varela, julia; alvarez-uria, fernando. a maquinaria escolar

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  • 8/12/2019 Varela, Julia; Alvarez-Uria, Fernando. a Maquinaria Escolar

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    VARELA, Julia., ALVAREZ-URIA, Fernando. A Maquinaria escolar. Teoria & Educao. So

    Paulo, n. 6, p.68-96, 1992.

    A maquinaria escolar

    Julia Varela

    Fernando Alvarez-Uria

    universalidade e a pretendida eternidade da Escola so pouco mais do que umailuso. Os poderosos buscam em pocas remotas e em civilizaes prestigiosas -especialmente na Grcia e na Roma clssicas - a origem das novas instituies que

    constituem os pilares de sua posio socialmente hegemnica. Desta forma procuram

    ocultar as funes que as instituies escolares cumprem na nova configurao social,ao mesmo tempo que mascaram seu prprio carter adventcio na cena scio-poltica.Este hbil estratagema serve para dotar tais instituies de um carter inexpugnvel, jque so naturalizadas, ao mesmo tempo que a ordem burguesa ou ps-burguesa sereveste de uma aurola de civilizao. Em todo caso, se a Escola existiu sempre e portoda parte, no s est justificado que continue existindo, mas tambm que suauniversalidade e eternidade a fazem to naturalcomo a vida mesma, convertendo, derebote, seu questionamento em algo impensvel ou antinatural. Isto explica por que ascrticas mais ou menos radicais instituio escolar so imediatamente identificadascom concepes quimricas que levam ao caos e ao irracionalismo. Os escassos estudos

    que procuram analisar quais so as funes sociais cumpridas pelas instituiesescolares so ainda praticamente irrelevantes frente a histrias da educao e a todo umenxame de tratados pedaggicos que contribuem para alimentar a rentvel fico dacondio natural da Escola.

    Aqui se procurar mostrar que a escola primria, enquanto forma de socializaoprivilegiada e lugar de passagem obrigatria para as crianas das classes populares, uma instituio recente cujas bases administrativas e legislativas contam com poucomais do que um sculo de existncia.1De fato, a escola pblica, gratuita e obrigatriafoi instituda por Romanones em princpios do sculo XX convertendo os professores

    em funcionrios do Estado e adotando medidas concretas para tomar efetiva a aplicaoda regulamentao que proibia o trabalho infantil antes dos dez anos. A escola nemsempre existiu; da a necessidade de determinar suas condies histricas de existnciano interior de nossa formao social. [p.69]

    Que caracteriza fundamentalmente esta instituio que ocupa o tempo e pretendeimobilizar no espao todas as crianas compreendidas entre seis e dezesseis anos? Narealidade esta maquinaria de governo da infncia no apareceu de sbito, mas, ao invsdisso, reuniu e instrumentalizou uma srie de dispositivos que emergiram e seconfiguraram a partir do sculo XVI. Trata-se de conhecer como se montaram e

    aperfeioaram as peas que possibilitaram sua constituio. Neste sentido a utilizao

    A

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    da sociologia histrica no ter como finalidade nem a idealizao romntica dopassado nem o estabelecimento de falsas analogias que sirvam hoje de lio. No sebusca dotar a histria de um carter magistral e pedaggico entre outras coisas porqueum olhar retrospectivo deste tipo tambm fruto das instituies escolares. Pretende-se,

    pelo contrrio, aplicar o mtodo genealgico para abordar o passado a partir de umaperspectiva que nos ajude a decifrar o presente, a rastrear continuidades obscuras porsua prpria imediatez, e a determinar os processos de montagem das peas mestras, seusengates, para que servem e a quem, a que sistemas de poder esto ligados, como setransformam e disfaram, como contribuem, enfim, para tomar possveis nossascondies atuais de existncia. Projeto ambicioso, sem dvida, e portanto s alcanvelem profundidade de forma coletiva, com a ajuda de todos aqueles que estodesenvolvendo trabalhos paralelos.

    Limitar-nos-emos pois simplesmente a esboar as condies sociais deaparecimento de uma srie de instncias no nosso entender fundamentais que, ao seamalgamar em princpios deste sculo, permitiram o aparecimento da chamada escolanacional:

    1. a definio de um estatuto da infncia.

    2. a emergncia de um espao especfico destinado educao das crianas.

    3. o aparecimento de um corpo de especialistas da infncia dotados de tecnologiasespecficas e de "elaborados" cdigos tericos.

    4. a destruio de outros modos de educao.

    5. a institucionalizao propriamente dita da escola: a imposio daobrigatoriedade escolar decretada pelos poderes pblicos e sancionada pelas leis.

    Definio do estatuto da i nfncia

    Assim como a escola, a criana, tal como a percebemos atualmente, no eternanem natural; uma instituio social de apario recente ligada a prticas familiares,modos de educao e, conseqentemente, a classes sociais.

    Os moralistas e homens da Igreja do Renascimento, no momento em quecomeam a se configurar os Estados administrativos modernos, colocaro em ao todoum conjunto de tticas cujo objetivo consiste em que a Igreja possa continuarconservando, e se for possvel aumentando, seu prestgio e seus poderes. Num momentoem que a autoridade da Igreja e sua influncia poltica vem-se afetadas no somente

    pelo absolutismo dos monarcas e as exigncias do incipiente estamento [p.70]administrativo, mas tambm pelas divergncias e dissidncias que surgem em seu

    prprio seio, seus representantes mais ativos fabricaro novos dispositivos deinterveno. Sua capacidade inventiva e de reao ficar bem patente na ao que

    desenvolvero em diferentes frentes.

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    Os papas, especialmente a partir de Trento, converter-se-o, cada vez mais,frente aos Conclios, na cabea da Igreja, apoiados pela Cria que sofrer ento nosem atritos - fortes modificaes. Reestruturar-se-o igualmente outros organismos ecriar-se-o novas congregaes (Congregao de Ritos, de Propaganda da F, deIndulgncias, Relquias e outras). A luta contra os hereges e a manuteno da ortodoxiaexigir uma srie de remodelaes no campo da teologia, da pastoral, da liturgia, da

    beneficncia e das misses, bem como o aparecimento de novas ordens religiosas, areforma das j existentes, a modernizao e inclusive o desaparecimento das que no seajustam devoo e religiosidade modernas. As tticas aplicadas vo ser diversificadase compreendero desde a manipulao sutil e individualizada das almas at as pregaese os gestos massivos e pblicos para a extenso e intensificao da f: a confisso, adireo espiritual, a produo de catecismos - para clrigos, ndios, adultos e crianas -,os tratados de doutrina, espiritualidade e perfeio crist, o culto aos santos, asassociaes piedosas, as numerosas canonizaes, coexistem com misses, procisses,

    criao de santurios, adorao de relquias, novenas, sermes, autos de f, caa sbruxas, tormentos inquisitoriais e ndices expurgatrios. De qualquer modo, interessa-nos sublinhar o desenvolvimento de multiformes prticas educativas que, em certamedida, afetam a reforma do prprio clero atravs de normas que buscam regular suavida e costumes, e sobretudo mediante a construo de seminrios nos quais a partir deento se procurar localizar e dirigir sua formao. A Europa inteira converte-se emterra de misso dos dois grandes blocos religiosos em luta: catlicos e protestantes. Ofanatismo religioso uma das chaves da modernidade. Nesse marco parece "natural",

    partir de uma perspectiva atual, que os indivduos de tenra idade convertam-se em um

    dos alvos privilegiados de assimilao s respectivas ortodoxias: os jovens de hoje soos futuros catlicos e protestantes de amanh, e, alm disso, sua prpria fragilidadebiolgica e seu incipiente processo de socializao fazem-nos especialmente aptos paraserem objeto de inculcao e de moralizao.

    Os reformadores catlicos, sobretudo a partir do cisma, ao mesmo tempo queutilizam todos os meios a seu alcance para ocupar postos de influncia ao lado dosmonarcas (fazendo valer seus saberes na corte, erigindo-se em conselheiros econfessores reais), poro especial empenho em constituir-se como preceptores e mestresde prncipes e ainda mais, claro, se so prncipes herdeiros. Procuraro igualmente

    educar aos novos delfins das classes distinguidas em colgios e instituies fundadaspara eles (destacam-se neste sentido os jesutas que constituem a primeira legio, a tropaavanada da contra-reforma, aos quais se seguem os somascos, os barnabitas e tantosoutros); tampouco se esquecem de abarcar postos [p.71] nos colgios maiores dasuniversidades reformadas. Os filhos dos pobres sero por sua vez objeto de "paternal

    proteo", exercida atravs de instituies caritativas e beneficentes onde serorecolhidos e doutrinados. O Conclio de Trento decreta que dever existir um cnegoem cada igreja catedralcia para instruir o baixo clero e os meninos pobres, e que devemse fundar escolas anexas a tais igrejas destinadas a formar jovens menores de 12 anos -filhos legtimos e preferentemente pobres a fim de que possam se converter emmodelares pastores de almas. Novas ordens religiosas (Clrigos da Me de Deus,

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    Doutrinos, Escolpios, Irmos das Escolas Crists, etc.) encarregar-se-o por sua partedo cuidado de jovens das classes populares e de instru-los preferentemente na doutrinacrist e nos costumes virtuosos.

    Os moralistas elaboraro programas educativos destinados instruo da

    juventude formando parte do novo contexto missionrio. Neste momento dereestruturao social retomam-se projetos j clssicos de Plato, Quintiliano,Aristteles, Plutarco, Sneca, lidos agora luz da patristca e das experincias da igreja

    primitiva. Configura-se ento um catecumenato privilegiado: a "infncia". E, tal comona Repblica de Plato, a educao ser um dos instrumentos chaves utilizados paranaturalizar uma sociedade de classes ou estamentos: existem diferentes qualidades denaturezas que exigem programas educativos diferenciados. Em conseqncia seinstituiro, pouco a pouco, diferentes infncias que abarcam desde a infncia anglicaenobilssima do Prncipe, passando pela infncia de qualidade dos filhos das classesdistinguidas, at a infncia rudedas classes populares. No necessrio dizer que oseclesisticos prestaro especialssima ateno as duas primeiras, ou infncias de elite, jque sua influncia sobre elas decisiva para a conservao e extenso da f e de seus

    prprios privilgios.

    Erasmo, Vives, Rabelais, - Lutero, Calvino, Melanchthon, Zwinglio entre osprotestantes - definiro em seus escritos a "infncia", dotando-a de algumaspropriedades nada alheias aos interesses de seu apostolado, propriedades que, por outrolado, pesaro enormemente em posteriores redefinies da mesma. E colocamos"infncia" entre aspas porque no sculo XVI est-se todavia longe de sua delimitaoenquanto etapa cronologicamente precisa. Os diferentes autores divergem notavelmenteno s a respeito dos perodos que denominam infncia, puercia e mocidade, mastambm a respeito do momento em que convm comear a ensinar aos pequenos asletras; demonstram mais acordo com relao necessidade de que desde muito cedo seiniciem na aprendizagem da f e dos bons costumes. Em geral, as caractersticas quevo conferir a esta etapa especial da vida so: maleabilidade, de onde se deriva suacapacidade para ser modelada; fragilidade (mais tarde imaturidade) que justifica suatutela; rudeza, sendo ento necessria sua "civilizao"; fraqueza de juzo, que exigedesenvolver a razo, qualidade da alma, que distingue ao homem dos animais; e, enfim,natureza em que se assentam os germens dos vcios e das virtudes - no caso dos

    moralistas mais severos converte-se em [p.72] natureza inclinada para o mal - que deve,no melhor dos casos, ser canalizada e disciplinada. A inocncia infantil uma conquista

    posterior, efeito, em grande medida, da aplicao de toda uma ortopedia moral sobre ocorpo e a alma dos jovens. Configura-se pois "a meninice", no mbito terico e abstrato,como uma etapa especialmente idnea para ser moldada, marcada, uma vez que se

    justifica a necessidade de seu governo especfico que dar lugar emergncia dedispositivos institucionais concretos; e se, no final, a poderosa arte da educaofracassa, pode-se jogar a culpa na m ndole dos sujeitos.

    Ser necessrio um processo longo e complexo para que essa indiferenciada

    etapa, denominada juventude(que vem do latim) ou mocidade(que vem do romance),subdivida-se por sua vez em estgios precisos dotados de caractersticas especificas.

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    Podem-se ressaltar trs influncias, entre outras, que parecem ter sido decisivas naconstituio progressiva da infncia: a ao educativa institucionalexercida em espaostais como colgios, hospcios, hospitais, albergues, casas de doutrina, seminrios (noexistem somente seminrios para clrigos, mas tambm seminrios para nobres, alm deseminrios nos quais se instruem os jovens das classes populares); a ao educativa darecm estreada famlia crist; e, por ltimo, uma ao educativa difusa que, pelomenos do ponto de vista formal, est especialmente vinculada s prticas derecristanizao.

    Veremos com mais detalhamento, quando nos ocuparmos da constituio dosespaos dedicados instruo da infncia, que ser nesta espcie de laboratrios, ondeemergiro e se aplicaro prticas concretas que contribuiro para tornar possvel umadefinio psicobiolgica da infncia e de onde, por sua vez, se extrairo saberes arespeito de como orient-la e dirigi-la tornando assim possvel o aparecimento da"cincia pedaggica". Nos colgios de jesutas, por exemplo, no funcionava aseparao por idades em princpio: a entrada podia se fazer desde os 6 at os 12 anos eera o nvel de instruo, marcado sobretudo pelo nvel de conhecimento do latim, queservia para agrupar pequenos e maiores. Mas, pouco a pouco, graduam-se mais osensinamentos e separam-se os maiores dos pequenos fundamentalmente por razesmorais e de disciplina. Alm disso, no caso de que ditos colgios fossem internatos,admitia-se, tambm no seu incio, que o aluno estivesse acompanhado de suacriadagem, a qual logo ser acusada de secundar e armar suas maldades. No fim, o

    jovem distinguido ter que fazer frente sozinho ao enclausuramento, especialmentequando a partir do sculo XVIII o internato se generaliza como uma instituio mais

    apropriada para sua educao: nesta poca, o consenso famlia-colgio parece estar jem marcha nas classes sociais elevadas.

    Ser pois nestes espaos que comeam as graduaes por idade, paralelamente

    a uma tutela cada vez mais individualizante:

    Sejam todos quietos, modestos e bem cristos, falem em suasconversas de Deus ou de coisas dirigidas a seu servio, procurembons companheiros, ouam missa todos os dias, confessem cada ms

    se for possvel com o mesmo confessor, faam exame [p.73] deconscincia dirio, tenham especial devoo cotidiana ao anjo da

    guarda, no entrem na escola com armas, no jurem juramentoalgum, no joguem jogos proibidos, sejam obedientes ao Reitor e a

    seus professores; e saibam que, por suas faltas, se so meninos serocastigados pelo corretor, e se so grandes sero repreendidos

    publicamente, e se no se emendarem expulsos com ignomnia daescola.2

    A esta vigilncia e cuidado contnuo e minucioso sobre meninos e grandessomar-se- progressivamente a ao da famlia, no que se refere s classes poderosas.Os tratados dirigidos instituio da famlia moderna, dedicados naturalmente a

    prncipes e grandes senhores da poca como era costume ento, e dirigidos logicamenteaos que sabem l-las, assinalam os papis que marido e mulher tero que desempenhar

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    com respeito aos mais variados assuntos: governo e administrao das finanas, criados,familiares, relaes entre esposos, e, evidentemente, nutrio e cuidado dos filhos.3Emtroca de uma custdia e superviso permanente, os moralistas oferecem aos pais o amor,a obedincia e o respeito de seus filhos. O amor natural entre pais e filhos, postoespecialmente em evidncia ento nas lutas fratricidas e parricidas pelo poder, serenfim possvel se os pais - afastando aias, amas de leite e criados, ou pelo menoscontrolando-os - exercerem sua amorosa influncia sobre a prole desde muito cedo. me oferecem, alm disso, em troca de sua recluso no lar (nada de reunies literrias,saraus, sadas perniciosas, luxos e enfeites) os poderes de governar e dirigir a casa,adestrar a criadagem, morigerar o esposo, e sobretudo, nutrir e educar a seus

    pequeninos, seu mais precioso tesouro, a me que no d o leite de seus peitos a seufilho no seno me pela metade, e todavia ainda menos se no o educa e o instrui nareligio crist e nos costumes que exige sua nobre natureza. Na aristocracia espanhola o

    peso dos eclesisticos parece ter-se deixado sentir mais do que em outros pases onde

    essa classe foi qualificada por eles em princpio de "dissoluta e viciosa". Mas parece sera nova classe em ascenso, parte dela enobrecida, a burguesia, a que mais se identificarcom suas mximas e conselhos. Lentamente se constituir a verdadeira me, a imagemda Virgem, e em oposio bruxa que mata e chupa o sangue das crianas, prostitutaque emprega abortivos e anticoncepcionais,4e vagabunda cuja promiscuidade sexual eartimanhas empregadas para "estropiar" seus filhos com o fim de lev-los a pediresmolas tampouco parecem ser do agrado dos novos agentes da norma. Os pequenosdas classes poderosas ver-se-o assim submetidos a duas tutelas, a da famlia e a docolgio, exercidas para seu prprio bem. Para os pobres uma basta-lhes: a das

    instituies de caridade. E para os do incipiente nvel mdio, em caso de merecer, osinternatos assumiro a funo familiar. Sofrem assim um isolamento mais duro j que afamlia em principio s lhes d acolhida de forma espordica.

    A estas prticas educativas familiares e institucionais junta-se uma vigilnciamultiforme dos jovens: direo espiritual; imposio de uma linguagem pura e casta,[p.74] proibio de cantares e jogos desonestos e de azar, proibio de dormir nomesmo leito com outros meninos ou adultos (costume at ento freqente), afastamentodo vulgo, uso de livros expurgados, impresso de estampas, catecismos, instrues,tratados de urbanidade (se bem que a literatura infantil propriamente dita no comea

    at o sculo XVIII), multiplicao e generalizao de temas relacionados com a"infncia": o menino Jesus, o anjo da guarda, os meninos modelos, os meninosinocentes, os meninos santos, o limbo dos meninos, e a criao de festas religiosas entreas quais sobressai a primeira comunho.5Deste modo chega-se ao sculo XVIII, comuma infncia inocente e razovel no que se refere s classes distinguidas. E se Rousseau

    pode redefinir a infncia como idade "psicolgica" com etapas s quais correspondemnecessidades e interesses, e em conseqncia suscetveis de uma educao diferenciada,deve-se sem dvida a todas essas orientaes e direes sofridas anteriormente pelos

    jovens.6

    Um dos grandes mritos de Philippe Aris ter demonstrado que a infncia, talcomo hoje a percebemos, comea-se a configurar fundamentalmente a partir do sculo

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    XVI.7Na Idade Mdia no existia uma percepo realista e sentimental da infncia: "acriana" desde que era capaz de valer-se por si mesmo integrava-se na comunidade e

    participava, na medida em que suas foras o permitiam, de suas penalidades e alegrias.Aris analisa com minuciosidade e pacincia um amplo material histrico: quadros,retratos, monumentos funerrios, vestgios de brinquedos e vestidos, testemunhosliterrios, etc. Atravs dessa anlise comprova que durante todo o sculo XVI acategoria de idade privilegiada a juventude, perodo amplo e de limites imprecisos, daqual comea a desgarrar-se no sculo XVIII uma primeira infncia: o bambino oumenino pequeno, espcie de brinquedo divertido e agradvel para os membros dasclasses altas. Uma nova diferenciao, tambm desde o ponto de vista terminolgico,apresenta-se no sculo XVIII sempre em relao com tais classes: infncia eadolescncia separam-se definitivamente; e j no sculo XIX o beb aparece como novafigura. Estas designaes lingsticas afetam infncia rica e formam parte de sua

    prpria definio. As classes populares seguem conferindo infncia, como manifestam

    em sua linguagem, um carter amplo e impreciso: sai-se dela quando se sai dadependncia.

    As artes plsticas revelam, segundo o mesmo autor, que a nova percepo dacriana est em princpio ligada iconografia religiosa. Desde finais da Idade Mdiacomea a aparecer a infncia de Jesus, representando-se a partir do sculo XIV outrasinfncias santas: Virgem, Batista, etc. No sculo XV a iconografia laica apresentacrianas misturadas com adultos em cenas de festas e jogos, que pouco a pouco sedestacam no interior do grupo para chegar, em finais do sculo XVI, a se fazeremretratos de crianas reais, existentes, retratos que se generalizaro a partir do sculo

    XVII. Desnecessrio explicitar a que classes sociais pertencem em sua maioria ascrianas de tais pinturas, baixo-relevos e esculturas. O estudo da vestimenta servetambm a este historiador para descobrir que at finais do sculo XVI [p.75] os

    pequenos, meninos e meninas, utilizam o mesmo tipo de indumentria que os adultos desua classe. Ser a partir do sculo XVII que o menino nobre ou burgus deixa de sevestir como os adultos iniciando-se assim uma moda particular para ele, pois so osmeninos, e no as meninas, os primeiros a quem afeta a especializao no vestir, domesmo modo que sero os primeiros em freqentar os colgios. Os meninos artesos ecamponeses, que vagueiam por ruas e praas, recolhem-se em cozinhas e tabernas,

    vestem-se at a entrada do sculo XIX igual aos adultos, a quem continuam unidos pelotrabalho e pelas diverses.

    E precisamente diante de jogos e diverses tambm adotaro uma nova atitudemoral os reformadores: os jogos de dinheiro e de azar, as danas, comdias e demaisespetculos pblicos sero, em caso extremo, tolerados por eles, mas nunca bem vistos.8

    Novamente os jesutas inovaro neste campo: no proibi-los mas, ao invs disso,canaliz-los, orientando-os convenientemente; jogos, danas e representaes teatraisformaro parte de seu programa educativo servindo para cultivar o corpo e o esprito.Tambm sobre o governo dos meninos sero impostas lentamente as diretrizes e os

    princpios relacionados com a prtica e a teoria jesutica: ho de estar continuamentevigiados e cuidados, mas com uma vigilncia doce, no excessivamente severa para que

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    assim seja aceita e assumida, em primeiro lugar, pelos prprios meninos, e, a seguir, porsuas famlias.

    Aris ajuda-nos a compreender como se elabora historicamente o estatuto deinfncia, contudo a perspectiva de anlise e o material que utiliza marcam a direo de

    seu trabalho. Relaciona a constituio da infncia com as classes sociais, com aemergncia da famlia moderna, e com uma srie de prticas educativas aplicadasespecialmente nos colgios. Mas relega a um segundo plano um tanto longnquo astticas empregadas no recolhimento e moralizao dos meninos pobres (sem dvida oacesso a um material que permita tal estudo muito mais complicado). Esta relegaoimpede-o de perceber que a constituio da infncia de qualidade forma parte de um

    programa poltico de dominao, j que evidente que entre os elementos constitutivosdesta infncia figuram tambm, e ocupando um lugar importante, os dispositivos deasseguramento de determinadas classes assim como sua preparao para mandar.9 Ainfncia "rica" vai ser certamente governada, mas sua submisso autoridade

    pedaggica e aos regulamentos constitui um passo para assumir "melhor", mais tarde,funes de governo. A infncia pobre, pelo contrrio, no receber tantas atenes,sendo os hospitais, os hospcios e outros espaos de correo os primeiros centros-

    pilotos destinados a model-la. E, assim como a constituio da infncia de qualidadeaparece estreitamente vinculada famlia, praticamente desde seus comeos - filhos defamlia -, a da infncia necessitada foi em seus princpios o resultado de um programade interveno direta do governo; no primeiro caso, produz-se uma delegao de poderna famlia, que por sua vez atua ajudando em sua constituio, enquanto que, nosegundo, o poder poltico arroga-se todo direito, insertando infncia pobre no terreno

    do pblico. O sentimento [p.76] de infncia - e conseqentemente o sentimento defamlia - no existir entre as classes populares at bem entrado o sculo XIX, sendo aescola obrigatria um de seus instrumentos constitutivos e propagadores.

    Emergncia de um dispositi vo institucional: o espao fechado

    A partir de um certo perodo (...), e, em todo caso de uma formadefinitiva e imperativa a partir do fim do sculo XVII, uma mudana

    considervel alterou o estado de coisas que acabo de analisar.Podemos compreend-la a partir de duas abordagens distintas. Aescola substituiu a aprendizagem como meio de educao. Isso querdizer que a criana deixou de ser misturada aos adultos e de aprendera vida diretamente, atravs do contato com eles. A despeito dasmuitas reticncias e retardamentos, a criana foi separada dosadultos e mantida distncia numa espcie de quarentena, antes de

    ser solta no mundo. Essa quarentena foi a escola, o colgio. Comeouento um longo processo de enclausuramento das crianas (como dosloucos, dos pobres e das prostitutas) que se estenderia at nossos

    dias, e ao qual se d o nome de escolarizao.10

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    Para que exista esta quarentena fsica e moral, que Aris percebe, dando mostrasde uma grande sensibilidade histrica, preciso que surja um espao deenclausuramento, lugar de isolamento, parede que separe completamente as geraes

    jovens do mundo e de seus prazeres, da carne e sua tirania, do demnio e seus enganos.O modelo do novo espao fechado, o convento, vai se constituir em forma

    paradigmtica de governo. Ideado pelos moralistas, inimigos recalcitantes dos regulares,o velho espao, destinado a transformar a personalidade do novio mediante umaregulamentao minuciosa de todas as manifestaes de sua vida, servir agora demaquinaria de transformao da juventude, fazendo das crianas, esperana da igreja,

    bons cristos, ao mesmo tempo que sditos submissos da autoridade real. 11

    As novas instituies fechadas, destinadas ao recolhimento e instruo dajuventude, que emergem a partir do sculo XVI (colgios, albergues, casas prises,casas da doutrina, casas de misericrdia, hospcios, hospitais, seminrios...) tm emcomum esta funcionalidade ordenadora, regulamentadora e sobretudo transformadorado espao conventual. Entretanto, interessa-nos particularmente ressaltar que esteespao fechado no em absoluto homogneo. Em virtude da maior ou menorqualidade da natureza dos educandos e reformandos, determinada por sua posio na

    pirmide social, iro diferir as disciplinas, flexibilizar os espaos, abrandar enfim osdestinos dos usurios. Os colgios dos jesutas tm pouco a ver com as instituies derecolhimento dos meninos pobres; "escolas" rudes e colgios de nobres quecorrespondem a naturezas de bronze e a naturezas de ouro e prata, delimitadas porPlato em A Repblica e retomadas com afinco pelos reformadores da Reforma eContra-reforma. Trata-se de um Plato integrado pelos eclesisticos em seus projetos de

    reestruturao do espao social. Do mesmo modo como em A Repblica, [p.77]pretende-se novamente, como j assinalamos, naturalizar as diferenas sociais e emconseqncia as novas formas de dominao social.12

    Entre o Prncipe menino submetido simplesmente a um enclausuramento moral eo seqestro de meninos e meninas pobres, expostos, rfos e desamparados, existe umaampla gama de formas de isolamento que, em ltima instncia, remetem a diferenas de

    percepo e valorizao social. A mxima repreenso e mnimo saber transmitidocorrespondem menor nobreza, evidentemente a dos pobres.

    Que os meninos expostos tenham seus hospital, no qual se alimentem;os que tenham mes certas, criem-nos elas at os seis anos e sejamtransferidos depois escola pblica onde aprendam as primeirasletras e bons costumes, e sejam ali mantidos.

    Governem esta escola vares honesta e cortesmente educados tantoquanto seja possvel, que comuniquem seus costumes a esta rudeescola; porque de nenhuma coisa advm maior risco aos filhos dos

    pobres, que da vil, imunda, incivil e tosca educao. No poupemgasto algum os magistrados para contratar estes mestres; que se o

    conseguem, farto proveito faro cidade que governam, com poucocusto.

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    Aprendam os meninos a viver moderadamente, mas com limpeza epureza e contentando-se com pouco; separem-nos de todos osdeleites, no se acostumem s delicias e glutonaria; no se criemescravos da gula, porque quando falta com que satisfazer seu apetite,

    abandonado todo seu pudor, entregam-se a mendigar, como vemosque fazem muitos logo que lhes falta, no a comida, seno o molho demostarda ou coisa semelhante.

    No aprendam somente a ler e a escrever, mas, ao invs disso, emprimeiro lugar, a piedade crist e a formar juzo correto das coisas.

    (...) aqueles que sejam muito jeito para as cincias, detenham-se naescola, para que sejam professores de outros ou passem ao

    seminrios de sacerdotes; os demais passem a aprender ofcios,

    conforme seja a inclinao de cada um.13

    O programa de governo dos pobres proposto por Vives ser colocado em aonos pases catlicos, sobretudo aps o dito outorgado em Roma em 12 de maro de1569 pelo Papa Pio V, com o que se inicia um recolhimento e vigilncia de pobres, deum e de outro sexo, "tanto grandes como pequenos", de uma amplitude sem

    precedentes.

    No que se refere Espanha toda uma srie de "arbitristas" interessar-se-o pelo

    problema da pobreza. No interior de seus programas os meninos pobres ocuparo umlugar que progressivamente crescer em importncia. Estes projetos coincidemcronologicamente com a grande expanso da novela picaresca enquanto literaturamoralizante destinada a neutralizar socialmente aos jovens errantes.

    O cnego Giginta, numa perspectiva de aplicao das teorias de Vives, afirmaque, alm de adestrar aos meninos pobres num ofcio mecnico, "aos que forem para asletras se lhes dar duas horas logo de manh, para aprender a ler e a escrever, [p.78] atcontar". 14Por seu lado, o mdico Cristbal Prez de Herrera dedicar um amplo espaoao "amparo e ocupao dos meninos e meninas pobres e rfos desamparados".15Neste

    higienista o que prima a necessidade de enclausuramento e de moralizao, ficando ainstruo relegada minoria seleta. Nestes projetos, que se aplicaro parcialmente nosculo XVII, comea j a ser uma realidade a separao de sexos e idades. O isolamentoconverte-se assim num dispositivo que contribui para a constituio da infncia aomesmo tempo que o prprio conceito de infncia ficar associado de forma quasenatural demarcao espao-temporal. Prez de Herrera apresenta em sua citada obraum plano diferenciado em funo da idade e dos sexos das crianas: os de tenra idadesero distribudos por prelados e corregedores entre gente rica que os crie e os ponhalogo em ofcios ou os utilize como serventes. Se com esta medida no estiverem todos

    j colocados como pupilos, sero criados em casas de expostos ou em albergues at os 7ou 8 anos, momento em que passaro s casas de doutrina ou aos seminrios. Aos de

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    maior idade, meninos e meninas, a justia encarregar-se- de p-los com amos aaprender ofcios; convm acomodar algumas meninas nos mosteiros a fim de que ali sefaam virtuosas e prestem servios a ancios e desvalidos. Aos meninos de 10 a 14anos, com boa sade e fora, se lhes dar distintas aplicaes: uns iro para a marinha,outros trabalharo nas casas de armas, outros aprendero a fabricar tapearias, tecidos etelas, outros, enfim os mais hbeis, iro para seminrios de mais alto nvel do que os jmencionados, nos quais se lhes ensinar no tanto o latim, como a matemtica, a fim deque logo se dediquem edificao, artilharia, e a outras atividades necessrias para afortificao, a conquista e o ataque. Os meninos ciganos no ficaro excludos destasmedidas. As Cortes de Burgos de 1594 prescrevem que os menores de 10 anos sejamseparados de seus pais e encerrados nas casas dos meninos da doutrina, herdeiras doshospitais que o clebre humanista espanhol sitiado em Brujas definia assim em seu

    paradigmtico tratado Sobre el socorro de los pobres: "Dou o nome de hospitais quelasinstituies nas quais os enfermos so mantidos e curados, nas quais se sustentam um

    certo nmero de necessitados, nas quais se educam os meninos e as meninas, nas quaisse criam os filhos de ningum, nas quais se encerram os loucos e nas quais os cegos

    passam a vida".

    De qualquer modo, o adestramento para os ofcios, a moralizao e fabricaode sditos virtuosos so os pilares sobre os quais se assenta a poltica de recolhimentodos pobres. Uma tica rentabilizadora do trabalho e mantenedora da ordem tende asubstituir lentamente s velhas caridades. Comeam os primeiros esboos de uma novagesto das populaes, reforada mais tarde pelos ilustrados, j na perspectiva daEconomia Poltica.

    O recolhimento e educao dos meninos pobres em instituies s quais sodestinados pouco tem que ver no apenas com a educao do prncipe menino, comotambm com a dos colegiais que, alm de se dedicarem ao estudo de matrias literrias(gramtica, retrica, dialtica) proibidas para os pobres, 16 e ao de distintas [p.79]lnguas entre as quais predomina o latim, entretm-se com jogos e espetculos cultos eadquirem maneiras cortess atravs da dana, da esgrima, da equitao e de outrosexerccios de distino que lhes proporcionaro o que Pierre Bourdieu denomina umahexis corporalem consonncia com sua categoria social. Mas no se trata unicamentede diferenas de contedos e atividades, seno que a dureza do enclausuramento, o rigor

    dos castigos, o submetimento s ordens, o distanciamento da autoridade, e aautopercepo que se lhes inculca so o fruto da diferena abismal que existe entre os

    preceptores domsticos, os colgios e "as escolas de primeiras letras" destinadas aosfilhos dos pobres.

    Formao de um corpo de especial istas

    As ordens religiosas dedicadas educao da juventude preocupar-se-o desde

    muito cedo em proporcionar aos religiosos que se ocupem deste mister uma formao

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    especial. No caso concreto dos jesutas, a obra de Jouvency, De ratione discendi etdocendi, informa-nos sobre qual h de ser a imagem do mestre e do discpulo. E verdade que preciso assinalar que a constituio da infncia e a formao de

    profissionais dedicados sua educao so as duas faces da mesma moeda. Ser noscolgios que se ensaiaro formas concretas de transmisso de conhecimentos e demodelao de comportamentos que, mediante ajustes, transformaes e modificaes aolongo de pelo menos dois sculos, suporo a aquisio de todo um acmulo de saberescodificados acerca de como pode resultar mais eficaz a ao educativa. Somente assim

    poder fazer seu aparecimento a pedagogia e seus especialistas.

    Os jesutas implicam, desde o momento de sua emergncia na cena do ensino,uma modificao considervel a respeito do clssico e arquetpico mestre. Seguindo asteorias pedaggicas de Erasmo, Vives e outros humanistas de menor renome,substituiro os mtodos drsticos de intimidao por intervenes doces eindividualizadoras.17O castigo fsico tender cada vez mais a ser substitudo por umavigilncia amorosa, uma direo espiritual atenta, uma organizao cuidada do espao edo tempo, uma sria programao dos contedos e uma aplicao de mtodos de ensinoque, alm de manter os alunos dentro dos limites corretos, os estimulem ao estudo e a seconverterem em cavalheiros catlicos perfeitos. Realizaro deste modo o impossvel:conseguir nos colgios, onde o nmero de alunos costuma ser considervel, umaformao esmerada: "no basta, nem suficiente, exercer uma influncia geral eimpessoal sobre os alunos, diz Jouvency, seno que preciso gradu-la e vari-lasegundo a idade, a inteligncia e a condio.

    Produz-se pois uma ruptura com relao ao professor das universidades einstituies educativas medievais, como assinala Durkheim, cuja autoridade baseava-sefundamentalmente na posse e transmisso de determinados saberes, enquanto que o

    professor jesuta h de ser fundamentalmente um modelo de virtude. Algo [p.80]semelhante ocorre com o processo de individualizao, j que o professor medievaldirigia-se a um amplo auditrio em que cada estudante, sem importar sua idade, eraconsiderado um ser com autonomia e no tinha portanto que ser estimulado nemtutelado; a ao do professor cessava no momento em que finalizava a lio.

    A Ratio studiorum regulamenta a ocupao do espao e do tempo de forma talque o aluno fica aprisionado numa quadrcula e dificilmente poder questionar aseparao por sees, os freqentes exerccios escritos, os distintos nveis de contedo,os prmios, recompensas e certames aos quais se v submetido. Ter que estar

    permanentemente ocupado e ativo. A aprendizagem adotar a forma de um contnuotorneio dada a diviso dos alunos de cada classe em dois campos opostos (romanos ecartagineses), divididos por sua vez em decrias que rivalizam para ocupar os primeiroslugares. Todo esse processo competitivo e de emulao refora-se com debates eexames pblicos, aos quais assistem as autoridades locais e as famlias dos colegiais.Compreende-se facilmente que o mrito individual e o xito escolar encontrem aqui seucaldo de cultura em contraste com as universidades medievais nas quais o esforo

    individual no obtinha recompensas imediatas e os escassos exames eram to somenteuma formalidade para os que assistiam aos cursos. 18

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    Este novo estatuto de mestre enquanto autoridade moral implica que, alm depossuir conhecimentos, s ele tem as chaves de uma correta interpretao da infnciaassim como do programa que os colegiais tm de seguir para adquirir oscomportamentos e os princpios que correspondem sua condio e idade.

    Todo um conjunto de saberes vo ser extrados do trato direto e contnuo comestes seres encerrados desde seus tenros anos que, dia a dia, vo se convertendo cadavez mais em meninos; saberes relacionados com a manuteno da ordem e da disciplinanas salas de aula, o estabelecimento de nveis de contedo, a inveno de novosmtodos de ensino e, em suma, conhecimento do que hoje se denomina de organizaoescolar, didtica, tcnicas de ensino e outras cinciassutis de carter pedaggico quetiveram seus comeos na gesto e no governo dos jovens. Da mesma maneira que oenclausuramento, estas aes educativas dos professores sero aplicadasdiferencialmente segundo a qualidade dos usurios. A ao individualizadora constante,que tende ao apoio, estmulo e valorizao do aluno, no faz parte das atividades dosguardies das casas de doutrina nas quais se recolhe aos rfos, nem dos seminriosonde os meninos pobres se adestraro nos ofcios. E, isso lgico, j que um autorcomo Pedro Fernndez Navarrete diz que os meninos expostos e desamparados "so omais baixo e abatido do mundo, filhos da escria, e excremento da repblica".

    Meno especial merecem os escolpios que apresentam semelhanas, pelomenos formais, com os jesutas. Seus pontos comuns poderiam explicar-se na medidaem que os discpulos de S. Jos de Calasanz adotaram a Ratio studiorumcom guia desua prtica educativa. As diferenas provem, entre outros fatores, do [p.81] pblicodistinto a que se dirigem: no momento de sua fundao limitam-se ao doutrinamentodos meninos pobres, evitam especialmente os atritos com os jesutas. Porm, pouco a

    pouco, suas ambies aumentam e se instalam em cidades e vilas onde geralmente noexistem outras ordens religiosas dedicadas instruo da juventude. Procuram entoestender seu raio de ao, o que s vezes d lugar a atritos com os professores pagos

    pelas comunidades, mas para isso tm que resolver o problema que lhes colocam suasprprias Constituies. Fazem-no empregando um hbil estratagema: as Constituiesdizem que devem dedicar-se ao doutrinamento dos meninos pobres, mas no se opemexplicitamente a que possam instruir aos meninos ricos, e, naturalmente, todos sofilhos de Deus.

    Os escolpios preocupar-se-o tambm pela formao de seus professores, peloslivros nos quais ho de ler seus alunos, pelos mtodos e tcnicas de ensino. Entretanto,seu sistema de disciplina e penalidade pedaggica difere daquele dos jesutas: seromais severos, ainda que tampouco sejam partidrios de que a letra com sangue entra.So os nicos nos pases catlicos que recolhem e depositam os meninos em suas casas,acompanham-nos formando filas e cantando cnticos religiosos com o fim de subtra-losaos perigos da rua e realizam ao mesmo tempo um trabalho de apostolado com suasfamlias. So mais estritos com as representaes teatrais e com os jogos que somente se

    permitem em casos excepcionais - carnavais, festas locais - nos quais a proibio no

    seria suficiente para conter os alunos. Diferem tambm no tipo de prmios,20na maiorfreqncia e intensidade dos exerccios piedosos, nos contedos e nas matrias de

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    ensino. E, ainda que aps a expulso dos jesutas tenham chegado a dirigir colgios denobres, as artes cavalheirescas no tiveram guarida nos seus centros.

    Esta especificidade das atividades de ensino em funo da origem social dosalunos far-se- patente no momento em que o Estado pretenda, de acordo com os

    interesses da burguesia, generalizar e impor uma formao para os filhos das classespopulares. Os novos especialistas recebero agora uma formao controlada pelo Estadoe ministrada em instituies especiais, as Escolas Normais. O objetivo primordial quedesempenhem funes de acordo com a nova sociedade em vias de industrializao.

    Em 1839 comea a funcionar a Escola Normal de Madri. No ano seguinte, umaReal Ordem estabelece sua extenso s capitais de provncia. Em 1843, Gil de Zrateelabora um regulamento uniforme para todas elas em cujo prembulo destaca a enormeimportncia do carter educativo das disciplinas a que devem se submeter os

    professores. Disciplinas que os faro acatar a autoridade estabelecida, alm de aprender,

    obedecendo, a "manter enquanto professores, a subordinao e a regularidade entre seusdiscpulos". Os aprendizes de professor sofrero um processo intensivo detransformao e vigilncia de forma que sua vida privada se imole no altar de sua futuraentrega e abnegao vida pblica. Este policiamento do [p.82] magistrio foi toeficaz que no faltaram as depuraes dos indceis e dos sonhadores.

    O Estado espera do professor que se integre numa poltica de controle dirigida aestabelecer as bases da nova configurao social atravs da imposio do castelhanocomo lngua nacional, o emprego de tcnicas para que os meninos aprendam osrudimentos da leitura, da escrita e do clculo que os capacite para conhecer e cumprir os

    deveres de cidado, e a propagao do novo sistema mtrico decimal indispensvel paraa formao de um mercado nacional. A idia de ptria e unidade poltica estar por suavez cimentada no ensino de uma geografia e de uma histria singulares. Este ensinorudimentar para gente rude e ignorante no tem por finalidade facilitar o acesso cultura, seno inculcar esteretipos e valores morais em oposio aberta s formas devida das classes populares, e sobretudo, impor-lhes hbitos de limpeza, regularidade,compostura, obedincia, diligncia, respeito autoridade, amor ao trabalho e esprito de

    poupana. O professor no possui tanto um saber, mas tcnicas de domesticao,mtodos para condicionar e manter a ordem; no transmite tanto conhecimento, masuma moral adquirida em sua prpria carne na sua passagem pela Escola Normal. Daesse carter rotineiro, repetitivo e sem substncia dos cursos escolares. A Escola Normalfar do professor um ser desclassificado em perptua aspirao reclassificao.Recrutados de estamentos sociais o suficientemente elevados para no se sentirem

    pertencentes s classes populares e o suficientemente baixos para aspirarem a umaprofisso nova, que aparea como uma via de promoo social, os professores, salvoexcees, menosprezaro a cultura das classes humildes, seus hbitos e costumes,desprezo reforado e justificado pelos cursos da Escola Normal, e tentaro transmitirsua admirao pela cultura burguesa na qual no esto completamente integrados e naqual desejam infrutiferamente integrar-se.21

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    A posio social do professor, as caractersticas institucionais da escolaobrigatria, os interesses do Estado, os mtodos e tcnicas de transmisso do saber e o

    prprio saber escolar contribuem para modelar um novo tipo de indivduo,desclassificado em parte, dividido, individualizado, um sujeito "esquizide", querompeu os laos de unio e solidariedade com seu grupo de origem e que no podeintegrar-se nos outros grupos dominantes, entre outras coisas porque o carter elementardas condutas e dos conhecimentos aprendidos na escola impedem-no. O pagamento queo professor recebe por contribuir para produzir seres hbridos e suportar sua prpriaambivalncia posicional no ser de ordem material - sua retribuio econmica foisempre baixa e mais ainda no sculo XIX - mas, ao invs disso, de tipo simblico: eleser comparado ao sacerdote (que, como ele, recebeu de Deus a vocao para umamisso evangelizadora), e ser investido de autoridade, dignidade e respeito, falsasimagens s quais dever se adequar no sem dificuldades. E para que cumpra melhorsuas funes, ou para o caso de rejeitar abertamente o modelo, [p.83] haver inspetores

    que se encarregaro de recordar-lhe as pautas corretas a que tem de ajustar-se, e depenaliz-lo no caso de que ele as infrinja.

    Destr uio de outras formas de social izao

    A escola no somente um lugar de isolamento em que se vai experimentar,sobre uma grande parte da populao infantil, mtodos e tcnicas avalizados pelo

    professor, enquanto "especialista competente", ou melhor, declarado como tal por

    autoridades legitimadoras de seus saberes e poderes; tambm uma instituio socialque emerge enfrentando outras formas de socializao e de transmisso de saberes, asquais se vero relegadas e desqualificadas por sua instaurao.

    O longo processo de destruio e desvalorizao intensiva de formas de vidadiferentes e relativamente autnomas com relao ao poder poltico inicia-se com oaparecimento dos colgios de jesutas. Estes, enquanto formas institucionalizadas detransmisso de saberes e formao de vontades, supem uma transformao dos modosde educao prprios das classes dominantes do Antigo Regime; esta novidaderesponde em realidade a uma certa perda de poder poltico e territorial por parte da

    nobreza de armas frente realeza e aos representantes dos recm constitudosestamentos administrativos ligados por sua vez aos reformadores eclesisticos. Anobreza v-se assim constrangida cada vez mais, e medida em que avana o sculoXVII, a substituir os preceptores de seus filhos pelos colgios de nobres dirigidos pelaCompanhia de Jesus. Neste sentido esta remodelao poltica apresenta uma srie de

    pontos de referncia que podem nos ajudar a entender as mudanas que se produziromais tarde no momento da imposio da escola obrigatria.

    Os colgios iro inaugurar uma nova forma de socializao que rompe a relaoexistente entre aprendizagem e formao; relao que existia tanto nos ofcios manuais

    como no ofcio das armas e inclusive em outras ocupaes liberais, tais como: medicina,

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    arquitetura e artes. No caso dos nobres, os que se dedicavam milcia se incorporavamdesde muito cedo ao mundo das armas. No estranho encontrar nos sculos XV e XVIcapites de 12 anos e at ainda mais jovens. O prprio Fernando, o Catlico, segundo ocronista real Marineo Sculo, "no tendo ainda dez anos comeou a levar as armas eofcio militar. E, criado assim entre cavalheiros e homens de guerra, e sendo j grande eno podendo entregar-se cincia das letras, careceu delas.22

    Os reformadores catlicos e os que reforam na prtica suas teorias educativasinstauram nos colgios um modo especfico e particular de educao que rompe com as

    prticas habituais de formao da nobreza e, muito mais ainda, com a aprendizagem dosofcios das classes populares. Formao e aprendizagem, graas a estas instituies, emais tarde escola, distanciar-se-o cada vez mais contribuindo para estabelecer aruptura que persiste na atualidade entre trabalho manual e [p.84] trabalho intelectual,ruptura que no lograro superar nem as declaraes de princpios dos ilustrados,destinadas a prestigiar o trabalho, nem o aparecimento das escolas de artes e ofcios.

    O colgio jesutico erige-se em grande medida em luta com as instituieseducativas medievais, semelhana da manufatura que emerge em oposio oficinaartesanal que durante longo tempo gozou dos benefcios e prerrogativas de todacorporao gremial. As universidades medievais eram igualmente corporaesestreitamente vinculadas comunidade, formavam parte do aparato eclesistico etinham uma clara dimenso poltica, com um poder de deciso e de interveno nasquestes pblicas; no raro, por exemplo, que o Conselho das Universidadesgestionasse em pocas de carestia e escassez o abastecimento de cereais para suadistribuio com o fim de fazer baixar os preos destas matrias bsicas. Os estudantes,enquanto membros de tal corporao, gozavam de uma srie de privilgios, entre, osquais figuravam a eleio das autoridades acadmicas, o direito do uso de armas, odireito de asilo, a iseno de impostos, sua tumultuosa participao na proviso dectedras, tribunais especiais, etc. Esta presena e capacidade de deciso dos estudantesna gesto e administrao da vida universitria comea a se perder no momento em queos humanistas e o prprio Pontfice impem suas diretrizes a estas corporaes. No casoespanhol, a Universidade modelo de Alcal, patrocinada por Cisneros, significa ocomeo desta nova poltica.23 Evidentemente no se trata de idealizar uma histria

    passada que no estava isenta de conflitos e interesses partidrios seno simplesmente

    de pr em realce os mecanismos que desvincularam o saber escolar e universitrio davida poltica e social.

    Estas corporaes universitrias medievais caracterizam-se tambm pela misturade idades dos estudantes, pela simultaneidade dos ensinamentos, pela quase ausncia deexames, e pela inexistncia de prticas disciplinrias entendidas no sentido moderno eaplicadas pelos professores. Nelas fundamentalmente se adquiriam os conhecimentosnecessrios para o exerccio de clrigo: cerimonial litrgico, textos sagrados, salmos ecnticos religiosos, comentrios da Escritura, e elementos de direito eclesistico. Nestesentido eram pois uma espcie de grmios onde aprendizagem e formao estavam

    unidas; destas "escolas" medievais passa-se a instituies modernas, colgios euniversidades reformadas, que alm de conferir um novo estatuto ao saber exercero

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    sobre os estudantes funes de controle moral e de individualizao psicolgica. Afabricao da alma infantil, para a qual contribuem de forma especial os colgios, tercomo contra partida o submetimento dos corpos e a educao das vontades em que tantoinsistem os educadores religiosos. Com razo afirma Michel Foucault que a cantilenahumanista consiste em fazer-nos crer que somos mais livres quanto mais submetidosestamos: submetimento das paixes razo, submetimento do corpo ao esprito,submetimento da liberdade obedincia, submetimento da conscincia ao confessor ediretor espiritual, dos filhos aos pais, da mulher ao marido, e dos sditos ao monarca.

    Os colgios de jesutas comeam por estar separados do poder poltico: oscolegiais desligados da comunidade e individualizados perdem praticamente seus

    privilgios corporativos e ficam excludos do direito de exercer o controle dainstituio. Durkheim afirma muito acertadamente a importncia dessa perda de posse:"quando os colgios fundaram-se, e desde ento, os alunos foram tratados neles comocolegiais e nunca mais como estudantes".24Assinala com isso que os jesutas do incioa uma expropriao que assenta as bases para uma tutela e uma infantilizao que nodeixou de crescer at nossos dias. Evidentemente esse processo no se produzir semresistncias nas universidades como mostra o nmero de mandatos e despachos reaisencaminhados a fim de conter os motins e tumultos estudantis. Para neutralizar o perigoestudantil proibir-se- aos estudantes o direito de levar armas para as aulas, tero que sesubmeter a tribunais civis e sofrer as "vexaes" que lhes impe a administraouniversitria convertida a partir das reformas dos ilustrados em estamento independente,autnomo, no interior da instituio. Em proporo inversa perda de poder estudantilincrementam-se as funes reservadas ao professor, que, como temos visto, alm de

    ministrar novos saberes, inventa e aplica tcnicas didticas e pedaggicas dirigidas paraestimular e normalizar os colegiais.

    Com respeito ao saber, o colgio converte-se num lugar no qual se ensina e seaprende um amontoado de banalidades desconectadas da prtica, do mesmo modo que,mais tarde, a escola e o trabalho escolar precedem e substituem o trabalho produtivo.Esta fissura com a vida real favorecer todo tipo de formalismos que se colocam emrelevo no somente na importncia que os jesutas conferem aprendizagem emanipulao das lnguas - especialmente o latim -, seno tambm na repetio deexerccios de urbanidade e boas maneiras. Formalismos que, por outro lado, no devem

    ser subvalorizados ou ignorados j que jogam um importante papel de distino evalorizao das classes distinguidas.25 A aquisio dessas habilidades apresenta umanota diferencial: no implica na cooperao entre professores e alunos, seno que, pelocontrrio, sua organizao e planificao sero misso exclusiva do professor que seservir das prprias teorias pedaggicas para disfarar seus monoplios, podendo assimconverter estas imposies em servios desinteressados aos alunos. O colegial se verdeste modo excludo do saber e dos meios e instrumentos que permitem o acesso a ele.O saber propriedade pessoal do professor, s ele realiza a interpretao correta dosautores, conhece e censura as fontes, adequa conhecimentos e capacidades, e decide

    quem o bom aluno. Mas que saberes detm to onipotente especialista? Saberes"neutros", "imateriais", isto , saberes separados da vida social e poltica que no s tm

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    a virtude de converter em no saber os conhecimentos vulgaresdas classes populares,seno que, alm disso, atravs de mecanismos de excluso, censura, ritualizao ecanalizao dos mesmos, imporo uma distncia entre a verdade e o erro. Para asclasses distinguidas, que so sempre as classes instrudas, cunha-se a verdade do poder,verdade [p.86] luminosa afastada das praas pblicas e do contato contaminante dasmassas. Os colgios de jesutas so precisamente uma preservao do contgio dasmultides. A partir de agora a memria dos povos, os saberes adquiridos no trabalho,suas produes culturais, suas lutas, ficaro marcadas com o estigma do erro edesterradas do campo da cultura, a nica legitima porque est legitimada pelo mito da"neutralidade" e da "objetividade" da cincia. Esta relao entre o saber dominante e ossaberes submetidos reproduz-se de algum modo na relao professor-aluno, que no ,estritamente falando, nem uma relao interpessoal nem uma relao com saberes quedem conta das realidades circundantes, seno que uma relao social, de carterdesigual, marcada pelo poder e avalizada pelo estatuto de verdade conferido aos novos

    saberes.

    Mas os jesutas, e mais tarde os escolpios e outros grupos dedicados ao ensino,no somente vero com maus olhos as condies em que se desenvolve o ensinotradicional (os insultos se deixaro ouvir particularmente ao referir-se vida licenciosa,imoral, desordenada e rebelde dos estudantes), seno que desprezaro muitoespecialmente o sistema de transmisso de saberes que supe a aprendizagem

    propriamente dita ou aprendizagem de ofcios, a qual deixar ento de ser uma funonobre para converter-se no desprestigiado trabalho manual ou mecnico. Obviamente asformas de saber e de socializao do campesinato, e em geral das classes populares,

    sero qualificadas sem piedade pelos novos propagandistas da verdade legtima de"nscios principios", "vulgares opinies" e "mentecaptas supersties".

    Os artesos socializavam-se na mesma comunidade de pertencimento, formavamgrmios, irmandades ou corporaes dotadas de determinados privilgios e usavam seusdireitos para intervir na coisa pblica do mesmo modo que as universidades medievais.A aprendizagem implicava neste caso um sistema de transmisso de saber que se faziade forma hierarquizada na oficina, a qual, alm de ser lugar de trabalho, era lugar deeducao, instruo e habitat; nela coexistiam transmisso de saberes e trabalho

    produtivo. Na oficina, mestres e oficiais eram autoridade para os aprendizes, entre

    outras coisas, porque possuam um saber que era alm de um saber-fazer, uma mestriatcnica, uma percia que se alcanava atravs de longos anos de participao numtrabalho em cooperao. Os aprendizes viviam misturados com os adultos, intervinhamem suas lutas e reivindicaes, tomavam parte em seus debates, iam com eles tabernae ao cabar, tinham seu lugar em festas e celebraes, aprendiam, em contato com arealidade que os rodeava, um ofcio que no deixava de ter dificuldades nem carecia dedureza e penalidades.

    A imposio da escola obrigatria romper de forma definitiva estes laos, o quesupor um impulso para o aparecimento da infncia popular associada inculcao do

    moderno sentimento familiar nas classes trabalhadoras. Em termos gerais podese

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    representar com o seguinte esquema a mudana que se produz entre o antigo regime e asociedade burguesa nas formas de socializao de seus membros jovens: [p.87]

    Idade Mdia Antigo Regime Sociedade Burguesa

    Comunidade Famlia Famlia Conjugal

    Socializao

    Aprendizagem deofcios

    Colgios Escola

    A periculosidade social, prisma atravs do qual a burguesia perceber quase queexclusivamente, desde o sculo XIX, as classes populares,26servir de cobertura a umamultiforme gama de intromisses destinadas a destruir sua coeso assim como suasformas de parentesco associadas pelos filantropos e reformadores sociais ao vcio, imoralidade e, mais tarde, degenerao. A escola servir para preservar a infncia

    pobre deste ambiente de corrupo, livr-la do contgio e dos efeitos nocivos damisria, desclassific-la enfim, e individualiz-la, situando-a em uma no mans land

    social onde mais fcil manipul-la, para seu prprio bem, e convert-la em ponta delana da propagao da nova instituio familiar e da ordem social burguesa. Estegrande enclausuramento dos filhos dos artesos, operrios, e mais tarde, camponesesromper com laos de sangue, de amizade, com a relao com o bairro, com acomunidade, com os adultos, com o trabalho, com a terra.27O menino popular nasce emgrande medida desta violncia legal que o arranca de seu meio, de sua classe, de suacultura, para convert-lo numa mercadoria da escola, um gernio, uma plantadomstica.

    A escola, tal como o colgio de jesutas, far sua a concepo platnica dos dons

    e das aptides: se o menino fracassa deve-se a que incapaz de assimilar essesconhecimentos e hbitos to distantes dos de seu redor, portanto a culpa s sua, e o

    professor no duvidar em lembr-lo, o que s vezes significa envi-lo a uma escolaespecial para deficientes. Em todo caso lentamente a maquinaria escolar ir produzindoseus efeitos, transformando esta fora incipiente, esta tbula rasa, num bom trabalhador.Os conselhos, as histrias exemplares, a recitao em voz alta, o regulamento, acaligrafia, o trabalho escolar... so a bigorna sobre a qual o professor depositar estasnaturezas de ferro para forjar com pacincia e obstinao o futuro exrcito do trabalho.Mas a rentabilidade da escola no se circunscreve pura e simplesmente ao campo daeconomia, pois como afirma Alvaro Flrez Estrada: [p.88]

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    As vantagens que resultam para a sociedade de que se difunda ainstruo entre as classes laboriosas no se limitam a promover aindstria e a aperfeioar os artigos que tornam prazeirosa nossaexistncia material. Estendem-se a melhorar nossos costumes econsolidar as instituies que so a fonte da civilizao e refinamento

    da sociedade, no existindo bem algum que no proceda do saber,nem mal que no emane da ignorncia ou do erro. Gananciosas asmassas em gozar dos benefcios que a ordem lhes assegura, econvencidas de que seu bem estar devido exclusivamente a estearranjo, elas, se o governo no hostil, manifestar-se-o sempre

    prontas a auxili-lo, e em vez de combat-lo e de tender a transtornara tranquilidade, trabalharo para robustec-la e melhor-la. Aeducao dos trabalhadores o nico meio seguro de precaver asagitaes tormentosas e de fazer desaparecer os crimes que atrs de

    si arrasta a mendicidade, sempre desmoralizadora. 28

    I nsti tucionalizao da escola obrigatr ia e contr ole social

    A educao das classes populares e, mais concretamente, a instruo e formaosistemtica de seus filhos na escola nacional, fazem parte, na segunda metade do sculoXIX e em princpios do sculo XX, das medidas gerais do bom governo: "...operrio

    pobree foroso socorr-lo e ajud-lo; o operrio ignorantee faz-se urgncia instru-lo e educ-lo; o operrio tem instintos avessos, e no h outro recurso seno moraliz-lo

    se queremos que as sociedades e os estados tenham paz e harmonia, sade eprosperidade".29 Eis aqui, em resumo, o programa poltico destinado a resolver aquesto social, a luta de classes, no interior da qual a educao ocupa um papel

    primordial.

    No se entendero no seu justo sentido as funes desempenhadas pela nascenteescola nacional se no a inserimos neste contexto de integrao das classestrabalhadoras, de converso ordem social burguesa. Filantropos, higienistas,reformadores sociais e educadores empenham-se em ajudar "desinteressadamente" osoperrios e, do mesmo modo que anteriormente os eclesisticos, estes novos

    moralizadores de massas se arrogaro o direito verdade, a qual naturalmente asignorantes classes ho de se submeter. O mesmo ministro do governo, numa exposiodirigida ao Rei (Gaceta de 31 de agosto de 1881), assegura que "a experincia nosensina que o poderio das naes no depende exclusivamente da fora material, senoque antes ao contrrio, as verdadeiras conquistas dos tempos modernos, os triunfos e asglrias em todas suas esferas, alcanam-se com o desenvolvimento ordenado dainstruo e da educao".

    Uma srie multiforme de medidas destinadas ao controle das classes popularescomea a se aplicar, especialmente a partir da Restaurao, como complemento eficaz

    de transformao das classes perigosas e de suas cotidianas formas de existncia que aescola contribui para reforar. Entre elas podem se sublinhar as seguintes: [p.89]

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    - Construo de casas baratas para operrios.- Regulamentao do trabalho de mulheres e crianas.- Criao de caixas econmicas, sociedades mtuas, cooperativas e casas de

    seguro.- Fundao de berrios, casas-asilo, lactrios e consultrios de puericultura.- Inaugurao de dispensrios contra a tuberculose, dispensrios anti-alcolicos

    e emisso de cartilhas higinicas.- Remodelao de bairros e ampliao da vigilncia e da polcia.- Construo de crceres e manicmios para o tratamento de presos e alienados.- Nascimento da assistncia social e de sociedades para a proteo da infncia

    em perigo e perigosa.- Criao de escolas dominicais e de adultos.

    Todos esses dispositivos tm por finalidade tutelar ao operrio, moraliz-lo,convert-lo em honrado produtor, procuram igualmente neutralizar e impedir que a lutasocial transborde, pondo em perigo a estabilidade poltica. No casual que asintervenes tendentes a instaurar nas classes trabalhadoras o sentimento de famliaconjugal coincidam precisamente com a promulgao da obrigatoriedade escolar. Ooperrio, que, pacientemente, h de se fazer proprietrio de sua casa e de se preocupar

    pelo bem estar de sua famlia, estar imunizado contra os vrus da dissoluo social.Pois, como afirma Monlau, "A casa prpria e cmoda , com efeito,o princpio da vida

    bem ordenada, o primeiro atrativo do lar domstico, a salvaguarda da famlia, aordem e a moralidade de todos seus indivduos".30 Impe-se assim a necessidade deinstrumentalizar meios contra a impreviso dos trabalhadores fazendo-os adquirir o

    hbito da poupana e da previso. A s economia e a idia de ter presentes asnecessidades futuras so igualmente companheiras inseparveis da ordem e damoralidade.31

    Todos estes hbitos so difceis de arraigar naqueles que viveram durante tempona "promiscuidade", no "desperdcio" e na "desordem" de todos os excessos, por isso omenino trabalhador constituir um alvo privilegiado desta poltica de transformao dossujeitos. O menino, como se se tratasse de um capital potencial, deve ser cuidado,

    protegido e educado para se obter dele mais adiante os mximos benefcios econmicose sociais. De sua educao esperam-se os maiores e melhores frutos. Monlau resume

    com fidelidade as preocupaes humanitrias que nesse sentido mostram os maisprestigiosos filantropos da poca: La Sagra, Montesino, Gil de Zrate...

    1. Toda educao h de se basear na religio e na moral (...) em que vais te fundarpara recomendar a teu educando que seja homem pr obo e de bons costumes?

    2. Toda educao h de ter por base essencial a autor idade. Se o educando noobedece, logo ser ele quem vai mandar.32[p.90]

    A educao do menino trabalhador no tem, pois como objetivo principalensin-lo a mandar, seno a obedecer, no pretende fazer dele um homem instrudo e

    culto, seno inculcar-lhe a virtude da obedincia e a submisso autoridade e culturalegitima. Mas alm disso, e como no sculo XIX as intenes ocultam-se menos que no

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    presente, pode-se ler com freqncia que "custam menos as escolas do que asrebelies"33 com o que ficam suficientemente explicitados os benefcios que asinstituies educativas de pobres trazem s classes no poder.

    Emerge pois a escola fundamentalmente como um espao novo de tratamento

    moral no interior dos antagonismos de classe que durante todo o sculo XIX enfrentama burguesia e as classes proletrias; escola que no era possvel no comeo docapitalismo em virtude de uma impossibilidade material na poca do laissez faire: otrabalho infantil. A imposio da escola pblica o resultado destas lutas e supe fechar

    passagem a modos de educao gestionados pelas prprias classes trabalhadoras. Aburguesia impede assim a realizao de programas de auto-instruo operria queatacavam a diviso e a organizao capitalista do trabalho ao exigir uma formao

    polivalente e uma instruo unida ao trabalho e ministrada pelos prprios trabalhadorescom uma projeo poltica destinada sua emancipao. Estes programas eram tambmum ataque direto tanto aos "saberes burgueses" (especialmente histria, literatura, filosofia), considerados toscas mistificaes, como a seu modo de transmisso.34 Asano juridico-poltica do seqestro escolar da infncia rude responde aos interessesdas classes no poder que, ao tentar reproduzir as relaes capitalistas de produo,hierarquizaro e dividiro as classes populares em diferentes estamentos oferecendo-lhes em troca pequenas parcelas de saber e de poder sem que isso signifique suaintegrao nos postos de deciso poltica.

    As peas cuja lgica tentamos esboar nos quatro pontos anterioresreorganizam-se, consolidam-se e adquirem novas dimenses com a institucionalizaoda escola. O professor, junto com novos especialistas entre os quais sobressai ohigienista e o mdico puericultor,35aplicar, a partir sobretudo de finais do sculo XIX,s classes operrias e artess e, mais tarde, camponesa (a escola originariamenteurbana), as noes de singularidade e especificidade infantil. A imagem da infncia queos reformadores sociais do sculo XIX tentaram impor a tais classes apresentar traosespecficos e ser pois diferente da cunhada e assimilada anteriormente pelas classesaltas. O professor, ao se sentir superior s massas ignorantes, no admitir suas formasde vida familiar, higinica, nem, claro, educativa. No se produz em conseqnciauma relao de igualdade, de entendimento e reforo entre famlia e escola, mas, aoinvs disso, a escola pe-se em ao para suplantar a ao socializadora destas

    necessitadas classes consideradas de um ponto de vista fundamentalmente negativo.Tudo isso contribui para que os discursos pedaggicos e mdicos dirigidos a tais classesadotem essencialmente a forma de proibies enquanto que, pelo contrrio, para asclasses poderosas tero um sentido positivo, [p.91] significativo. Desenvolvem-se assim

    prticas mdico-pedaggicas que cumprem funes diferenciais do ponto de vistasocial.

    Higienistas, filantropos e educadores, de forma clara a partir de princpios dosculo XX, poro em prtica um conjunto sistemtico de regras para domesticar osfilhos dos operrios, cujos efeitos vo depender no apenas das condies de existncia

    de tais crianas e, em conseqncia, do significado que para eles tm, seno tambm de

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    como os agentes diretos da integrao social, e entre eles os professores, percebem suascondies de vida.

    O isolamento apresenta tambm formas diferenciadas no caso da escolaprimria, j que, para as crianas populares, esta instituio no tem praticamente

    nenhuma conexo com seu contexto familiar e social. Nem seus pais nem eles percebemsuas to enaltecidas virtudes em funo de uma atividade profissional posterior. Mas oque percebem sim, de forma imediata, a oposio e ruptura que a escola supe comrelao a seu espao cotidiano de vida, a sua forma habitual de estar, falar, mover-se eatuar. Nela se vero submetidos a toda uma ginstica contnua que lhes estranha:saudar com deferncia ao professor, sentar-se corretamente, permanecer em silncio eimveis, falar baixo e depois de hav-lo solicitado, levantar-se e sair ordenadamente...Fsica corporal e moral que deixa a descoberto as funes que a escola cumpre enquantoarma de gesto poltica das classes populares. O espao escolar, rigidamente ordenado eregulamentado, tratar de inculcar-lhes que o tempo ouro e o trabalho disciplina e que

    para serem homens e mulheres de princpios e proveito, tm de renunciar a seus hbitosde classe e, no melhor dos casos, envergonharem-se de pertencer a ela. No se trata,como sucedia antes com a infncia distinguida dos colgios, ou, no mesmo sculo XIX,com a que assiste numerosas instituies escolares privadas, de reforar e consolidar osentimento do prprio valor e os hbitos de classe.

    A autoridade pedaggica ver-se- agora reforada ao ser o professor umfuncionrio pblico. Ao seu poder de representante do Estado soma-se a posse da"cincia pedaggica" adquirida nas Escolas Normais. Todo um saber tcnico de comomanter a boa ordem e a disciplina em sala de aula: o mais importante continua sendo aeducao da vontade; e todo um saber terico, prximo teologia e metafsica acercada educao e seus princpios, da criana e seus progressos, da instruo e suas formas.A pedagogia como cincia ver-se- por sua vez reforada de modo inusitado, graas entrada cada vez mais intensa da psicologia no campo educativo, influncia que temservido, pelo menos, para dot-la de uma "dupla cientificidade", mais difcil de pr emquesto.

    Neste espao de domesticao, uma massa de crianas vai estar sujeita autoridade de quem rege, durante uma parte importante de suas vidas, seus

    pensamentos, palavras e obras. O professor, do mesmo modo que outros tcnicos demultides, ver-se- obrigado, para governar, a romper os laos de companheirismo,amizade e solidariedade entre seus subordinados, inculcando a delao, acompetitividade, [p.92] as odiosas comparaes, a rivalidade nas notas, a separaoentre bons e maus alunos. Deste modo, qualquer tipo de resistncia coletiva ou grupalfica descartada, e a classe converte-se numa pequena repblica platnica na qual aminoria absoluta do sbio impe-se sobre a maioria intil dos que so incapazes deregerem-se a si mesmos. Esta maioria silenciosa e segmentada dever reproduzir omodelo da sociedade burguesa composta pela soma dos indivduos. Aos mtodos deindividualizao caractersticos das instituies fechadas (quartis, fbricas, hospitais,

    crceres e manicmios) e que constituem a melhor arma de dissuaso contra qualquertentativa de contestao dos que suportam o peso do poder, emerge no interior da

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    escola, no preciso momento da sua institucionalizao um dispositivo fundamental: acarteira ou classe escolar. A inveno da carteira em frente ao banco supe umadistncia fsica e simblica entre os alunos e o grupo, e, portanto, uma vitria sobre aindisciplina. Este artefato destinado ao isolamento, imobilidade corporal, rigidez emxima individualizao permitir a emergncia de tcnicas complementares destinadasa multiplicar a submisso do aluno. Entre elas deve figurar, ocupando um posto dehonra, a psicologia escolar. Esta nova cincia encarregar-se- de fabricar o mapa damente infantil para assegurar de forma definitiva a conquista da infncia. A colonizaoexercida pela escola de alguns meninos aprisionados na carteira junta-se ento umaautntica camisa de fora psicopedaggica, que inaugura uma neocolonizao sem

    precedentes, a qual apenas comeou.36

    Por ltimo, na escola desclassificam-se de forma direta e frontal outros modosde socializao e de instruo substitudos pela integrao numa microsociedadeannima e anmica, um purgatrio, ante-sala obrigatria do trabalho manual. No poracaso que a escola procurou, e conseguiu em parte, transmitir uma viso idlica eidealizada do campons, do campo e de sua vida, nem tampouco que suas bases legais einstitucionais tenham se posto coincidindo com a promulgao das ltimas medidasdestinadas a abolir definitivamente os grmios.37 que os elementos que tentamosapresentar nesta sntese foram-se perfilando com o tempo para serem finalmenteretomados e readaptados num novo contexto histrico pelos novos grupos sociaisdominantes. No se trata pois de uma simples reproduo, mas, ao invs disso, de umaautntica inveno da burguesia para "civilizar" os filhos dos trabalhadores. Talviolncia, que no exclusivamente simblica, assenta-se num pretendido direito: o

    direito de todos educao.

    Notas

    A realizao deste trabalho no teria sido possvel sem as discusses nem ascontribuies tericas que tiveram lugar nos cursos de B. Conein, M. Meyer e P. deGaudemar, professores do Departamento de Sociologia da Universidade de Paris VIII.Sirva este estudo como demonstrao de agradecimento.

    l.As classes distinguidas enviaram seus filhos a estabelecimentos de qualidade edistino (colgios, liceus, ginsios, etc.), e supe-se que continuaro fazendo-o.

    Referimo-nos pois escola nacional em seu sentido preciso: espao de governo dosfilhos das classes desfavorecidas.

    2.Padre Nadal, S.J.: Regulae Sholasticorum pro scholasticis, em Monumentapaedagogica. S.J. Madri, 1901, T.I., pp.653-656.

    3.Entre estes tratados destacam-se os de: D.Erasmo: Apologia dei matrimonio (1528),J.L. Vives: Institutio feminae christianae (1523), e De oficio mariti (1528). Diego devila: Farsa dei matrimonio (1511). Fray Luis de Len: La perfecta casada (1583),Pedro de Lujn: Coloquios matrimoniales(1589).

    4. Os mtodos anticoncepcionais utilizados por estas mulheres malditas que, por outrolado parecem ser os mesmos utilizados ento pelas mulheres da aristocracia, so muito

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    diferentes dos empregados pela burguesia a partir da contra-reforma que se reduzempraticamente ao coitus interruptus. Ver P. Chaunu: Malthusianisme dmografique etmalthusianisme conomique, emAnnales, janeiro-fevereiro 1971, pp. 1-19.

    5.Um dos grandes propagadores do limbo das crianas e do anjo da guarda foi entre ns

    o jesuta P. Martn de Roa: Beneficios del santo ngel de nuestra guarda. Crdoba1632. E Estado de los bienaventurados en el cielo, de los nios en el limbo, de loscondenados en el infierno y de todo este universo despus de la Resurreccin y JuicioUniversal. Sevilla 1624. Esta ltima obra conheceu vrias reedies e tradues:Gerona 1627, Huesca 1628. Madri, 1645, e 1653. Alcal 1663, Milo 1630, Lyon 1631.Sobre os livros de urbanidade veja-se Norbert Elias, El processo de civilizacin. F.C.E.Madri, 1986 e Erasmo, De la urbanidad en las maneras de los nios, MEC, 1985.

    6.As meninas, respondendo imagem modlica forjada para elas pelos reformadores,devero receber uma educao domstica. Aparecem, entretanto, logo, algumas ordens

    religiosas para seu ensino: ursulinas, irms da caridade e outras que se ocupam daassistncia rfs e expostas.

    7.Philippe Aris; L 'enfant et Ia viefamiliale sous l'Ancien Rgime. Ed. du Seuil, Paris1973. (Traduccin en Ed. Taurus).

    8.J.L. Vives ser um dos primeiros a estabelecer as "regras" do jogo honesto no dilogoLas Leyes del juego. Em continuao, outros moralistas ocupar-se-o do jogo e dosespetculos pblicos: um dos textos mais conhecidos ser o de P. Mariana: Tratadocontra los juegos pblicos.

    9.A este respeito interessante completar a leitura de Aris com o nmero dedicado a"Les enfants du capital" na revistaLes Revoltes Logiques, n.3, outono de 1976. No quese refere Espanha, tentou-se mostrar a posio estratgica, do ponto de vista poltico,das formas educativas institudas nos sculos XVI e XVII em J. Varela, Modos deeducacin en la Espaa de la Contrarreforma. Ed. La Piqueta, Madri, 1984.

    10.Ph. Aris, op. cit., prefcio, p. m.

    11.Sobre o remodelamento que, na Espanha, sofre o espao conventual para servir debase a uma poltica de controle de pobres, ver: Fernando Alvarez-Uria: "De la polica dela pobreza a las crceles del alma", revista El Basilisco, n.8, 1979, pp.64.71.

    12.Carlos Lerena em Escuela, ideologa y clases sociales en Espaa, Ed. Ariel, Madri,1976, especialmente nas pginas 33-35, pe a descoberto com agudeza e rigor o artifciousado por [p.94] Plato para escamotear e ao mesmo tempo tomar inatacveis suasformulaes tericas "classistas" .

    13.J.L. Vives: De subventione pauperum. Brujas 1526. Seu programa inspira-sediretamente no exposto por Lutero em seu escrito A los magistrados de todas lasciudades alemanas, para que construyan y mantengan escuelas (1523). Do mesmomodo que Lutero, Vives tambm um dos primeiros a propor uma certa secularizaodo ensino que no caso dos meninos pobres recomenda tambm aos magistrados. Insistemenos do que Lutero em que aprendam as lnguas e as artes que, na opinio do ex-

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    agostiniano, "servem para a compreenso da Sagrada Escritura e para o desempenho dogoverno civil".

    14.M. Giginta: Tratado de remedio de pobres. Coimbra 1579, cap.III, fol. 14 vto.

    15.C. Prez de Herrera:Discurso del amparo de los legtimos pobres y reduccin de los

    fingidos; y de la fundacin y principio de los albergues de estos reinos, y amparo de lamilicia de ellos. Madri, 1598, Discurso III.

    16.Sobre este ponto pode-se ver o Postfcio de 1. Varela obra de A. Querrien;Trabajos elementales sobre la escuela primaria. Ed. de la Piqueta, Madri, 1979, ps.175, onde so citadas as pragmticas de Felipe IV e Carlos III proibindo o ensino dagramtica aos meninos recolhidos nas instituies de caridade.

    17.Sobre a "pedagogia jesutica", escreveram pginas notveis: E. Durkheim:L'volution pdagogique en France, PUF, Paris 1969,2 ed., cap.V e VI (traduo na

    Ed. La Piqueta) e M. Foucault: Vigiar y castigar. Nacimiento de la prisin. Ed. SigloXXI, na parte dedicada s disciplinas enquanto "mtodos que permitem o controleminucioso do corpo, que asseguram o submetimento constante de suas foras eimpem-lhe uma relao de docilidade".

    18.Esta tica do rendimento coerente com o ponto de vista molinista queengenhosamente tenta conciliar liberdade humana e predestinao. De fato os colgiosguardam uma certa proporcionalidade com a teoria da graa: neles se trata inutilmentede conciliar a liberdade individual do aluno com a autoridade predeterminante do

    professor, servindo-se de uma especial via mdia: a pedagogia jesutica. Pedagogia e

    moral convertero logicamente aos jesutas nos verdadeiros mestres da sutileza.19.P. Fernndez Navarrete: Conservacin de Monarqua y Discursos polticos sobre la

    gran consulta que el Consejo hizo ao Sr. Rey D. Felipe III, al Presidente y ConsejoSupremo de Castilla. Madri 1626. Discurso 47, no qual especifica alm disso que "pela

    boa razo de Estado seria mais conveniente e maior beneficio para a repblica criartodos estes moos, ensinando-lhes os ofcios mais baixos e rebaixados, a que no seinclinam os que tm posses para aspirar a ocupaes maiores".

    20.A. Astrain: S.J.: Historia de la Compaa de Jess en la asistencia de Espaa.Madri, 1905, t.I1, p.581, refere como em Sevilha em 1562 um de seus brilhantes alunos

    foi premiado com doze pares de luvas e outro com um bon. Os escolpios nocostumavam ser to refinados, seus prmios consistiam em estampas e livrinhos

    piedosos.

    21.As geralmente estreis aspiraes dos professores para integrarem-se na alta culturaconduz em inmeros casos ao pedantismo e afetao, formas comuns decomportamento entre estes profissionais que se vem obrigados a secretarcontinuamente imagens de distino para se fazerem valer.

    22.L. Marieno Sculo: Sumario de la clarsima vida y heroicos hechos de los CatlicosReyes D. Fernando y Da. Isabel, de inmortal memoria. Extrado da Obra grande de lascosas memorables de Espaa. Madri, 1587, fol. 7.

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    [p.95]

    23. Sobre a universidade espanhola enquanto comunidade cientfica, econmica ereligiosa, assim como acerca das liberdades e costumes de seus estudantes, oferece umasrie de dados a obra de A. Bonilla de San Martn: Discurso ledo en la solemne

    inauguracin del Curso Acadmico 191415. La vida corporativa de los estudiantesespaoles en sua relacin con la historia de las universidades. Madri, 1914. Numsentido mais geral vejam-se as obras clssicas de H. Rashdall: The Universities of

    Europe in the Middle Ages, Londres 1936, 3 T., c J. Le Goff:Les intellectuels du MoyenAge, Paris, 1957.

    24. E. Durkheim: op.cit, p. 187.

    25.Sobre a estratgia da distino, P. Bourdieu escreveu pginas notveis: Ladistinction. Critique sociale du jugement. Paris, Minuit, 1979. (Traduo espanhola daEditora Taurus). 26.1. Chevalier analisa como se produz este processo em: Classes

    laborieuses et classes dangereuses. Paris, Plon, 1968.

    27.K. Marx: Grundrisse, cap. do Capital: "Formas anteriores produo capitalista",mostra com preciso o que implica a destruio das corporaes e, em geral, adissoluo das velhas relaes de produo.

    28.A. Flrez Estrada: Curso de economia poltica, p. 93. T. CXII da BAE. Note-se queno referente ao saber, a desposesso que sofrem essas crianas totalmente diferentedaquela sofrida pelos filhos da nobreza e da burguesia nos colgios, j que para ascrianas pobres a cultura que se pe em questo sua prpria socializao, seus valores

    culturais e sua identidade como grupo social.29.P.F.Monlau: Elementos de higiene pblica o Arte de conservar la salud de los

    pueblos, Madri, 1871,3" ed., p. 171. Depois de semelhante caracterizao do operriono estranho que deseje empregar todos os meios para educ-lo: "no o duvide oGoverno: a topografia da populao, sua limpeza e boa ordem, as fontes monumentais,as esttuas, as instituies civis, polticas e religiosas, os regozijos pblicos, ascalamidades pblicas, etc., tudo, tudo educaos povos: faa-se pois de sorte que tudo,absolutamente tudo, contribua para sua boaeducao" (p. 353).

    30.P.F.Monlau: op. cit., p. 279.

    31.Sobre as funes educativas da previso, pode ver-se o trabalho de J. Varela,"Tcnicas de control social en la Restauracin" inEl cura Galeote asesino del obispo de

    Madrid-Alcal, Ed. de Ia Piqueta, Madri, 1979, pp. 210-236.

    32.P.F.Monlau: op. cit., p. 345.

    33.M. Fernndez y Gonzles titula assim seu artigo:El fomento de las artes. IlustracinEspaola y Americana, 30, setembro 1881, p. 187.

    34.M. Foucault:Microfsica del poder. Ed. de la Piqueta, Madri, 1978, vai mais alm,ao afirmar que "o saber oficial representou sempre o poder poltico como o centro de

    uma luta dentro de uma classe social (disputas dinsticas na aristocracia, conflitosparlamentares na burguesia); ou inclusive como o centro de uma luta entre a aristocracia

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    e a burguesia. Quanto aos movimentos populares, tm sido apresentados comoproduzidos pela fome, pelos impostos, pelo desemprego, nunca como uma luta pelopoder, como se as massas pudessem sonhar com comer, mas no com exercer o poder"(pp. 32-33).

    35.L. Boltanski:Puericultura y la moral de clase. Ed. Laia, Barcelona, 1974, explica asdiferentes funes cumpridas pelas regras de puericultura em relao s classes sociaiss quais so dirigidas.

    36. Veja-se sobre este tema: F. Alvarez-Ura e J. Varela: Las redes de la psicologa,Ediciones Libertarias, Madri, 1986.

    [p.96]

    37.Nas Cortes de Cdiz, o projeto de abolio dos grmios defendido pelo Conde deToreno (31 de maio de 1813). Neste mesmo ano escreve Quintana em seu Informe para

    la reforma de la Instruccin Pblica. No Trinio Liberal, proclama-se a liberdade deindstria, ao mesmo tempo que surge o Primeiro Regulamento Geral de InstruoPblica. O decreto de 20 de janeiro de 1834 liquida os grmios. E em 1836, restabelece-se a Constituio de 1812, assim como a legislao sobre o ensino promulgado noTrinio Liberal. Finalmente em 1838, promulga-se a Lei de instruo primriaelementar e superior, assim como o Regulamento de escolas pblicas.

    Este artigo foi publicado inicialmente no livro Arqueologa de la escuela, de FernandoAlvarez-Ura e Julia Varela, Madri, Ediciones de la Piqueta, 1991. Transcrito aqui com

    a autorizao dos autores.Traduo de Guacira Lopes Louro.