha voz esvoaçar do teto e poisar no chão. O som de uma borboleta.

De repente senti que estava acordado e que Ernie entrava pelo meu gabinete. A cara do meu irmão estava mais envelhecida do que me lembrava, e os olhos tinham um tom de verde mais suave.

Estás muito longe de casa - disse-lhe. Não me levantei para ir ter com ele. Queria sentir a imperiosa tensão de precisar de o abraçar antes de ceder. Ou, talvez, pela primeira vez na vida, precisasse de que fosse ele a vir ter comigo. Voltei a poisar a cabeça no tampo da secretária e fechei os olhos.

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Tinha acabado de contar até sete, quando senti que ele se aninhava a meu lado. Ao chegar a doze, pôs-me a mão na cabeça. Nessa altura, perdi a conta, pois o cheiro a papas de aveia que me chegava dele transformou-se num poço profundo comigo caindo por ele abaixo. Aí, no fundo escuro, sentado ao lado do meu irmão, senti -o esfregar a cara na minha, e a aspereza da barba crescida convencia-me de que tínhamos conseguido chegar à idade adulta - e de que eu ainda podia ter esperança.

Não deixarei que nada de mal te aconteça - murmurou ele. Eram as nossas palavras mágicas, de todas as mais mágicas, embora naquele momento ambos soubéssemos que não serviam de garantia.

Ernie fazia-me festas no cabelo. A minha gratidão por esse simples carinho era tão grande que abarcava quarenta anos do nosso passado comum e tinha ainda espaço para o momento presente. Endireitei-me na cadeira e deixei que os braços delgados e fortes de Ernie me enlaçassem, pois agora estava certo de que eu era feito de coisas que nunca tinha desejado coisas partidas a que não continuaria agarrado.

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Arranjei uma bela merda - confessei.

Vamos já compor isso - retorquiu, e a sua voz parecia-me tão confiante que me sentia capaz de me deixar ir. Quando finalmente enxuguei as lágrimas, recostei-me na cadeira, mas ele pegou-me na mão. Os nossos dedos entrelaçados eram uma ponte - e sempre o tinham sido.

Ernie inspirou, aspirando o ar avidamente. Bagas de suor caíam-lhe pela cara.

Sentes-te mal? - perguntei.

É só porque saí tão à pressa que me esqueci de trazer os meus medicamentos. Pode ser que precise de ficar um bocado sentado no escuro ou... Tens aí algum Valium a mais?

Tu nunca tomas Valium.

Estendeu a mão.

Agora tomo.

Depois de ele ter engolido o comprimido, sentou-se na cadeira à minha frente e baixou-se, pondo a cabeça entre os joelhos. Apaguei as luzes e massajei-lhe as costas. Quando finalmente se voltou a endireitar, disse:

Está tudo bem. Fico já ótimo. - A voz dele soava estranhamente segura. - Se calhar devias ligar à Ana. - Colocou o chapéu de cowboy entre nós. No escuro, a pena na faixa tinha o aspeto de uma grossa flecha preta.

Mais tarde - disse eu. - Não conseguiria aguentar outra discussão neste momento.

E ao Nati... Precisas de falar com ele - acrescentou.

Page 261: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

Vou ligar-lhe. - Pus o chapéu de Ernie na cabeça. Ele disse-me que eu parecia o Alan Lad no Shane.

Está escuro de mais para se ver isso - fiz-lhe notar.

Para mim não. Como cenouras a dar com um pau.

Ri-me, e ele também.

Sinto-me muito esquisito - disse eu, para que ele o soubesse.

Conta-me.

Sinto- me como se estivéssemos no nosso quartinho no Colorado e nada nos pudesse atingir. Como se finalmente tivéssemos conseguido escapar ao tempo. Tu e eu... Vivemos entre o tiquetaque de um relógio.

A partir daqui vai ser sempre «agora».

Compreendi que já não tinha medo do que pudesse acontecer entre mim e Ana - não porque tudo fosse ficar bem, mas porque sabia

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que nada voltaria a estar bem a não ser que eu arriscasse tudo para a ter de volta.

Ernie olhava por cima do meu ombro para o parque de estacionamento.

Tens uma vista muito merdosa - declarou.

Obrigado. Como é que te deixaram passar na receção?

Já cá estive antes, há uns anos. Não te lembras?

Nem por isso.

O cabo-verdiano da receção lembrava-se de que sou teu irmão - prosseguiu Ernie. - Acha que somos parecidos.

Mas não somos.

Temos os olhos da mamã mesmo sendo de cores diferentes,

Os teus são mais bonitos.

Achas?

Fiz que sim com a cabeça. Ele pegou na minha maçã.

Vais comê-la?

Talvez.

Page 262: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

Podemos comê-la a meias?

Claro.

Deu-lhe uma dentada e estendeu-ma. Era bom passá-la de um para o outro. Depois de a termos comido até ao caroço, levantei o cesto do lixo e ele atirou o que restava lá para dentro. Obrigado por teres atravessado a Divisória Continental - disse eu; era o nome que dávamos à linha imaginária a oeste de Évora que ele não atravessava desde a morte da tia Olívia, em abril de 2006.

Estive para não vir - disse ele. - Fiquei em pânico no momento em que comecei a visualizar a viagem de carro até aqui. Mas depois pus-me a imaginar que o pior que podia acontecer era ter um ataque cardíaco e morrer de repente na autoestrada. O que não era assim tão mau, comparado com o que significava não vir.

O que significava?

Que toda a minha vida era um fracasso.

Não vejo como isso poderia ser verdade.

Porque passei a vida a preparar-me para isto... para te ajudar quando mais ninguém o pudesse fazer. Se não viesse cá agora, não poderia continuar a viver. Não poderia ver-me ao espelho.

Tu não tens espelhos - fiz-lhe notar.

Podes deixar de te armar em esperto. Só aqui estamos nós.

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E se não me apetecer? Ouve, Ernie, não me deves nada. Quero que vivas a tua vida como quiseres, sem te preocupares com o que penso.

A maneira forçada como baixou o olhar mostrou-me que alguma coisa do que eu dissera tinha posto o Colorado no horizonte dos seus pensamentos.

Há coisas em que não me podes ajudar - acrescentei. - Nem tu nem ninguém.

Mas pelo menos posso levar-te para casa - retorquiu.

Não, tenho de ficar em Lisboa. Começo a compreender que este caso tem muito mais a ver comigo do que aquilo que pensava. Parece-me uma espécie de teste.

O que queria dizer é que podia levar-te para tua casa - disse ele.

Voltei-me, para olhar para a porta, porque o tempo recomeçaria assim que eu deixasse o meu gabinete.

Eu falo com ela - disse o meu irmão.

O seu tom assertivo deixou-me desconfiado.

Page 263: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

E que vais tu dizer-lhe? - perguntei.

A verdade.

Mas sempre disseste que isso era a única coisa que nunca poderíamos revelar! - contrapus, num tom ressentido.

Estava enganado. Agora compreendo isso... Embora fosse preciso ter Évora no retrovisor para o perceber.

Ernie, que se passa?

Agora sabemos quem somos, Rico. Somos adultos. Quando chegámos a Portugal, não passávamos de dois miúdos. Estávamos perdidos, precisávamos de regras. O pai tinha sido morto há pouco tempo, e eu estava...

Morto? – perguntei sobressaltado. – Como sabes isso?

Porque é mais do que óbvio que está morto, Rico.

Sabes alguma coisa que eu desconheça? - insisti, num tom de não-te-atrevas-a-mentir-me, sempre suspeitara de que ele sabia mais do que eu.

Ernie levantou as mãos.

Uma coisa de cada vez. Primeiro vamos para casa. - Levantou-se, ansioso por escapar ao meu interrogatório.

Preciso de saber o que vais contar à Ana e o que tem isso a ver com o pai - disse eu. Trinta anos de dúvidas sobre o meu pai pareciam observar-nos atentamente.

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Já te disse - escusou-se ele -, vou contar-lhe finalmente toda a verdade.

E qual é a verdade sobre o pai?

Que ele desapareceu e que, se não apareceu até agora, é porque deve ter morri do.

Não sabes mais do que isso?

Não.

Não acreditei nele. Talvez tivesse ouvido alguma coisa sobre as investigações no Colorado.

A polícia já encontrou o que restava dele? - perguntei.

Não. Pelo menos que eu saiba.

Outra mentira – tinha a certeza. Mas o perfil de Ernie tornou-se mais duro. Sabia por experiência que não conseguiria arrancar-lhe mais nada.

Page 264: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

E é isso que vais dizer à Ana? - perguntei, incrédulo. Ela não vai cair nessa. Vai ficar furiosa contigo.

Apercebi-me de que desejava que ela desatasse aos berros com o meu irmão, já que eu não o podia fazer.

O que aconteceu no Colora do aconteceu-nos aos dois - disse ele.

Por isso temos de ser os dois a contar-lhe. É a única maneira. E ela merece saber o que te aconteceu.

Poderia o meu passado tornar-se dela também? Compreendia agora que, no mundo onde eu queria viver, as pessoas que nos amam herdam tudo o que fez de nós aquilo que somos.

E se ela não acreditar em nós? - perguntei.

Ele levantou o cabelo por cima da orelha cortada.

Mostro-lhe as minhas cicatrizes.

Não podes fazer isso - retorqui. - Seria...

Rico, farei o que tenho de fazer! - declarou. - Vou contar-lhe como foi da primeira vez em que o pai pegou na navalha e eu compreendi que ele nunca me deixaria chegar a adulto! E soube que eu era a razão por que ele nunca te deixaria crescer a ti também.

Antes de deixarmos o meu gabinete, liguei o telemóvel e tinha quatro mensagens: de Mesquita, Fonseca, Sudoku e Luci. A única que li foi a de Luci: «Chefe, não havia nada no dicionário de Francês- Farsi.»

Depois de ouvir o meu pedido de desculpas por estar a acordá-la, Luci pediu-me para esperar um momento para sair do quarto.

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Onde está? - perguntou.

Na sede.

O senhor está bem, chefe? Estava preocupada consigo.

Obrigado, Luci, mas não precisa de se preocupar... Ando nisto desde que você tinha dez anos. Então não havia nada assinalado no dicionário?

Não, nada. É importante?

Não sei ao certo. A minha teoria é de que o dicionário continha o código para decifrar os nomes da lista de subornos, dissimulada nas fotografias de férias. Para ele, faria sentido tê-lo assinalado aí. Mas, se não há lá nada destacado, não temos maneira de o descobrir. O problema é que o Coutinho só poderia ter contado que tinha na biblioteca uma pen com informações incriminatórias a alguém que estivesse a par da conspiração. E não estou a ver

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como é que o assaltante poderia ser um confidente do Coutinho e ao mesmo tempo uma pessoa subornada por ele. Quando as coisas não fazem sentido, como neste caso, Luci, isso quer dizer que estamos a ser aldrabados... ou que não estamos a ver alguma coisa óbvia.

Não conhecemos as pessoas que ele subornou, mas conhecemos dois dos seus bons amigos: Morel e Sottomayor.

Sim, só que o Morei vive em França e tem um caso com a Susana Coutinho; por isso, parece-me difícil acreditar que esteja envolvido no dia a dia dos negócios do Coutinho em Portugal. E o Sottomayor disse-me que não sabia nada sobre o sítio onde o Coutinho tinha os registos.

O chefe acreditou nele?

Enquanto nos dirigíamos para o carro de Ernie, consultei as camadas feitas e descobri que G ligara mais uma vez para Maria Dias momentos antes da minha discussão com Ana. A conversa tinha durado quase doze minutos. Para acordar a professora a meio da noite, G devia ter alguma coisa essencial para lhe perguntar, ou lhe dizer.

Quando atendeu a minha chamada, disse-me num tom de desculpa:

Espero mesmo que não tenha mudado de opinião.

Não mudei - assegurei-lhe, para não desdizer o que quer que G tivesse combinado com ela -, mas preciso de falar consigo pessoalmente.

Tudo bem, apareça. Falamos enquanto eu faço as malas.

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Que poderia G ter-lhe dito para a levar a sair de Lisboa com tanta pressa? A única coisa que me ocorria era que ele percebera quem era o assassino e estava convencido de que tentaria vingar-se dela. Mas por que razão me ocultaria a sua identidade?

Maria Dias surpreendeu-me ao desligar antes de me dar sequer oportunidade de me despedir. Isso deve ter apanhado outra pessoa de surpresa; uma voz de homem - que mal se ouvia - deixou escapar qualquer coisa sobre estar com fome. Com uma mão a tapar o telemóvel, disse a Ernie que devia estar sob escuta por alguém muito descuidado e pedi-lhe que ouvisse o que estava ele a dizer, pois o meu irmão entendia melhor do que eu o que diziam em português.

Ernie pôs-se à escuta, baixando a cabeça. Exatamente como costumava fazer em pequeno, e depois devolveu-me o telemóvel.

Ouvi um homem que parecia estar a conversar com alguém ao lado. A única coisa que percebi claramente foi: «Monroy não é muito previsível.» Disse isso e depois a chamada caiu.

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Capítulo 25

Ter o telemóvel sob escuta poderia querer dizer que a minha investigação estava seriamente comprometida, mas também me agradava a ideia de quem quer que tivesse assassinado

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Coutinho e assaltado a sua casa me temer a mim e ao que eu poderia fazer. E, agora que sabia que estava a ser observado, poderia pregar-lhe uma ou outra partida.

Desliguei o telemóvel para impedir que fornecesse a nossa localização e fui ter com Ernie. O seu enorme Chevrolet estava estacionado na rua mais abaixo e Rosie, enrolada no lugar do condutor. Peguei nela e estendi-a ao dono enquanto ela se esforçava por me lamber a cara. Dirigi-me para casa de Maria Dias seguindo a Rua da Escola Politécnica. Vinte minutos depois, enfiava o carro num lugar de estacionamento apertado perto do Teatro São Carlos.

Fica aqui - disse ao meu irmão. - Vou dar uma vista de olhos pelas redondezas. - Não ousei dizer-lhe que a pessoa que fazia escuta aos meus telefonemas poderia aparecer e atacar-me, mas ele deve ter-se apercebido disso, porque levou o indicador à testa, o nosso sinal para «tem cuidado, muito cuidado».

Sempre - respondi. - Mas, ouve uma coisa, vou ligar-te dentro de poucos minutos e dizer-te que estou a caminho de um sítio maluco.

Aonde vais tu? - perguntou ele, desconfiado.

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A lado nenhum. É só para baralhar a pessoa que faz as escutas... para a manter por aí às voltas. Depois de falarmos, vem ter comigo ao Largo de Camões.

Tendo dado alguns passos, mudei a arma para o bolso do casaco, acalmado pela sensação da morte entre os dedos. Quando virei para a Rua Serpa Pinto, um bocado de cimento do tamanho de um punho veio esmagar-se no passeio do outro lado da rua. O barulho fez-me dar um salto para trás e deixou-me o coração a mil. Lancei um olhar alarmado a uma velha com cara de noz debruçada à janela de um segundo andar. Levantei os olhos para ver de onde tinha caído o cimento e descobri uma fenda denunciadora no reboco por baixo das telhas.

Mais um meteorito lisboeta – gritou a velha, furiosa.

Um pouco adiante, na fina separatória do pavimento no meio do Largo Bordalo Pinheiro, uma rapariga de calças justas a imitar pele de cobra e com uma T-shirt sem costas lia as mensagens no telemóvel enquanto esperava que o seu minúsculo chihuahua sem pelo espremesse um cocó do traseiro tremelicante. No exterior da casa de Maria Dias, dois rapazes com um aspeto desgrenhado - o cabelo espesso penteado para a frente a tapar-lhes os olhos - encostavam-se a um velho BMW com um cabide de arame a fazer as vezes de antena.

A luz ofuscante, cor de laranja e amarela, que a fachada de azulejos do edifício no topo do largo lançava fez-me levantar os olhos mais uma vez, levando-me a descobrir uma abóbada perfeita de céu azul profundo. Se as circunstâncias fossem outras, teria arrastado Ana e os miúdos para uma excursão a um qualquer sítio no fim do mundo, para os lados da casa de Ernie.

Ao atravessar a rua, apercebi-me de que o tipo que pusera o meu telemóvel sob escuta podia ser o responsável pelas fugas de informação para a imprensa acerca da morte de Coutinho. Vendo bem as coisas, quem recusaria uns dinheiritos extras numa crise económica?

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Possivelmente fora pago por um, ou vários, dos políticos corrompidos por Coutinho. Talvez só não tivesse fornecido mais pormenores aos amigos jornalistas por aqueles que lhe pagavam terem descoberto o que fizera. Eis também uma justificação possível para o facto de nenhum ministro, ou os seus assessores, ter telefonado a saber se eu fizera progressos; aqueles que mais tinham a perder já haviam recebido transcrições de todas as minhas conversas ao telefone desde o princípio do caso!

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Quem quer que estivesse a seguir os meus movimentos deve ter contado com a minha ingenuidade. E, se Coutinho tinha comprado ministros, também era possível que tivesse dado umas massas a alguém altamente colocado na polícia. Tanto quanto sabia, Mesquita poderia ter-me levado a acreditar que manter-me no caso era um favor que me fazia para que eu não fosse levado a pô-lo em questão.

Foi então que percebi: Mesquita considerara uma afronta pessoal o facto de eu ter desligado o telemóvel porque andava a seguir os meus passos!

A revelação deteve-me, paralisado, no meio da rua. Sentia que estava debaixo de uma torre que até então se mantivera invisível aos meus olhos. Sem o saber, andara à volta da sua base desde a manhã de sexta-feira, ali, naquelas ruas, sobre uma calçada que me queimava os pés, com os velhos mendigos, os donos de cães e os meteoritos de Lisboa. Lá em cima, no topo, milhares de metros acima de nós, estavam os homens que compravam e negociavam pessoas como eu. E que seguiam cada um dos seus movimentos.

Se tentasse derrubar a torre, eles fariam com que fosse despedido e posto numa lista negra. Estremecendo, atento, com a sensação de ter acabado de saltar para um comboio rumo a um destino há muito desejado, precipitei-me rua abaixo até ao Largo de Camões, espantando um bando de pombos às bicadas num monte de areia diante de um oculista. Ligando o telemóvel, subi dois a dois os degraus da Igreja do Carmo e disse a Ernie que seguia para a estação dos caminhos de ferro de Santarém, para me encontrar às nove e meia com uma testemunha que podia identificar o assaltante que vandalizara a casa de Coutinho. Acrescentei que tinha comigo a pen da vítima.

Santarém ficava pelo menos a uma hora de Lisboa. Nesse momento eram oito e cinco. Mesmo que o meu seguidor descobrisse depois das nove e meia que tinha sido levado ao engano e telefonasse aos seus amigos em Lisboa para o substituírem, Ernie e eu teríamos uma hora e meia para nos movimentarmos livremente.

Depois de o meu irmão ir ter comigo, pedi-lhe que tirasse as luvas cirúrgicas antes do nosso encontro com Maria Dias. Ela abriu o trinco mal lhe disse quem era. O meu irmão deu uma olha dela ao puxador enferrujado do elevador e subiu pelas escadas.

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OK, vamos dar descanso ao Anselmo - propus; dizíamos sempre por piada que estes elevadores de aspeto artesanal eram, na verdade, puxados para cima e para baixo por um

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pobre e desgraçado velhote chamado Anselmo, que passava o dia a manobrar no fundo do poço.

Subi à frente de Ernie, imaginando Ana estendida sozinha no escuro, a lamentar os anos que tinha desperdiçado a meu lado. O meu irmão podia muitas vezes ler-me nos olhos coisas que mais ninguém via; por isso, voltei-me para o pôr à prova, e ele disse:

Não percas a calma. Já tenho um plano secreto.

Que tipo de plano?

Se te dissesse, deixava de ser secreto. - Lançou-me o seu sorriso malicioso, que me arreliava, mas não tínhamos tempo para uma discussão.

Deparámos com a porta da professora já aberta. Bati duas vezes e disse quem era.

Entre - disse ela bem alto.

Vestia umas calças de treino largas e uma camisola interior prateada. Os braços e ombros musculosos brilhavam com o suor. Estava especada ao lado de duas malas metálicas cheias de roupas em camadas arrumadas, as de cores escuras na mala mais pequena e as mais claras na maior, Atrás dela, via-se a estátua do Buda envolta em toalhas e atada com uma corda de nylon. Em cima da base, uma coluna de mármore branco, encontrava-se um rolo de papel de embrulho e um pequeno agrafador, Os livros estavam arrumados em três grandes caixas castanhas do Jumbo.

Apresentei o meu irmão e expliquei que viera de visita de Évora.

Está a par da nossa combinação - disse eu.

Apertámos as mãos, Maria Dias franzindo os olhos, desconfiada.

Oiça, Monroe - disse ela -, não quero problemas,

Não vamos ter problemas nenhuns - assegurei-lhe. - Só queria deixar algumas coisas claras. Ernie teria preferido não apertar a mão a ninguém, mas, quando ela lha estendeu, não lhe deixou outra opção. Depois de o pior ter passado, Ernie pôs a mão atrás das costas, para não ser tentado a tocar-lhe. O queixo tremia-lhe. Se estivesse em casa, haveria de se arrastar até à cama e ficar aí enrolado numa bola apertada.

A dona da casa não reparou no ar embaraçado que se lia na cara dele. Na verdade, parecia até divertida. Talvez as drogas a tivessem

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tornado pouco observadora. Havia uma brusquidão tensa nos movimentos da sua mão, que me levava a crer que o uso de anfetaminas era uma possibilidade - e que me dava a sensação de existir dentro dela uma mata densa e emaranhada que apenas lhe permitia uma preciosa e pequena liberdade de movimentos.

Você é mesmo um cowboy? - perguntou ela a Ernie com uma curiosidade ameninada.

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Eu e o meu irmão somos do Colorado - respondeu ele.

E que quer isso dizer ao certo? - perguntou Maria Dias.

No Colorado há uma data de gente com chapéu de cowboy - explicou Ernie.

Mas agora vive em Portugal.

Sim e não.

A professora não tirou os olhos dele, como se Ernie fosse um enigma que tivesse de ser resolvido. Ansioso por lhe desviar a atenção, interrompi:

Não tenciona voltar a Lisboa, pois não?

Ela fitou-me de olhar carregado.

Inspetor, o senhor é que me disse para me ir embora e não voltar.

Que raio de truque vem a ser este agora?

Nenhum. Como poderia eu saber que seguiria a minha sugestão? Você é claramente o tipo de mulher que gosta de fazer as coisas à sua maneira.

Estava à espera de que mostrasse agrado pelo meu elogio. Mas, em vez disso, o modo zangado como passou a língua pelos lábios deu-me a impressão de que acabava de se lembrar das razões que a levaram a não gostar de mim.

Até parece que passou a noite em claro a trabalhar neste caso disse ela, mas sem a mínima simpatia.

Apercebi-me de que tinha a camisa toda enrugada e não me barbeara. Incapaz de me sair com uma mentira que parecesse plausível, retorqui:

Tive uma discussão com a minha mulher.

Não foi por me ter ajudado, espero.

Teria havido uma cintilação de divertimento nos seus olhos verdes? Talvez esse fosse o seu modo de me avisar de que a mata dentro de si era bastante mais vasta do que eu pensara, e que seria melhor não tentar atravessá-la.

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Foi uma discussão por razões pessoais - disse eu. - Então quando está a pensar partir?

Ao meio-dia, mesmo que não tenha as malas todas feitas - respondeu. Passando o olhar em volta, examinou a desordem da sala como que a verificar o que exigia agora a sua atenção. Vai passar por cá um amigo meu e manda-me depois o que eu não puder levar comigo acrescentou.

Onde vai passar a fronteira?

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Em Valença. Durmo num sítio qualquer perto de Bilbau e depois sigo para Bordéus. Falei com a minha mãe a noite passada... Ela espera-me depois de amanhã.

Vive em Bordéus?

Sim. Foi lá que cresci.

Uma dissonante sensação de inevitabilidade fez-me recuar para dentro de mim. Imaginei Morel sentado na cozinha de Coutinho, fumando numa pose lânguida. Tinha-me falado ainda há pouco no primeiro casamento do seu velho amigo com uma senhora de Bordéus e no divórcio acrimonioso que arruinara a sua relação com os filhos adolescentes.

Em França todos a devem chamar Marie - disse eu. - Em vez de Maria, quero dizer.

Sim, claro.

Coutinho deve ter arruinado a relação com a primeira filha muito antes do divórcio, na altura em que ela começara a transformar-se numa mulher. Gabriel percebera-o muito antes de mim. E tinha conspirado contra mim de modo a assegurar a fuga dela.

O seu irmão Pierre também está em Bordéus? - perguntei, ansioso por pôr à prova o meu raciocínio.

Ela abriu os olhos, espantada.

Como sabe que tenho um irmão? - perguntou com aspereza.

Jean Morel falou-me de vocês os dois - respondi, tentando manter a voz o mais neutra possível.

Ela sorriu amargamente, mas com uma inclinação insinuante da cabeça.

Então, como está Monsieur Morel?

Parece apaixonado pela segunda mulher do seu pai.

Ah, mas isso é mesmo interessante - disse ela com demorada e arrastada ironia, embora daí a alguns instantes o seu olhar se tenha

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afastado para além de mim, como se tivesse avistado ao longe uma figura perigosa.

Ernie fitou-me interrogativamente. Parecia que ela o deixava confuso.

Diga-me uma coisa - continuei, chamando-a de volta à realidade. Quando ela me fixou, perguntei-lhe: - Quando foi a última vez que viu Monsieur MoreI?

Na altura do divórcio. Ele foi ao tribunal com o Coutinho algumas vezes.

Que idade tinha você?

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Dezasseis anos.

E, se não leva a mal a pergunta, quando foi que o seu pai começou a... molestá-la?

Quando eu tinha treze anos... Treze anos, três meses e seis dias.

Foi ao meu quarto uma noite em que a minha mãe não estava e disseme que tinha uma coisa especial para a sua menina crescida... agora que já era uma mulherzinha.

Maria Dias olhava ora para mim, ora para Ernie, desafiando- nos a pôr em dúvida a sua história.

Lamento muito - retorqui, embora a compaixão que sentia fosse em grande parte dominada pelo medo que tinha dela.

Pôs os olhos na tatuagem do Om.

Sabe o que me perturbou mais, inspetor?

Não.

Ele veio-se a olhar para nós os dois no espelho enorme que tinha no quarto…apreciando o que me estava a fazer. E sabe o que me salvou? Vai rir-se quando ouvir.

Duvido muito.

A transcendência em mim que haveria de sobreviver acontecesse o que acontecesse... a minha natureza de Buda.

Não sabia o que ela queria dizer com aquilo, mas parecia-me uma afirmação que decorara havia muito tempo a fim de derrotar as suas próprias dúvidas. Suspeitava de que o seu budismo fosse uma tentativa de controlar de forma segura a raiva.

Falou-se nesses abusos no processo de divórcio? - perguntei.

Disse que não com a cabeça.

Não tínhamos provas, e o Coutinho iria alegar que o nosso advogado estava apenas a tentar conquistar para mim e para a minha mãe

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mais simpatia e mais dinheiro. Faria tudo para me humilhar em público. Não teria o menor escrúpulo em fazê-lo, posso garantir-lhe.

Chama Coutinho ao seu pai - fiz-lhe notar.

É uma sugestão que o meu psiquiatra me fez há uns anos, em Paris. Decidimos que era melhor para mim não o considerar pai.

E acha que Monsieur Morel sabia o que ele lhe tinha feito?

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Era o melhor amigo do Coutinho - disse ela, num tom desdenhoso. - O senhor que acha?

Acho que alguns homens são peritos em enganar as pessoas. São encantadores e inteligentes... bons a contar anedotas, excelentes a cantar e a dançar. São as estrelas de qualquer festa.

Ela soltou um riso desolado.

Fala como se conhecesse bem o meu pai.

Sei bem como são os homens como ele.

Espero que tenha mandado alguns para a prisão.

Sempre que posso.

E então aconteceu uma coisa estranha. Tive a certeza de que Gabriel acabara de entrar na sala, mas sem me controlar. Pretendia observar-nos. Desviei o olhar para a porta de entrada como que à espera de ver pela primeira vez que aspeto tinha ele ao certo.

Há algum problema? - perguntou a dona da casa.

Estava só a pensar num velho amigo. Você é uma excelente atriz, não sei se sabe. Todo o medo que mostrou de ser perseguida pelo assassino durante a nossa última conversa... Fiquei convencido de que estava aterrorizada.

O que se passou com o Coutinho mostrou-me a utilidade de uma boa representação. Apontando para um pequeno sofá branco encostado à parede, acrescentou: - Oiça, fiquem aí no sofá. Estou a ver que isto é capaz de demorar um bocado. Volto já. Lembrei-me de uma coisa que tenho de pôr na mala.

Importa-se de que use a casa de banho? - perguntou Ernie.

Ela apontou para a porta a seguir às estantes. Enquanto estavam os dois fora da sala, compreendi que o meu erro fundamental fora partir do princípio de que Maria Dias era a amante de Coutinho. E ela tinha-se mostrado muito inteligente ao usar uns ténis de homem o tempo suficiente para deixar as pegadas de sangue. Devia ter acabado de ver o pai morrer asfixiado quando o trabalhador das obras foi de encontro a ela na Rua do Vale.

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Um monte de borboletas noturnas mortas ensombrava o fundo do candeeiro circular de teto. Parecia um descuido prenunciador. Observando a acumulação de tantas pequenas mortes, imaginei Maria Dias a meditar na sua cela e vivi dez anos da vida dela nuns breves segundos. Tatuagens de símbolos budistas envolviam-lhe os braços e subiam-lhe até ao pescoço, à medida que aumentava a sua necessidade de dominar a raiva e o desespero. O cabelo embranquecera e os olhos brilhavam com uma luz estranha, isolada, de uma asceta que renunciara a quaisquer laços com o mundo.

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Haveria de contar às outras presas que escolhera aquela vida, tinha abraçado a via que seguia desde criança.

Será que, daqui a dez anos, em julho de 2022, me perguntaria ainda se fizera bem ao mandá-la prender?

Dei uns passos em direção ao retrato da jovem mãe do século XIX que estivera na parede da casa de Coutinho até sexta-feira. Estava encostado ao lado da porta de entrada. Maria deve ter reparado nele no dia em que matou o pai; deve ter odiado a ideia de ele ter ficado com uma imagem que se assemelhava a ela. Deve ter tido a ilusão de que uma parte simbólica de si continuava prisioneira dele.

Ernie regressou em passos medidos para a sala. Tinha a mão direita vermelha; esfregara-a com água a escaldar. Com um gesto, fez sinal para que não me preocupasse, sentou -se a meu lado e apontou para uma moeda de um euro que viu no meio das almofadas. Peguei nela e entreguei-lha para que a desse a Maria, mas disse-me que não tocaria em mais nada a não ser que fosse obrigado a isso.

Ela parece-me drogada com qualquer coisa. – murmurou

Provavelmente está – disse eu, e levei o indicador à testa, tendo ele acenando a concordar. Depois de ter cruzado os braços, Ernie enrolou-se sobre si. Dei-lhe uma palmadinha encorajadora na perna.

Vamos já embora - confiei-lhe.

Tudo bem. O Valium já começou a fazer efeito.

Assim que Maria Dias entrou precipitadamente na sala, enfiou uma pequena bolsa preta na mala maior. Calculei que estivesse a guardar a arma, mas não lhe perguntei. Pegou numa das cadeiras de madeira que estavam à volta da mesa de jantar. Entreguei-lhe a moeda de um euro.

O meu irmão encontrou-a no sofá - disse eu.

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Obrigada. - Guardou-a na mão fechada e esculpiu uma oração em palavras rápidas. Ao reparar na estranha posição de Ernie, falou-lhe numa voz amável pela primeira vez desde a nossa chegada. - Está a sentir-se mal?

Só um pouco zonzo... Levantei-me muito cedo hoje - respondeu ele, endireitando-se.

Ela fitou Ernie compreensiva, mas eu não queria Maria Dias perto do buraco que a minha mãe deixara no coração dele.

Vai levar o retrato que roubou ao seu pai? - perguntei.

Claro. Quanto a mim, ele não tinha direito ao quadro.

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Porque obrigou o Coutinho a escrever «Diana» em carateres japoneses com o próprio sangue? Não foi ele quem o escreveu... Fui eu! - exclamou em tom vingativo. – Era o nome que me dava. Ensinou-me a escrevê-lo em Japonês quando eu era pequena. Naquela altura pareceu-me muito divertido.

A emoção de o ter ao meu lado a guiar-me o braço pelo papel para eu conseguir escrever aqueles carateres tão bonitos... Achava aquilo uma maravilha.

E porquê Diana?

Não sei bem… Começou a tratar-me assim quando eu era pequena.

Mas porquê escrevê-lo na parede a seguir ao assassinato?

Queria assumir a responsabilidade por aquilo que fizera. Pode ver isso como parte da minha ideia de ter consciência, inspetor. Precisava de que o mundo soubesse que eu tinha feito justiça... Eu, a rapariguinha estúpida de quem ele abusara, a parva que tinha acreditado nele, que o tinha adorado. - Os olhos dela irradiavam alegria novamente. - Sabia que vocês iriam pensar que fora ele a escrevê-lo. E ninguém em Portugal sabia que era o nome que ele me dava. Por isso, não representava nenhum risco para mim.

Sabe com quem o seu pai andava a dormir... a amante final?

Inspetor, pode ter a certeza de que havia mais do que uma - replicou ela, como se eu não tivesse ainda percebido nada sobre ele. - Durante todo o tempo em que abusou de mim, teve outras raparigas. Uma delas era mesmo a minha melhor amiga, embora só o tenhamos descoberto anos depois. - Olhou pela janela como se o passado estivesse aí. - A minha amiga pensava que o Coutinho estava apaixonado por ela. Talvez até estivesse... durante algum tempo. Mas quem sabe o que um homem como ele sente e pensa?

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Então não faz ideia de quem dormiu com ele na noite antes de o ter matado? - perguntei.

Não, mas no seu lugar iria à procura de uma rapariga entre os treze e os dezoito anos, elegante, loira, bonita e... que mais? - Procurava a palavra certa. Parecia ansiosa por me ajudar agora.

Com falta de autoestima? - sugeri.

Ela largou uma risada amarga e disse:

Sim, ele era um mestre a destruir a confiança das raparigas que desejava. - Traçou no ar umas pinceladas imaginárias. - Um artista que usava a promessa de um amor mais profundo de um homem muito especial.

Sabe o nome de alguma rapariga que ele possa ter molestado aqui em Lisboa?

Não. Quando soube que se tinha mudado para cá, não queria ter nada a ver com ele. E não queria nem por nada que me reconhecesse! Cortei o cabelo curto, pintei-o de outra cor, e

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evitei todas as reuniões de pais, pois poderia ter de o ver. - Atirou a moeda ao ar, apanhou-a e voltou-a. - Caras disse ela, e olhou para mim como que à espera da minha opinião sobre a importância do acaso nas nossas vidas, mas naquele momento eu não tinha opinião nenhuma. Se ele não tivesse voltado para Portugal - continuou ela -, nada disto teria acontecido. Ou seria de prever que haveríamos de voltar a encontrar-nos um dia? O que acha, senhor inspetor?

Via-se que sentia necessidade de pôr à prova a minha fé no destino ou em qualquer conceito budista de fado que não me era familiar.

Não tenho ideia nenhuma – disse eu.

Acho que tem - insistiu ela.

Não acredito que haja nenhum plano no que acontece, se é isso que me pergunta - respondi. Ela suspirou como se eu estivesse a ser teimoso.

Sabe uma coisa? Quando soube que ele tinha voltado para Lisboa, não pensei em matá-lo... pelo menos, não imediatamente. Foi ele que me forçou a tomar essa decisão.

O que eu não ousava perguntar era: «E também foi forçada a dar-lhe uma morte tão dolorosa?»

Já falamos do que se passou na sexta-feira passada - propus -, mas primeiro diga-me se alguém estava a par dos abusos do seu pai e não fez nada para acabar com isso. - Estava a pensar mais uma vez em

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Morel, perguntando-me se ele teria alguma responsabilidade na morte de Sandi.

Ela mexeu-se, pouco à vontade, na cadeira e desviou o olhar.

Não tenho a certeza - disse ela. - Mas sei que o Coutinho tinha outros amigos com a mesma... inclinação. Descobri uma fotografia dele com duas rapariguinhas e um grupo de outros homens. Isto foi antes de ter começado a abusar de mim.

O Morel era um deles?

Não, ele não estava na fotografia.

Conhecia alguma das raparigas?

Não.

Então, quem eram os homens? Amigos do seu pai?

Pensei que eram homens de negócios e políticos conhecidos dele.

De França ou de Portugal?

Não sei.

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Onde encontrou a fotografia?

Na agenda do Coutinho. Dessa vez, tinha-a deixado mesmo em cima da mesa da cozinha... esqueceu-se dela. Quando lhe peguei, a fotografia caiu.

Guardou-a?

Não. Caí na asneira de a dar à minha mãe. Ela queimou-a. - Num tom de desprezo, acrescentou: - Disse que era para proteger as raparigas.

Mas você pensou que ela a queimara para proteger o seu pai.

Digamos apenas que a minha mãe se mostrava muitas vezes uma mulher de fidelidades mal orientadas.

Maria olhou para Ernie; fiz o mesmo. Tinha os olhos fechados, a cabeça inclinada para baixo; estava a tentar enfiar-se naquela parte de si próprio sem portas nem janelas.

Então quem destruiu a vossa infância, inspetor? - perguntou.

Olhámos um para o outro. Não sei o que viu ela, mas eu vi uma mulher satisfeitíssima com a sua intuição.

A nossa infância não foi destruída por ninguém - disse eu.

Não? - perguntou ela, e o seu tom irónico mostrava que não era o que lhe parecia. Talvez tivesse uma espécie de radar para gente como eu e o meu irmão. É o que acontece com a maior parte das pessoas que sofreram na infância, como aprendi com o meu trabalho na polícia.

Foi o nosso pai - respondeu-lhe Ernie. Tinha-se endireitado no assento e posto o chapéu de cowboy. Eu não reparara na mudança de

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posição. Verifiquei as minhas mãos, mas não havia nada escrito em nenhuma delas.

Mas agora ele já se foi - continuou Ernie -, e nós ainda cá estamos.

Fitou-me com um olhar carente, ansioso pela minha confirmação.

Quando assenti com um gesto da cabeça, tive a sensação de que a minha vida era feita das milhares de vezes em que eu tinha reparado que Ernie e eu estávamos sentados lado a lado, na nossa própria dimensão sem que importasse o que estávamos a fazer ou a distância a que nos encontrávamos um do outro.

Quando é que soube que o Coutinho se mudara de Paris para Lisboa? - perguntei. - Sabia que ele já tinha uma nova família?

Vi-o numa reunião de pais em setembro - disse ela -, pouco depois do começo das aulas. Estava com a mulher. Foi um choque. Pensava que ainda vivia em Paris. Soube que ele se

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voltara a casar, pela minha mãe. Ela tinha visto um artigo sobre o casamento numa dessas revistas de mexericos. Mas não fazia ideia de que tinha uma filha. Em parte, uma das razões por que eu vim para Lisboa foi para evitar cruzar-me com ele. E, afinal, ei-lo ali, e a Sandi era minha aluna... - Abanou a cabeça, pensando no seu azar. Ou talvez na impossibilidade de lutar contra o destino. - Inspetor, se não fosse o meu deslize, tinha-me apanhado? - perguntou ansiosa, como que desesperada por confirmar que fora inteligente.

Que é que acha? - perguntei, na esperança de que a resposta revelasse o que ela queria dizer, e como G descobrira as coisas.

Não faço ideia. Não sei que provas o senhor tinha.

A pegada dos ténis... de homem, de tamanho quarenta e três. Ela soltou um riso ameninado Nunca me teria apanhado com isso. - Virou-se novamente para a janela que dava para o largo. Estaria ela a olhar para um mundo alternativo onde não tinha sido apanhada? Aí, numa cidade com edifícios e ruas construídos segundo os seus desejos, Sandi estaria ainda viva e desfazendo-se em agradecimentos, entre lágrimas, pelo que a meia-irmã fizera por ela.

Então percebeu como é que o meu irmão descobriu quem era o assassino? - perguntou Ernie, compreendendo que era uma pergunta que eu não podia fazer.

Sim. Percebi logo que tinha cometido um erro fatal. Ele não lhe contou? - perguntou ela surpreendida.

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Não. O Henrique nem sempre gosta de falar do seu trabalho na polícia... Pelo menos, comigo. Tal como Ernie esperava, Maria Dias fez-lhe um sorriso cúmplice, como se os dois tivessem acabado de formar uma equipa que me deixava a mim de fora. Num tom confidencial, explicou:

Disse ao seu irmão que soubera no ginásio como o Coutinho tinha morrido e que trabalhava lá às terças e sextas. Conversámos numa segunda-feira, e por isso teria de ter lido a notícia nos jornais de sexta-feira. Mas os jornais só falaram na morte de Coutinho no sábado. Eu não podia saber que ele estava morto na sexta-feira a não ser que estivesse envolvida. Fui muito estúpida, não fui?

Quer dizer que G ligara para o Health Club do Chiado para ter a certeza de que ela não dera nenhuma aula extra de ioga no sábado.

Ela voltou-se para mim.

Comecei a observá-lo com toda a atenção para ver se tinha reparado no meu deslize, mas o senhor não se denunciou. Também é um bom ator, inspetor! - Levantando-se, dirigiu-se para a janela. Depois de ter afastado a cortina, abriu-a um pouco mais e atirou a moeda de um euro para a rua. - Vamos andar todos a pedir pelas ruas antes de darem cabo de nós. É o que eles querem.

Eles, quem? - perguntou Ernie.

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Os que fazem as regras O FMI e as agências de notação, os banqueiros e os tipos da bolsa Dormem com os canalhas que governam este país. Todos esses sujeitinhos de fato de marca que vivem em Cascais e no Estoril... - Abanou a cabeça a mostrar a sua frustração.

Tudo no mundo se faz à maneira deles. E arranjam modo de dar cabo de quem quiserem. Voltando-se para mim, disse: - Quando cá veio a primeira vez, estava convencida de que me tinha apanhado. Nessa altura, quando partiu do princípio de que eu era a amante de Coutinho, foi... - ergueu as mãos em agradecimento - foi como se o universo me sorrisse.

Não querendo que ela se safasse com uma ideia tão conveniente - mas também não querendo provocá-la -, disse em tom ameno:

Até que soube o que se tinha passado com a Sandi.

Sim, até esse momento. - Passou a mão num gesto tenso pelo cabelo.

Se a sua consciência estivesse tão embotada por todos os sofrimentos por que tinha passado como eu julgava, haveria de se recompor

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rapidamente e convencer-se de que a morte de Sandi era uma infeliz - mas necessária consequência do seu ato justiceiro.

Quando é que descobriu que a Sandi andava a ser molestada por Coutinho? - perguntei.

Quando ela deixou de comer. É estranho como as pessoas podem ser diferentes, mas... na essência iguais.

E que quer dizer isso ao certo?

Eu tentei a técnica oposta para manter o Coutinho longe de mim.

Comia o mais que podia! - Fez inchar as bochechas. - Ele detestava ver-me gorda! - Com os olhos a brilhar, voltou-se para Ernie, para que o novo amigo partilhasse o seu contentamento. Não conseguia sentir tesão com uma gorducha de treze anos nos braços. Foi assim que a minha mãe percebeu o que se passava. Ele mostrou-se demasiado insistente para que eu fizesse dieta... e demasiado zangado por me recusar.

Foi muito esperta - disse Ernie com admiração.

Sim, só que fiquei com um aspeto horroroso! - Tapou a cara com as mãos: uma rapariguinha ansiosa por ser tranquilizada.

Fez o que tinha a fazer.

Não gostava de ver Maria Dias a interagir com Ernie. Provavelmente ele também não, mas ia-lhe dando o que ela pretendia, pela mesma razão por que eu não ousava dizer-lhe que a sua meia-irmã estava grávida.

A Sandi sabia que estava preocupada com ela? - perguntei.

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Maria sentou-se muito direita, como que a reclamar o seu estatuto de adulta.

Sabia. Fui ter com ela e disse-lhe que sabia o que o Coutinho andava a fazer-lhe. Ela disse-me que não havia nada que eu pudesse fazer… pelo menos, a princípio. Sentia-se desesperada. E culpada.

Culpada porque o pai a tinha convencido de que ela o seduzira?

E porque se sentia dividida entre o desejo de lhe agradar e o de o matar. Sim, inspetor, agradar-lhe na cama!

Maria Dias mordeu com força essas últimas palavras como que para me chocar, mas, tendo em conta o meu passado, as trágicas e confusas esperanças de Sandi não eram para mim surpresa. Sabia que ela tinha uma faca escondida debaixo do colchão? perguntei.

Não, mas faz sentido. - Desviou o olhar, meditando neste novo pormenor. - Estou convencida de que não a ter usado deve ter sido aquilo que ela achou mais difícil de se perdoar.

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Porque não queria que a Sandi soubesse do laço que existia entre vocês as duas? - perguntei. Porque tinha medo de que ela me rejeitasse. Suspeitava de que o Coutinho lhe tivesse contado coisas horrorosas sobre mim... O monstro de egoísmo que eu era por me recusar até a falar com o nosso «querido e generoso» papá, o nosso papá tão «bonito e com um aspeto tão jovem»! - Com um sorriso perverso e triunfante, acrescentou: - Sabia que ele fez uma operação plástica para tirar as rugas da cara, certo?

Sim, vi as marcas.

Provavelmente mais do que uma - continuou com desprezo.

Mas acabou por dizer à Sandi que eram meias-irmãs?

Disse, e ela confirmou que o Coutinho lhe dissera que eu era má, mimada e que tinha feito a vida dele num inferno durante o divórcio.

Quando foi a primeira vez que falou com ela sobre os abusos de que ela estava a ser vítima? Umas duas semanas depois de ter cortado o cabelo, a Sandi começou a ficar perigosamente magra. Quando lhe vi os braços finos como bambus, fiquei doente... fisicamente doente! O mais espantoso é que a princípio não percebi por que motivo estava a ter uma reação tão visceral àquela perda de peso. A mente é uma coisa muito engraçada...

E depois um dia na escola veio-me tudo de repente. - Dobrou os braços acima da cabeça, levada talvez pela necessidade de se lembrar de que era uma pessoa forte e determinada e já não a adolescente com peso a mais de outros tempos. - Tinha chamado a Sandi na aula para analisar um poema de Baudelaire. Ela respondeu com uma tal, como hei de dizer? hesitação tímida ... Antes, ficava sempre contente quando eu a chamava; por isso, fiquei chocada. Quando o significado do sofrimento que lhe lia nos olhos me atingiu, atingiu-me realmente com toda a força. Passei muitas noites sem pregar olho. Todo o medo que tinha dele surgiu de novo, o terror absoluto! - Maria Dias fitou-me com um olhar predador. - Sabe o que é ouvir a

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voz do meu pai como uma alucinação enquanto dava aulas? Meu Deus, como eu odiava aquela voz!

Foi por isso que o amordaçou?

Ele começou a querer dar-me ordens. Imagine, com uma bala nas tripas, eu ainda com a arma na mão e ele a pensar que podia dizer-me o que fazer!

Quando começou a planear matá-lo?

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Nos princípios de junho. Depois de uma semana ou duas de insónias repletas de pânico. Só voltei a dormir depois de ter comprado uma arma. - Levou a mão ao coração como se precisasse de fazer um juramento. - Ele não me deixou alternativa, inspetor - disse ela em desespero. - Se não o matasse, teria falhado em relação à Sandi E a mim. - Desviou o olhar, quando as lágrimas lhe marejaram os olhos.

Onde conseguiu a arma? - perguntei.

Tenho um velho amigo de Paris que vive agora em Madrid.

Quando éramos mais novos e bastante mais parvos, assaltávamos casas em Neuilly e outras zonas chiques de Paris. Ele agora tem o cadastro limpo, mas ainda conhece algumas pessoas úteis.

Havia alguma razão especial para ter usado uma Browning semiautomática?

O meu amigo disse-me que vocês as usaram em tempos na polícia. Pareceu-me acertado... Uma espécie de simetria.

Não me parecia que ela tivesse alguma coisa a ver com o assalto a casa de Coutinho, mas, dado o que dissera, tinha de lhe fazer a pergunta.

Não, não quero nada dele... nada em que ele tenha tocado - respondeu. - E que é que eles levaram... os quadros?

Não. Por enquanto, não sabemos. Ainda tem a arma?

Está junto aos ténis a mais de quinze metros debaixo da água.

No Tejo?

Sim. Há agora um lindo passadiço de madeira à beira-rio em Vila Franca de Xira. Fui lá no sábado. Vê-se uma data de aves se se for bastante cedo... garças, garçotas...

Falava como e estivesse a contar um dia bem passado no campo

E já sem o pai a perseguir-lhe os pensamentos, possivelmente fora mesmo.

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Podia imaginá-la facilmente a ver a arma a afundar-se nas águas cor de jade e murmurando para si própria: «Se seguirmos o nosso destino até bem longe, seremos recompensados com a beleza do mundo.»

E a chave de casa de Coutinho... Como a arranjou? - perguntei.

Tirei -a da mochila da Sandi quando ela cá veio almoçar com a Mónica e a Joana. Disse-lhes que me tinha esquecido de uma garrafa de vinho no carro. Há ali à esquina uma pequena loja onde fazem chaves. Só demorei uns minutos. - Baixou os olhos e sorriu de si para consigo. Ao levantar o olhar, preparou-se para uma nova batalha. - Nem imagina a esperança que eu tinha de que o Coutinho não tivesse mais filhos.

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Ou que mudasse. Se não o tivesse matado, ainda estaria a abusar da Sandi.

Olhou para Ernie como que precisando do acordo dele, mas por essa altura já ele estava farto daqueles olhares prementes e voltou-se para outro lado. Vendo na discrição dele uma recusa, Maria Dias gritou:

O suicídio da Sandi não devia ter acontecido! Eu estava a tentar evitar uma coisa dessas! Era a única pessoa a ajudá-la! - Apontou um dedo acusador na minha direção. - O que é que vocês fazem para ajudar os miúdos que são abusados no raio deste país? A polícia não faz nada. Voltando-se para Ernie, gritou: - O seu irmão não faz nada! Ernie levantou-se de um salto, a raiva na enfurecida profundidade dos seus olhos e a toda a largura dos ombros.

Você não faz ideia de quantas pessoas o meu irmão meteu na prisão! – ripostou à dona da casa numa voz tremente. – E não faz ideia daquilo por que nós passámos.

Levantando o olhar para ele, ela respirou profundamente e encolheu-se. Teria visto que não compreendia nada da cumplicidade que nos unia, a mim e ao meu irmão? Se calhar sentiu o terror mais elementar de ser dominada por homens. Apesar de profundamente inteligente, parecia incapaz de perceber o alcance daquilo que os outros pensavam dela. Alguns dias mais tarde, haveria de me ocorrer que Maria Dias apenas tivera um vislumbre das mais vagas sombras dos sentimentos atormentados de Sandi e que os confundira com a sua própria necessidade de vingança. Talvez tivesse até pensado que Sandi lhe dera uma autorização tácita para matar o pai.

Numa voz magoada, tentando reconquistar-nos, Maria Dias disse:

Só queria mostrar que é impossível processar os que abusam de crianças em Portugal.

Não saberia dizer se os remorsos dela eram genuínos. Nem sequer me apetecia fazer o esforço. Queria mesmo era ir-me embora, ver os meus filhos e pedir a Ana que me deixasse voltar para a nossa vida. O olhar de Ernie voltara-se para dentro e ele começou a tremer. Levantei-me e peguei-lhe na mão. Imaginei que devíamos ter um ar ridículo - dois homens adultos de mãos dadas como rapazinhos -, mas o ridículo parecera-me muitas vezes a maneira de o mundo me dizer que eu estava a fazer o que devia.

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Maria Dias olhava-nos com uma expressão dura, superior, e era gratificante aperceber-me de que pouco me importava o que ela pensava.

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Tenho só mais umas quantas perguntas - disse-lhe.

Ainda bem, porque preciso de acabar de fazer as malas - rematou ela num tom neutro.

Apertei uma vez mais com força a mão de Ernie e larguei-a.

Então acha que a mãe da Sandi sabia o que se estava a passar? perguntei.

Duvido. A Sandi tinha esperança de que ela tivesse captado as pistas, mas a Susana não queria saber.

Você tentou ligar para a miúda no fim de semana, mas ela não atendeu.

É verdade.

Ia dizer-lhe que foi você que matou o pai dela?

Ela já teria concluído isso. Calculou o que eu pensava fazer quando lhe disse que compreendia aquilo por que ela estava a passar.

Apercebi-me nesse momento de que Sandi tentara proteger a professora quando negara saber alguma coisa sobre o quadro roubado pelo assassino do pai. Muito possivelmente, tinha também escondido - ou destruído - as fotografias da sala que a mãe não conseguia encontrar. A Sandi pediu-lhe para não fazer nada de violento? - inquiri.

Ela lançou-me um olhar furibundo.

Quer que eu lhe diga que a morte dela foi culpa minha, não é? Fique sabendo uma coisa! Ele não a largou nem sequer quando a viu cadavérica. Se o senhor pudesse ouvir a voz dela quando me disse que... Havia um tal desespero. Disse-me que não queria que eu fizesse mal ao pai. Mas as suas palavras transmitiam-me uma coisa e tudo o resto nela, uma outra bem diferente! Mesmo assim, concordei em não fazer mal ao Coutinho.

O quê?

Disse-lhe que ia fazer uma denúncia anónima à polícia sobre ele. Garanti-lhe que ninguém a iria responsabilizar pela prisão do Coutinho. Mas também lhe disse que tínhamos de tentar encontrar fotografias dele com outras raparigas, como prova. Ela não as encontrou em parte nenhuma. Pelo menos, foi o que me disse. Tive o pressentimento de que ela teria preferido matar-se à fome a arranjar problemas ao Coutinho ou participar de alguma forma no meu plano. E então entrei em casa dela às escondidas numa altura em que os pais estavam fora e obriguei-a a procurá-las comigo. Não as encontrámos, mas havia nos modos dela alguma coisa de hesitante e ansioso... Comecei a suspeitar de que já

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as tinha encontrado e não me contaria onde as escondera ... O que não me deixava outra alternativa senão tomar o assunto nas minhas mãos.

Tive a sensação de que Gabriel estava novamente junto à porta. Queria que eu ignorasse o meu código profissional e pessoal e deixasse Maria Dias partir em liberdade.

Imagino que se vá livrar do telemóvel numa altura qualquer disse eu, para ganhar um pouco de tempo. - Por isso, como poderei contactar consigo, caso alguém na Judiciária chegue à conclusão de que foi você?

Se calhar podia dar-lhe o número da minha mãe em Bordéus retorquiu como se isso fosse generoso da sua parte.

Tomei nota do número.

Será que viu algo de acusador nos olhos de Ernie enquanto eu escrevia? Fendeu com um gesto da mão o ar entre nós.

Não me arrependo daquilo que fiz! - gritou. - Pode ser que vocês os dois pensem que devia estar arrependida, mas não estou!

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Capítulo 26

Uma pessoa sai para a rua depois de um interrogatório desagradável, fica surpreendida por ver que a manhã ainda vai no princípio, e segue o rasto do traço com que a luz do sol risca o amarelo pálido da fachada do prédio fronteiro, e maravilha-se com a maneira como se dobra, irregular, em torno da coluna biselada de um candeeiro preto acima da sua cabeça, e conta uma, duas, três, quatro, cinco motos estacionadas no meio do Largo Rafael Bordalo Pinheiro, e observa um gato branco com uma mancha preta num dos olhos, como um pirata, anichado debaixo de um Honda prateado - talvez aspirando a sua própria mortalidade no vento seco que sopra vindo de Espanha - e, finalmente, tranquilizada pelas palavras soltas e uma conversa de amigos que lhe chegam de um dos andares acima do sítio onde se encontra, levanta os olhos, avista dois pombos num telhado e imagina - sorrindo de si para consigo - que está a escutar sem que o saibam a conversa que travam. Vê todas estas coisas como se fossem uma necessidade, porque acredita - por mais improvável que pareça - que todas elas estão seguramente destinadas a ter importância a certo ponto da história. Que história? A história dessa pessoa e do mundo, pois que nesse momento não há separação entre as duas.

Voltei-me para ver Ernie. Ele lançou-me o seu sorriso de viés, reconfortante precisamente porque era seu e sempre o fora. Passou-me o braço pelos ombros e disse-me uma coisa que me fez rir. Embora duvide de que estivéssemos a falar sobre como eu costumava tratá-lo por Wyatt

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Earp, o lendário justiceiro do Oeste americano, é assim que recordo esse momento.

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Quando Ernie tinha nove anos, comecei a ensinar-lhe às escondidas a carregar e disparar o revólver Colt de percussão que o meu pai me oferecera quando fiz treze anos. Daí a poucos meses, o meu irmão era capaz de acertar numa lata de Dr. Pepper a cerca de trinta metros, quase sem falhar um tiro.

Ernie já não se lembra do que me fez rir. Ambos estamos perfeitamente convencidos de que não era nada sobre Maria Dias. Ela deixou-nos aos dois com a sensação de termos fugido de um campo de batalha. No entanto, lembro-me do peso do braço dele. Parecia que me retinha no sítio, mas de uma forma agradável. Seriam os pressentimentos não só possíveis como inevitáveis? Talvez tenha sido esse o motivo por que desviei o olhar do candeeiro para as cinco motos, para o gato e para os pombos. Eram como adereços à disposição de um ator; precisava de ter a certeza de que estavam ali - cada um deles no lugar que lhe cabia - antes de a minha vida seguir na direção que tinha de seguir.

Passou agora quase um mês - estamos a 11 de agosto -, e a vaga sensação de queda também me invade quando penso naquele momento. Uma queda lenta, ao longo de um minuto ou mais, uma lentidão semelhante à do mel a pingar. Lembro-me também de uma explosão tão violenta que não consegui ouvir nada por alguns segundos. Parece-me que ocorreu a seguir à minha queda, mas isso não é possível.

Pelo que conta Ernie, começámos a descer a rua em direção ao carro, e disse-lhe que ia pedir reforços assim que lá chegássemos. Quando me perguntou se ia mandar prender Maria Dias, respondi-lhe:

Ela é em grande parte responsável pela morte da Sandi, por isso, que posso eu fazer?

Podias deixá-la ir embora.

Nesse momento, surgiu diante de nós uma figura encapuçada.

Ernie era capaz de jurar que o blusão de capuz era cinzento, mas, segundo o relatório oficial, era verde. Como qualquer polícia sabe, os erros deste género não são raros; as testemunhas oculares - mesmo as mais atentas - fixam muitas vezes uma série de pormenores errados.

O encapuçado apontou-nos a arma. Pressentindo que ia disparar, atirei-me para cima de Ernie e gritei:

Não!

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O primeiro tiro apanhou-me na parte de trás da perna esquerda, a uns sete centímetros do joelho.

Não saquei da pistola porque devo ter pensado - sem mais do que a fração de um segundo para avaliar as alternativas - que não conseguiria disparar a tempo e só tinha uma oportunidade para proteger o meu irmão. Segundo Ernie, Gabriel tomou então o comando e, ao cair no chão, gritou ao nosso atacante: «Hás de pagar por isto, grande cabrão!» A esvair-me

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em sangue, ainda consegui pôr-me de joelhos. Tirei a arma do bolso, mas eis que um segundo tiro me atingiu no ombro direito.

Ernie deve ter pegado na pistola quando ela me caiu das mãos, embora não se lembre. Mal disparou, o homem caiu para trás e ficou estendido com um som cavo. Tinha os olhos abertos, fixos no vazio. Um tal vazio, de facto, que Ernie começou a meditar na dimensão da morte em como era infinitamente mais vasta do que qualquer vida individual e em como parecia agora rodear-nos aos três.

Ernie chamou o 112 e disse que o irmão fora alvejado duas vezes num largo perto do Chiado.

Que largo? - perguntou a senhora do outro lado da linha.

Ernie levantou os olhos para a placa da praça e disse-lhe, acrescentando ainda a reforçar a urgência:

O meu irmão é inspetor-chefe da Polícia Judiciária. Chama-se Henrique Monroe. E acho que vai morrer se a ambulância não chegar muito rapidamente.

É espantoso que tenha tido a presença de espírito para falar de forma tão precisa, mas explicou-me que, depois de um tremor inicial, lhe surgiu uma claridade hipnótica e soube exatamente o que tinha de fazer. Enquanto esperávamos a chegada da ambulância, juntou-se à nossa volta uma multidão. Uma senhora de idade trouxe-me um copo de água. Gosto de pensar que foi a mesma mulher que me falou nos meteoritos de Lisboa.

Ernie atingiu o encapuçado acima do olho esquerdo. Fizera pontaria para o meio da testa, o que quer dizer que apenas falhara o alvo por poucos centímetros. Bom trabalho. Mais tarde, garantiu-me que há vinte anos que não disparava uma arma, mas Nati disse-me há dias que vira o tio ainda há dois anos a treinar a pontaria com latas de Coca-cola junto ao riacho que passa na sua propriedade, numa altura em que eu tinha ido às compras a Évora.

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Não me lembro de sangue, mas Ernie disse-me que eu parecia saído de um filme de terror. A minha cara estava tão pálida que se convenceu de que não me iria safar. As minhas mãos estavam geladas. Contou-me que eu estava arquejante e que lhe disse que não me chegava ar suficiente aos pulmões. Não me lembro de nada disso.

A certa altura, perguntei-lhe:

Tens aí algum chocolate, miúdo?

Quando respondeu que não, repliquei que não fazia mal, mas ainda assim ele perguntou aos circunstantes se alguém tinha um chocolate. Um rapaz passou-lhe uma barra de Mars, e o meu irmão ajudou-me a segurá-la enquanto eu lhe ia dando umas dentadas. Quando me ponho a imaginar toda a trabalheira que os dois tivemos - ou três, se contarmos Gabriel – para comer um chocolate de tão má qualidade desato a rir-me à gargalhada.

Como estava a respirar mal, mastigar era uma pequena luta, mas consegui acabar a barra de Mars. Ernie chegava-me o copo de água aos lábios sempre que lhe dizia que tinha sede.

Page 286: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

Comer aquele chocolate e depois lamber os dedos parece-me agora uma prova de que nunca saberemos qual virá a ser o nosso último desejo.

Ernie diz que depois de o papel da embalagem me ter caído vazio das mãos, o abracei apertadamente. Sentiu o cheiro do meu medo. Comecei a bater os dentes, mas sorri-lhe e disse-lhe que ele agora era um homem e que tudo correria pelo melhor. E que ficaria zangado se não tomasse cuidado consigo.

Não me lembro de lhe ter dito nada do género.

Ernie diz que percebeu que Gabriel me estava a devolver o corpo quando comecei com esgares de dor. Também não me lembro de nada disso. Ou de lhe murmurar que contava com ele para olhar pelo King Kong e o Godzilla. E, finalmente, de lhe dizer que pedisse por mim desculpa a Ana por todas as mentiras.

338

Capítulo 27

Ana estava adormecida numa cadeira aos pés da cama. A cabeça descaía-lhe para o lado numa descida tortuosamente lenta, endireitando-se depois com um movimento repentino. Tinha o ar de alguém apanhado num nó do tempo. Ressonava, e deu-me a impressão de que tinha sonhos agitados. Observei-a sem dizer nada porque o meu amor por ela era agora uma presença física entre nós - paciente e absolutamente segura da sua própria importância - e parecia exigir silêncio.

Lembro-me, logo de seguida, de me sentir ludibriado por Ana não estar a meu lado na cama e de me perguntar por que razão a minha almofada estava pegajosa e o ar cheirava a amoníaco. Esforcei-me por me sentar mas Quando fiz força no braço direito uma dor lancinante no ombro fez-me grunhir. Estava coberto por uma espessa camada de ligaduras, e a parte mole que elas escondiam chamejava como uma queimadura de cada vez que a palpava com a ponta dos dedos. Olhando para o lado, vi um dispositivo intravenoso. Pendia dele um saco plástico cheio de um líquido transparente. Segui com os olhos o tubo comprido que transportava o líquido até uma agulha grossa, com um aspeto temível, espetada no meu braço. Apetecia-me arrancá-la, mas tinha a certeza de que isso me arranjaria problemas com Ana quando ela acordasse.

A minha perna esquerda começou a latejar, como se tivesse sido queimada a sério. Será que o carro se tinha incendiado? E se Jorge e Nati lá estivessem, quer dizer que...

339

Quando chamei por Ana, ela abriu os olhos.

Onde está o Ernie e os miúdos? - perguntei.

Sem desviar de mim os olhos atónitos, levantou-se de um salto e tirou o casaco, atirando-o para a cadeira. Amparando-me a cabeça entre as mãos, beijou-me nos lábios.

Estás no hospital, querido, e estamos todos bem.

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Sorriu-me como se eu fosse uma prenda que tivesse acabado de receber. Tinha os lábios gretados e o cabelo estava mais curto do que me lembrava.

Então não aconteceu nada de mal ao Jorge e ao Nati?

Estão preocupados contigo, naturalmente, mas bem. Estão com os meus pais.

E Ernie está em?

Sim. Só saiu por um bocado para ir comer qualquer coisa. Coitado, estava a morrer de fome. Quer dizer que ele não morreu no acidente? - perguntei.

Não houve acidente nenhum.

Não bati com o carro contra uma árvore enorme... uma nogueira na estrada para Crawford? Ana negou com a cabeça, deu-me um beijo na testa e depois nos olhos. Tocar-lhe fez-me perceber que estava onde queria estar, mesmo sem ter qualquer memória do que tinha acontecido.

E tu estás bem? - perguntei.

Estou ótima. Estamos todos ótimos.

Senti formar-se na garganta um nó apertado de gratidão, mas não chorei. As minhas emoções pareciam-me paralisadas pela confusão que me ia na cabeça. Ana compreendeu a minha perplexidade e disse:

Estás no Hospital de Santa Marta. Estiveste na Unidade de Cuidados Intensivos, mas hoje transferiram-te para um quarto normal.

Voltou a beijar-me, e então senti que cheirava a todas as preocupações por que a tinha feito passar. Pedi-lhe perdão por a ter assustado e obrigado a vir ao hospital.

Antes aqui do que nuns quantos outros lugares que me vêm à lembrança.

Uma das cortinas à volta da cama tinha uma enorme mancha amarelada. Não sei porquê, mas interessava-me.

Que mancha é aquela? - perguntei, apontando.

Não faço ideia.

340

Há mais pessoas neste quarto?

Apontando para o lado direito, murmurou:

Está ali outro doente. Fez ontem uma operação de urgência à apêndice. - Formando as palavras apenas com os lábios, acrescentou:

É pequeno e peludo... Parece um orangotango.

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Depois, riu-se como fazem as pessoas que acabaram de chorar. Coloquei a mão dela contra a minha cara. Olhámo-nos em silêncio durante bastante tempo, até se tornar confuso onde acabava um e começava o outro.

Como vim aqui parar? - perguntei.

Ana contou-me o que acontecera, começando pelo interrogatório a Maria Dias. Não me lembrava de nada. Disse-me que tinha sido alvejado duas vezes na rua, que nenhuma das balas acertara numa artéria ou em algum órgão vital, mas que o osso do tornozelo esquerdo estava bastante fraturado e tinha de ser reparado com uma tala de metal. Estávamos numa quarta-feira. Fora operado dois dias antes, para extrair a bala e reparar o tornozelo. Não tinha havido complicações. Ela guardara as balas em casa para o caso de eu as querer ver. O cirurgião tinha-lhe dito que, se tudo corresse como previsto, eu teria alta em aproximadamente dez dias. E disse-lhe também que, dadas as circunstâncias, eu tivera imensa sorte.

Levar com dois balázios não é propriamente ter-se sorte - comentei.

Não quisera ter piada, mas Ana riu-se como se tivesse sido salva de um perigo. Quando as lágrimas começaram a correr-lhe pela cara, fiz um esforço enorme para me sentar. Ela abraçou-me como se tivéssemos estado separados o inverno todo, e a sua tepidez deve ter-me lembrado de outras coisas porque-tive uma ereção, apesar de me parecer que não era lá muito boa ideia, dado que possivelmente precisava de todo o sangue disponível e a circular à volta das feridas. Mas para ter a certeza de que tudo estava bem por aqueles lados levei a mão ao sítio.

Ana deu uma olhadela rápida por baixo dos lençóis e sorriu. Beijámo-nos longamente, simplesmente, como se nunca mais tivéssemos de ter pressa. Quando por fim nos afastámos, ela tirou a Debbie de dentro do seu saco de lona e passou-ma à volta do pescoço. Depois, a meu pedido, chegou-me aos lábios um copo de água. Enquanto bebia, comecei a sentir uma onda de exaustão. Voltar a adormecer parecia-me a melhor opção.

Primeiro tenho de ligar para os miúdos - disse ela.

341

A conversa de Ana com Nati e Jorge era um arranhar suave nas orlas dos meus ouvidos, como um LP que já tivesse acabado mas continuasse ainda a rodar no gira-discos.

Jorge insistiu em falar comigo e, por isso, Ana despertou-me aos abanões para que conseguisse pegar no telefone. Perguntou-me quatro vezes se estava bem e das quatro vezes tentei diferentes versões de «Não podia estar melhor», tanto em português quanto em inglês. Finalmente, Nati tirou-lhe o telefone das mãos e disse-me:

Queria que saísses da polícia!

Pois.

Estou a falar a sério.

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Não tenho bem a certeza de estar completamente consciente. Talvez pudéssemos começar esta conversa do princípio.

Desculpa, mas não estou a gostar nada disto! – retorquiu ele. – Mesmo nada, pai.

O nó de lágrimas contidas apertava-me de novo a garganta. Não consegui sequer sussurrar uma resposta; por isso, Ana tirou-me o telefone das mãos. Depois de acabar a conversa com Nati, disse-me que a mãe e o pai dela chegariam com os miúdos daí a pouco.

Quando acordei mais tarde, tinha a meu lado um homem alto, esguio, a barba por fazer, o cabelo comprido e despenteado, e uma compressa na testa, que descalçava as luvas cirúrgicas, com grande concentração.

Olá, Sr. doutor - disse eu, levantando a mão num gesto que pretendia amistoso.

Olá, Rico - disse ele. - Como te sentes?

Tinha umas mãos rugosas, marcadas pelo trabalho duro, e uns braços que pareciam soltos. O seu sorriso de viés quase tocava o teto.

Quando abriu os olhos, surpreendido, como que para me perguntar porque o fitava com uma expressão tão chocada, o verde profundo e as pestanas compridas denunciaram-no, embora parecesse mais velho do que me lembrava. Fiz-lhe sinal para se aproximar, pois precisava de ter a certeza de que era quem eu pensava. O beijo que me deu arranhando-me a pele e o cheiro a papas de aveia confirmaram-me que era ele, o que foi um grande alívio.

As coisas parecem um pouco esquisitas neste momento - disse-lhe.

Passaste por um mau bocado.

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A minha perna parece-me queimada. E não gosto nada da agulha no braço. Para onde foi a Ana?

Ela queria que eu ficasse a sós contigo uns minutos. Foi à Bela Ipanema ver se conseguia comprar-te uma canja.

Não tinha fome, mas faria o possível para comer a sopa, já que ela se dera àquele trabalho.

Ernie disse qualquer coisa, mas não percebi o quê. Talvez fosse a propósito das luvas porque acabara de as colocar em cima da cama.

Sentando-se a meu lado, pressionou-me a mão contra a testa para verificar se eu estava com febre.

Como é que eu passara a ser a única pessoa que ele podia tocar sem se arriscar a ficar doente?

Não tens febre - disse ele, com um aceno satisfeito da cabeça.

O que comeste? - perguntei.

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Dois muffins de limão. Trouxe-te dois de aveia. Se calhar precisas de muita fibra por causa dos analgésicos que te deram. Queres? - apontou para um saco de papel castanho numa cadeira decrépita junto à porta.

Será que ninguém na Administração compreende que o vinil branco deixa à mostra a mínima mancha e risco? - perguntei.

Rico, estou a perguntar-te se queres um bolo - disse Ernie, amavelmente.

Tens a certeza de que eles têm muffins? - perguntei.

Ainda agora comi dois.

Então isso quer dizer que ou tens razão ou estás com alucinações.

Tenho razão. Nunca tive alucinações com nada que se possa comer!

Pareceu-me uma resposta genuinamente engraçada, mas não me ri.

Entrou uma enfermeira disparada. Devia andar pelos trinta e tal anos, diria, com um nariz de duende, uns lábios semelhantes a um arco de Cupido e um cabelo preto e rebelde. Era um pouco parecida com Debbie Harry. Quando ouviu a minha pronúncia, disse-me que tinha trabalhado em Manchester durante um ano, num restaurante persa. Todos os clientes pensavam que ela era uma iraniana fugida aos ayatollahs e ficavam desapontados quando percebiam que era portuguesa. Ernie e eu trocámos um olhar e decidimos não lhe estragar a boa disposição.

343

Por isso, confirmámos que éramos de Inglaterra - da cidade de Woodford, disse-lhe. O nome ocorreu-me na altura. Mais tarde, lembrei-me de que o saxofonista preferido do meu pai, Johnny Dankworth, era de lá.

A enfermeira, chamada Rita, explicou-me que a intravenosa me estava a dar antibióticos e acrescentou que o médico me viria ver quando fizesse a ronda. Mostrou-me onde ficava a campainha ao lado da cama e disse- me que a chamasse se precisasse de alguma coisa. Peguei na campainha e, quando levantei os olhos, já a enfermeira tinha saído a correr do quarto.

Não há dúvida de que a gente destas bandas anda depressa - retorqui no meu melhor sotaque do Colorado.

Ernie riu-se, e depois sentou-se a meu lado, e falámos em tom conspirativo sobre as nossas refeições preferidas da infância. Enquanto ele não parava de falar num guisado de posole que jurava ter comido em Denver quando tínhamos ido ao zoo, lembrei-me de uma estatueta do Buda embrulhada em toalhas de banho. E de malas enormes, metálicas.

Quantos dias estive eu sem acordo? - perguntei finalmente.

Foste alvejado há dois dias e operado logo de seguida.

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Tentei recuar até ao momento da operação. Só me lembrava de uma luz fortíssima que me queimava a cara.

Que horas são? - perguntei.

Ernie consultou o relógio.

Nove menos dez da noite.

Íamos a algum sítio com malas de metal?

Não. A Maria Dias é que se ia embora... a mulher que tu interrogaste.

Quem é ela?

A filha do Coutinho e da primeira mulher dele.

Acenei a cabeça como se compreendesse, mas tinha apenas uma vaga ideia da família Coutinho. Quando perguntei para onde ia a tal Maria Dias, Ernie deu-me uma palmadinha no peito como se quisesse certificar-se de que eu era mais sólido do que parecia e falou-me na viagem dela por Espanha até França. Nada daquilo me soava familiar.

Em resposta às perguntas que se seguiram, Ernie contou-me que o homem que me alvejara se chamava Alberto Trigueiro. Estava a pouco menos de cinco metros do sítio onde nos encontrávamos quando disparou.

344

Essa distância fixou -se na minha memória como uma farpa incómoda, mas sem que percebesse a razão. Ernie disse-me que, a princípio, matar Trigueiro o tinha deixado com náuseas, como se tivesse tombado de um despenhadeiro. Lançou-me um olhar suplicante, como se me pedisse algumas palavras significativas, mas eu não sabia o que dizer e acabei por perguntar:

De que era feito o despenhadeiro?

Ele pensou durante uns instantes.

Talvez de todas as coisas boas que tentei fazer na vida - retorquiu.

O que se passa, Rico, é que, depois de a ambulância te ter levado e enquanto ali fiquei sentado, sozinho, no meio da rua, a olhar para o teu sangue nas minhas mãos e esforçando-me por não chorar, compreendi que defender-nos a nós os dois significava que tínhamos o direito a estar vivos. E que não tinha caído de coisíssima nenhuma.

Como ele me parecia tão aliviado, disse:

Isso é muito bom.

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Sabes, às vezes dá-me a impressão de ter passado toda a vida a pedir desculpa por estar vivo - explicou. - Mas aquele sangue derramado... acabou com tudo isso. Ou talvez tenha sido por ter matado alguém. Nunca pensei que isso fosse possível.

Olhámos um para o outro e podia ter oito anos e ele quatro, e podíamos ter começado a aprender as estreitas, combativas, irracionais, dimensões da vida em que havíamos nascido.

Há muitos anos, quando éramos pequenos, menti-te - disse Ernie. Desculpa. Senti que tinha de o fazer.

Mentiste sobre quê? – perguntei.

Disse-te que tinha medo de que o pai voltasse e me levasse... Depois de ele ter desaparecido, quero eu dizer. Mas não era verdade. Lamento mesmo, Rico, mas tinha medo de que a polícia viesse buscar-te e te acusasse do desaparecimento. E te levasse para a prisão. Foi por isso que te fiz jurar que nunca contarias a ninguém como ele desapareceu. Com a voz embargada, prosseguiu: - Foi por isso que te obriguei a mentir à Ana e aos miúdos. Não devia ter feito isso, mas a verdade é que o fiz.

Não te preocupes, Ernie. Não me obrigaste a nada que eu não quisesse.

Apertou os polegares contra as têmporas e fechou os olhos. Reparando que as mangas da camisa eram demasiado curtas - e para o distrair -, perguntei:

345

Mas a quem é que roubaste essas roupas?

A ti - retorquiu, sorrindo.

Quem é que te autorizou?

Ninguém, mas não tinha por onde escolher.

Porquê?

Tu recusaste-te a parar de sangrar para cima de mim, mesmo depois de eu te ter pedido com todo o jeito para não me sujares mais a camisa!

Aquela provocação diferida era exatamente a atitude certa, dando-nos oportunidade para uma boa gargalhada. O riso dele parecia-me um som admirável, como se fosse a melhor coisa que havia nele, aquilo que me esforçara avida toda por salvaguardar e mesmo o que fizera com que tivesse valido a pena apanhar um tiro.

Durante anos, tentei descobrir o telhado que cobria tudo o que sentia pelo meu irmão, mas ao ouvi-lo tão feliz compreendi que não havia telhado. Com Ernie presente, eu estava a céu aberto.

Ernie disse-me que Luci se tinha apresentado depois de a ambulância me ter levado. Levara-o para o carro da polícia e pedira-lhe que lhe dissesse o que se tinha passado.

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Parecia não se importar com o facto de eu não contar as coisas por ordem, nem com as minhas constantes interrupções para recuperar o fôlego - disse Ernie. - Tiveste sorte com ela.

É verdade.

Ernie disse-me que Luci sabia que o homem se chamava Trigueiro e que tinha vinte e sete anos, porque trazia a carteira no bolso. Mais tarde, descobriu que passara dois anos na prisão de Paços de Ferreira por causa de uma série de assaltos no Porto, o que nos levou a pensar que provavelmente tinha sido ele a vandalizar a casa de Coutinho.

Manuel Marques, um outro inspetor-chefe, interrogara Ernie na sede da Judiciária.

Foi duro contigo? - perguntei, temendo o pior.

Não, nada. Estava à espera daquilo do polícia bom e do polícia mau, mas foi só ele a falar comigo e depois de lhe ter contado como tinhas sido atingido e como eu tive de disparar contra o Trigueiro, passámos imenso tempo a falar do Alentejo, porque nessa altura já lhe tinha dito que vivia perto do Redondo. Sabias que ele nasceu a poucos quilómetros de Elvas? Não.

346

A irmã ainda vive na quinta da família. Tem no jardim em frente à casa um dragoeiro com quase cinco metros de altura. Imagina só, Rico! O inspetor Marques convidou-me para ir lá um dia.

Conseguir pôr praticamente qualquer pessoa a falar de plantas era um dos talentos de Ernie. Estava eu ainda a pensar nisto, quando me perguntou:

E tu, porque achas que o Trigueiro te queria matar?

Não queria - respondi, porque, ao ouvir verbalizar a pergunta, percebi claramente por que razão a distância a que ele se encontrava de nós, no momento em que disparou, me ficara gravada na cabeça como uma farpa incómoda. - Ele disparou de muito perto - prossegui. - Podia ter-me enfiado uma bala na cabeça se a intenção fosse essa. Acho que queria deixar-me apenas fora de cena por uns tempos. Pelo menos, a princípio.

Porque queria ele pôr-te fora de cena?

Porque eu devia estar a chegar demasiado perto da pessoa que o contratou.

Mas quem?

Essa é que é a grande questão, Ernie.

O meu irmão levantou-se, ficou com o olhar ausente, dando-me a impressão de estar a sopesar esta nova informação face à irrevocabilidade de ter posto fim à vida de outra pessoa.

Fizeste a coisa certa - disse-lhe eu.

Fitou-me com uma expressão de dúvida.

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Ele ter-nos-ia matado aos dois se tivesses falhado o primeiro tiro - continuei – A pessoa que organizou isto não brinca em serviço. O que está em jogo é demasiado importante. O segundo tiro era para me mandar para o cemitério.

Ernie acenou como se assentisse, mas via que precisaria de reforçar a mensagem durante meses. Instantes depois, ouvimos Jorge já perto, no corredor. Vinha a palrar sobre um desenho animado, e a minha sogra fazia os possíveis por convencê-lo a falar mais baixo. Ao entrar no quarto, ficou boquiaberto, e o Francisco caiu-lhe da mão, o que me levou a pensar que eu devia estar com um aspeto bastante assustador.

Quando lhe abri os braços, hesitou, como se estivesse a ponderar qual seria a sensação de se manter à distância, por um segundo que fosse, de tudo aquilo por que ansiava; depois, gritou «Papá!» e precipitou-se para mim como se eu fosse a sua terra prometida.

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Ana tirou-lhe os sapatos e as calças enquanto eu o cobria de beijos, e Nati ajudou-a a enfiá-lo na cama a meu lado sem bater na minha perna ferida ou no ombro.

Cem por cento fruta! - gritou o obsessivo monstrinho assim que se instalou, o meu braço à sua volta.

É a nova publicidade dos sumos Bongo - explicou Ana, com um resmungo divertido.

Jorge anichou-se com a cara encostada ao meu pescoço. O hálito morno e o seu peso junto a mim pareciam-me um talismã contra tudo o que ainda me poderia acontecer de mal. Daí a instantes, já ele dormia profundamente.

Nati farejou o ar aproximando-se de mim – claramente um membro do Clã Coelho – e disse. Pai detesto ser eu a dar-te a notícia, mas este teu quarto fede a cinquenta anos de peidos.

Ri-me com Ana e Ernie, mas sobretudo porque ver Nati - aqueles seus olhos tão sérios e os seus gestos expressivos - me trazia à memória tantas surpresas felizes que lhe devia ao longo dos anos que só o riso as poderia incluir a todas. Perguntou-me se queria uma massagem nas costas, mas voltar-me implicaria contorções dolorosas.

Senta-te só aqui ao pé de mim - pedi-lhe.

Nati era demasiado novo para saber que o que de mais útil poderia fazer por mim era simplesmente deixar-me abraçá-lo; por isso, olhou-me com uma expressão desapontada e por instantes pareceu-se tanto com a minha mãe que o choque me fez desviar os olhos dele.

Assim que se sentou, poisou a cabeça no meu peito, a orelha para baixo, como se à escuta do bater do meu coração. Adorei a surpreendente justeza disso.

348

Capítulo 28

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Acordei ao amanhecer com uma mensagem na mão: «O Coutinho pode estar a sete palmos de terra, mas o sacana continua a posar para os paparazzi»

Assumi que isso significava duas coisas: que as trágicas consequências daquilo que ele fizera continuavam a estar absolutamente presentes no mundo; e que G - tal como Maria Dias estava convencido de que Coutinho tinha escondido fotografias que tirara com rapariguinhas adolescentes.

G forçara a ponta da esferográfica com tal força na minha carne na palavra «sacana». – que tive de enxugar o sangue com a bata do hospital. Esticando o braço para trás. Tirei da mesinha de cabeceira o novo telemóvel que Ana me tinha comprado.

Depois de ter assegurado Luci de que estava ótimo e de pedir desculpa por a acordar, fiquei atónito - e talvez também ela própria - ao ouvi -la desatar a chorar.

Peço imensa desculpa, chefe - escusou-se. - Sei que é uma parvoíce, mas quando o vi inconsciente no hospital e com aquelas ligaduras todas... procurei preparar-me para o pior. E agora o alívio de ouvir a sua voz foi de mais.

Depois de ter respondido a todas as suas perguntas sobre a minha situação clínica, consegui orientá-la para o tema do trabalho. Expliquei-lhe o motivo pelo qual me tinha livrado do antigo telemóvel e pedi-lhe que me trouxesse a pen de Coutinho, que continuava escondida

349

no meu gabinete; queria que Joaquim a investigasse cuidadosamente antes de eu dar o próximo passo. Luci concordou, mas disse também que provavelmente deveria dizer a Romão que a tinha encontrado; era ele quem agora estava à frente do caso.

Não respondi nada; apercebi-me de que Romão, ao assumir as minhas tarefas, não teria nem tempo nem recursos para investigar plenamente o caso. Passar-lhe a pen não valeria de grande coisa.

Desculpe se o ofendi, chefe - disse Luci num tom conciliador.

Não, tem toda a razão - respondi. - Vou falar com o Romão mais logo. Diga-me uma coisa, Luci, também passou a trabalhar com ele?

Passei, sim, chefe.

Romão era um investigador brilhante, mas também um bruto que achava que as mulheres eram demasiado emotivas para poderem ser boas policias. E nunca permitia a Luci qualquer iniciativa na investigação das ligações entre o assalto à casa de Coutinho e o ataque de que eu fora vitima, o que fazia desta reorientação do caso um cenário ideal para quem tinha ordenado o atentado contra mim.

Esforcei-me por ficar sentado - ansiando por uma perspetiva mais abrangente sobre esta reviravolta nos nossos destinos -, mas, assim que deslizei a perna esquerda sobre o lençol, a dor fez-me soltar um uivo. Era como se me tivessem espetado um prego no ferimento até ao osso.

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Está a sentir-se mal, chefe? - perguntou Luci.

Foi só uma pontada. Oiça, tenho de desligar... Chegou o médico.

Falamos depois.

Ana atendeu o telefone de casa como se a minha voz chegasse em seu socorro e não o oposto, como era o caso. Não gostei de estar tão carente. Não tinha a certeza de que ela devesse confiar numa pessoa com lacunas tão profundas como as minhas.

Quando lhe disse que era possível que tivesse sido algum político ou homem de negócios influente a pagar a Trigueiro para me impedir de ligar todos os pontos que rodeavam o assassinato de Coutinho, perguntou-me como poderíamos confirmá-lo.

Como o Ernie enfiou uma bala na única pessoa que nos poderia levar até quem tem medo de mim - disse eu -, nunca chegaremos a sabê-lo.

Talvez os teus colegas possam seguir a pista do pagamento que o Trigueiro deve ter recebido. Deve ter sido em dinheiro. Não vai haver pista nenhuma.

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Antes do Tiro e Depois-do- Tiro. Dois continentes distintos, cada um com as suas cadeias de montanhas, vales e cidades. E será que ali, na costa acidentada e rochosa de Depois-do- Tiro, a minha mulher acre ditaria que o que eu lhe dizia era verdade; quando, sentados no cais deserto, lhe contasse a minha infância?

Ana perguntou-me como me sentia; falei-lhe nas minhas dores lancinantes como se fosse uma piada. Um teste? Ana passou-o, não se rindo.

E se tiver de ficar mais tempo no hospital do que os médicos pensam? - perguntei, ansiando por lhe contar alguma coisa sobre os meus medos, falando no menos importante deles.

Vais ficar bem depressa. És forte. E estaremos todos ao teu lado.

Voltarás para casa mais cedo do que pensas.

Ana disse-me que Ernie se mostrava um hóspede agradável.

E esta manhã, ele e o Jorge levantaram-se mais cedo e fizeram panquecas à moda do Colorado para todos nós. - Rindo-se, feliz por falar de coisas banais, exclamou: - Deixaram tudo numa grande barafunda, também. Quem me dera que estivesses cá para ralhares com eles!

A minha mulher passou o telefone a Nati, que me falou de Moby Dick - uma maneira de partilhar comigo algo de significativo. Pela primeira vez, apercebi-me de que havia o perigo de ele viver excessivamente mergulhado nos livros. Porque será que foi preciso ser alvejado para dar pela semelhança entre ele e a minha mãe com tamanha clareza? Parecia-me agora que a minha tarefa deveria passar a ser encorajá-lo a fechar os romances de vez em quando e a juntar-se a mim no mundo real.

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Na tua opinião, porque é que o romance começa com o narrador a dizer: «Chamai-me Ishmael?» - perguntou Nati. – Em vez de dizer, por exemplo: «O meu nome é Ishmael»

Sempre achei que era por Ishmael não ser o verdadeiro nome dele - retorqui.

Mas porque haveria ele de mentir?

Porque não confia o suficiente nos leitores para lhes dar pormenores íntimos sobre si... tais como saberem o seu verdadeiro nome. É só o primeiro capítulo, afinal. Como pode Ishmael ter a certeza de que o leitor está do seu lado? Primeiro precisa de lhe contar a sua história. Há uma data de pessoas que crescem sem uma única pessoa em quem confiar, Nati.

351

Isso é o que fui levado a compreender - disse ele, num tom cúmplice.

Quando Jorge veio ao telefone, lançou-se de cabeça na sua necessidade de me contar as aventuras com os amigos da vizinhança; era uma bênção escutar aquelas histórias imprevisíveis. Mal voltou a estar do outro lado da linha, Ana disse, como que recitando um encantamento:

Como vês, os nossos pequenos sentem imenso a tua falta.

Não respondi porque queria agarrar-me àquele momento.

Ainda aí estás? - perguntou.

Ana, desculpa ter-te escondido tanto sobre mim. Compreenderei se quiseres...

O Ernie contou-me tudo por que passaram em pequenos – interrompeu. E também me mostrou as cicatrizes. Por isso, percebo porque inventaste tantas coisas sobre o teu passado. Confesso que ver as cicatrizes do Ernie me deu vontade de matar o teu pai!

Uma sensação de clímax fez-me baixar os olhos para o relógio.

Eram oito menos quatro minutos de quinta-feira, dia 12 de julho de 2012. De repente, tornou-se claro que tinha esperado toda a vida para que uma mulher me dissesse que me defenderia a mim e ao meu irmão até à morte.

Eras capaz de nos defender? - perguntei.

Ouve, Hank, não posso saber ao certo o que teria feito, mas estou convencida de que teria a coragem de, primeiro, denunciar o teu pai à polícia e, segundo, testemunhar contra ele. Terceiro, se nada disso funcionasse de o mandar para o outro mundo!

Ouvir Ana falar como quem expõe um plano traçado com raiva deu-me vontade de a abraçar com força.

Sabes, passei metade da noite acordada a imaginar como haveria de o fazer - prosseguiu ela animada. - Foi aquele suicídio que me contaste no outro dia, com cianeto, que me sugeriu como me livraria do teu pai.

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Perante aquela sólida determinação na voz, senti a agradável e estonteante desorientação que nos possui quando seguimos por caminhos a elevada altitude, acompanhados lá em cima pelos pensamentos imprevisíveis, penugentos, esvoaçantes, que normalmente não conseguimos atingir.

Então, que é que achas? - perguntou.

352

O cianeto tem um gosto a amêndoa amarga. Ele cuspia-o.

Nada disso, misturava-o no rum.

O vaivém de intimidade entre nós era como brincar às escondidas, e foi assim que comecei a compreender o que nunca antes pusera em palavras: que o meu amor por Ana era também uma espécie de brincadeira de crianças.

Talvez resultasse - disse-lhe. - Mas teríamos de nos livrar do corpo também... e sem que ninguém visse.

Punha-te a ti e ao Ernie a tratar dessa parte.

Se calhar podíamos levá-lo até ao Black Canyon e atirá-lo lá de cima.

Não sei bem porque disse aquilo, mas pareceu-me ser essa a melhor opção.

Ouve, Hank - disse ela, mudando de tom -, há muitas coisas que agora fazem sentido e que antes não eram claras para mim. Mas o que não consigo compreender é porque pensavas que não acreditaria em ti.

O médico das urgências que tratou o Ernie da primeira vez em que o meu pai o feriu a sério estava convencido de que fora eu quem lhe cortara metade da orelha.

Esperei mais de trinta anos para protestar contra tal injustiça. E no entanto não gritei nem desatei aos berros, como sempre pensara que iria acontecer.

Como é possível que um médico pensasse uma coisa dessas? - perguntou Ana. - Tu não passavas de uma criança.

Porque foi o que o meu pai lhe disse. O médico jurou que me mandava para uma casa de correção se eu voltasse a fazer mal ao Ernie. E havias de ver o olhar que me lançou... Como se eu fosse um traste. Por isso, não podia correr o risco de contar a quem quer que fosse. Por isso, não podia correr o risco de contar a quem quer que fosse.

Não estou a ver o que é que uma coisa tem a ver com a outra.

Porque, se me pusessem numa casa de correção, não poderia proteger o meu irmão. Mais tarde ou mais cedo, o meu pai haveria de o matar. Tanto o Ernie como eu sabíamos isso. Ansiávamos por contar a alguém aquilo por que estávamos a passar, mas ao mesmo tempo sentíamo-nos aterrorizados com a ideia de alguém descobrir. Porque sabíamos que o encantador do meu pai acabaria por convencer do contrário a pessoa a quem o contássemos.

Page 299: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

Viver à espera de coisas más mata, Ana. Talvez seja até mais destrutivo do que as coisas más propriamente ditas.

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E ficar calado foi a coisa mais difícil que fiz... que nós fizemos. E não ganhámos nada com isso. Nada!

Comecei aos soluços, mas mesmo isso não deteve a torrente de palavras que me corriam da boca:

E então, mais tarde, quando o meu pai desapareceu, não dissemos nada do que ele nos tinha feito, porque a polícia local pensava que eu e o Ernie o tínhamos matado. Separaram-nos. Foi muito duro... realmente duro. Interrogaram-me durante sete horas a fio. Provavelmente ainda hoje pensam que o matei, acho eu. Não houve um dia, nestes últimos vinte e oito anos, em que o Ernie não se preocupasse com isso. Ainda hoje pensa que me podem extraditar e mandar para uma prisão no Colorado.

Ana disse-me que detestava falar de assuntos tão sérios ao telefone.

Vou aí ter! Não te mexas!

Assim que chegou, esvaziou a mochila em cima da colcha: quatro mangas da cor do pôr do Sol. No dia anterior tinha-lhe implorado que me trouxesse fruta tropical. Enquanto eu acariciava uma das mangas, sentou-se ao meu lado e perguntou:

Que mais precisas que eu saiba?

Fiquei estupefacto por a ouvir fazer uma pergunta tão perfeita, mas também tinha dúvidas quanto a confessar-lhe demasiado.

Ana, não sei por onde começar.

Deste-me a entender que ir à igreja era abominável. Podes começar por aí.

As pessoas que iam à igreja achavam que o meu pai era um cristão exemplar - expliquei a Ana. E de certo modo era. Às vezes era ele quem dirigia os cânticos.

Isso era importante? - perguntou ela, incrédula.

Era uma coisa que contava muito no sítio onde vivíamos. Ele tinha uma voz magnífica.

Cantei as palavras de abertura de Erguei-vos, Soldados de Cristo. Sem ironia. Como o cantara em criança, quando fazia o que podia para acreditar no ser invisível a quem toda a gente que conhecia orava.

Quem tem uma voz magnífica és tu! - disse Ana, pousando-me a mão na cabeça como que num ato de bênção.

354

Page 300: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

Será que Ernie lhe tinha contado que havia uma rivalidade entre mim e o meu pai em relação a ele?

Tenho a voz do meu pai - confessei.

É por isso que nunca mais cantaste para mim? Gostava das tuas serenatas enquanto me esfregavas no banho. Era maravilhoso!

Como que aterrando num sítio nunca antes imaginado, apercebi-me de que o facto de não me permitir cantar para Ana não tinha nada a ver com detestar ou ter pavor do meu pai.

O amor é mais persistente do que o ódio - disse-lhe. Pareceu-me nesse momento uma descoberta assombrosa.

E o Gabriel... Também ama o teu pai? - perguntou Ana, hesitante.

Não, só eu é que mantenho o amor - retorqui. Não sei como sabia isso, mas sabia.

Fala-me do Gabriel- pediu-me, como se finalmente tivéssemos chegado ao nosso destino.

Não ias gostar do que tenho para te dizer.

Deixa-me ser eu a decidir isso.

Vendo a determinação no seu olhar, compreendi que subestimara Ana durante muito tempo - talvez desde o momento em que nos tínhamos conhecido.

Contei-lhe o que sabia, a maior parte de trás para a frente, ganhando velocidade, numa espécie de precipitação lunática, como um LP que tivesse mudado para 78 rotações. Mas ela não me interrompeu, mesmo quando as coisas não faziam sentido. Acabei por lhe contar a primeira vez em que ele viera ter comigo.

Quero falar com ele – disse-me quando terminei.

Estremeci como se ela me tivesse dado uma estalada. E depois recuei para o mais recôndito lugar dentro de mim.

Levantou-se e começou a pentear os cabelos para fazer um rabo de cavalo, como se se preparasse para uma nova batalha. Olhou para mim com insistência.

Tenho uma mensagem para o Gabriel.

Péssima ideia - repliquei.

Hank, preciso de falar com ele - repetiu.

Nem pensar! - disse. Porque qualquer conversa poderia dar-lhe uma visão muito diferente de quem eu era, como se nunca tivesse sido o homem que imaginara.

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Page 301: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

Passei na biblioteca e trouxe um livro sobre este assunto - disse Ana. - Ao que parece, tens a possibilidade de trazer G até ti sempre que o queiras. O Ernie disse que o G vem ter contigo quando imaginas muito sangue.

Não posso permitir que te encontres com ele. Cruzes, Ana, odeio essa ideia!

Já nos encontrámos, no nosso quarto.

Decidi ganhar a discussão, não respondendo.

Hank, tens de fazer isto por mim, por nós. É a única maneira de seguir em frente.

Contei os segundos. Quando ia em sete, Ana disse:

Se não for por nós, então, fá-lo pelos miúdos.

Não está certo meter os miúdos nisto! – resmunguei

E julgas que só faço o que está certo quando és tu que estás em jogo - Riu-se, cáustica. - Se julgas, estás muitíssimo enganado!

Ele vai ser grosseiro contigo. Pode troçar de ti.

E depois? Hank, eu sei proteger-me. Sabes muito bem. Tem mesmo de ser.

Continuámos a discussão mais uns minutos, mas sabia que já tinha perdido.

Imaginei Jorge a cair da bicicleta. Um pequeno acidente apenas, mas que lhe fez um arranhão no joelho, e a ferida deixou-me as mãos cobertas de sangue.

Quando voltei a mim, tinha os olhos banhados em lágrimas. Estava também ofegante, o que me deu a entender que Gabriel, da distância do nosso rancho ou algures nas montanhas, estivera a falar com Ana.

356

Capítulo 29

Ana contou-me que o meu corpo se tornara flácido. E que, quando me sentei direito, a irritação que me viu nos olhos não lhe era familiar.

Tens aí cigarros? - perguntou-lhe Gabriel.

Ficou com a impressão de que o meu sotaque era mais cerrado do que o costume e a minha voz, mais profunda.

Tu... tu não és o Hank - disse-lhe, e, apesar de querer dar às suas palavras o tom de uma constatação, elas saíram -lhe mais como uma pergunta. Estava sentada na cadeira branca de vinil, esforçando-se por adotar um ar despreocupado. Sentia-se distanciada de si, como se tivesse entrado por acaso na vida de outra pessoa.

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Não, o Hank neste momento não esta em casa, querida – respondeu G – Ele depois volta. Tens aí cigarros?

Não, desculpa, mas não tenho – respondeu ela.

Para que serves tu, afinal? - perguntou G, franzindo o sobrolho.

Para pouca coisa, está-me a parecer.

Com o pronto reconhecimento da sua inutilidade, Ana estava à espera de arrancar um sorriso a G, mas em vez disso ele olhou-a com desagrado.

Querias que estivesse arrependido por te ter magoado, mas não estou!

Isso já não tem importância.

Então o que é que tem importância?

Ana inclinou-se para diante e juntou as mãos.

357

O Hank.

Gabriel olhou -a de cima a baixo e sorriu.

Tens umas belas mamas.

É muito atencioso da tua parte informar-me disso - respondeu Ana.

E o teu sotaque argentino é muy hermoso - disse G com uma piscadela de olho. - Aposto que o Hank gosta de te ouvir dizer palavrões quando estão a fazer sexo.

E quem é que não gosta? - replicou ela, fingindo que a conversa não a incomodava. - Mas já agora também te digo que não tens nada a ver com o que eu e o Hank fazemos na cama - acrescentou.

G deu um salto ao ouvir estas palavras.

Tenho a ver com tudo o que diz respeito ao Hank!

Ana desviou o olhar, incapaz de encontrar uma resposta. Começava a compreender melhor a razão por que nunca lhe falara em G. Ao fim de algum tempo, disse.

Se calhar podíamos voltar ao princípio.

Fazes o favor de não te armar em tia Olívia?

Ouve, pedi ao Hank que te deixasse vir ter comigo porque queria agradecer-te. Foi só por isso. Agradecer-me, porquê?

Para já, por teres defendido o Ernie aqueles anos todos.

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E agora estás a ver se fico todo simpatia e sorrisos... lá porque me agradeceste. Pois olha, queridinha, não sou nada desse género. Isso é a especialidade do Hank. E, já agora, que vem a ser isso de pores uma madeixa roxa no cabelo? Os quarenta anos bateram-te forte, não foi? Ana desviou os olhos, intimidada pela expressão desdenhosa de G. As lágrimas subiam-lhe no peito.

Envelhecer não é nada fácil, pois não? - insistiu Gabriel.

Ana sentia que tinha de o pôr do seu lado se queria que ele ouvisse o que precisava de lhe dizer.

Gostava de ter estado contigo no Colora do - disse ela -, porque haveria de mandar prender o pai do Hank.

Acusado de quê?

Abuso de menores.

Parece-me pouco provável. Ele tinha-te levado à certa como levou toda a gente. Ias achá-lo um tipo encantador. Ias chupar-lhe a pila sempre que ele to pedisse.

Não me parece.

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Ias odiar a mãe do Hank também... por não o ter protegido, a ele e ao Ernie.

Não quero julgá-la.

Oh, deixa-te disso! Para que serve a vida se não para julgar pessoas que não se compreende?!

O Hank, a bem dizer, quase não fala dela. E o Ernie nunca o faz. Gabriel respirou fundo e esfregou a mão na cara, parecendo subitamente inseguro.

Aquilo que mais lamento é não ter conseguido... Salvá-la - murmurou. - Gostava de ter compreendido como o fazer. - Fez um esgar horrível.

Nem sei porque te estou a dizer estas coisas. Devo estar maluco!

Ana queria pensar que ele lhe falava no seu fracasso porque também queria estar do mesmo lado da barricada.

Protegeste o Hank o tempo suficiente para ele me ter conhecido e criado o Nati e o Jorge dentro de mim - disse ela. - Mesmo que nunca venhas a confiar em mim, quero que saibas que te estou mais agradecida do que aquilo que és capaz de compreender.

Quando G levou a mão aos lábios, Ana reparou que ele tremia.

Repousou a cabeça na mão e desviou o olhar. Achava-o parecido com Ernie - perscrutando um horizonte distante à espreita de sinais de perigo. A posição dele, prostrada e torcida, dava-lhe a impressão de que as forças o abandonavam.

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Quando G finalmente se voltou para Ana, disse:

Vai buscar-me um chocolate preto. O meu preferido é o de grãos de café com cobertura de chocolate Leysieffer.

Vou ver se encontro.

G lambeu os beiços como um gato.

Fumar um cigarro depois de uns grãos de café com cobertura de chocolate é a melhor coisa que conheço.

O ar deliciado que Ana lhe via nos olhos dava-lhe a sensação de que alguma coisa mudara entre os dois.

Não se pode fumar no hospital - disse ela. - Mas não vais ficar aqui muito mais tempo.

Mesmo assim, se realmente queres agradecer-me, traz-me um maço de Marlboro às escondidas!

Não me leves a mal, mas acho que é não é boa ideia... para o Hank, quero eu dizer. Pode... pôr em causa a recuperação.

O erro dele foi deixar de fumar.

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O comentário pareceu a Ana tão sentido, ainda que politicamente incorreto, que soltou uma gargalhada.

Gosto de ver que me achas piada - retorquiu G num tom divertido.

Ana sentiu-se encorajada.

Ouve, queria que o Hank começasse a... falar com um terapeuta quando sair do hospital - disse ela.

Receio bem que não haja cura para o mal dele.

Qual é o mal dele?

Ama um homem que odeia, e odeia uma mulher que ama.

Ana achou que havia muito de verdade naquelas palavras.

Está irreversivelmente lixado - acrescentou G. -Quer dizer, se queres a minha opinião.

Só quero que ele se aceite como é e…me aceite a mim. Quero que ele seja a pessoa que quer ser. Será pedir de mais?

Sim, acho que é capaz de ser. Além disso, não me irei embora.

Nem eu quero que vás.

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Isso é que queres!

Tu és parte dele desde os oito anos. Só quero que neste momento sejas bom para ele. E para mim. Temos passado um mau bocado ultimamente.

E quem não passou? Seja como for, não sei o que queres dizer com isso de ser bom.

Mas vais descobrir. És esperto.

Foi a vez de Gabriel se rir.

Gosto de ver que me achas piada - disse Ana.

Quando G sorriu, os seus olhos ganharam uma beleza profunda que parecia ser também a minha.

Estou a ver porque é que o Hank te escolheu - rematou. - Por isso, está bem, experimenta lá a psicoterapia. Diz ao Hank que tem a minha bênção... desde que não tente ver-se livre de mim, evidentemente. - Piscou o olho. - Não ia gostar nada do raio de uma brincadeira dessas!

360

Capítulo 30

Quando Ana inicialmente me contou a conversa que tivera com Gabriel evitou mencionar que lhe tinha dito que eu precisaria de ver um terapeuta. Agora, depois de me dar um beijo na testa, disse:

Queria que começasses a falar com um profissional.

Com um carpinteiro, por exemplo? - perguntei, necessitando de mais tempo para raciocinar. Não, com um psicólogo, por exemplo. Vais passar uns meses em casa antes de voltar ao trabalho; por isso, podias aproveitá-los para alguma coisa útil. E ver um terapeuta obriga-te a sair de casa pelo menos uma vez por semana.

Não tenho a certeza de que seja boa ideia.

Hank, isto não é um pedido – disse ela, mas num tom amável. Das primeiras vezes vou contigo, se achares que isso ajuda.

Não quero pôr em perigo o bem-estar de Gabriel. Não seria justo.

Ouve, Hank, só quero que fales com alguém.

Não sei bem - retorqui, uma maneira de dizer «não».

O Gabriel quer que tu vás.

Perguntaste-lhe?

Bem, achei que também lhe dizia respeito. Hank, julgo que ele compreende que tu não podes continuar a viver ao abrigo de mentiras. É demasiado cansativo. E acabarias por me afastar a

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mim e aos miúdos. Creio que mais tarde ou mais cedo também tu acabarás por ver que é assim.

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Depois de Ana sair para ir buscar os miúdos, e enquanto meditava sobre o efeito que a terapia teria sobre mim, Ernie apareceu. Manteve-se, porém, no limiar da porta, o chapéu de cowboy na mão direita, a esquerda atrás das costas. Luzia-lhe um brilho astuto nos olhos.

Espero que não me tragas nenhum réptil - disse-lhe. Certa vez pusera a minha mãe aos guinchos ao presenteá-la com uma cobra pequena que tinha convidado para o almoço.

Não, nada de répteis desta vez - respondeu. - Mas trouxe-te isto!

E fez surgir um frágil raminho de flores silvestres azuis e vermelhas.

Tinha os dedos todos sujos, o que me lembrou que Ernie precisava de passar uma parte de todos os seus dias num universo sem governo humano.

Muito bonitas! - exclamei - Mas onde as encontraste?

Num terreno abandonado aqui perto do hospital. Vivem lá dois velhotes, numa barraca improvisada, mas deixaram-me apanhá-las.

Quando me pôs as flores debaixo do nariz, aspirei -as deliciado.

A Ana acabou de me ligar para me dizer que as coisas estavam novamente bem entre vocês - disse Ernie com satisfação.

Sim, obrigado pela ajuda.

Depois de ter arranjado uma jarra - de vidro azul - e posto as flores na mesinha de cabeceira, e enquanto lavava as mãos no pequeno lavatório do quarto, fiz-lhe um resumo das minhas apreensões sobre a questão do terapeuta. Deixando o pior para o fim, concluí:

Nunca resolverei caso nenhum sem a ajuda do Gabriel.

Quem te disse que ele tem de desaparecer?

Ernie, qualquer que seja o terapeuta a que eu vá há de querer fazer de mim alguém normal.

Ernie riu-se.

Hank, custa-me ter de te informar - disse ele, ainda a rir-se -, mas não devias alimentar muitas esperanças de alguma vez aterrares no Planeta Normal. Fica numa galáxia distante, e nunca ninguém na nossa família conseguiu sequer avistá-lo. - Pegou numa cadeira e inclinou -se para mim com um olhar intencional. - Aposto que o terapeuta vai querer que integres o G.

Cruzes, Ernie, que raio quer dizer isso?!

Pegou numa das mangas que Ana tinha trazido e apertou-a.

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Não sei muito bem, mas o Darth Vader estava sempre a falar em integração... Acho que é uma maneira de aceitarmos até mesmo as coisas mais estranhas da nossa personalidade.

Quando Ernie andava na escola secundária, alcunhou o seu psiquiatra de Darth Vader por causa da sua voz grave e por não ter absolutamente nenhum sentido de humor.

Ouve - disse ele, como se eu estivesse a mostrar-me desnecessariamente difícil -, só tens de explicar ao terapeuta o que queres e o que não queres.

Posso fazer isso?

É isso que tens de fazer, grande parvo!

Enquanto tentava perceber se ele estava a dizer-me a verdade, Luci telefonou.

Desculpe, chefe - disse ela -, a pen do Coutinho não está no sítio que o senhor me indicou.

Não está no meu processo do assalto no Estoril?

Não. Tirei tudo para fora para ter a certeza. E também dei uma vista de olhos a todos os outros casos pendentes.

Merda! - Atirei os cobertores para o lado.

Quem a poderia ter levado? - perguntou Luci.

Algum dos nossos queridos colegas - repliquei, furioso.

O roubo de elementos de prova custaria o despedimento a um agente, não é verdade? - perguntou ela.

Era o que pensava... pelo menos até há pouco tempo - disse eu.

Este caso fê-lo mudar de ideias?

Se o agente estiver bem relacionado ou for importante para alguém do governo… - Deixei no ar o resto da informação.

Mesmo assim, teria de ser um agente disposto a correr o risco de uma investigação interna... Talvez alguém que quisesse apagar a pista de algum suborno que tivesse recebido do Coutinho. Ou o de algum amigo seu. Ou acha que a minha ideia é maluca, chefe?

Não, não é maluca. Mas acontece que possivelmente um agente poderia continuar a levar uma bela vida depois de uma acusação de corrupção, mas ficaria com a carreira definitivamente arruinada se fosse acusado de estupro.

Não estou a compreender, chefe.

Estou convencido de que deve haver fotografias comprometedoras na peno Ou, para ser mais preciso, julgo que quem a tirou dos meus

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ficheiros andava muito preocupado por pensar que era isso que lá poderia haver.

Que tipo de fotografias comprometedoras?

Do Coutinho com rapariguinhas menores. E com amigos. Maria Dias deu-me a entender que ele se vinha a olhar para o espelho durante as relações sexuais. E descobriu uma fotografia comprometedora do Coutinho, quando ele ainda estava casado com a mãe dela. Tenho a impressão de que dava muito uso à máquina fotográfica.

Quer dizer que há um colega nosso a querer proteger a reputação do Coutinho?

O mais provável é que esteja a proteger a reputação de alguém ainda vivo… alguém que teria de fugir à pressa do país se as fotografias fossem tornadas públicas.

Mas o senhor só encontrou fotografias de férias na pen e uma lista de possíveis subornos. Deve ter-me escapado algum ficheiro escondido. Devia ter posto o Joaquim a procurá-lo. Mas, como disse, pode ser que quem mandou roubar a pen não soubesse ao certo o que lá havia e tenha querido jogar à cautela.

Então e agora o que fazemos, chefe?

Não respondi. Estava a pensar no que Sottomayor me dissera sobre as transferências que Coutinho fazia a partir da conta da mulher. Por isso, parecia-me também possível que ele tivesse enviado e-mails sobre as suas escapadelas sexuais a partir do computador dela - e muito possivelmente com algumas fotografias comprometedoras anexadas. A pessoa que os recebera poderia também figurar nelas - e ter sido avisada por Coutinho do sítio onde poderia encontrar a pen em caso de emergência.

Disse a Luci que precisava de falar com Susana Coutinho e que depois voltava a ligar-lhe. Ao nono toque, Morel atendeu o telefone. Perguntou de imediato como estava de saúde, o que me deixou sensibilizado, mas, sob tudo o que disse acerca da minha estadia no hospital, jazia o pesado terror de saber que não poderia continuar a adiar o momento em que lhe diria que Sandi andava a ser abusada pelo próprio pai.

Algum dos meus colegas ligou para si para lhe falar nas provas que encontrámos sobre a Sandi e o pai?

Não, tudo o que nos dizem é que o senhor apanha um tiro.

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Quando lhe contei, Morel disse numa voz indignada que Coutinho nunca faria mal à filha - e que não era nada ético da minha parte difamar um pai tão bom e carinhoso depois da sua morte.

Oiça lá - retorqui -, os nossos técnicos de laboratório fizeram o teste duas vezes para se certificarem de que o sangue que a Sandi tinha debaixo das unhas era mesmo do pai. Não há engano. O que significa que a Sandi tentou libertar-se dele quando estava em sua casa e não

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conseguiu. O Coutinho violou a filha em sua casa! E o que aconteceu lá explica também o que ela fez a seguir à Páscoa... A razão por que cortou o cabelo daquela maneira, por que deixou de comer... Explica até porque é que o Coutinho estava tão empenhado em não se separar de Susana.

Se isso é verdade, então ela...

É verdade! - interrompi. - E a Sandi não conseguia viver com o que tinha acontecido.

Decidi não lhe dizer que Sandi estava grávida. O choque que isso implicaria poderia pô-lo contra mim, pensei. Ou talvez não estivesse simplesmente disposto a destruir o pouco que restava da vida que ele e Susana tinham tentado construir. Quando lhe perguntei se lhe ia dizer alguma coisa sobre Sandi andar a ser molestada, respondeu:

Tenho de o fazer. Mesmo que não sei se ela compreende o que estou a dizer. - Explicou que Susana estava a tomar doses muitíssimo fortes de tranquilizantes.

Acha que ela poderá falar comigo por uns instantes? - perguntei. Tenho um assunto menos perturbador que preciso de tratar com ela.

Ela não diz coisa com coisa – replicou num tom sombrio.

Muito Dem, diga-me só se ela tem um computador.

Não, odeia computadores.

Mas tem qualquer outro tipo de dispositivo para enviar e-mails?

Ou que outra pessoa pudesse usar para guardar ficheiros sem ela saber?

Que quer dizer com «dispositivo»?

Um iPad, por exemplo.

Não, não tem nada dessas coisas.

Custa-me crer que ela nunca use um computador.

Usa o portátil da Sandi quando precisa de um.

O portátil dela?

Exatamente.

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Depois de desligar, pedi a Ernie que me ajudasse a sentar-me, mas, assim que me pegou na perna para a passar por cima do lençol, contorci - me de dor.

Acho que é melhor ficares deitado - disse o meu irmão.

Raios parta, Ernie, ajuda-me só a fazer o que preciso de fazer!

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Assim que me vi sentado na beira da cama, liguei a Luci e pedi-lhe para ir rapidamente à sala das provas dos nossos técnicos informáticos.

Boas notícias - disse-me quando me ligou de volta. - O Joaquim tem o computador da Sandi.

Passou o telefone ao técnico.

Oiça, Monroe, desculpe, mas ainda não tive nenhuma hipótese de dar uma vista de olhos aos ficheiros da miúda. Como você está fora de jogo, não me parecia haver grande pressa nisso. A boa notícia é que já acabei de ver o computador do pai dela. Mas não encontrei lá nada que tivesse a ver com subornos.

Tem aí consigo o portátil da miúda?

Está aqui à minha frente.

Ligue-o. Primeiro queria que procurasse um ficheiro com fotografias. Provavelmente está bem escondido. É capaz até de ser preciso uma password para o abrir.

Que tipo de fotografias devo procurar? - perguntou ele.

De homens feitos com rapariguinhas menores.

Que estão eles a fazer nas fotografias? - quis saber, num tom desconfiado.

Tudo o que não quereria que fizessem.

O Monroe acha mesmo que uma miúda de catorze anos ia guardar fotografias pornográficas no computador?

Estou convencido de que foi o pai que as escondeu lá. O sítio mais seguro do mundo. Nunca ninguém iria procurar no computador dela. Ninguém iria sequer suspeitar... nem mesmo a Sandi.

Posso demorar um bocado a localizá-las.

Joaquim, tem de encontrar isso agora mesmo. Comigo fora de jogo, a merda deste caso vai acabar tão enterrado que nunca mais volta ao de cima.

Vou fazer o que puder, mas... oh, chiça!

Algum problema?

366

Só um segundo... - Passado talvez um minuto, Joaquim voltou ao telefone. - Temos aqui um problema, Monroe. Tenho de lhe pedir que aguente aí mais um bocado.

Enquanto contava os segundos, ouvi Joaquim soltar uma enfiada de palavrões.

Estamos tramados! - exclamou, quando voltou a pegar no telefone. - O disco duro deve ter crachado!

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Agora?

Não. Foi alguém que o bloqueou de propósito depois de o terem trazido para aqui.

Tem a certeza de que não tinha sido já apagado quando lhe chegou às mãos?

Absoluta. Abri-o para lhe dar uma vista de olhos rápida. E agora desapareceu tudo.

É fácil crachar um disco duro?

Monroe, não há nada que não seja fácil de fazer com um computador quando se sabe como! Tem a certeza absoluta de que todos os ficheiros desapareceram?

É isso que estou a ver. Não deixaram nada. Quem fez isto deixou-nos bem fodidos, Monroe. Onde é que guardou o computador?

No meu gabinete.

Fechado à chave?

Não, naquele armário que lá tenho... o senhor já o viu.

Joaquim, mande ver se o computador tem impressões digitais... até à última tecla. E depois ligue-me a dizer os resultados.

Os meus filhos e Ana chegaram daí a alguns minutos. Jorge saltou para cima de mim e mostrou-me o desenho que tinha feito com uma figura esguia com membros desengonçados e uns riscos em vez de olhos (eu) dentro de um quadrado amarelo gigantesco (o hospital), com pterodáctilos cor-de-rosa de guarda ao telhado (gaivotas). Enchi-o de beijos e elogios e esforcei-me em vão por deixar de pensar no portátil de Sandi. Seguidamente, Jorge e Nati montaram a mesa desdobrável com um tampo de feltro verde que os meus sogros lhes haviam emprestado. Ernie foi buscar mais cadeiras. Depois de se sentarem, os rapazes começaram o puzzle que tinham trazido com a ilha de Manhattan vista do espaço.

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Enquanto os observava, pensei: «É esta a razão por que sobrevivi, é isto que conta na minha vida, é disto que me hei de lembrar quando for velho.» E no entanto toda a manhã me vi perseguido por pensamentos desesperançados. Cerca do meio-dia, Joaquim telefonou-me para me dizer que as únicas impressões digitais que tinha descoberto eram as de Sandi e dos pais. A posição das impressões deixadas por Coutinho mostrava que andara com o portátil da filha em mais do que uma ocasião.

Tenho mesmo muita pena, Monroe - disse ele. - Lixei tudo, não foi?

Não é culpa sua. A pessoa que nos quer impedir de descobrir as fotografias deve ter dado ordens ao seu cúmplice na polícia para dar cabo de qualquer cadeado que o senhor usasse.

Fonseca, Sudoku e Quintela foram visitar-me nesse fim de tarde. Ernie e Ana decidiram dar uma volta com os miúdos para eles poderem falar comigo à vontade. Acabámos na risota a troçar dos políticos que tínhamos.

Page 312: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

Os meus colegas concentravam toda a ferocidade trocista no ministro-adjunto; acabara de se saber que tinha conseguido uma licenciatura em Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade Lusófona num único ano, em vez dos três normais. Fizera apenas quatro das trinta e seis cadeiras. Os administradores da universidade - alguns deles amigos e colegas do seu partido político - deram-lhe equivalência a trinta e duas cadeiras através da «atribuição de créditos a experiência profissional». Ao todo, pagara 1777 euros pela inscrição e propinas, uma pequena fração do que um estudante pagaria para frequentar todas as cadeiras normalmente exigidas.

Acabámos a fazer uma lista da «experiência profissional» e das tais equivalências: Por ter comido comida chinesa nas duas vezes que foi ao Restaurante Mandarim no Casino Estoril, tinha recebido os créditos necessários para a cadeira de História e Cultura Asiáticas. Por conduzir o BMW descapotável quando ia para o emprego na Assembleia da República, passara em História Alemã Contemporânea. Por ver o DVD de Avatar com os sobrinhos...

Retirando-me da brincadeira por uns momentos, apercebi-me de que teria preferido um minuto de silêncio - partilhado por toda a gente em Portugal - como forma de protesto contra o género de corrupção e de tráfico de influências que o levara ao poder. Ou um desfile com velas acesas pela Avenida da Liberdade, uma cerimónia fúnebre pela pequena

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mas esperançosa democracia em que pensávamos que Portugal se tornaria um dia.

Ao mesmo tempo, apercebi-me de que o nosso sistema de filtragem estava gravemente avariado: em vez de rejeitar as pessoas mais corruptas, o aparelho político permitia -lhes subir até ao topo.

Pouco antes de os meus colegas saírem, pedi -lhes que estivessem atentos a Luci e que me dissessem alguma coisa se ela tivesse algum problema com Romão. Depois de ficar novamente sozinho, pus-me a cogitar se a pessoa que ordenara o atentado contra mim seria um destes oportunistas inescrupulosos e provincianos em fatos chiques que agora governam o nosso país. E se viveria tão alto que nunca conseguiria chegar a ele.

Ao fim do dia, depois de a minha família ter voltado para casa, vi surgir no umbral da porta um visitante inesperado. Terminara já a hora de visita, eram quase nove, mas disse-me que tinha conseguido passar pelos «cães de guarda» na receção porque era amigo do chefe do departamento de cirurgia, que conhecia através do antigo presidente da Câmara de Lisboa, e que muitas vezes jogava golfe com ele no...

Sottomayor mostrara-se, na ocasião, espantoso a referir nomes de personalidades conhecidas, mas não me importava. Parecia-me mais um dos seus floreados aristocráticos - o equivalente verbal ao lenço de caxemira vermelha e amarela que usava de modo tão elegante em volta do pescoço.

Tinha-me trazido um sortido de trufas da Godiva do tamanho de uma caixa de Monopólio. Pensei que deveria ter o poder de ler a mente até me confessar que levava sempre chocolates aos amigos hospitalizados.

Page 313: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

Temos de garantir uma dose extra de açúcar e de gorduras quando nos sentimos vulneráveis explicou, num argumento de tal modo oposto ao conselho que Ana e Ernie me tinham dado que me provocou uma boa gargalhada.

Depois de abrir a caixa, inclinou-a para me exibir a categoria da escolha.

Tire uma - incitei-o.

Terei eu a coragem? - perguntou, levantando as sobrancelhas com um ar malandro.

Animei-o com um aceno da cabeça, e ele enfiou uma trufa na boca.

Mastigou -a com movimentos laterais, como uma ovelha. Fingindo um desmaio, disse:

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Tive sorte, sabia a whisky!

Pousou a caixa em cima da mesinha de cabeceira e sentou-se na cadeira junto à cama. Coçou o queixo e encolheu os ombros como que sem saber o que fazer, e por isso disse-lhe que os hospitais eram uma chatice e que não se sentisse obrigado a ficar. Para minha surpresa, apontou-me um dedo e disse num tom preocupado:

Insisto absolutamente em que o senhor tenha mais cuidado consigo! Pregou-nos a todos um grande susto.

Era reconfortante vê-lo preocupado comigo, embora não acreditasse inteiramente nas suas palavras. Era como se ambos tivéssemos concordado em participar numa pequena farsa inofensiva, destinada a levar-nos a crer que o mundo continuava a dar algum valor à consideração e às boas maneiras. Um homem que vivia no castelo estava a mostrar-se gentil para com a plebe. Ninguém poderia culpá-lo por tal ato de generalidade, nem sequer eu.

Vou fazer o que puder para ficar longe das balas a partir de agora disse eu.

Não quero que vá para as ilhas Caimão ou para qualquer outro sítio longe de sua casa. Retiro a minha oferta para lhe pagar o avião.

Fica devidamente registado.

Quanto tempo vai ficar de baixa?

Uns meses. Vou precisar de fazer fisioterapia depois de sair daqui... Disseram-me que posso ficar a coxear durante um bom bocado, talvez para sempre. Os músculos foram atingidos, e o osso do tornozelo pode nunca mais voltar a ser o que era.

Fez uma careta.

Dá-me a impressão de que, nestes últimos tempos, há um ambiente de violência predatória nas ruas de Lisboa - declarou. - Tem passado no Rossio à noite ultimamente? Os rapazes que andam por ali têm ar de quem é capaz de nos cortar a garganta por cinquenta cêntimos.

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Disse-lhe que as estatísticas mais recentes mostravam que o nosso índice de mortes violentas descera em relação ao ano anterior, e que provavelmente ele estava a reagir à obsessão dos media com crimes violentos, mas ele rejeitou com um gesto da mão os números que recitava e disse:

Tenho uma coisa mais importante para lhe dizer. De facto, é essa a razão da minha visita.

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Recostando-se e cruzando as pernas, falou-me numa operação que fizera a um cancro da pele em Zurique sete anos antes. Ao recuperar consciência, passara os olhos pelas dezasseis jarras de rosas e crisântemos que o rodeavam no quarto.

O meu filho mais velho, muito impressionável, tinha-as contado.

Compreendi que estava encurralado numa vida que detestava. No dia em que me deram alta do hospital, disse à minha mulher que queria o divórcio e mudei-me para o meu escritório. Estávamos casados há vinte e oito anos, Sr. inspetor-chefe. E, embora ache que estes últimos sete anos sem ela têm sido os mais felizes da minha vida, compreendo agora que não precisava de me dar ao trabalho de me separar.

Fixou-me de uma maneira que me levava a crer que estava à espera de que lhe perguntasse porquê, o que fiz. Para minha surpresa, achei agradável e reconfortante fazer o que ele queria como receber um bom papel numa peça engraçada.

Não precisava de me dar a esse trabalho porque a querida da minha esposa tinha-se desapaixonado há anos - explicou-me num tom divertido - e estava-se nas tintas para os meus casos. Mas as pessoas podem ser animais perversos, e, por isso, quando pedi o divórcio, ela jurou-me que haveria de dar cabo da minha vida. Acabou por me levar um bom bocado mais do que aquilo a que tinha direito. E disse a todos os nossos amigos que eu abusara dela emocionalmente. Nem sequer sabia ao certo o que ela queria dizer com aquilo, mas eles sabiam. Muitos nunca mais voltaram a falar-me e, ainda por cima, tive de ouvir os insuportáveis sermões dos meus dois filhos, lamentavelmente moralistas. Ainda assim, as mentiras ficaram-lhe caras – acrescentou, franzindo os lábios e sorrindo, maliciosos, como se se julgasse capaz de se safar de uma acusação de crueldade premeditada.- Arrastei-a pelos tribunais durante quase quatro anos. Acabou por passar um inferno!

A minha expressão deve ter-me denunciado. Apontando-me a bengala, Sottomayor disse:

Pela maneira como ela me descreveu ao juiz, parecia o coronel Gaddafi! Uma vergonha! - Baixando a bengala, inspirou fundo para se acalmar e prosseguiu numa voz contrita: - Mas tem toda a razão, podia ter agido de maneira mais nobre. Seja como for, o que lhe queria dizer é o seguinte: não tome grandes decisões antes de estar fora do hospital pelo menos há dois meses. Dê-se tempo. Relaxe. Esqueça os problemas importantes da vida. Não se preocupe com quem ganha e com quem

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perde neste triste pequeno país que é o nosso. Andam obviamente por aí homens muito perigosos e violentos que não se importam de atingir bons polícias como o senhor. Por isso, aproveite a companhia dos seus filhos. Vá até à Madeira e trabalhe para o bronze. Deixe os seus colegas tratarem dos maus.

Vou fazer por isso.

Assim é que é.

Antes de sair, deu-me uma palmadinha no ombro como se fôssemos combatentes do mesmo pelotão e rematou:

Enquanto o seu pirilau continuar a funcionar, não tem com o que se preocupar.

Parecia uma espécie de comentário paternal. Ou talvez assim eu o quisesse entender.

O meu pirilau está em forma – retorqui, permitindo-me um sorriso - , mas talvez seja a única parte nessas condições.

Ele levantou o braço e fechou o punho à maneira portuguesa para indicar uma ereção e disse: Se for capaz de o fazer feliz a si e à sua mulher duas ou três vezes por semana, o resto não é mais do que a cobertura do bolo.

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Capítulo 31

Na manhã seguinte, uma sexta-feira, acordei com o cobertor no chão e um gosto a chocolate na boca. Eram seis horas e poucos minutos.

Esbracejando para encontrar uma posição que aliviasse a tortura da perna, descobri que Ernie já tinha chegado. Estava sentado numa das duas cadeiras do quarto, um livro aberto em cima dos joelhos.

Quando raio chegaste? - perguntei.

Há bocadinho. Não conseguia dormir. - Levantou-se e veio para junto de mim, poisando-me a mão na cabeça. - Como estão as dores?

Talvez um pouco melhor - respondi.

Pensei que ias deixar de mentir.

À Ana. A ti, posso dizer o que me vem à cabeça.

Ernie tapou-me com o cobertor e estendeu-se a meu lado.

Se isso te faz bem, podes ser o mais chato que quiseres - respondeu, sorrindo como sempre faz quando tem a certeza de estar a ser adorável.

Até podes berrar comigo e chamar-me nomes. Não me importo.

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É uma proposta generosa, Ernie, e talvez venha a aproveitá-la mais tarde. Mas não tinhas de voltar para o teu jardim? As rosas e as azáleas devem estar preocupadas contigo.

Queria que se fosse embora, para poder finalmente chorar; a lenta e regular acumulação de sofrimento físico - e a frustração por algumas das provas mais importantes se terem esfumado estava simplesmente a pesar-me de mais.

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A Luísa tem regado tudo - disse ele. - Não te tinha falado nisso? Luísa era uma vizinha, uma professora reformada.

Ernie, não digas à Ana, mas as dores pioraram. E estar aqui enfiado dá cabo de mim.

Espera aí, que eu volto já! - declarou, e saiu a correr.

Daí a vinte minutos, apareceu com o médico responsável pela minha recuperação. O Dr. Amorim não fizera a barba nessa manhã e tinha ainda papadas debaixo dos olhos.

Uma noitada? - perguntei.

Jantar em casa da minha sobrinha. Vai casar-se. Sete pratos, e ainda não digeri o pudim flã. Então qual é o problema, Sr. inspetor chefe?

Depois de ter explicado, disse-me que as dores eram normais dadas as circunstâncias, mas receitou-me um medicamento mais forte. Daí a instantes, uma enfermeira trouxe-me os comprimidos, e, passados uns quarenta minutos, saí do corpo sem esforço e flutuei para fora de uma janela imaginária por trás de mim. O vento tépido volteando em meu redor ajudou-me a subir o bastante para ter uma vista espantosa sobre uma cidade de telhados de telha vermelha e jardins ocultos, que me parecia muito mais real e bonita do que aquela onde eu normalmente vivia.

«Algures dentro de nós, estamos sempre a flutuar,» Foi a conclusão a que cheguei enquanto vogava acima da Torre de Belém. «E, se estamos sempre a flutuar, talvez outras coisas até menos prováveis sejam também possíveis.»

Nesse fim de tarde, quando contei à minha mulher e aos meus filhos o que tinha descoberto, eles riram-se; mantive em segredo que estava a falar absolutamente a sério, apesar de ter decidido que, mais tarde, quando estivesse em casa, partilharia a verdade com eles, como parte da celebração da convalescença.

Ernie chegou na manhã seguinte, novamente ao princípio do dia, desta vez com Jorge ao colo, vestindo o seu pijama do Piu-Piu. Acordou-me ao entrar.

O Dingo obrigou-me a prometer-lhe que o trazia comigo - murmurou.

Colocou cautelosamente o miúdo na minha cadeira, tirou o cobertor azul, o seu favorito, de dentro de um saco de viagem que tinha

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trazido e aconchegou-o, deixando-o com o aspeto de uma múmia egípcia.

Quando Rosie pôs a cabeça fora do saco, sobressaltei-me. Como ela se preparava para ladrar, apontei-lhe um dedo ameaçador.

Nem penses! - exclamei.

Não podes trazer um cão para aqui! - disse num grito abafado ao meu irmão, embora ficasse encantado por fazer parte de uma conspiração envolvendo um cãozito, um miúdo de sete anos e um cowboy. O caos orquestrado de Ernie era como estar de novo em casa.

Claro que posso - retorquiu o meu irmão, tirando Rosie do saco.

Portugal. - disse ele, abrindo os braços como se para abraçar o país inteiro - é o país onde as regras não passam de sugestões!

A cadelita torcia-se toda e gania, tão excitada que a cauda batia no braço de Ernie.

Que é isso aí? - perguntou o homem que agora partilhava o quarto comigo, por detrás da cortina que separava as camas.

Tinha-se apresentando na noite anterior. Chamava-se Duarte e era canalizador.

Desculpe - respondi. - O meu filho mais novo e o meu irmão vieram ver-me.

Um deles parece um cão - comentou.

Deve ser o meu filho. É arraçado de caniche.

Os portugueses, em geral, não compreendem o meu tipo de humor, mas Duarte riu-se a valer, o que me encorajou. E de um momento para o outro senti-me com disposição para galhofa. Apercebendo-se disso, Ernie agarrou as patas dianteiras de Rosie e pô-la de pé em cima da cama como um cão de circo. Ela dançou, esforçando-se por me beijar. Eu esquivava-me ao mesmo tempo que imitava Frank Sinatra entoando I've Got You Under My Skin.

Jorge esgueirou-se para fora do cobertor, pôs-se de pé e veio meio sonolento até junto de mim, inclinando-se para me dar um beijo. Cheirava a sono e a couro antigo.

Andas outra vez a levar para a cama a tua bola de futebol? - perguntei.

Confirmou com um aceno de cabeça e deitou os braços à minha volta. Ernie soltou Rosie, e ela desatou a lamber-nos como se não nos víssemos há anos, o que provocou as risadinhas de Jorge e o fez tapar os olhos com as mãos, por não gostar que Rosie o beijasse aí.

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Daí a pouco, enquanto Ernie, Jorge e Nati andavam a passear Rosie no Jardim da Estrela, Luci chegou. Ana estava sentada a meu lado. Depois das apresentações, Luci lançou-nos um sorriso tímido e estendeu-me uma pequena caixa branca.

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Doces de... de amêndoa - disse hesitante, talvez receando que a minha mulher pudesse não ver com bons olhos um gesto de amizade vindo de uma colega jovem e bonita. Levei imediatamente à boca um dos doces, dizendo-lhe que era delicioso.

E não têm colesterol - comentou Luci.

Acha que estou gordo? - brinquei.

Em vez de lhe amenizar as preocupações, o meu comentário deixou-a sobressaltada.

Oh, não não era isso que queria dizer. Estava só a…

Luci, está tudo bem – interrompeu Ana. – Está a parecer-me que vai ter de aprender a não prestar muita atenção ao chamado sentido de humor do meu marido. - Mandou-me um beijo na ponta dos dedos e acrescentou: - O Hank às vezes pode ser demasiado encantador, não sei se me entende.

Graças às críticas enternecidas que me fez nesse dia, a minha mulher conseguiu conquistar a amizade de Luci. Depois de Ana ter saído para ir tomar um café, a minha jovem colega puxou uma cadeira para junto da cama. Quando eu quis saber como estava a avançar o caso Coutinho, ela confirmou que Romão não fizera nada desde que eu fora ferido.

O desespero que me abalou parecia associado às permanentes dúvidas que me assaltavam quanto à plena recuperação da minha perna e do ombro. Só me apercebi da esperança que existia dentro de mim no momento em que ela desapareceu.

Sentindo que a conversa estava agora nas suas mãos, Luci apontou para o livro em cima da mesinha, Deaf People in Hitler's Europe:

Se calhar era melhor ler alguma coisa menos deprimente - disse ela.

Não o acho de modo nenhum deprimente - assegurei.

Não?

Luci, sabia que os nazis começaram a esterilizar os surdos em 1933, logo a seguir à eleição de Hitler? E que era proibido aos cristãos surdos usarem linguagem gestual em público com os amigos que fossem judeus?

Não, não sabia. E o senhor gosta de ler livros que o deixam enervado e furioso, chefe?

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A raiva é uma emoção pouco valorizada, Luci. Mas tem - me sido muito útil em diversas ocasiões. - Devia ter acrescentado: «E pressinto que, para impedir que este caso seja encerrado para sempre, vou precisar de toda a raiva que conseguir.»

Eu, de todas as vezes em que precisei da raiva, tive a sensação de não ter que chegasse confidenciou - me Luci. Lembrei-me de toda a profundidade que existia escondida nela. E da sua vontade de que me apercebesse disso.

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Uma hora mais tarde, enquanto dormitava para esquecer as minhas preocupações, um sujeito encorpado bateu à porta do quarto. Vestia um fato cinzento enorme e amarrotado, com uma gravata de um azul escuríssimo - perfeito para o dono da agência funerária de uma vilória numa série de televisão americana. Ana regressara um pouco antes. O homem apresentou-se como sendo Lourenço Pires e disse-nos que era da repartição de Recursos Humanos da Polícia Judiciária. Tinha os sobrolhos pesadamente transpirados e a respiração ofegante de um homem a avançar rumo a um ataque cardíaco.

Sentou-se a meu lado e lançou-se numa palavrosa explicação acerca da política oficial da polícia em relação aos agentes feridos no cumprimento de serviço. Durante todo esse tempo ia batendo com uma esferográfica no joelho. Tendo em conta os cortes de ordenado dos dois anos anteriores, interpretei aquilo como um sinal ameaçador.

Fui despedido? - interrompi.

Não, claro que não.

Quer dizer que vou continuar a receber o meu ordenado enquanto estiver de baixa?-perguntei O limite são dez anos. E, mesmo depois disso, se tiver uma recaída de saúde, pode vir a receber novo subsídio.

Então, quais são as más notícias que me traz?

Não há más notícias - garantiu ele. - Vai receber a assistência a que tem direito.

Prosseguiu as explicações, e tudo me parecia razoável, mas, mal ele saiu, Ana disse que apostava cinquenta euros em como ia receber pelo correio uma carta - limitando as minhas regalias - dentro de um mês.

Aceitei o desafio e trocámos um aperto de mão a selar a aposta.

Dava um título bastante mau: «Polícia atingido com dois tiros em serviço perde os seus direitos» - declarei. - Não iam correr esse risco.

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Hank, por onde tens andado? Já ninguém no governo liga patavina à má publicidade. Já estão habituados! Limitam-se a fazer contas de somar e, se a soma se tornar elevada de mais, começam a apagar coisas, incluindo pessoas como tu e eu. - Lançou-me um olhar duro. -Preferia que me pagasses os cinquenta euros em dinheiro, se não te importares!

A minha última visita do dia foi o inspetor-chefe Romão. Chegou ao fim da tarde com um boião de mel de eucalipto. Entregou-mo numa pose rígida, a cabeça levantada, como se usasse uma coroa invisível. Quando passámos aos assuntos sérios, expliquei -lhe que acreditava que quem tinha mandado alvejar-me pretendia afastar-me da investigação. Fiz tudo por purgar a voz de qualquer emoção, pois o modo como Romão recuou a cadeira era a sua maneira de me lembrar de que se sentia pouco à vontade com quaisquer demonstrações de fraqueza. Ainda a minha explicação não durara cinco minutos e já ele lançava olhadelas ao relógio de pulso, o que me enervou bastante. Só Deus sabe se terei usado o conjuntivo corretamente uma única

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vez. Romão disse-me - como eu esperava - que nos registos bancários de Trigueiro não havia indícios de quaisquer pagamentos que pudesse ter recebido para me atacar. Os registos de chamadas telefónicas também não haviam revelado nada de suspeito. E não tinha nenhuma pista sobre a pessoa que assaltara a casa de Coutinho.

As coisas não estão muito boas para nós - concluiu.

«Nós?» A sua linguagem corporal e os seus modos diziam-me que os meus ferimentos não lhe importavam minimamente. Compreendendo que Romão estava já convencido de que nunca iríamos descobrir nada sobre quem ordenara o ataque, mudei de assunto para a urbanização ilegal de Coutinho no estuário do Sado. Antes de sair, apertou-me a mão com vigor, como que para me instilar confiança. Para manter viva a farsa, assegurei-o de que lhe enviaria um sumário das minhas notas nos próximos dias.

Um minuto ou dois depois de ele ter saído apressadamente do quarto, surpreendi-me a pensar em português acerca do dilema em que me via. Usar todos aqueles adjetivos de muitas sílabas que me soavam estranhos aos ouvidos - desorientado, transtornado desapontado - parecia-me uma forma de automedicação, pois pensá-los numa língua estrangeira como que separava esses sentimentos de mim e, por isso mesmo,

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Dava-lhes menos poder. No entanto, tomei uma dose reforçada de analgésicos e daí a meia hora. Enquanto Ana me acariciava a cabeça e me falava num médico brasileiro e na mulher que tinham comprado quatro jarras das mais caras na galeria, flutuei para fora da janela imaginária na minha cabeça. Levei Ana comigo, mas não tardou que o sentido do que ela me dizia se perdesse por completo.

Às duas da manhã, acordei com o som do gelo a estalar sob os passos de alguém. O meu coração desatou a bater desabalado, como que correndo em direção ao ponto de exclamação sempre à minha espera na orla dos receios. Acendi a luz, mas não estava ali ninguém.

Voltando a estender-me, um sentimento de segurança, perfeito, quieto e silencioso - de estar mais seguro do que alguma vez estivera -, inundou-me como um líquido morno. A minha vida era real. E a voz suave de duas mulheres que conversavam no corredor era a maneira de a noite me dizer que tudo estava bem.

Calmo é o riacho que

tanto ama as margens como as terras

aonde nunca chegará.

Escrevi o haiku na mão enquanto me erguia - sem esforço - na minha própria alegria. Não captava exatamente o que eu sentia, mas andava lá perto.

Vivi sentimentos de êxtase tranquilo intermitentemente durante os dias que se seguiram, a maior parte das vezes a meio da noite, habitando as suaves ilhas de ruído no recife quente à minha volta. Nessa duas noites extraordinárias, compreendi claramente que a perda era a voz

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que o passado sempre usara para atrair a minha atenção. Mas via agora que era capaz de mudar a maneira como ele falava comigo.

Na terceira tarde, Ana sentou-se na minha cama e falou-me num dançarino transexual que tinha entrevistado por telefone nessa manhã. Ouvi-la falar da história do ballet e de outras coisas de que eu não sabia nada era como ser salvo de um naufrágio. Foi assim que ao longo da minha vida fui compreendendo que preferia ouvir a falar.

Quando finalmente se calou, disse-lhe: «Ter-te conhecido foi a coisa mais excitante que alguma vez me aconteceu», porque não podia

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deixar que passasse mais tempo sem lhe dizer uma das coisas que a alegria inesperada me tinha ensinado.

Ela abraçou-me e beijou-me as mãos, aspirando-as com os olhos fechados, como se isso lhe recordasse momentos há muito passados, o que provava mais uma vez que podia confiar que ela faria o que era preciso fazer, mesmo quando eu não tinha a mínima ideia de que seria.

No dia seguinte - quarta-feira, 18 de julho, nove dias depois da minha operação -, fui transferido para um quarto particular com janela. A vista era modesta: uns prédios de apartamentos caídos em desgraça e um café desmazelado. Mas que emoção ver o céu! Estava ansioso por dar uma olhadela a todas aquelas vidas de desconhecidos, como Jimmy Stewart em Janela Indiscreta, mas os moradores mantinham os estores rigorosamente fechados.

Os sacanas daqueles egoístas nunca os abrem! - queixei-me a Ana nessa tarde.

Trezentos anos de bufos ao serviço da Inquisição e da ditadura devem ter tornado os portugueses um nadinha cautelosos - fez- me ela notar.

Ana estava a descascar uma manga e tinha-me posto um pedaço na boca.

Onde estaremos daqui a vinte anos? - perguntou.

Se os miúdos viverem em Portugal, nós também aqui ficaremos.

E se já tiverem emigrado? - perguntou ela com um ar triste. - Não gosto nada de não ser capaz de prever o futuro. - Encostou-se a mim.

A incerteza não se dá bem comigo.

Percebi nesse momento que lhe custara muito mostrar-se tão forte desde que eu fora ferido. Massajei-lhe os ombros, como ela gostava, e não tardou a fechar os olhos. Num sussurro disse-lhe que podia passar pelas brasas, e em breve adormeceu.

Para festejar poder ver o mundo exterior, decidi não tomar analgésicos. Foi numa das ocasiões em que me debatia contra o atroz latejar na perna que me surgiu o primeiro pensamento útil sobre o caso Coutinho em dias: a mãe de Maria Dias poderia não ter queimado a fotografia

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comprometedora do marido com as rapariguinhas. Era possível até que a tivesse usado para o ameaçar, a fim de se assegurar de que ele

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nunca mais abusaria da filha ou de mais alguém. Era, pelo menos, o que eu teria feito.

Calculei que um dos homens na fotografia pudesse ter continuado amigo de Coutinho estes anos todos - e ter encomendado o ataque à minha pessoa. Mas, mesmo que assim não fosse, obter a fotografia incriminadora possibilitar-me-ia identificar alguns homens que deviam estar fechados algures onde não pudessem deitar mão a meninas menores de idade.

A Sr.ª Dias mostrou-se surpreendida por ouvir alguém falar-lhe em português ao telefone, mas, depois de me ter identificado, disse-me que Monsieur Morel descobrira o seu número e lhe ligara uns dias antes. Quando lhe expliquei que tinha interrogado a filha uma semana antes, ela gaguejou:

Mas... eu... eu pensava que me tinha dito que estava em Lisboa...

E estou.

A minha filha não esteve em Lisboa neste verão, Sr. inspetor.

Não se preocupe, minha senhora - disse eu. - Não quero prendê-la. De qualquer modo, agora que Maria está em França, não corre perigo.

Estou a dizer-lhe a verdade, a minha filha saiu de Lisboa quando começaram as férias de verão e não saiu de Paris.

O que posso dizer-lhe para a convencer de que não tenciono prendê-la? Agora já compreendi que há questões muito mais sérias em jogo.

Oiça, passei um fim de semana com ela em Paris há três semanas.

Mas eu estive há pouco tempo no apartamento dela em Lisboa.

Estive a interroga-la sobre o assassinato o seu ex-marido.

A única coisa que me ocorre é que o senhor deve ter interrogado outra mulher.

A senhora é a mãe de Maria Dias? - perguntei.

Sou.

E foi casada com Pedro Coutinho?

Fui.

E tem um filho chamado Pierre?

Não quero falar de Pierre consigo! - cortou ela. - Em caso algum!

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Não queria criar nenhuma dificuldade, minha senhora, e não faço ideia do que a sua filha lhe disse quando esteve consigo.

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Pode ser que até a tenha convencido de que passou o verão todo em Paris. Mas preciso de saber uma coisa muito importante. Ainda tem a fotografia que ela encontrou do seu marido com...

Oiça, não lhe vou dizer nem mais uma palavra sobre a minha filha - interrompeu ela, com uma tão incontestável e impaciente certeza que percebi que não tinha a menor hipótese de a fazer mudar de ideias.

Ao fim do dia, passei para o computador portátil as minhas notas e transferi-as - juntamente com todos os ficheiros das férias de Coutinho - para uma peno Ana concordou em entregá-las na sede da Judiciária.

Na manhã seguinte, quando liguei para o Liceu Francês, o vice- diretor foi buscar a ficha de Maria Dias. Surpreendeu-me ao informar-me de que ela tinha começado a dar aulas há quatro anos e não oito como me dissera -, o que provavelmente significava que viera para Lisboa atrás de Coutinho, pois ele mudara-se mais ou menos na mesma altura. Também mencionou que Maria Dias fora uma arque ira de prestígio internacional e que estava a treinar duas alunas do décimo segundo ano para os campeonatos nacionais. A professora Dias disse-lhe também que tinha sido o pai a ensiná-la a manejar o arco e a flecha.

Foi nesse momento que compreendi porque é que Coutinho lhe chamava Diana quando ela era pequena. Maria Dias não quisera que eu percebesse, mas provavelmente o pai dera-lhe aquela alcunha ternurenta graças aos seus talentos: Diana era o nome da deusa grega da caça!

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Capítulo 32

Deram-me alta no dia 22 de julho, há vinte e um dias, depois de quase duas semanas no hospital. Puseram-me gesso no calcanhar esquerdo. Como não podia fazer força nenhuma no pé, estava completamente dependente das canadianas para andar de um lado para o outro. Assim que entrei em casa, Ana ajudou-me a tirar o sapato e a meia direitos, e o pé descalço pôs-se a ler a textura familiar do nosso velho chão de tacos e a traduzir o que ia descobrindo num tão profundo alívio que poderia conter todo o amor que alguma vez sentira.

Ana entrelaçou a mão na minha e conduziu-me de divisão em divisão como uma rapariga mostrando a um amigo há muito perdido o seu esconderijo secreto. Depois de eu ir ao quarto de banho enxugar os olhos e lavar a cara, Nati ajudou-me a enfiar a minha camisa de dormir favorita, Jorge entregou-me o Francisco e desci as escadas a coxear, apoiando-me em Ana mais do que o necessário porque precisava de que ela soubesse que confiava que ela me ajudaria a refazer a vida. Dormitei intermitentemente o dia todo no sofá às flores na lavandaria, porque do outro lado da rua há um antigo prédio com uma fachada de azulejos azuis que refletem de tal modo a luz do sol que lhe chamamos a Super- Nova. Uma casa feita de luz é difícil de

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conseguir, mesmo em Lisboa, e ela lembrava-me toda a beleza quase esquecida que me esperou em casa pacientemente, nunca pedindo nada em troca - enquanto estivera no

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hospital: os lápis amarelos de Ana, trincados, o cesto de vime de Jorge e Nati, a minha almofada de penas...

Olhando para o Largo de Santa Marinha da janela da sala de estar, sentia-me grato por ver o mundo reduzido a um simples retângulo de cimento à sombra de exatamente dez lodoeiros e iluminado por seis esbeltos candeeiros. João, um menino que morava na casa ao lado, brincava, com um cão corgi que não reconheci, na parte reservada às crianças, que os vizinhos tinham pintado com flores há uns dois anos. Haveria no mundo lugar melhor para um miudito e um cão partilharem as mil e uma maneiras de uma bola de ténis voar pelos ares?

Na segunda tarde que passei em casa, Ernie decidiu ir recolher sementes no Jardim Botânico e levou os miúdos porque – sem mais nem porquê – Morel tinha telefonado a perguntar se ele e Susana Coutinho podiam passar para tomar um chá. Quando tocaram à campainha, Ana estava ainda no andar de cima, a mudar as calças de treino e a T-shirt que trazia. Susana entrou primeiro, vacilante, como se temesse que algum passo em falso pudesse fazer com que o chão cedesse, a mão direita pronta a apoiar-se na parede. Vestia uns jeans coçados e sandálias, e uma blusa branca de camponesa que a cunhada meio hippie lhe deveria ter emprestado. Não tinha posto maquilhagem nem Báton. A voz estava rouca e hesitante; os olhos, apagados e cinzentos. Pelo modo como se esforçara por sorrir antes de nos cumprimentarmos, percebi que ainda não saíra de junto da campa da filha. Será que algum de nós tinha o direito de lhe pedir para estar em qualquer outro sítio?

Estendeu-me uma grande caixa cor-de-rosa, um bolo inglês da Versailles. Depois de lhe agradecer, procurei alguma coisa para lhe dizer, uma pequena ajuda, mas o mais que me saiu foi:

Enquanto estive no hospital, não parei de pensar em si e na Sandi.

Ela sorriu novamente, mas, pelo gesto implorante que dirigiu a Morel, que se precipitou para lhe tomar o braço, percebi que pronunciara em voz alta um nome que ela teria preferido ouvir apenas na sua cabeça.

Como achara que não havia interesse nenhum em passar ao inspetor Romão os brincos que ela me dera, tinha-os comigo para lhos restituir. Estendendo-lhe um pequeno envelope, disse-lhe:

Tinha-me confiado isto para guardar em segurança.

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Dando uma olhadela ao conteúdo, Susana exclamou:

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Oh, meu Deus... tinha-me esquecido completamente. - Pôs os brincos na palma da mão e fitou-me com um ar preocupado, como se tivesse acabado de compreender que sem querer poderia ter-me ofendido. - Era um presente - disse.

Eu sei, e são muito bonitos, mas a senhora estava numa situação muito difícil quando mos deu. Susana passou os brincos a Morel e tomou as minhas mãos entre as suas, o que mudou completamente a maneira como a vi nesse dia. E mesmo o modo como passaria a vê-la em sonhos.

Agora quero, mais do que nunca, que fique com eles - declarou.

O olhar dela aguentou o meu, e parecia dizer-me que não éramos assim tão diferentes como poderia pensar. - Devo-lhe um presente por ter sido tão simpático - acrescentou. - E por ter arriscado a vida.

Felizmente, Ana vinha a descer as escadas e poupou-me ter de responder alguma coisa. Depois de feitas as apresentações, Susana pegou nos brincos.

Há algumas semanas quis oferecer ao seu marido estes brincos para si, mas ele achou que eu poderia ter mudado de ideias. - Entregou os brincos a Ana. - Gostaria muito que ficasse com eles.

A minha mulher fê-los baloiçar no ar.

São lindíssimos! - exclamou. - E devem valer uma fortuna. Desculpe, mas não posso aceitá-los. Tentou devolvê-los, mas Susana esquivou-se a recebê-los com um gesto da mão.

Pelo tom determinado com que disse, compreendi que fora o marido quem lhos dera.

Acho que seria má educação recusar - disse eu a Ana, para evitar mais sofrimento.

Ela inclinou-se para diante e deu dois beijinhos a Susana. Ao afastar-se, os olhos de Ana brilhavam de admiração pela convidada, o que me agradou porque queria dizer que partilhávamos a mesma opinião.

Enquanto Ana mostrava a Susana a vista para o Tejo que tínhamos do segundo andar do nosso duplex, confirmei que Morel lhe tinha contado que Coutinho abusava da filha.

Não posso fazer outra coisa - disse ele. - O mistério porque Sandi se mata é demasiado difícil de aceitar. Pelo menos agora ela tem

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uma resposta. - Tocou-me no braço. - Há aqui um sítio onde podemos falar os dois?

Levei-o para o refúgio que preparara para mim na lavandaria.

Quer dizer que Susana acredita no que eu descobri sobre o marido? - perguntei.

Ela sabe que é verdade, mas continua a negar. É um compromisso que faz para continuar a viver. - O som soprado, tão tipicamente gaulês que lhe saiu dos lábios, fez-me crer que

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também ele decidira fazer um compromisso: viver o resto da vida como se nunca tivesse descoberto que a afilhada andava a ser repetidamente abusada.

Agora diga o que descobre - pediu-me num tom insistente.

Falei-lhe em Maria Dias – e nas minhas conversas com ela e com a mãe.

Onde está Maria agora? – perguntou.

Voltou para França - respondi, e depois disse uma mentira:

Antes que eu a pudesse prender, fugiu do país.

Morel levantou-se e dirigiu-se para a janela. O seu olhar parecia triste e derrotado. Acendendo um cigarro com mãos ansiosas, aspirou o fumo como se a sua vontade de prosseguir dependesse disso. Era o momento ideal para lhe dizer que Sandi estava grávida, mas receava que Susana fosse capaz de pôr termo à vida se o soubesse.

Importa-se de me dizer o que sabe do Pierre, o irmão de Maria? perguntei, antes.

O Pierre? Depois do divórcio, ele deixa a escola. Começa a tomar drogas, perde o contato com a mãe e a irmã... Tem problemas com a polícia. Talvez está ainda na prisão. Ou talvez morto. Devo dizer que na altura não entendo isso... este seu comportamento autodestrutivo.

E agora compreende?

Morel continuou a fumar pensativamente.

Se ele descobre o que acontece à irmã... Ela precisa dele para a defender e ele não está cá ... Sim, Monroe, compreendo muito bem.

Que vão fazer agora, o senhor e Susana? - perguntei.

Vamos para França. Quando o médico está satisfeito com os... progressos de Susana. Aqui só há morte para nós.

Na manhã seguinte, Ernie anunciou-me que voltaria com Rosie para a Villa Ernesto. Não me tinha querido dizer nada no dia anterior

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porque isso me iria impedir de dormir a noite toda. Ana convenceu Jorge a ajudá-la a lavar a loiça do pequeno-almoço e eu pude assim despedir-me do meu irmão a sós. Sentia o pânico a apertar-me as entranhas e acabei por acompanhá-lo até à rua para termos mais uns minutos juntos. Pus o chapéu preto de cowboy que ele tinha desencantado numa loja da Rua da Rosa e peguei nas canadianas. Dirigimo-nos para o carro, como se para um funeral, o que odiava, mas o pouco tempo que nos restava não nos deixou outra opção. Rosie trotava atrás de nós, a cauda a dar a dar, farejando todos os tesouros que os passeios de Lisboa escondiam.

Depois de ter apertado o cinto de segurança, Ernie tirou as luvas cirúrgicas e agarrou-me pelos ombros. Rosie deixou -se cair refastelada no banco a seu lado.

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Vais ficar OK, Rico - disse ele.

Peguei-lhe na mão e afaguei-a, imaginando-o como o rapazinho que fora. Instantes depois, Ernie tentou retirá-la, mas eu retive-a; tinha decidido que, se nunca o deixasse partir, nada de mau poderia acontecer a nenhum de nós.

Ficas mesmo um bicho giro com esse chapéu, Rico! - exclamou, com um assobio. - Quem to comprou?

Foste tu - respondi.

Lançou-me um sorriso de exagerado orgulho, fazendo o melhor que podia para aligeirar o momento. Agora parecia ser o irmão mais velho, desviando-nos aos dois do desespero, mas o mais que consegui em resposta aos seus esforços foi um triste aceno de cabeça.

Até eras ca az de te ter tornado uma estrela de um desses westerns de grande orçamento se tivesses ido para Hollywood - disse ele.

A minha respiração era hesitante e cava, tal a vontade de dizer a frase acertada, o encantamento que o libertaria de mim, sem o fardo do meu amor.

Ainda podemos ir - retorqui.

O chapéu é preto... terias de ser o mau da fita - observou ele.

Não faz mal, assim como assim, são sempre eles que têm as melhores tiradas.

Mesmo a mais parva das conversas pode às vezes servir para revelar o que se esconde na parte inconsciente da nossa mente, porque nessa altura sabia já o que devia dizer-lhe:

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Queria voltar a ver a campa da mãe. Preciso que os teus sobrinhos a vejam também. - Apertei a mão de Ernie contra o meu peito para que ele sentisse toda a ansiedade que havia em mim. - Talvez queira trazer o corpo dela de volta para Portugal. Podemos decidir isso mais tarde. Mas tenho de estar junto da mãe mais uma vez agora que sei o que sei. Tenho mesmo, Ernie.

Que sabes o quê?

Ela não nos deixou sozinhos com o pai de propósito. Não teve alternativa... estava demasiado deprimida. Teria ficado connosco se tivesse podido. Estás a ver, tenho de lhe dizer que a perdoei.

Ernie baixou os olhos. Para evitar que se sentisse pressionado, levantei os meus. Algures no meio – conspirando para compreender até que ponto perdoar a nossa mãe poderia mudar-nos pairavam as nossas especulações sobre o futuro.

Ernie não conseguia responder; por isso, enfiei a cabeça no carro e beijei-o nos lábios. Será que eu alguma vez compreenderia como nos tínhamos tornado homens? E ele? Talvez haja mistérios que no fundo não queremos esclarecer porque isso faria com que o passado nos

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parecesse muito menos singular. E todos temos o direito de olhar a nossa vida como única e especial, se não outra coisa.

«Haverá dois rapazes que se tenham afastado tanto dos horizontes que o destino originalmente lhes traçara!», pensava quando larguei a mão de Ernie.

Quando destravou o carro, bati na porta para lhe chamar a atenção e disse-lhe para enxugar os olhos para poder ver algum animal selvagem que pudesse atravessar-se na estrada.

Que tipo de animal selvagem? - perguntou.

Não sei, mas seria giro ver alguns coiotes em Lisboa - retorqui.

Fez o que eu lhe pedira e limpou as lágrimas com os polegares, porque era o meu irmão mais novo, mesmo que se portasse com mais maturidade do que eu. Foi então que me apercebi de que ele vertera lágrimas de verdade, o que nunca antes acontecera, penso, e então o seu enorme Chevrolet ferrugento arrancou e não tardou a ranger rua abaixo em direção ao rio. Rosie, que tinha saltado para o banco de trás, fixava-me da janela com uma expressão nostálgica. Queria dizer ao meu irmão que precisava de reparar o escape, e quase lho ia gritando, mas tive medo de que ele fosse contra alguma coisa, e por isso deixei - me ficar simplesmente

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a olhar enquanto ele e Rosie se afastavam. Assim fiquei muito tempo depois de eles terem desaparecido de vista, pois que mais poderia eu fazer?

No dia seguinte, o quarto em casa, às três da tarde, Nati acordou-me de um dos meus sonhos flutuantes. Estendi a mão para ele, pois, quando tomava uma boa dose de analgésicos, a gravidade não tinha qualquer poder sobre mim.

Tenho uma coisa séria para falar contigo, pai - disse ele.

Bocejei e comecei a beijar-lhe os dedos um a um, pois estava demasiado longe para me importar com a ideia de isso o poder deixar embaraçado.

Pai, ouve! - interrompeu ele, retirando a mão. - É mesmo importante.

Estou a ouvir - respondi, mas voltei a fechar os olhos porque a ausência de gravidade era uma experiência demasiado maravilhosa para a largar tão facilmente.

Lembras-te daquele CD da Florence + the Machine? - perguntou Nati. - Aquele que era da miúda que se suicidou?

Claro que me lembro disse eu, mas não estava a seguir as suas palavras; pairava sobre nossa casa, e o meu filho mais não era do que uma voz.

Pai! Pai, acorda! - Fixava-me, furioso.

Estou aqui - repliquei. Sentando-me, estiquei os braços acima da cabeça num esforço para voltar até ele. - Para de fazer caretas e dá-me de beber.

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Nati foi buscar-me um-grande copo de água. Bebi metade.

OK, agora estou de volta ao mundo real- declarei. E estava quase.

Pensei que tinhas dito que ouviste o CD da Florence + the Machine - disse ele.

E ouvi. Queria analisar a letra; por isso, pesquisei na internet e depois vi os vídeos. Vi aquele, o Dog Days, três vezes, acho eu.

Então não ouviste mesmo o CD?

Não.

Foi o que pensei. Anda daí até à sala. Tens de ver o que há no CD.

Estendi os braços. Puxando com força, Nati conseguiu pôr-me de pé. Ao mesmo tempo que lutava contra as tonturas, inclinei-me para diante. Uma vez levantado, compreendi aquilo que devia ter sido óbvio;

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não entregara o CD de Sandi como elemento de prova. Não sabia como fora parar às mãos de Nati.

Aonde foste buscar o CD? - perguntei, enquanto uma vaga de culpa me invadia.

Deu-mo o tio Ernie.

Peguei nas canadianas.

E aonde raio foi ele buscá-lo?

Ele disse-me que depois de tu teres sido baleado, quando desmaiaste na rua, o encontrou no teu bolso. Guardou-o por uma questão de segurança.

E deu-to a ti?

Deu. Perguntou-me onde o devia pôr, e eu disse-lhe que o guardava até tu voltares para casa. Só que… Fez uma careta como se se tivesse metido num grande sarilho. - Pu-lo na minha estante para depois to dar, mas esqueci-me disso até há bocadinho. Desculpa lá.

Não faz mal. Com tudo o que aconteceu, eu...

Pai, não é o Lungs - interrompeu Nati.

Não é Lungs, o quê?

O que a miúda te deixou... O CD. Pai, tens de ver o que ela queria que tu descobrisses!

Assim que chegámos à sala, pegou no comando do DVD, abriu a gaveta e colocou o disco lá dentro.

Não faças isso, vais estragá-lo! - gritei.

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Não há problema. Já experimentei.

Passou-me o comando, e depois foi para a cozinha.

Não queres ver? - perguntei.

Vi um minuto se tanto, por acaso. Para mim já chega.

O DVD tem uma duração de quarenta e sete minutos, mas só vi uns vinte. Não quero mais nada daquilo na cabeça.

No vídeo, surgem quatro homens com duas miúdas. Uma delas é Sandi. Elástica e esguia, com a graça hesitante de uma corça. Não tem ainda aquele desastrado corte de cabelo.

A outra miúda é esguia, quase sem seios. Parece mais nova do que Sandi. Diria que tem uns doze ou treze anos, no lanço final da infância. Os cabelos são pretos e compridos e a tez de bronze, um toque de floresta amazónica nos olhos. Chamei-lhe Menina Número Dois a princípio,

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mas Ana disse-me num tom zangado que ela merecia ter um nome. Agora chamamos-lhe Mariana.

Um dos homens é Pedro Coutinho; o outro, Sottomayor. Os dois restantes foram identificados por Morel como sendo o notário parisiense de Coutinho, Gilles Laplage, e um exportador venezuelano que agora vivia no Brasil, chamado Sebastian Forester. Morel disse-me que era um velho amigo de Pedro.

Quando Morei veio a minha casa ver o DVD, explicou-me que tinha sido filmado no apartamento que Forester tem em Lisboa. Fora convidado para lá jantar certa vez e reconheceu a mobília dourada e o espelho Louis XVI. O apartamento é uma suite no último andar de um daqueles monstros monolíticos na Avenida dos Estados Unidos da América. Há uma semana descobri que Sottomayor vive um andar abaixo.

Susana Coutinho desconhece a existência do DVD.

Pode ter a certeza de que ela toma uma overdose de comprimidos, como a Sandi, cinco minutos depois de ver isso - disse Morel na voz resignada de um homem que nos últimos meses aprendeu demasiadas lições sobre sofrimento. Chegou ao nosso apartamento há duas semanas e viu o filme, a cabeça entre as mãos, a fumar cigarro atrás de cigarro, até se levantar de um salto ao fim de treze minutos e dizer que se recusava a assistir a mais.

Quem vê o filme poderá imaginar quantas vezes terá Coutinho abusado da filha antes daquele momento, e pode estar certo de que foram suficientes para a convencer de que não valia a pena resistir. Aparentemente, tirar-lhe a virgindade não lhe bastara, como começara por lhe fazer crer. Ou talvez Sandi só o tivesse dito à amiga por ser essa a sua última esperança.

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Aos dezassete minutos e quarenta e três segundos do DVD, um minuto depois de o pai ter acabado de a violar - e enquanto lhe beijava a nuca -, Sandi volta-se para a câmara. Tem um olhar vazio, pouco menos do que morto.

Olha para nós, para mim, para quem quer que esteja a assistir. Será que se apercebe de que os homens que acabarão por ver o DVD acharão excitante a sua submissão ausente e anestesiada ao pai?

A primeira vez que vi estes dezassete minutos e quarenta e três segundos, a vergonha a trespassar-me como uma navalha, atravessei a sala aos saltos sem as canadianas e carreguei com força no botão de desligar.

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Peguei no disco e agarrei-o firmemente na mão. Apetecia-me parti-lo ao meio, esmagá-lo até ficar com o punho em sangue.

Deveria tê-lo feito, mas precisava de ir a correr para a casa de banho. Ana sentou-se na borda da banheira enquanto eu libertava tudo o que tinha dentro de mim e depois ajudou-me a limpar-me.

O olhar de Sandi para a câmara é o que torna tudo aquilo ainda mais cruel. Ser filmada no pior momento da vida é uma coisa que não deveria acontecer a ninguém, e muito menos a uma miúda tão nova.

17h43 é a pior coisa que vi na vida.

Depois do olhar de Sandi, dirigido a quem quer que um dia visse aquele OVO, a câmara muda de ângulo, e durante os vinte e um minutos e quatro segundos que se seguem, pelo que diz Ana, que registou a duração do filme, é a vez de Forester e Laplage violentarem Mariana.

Os últimos onze minutos s sete segundos mostram Sottomayor a fazer o que quer de Sandi. Empunhando a bengala e colocando-a por trás da cabeça da miúda, puxa-a para si e sorri para a câmara. É o sorriso malicioso de quem se julga capaz de se safar de uma acusação de crueldade premeditada.

Ou, neste caso, que pensa ter-se safado.

Foi aquele sorriso que me mostrou a verdade.

«Esqueça os problemas importantes da vida. Não se preocupe com quem ganha e com quem perde neste triste pequeno país que é o nosso. Andam obviamente por aí homens muito perigosos e violentos que não se importam de atingir bons polícias como o senhor. Por isso, aproveite a companhia dos seus filhos. Vá até à Madeira e trabalhe para o bronze. Deixe os seus colegas tratarem dos maus.»

Esperava que eu largasse o caso e estava a dar-me um último aviso - não fosse eu vir a descobrir a sua preferência por rapariguinhas impúberes - de que ele estava no topo da lista dos homens violentos que me consideravam descartável. Antes disso, andou a tentar lançar-me nas pistas falsas dos subornos pagos por Coutinho.

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Fingira ser gay para conquistar a minha confiança - e porque o deve ter divertido enganar-me tão redondamente.

Quando contei a Ana as conclusões a que chegara, ela disse que só a surpreendia que ele não tivesse envenenado os chocolates Godiva que me levara. Mas não precisava de chegar a tanto, claro; conseguira exatamente o que pretendia com os dois tiros que encomendara.

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Capítulo 33

Depois de fechar à chave o DVD na gaveta onde guardo as armas, compreendi que não era, nem de perto nem de longe, tão corajoso como pensara. Ou talvez tivesse perdido o que me restava de ingenuidade; já não tinha a mínima dúvida de que os homens que governavam Portugal - e os seus amigos bem colocados noutras partes do mundo - eram capazes de me matar para evitarem ter de responder pelos seus crimes. Ser obrigado a andar a saltitar pela minha casa - ou talvez a coxear o resto da vida - era prova disso mesmo. Caírem de uma altura de trezentos metros numa calçada de Lisboa ou do Porto - de Xangai, de Nova Iorque - era a última coisa que qualquer um deles poderia permitir que lhe acontecesse. Haveriam de preferir de longe que a queda me calhasse a mim.

Ou a si. Lembre-se disso. Mesmo que não se lembre de mais nada.

Ana disse-me que também ela, tal como eu, compreendera que Sottomayor era um homem perigoso, mas que eu tinha de entregar o DVD ao Ministério Público.

Temos de tentar proteger outras miúdas como a Sandi e a Mariana - insistiu.

Não compreendia que já não tínhamos essa opção.

Desta vez eram capazes de te enfiar dois balázios a ti... ou a um dos miúdos - disse eu.

Só pronunciar em voz alta essa possibilidade fez com que as pernas me começassem a tremer e tudo se pusesse a girar. Sentei-me no sofá e inclinei-me, a cabeça entre os joelhos.

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Ouve, Hank - disse Ana -, não podemos viver amedrontados. Se começamos com isso, então... Porque é que os teus pais fugiram à ditadura na Argentina? - interrompi.

Ana mordeu os lábios e esquivou-se ao meu olhar de desafio. Não respondeu à pergunta, pois ambos sabíamos que tinham emigrado porque Javier - o irmão mais velho da mãe de Ana - fora preso e assassinado pela polícia por ter estado à frente de um protesto estudantil. O crânio dele foi descoberto doze anos mais tarde numa vala comum no jardim de uma fábrica de sapatos nos arredores de Buenos Aires. Só o identificaram graças aos registos dentários.

Quando comecei a soluçar, Ana foi buscar-me um copo de sumo de laranja. Depois de o ter bebido, disse-lhe:

Isto vai até ao topo.

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Que estás a dizer?

Os DVD roubados da casa de Coutinho devem mostrar algumas figuras graúdas com miúdas corno a Sandi... Ministros, embaixadores, diretores de empresas... Não vão permitir que uma coisa que mostre quem eles realmente são venha a público, Tiveram de assaltar a casa... antes que Susana Coutinho ou outra pessoa encontrasse os filmes que provam o que andavam a fazer.

Muito bem, então qual é o próximo passo? - perguntou ela.

Nessa noite, tomei uma boa dose de analgésicos, capaz de me pôr a voar acima da costa de Portugal até Vigo, mas de madrugada dei por mim esparramado como um bêbado num banco no Largo de Santa Marinha. As canadianas tinham sido atiradas para o chão onde as crianças brincam. Na minha mão esquerda, G escrevera: «H - Enquanto morria contigo num passeio de Lisboa, vi a cidade desaparecer. Levou menos tempo do que possas imaginar ver todas aquelas velhas ruas e casas vacilantes desvanecerem-se. A última coisa a sumir-se foi o rio.» Na mão direita, acrescentara: «O rio abraçou a margem durante milhares de séculos e não queria sumir-se assim! H - não sei o que fazer agora. Sou real? E tu, és?»

Depois de voltar para casa a coxear, limpei a tinta das mãos e escondi o meu bloco de notas da polícia no faqueiro de prata que Ana herdara da avó. Entrando em bicos de pés no quarto de Nati, acordei-o e disse-lhe para nunca falar do DVD a nenhum amigo.

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Nunca faria uma coisa dessas - garantiu-me.

Levantei-me e fui à janela para ter a certeza de que ninguém nos vigiava. Voltando para junto do meu filho, pousei-lhe a mão no peito.

Nem sequer podes falar nisso.

Não falo.

Estava demasiado inquieto para tomar o pequeno-almoço. Depois de os miúdos terem devorado os cereais, fechei-me à chave na lavandaria para poder refletir à vontade. Procurando conter o pânico que me invadia, disse de mim para comigo: «Não faças nada por agora. Tens tempo.» Acabei por pegar no portátil e ouvir no YouTube o vídeo de Dog Days Are Over. Cantei a canção em voz baixa até saber a melodia e a letra de cor. Precisava que fizesse parte de mim.

Quando ouvi a campainha, deparei com Luci no patamar. Tinha trazido uma daquelas bicicletas desdobráveis, prateada, com um cesto na parte da frente. O alívio que senti ao vê-la foi tanto que tive vontade de lhe dar um beijo, mas não queria envergonhá-la.

Jorge apareceu a correr vindo da cozinha e encurralou Luci antes de o conseguir impedir.

Ei, isso é para mim? - perguntou.

Não, desculpa, é para o teu pai - disse Luci.

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Afastei Jorge e depois convidei-a a entrar. Mal entrámos na sala, segurei o meu filho pelos ombros para evitar que ele se descontrolasse e perguntei a Luci se a bicicleta era realmente para mim.

É, sim. Disseram-me que é bom para recuperar os músculos da perna.

Também quero uma bicicleta! – choramingou Jorge, erguendo os olhos para mim, uns olhos a brilhar com esperança capaz de desfazer todos os meus argumentos contra tal compra.

Se me deixares em paz, a mim e à Luci, durante meia hora propus-lhe -, compro-te uma na primeira vez que sair de casa.

Desatou aos pulos, depois deu-me um murro na barriga para reforçar a pergunta:

Prometes?

Prometo.

Assim que Nati arranjou maneira de atrair Jorge para fora da sala, disse a Luci que não devia ter-me comprado uma prenda tão cara.

Consegui um bom desconto - replicou. Sorriu com o deleite de quem ajuda um amigo, mas logo uma sombra lhe cobriu a expressão

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quando lhe propus que fôssemos para a cozinha falar no caso Coutinho. Tinha já decidido pedir-lhe para não mencionar a investigação a ninguém.

Mal a vi sentada à mesa, perguntei-lhe qual era o problema.

Ela levou a mão ao bolso dos jeans e tirou um delgado chip preto, só um pouco maior do que um cartão SIM. Passou-mo para as mãos.

Que é isto?

Serve para fazer escutas. Encontraram-no fixado com fita-cola debaixo da sua secretária... junto da borda. Já vimos se havia impressões digitais, mas nada.

Percebi de imediato quem o pusera ali.

Sottomayor usava luvas de cabedal no dia em que foi falar comigo. E eu, estupidamente, pensei que era apenas afetação.

Então que fazemos, chefe?

Ainda funciona? Ainda envia algum sinal? - Imaginei que Romão pudesse localizar as pessoas que tinham andado a ouvir as minhas conversas.

Deixou de funcionar há pouco - explicou Luci. - Os técnicos disseram-nos que estava programado para durar apenas uns dias.

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Eles têm alguma ideia sobre o que devemos fazer?

Não. Disseram que é de fabrico caseiro; por isso, nem sequer temos um fabricante que possamos contactar.

Enquanto incluía mais esta descoberta na minha lista de acusações contra Sottomayor e seus capangas, Luci surpreendeu-me com uma pergunta que não me permitira fazer a mim próprio: Chefe, acha possível que o inspetor-chefe Romão possa não estar interessado em descobrir quem ordenou o atentado contra si?

No ponto a que chegámos, Luci, acho que tudo é possível.

Ela lançou-me um olhar de quem acaba de receber a notícia da morte de um familiar; por isso, acrescentei:

Oiça, preferia que não falasse com ninguém sobre mim, sobre o Coutinho ou sobre este caso. Nem sequer com o seu marido.

O chefe descobriu alguma coisa que eu não saiba?

Só que o Sottomayor não é o anjinho que nos quis dar a entender que era - retorqui.

Ele ameaçou-o?

Não, não é isso - menti. - Seja como for, é melhor que não saiba demasiado sobre ele.

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Foi ele quem mandou disparar sobre si, não foi?

Haveria na minha voz alguma coisa que revelava a verdade?

Luci, fico mesmo zangado consigo se continuar a fazer perguntas! - rematei, esforçando-me por dar às palavras um tom paternal e mal-humorado.

Estávamos a chegar demasiado próximo de alguma coisa, chefe? - perguntou ela.

Luci!

Tenho direito a saber.

Podemos nunca vir a ter a certeza - disse eu. - O mais importante é não falar em nada que ache suspeito. Não podemos arriscar-nos a que lhe aconteça o mesmo que me aconteceu a mim.

Não gosto nada disto. Não foi para isso que entrei para a polícia.

Oiça, há muitíssimos casos onde pode tentar ser o Dr. Watson - retorqui, esforçando-me por desvalorizar o presente dilema. - Por agora, limite-se a fazer o que o Romão disser e, se alguém lhe perguntar alguma coisa sobre os tiros, ou sobre Coutinho, diga que ultimamente tem andado tão atarefada que nem pensou mais no caso.

Page 336: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

Fixando-me como se fosse uma questão de vida ou de morte, Luci declarou:

Muito bem, mas, quando o senhor voltar, quero ser novamente destacada para a sua equipa. Não quero trabalhar com mais ninguém.

A minha sensação de fracasso atenuou-se um pouco depois de ter convencido Luci da necessidade de se manter calada: pelo menos conseguira protegê-la. Senti-me capaz de participar no jantar de família e até ajudei Jorge a desenhar casas no seu caderno. Quando Ernie ligou, estive à conversa com ele sobre as suas pereiras e macieiras zonzas de calor. Fiquei contente por ter uma distração.

Cerca das dez horas, comecei a sentir os arrepios nos braços que normalmente indicam que estou prestes a apanhar um resfriado. Tomei logo duas aspirinas e fui deitar-me, mas acordei às três com a testa a arder e uma febre de trinta e oito e meio. Doía-me a garganta e tinha o nariz entupido. Não queria incomodar Ana e consegui voltar a adormecer ao fim de algum tempo, mas ela acordou quando comecei a tossir. Pôs-me uma compressa fria na testa e obrigou-me a tomar mais duas aspirinas. Apetecia-me abraçá-la - precisava do carinho dela para suportar aquilo -, mas estava a arder de febre e não queria contagiá-la.

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Quando voltei a adormecer, sonhei que Gabriel vinha ter comigo a Black Canyon. O seu cabelo desgrenhado tornara-se grisalho. E a cara, fina e marcada pelo tempo, estava profundamente vincada pelas rugas. Parecia ter mais de sessenta anos. Conseguia vê-lo e ouvi-lo tão bem como via e ouvia Ana e os meus filhos.

Seria um sonho, ter-me-ia a febre conduzido a um estado crepuscular onde podia falar com a minha metade pela primeira vez?

Recordo-me do que G e eu dissemos um ao outro porque - assim que voltei a mim - escrevi a nossa conversa na parte de dentro da capa do livro que andava a ler, Deaf People in Hitler's Europe.

Estás mais velho - disse-lhe. Pareceu-me injusto e triste dizê-lo.

Também tu, parceiro! – ripostou ele, rindo-se.

Sentamo-nos na orla do Black Canyon. Acima de nós nuvens brancas de algodão deslizam em formação rumo ao horizonte, a este. Uns seiscentos metros abaixo, via-se uma serpente sinuosa e pardacenta: o rio Gunnison. Falámos durante algum tempo sobre a paisagem. Parecia ser a maneira que encontrara de fazer com que me sentisse à vontade com ele. E então disse-me:

Não gostei de ficar à beira da morte.

Pois, eu também não - retorqui.

Pediu-me desculpa por não me ter protegido, e eu disse-lhe que a culpa não era dele. Pelo modo como carregou o sobrolho, percebi que não concordava.

Page 337: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

Mas, enfim, a questão é que ter estado à beira da morte ensinou-me uma coisa - declarou num tom confessional.

O quê?

Que tudo isto é bem capaz de desaparecer.

Quando lhe perguntei se estava a falar do Colorado, fez um gesto largo com a mão indicando a terra, o céu e mesmo o rio lá ao fundo.

O Colorado, Portugal e tudo o mais - disse ele. - Escrevi-te uma mensagem sobre isso. Vi Lisboa desaparecer, casa a casa. As ruas reduzidas a nada, uma a uma, e não havia coisa alguma que pudesse fazer para o impedir. Era uma loucura. E perturbante. Levei algum tempo a compreender o que aquilo significava.

O que significava?

Deu-me uma palmadinha na perna.

É assim, miúdo... não somos feitos da mesma massa. Não consigo ficar sem fazer nada e deixar que tudo por que lutei desapareça.

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É realmente isso que está em causa? - perguntei, cético; achei que estava a exagerar.

Ou somos nós a ganhar ou eles... Como cowboys e índios outra vez. E tanto tu quanto eu e o Ernie... somos índios!

Não é assim tão simples - contrapus.

Fazer o que está certo parece-me bastante simples.

Ouve, não posso correr o risco de perder os miúdos ou a Ana. Vais ter de esquecer a ideia de entregar à justiça Sottomayor e os amigos.

Ele olhou para este, para o sol que nascia. A luz da montanha derramava-se sobre nós, dourada e quente.

Pensei que tinha perdido a sombra quando fomos baleados disse ele. - Fiquei assustadíssimo. Está aí atrás de ti, neste momento - repliquei, apontando-a.

Ele voltou-se. A sombra era longa, esguia e orlada de um vago brilho avermelhado. Parecia menos forte e definida do que seria na vida real.

Ah, isso aí. Não é disso que estou a falar.

Então estás a falar de quê?

Se achas que podes viver sem mim, então descobre tu!

Porque não falas mais claramente?

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Porque não quero!

O modo enfurecido, desafiador, como me fixou, deu-me a entender o que queria dizer.

Pensaste que eu já estava morto, não foi?

Sim, e fiquei em pânico.

Mais uma razão para ter agora muito mais cuidado – disse eu.

Muito bem, então que direção tomo eu, este ou oeste?

Não sei.

Tens de escolher por mim. Tu é que fazes as regras aqui, miúdo, mesmo que não acredites. «Portugal fica a este», pensei. Mas não queria que ele viesse ter comigo aí, pois podia pôr em perigo a minha família.

Oeste - propus.

Sempre foste o mais ajuizado - respondeu ele.

O sorriso desapontado que me lançou parecia significar que aquela poderia ser a última vez que nos víamos.

Dá um abraço à Ana - disse ele.

E então acordei.

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A febre aumentou durante toda a manhã. À hora do almoço, estava fraco de mais para sair da cama e descobri que não conseguia aguentar nenhum alimento sólido. O meu sogro, Esteban, era radiologista e veio examinar-me mais tarde. Assegurou-me de que as feridas estavam a sarar bem e não tinham infetado.

Parece que apanhaste uma gripe, filho - concluiu, encolhendo os ombros.

Preocupava-me a ideia de os meus filhos a apanharem e proibi-os de entrarem no quarto durante o resto do dia. Jorge ficou sentado no chão com a sua girafa do lado de fora da porta a ler os livros do Dr. Seuss. Quando começou a aborrecer-se, mandei-o buscar o caderno de desenho e sugeri-lhe que fizesse o meu retrato. Quando acabou, parecia um pássaro azul em frangalhos num ninho de lenços de papel e jornais.

De Gabriel, nem uma palavra. Se calhar seguiria para oeste para sempre.

Ao fim do dia, estendido na cama, enquanto pensava se conseguia viver sem ele, lembrei-me de Sandi tal como me surgiu no dia em que a tinha interrogado. Ocorreu-me então que ela teria reagido tão mal à primeira menstruação por já ter pressentido a especial predileção do pai por rapariguinhas adolescentes. Talvez fosse ela própria quem surgia nos seus pesadelos, entrando em casa e maltratando os pais. Os sonhos eram um aviso para que se mantivesse

Page 339: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

calada. Tal como eu e Ernie, Sandi concluíra que se alguma vez dissesse a verdade - e conseguisse convencer alguém de que abusavam dela - mandaria o pai para a prisão e destruiria a sua família.

Na manhã seguinte, já me sentia suficientemente bem para me sentar na cama e comer umas torradas com compota. Era sábado, dia 29 de julho. Ana precisava de ir trabalhar nessa tarde. Saiu do apartamento por volta das onze e meia, depois de me ter feito uma sopa de letras para o almoço. Continuava a não deixar que os miúdos estivessem perto de mim, o que provocou em Jorge um choro convulso, de modo que tive de o ir buscar para que se acalmasse. Ficámos os dois sentados no sofá uma boa parte do dia, a ver os jogos olímpicos na

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televisão. Vimos sobretudo as provas de natação e de ciclismo, mas mais para o fim da tarde apanhámos também a competição de natação sincronizada. A estranha imagem, como que em espelho, de dois mergulhadores girando e rolando pelos ares parecia a princípio ridícula e fútil, mas quanto mais víamos mais tínhamos a sensação de ser arte, dando forma à necessidade humana de afinidade e solidariedade.

Nessa noite, dormi praticamente dez horas e acordei pouco depois das nove - sozinho na cama com uma mensagem na mão esquerda: «H - Desculpa por ter seguido para este. Não tinha outra escolha.» Na mão direita, havia um nome: «Jean Morel.»

Percebi de imediato o que G propunha. Atirei para o lado os cobertores e pus-me de pé. Liguei para Joaquim, para casa, pois era domingo. Aceitou imediatamente ajudar-me. Estava ainda um pouco febril, e Ana queria que eu ficasse em casa, mas, quando lhe disse que apanhava um táxi se fosse preciso, concordou em levar-me de carro. Joaquim fez uma cópia do DVD que Sandi me deixara e concordou em não falar nisso a ninguém.

A seguir liguei para Morel e pedi-lhe para vir ter comigo e ver o DVD.

Foi nesse dia que Morel identificou os dois homens que tinham participado na filmagem - juntamente com Coutinho e Sottomayor como sendo Gilles Laplage e Sebastian Forester.

Depois de ter visto os primeiros doze minutos, recusou-se a continuar, mas insisti que reparasse no minuto dezassete.

Morel concordou com o meu plano depois de ter visto as imagens dos dezassete minutos e quarenta e três segundos, mas obrigou-me a prometer que nunca falaria a Susana na existência do filme. Como quase não falava português, ditei-lhe um recado para entregar ao Ministério Público, explicando que tinha encontrado o DVD na biblioteca de Coutinho e fazendo um resumo do seu conteúdo. Sabendo que Coutinho devia ter a pornografia escondida nos discos de música clássica - no armário fechado à chave -, pedi-lhe também que escrevesse que havíamos encontrado o DVD em questão no disco dos Prelúdios de Debussy, por Pascal Rogé, visto que Ana o tinha e concordara em ceder à nossa causa a capa e os encartes do álbum. Morel dirigiu-se para a Procuradoria-Geral do Ministério Público no carro de Susana.

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Tinha a certeza de que quem lesse o texto que ditara acreditaria na história de Morel: ninguém suspeitaria de que fora eu a encontrar o disco e a entregá-lo. A minha família e eu estaríamos a salvo de represálias.

Morel e eu conversámos nesse dia ao fim da tarde. Entregara o filme e o nosso bilhete a Bruno Cerveira, o procurador a quem o caso fora atribuído.

Passaram dois dias sem uma palavra de Cerveira, mas eu estava quase livre da gripe e sentia-me confiante, como se G e eu tivéssemos desferido um golpe importante numa guerra que a maior parte das pessoas nem sequer sabia estar a ser travada. E como se tivesse regressado de um passeio que me afastara tanto de mim próprio que precisara da ajuda de Gabriel para voltar.

N o terceiro dia de espera, um fisioterapeuta que me fora designado pela Polícia Judiciaria veio a minha casa para a nossa primeira sessão. Chamava-se Pavlo e parecia ter uns trinta anos. Era de Kiev e vivia em Portugal desde 2004. O seu espesso cabelo preto, com risca ao meio, formava umas asas que lhe tapavam as orelhas, dando-lhe o ar ligeiramente cómico, mas romântico, de um galã dos filmes mudos de Hollywood. Pelo modo como Jorge o fixava, de boca aberta, torcendo-se como quem precisa de fazer xixi, convenci-me de que fora atingido pela flecha de Cupido pela primeira vez. Correu desajeitadamente para o quarto, aos tropeções; tive a sensação de que se calhar tivera até uma ereção.

Fiquei admirado comigo por não me sentir minimamente preocupado. Invadia-me antes uma admiração divertida por aquele diabinho.

Sob a orientação de Pavlo, em breve conseguia movimentar-me muito melhor com as canadianas. Na verdade, ele mostrava-se mais preocupado com o ombro do que com a perna, porque os músculos tinham enrijecido e já não conseguia levantar o braço acima da cabeça. Indicou-me uma série de exercícios de alongamentos para fazer duas vezes por dia.

Nessa noite, na cama, quando calhou falarmos de Pavlo, dei por mim a contar a Ana que pensava que Jorge era gay. O tom dramático em que estupidamente falei no caso - temendo que ela pudesse sentir-se desapontada ou preocupada com o nosso filho -levou-a a troçar de mim.

Não vais agora pensar que ligo alguma coisa ao que o Jorge possa fazer na cama - disse-me.

Pensei que podias ver a coisa de outra maneira por ser o nosso filho.

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Deu-me um beijo na ponta do nariz como se eu fosse o seu terceiro filho, e o que de momento mais precisava de orientação.

Gostas tanto dele que te preocupas de mais. Vai correr tudo bem.

As coisas podem não ser fáceis para ele - insisti. - Ainda há muitos preconceitos.

Page 341: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

É mais forte do que as pessoas pensam. É um menino rijo.

Há quanto tempo suspeitavas disto?

Há uns dois anos. - Ana soltou uma risada. - Quem haveria de pensar que ia ficar caído pelo Rudolfo Valentino?

Então também reparaste?

Ela espetou o indicador e lançou-me um olhar astuto.

Agradecia que lhe explicasses o que é uma ereção quando tiveres ocasião.

Porquê eu? Tu sabes pelo menos tão bem como eu para que serve ripostei, o que a levou a fazer-me uma chave de braço que me deitou de costas.

Há mais uma coisa - disse-lhe, levantando os olhos para ela, contente por ter uma mulher que gostava de assumir o comando de vez em quando.

O quê?

O Ernie disse-me que foi para a cama com homens. Por isso, parece-me que isso quer dizer que é gay. - Não mencionei que tinha dormido com prostitutas.

Que grande novidade - retorquiu, fingindo um bocejo.

Depois de apagada a luz, a pressão de lhe contar ainda outra coisa fez-me colocar a mão dela sobre os meus olhos como uma venda.

Há uma coisa que nunca te disse sobre mim – confessei.

Gostas de mais da tua intimidade com a minha passarinha para seres gay, por isso não me venhas agora com tretas!

Não, mas fiz sexo com rapazes quando era miúdo. No Colorado.

E depois em Évora.

Ela virou-se para mim. O seu hálito quente afagou-me a face.

Muito empreendedor da sua parte ter sexo em dois continentes, senhor inspetor-chefe.

Nunca falei disso a ninguém a não ser ao Ernie há poucas semanas. A tia Olívia nunca soube.

Oh, por amor de Deus! - exclamou Ana. - Ela gostava de ti como de mais nada nem de mais ninguém. Nunca poderia sentir-se desapontada contigo.

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O meu pai haveria de dizer que eu era uma vergonha.

Ana sentou-se.

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Oh, Hank, é impossível que ainda estejas preocupado com o que ele pensaria!

É bem possível.

Para de pensar nele! - ordenou, e mordeu a tatuagem do thunderbird no meu braço para reforçar o que dissera.

Chegando-se de novo para o seu lado da cama, virou-se de lado com os pés gelados a tocar-me na perna boa, para mostrar que queria que eu me encostasse a ela de costas, e assim fiz.

E como vai ser quando o Jorge descobrir que é gay... se é que é mesmo? perguntei.

Isso que tem? – murmurou ela.

Talvez fique preocupado.

Puxou-me o braço, para a enlaçar e retorquiu:

Se precisar de conselhos, pode perguntar ao Ernie.

Pode ser que ele não saiba muito do assunto.

Nesse caso, pode perguntar ao pai.

Estou a falar a sério, Ana.

Hank, tu tens uma capacidade espantosa para te preocupares com tudo! Deixa-te disso! Mais a mais, se o Jorge já tem ereções aos sete anos, vai ser muito popular!

Na tarde do dia seguinte - 2 de agosto, há nove dias -, Morel telefonou. Cerveira tinha acabado de lhe ligar para lhe dizer que não havia nada no DVD que pudesse ser usado para processar qualquer um dos homens envolvidos.

Como é isso possível? - perguntei.

A Sandi está morta. E por isso não pode testemunhar contra Sottomayor, naturalmente.

O DVD testemunha contra ele! - berrei.

Ele diz que isso não basta. Têm de ter a certeza de que não há consentimento.

A raiva que me enchia o peito era uma forma de loucura explosiva.

Será que dá a impressão de que ela se sente feliz com o que se passa?! - perguntei. - Ela tinha catorze anos, porra!

Cerveira confirma que catorze anos é a idade de consentimento em Portugal.

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Isso só é verdade quando não envolve coação! O senhor ouviu alguma coisa do que lhe disse no outro dia?

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Não grite comigo, Monroe! Não pode imaginar o que sinto neste momento.

Desculpe. Mas oiça com atenção. Se um homem força uma rapariga a fazer alguma coisa que ela não quer, pode ser acusado de estupro.

Tanto faz que ela tenha catorze, quinze anos ou outra idade.

Mesmo assim, ele diz que o DVD não basta para conseguir uma condenação.

Ele viu o filme todo? - perguntei. - Viu o minuto dezassete?

Sim, ele diz que vê o filme todo.

Lembrou-lhe que o sangue que a Sandi tinha debaixo das unhas prova que ela se opôs ao pai? Ele diz que a Sandi está morta e o pai dela está morto e que não há caso.

Se ele viu o DVD, sabe que Sottomayor também a forçou. E esse filho da puta está bem vivo! Temos de o mostrar a outro procurador. Conheço alguns que...

Cerveira diz que ele fala com mais dois procuradores - interrompeu MoreI. - Todos eles concordam que não temos nada.

Pediu licença para ir buscar os cigarros. Quando voltou ao telefone, disse:

Preciso de explicar outra coisa, Monroe.

Parecia desamparado.

Que mais aconteceu? - perguntei. - Tem a ver com Susana?

Sim e não. Uma vez eu e você falamos das montanhas onde o senhor vive quando é rapaz. Lembra-se?

Vagamente.

Nestes últimos dias... É como se eu estou ao fundo de uma montanha alta... uma montanha onde vivo noutros tempos. Olho para cima e vejo o topo, e sei que nunca posso trepar lá acima. Estou velho de mais e cansado. Não posso lutar. Quando tem a minha idade, compreende que a vida é sempre uma luta... lutar por aquilo que queremos, lutar para ser ouvido ... É uma luta do primeiro ao último dia. Mas não posso fazer isso mais tempo. Tenho sessenta e dois anos. E o cimo da montanha está muito longe... muito alto. E Susana... não está já lá de qualquer maneira. Está aqui em baixo comigo.

E que quer dizer exatamente com isso? - perguntei.

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Susana e eu vamos ficar onde estamos. Sabemos que não podemos ganhar. E o pior já está, não?

E a Mariana? Pode ainda estar a sofrer num sítio qualquer.

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Cerveira diz que ela talvez tem catorze anos também.

Não, não, não! É mais nova do que a Sandi... vê-se bem!

Mon Dieu, o senhor é impossível! Não temos nenhuma prova!

Sabe o que o Cerveira está realmente a dizer-nos, não sabe? Que ninguém vai pegar neste caso aconteça o que acontecer!

Sim, Monroe, compreendo - disse ele num tom fatigado. - Penso que compreendo isso antes do senhor, de facto. Sou de um país onde isso também acontece. Egalité, fraternité... Fica muito bem nas moedas antigas, mas há. quarenta anos Que faco negócios em França e sei que o modo como as coisas funcionam é muito diferente na vida real.

Como funcionam as coisas?

Ou Cerveira já sabe que não ganha... porque as hipóteses contra ele são demasiado grandes, ou está do lado daqueles que desejam lutar.

Não faz diferença.

Faz... moralmente faz.

Moralmente? - repetiu ele, como se isso fosse uma noção absurda.

E soltou uma curta risada, embora pressentisse que estava perto das lágrimas. - O que acha que a moral tem a ver com isto? - perguntou.

Tudo.

Não, isso não lhes diz nada, Monroe! Isto é uma negociação... um acordo de negócios. E o resultado final já está decidido.

Apetecia-me gritar-lhe alguma coisa que o fizesse ter vergonha de desistir. Mais do que isso, apetecia-me berrar-lhe que iria matar Sottomayor ou fabricar provas para o culpar pelo assassinato de Coutinho. Mas, ao permitir que o silêncio se prolongasse, compreendi que nunca poderia correr tal risco - não enquanto marido e pai. A única opção que me restava era localizar Mariana, mas isso poderia levar anos. E, mesmo que viesse a encontrá-la, Sottomayor e os amigos haveriam certamente de conseguir que não testemunhasse, recorrendo a dinheiro ou a ameaças.

Como última esperança, sugeri a Morel divulgarmos o DVD através da imprensa.

Não! - bradou. - Susana não quer o mundo a ver o que acontece à filha! Não esqueça a sua promessa a mim! E a Sandi? Acha que gosta de ver toda a gente a vê-la com o pai?

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Ambos sabíamos que o seu suicídio era a prova de que a resposta seria «não!».

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Mas, se não passamos o DVD à imprensa, não acontece nada aos homens que a levaram à morte.

Quem a matou foi o pai dela! - gritou Morel.

Pelo menos podíamos arruinar-lhes a reputação - disse eu.

Numa voz lenta, suplicante, Morel respondeu:

Podemos arruinar as reputações deles apenas se deixamos que todos veem o que acontece a Sandi. A cara dela no minuto dezassete vai acabar na internet. Há milhões a verem. E Susana não sobrevive a uma coisa dessas. E eu também não. Por isso a questão agora é, Monroe, o senhor quer matar-nos, a mim e a ela?

Ao desligar, dirigi-me para o meu quarto e fechei a porta com cuidado porque não queria atrair a atenção para a minha decisão de abandonar um mundo onde Sottomayor e os amigos nunca haveriam de pagar pelos seus crimes. Não nos deveríamos recusar a jogar se as regras favorecessem sempre o outro lado? Não seria nosso dever moral fazer greve?

Logo que me vi sozinho, retirei as ligaduras do ombro e pus-me nu diante do espelho. Examinando os sulcos entrecruzados das cicatrizes - mais profundas e feias do que temera -, pedi perdão à minha mãe, porque me trouxera ao mundo sem uma imperfeição e me amamentara com o seu leite. Era caso para me perguntar se não deveria ter cuidado melhor de tudo o que ela me dera.

Depois de correr as cortinas, fiquei sentado no escuro, tentando compreender como tinha chegado àquele impasse. Onde estaria agora se tivesse morrido? Uma pergunta que não faz qualquer sentido, mas que repeti uma e outra vez, como se chamasse aos gritos na escuridão por alguém que em breve desapareceria sem deixar rasto.

Nessa noite, Ana fez a receita de Leonardo da Vinci de polenta com ameixas a ver se me punha mais bem-disposto, mas recusei-me a sair da cama. Nati trouxe-me o jantar numa bandeja. Observando a apreensão no seu olhar, lembrei-me - com um estremecimento violento, como se um foguetão me atravessasse a cabeça - que andara enervadíssimo por causa do projeto sobre Bossa Nova. Pedi-lhe desculpa por não o ter ajudado.

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Tudo bem... Já passou à história - disse ele.

Não é tanto assim - retorqui. - Foi só há duas semanas.

Isso foi antes dos tiros. - Reprimiu as lágrimas.

Foi assim que soube que a curta vida do meu filho tinha já um «antes de» e um «depois de», tal como a minha. Fora uma estupidez não ter compreendido a profundidade do seu sentimento. Quando o abracei, o seu peito delicado, tremendo contra o meu, fez com que me apercebesse pela primeira vez de que havia já nele um bom bocado do meu próprio passado, transmitido de maneiras que tinham escapado ao meu radar. Compreender isso era o

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suficiente para me fazer regressar - por breves instantes, esperando sentir o menos possível - à minha própria versão do inferno.

Contei-lhe - com arrancos e hesitações intermitentes - a primeira vez em que o meu pai nos tinha submetido a uma prova, a mim e a Ernie.

Agarrava a mão de Nati enquanto falava, e ele não ofereceu resistência. Deve ter sentido que eu não podia fazer aquilo sozinho. Talvez também tivesse já compreendido que tocar alguém era para mim um enorme conforto nos piores momentos. Quando acabei, perguntou-me:

O teu pai voltou a fazer-te isso mais alguma vez?

Fez, claro. E às vezes eu não conseguia encontrar o Ernie a tempo e então ele maltratava-o. Causou ferimentos sérios ao teu tio.

Então não havia motocultivadora?

Tínhamos uma motocultivadora, sim, mas não foi com isso que o Ernie perdeu meia orelha.

Deviam ter fugido! - exclamou o meu filho, como se o meu irmão e eu tivéssemos ainda uma hipótese de escapar; a implacável fronte ira entre passado e presente também se revelara impossível de aceitar para mim quando tinha a idade dele.

Expliquei-lhe que, quando íamos a caminho de Crawford, Ernie e eu compreendemos que, se fugíssemos, o nosso pai poderia dar uma lição definitiva à nossa mãe, e que a culpa seria nossa. Nati fez um sinal de assentimento como se compreendesse exatamente o que estivera em jogo, mas percebi que não fazia a mínima ideia do que eu estava realmente a falar. O que provavelmente era bom.

Tu e o teu irmão... é como se vocês não fossem ... não fossem como as outras pessoas - disse ele, encolhendo os ombros num gesto de frustração, por não ser capaz de encontrar as palavras certas.

Talvez os miúdos que crescem nas condições em que nós crescemos não consigam ultrapassar as barreiras que os mantêm separados

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uns dos outros. A individualidade não está tão protegida. Em certas circunstâncias, podem fundir-se uns nos outros. Acho que o teu tio e eu fomos quase uma só pessoa durante algum tempo.

Nati acenou a cabeça para mostrar que compreendia o que eu queria dizer.

Ouve, pai - disse ele, num tom de quem se prepara para dizer algo de que o outro pode não gostar. - Não quero que voltes para aquele trabalho. Nunca mais.

Antes que eu pudesse responder, desatou a chorar. Ana surgiu a correr. Depois de o termos acalmado e de os dois se terem retirado para a sala, compreendi que ia fazer o que o meu filho me pedia. Não via outra saída, de facto.

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Quando nos deitámos, enquanto se enfiava debaixo dos lençóis, Ana perguntou-me se eu ainda estava em greve.

Acho que sim.

Então fazer amor comigo está fora de questão?

Posso abrir uma exceção só por esta vez. Isto, se conseguirmos encontrar uma posição em que eu não tenha de usar o ombro que me dói.

Vais ver como sou criativa.

Mas primeiro tenho de te perguntar uma coisa.

O quê?

Ficavas chateada se eu não voltasse para a Judiciária?

Hank, isso é por causa do Nati?

Pelo tom dela, calculei que me diria que o nosso filho não tardaria a habituar-se de novo ao trabalho. E que tudo voltaria ao normal. Mas eu não queria que as coisas voltassem ao normal. Isso seria uma afronta ao que eu tinha visto no minuto 17h43.

Não. É por minha causa - retorqui. Contei-lhe aquilo dos homens na torre e disse-lhe que não voltaria a trabalhar para eles, que não tinha ainda descoberto como os iria combater, mas que o faria. - Talvez descubra onde é que Sottomayor gosta de ir jantar e pague a algum cozinheiro para lhe pôr cianeto na comida - rematei. - Talvez o fim dele chegue quando menos o esperar.

Ana riu-se. Pensava que eu estava a brincar.

Enquanto a abraçava, ocorreu-me que tinha entrado em greve não tanto para protestar contra a injustiça no mundo, mas para não me deixar levar numa vingança violenta contra Sottomayor.

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Imagino agora que muito do que disse a Ana nesse dia deve ter parecido coisa de lunático ou paranoico. Talvez ela tenha pensado que eu tomara analgésicos a mais nas semanas anteriores. E provavelmente assim fora. No entanto, ouviu-me sem me interromper e, quando acabei, beijou-me nos olhos, no nariz e nos lábios. Passados uns instantes, ficou ela por cima e guiou-me para dentro de si, mas eu inverti as posições quase de imediato para que ficasse ela por baixo, precisando, acho, de voltar a saber qual era a sensação de estar na posição de comando mesmo que apenas por breves minutos.

Tive a primeira sessão de terapia há cinco dias. A minha psicóloga, Lena Carvalho, é alta e delgada. O cabelo, caído até aos ombros, é castanho e espesso. Tem uns olhos verdes sempre curiosos que – felizmente – parecem muitas vezes adivinhar quando estão a ser demasiado insistentes na busca dos pensamentos, desviando-se para me devolverem o direito a não falar demasiado sobre mim. Deve ter perto de quarenta anos.

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«Há muitas coisas que nunca chegarei a compreender sobre esta mulher», pensei durante toda a primeira hora em que conversei com ela. O seu temperamento prático pareceu-me muitíssimo diferente do meu e tive a sensação de que ela conseguira uma fácil auto confiança. Os pais de Lena eram brasileiros, mas tinham vindo para Portugal quando ela tinha quatro anos. Doutorara-se na Universidade de North Caroline e falava um inglês fluente, embora, tal como muitos brasileiros, não conseguisse pronunciar o L antes de outra consoante. Por exemplo, diz «fayot» em vez de «felt».

Fico contente por ser mais fluente do que ela em inglês. Acho que é justo ter uma pequena vantagem.

Lena e eu falámos durante duas horas a fio, o dobro da duração habitual das sessões. Quando me perguntou de que queria eu falar, respondi:

Há uma data de coisas de que provavelmente devia falar.

Escolha uma.

Acabei por conversar sobre o desaparecimento do meu pai quando eu tinha catorze anos, e como continuo à espera de que ele apareça. Chegando à mesma conclusão a que eu chegara, ela disse:

Talvez haja mistérios que preferimos deixar por resolver.

Concordei com ela, mas expliquei-lhe que acreditava que agora estava preparado para saber o que tinha acontecido ao meu pai.

Então haveremos de o descobrir juntos - encorajou-me.

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O seu sorriso deixou-me tenso, como se estivesse a tentar enganar-me. Não consegui impedir me de responder num tom duro:

Não vejo como, a não ser que tencione ir até ao Colorado comigo e seguir uma pista que se perdeu há trinta anos. Ou que esteja em contacto com Nathan.

Nathan?

Expliquei-lhe quem era Nathan e falei-lhe na possibilidade de ele ter matado o meu pai ou arranjado alguma maneira de o forçar a sair dali, embora não tenha dito nada sobre a possível ligação dele com Ernie.

Era uma coisa que teria de esperar.

Talvez - disse ela. - Mas estou a jogar na hipótese de haver coisas a que pode não ter ligado na altura... pistas que guardou na memória e a que nunca prestou atenção. Posso ajudá-lo nisso.

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Falava como se desejasse persuadir-me de que seria uma aventura - como a viagem de jangada do Huck Finn Mississippi abaixo -, o que me fez soltar uma gargalhada, porque voltar à América comigo não haveria de ser uma viagem nada pitoresca.

Mais ou menos a meio da sessão, referiu-se a Gabriel e perguntou-me se queria contar-lhe alguma coisa sobre ele, mas aquela frontalidade deu-me vontade de me esgueirar dali para fora.

Talvez prefira escrever - sugeriu.

Escrever como?

Comece por me escrever cartas a falar nele. Já fiz isso com outros pacientes. Há muita gente que consegue escrever aquilo que não é capaz de dizer.

Não sei bem - respondi, uma maneira de dizer (não)

Pense nisso. Não há pressas. Um passo de cada vez.

Já muito perto do fim da sessão, quando Lena me perguntou se havia mais alguma coisa que eu precisasse que ela soubesse antes de darmos por terminada a consulta, falei -lhe do dia em que a minha mãe morreu. Confessei que quando me sentia mais zangado com ela e sozinho, desejava que tivesse sofrido imenso durante dois ou três segundos.

É o pensamento de que mais me envergonho - expliquei-lhe - e não quero voltar a pensar isso.

Porque...?

Porque isso me faz sentir muito má pessoa.

Há vezes em que está certo ser-se má pessoa. Pelo menos, é humano. Não tem direito a ser humano?

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Acho que não quero ser humano dessa maneira.

Esses maus pensamentos acerca da sua mãe... Que aconteceria se Ana e os seus filhos soubessem disso? Eram capazes de ficar com muito pior opinião de mim.

E depois o que acontecia?

Podia perdê-los.

Acha que Ana o deixaria e levaria os filhos com ela porque você uma vez ou outra teve maus pensamentos acerca de uma mãe que o abandonou?

Ela não nos abandonou! - respondi com uma raiva que me deixou chocado.

Se compreendi o que me contou, ela matou -se quando você e o seu irmão eram pequenos. Não é assim?

Page 350: Visionvox · Web viewE sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que

Não compreende. Ela não tinha-alternativa.

Talvez não tivesse, mas a verdade é que o deixou a si e ao seu irmão numa altura em que não podiam tomar conta de vocês. Mas voltemos à sua mulher por agora. Tenho a impressão de que acha que ela também o poderia abandonar.

Ficou furiosa comigo há tempos. Senti imenso medo de nunca mais a ver.

Mas ela fez as pazes consigo. Não o abandonou.

É verdade.

Será que o seu medo está ligado ao que a sua mãe lhe fez.

Lena sugeria que eu não vira o óbvio. E talvez assim fosse. A vergonha fez com que me encolhesse.

Em que está a pensar? - perguntou ela.

Que fui um grande desapontamento para a minha mãe - respondi.

Se assume a culpa toda, a sua mãe fica com todo o espaço para ser uma pessoa maravilhosa. Tem consciência disso?

Depois da sessão, saí para o dia ensolarado fora do prédio do consultório, tão grato pelo calor e a luz que fechei os olhos e abri os braços como se estendesse as asas. Voltei a mim duas horas mais tarde num banco da Praça da Alegria. Tinha no bolso um maço de Marlboro com dois cigarros a menos e um pequeno isqueiro azul.

G tinha atirado as canadianas para o meio de uns arbustos atrás do banco. Depois de as ter recuperado, desci a coxear a Avenida da Liberdade e apanhei o metro para a Baixa, de onde segui para casa no elétrico 28.

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No dia seguinte, logo a seguir ao almoço, Gabriel levou-me de novo para o mesmo jardinzito descuidado. Fiquei a observar uma velhota a tricotar uma roupinha de bebé amarela, um barbudo em fato de treino a fazer jogging colina acima, uma mulher nova a passear o cão, um collie saltitante e gorducho, e muitas outras pessoas que passavam apressadas. Davam a impressão de fazerem parte de uma grande exibição que se desenrolava diante dos meus olhos. Fiquei sentado, completamente imóvel, de modo a apreciar a liberdade de não ter de fazer parte do espetáculo.

Mais tarde, seguindo Alfama acima no elétrico, apercebi - me de que parecia ter aterrado fora do fio do tempo, num planeta extremamente pequeno que era só meu.

Estar em greve parecia uma coisa muito boa.

No dia seguinte, porém, pouco depois do meio-dia, voltei a mim na Avenida dos Estados Unidos da América. Passei a coxear pelos enormes e horrorosos blocos de apartamentos em

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direção à estação do metro Roma. Só depois de ter entrado no comboio me ocorreu que tinha estado em frente do prédio onde Forester e Sottomayor moravam.

Três quartos de hora mais tarde, enquanto esperava o elétrico do costume, um rapaz pediu-me lume e, ao procurar no bolso o isqueiro de G, descobri o anel de Sandi. Apertando-o na mão, percebi o que G me estava a dizer, mas não estava preparado para largar o meu pequeno planeta. Escrevi na mão: «Dá-me tempo para pensar.»

Na manhã seguinte, G escreveu em resposta: «Se me deres algum tempo também.»

Pensei em telefonar a Luci Rara lhe entregar o anel como prova mas parecia-me agora inteiramente possível que ela tivesse sido escolhida pela gente de cima como a pessoa ideal para conquistar a minha confiança e lhes passar informações sobre mim. Talvez a tivessem mandado roubar a pen de Coutinho e apagar o disco duro de Sandi.

Gostava muito de Luci, e era quase impossível imaginar que ela me pudesse ter traído, mas tornava-se muito claro nesse preciso momento que não devia confiar em mais ninguém senão na minha família. De qualquer modo, não podia arriscar-me a que ela voltasse a pensar naquele caso. Quando estivesse pronto para entrar na nova etapa da minha vida, haveria de a convidar para jantar, a ela e ao marido, e teríamos então uma longa conversa.

Há dois dias, descobri o que G queria dizer ao certo com aquele «Se me deres algum tempo também»; perdi o meu rasto das duas da

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tarde até às cinco e voltei a mim em casa, na cozinha, com uma chávena de chá quente à minha espera na bancada, ao lado de um boião de mel. Tinha dois talões de correio expresso enfiados no bolso. Um embrulho fora enviado a Tom Bagnatori do Ministério Público, na Avenida Marechal Câmara, no Rio de Janeiro; e outro a Denis Gershon da Procuradoria da República no Quai des Orfèvres, em Paris. Cada um deles pesava 148 gramas.

Ao verificar o registo de chamadas do meu telemóvel, descobri que G tinha feito três telefonemas para o Rio de Janeiro nos últimos três dias e dois para Paris. Ao ligar para o número do Brasil, confirmei que se tratava do do Ministério Público. E o mesmo se passava em relação ao francês.

Era óbvio que, ao contrário de mim, Gabriel não se sentira limitado por escrúpulos morais em relação a Susana e a Morel.

O remetente que usara era inventado, e o nome – Santorini – era o nome de solteira de Ana. Para pôr à prova a minha teoria sobre o que ele tinha enviado para o Brasil e para França, liguei para Joaquim.

Olá, Henrique, ainda bem que telefona - disse ele num tom aliviado.

Então porquê?

Nem me parecia o mesmo quando cá veio.

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Tenho andado um bocado desorientado ultimamente - retorqui.

Mas, oiça, liguei-lhe porque me esqueci de lhe perguntar quanto lhe devo pelas cópias dos DVD que me fez.

Deve estar a brincar, Henrique. Se apanhar aqueles sacanas, eu é que lhe pago! Bagnatori ligou ontem ao fim da tarde, pouco passava das sete horas em Lisboa. Pediu para falar com Gabriel Santorini e disse-me que acabara de ver o DVD que eu lhe tinha mandado.

Uma gente inacreditavelmente ruim - disse ele no seu português cantado do Brasil.

Sim, ficaria muito contente por vê-los processados.

Quem não ficaria? - retorquiu Bagnatori e acrescentou que andava há anos a reunir provas contra Forester. - Como lhe disse ao telefone, andamos há muito tempo farejando a merda que deixa por onde passa.

Então porque ainda não o prenderam? - perguntei.

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Está bem relacionado e é esperto. E as meninas não estão dispostas a testemunhar contra ele. Tem de compreender que muitas delas são tão pobres que nunca tinham estado num hotel. Ele leva-as a lojas em Ipanema para escolherem roupas de Nova Iorque e ao Palace Hotel de Copacabana para beberem champanhe francês. Elas nunca tinham visto um lustre de cristal. Nem empregados de smoking. Vêm das favelas e descobrem o prazer de dormir numa cama com lençóis de cetim.

Nem se importam que um porco de sessenta anos se ponha a arfar em cima delas durante uns minutos. Acham que é uma coisa a que tem direito por lhes comprarem tantos presentes.

Há alguma coisa que se possa fazer em relação aos outros homens que aparecem no filme? Quando falámos, disse-me que um deles vivia em Portugal e o outro em França.

Sottomayor, o sujeito da bengala, vive aqui em Lisboa. O gordo, Gilles Laplage, vive em Paris.

A não ser que eles venham ao Rio, não posso fazer nada. Já lhe tinha dito isso.

Se eles são amigos do Forester, talvez conseguisse atrair um deles, ou os dois, de alguma maneira, a ir ao Brasil. Talvez possam prender mais facilmente estrangeiros do que brasileiros. Ele desatou a rir-se.

Alguma vez esteve no Rio, Monroe?

Não.

O turismo sexual é a principal indústria local. Dezenas de milhares de europeus e americanos chegam ao Rio todos os meses, prontos a beber caipirinhas e a foder bundas brasileiras até que as picas lhes caiam.

Sempre achei a palavra «bunda» feia. Respondi com silêncio.

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Oiça, eu sei que ficou desapontado - continuou -, mas as coisas são como são. Não havia de gostar que eu mentisse. Se começássemos a prender homens como o Sottomayor por ir para a cama com algum brotinho bem jovem durante as férias, então os nossos hotéis de luxo iam à falência e o meu chefe lixava-me a mim!

Denis Gershon ainda não telefonara. Não esperava que o fizesse. Já não tinha a mínima esperança de convencer quem quer que fosse numa posição de autoridade a tomar o meu lugar neste combate.

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Quando falhamos em qualquer coisa, torna-se presente o que é possível e o que não é, e tenho a sensação de que talvez soubesse desde o princípio que isto não ia acabar de maneira satisfatória. Pensava ultimamente que não conseguia ouvir as mensagens que o mundo procurava dizer-me, mas é possível que já as tivesse ouvido e não pudesse simplesmente aceitar o que tinham para me dizer.

E no entanto também é verdade que a ideia de embarcar numa lenta e solitária campanha em favor da justiça - inteiramente em segredo - ainda me atrai. Ao fim e ao cabo, daqui a um ano ou dois - ou quem sabe dentro de alguns meses -, Sottomayor vai de certeza sentir a falta do prazer oculto de mandar uma rapariguinha de treze anos ajoelhar-se diante dele. Dada a sua personalidade, parece-me pouco provável que desista de tais prazeres extracurriculares só porque um dos seus parceiros no crime teve um fim violento. Ou por ter tido algumas dificuldades com um polícia nascido no Colorado e que nem sequer fala português corretamente.

Tenho de estudar atentamente os seus hábitos, claro. E saber tudo sobre ele. A parte mais difícil será engendrar um plano para o apanhar numa armadilha que não me ponha em risco a mim nem a ninguém que eu ame. Naturalmente, é possível que venha a reconhecer que isso não é de modo algum realizável, que ele está demasiado alto na torre para que o possa alcançar. Mas a minha infância tornou-me inventivo e paciente. E também meticulosamente ardiloso. Acho que seria estúpido apostar contra alguém que sobreviveu ao que eu sobrevivi. Os dois, eu e Gabriel.

Um trabalho de detetive privado? É provavelmente aquilo para que andei a preparar-me a vida toda.

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Capítulo 34

Estamos a 11 de agosto de 2012, um sábado. Acordei de madrugada e contemplei o rosa e ouro do nascer do Sol sentado à janela do quarto. Ainda pensei em flutuar por aí fora em direção àquela cor, mas decidi que ficava melhor com Ana e com os miúdos.

Quando me pus de pé para descer para o andar de baixo, a minha mulher voltou-se e disse-me numa voz semiadormecida que quase se tinha esquecido de que me devia cinquenta euros, pois o meu subsídio ainda não fora cancelado. Disse-lhe que a levava a almoçar, a ela e aos

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miúdos, ao Nood com aquele balúrdio e ela dispôs os lábios para um beijo. Depois de eu a beijar, deitou-se de barriga para baixo e voltou a adormecer.

Na noite anterior decidira devolver o anel de Sandi à mãe, mas, depois de comer os meus flocos de aveia, não o encontrei no armário das especiarias onde o tinha deixado, o que queria dizer que Gabriel não estava ainda pronto para se separar dele. Procurando-o, ocorreram-me outras ideias e, enquanto esperava que o chá estivesse pronto, fui buscar ao seu esconderijo a caixa com os tesouros da minha mãe e rasguei a fita amarelecida com que a tinha selado vinte anos antes. O livro de Pablo Neruda, Vinte Poemas de Amor, estava no fundo, sob os retratos a carvão que ela fizera quando eu era pequeno e a antiga pregadeira de ametista que usava sempre para ir à igreja, além da minha metade do baralho. Não sabia que andava à procura do livro, mas, quando

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vi a capa - um papagaio de papel voando num céu de um azul pálido o meu coração começou a bater mais depressa.

Quando abri o livro na página de guarda, uma flor caiu - uma erva-pombinha dourada.

Voltei a colocar no sítio a flor de um amarelo apagado, fina como papel, e comecei a folhear o livro. Tinha um cheiro acre, a pó e vinagre.

Ao abrir a primeira página, descobri que tinha sido impresso em 1942 na Colección Cometa. Como é que ainda me lembrava passados tantos anos que a citação que eu procurava pertencia ao décimo quarto poema?

Te traeré de las montanas flores alegres, copihues,

Avellanas oscuras, y cestas silvestres de besos.

Quiero hacer contigo

Lo que la primavera hace com los cerezos

Havia muito da minha mãe simplesmente no modo como tinha traçado a linha bem direita com que sublinhara aquelas palavras maravilhosas.

«A ponta do seu lápis tocou exatamente aqui», pensei, carregando com força na primeira linha, de modo a que uma fração da grafite passasse para o meu dedo e se tornasse parte de mim. «A minha mãe olhou para esta página, exatamente como eu agora a olho.»

Enquanto tomava o pequeno-almoço, liguei a Ernie porque, depois de ter lido Pablo Neruda, finalmente compreendera o que a nossa mãe mais tinha desejado para nós. Ao mesmo tempo que me debatia com a dificuldade de exprimir por palavras quanto me sentia próximo da mãe, compreendi que o que ela desejava tão ardentemente tinha de facto acontecido, o que queria dizer que não precisava de entrar em grandes explicações.

Vivemos umas aventuras bem boas, não vivemos? - acabei por perguntar.

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É verdade, tem sido espantoso! - replicou ele na sua voz de irmão mais novo.

E ainda não chegámos ao fim.

Não, ainda aí vêm uma data de coisas boas nos próximos anos.

O entusiasmo dele dispôs-me a falar-lhe da minha terapia. Quando acabei, disse-me que tinha feito muito bem. E propôs ainda ajudar-me a pagar as sessões.

O meu subsídio cobre as despesas - disse eu.

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Então, vou começar a pagar-te, a ti e à Ana, o que vocês fizeram por mim estes anos todos. Ernie, assaltaste algum banco ou quê?

Não. Vendi dois quadros.

Não compreendo.

Dois dos meus quadros com flores... Vendi-os. Há duas semanas.

Porque não disseste nada?

Tinhas acabado de sair do hospital e pareceu-me que não era boa ocasião, e depois começámos a falar de outras coisas e, seja como for, estou a dizer-te agora.

À distância dos quase cem quilómetros que nos separavam, podia ver o sorriso de um homem correndo tão adiante das expectativas que tínhamos para ele que já não conseguia sequer avistá-las.

Quem os comprou? - perguntei.

O dono de um restaurante, o Jardine Bistro, em Wivenhoe, Inglaterra. Chama-se Christian. É de origem suíça, mas vive em Inglaterra há muito tempo.

Como é que soube do teu trabalho?

Uma das amigas dele, que se interessa por flores, descobriu os quadros na minha página do Facebook. Chama-se [o. Falou em mim ao Christian. Estou em contacto com os dois.

Tens uma página no Facebook?

Tenho. Criei-a aqui há uns meses.

E este tipo comprou dois quadros?

Comprou.

Sem os ver pessoalmente?

Tenho imagens em alta definição na minha página. Também tirei uns primeiros planos dos pormenores mais importantes e mandei-lhos pelo correio.

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Ernie, quanto te pagou ele? - perguntei num tom suspeitoso; estava com medo de que o dono do restaurante se tivesse aproveitado dele.

Mil euros.

Pelos dois?

Não, por cada um.

Era muito mais do que estava à espera, mas havia qualquer coisa que não jogava bem.

Pediste mil euros por cada quadro? - perguntei.

É um preço demasiado elevado, bem sei, mas...

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Não é nada demasiado elevado! - exclamei. - Só estou espantado por teres pedido um preço decente.

Pedi tanto a ver se ele não os comprava.

Não estou a perceber.

Os que ele queria eram os quadros de que eu gostava mesmo e não sabia bem se os queria vender; por isso, pedi um valor absurdo, mas ele aceitou-o. O tiro saiu-me pela culatra! - Riu-se com gosto. Ouvindo-o, dava-me a impressão de que acabara de escalar uma encosta ensolarada dentro de si próprio.

Ernie disse-me que tinha vendido uma grande paisagem do Black Canyon e um retrato de Rosie a dormir no seu pequeno tapete.

Já recebeste o dinheiro? - Ainda estava a ver se não haveria nada a cheirar a esturro naquele milagre.

Já. O Chris fez uma transferência anteontem. E programou uma exposição do meu trabalho no restaurante. Tem obras de arte nas paredes. Muda-as ao fim de três ou quatro meses. A minha começa em fins de novembro. Diz ele que em Inglaterra as pessoas ainda fazem compras no Natal. .. A crise lá não é tão grave como aqui.

Não queria chorar diante dele, mas também não queria desligar. Por isso, fiquei a meio caminho e não disse nada.

Ainda aí estás?

Mais ou menos - murmurei.

Pois, eu também fiquei um pouco espantado - disse ele. - Seja como for, imagino que posso pagar metade do que recebi até agora e ainda fico com dinheiro que chegue para me aguentar a mim e ao jardim por uns tempos.

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Ainda não consegui afazer-me à ideia do sucesso de Ernie. Gostava de conhecer Chris e [o, duas pessoas capazes de ver o talento do meu irmão. Ernie concordou com a ideia de irmos a Wivenhoe à abertura da exposição. Disse logo que ia beber uma boa dose de chá de valeriana antes do voo para acalmar os nervos. Terei Valium à mão para o caso de o chá não bastar.

Estive a ver o Jardine Bistro na internet. Parece uma enorme casa de tijolo. Pelo que diz a Wikipedia, Wivenhoe tem cerca de dez mil habitantes e fica na margem do rio Colne. No site do British National Rail, descobri que podemos lá ir no comboio que parte da estação de Liverpool Street em Londres. A viagem não dura mais do que uma hora e cinco minutos. Os voos de Lisboa para Londres duram apenas duas horas.

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Calculo que possamos ficar em Londres duas noites e depois apanhar o comboio para Wivenhoe. E daí, para festejarmos o sucesso de Ernie, vamos à Escócia, pois tanto ele como eu sempre desejámos ver Loch Ness. Talvez Ana possa conhecer alguns transexuais para entrevistar em Glasgow ou em Edimburgo.

É estranho que nunca me tenha ocorrido que podíamos ir com tanta facilidade a um país onde se fala inglês. Só pensar em estar lá deixa-me zonzo - como se, chegando o momento de passar o controlo de passaportes, estivesse a ultrapassar tudo o que alguma vez esperei para mim e para Ernie. Talvez ver os quadros dele numa exposição queira dizer que posso deixar de estar sempre a fazer comparações entre o que somos e aquilo que poderíamos ter sido. Espero sinceramente que sim, mas penso que só o descobrirei quando isso acontecer.

Durante as três últimas noites, depois de Ana adormecer, tenho-me sentado à secretária dela na sala e escrito a Lena sobre Gabriel, começando na altura em que eu tinha oito anos e ele me escreveu a primeira mensagem na mão, embora lhe tenha contado bastante mais do que simplesmente como e por que razão ele vem ter comigo. Tentar transmitir sentimentos que não compreendo inteiramente faz-me gaguejar interiormente e obriga-me a reescrever bastantes coisas. Apercebi-me de que era impossível falar-lhe de G sem explicar também muitas coisas sobre os meus pais e Ernie. E porque tenho finalmente de parar de mentir.

Esta manhã, descobri que gosto de fazer as camas e de arrumar os quartos dos miúdos. Ver os lençóis bem esticados e prontos para os receberem... Que mais poderia desejar? Ana compreendeu. Enquanto me observava a limpar as janelas de Nati, contou-me coisas que nunca antes me dissera, sobre ir de bicicleta para o porto de Buenos Aires quando era nova para assistir à descarga dos barcos enormes, e sobre as cortinas de veludo vermelho do bordel onde o tio [avier tinha arranjado um emprego a tocar piano - apenas uns poucos meses antes de ter desaparecido - e como o pai costumava mostrar-lhe as constelações no céu noturno. Penso que ela me contava todas estas coisas porque sabia que eu ouviria o que dissesse sem interromper as minhas limpezas.

E o que compreendi foi o seguinte: que o som da sua voz - vagueando através de memórias de infância - era igual ao da minha própria ânsia de amor, que nunca teria fim.

Ernie disse-me que vinha cá amanhã à tarde. Trará as nossas luvas de basebol. Vamos treinar pela primeira vez em trinta anos, no Largo

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de Santa Marinha, e ele não me vai dar baldas; vai lançar a bola com toda a força e obrigar-me a dar a volta ao largo, porque diz que preciso de fortalecer o ombro e a perna feridos. Diz que, se ficar satisfeito com os meus esforços - e se eu não começar com aquilo que chama as choraminguices do costume! -, depois me leva à cafetaria da Gulbenkian para uma dose dupla de musse de pera abacate.

A seguir, vai conduzir-nos até ao bairro de Coutinho. Quero dar uma espreitadela à casa abandonada com a claraboia partida, mesmo por trás da dele. Já tenho a escada, o pé de cabra e as lanternas no carro.

Duvido de que descubra quaisquer provas que valham a pena, mas aquela casa e as balas que me acertaram estão relacionados, e preciso de o ver com os meus próprios olhos.

Ter ficado as portas da morte mudou uma data de coisas, naturalmente. Quando se tem um irmão mais novo com trinta e oito anos, mas que ainda não está inteiramente convencido do seu direito a estar vivo, acaba-se por fazer praticamente tudo o que ele nos pede, como eu, que lhe telefono todas as noites antes de me deitar, e encomendo a viveiros de França e de Itália sementes para o seu jardim, e uma vez ou outra lhe lembro que, quando a barriga da mãe começou a crescer com ele lá dentro, costumava pôr-me a imaginar como iria ele ser, e haverá vezes, em momentos de particular ternura, que sou mesmo capaz de lhe dizer que meses antes de ele vir ao mundo eu sabia já a cor que os seus olhos teriam e como seria a textura do seu cabelo e o hábito que viria a ter de puxar as orelhas enquanto lê e o cheiro que o seu pescoço teria quando estivesse com sono e uma data de outras coisas. Foi assim que vim a compreender - sem ser capaz de encontrar palavras para o dizer - que desejar uma coisa com suficiente intensidade pode torná-la real.

Quando temos um filho adolescente, é possível que nos perguntamos se podemos pentear-lhe o cabelo depois do duche ou ajudá-lo a vestir a sua T-shirt favorita pelo simples prazer de tocar o que o tempo nos vai roubando, e sabemos que o estamos a irritar com cada olhar que se prolonga um pouco mais, e quando insistimos em lhe ensinar o jitterbug, mas compreendemos também que a sua exasperação é o preço que temos de pagar para nunca esquecermos que a vida dele e a nossa não estão de modo algum tão separadas como somos levados a crer.

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Se tivermos um filho de sete anos, então, temos sorte, porque naquelas noites em que não conseguimos dormir - e são muitas - podemos enfiar-nos sorrateiramente na sua cama e ele há de enrolar-se em volta de nós como se fosse de borracha e tivesse membros elásticos, fosse todo ele confiança e sono, e há de respirar encostado à nossa cara, e talvez, num dado momento, o ir e vir das suas costas contra o nosso peito apague todas as fronteiras entre os dois. Teremos a noção de como este amor imoderado que sentimos por ele poderá, um dia, fazer com que finalmente deixemos de temer a nossa própria morte. Haveremos de lhe comprar uma bicicleta, naturalmente, e prateada - «Tal qual a tua, papá!» - e ensinar-lhe a andar nela, como eu, que parti com o meu filho à aventura pelos campos perto da casa de Ernie, e, apesar de o perigo de ele ter aí algum acidente ser mínimo, o obriguei a usar o

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capacete, porque há coisas que valem a pena o risco e outras não, e é importante conhecer a diferença.

E, se tivermos uma mulher que aceitou passar por cima dos nossos maus modos e má educação, pelo menos a maior parte das vezes, então haveremos de a apertar na cama mais fortemente do que nunca e fazer como eu fiz, que prometi continuar a ir às sessões de terapia todas as semanas. Num momento de maior tranquilidade, talvez possa até admitir que estou longe de ter acabado a minha busca de justiça, ainda que tenha dito o contrário a toda a gente, mas que ela tomará outra forma se quiser continuar a ser a pessoa que quero ser; poderei mesmo arriscar-me a parecer idiota e dizer-lhe que estamos sempre a flutuar sobre as cidades e os campos dentro de nós, aproveitando os ventos interiores mais impercetiveis por cima dos telhados e escadarias e parques e canyons, em Portugal e na América e na Argentina e em qualquer outra parte, mesmo quando estamos certos de não termos forças para nos levantarmos de uma cama de hospital.

Se pensarmos a sério que estivemos quase a morrer, como eu estive, então chegaremos à conclusão de que não compreendemos grande coisa do modo como a vida funciona - as suas adições e subtrações, os que desaparecem e os que não desaparecem -, mas está bem, pelo menos por agora, porque independentemente do que aconteça ainda, haveremos de nos enfiar na cama todas as noites ao lado da pessoa que gosta de aconchegar os seus pés frios entre as nossas pernas, e nos deixa beijá-la onde quisermos. Pode ser que um dia ela nos permita mesmo dar início

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a uma nova vida dentro dela e, se tudo correr como previsto - e, naturalmente, quase nunca é o caso -, talvez desta vez seja uma menina.

E, quando se é uma pessoa como eu, acontece que por vezes, ao fazer amor com a minha mulher, numa pausa, fico a ouvir as andorinhas lá fora, tagarelando incessantemente sobre os mais fragrantes ventos de verão que conheceram e os maiores mosquitos que devoraram e sobre todas as dificuldades de viver em Portugal e sobre o que quer que seja - por mais fútil que pareça - que me apeteça sugerir-lhes. Pode acontecer, se estiver de humor filosófico, que me aperceba de que, mesmo que tivesse morrido umas semanas antes, esvaindo-me em sangue numa esquina de Lisboa, estas avezinhas de coração enlouquecido haveriam de continuar nos seus mergulhos de um lado para o outro do Largo da Santa Marinha – ou onde quer que ficasse a janela onde estivesse – falando umas com as outras sobre as mesmas surpresas e alegrias e desapontamentos e tristezas de que falam em qualquer outra parte do mundo.