urbe magica mystuca mitica

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MYSTICA URBEUM ESTUDO ANTROPOLÓGICO SOBRE O

CIRCUITO NEO-ESOTÉRICO NA METRÓPOLE

© 1999 Livros Studio Nobel Ltda.

Livros Studio Nobel Ltda.

Al. Ministro Rocha Azevedo, 1077 — cj. 2201410-003 — São Paulo — SPFone/Fax: (11)3061-0838E-mail: [email protected]

Distribuição/Vendas

Livraria Nobel S.A.Rua da Balsa, 55902910-000 — São Paulo — SPFone: (11)3933-2822Fax: (11)3931-3988E-mail: [email protected]

É PROIBIDA A REPRODUÇÃO

Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida sem a permissão por escrito dos editorespor qualquer meio: xerox, fotocópia, fotográfico, fotomecânico. Tampouco poderá sercopiada ou transcrita, nem mesmo transmitida por meios eletrônicos ou gravações. Osinfratores serão punidos pela lei 5.988, de 14 de dezembro de 1973, artigos 122-130.

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

José Guilherme C. Magnani

Studio Nobel

MYSTICA URBEUM ESTUDO ANTROPOLÓGICO SOBRE O

CIRCUITO NEO-ESOTÉRICO NA METRÓPOLE

Coordenação EditorialCarla Milano

Edição de textoMartha Assis de Almeida Kuhl

RevisãoClaudia Jorge Cantarin DominguesSandra Regina de Souza

CapaMoema Cavalcanti

ComposiçãoMCT Produções Gráficas

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Índice para catálogo sistemático:1. São Paulo : Cidade : Neo-esoterismo :

Antropologia urbana : Sociologia 307.760981611

Magnani, José Guilherme C., 1944-Mystica urbe : um estudo antropológico sobre o circuito neo-esotérico na cidade /

José Guilherme Cantor Magnani. — São Paulo : Studio Nobel, 1999. — (Coleção cidadeaberta)

Bibliografia.ISBN 85-85445-85-8

1. Antropologia urbana — São Paulo (SP) 2. Espiritualidade — São Paulo (SP)3. Ocultismo — São Paulo (SP) I. Título. II. Série.

99-4717 CDD-307.760981611

Sumário

Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

1. O fenômeno do “neo-esoterismo” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92. As interpretações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133. A proposta deste livro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16

1. Os espaços . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

1. Mapeamento e classificação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 232. A dinâmica interna . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29

2. As práticas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39

1. Divulgação e formação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 402. Terapias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 463. Vivências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49

3. As regularidades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57

1. No tempo: o calendário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 572. No espaço: circuitos e trajetos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65

2.1. O circuito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 672.2. Um exemplo de circuito e trajetos: terapeutas naturistas . . . . . . . . . . . 702.3. Os trajetos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74

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2.4. Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 763. No discurso: a narrativa de base . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 78

3.1. A grande narrativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 793.2. Tradição e Ciência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 823.3. A matriz discursiva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86

4. O ethos neo-esô . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99

1. Os freqüentadores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1002. A formação de uma sensibilidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1033. O estilo de vida neo-esô . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 116

Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131

Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137

Teses e dissertações, relatórios, projetos de pesquisa . . . . . . . . . . . . . . . 140Jornais, revistas e endereços na internet . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 142

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Apresentação

As imagens de maior impacto, quando se quer ilustrar a vida nas metrópolescontemporâneas, têm como referente a grandiosidade de suas edificações e obrasde infra-estrutura, as repercussões dos eventos de massa e até mesmo a magnitudede suas catástrofes; ou então o particularismo de personagens excêntricos, comseus comportamentos exóticos e ocupações pouco convencionais. Justapondo osdois planos, tem-se como representação o indivíduo em sua singularidade, emer-gindo da escala desproporcional das estruturas com as quais se enfrenta ou pelasquais é sufocado.

O efeito é forte, impressiona e ilustra bem uma das dimensões das grandescidades. Mas para fazer jus à complexidade da dinâmica urbana falta um termonessa polaridade: aquele constituído pelas inúmeras, ricas e mesmo surpreenden-tes mediações entre a instância da individualidade e a das instituições e contextosurbanos mais abrangentes.

Se o excepcional chama a atenção, o que caracteriza os processos do coti-diano é seu caráter reiterativo, revelado por um olhar atento às redes de sociabili-dade, às formas de uso e apropriação dos espaços públicos, às práticas e aospadrões de comportamento que fundamentam estilos de vida comuns; vistas desseângulo, até mesmo algumas das excentricidades — assim rotuladas pela mídia —terminam revelando suas próprias e prosaicas rotinas.

Este livro tem como objeto de estudo a presença, na dinâmica da cidade, deum conjunto de atividades e comportamentos que formam um circuito delimitadona metrópole paulistana. É o circuito do que aqui será denominado “neo-esoteris-mo” e que, entre outras características, se apresenta como uma busca de novosparadigmas de conhecimento, de uma espiritualidade independente de sistemas

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religiosos institucionalizados e de uma visão “holística” do homem e da natureza,tendências de ampla circulação e visibilidade nos anos 80 e 90.

Algumas associações que fazem parte desse circuito já existiam antes dochamado “boom do esoterismo” daquelas décadas, dedicando-se ao estudo, ensi-no e prática de suas especialidades há algum tempo. Tais atividades, assim comosua fundamentação, propósitos e seriedade, não estão em pauta aqui: a pesquisanão se propôs a rastrear a origem, descrever o funcionamento e muito menosjulgar o acerto dessas e das novas práticas ou submetê-las a critérios de verdade;seu objetivo é identificar a lógica que transcende o horizonte de cada uma e queassim termina produzindo efeitos no plano do comportamento de um círculo maisamplo de usuários.

No entanto, independentemente das intenções dos integrantes de grupos, ins-tituições e espaços que desenvolvem suas atividades à margem do “fenômenoneo-esotérico” ou anteriormente a ele, agora estão inseridos num mainstream emque as particularidades, válidas no interior da própria instituição, dialogam comnovas correntes, influenciam-nas e são tocadas por tendências mais gerais, respon-sáveis por uma imagem pública que a mídia reverbera e não raro homogeneiza.

Isso não significa que estejam todos nivelados, nem que ao lado de prati-cantes de longa data e profunda convicção não haja aqueles que só recentementeforam tocados por alguma das múltiplas mensagens da chamada Nova Era e atémesmo aqueles para quem esse movimento é apenas um (rentável) negócio; opresente estudo propõe-se a ensaiar critérios que permitam distinguir planos etipos que o senso comum muitas vezes junta de forma indiscriminada.

Seja como for, o atual fenômeno do neo-esoterismo está na base de uma formaparticular de pensar, agir, comunicar-se e usufruir o tempo livre no contexto dametrópole e este é o principal objetivo do livro: identificar a emergência e a consoli-dação de um estilo de vida que já não pode ser relegado a escolhas meramenteindividuais nem reduzido a comportamentos tidos como exóticos, desviantes.

Tendo como referência a área temática da Antropologia Urbana, o horizontemais geral da pesquisa é a análise de processos sociais e culturais que se desen-volvem em escala metropolitana, procurando, com base em determinadas catego-rias, elucidar alguns aspectos da forma como transcorre a dinâmica cultural nocontexto da grande cidade.

O estudo teve como base um trabalho de campo com levantamentos, entre-vistas, observação direta, elaboração de mapas e listagens e contou com a partici-pação de vários integrantes do NAU (Núcleo de Antropologia Urbana), algunsmais diretamente na fase de coleta de dados, outros na discussão dos resultados eleitura das primeiras versões. Registro também e agradeço os apoios financeirosdo CNPq e da FAPESP.

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Introdução

1. O fenômeno do “neo-esoterismo”

Em fins dos anos sessenta o sociólogo Peter Berger lançava um livro com osugestivo título Um rumor de anjos, mostrando que os “sinais da transcendência”— poderosos e visíveis em épocas passadas — teriam sido reduzidos, nos temposmodernos, a tímidos indícios, algo assim como o som das asas dos mensageirosdivinos.

Quase trinta anos depois, outro livro volta a falar de anjos, mas desta vez nadireção oposta à de Berger. Em Presságios do milênio: anjos, sonhos e imortali-dade (1996), o ensaísta Harold Bloom expõe os exageros e contrafações dessestemas nas atuais práticas “esotéricas” ou “místicas” nos Estados Unidos, emcomparação com os contextos históricos do gnosticismo cristão, da cabala judaicae do sufismo muçulmano, com os quais, segundo o autor, aquelas crenças estãooriginariamente relacionadas.1

A julgar pela atual disseminação, em âmbito mundial, dessas e outras práti-cas mais comumente agrupadas sob a genérica denominação de “esotéricas” —fenômeno também conhecido como Nova Era, Conspiração Aquariana, Movi-mento do Potencial Humano, Era de Aquário, Nova Consciência2 —, o delicadorumor dos arautos do sobrenatural mudou de escala e subiu de tom. Agora, estápor toda parte: nos anúncios classificados de jornais e revistas, em lugar dedestaque nos estandes das livrarias e no topo das listas do mais vendidos, é temade talk-shows da televisão e de chats na internet, faz parte de selecionados mai-

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lings mas também circula nos adesivos de automóveis, é divulgado em folhetos e,finalmente, estava, na época, disponível na linha 0900 de serviços de telefone.

Ponto de confluência de elementos das mais diferentes tradições, esse con-junto passou a abrigar uma ampla gama de produtos, atividades e serviços que vaidesde consultas a antigas artes divinatórias, passando por terapias não convencio-nais e exercícios de inspiração oriental, até vivências xamânicas, técnicas demeditação, cursos e workshops sobre crenças e sistemas filosóficos de váriasorigens. Completa esse quadro a disseminação do consumo de artigos correlatoscomo compact discs de New Age e world music, livros de auto-ajuda, produtosorgânicos, incensos, cristais, pêndulos, imagens de anjos e duendes etc.

Há quem considere a difusão desses temas e o consumo a eles ligado umfenômeno basicamente mercadológico. As impressionantes cifras associadas aalguns títulos da literatura de auto-ajuda, assim como o sistema de consulta aoráculos por telefone, amplamente anunciado na mídia, reforçam essa imagem.Trata-se, para essa interpretação, de mais um modismo escapista e passageiro,típico da sociedade consumista, induzido por uma bem montada estratégia demarketing para vender uma linha específica de produtos.3

Outra posição diante de tais práticas é a de determinados órgãos corporati-vos — conselhos profissionais geralmente da área da saúde — que vêem comdesconfiança a crescente procura pelas terapias “alternativas”. Apesar do reconhe-cimento pelo establishment médico de algumas dessas técnicas, como é o caso daacupuntura (aceita com reservas, desde que restrita a determinadas afecções eaplicada ou supervisionada por certo tipo de profissional), a maioria delas éconsiderada desprovida de base científica. Esse argumento, aliás, também é utili-zado em certos setores da área jornalística e acadêmica para contestar a validadedas previsões da astrologia, dos efeitos da numerologia, das interpretações dotarô, das cosmologias de base mítico-religiosa etc.

Sem entrar, por ora, no mérito da polêmica, cabe assinalar que muitas dessascríticas consideram que tais oráculos, terapias e cosmologias fazem parte de ummesmo bloco indivisível, sem diferenciações, e o público envolvido é encaradocomo o protótipo do consumidor indiscriminado, leitor acrítico de livros de auto-ajuda, seduzido por qualquer sistema dito alternativo e pronto a ver duendes emtoda parte.4

Um contato mais sistemático com esse universo, contudo, mostra que alémdo consumidor ingênuo e crédulo existe um tipo mais exigente, informado e quese dedica a alguns desses temas com outra atitude: não se podem, de imediato,nivelá-los. Para poder avaliar o alcance dessa difusão, a real profundidade de suainserção e as bases sobre as quais se assenta é preciso, por conseguinte, ir além dopanorama desenhado pela mídia. Com tal propósito e seguindo as próprias pistas

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dos anúncios veiculados nos meios de comunicação, coordenei a realização de umlevantamento inicial na cidade de São Paulo que permitiu elaborar uma primeiralistagem das instituições, espaços, associações, núcleos, centros e lojas dedicadosàs diversas práticas oferecidas sob a designação de “místicas” ou “esotéricas”.5

O traço mais significativo no primeiro contato sistemático com a ofertadessas atividades, produtos e serviços foi poder constatar, ao lado de sua diversi-dade, a recorrência de alguns padrões com relação ao funcionamento, gerência,periodicidade, recursos mobilizados e até programa arquitetônico dos espaços.

Assim, além da esperada salinha alugada para consultas e atendimento indi-vidual, foram encontradas verdadeiras clínicas aparelhadas para o ensino e a apli-cação de diversas técnicas terapêuticas; centros de estudos, dedicados principal-mente a atividades de formação, ofereciam palestras, workshops e cursos parauma clientela regular sobre os mais variados temas. Contando com recursos decomputação, muitos desses espaços dispõem ainda de equipamento capaz de pro-duzir o material necessário para os cursos; alguns possuem gráficas ou editoras.

Nada mais distante, por conseguinte, do grupo informal e esporádico deestudos sobre algum assunto hermético, de interesse apenas para uns poucosiniciados.

Mas a lista continua: livrarias com amplo e variado estoque, farmácias espe-cializadas, lojas com material para o exercício das diferentes especialidades(óleos, essências, instrumentos) e outras com os já emblemáticos cristais e incen-sos indianos, além de uma imensa variedade de itens de consumo para o públicoem geral. Entrepostos de ervas medicinais e alimentos produzidos com base emdeterminados princípios, assim como feiras de produtos hortigranjeiros cultivadossegundo as normas da agricultura orgânica, completam o quadro dos estabeleci-mentos que oferecem a infra-estrutura e a necessária base de sustentação para asatividades desse meio.

Agências de viagem anunciam pacotes com roteiros por “lugares sagrados”em âmbito internacional (Machu-Picchu, no Peru; Mount Shasta, na Califórnia;Varanasi, na Índia; Katmandu, no Nepal, entre outros) e nacional (São Tomé dasLetras — MG; Chapada dos Veadeiros/Alto Paraíso — GO), garantindo umaforma de lazer que se pauta por outros princípios que não os do turismo conven-cional. Algumas datas são celebradas de forma diferente, nesse circuito: as brin-cadeiras de halloween, por exemplo, alheias ao calendário festivo nacional masrecentemente introduzidas pelos incontáveis cursos de inglês espalhados pelacidade, terminaram se transformando, em alguns casos, em celebrações do drui-dismo celta, valorizando o feminino pela reivindicação da figura da bruxa; aspassagens do solstício e do equinócio, ocorrências de reduzida percepção nocontexto urbano, assim como as fases da lua, são motivo de rituais periódicos.

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Toda essa atividade vai buscar sua fundamentação — às vezes de maneiramais elaborada, às vezes na forma de um leve verniz — em alguns sistemas depensamento e religiões de origem oriental, em cosmologias indígenas, em corren-tes espiritualistas, no esoterismo clássico europeu e até em propostas inspiradasem certos ramos da ciência contemporânea; e não poucas vezes em todos eles,simultaneamente, resultando em surpreendentes bricolages.

Trata-se, enfim, de um fenômeno de proporções, consolidado na cidade, quemobiliza recursos, envolve pessoas, modifica comportamentos, inventa ritos epropõe novas modalidades de uso do tempo livre. Diversificado, apresenta umasérie de nuances que impedem que seja tomado como um bloco, sob pena decolocar num mesmo caldeirão realidades bastante diversas.

A primeira questão que se apresenta, então, é: apesar da inegável heteroge-neidade — de práticas, propósitos, fundamentação —, o que é que caracterizaesse fenômeno? É possível distinguir nele alguma unidade, podendo ser chamadode sistema, ou mesmo de movimento? Apresenta-se como herdeiro ou depositáriode alguma corrente anterior, com a qual mantém uma linha de continuidade?

Um dos pontos de referência que praticamente todas as interpretações, nati-vas e acadêmicas, costumam invocar para situá-lo é o movimento da contraculturaque, a partir dos anos cinqüenta, nos Estados Unidos, ensaiava alternativas aostatus quo — nos campos da política, da estética, da religião, dos costumes.6 Indoum pouco para trás, pode-se também detectar nele a influência, entre outras, doespiritualismo e da teosofia de fins do século XIX e, se se quiser, quando se pensanuma gênese mais remota, é possível incluir, de períodos mais recuados, muitasoutras correntes e grupos ocultistas tanto do Ocidente como do Oriente. Contudo,mais do que tentar refazer a trajetória dos múltiplos e intrincados caminhos que, apartir das inesgotáveis fontes de antigas tradições, desembocaram no atual boom,já nas décadas de 1980 e 1990, o que importa é reconhecer sua contemporaneida-de e as dimensões que hoje ostenta.

Os desacordos, porém, começam já com a denominação, tanto entre ospraticantes quanto entre os analistas. No levantamento inicial foi possível consta-tar a presença desde correntes de forte orientação religiosa até grupos reconheci-damente agnósticos; sociedades iniciáticas, vinculadas ao esoterismo clássico epráticas principalmente terapêuticas; academias dedicadas a práticas corporaisligadas a tradições específicas como o hinduísmo ou o taoísmo. Que termo pode-ria dar conta de toda essa diversidade?

Espaços mais ecléticos se autodesignam ora “esotéricos”, ora “místicos” —termos consagrados na mídia, mas evidentemente já sem nenhuma relação com osignificado mais técnico que possuem no quadro dos estudos de religião. A deno-minação “alternativo”, tributária ainda do movimento da contracultura, por deno-

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tar um caráter de contestação a valores dominantes, como no caso de Ferreira(1984), é mais comumente usada para qualificar práticas na área de saúde, comofaz Russo (1993), que no entanto prefere “complexo alternativo”; Tavares (1998),citando Champion, fala em “nebulosa místico-esotérica” e também em “holísti-co”; D’Andrea (1996), seguindo a tendência internacional mais difundida, empre-ga “New Age” ou “Nova Era”, da mesma forma que Amaral (1998), a qual,porém, para designar os espaços concretos, utiliza “holísticos”.

Neste livro mantenho a expressão que já utilizei anteriormente — “neo-esotérico” — sendo que o prefixo neo cumpre a função de estabelecer a necessá-ria diferença em relação a dois usos já consagrados da categoria esotérico: emtermos técnicos, no campo do estudo das religiões e sistemas iniciáticos. Esotéri-co designa aqueles ritos ou elementos doutrinários reservados a membros admiti-dos a um círculo mais restrito, opondo-se, assim, a exotérico, a parte pública docerimonial; o outro significado do termo é aquele empregado por Carvalho (1998)e que poderia ser qualificado de esoterismo histórico.7

A expressão em sua forma composta (e na versão apocopada, neo-esô) tem avantagem de não ser usada por nenhum espaço, o que lhe empresta certa distânciado campo, sem contudo perder o poder evocativo dado pelo uso atual e generali-zado do termo esotérico. Neste livro, não será utilizada para caracterizar especifi-camente esta ou aquela instituição, atividade ou crença; aparecerá principalmenteem dois contextos: ao lado de “universo” ou outro termo similar, apontando paraum conjunto mais geral e ainda difuso de determinados valores, hábitos, discur-sos, e como “circuito neo-esotérico”, nesse caso para designar a distribuição e aarticulação entre espaços e práticas concretas que de uma forma ou de outraintegram aquele universo.

2. As interpretações

Ainda que o movimento editorial gerado pelo fenômeno neo-esotérico sejade grandes proporções, não são muitas as obras, de dentro do movimento, queoferecem um quadro interpretativo mais global. Dentre estas, destaco as de doisautores bastante conhecidos — Marilyn Ferguson (1980) e Fritjof Capra ([1975]1995); ([1982] 1995 b) — apenas para apontar uma linha de interpretação bemdifundida e marcar a diferença com os enfoques de fora, de corte acadêmico.

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Ferguson, jornalista, e Capra, escritor e ex-pesquisador na área de física dealta energia, detectaram os inícios da onda, tendo-se dedicado a estabelecer elosentre suas múltiplas manifestações e assim oferecer uma visão de conjunto. Fer-guson fala em “conspiração” — o título do livro é A conspiração aquariana (op.cit.) — e Capra, principalmente em O ponto de mutação (1995 b), refere-se àemergência de uma nova consciência. Ambos tentam mostrar a ocorrência simul-tânea — silenciosa, não combinada — de iniciativas e propostas que levam a umasignificativa mudança nos modos de pensar, sentir e relacionar-se, com conse-qüências nos campos da ciência, política, saúde, religião.

Para eles, tratar-se-ia do surgimento de um novo paradigma que deixa paratrás velhos modos de encarar os contatos interpessoais, o trato com a natureza, aprodução do conhecimento e as relações com o sobrenatural. Resultado de encon-tros entre Oriente e Ocidente, ciência contemporânea e antigas cosmologias, tra-dições indígenas e novas propostas ecológicas, esse movimento é considerado decaráter transnacional, suprarracial e interclassista — planetário, até — que anun-cia o advento de uma nova consciência mundial e de uma nova era, já previstasegundo alguns: a famosa Era de Aquário.

Esse cenário, que enfatiza o caráter harmônico, de totalidade e de comple-mentaridade entre pólos opostos,8 contrasta com leituras de fora do movimento:ao vinculá-lo a determinadas características das condições de vida modernas (oupós-modernas, conforme a periodização), estas últimas apontam mais para osaspectos de individualismo, da fragmentação e da destradicionalização. Claro, hánuances entre uma e outra posição, mas pode-se dizer que essa polaridade básicareproduz-se (de forma mais elaborada ou mais ligeira) em todos os níveis dadiscussão.

Tomando como referência apenas o panorama da produção nacional, verifi-ca-se que as primeiras indagações, circunscritas ao campo de estudos da religião,tinham como quadro de referência e pano de fundo o debate em torno do processode “secularização” seguido por movimentos de “reencantamento”. Um dos desdo-bramentos dessa discussão, que constatava um revival do sentimento e práticasreligiosas após o período de desencantamento, foi a caracterização de um novocampo religioso em termos de “mercado”. As práticas do circuito neo-esô, paraalguns, constituíam o exemplo mais bem acabado das regras desse mercado, noqual cada consumidor, insatisfeito com as opções religiosas institucionalmentepredominantes, faria as escolhas sem maiores lealdades, seja com as origens oucom os princípios de base das doutrinas e objetos selecionados, para compor seupróprio kit de espiritualidade.

A literatura mais específica sobre o assunto é recente e ainda pequena:alguns poucos livros, teses não publicadas, principalmente artigos e papers apre-

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sentados em congressos e encontros. É possível, no entanto, distinguir dois con-juntos de contribuições: um primeiro bloco constituído por autores que, mesmonão se dedicando explicitamente ao tema aqui denominado neo-esoterismo, escre-veram os primeiros ensaios, tendo o mérito de haver reconhecido e registrado suapresença, sob diferentes denominações, no contexto brasileiro. Esses autores ofizeram no interior dos estudos de religião, seu campo principal de atuação. Entreoutros podem ser citados Carlos Rodrigues Brandão, Luiz Eduardo Soares e JoséJorge Carvalho, cujos insights abriram espaço para os trabalhos de uma faseposterior, oferecendo as primeiras pistas de interpretação. O que discutem é osurgimento de novas respostas a uma situação de “crise das instituições produto-ras de sentido”, para usar o termo empregado por Brandão (1994). Alguns, comoCarvalho, ressaltam o aspecto dissonante de certos arranjos, em comparação comestilos de espiritualidade já consagrados (1992:147). Soares refere-se a uma“nova consciência religiosa”, em resposta às condições de vida na modernidade eem diálogo com elas: em seu citado artigo “Religiosos por natureza: culturaalternativa e misticismo ecológico no Brasil”, afirma que “a nova consciênciareligiosa parece ser, afinal, o último avatar do racionalismo moderno ocidental oua expressão mais radical de um de seus efeitos mais significativos” (1989:143).9

O campo fora reconhecido, mas ainda não constituído: o uso de termoscomo “transumância”, “andarilho”, “nomadismo”, para designar o caráter fugidiodessas novas opções no terreno religioso, denotava também a necessidade denovas estratégias para lidar com um fenômeno mais recente que demandava pes-quisas especificamente voltadas para ele: são essas pesquisas que constituem osegundo bloco dos estudos voltados para temas do neo-esoterismo.

Estando ainda em seu início, é possível listar grande parte dos trabalhosatualmente disponíveis: “A ciência dos mitos ou o mito da ciência”, estudo pio-neiro de José F. Ferreira Neto (1984), sobre ufologia; “O mundo da astrologia”,de Luiz Rodolfo Vilhena (1990); “O corpo contra a palavra”, sobre terapiascorporais, de Jane Russo (1993); “Relativismo mágico e novos estilos de vida”,sobre literatura de auto-ajuda, de Patrícia Birmann (1993); “Mosaicos de si: umaabordagem sociológica da iniciação no tarô”, de Fátima R. G. Tavares (1993);“Nova Era: um desafio para os cristãos” de Leila Amaral et alii (1994); “Esotéri-cos na cidade: os novos espaços de encontro, vivência e culto”, de José G. C.Magnani (1995); “Bioenergética: uma abordagem etnográfica do corpo”, de Car-mita Lima de Santana; “O self perfeito e a Nova Era: individualismo e reflexivi-dade em religiosidades pós-tradicionais”, de Anthony D’Andrea, (1996); “Obuscador e o tempo: um estudo antropológico do pensamento esotérico e daexperiência iniciática na Eubiose”, de Antônio Carlos Fortis (1997), “Carnaval daalma: comunidade, essência e sincretismo na Nova Era”, de Leila Amaral (1998);

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“Alquimias da cura: um estudo sobre a rede terapêutica alternativa no Rio deJaneiro”, de Fátima R. G. Tavares (1998).

Como se pode perceber, em se tratando de pesquisas concretas, os recortessão mais específicos: alguns sobre sistemas oraculares e técnicas de cura, outrossobre determinada prática ou sociedade iniciática; há também levantamentos so-bre a disseminação do fenômeno e tentativas de buscar sua lógica interna, articu-lando-o seja com a metrópole, seja com determinadas características dacontemporaneidade, pensada como “alta modernidade”, “modernidade tardia” ou“pós-modernidade”, conforme a linha ou autores adotados.10 Os quadros interpre-tativos, conquanto levem em conta a dimensão religiosa, já não se circunscrevema ela, pois fatores de caráter mais geral, principalmente a questão da reflexivida-de, a presença de uma “cultura psicológica” preexistente, a emergência do pensa-mento ecológico, entre outros, são incorporados à análise.

3. A proposta deste livro

A contribuição mais imediata do conjunto dessas pesquisas — para além dadiversidade dos recortes empíricos e das orientações seguidas — foi demarcar ocampo e mostrar sua especificidade com relação aos temas e enfoques habituaisnas ciências da religião que forneceram os primeiros quadros explicativos. Todascompartilham o pressuposto de que, contrariamente ao que diz o senso comum,não se está diante de um mero fenômeno de mercado e, diferentemente do quealgumas das primeiras interpretações deixavam entrever, não se trata de um “caossemiológico”, um mosaico indigesto e sem sentido: parece haver alguma ordemnesse ruído todo, sendo necessário, para detectá-la e descrevê-la, desenvolver umaestratégia específica de pesquisa.

Da mesma forma que os demais estudos, o presente livro também reconhecea heterogeneidade constitutiva do fenômeno neo-esotérico, tendo percebido apartir de um primeiro contato que não se tratava de algo fútil, descartável, facil-mente rebatido com dois ou três lugares-comuns sobre a objetividade da ciênciaversus a credulidade do público. O grau e as formas de adesão, a extensão donegócio e, por fim, a capacidade de gerar comportamentos mostram que se estádiante de algo que vai além de um mero modismo passageiro sujeito às escolhasaleatórias de cada consumidor tomado individualmente.

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Com efeito, por meio da observação sistemática, notou-se a ocorrência dedeterminadas regularidades — na implantação e distribuição dos espaços, nasnormas de funcionamento, no calendário das atividades e até num discurso debase. A pesquisa buscou, então, um enquadramento para o entendimento do fenô-meno, procurando pistas não tanto pelo viés negativo — como resposta à supostafalência das religiões institucionalizadas ou à crise de “instituições produtoras desentido” — mas na própria positividade do movimento, percebido como geradorde comportamentos coletivos, no contexto da cidade. O que o diferencia de outrostrabalhos é que neste caso se pretende determinar sua lógica, não a partir decaracterísticas internas ao movimento, mas dos vínculos e pactos que estabelececom a dinâmica cultural em que está inserido — com o ritmo, as instituições e apaisagem da metrópole.11

A pergunta inicial foi suscitada por uma constatação empírica: ao términode um estudo sobre formas de lazer e sociabilidade na metrópole paulistana,12

chamaram a atenção as atividades de certos personagens como cartomantes, adi-vinhos, tarólogos, que se supunha atuarem em recintos fechados e de formaprivada, em plena atuação em viadutos do centro, em praças e em lojas em bairrosde classe média; afinal de contas, tais práticas diziam respeito a indagações sobreo futuro, tratavam do destino, da saúde e de problemas espirituais do consulente— ou ao menos era o que seus oficiantes apregoavam. E, no entanto, eramrealizadas no espaço público ou em contextos pouco afeitos ao mistério, recolhi-mento e privacidade, como era possível comprovar principalmente no chamativocaso das “feiras místicas” montadas em parques, shopping centers, praças e clu-bes.

Observando mais de perto, verificou-se que, além dessa surpreendente visi-bilidade, mudara também seu sistema de funcionamento: a maneira como muitosdesses serviços estavam sendo oferecidos contrastava com o estilo habitual — ocontato pessoal com a cartomante atendendo em sua própria casa, ou com oadivinho, no recesso de uma sala escura e repleta de objetos misteriosos. Agoraera diferente: a leitura das cartas, a interpretação do I-Ching, o alinhamento doschakras, a prática de yoga, a aplicação do do-in e outras tantas atividades queintegram, de forma genérica, o caldeirão das práticas neo-esotéricas, finalmentese modernizavam: seus praticantes não desdenham equipamentos, condições etécnicas, como computação, marketing, terciarização, franchising, comuns a qual-quer das atividades de prestação de serviços nos grandes centros urbanos. Oneo-esoterismo virara empreendimento (micro) empresarial!

Tratava-se, sem dúvida, de mudanças significativas e se, para muitos, essamodernização e mercantilismo redundam na perda de aura e mistério, para apesquisa, contudo, constituíram valiosos indícios na busca de uma via explicativa

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nova. Começava a ganhar corpo uma hipótese apontando para a emergência denovos padrões de comportamento no contexto da cidade e em consonância comdeterminadas tendências da vida contemporânea.

Com efeito, ao assumir abertamente e sem rebuços essas atitudes, os usuáriosatuais afastam-se dos antigos moldes, de acordo com os quais uma consulta acartomantes, xamãs, adivinhos, feita de maneira clandestina ou envergonhada, eravista como uma regressão a práticas primitivas. Por outro lado, já não se estavapropriamente diante de atividades “alternativas”: instaladas em espaços próprios,em processo de legitimação institucional e com forte presença na mídia, encon-tram-se já incorporadas no dia-a-dia e na paisagem das grandes metrópoles.

Em suma — não obstante a primeira impressão produzida pela notávelamplitude, fragmentação e variabilidade do universo das crenças e práticas neo-esôs —, quando se olhava o fenômeno desse outro ângulo, o das condições atuaisde implantação na cidade, o panorama era outro. Em vez de lugares inacessíveis,freqüentados de forma esporádica por uma clientela difusa, o que se constatavaera a oferta regular de determinados bens e serviços em endereços bem localiza-dos, para um público consumidor formado por pessoas escolarizadas, de bompoder aquisitivo (condições necessárias, aliás, para manter o consumo de itenscaros e sofisticados), sensíveis ao argumento da qualidade de vida e interessadaspor temas tão diversos, como filosofias orientais, ecologia, valorização do femini-no, terapias soft.

Tornou-se factível, então, postular que a regularidade dessa oferta, em ter-mos de implantação espacial, regras de funcionamento, periodicidade, é a basesobre a qual se desenvolvem e consolidam comportamentos que, longe de serem oresultado de meras escolhas individuais, conformavam um determinado estilo devida claramente reconhecido, com valores, padrões de consumo e formas desociabilidade peculiares cultivado preferencialmente dentro de um novo conceitode utilização do tempo livre.13

Diante do heteróclito e cosmopolita universo dessas práticas — que iam dacrença em duendes nórdicos ao uso de florais canadenses; do consumo de incensoindiano à prática da acupuntura chinesa; da meditação tibetana ao shiatsu japo-nês; dos livros de auto-ajuda americanos ao xamanismo siberiano; da bruxariacelta aos rituais dos índios da Amazônia —, surgia a preliminar e básica pergunta:por onde começar?

Os passos iniciais da pesquisa foram dedicados à busca de um primeiro,ainda que provisório, ordenamento. Integram essa etapa o mapeamento, na cidadede São Paulo, dos espaços onde tais práticas são oferecidas, a descrição do pro-grama arquitetônico de alguns estabelecimentos-tipo, sua classificação em grupos

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a partir dos objetivos, bem como normas de funcionamento e natureza do produtoou serviço que oferecem.

A partir de um contato mais próximo com os espaços e as práticas, foipossível, então, detectar e descrever as regularidades que estão na base de seufuncionamento e organização, distribuição no tempo e no espaço e também nodiscurso que lhes serve de fundamento. Finalmente chegou-se ao perfil dos usuá-rios — desde o tipo mais erudito até o consumidor ocasional — em busca depadrões que permitem explicar seu comportamento em termos de “estilo de vida”,tendo como fundamento uma matriz discursiva comum e como base de sustenta-ção os “circuitos” e “trajetos” que se recortam na paisagem da cidade.

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Notas

1. “Nossas indústrias em desenfreado florescimento de culto aos anjos, ‘experiências dequase morte’ e astrologia — redes de adivinhação de sonhos — são versões em massa deum gnosticismo adulterado ou travestido (...). A comercialização da angelologia e dasmistificações das viagens fora do corpo junta-se apropriadamente à história secular daastrologia e da adivinhação de sonhos mercantilizadas.” (Bloom, 1996: 32, 33)

2. Essas denominações não são sinônimos, tendo surgido em diferentes momentos, desig-nando assim várias nuances do fenômeno. (Cf. Heelas, 1996; Carozzi, 1998). Recente-mente entrou em voga uma nova denominação, Next Age, em substituição à anterior esupostamente já desgastada New Age. Segundo Luís Pellegrini (1998) essa mudança nãopassa de um novo rótulo justamente para os excessos — principalmente o mercantilismo,o consumismo, o cultivo do ego — cometidos sob a égide da New Age. O mesmo valepara o fenômeno designado como millies, nos Estados Unidos, mote midiático referido àpróxima virada do milênio e ligado à moda, consumo e comportamento, com vagasreferências à “espiritualidade”, “busca de equilíbrio” etc. Folha de S. Paulo, 21 mar. 1998.

3. Além do sucesso editorial de Paulo Coelho (o grande ícone, tanto para os entusiastascomo para os críticos dessa literatura), com seus 20 milhões de livros vendidos até agora— para citar apenas o nome mais conhecido —, cabe mencionar os inúmeros serviçostelefônicos do tipo “disque-0900” que oferecem consultas e orientações baseados nanumerologia, astrologia, tarô, baralho cigano, runas etc. Segundo matéria publicada naRevista da Folha, em 14 set. 1997, o porto-riquenho Walter Mercado contabiliza em tornode 50 milhões de chamadas em 23 países, incluindo o Brasil, movimentando em torno deUS$ 150 milhões. A empresa dos discípulos de Omar Cardoso, entre muitas outras,também mantém um serviço similar, e seu disque-0900 registra 30 mil ligações por mês.

4. Algumas dessas análises tomam como referência ou objeto de suas críticas certasfacetas veiculadas de forma caricata, como a do já citado Walter Mercado e o bordão“ligue djá” de seu serviço de consultas por telefone, ou as representações de duendescalcadas nas imagens infantis dos contos populares. Ainda que façam parte do circuito queestá sendo estudado, não podem ser tomadas como representativas nem do complexo temados sistemas oraculares, num caso, nem, no outro, dos “elementais”, presentes sob formasdiferentes mas de maneira recorrente em várias tradições, sagas e mitos.

5. Ver, mais adiante, capítulo I.

6. E que deu origem à great rucksack revolution dos anos 60, conforme expressão cunhadapor Jack Kerouac (1958).

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7. “(...) um tipo particular de esoterismo que passou a ser construído no Ocidente sobretu-do a partir do século XVII, que se expandiu durante o apogeu do Iluminismo e que veio aculminar com os grandes movimentos orientalizantes e espiritualistas da segunda metadedo século XIX” (Carvalho, 1998:56). O emprego do termo “neo-esoterismo”, contudo,não configura nenhuma novidade, tendo sido usado por vários autores e em diferentescontextos, tais como debates, colóquios etc. Martelli (1995), por exemplo, também recorrea ele, tomando-o emprestado de Berzano (1989). Este último distingue um esoterismo aque chama de “residual”, ligado a formas tradicionalistas e contraculturais, de outro, oqual então denomina “neo-esoterismo, (...) portador de instâncias críticas em relação àscapacidades da ciência em responder aos desafios do presente” (apud Martelli, 1995, p.408). Em Morin (1972:278) — agradeço a Silas Guerriero pela referência — também seencontra o termo “neo-esoterismo”, ainda que esse autor empregue preferencialmente aexpressão “nova gnose”. Já Berger (1973 [1968] p.118) fala em “neomisticismo” para sereferir a uma mescla de espiritualidade e psicoterapia; Terrin (1996:22) também recorre àpartícula “neo” antecedendo “xamanismo” com o propósito de chamar atenção para algu-mas características, atuais, de determinadas práticas agrupadas sob essa denominação.

8. Nos moldes de uma “metanarrativa”, segundo a expressão de Lyotard (1989:72).

9. As contribuições desses autores deram-se principalmente a propósito ou por ocasião deencontros que terminaram em coletâneas. Os títulos são sugestivos: “Sinais dos tempos:seitas no Brasil” (1989); “Sinais dos tempos: tradições religiosas no Brasil” (1989); “Di-versidade religiosa no Brasil” (1990); “O impacto da modernidade sobre a religião”(1992), todos promovidos pelo ISER. “Misticismo e novas religiões” (1994), promoção daPUC/SP e IFAN e, finalmente, na USP: “Dossiê magia” (1996). Cabe lembrar o texto “LaCroyance aux Parascienses: de nouvelles formes de religiosité?” de Eduardo Diatahy B.de Menezes (1989-90).

10. No encontro “VII Jornadas Alternativas Religiosas na América Latina” (São Paulo, 22a 25 de setembro de 1998) foi possível ampliar esse quadro, com a apresentação de paperssobre práticas no Distrito Federal e Recife; primeiros resultados de novas pesquisas emGoiás, Rio de Janeiro, São Paulo além de contribuições vindas da Argentina. A quantidadede trabalhos propostos nesse encontro, classificados na rubrica “Esoterismo/Nova Era”, dáuma idéia do interesse que o tema vem despertando como objeto de pesquisa: 48, sobreum total de 191. Em segundo lugar vinham trabalhos sobre religiões evangélicas (40),depois catolicismo (29); afro-brasileiras (28); outras religiões (25) e trabalhos de carátergeral (21). Fonte: Secretaria das VII Jornadas. Ao final, na bibliografia, estão as referên-cias aos principais trabalhos apresentados nas mesas-redondas dedicadas a temas da NovaEra.

11. O que não significa que pesquisas claramente situadas no campo de estudos dereligião não possam buscar esse tipo de relação com o contexto e práticas urbanas. Ver, apropósito, “Povo-de-santo, povo de festa: estudo antropológico do estilo de vida dos

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adeptos do candomblé paulista”, de Rita de Cássia de Mello Peixoto Amaral (1992), e “Osorixás da metrópole”, de Vagner Gonçalves da Silva (1995).

12. J.G.Cantor Magnani — “Os pedaços da cidade” — Relatório final CNPq, 1991; Nametrópole: textos de antropologia urbana (co-org., com Lilian de Lucca Torres), EDUSP(1996).

13. Segundo o projeto de pesquisa “Espiritualidade em ritmo metropolitano: os novosespaços de encontro, vivência e culto na cidade” (Magnani, 1994), o objetivo da pesquisaera (...) “identificar e analisar a emergência de padrões de comportamento que, comohipótese, começam a caracterizar significativamente a oferta e procura de bens na área daspráticas mágico-esotéricas no contexto das grandes cidades, instituindo modos ou estilosde vida diferenciados. De ‘alternativas’, essas práticas passam cada vez mais a disputar eocupar um espaço visível e legítimo, organizando-se, para tanto, em moldes empresariais,procurando alianças com outras instituições já estabelecidas e buscando um discurso defundamentação próprio”.

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1Os espaços

Segundo a hipótese inicial que norteou a pesquisa, as atividades do circuitoneo-esotérico, tal como foram identificadas no contexto da metrópole, não são oresultado de iniciativas individuais e atomizadas nem respondem a uma demandaaleatória, difusa ou clandestina, circunscrita aos limites restritos de uma relaçãopessoal entre adivinho e consulente. Ao contrário, desenvolvidas em termos pro-fissionais e realizadas de maneira constante, apresentam formas de implantaçãoplenamente reconhecíveis na paisagem urbana, configurando uma extensa redeconstituída por espaços, agências, publicações, encontros, congressos, treinamen-tos intensivos e forte presença na mídia.

1. Mapeamento e classificação

A primeira e necessária providência para ter acesso a tal rede e avaliar seualcance foi elaborar um levantamento das instituições, espaços, associações, nú-cleos, centros e lojas dedicados a essas práticas. A listagem obtida,1 que numaprimeira versão reuniu mais de mil endereços, foi elaborada a partir das seguintespublicações: o semanário dominical Shopping News que mantinha uma coluna,“Vida Alternativa”, com temas e anúncios de serviços na área do neo-esoterismo(foram compulsadas 55 edições, anos 1990 e 1991);2 o suplemento semanal São

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Paulo da revista Veja (item “Esotéricos” dos classificados, de março de 1990 amaio de 1992); a revista Agenda Alternativa (julho, agosto e outubro de 1991;fevereiro, abril, maio e junho de 1992). Outra fonte de informações foi o própriotrabalho de campo que permitiu colher endereços a partir dos folhetos, prospec-tos, folders, cartazes, agendas e cartões de visita expostos e distribuídos nosdiferentes espaços visitados.

A listagem inicial fornecia uma primeira aproximação que, evidentemente,precisava ser trabalhada até constituir uma peça mais confiável. Após uma sériede revisões chegou-se ao número de 842 endereços, resultado que continua longede ser definitivo, pois alguns desses espaços surgem e desaparecem muito rapida-mente: a lista precisa ser atualizada constantemente.3

Foram estabelecidos três cortes, agrupando os diferentes distritos de acordocom o número de ocorrências de espaços dedicados ao neo-esoterismo: Vila Mariana(103 espaços), Pinheiros (86), Jardins (84) e Perdizes (61) constituem o primeirogrupo; em seguida vêm Moema (47), Campo Belo (40), Itaim Bibi (35), Santana(30), Consolação (26), Saúde (22), Santo Amaro (20), Ipiranga (19), Sé (19),República (18) e Bela Vista (18), constituindo o anel intermediário. Jabaquara(15), Lapa (14), Liberdade (14), Tatuapé (11), Mooca (10), Santa Cecília (8),Belém (7), Butantã (6), Cambuci (6), Cidade Ademar (6), Vila Prudente (6),Morumbi (5), Alto de Pinheiros (4), Raposo Tavares (4) e Vila Sônia (4) formamo último grupo, desprezando-se, para efeitos de consignação no mapa, os demaisbairros com ocorrências inferiores a três espaços.4

É interessante observar que o núcleo mais denso não cobre propriamente ocentro da cidade, mas quatro bairros — Perdizes, Pinheiros (direção oeste), Jar-dins, Vila Mariana (direção sul) — caracterizados como de classe média e médiaalta, amplamente providos de serviços e equipamentos urbanos. A área que apare-ce em segundo lugar em número de ocorrências abrange o Centro (Sé, Consola-ção, República), mais alguns bairros antigos (Ipiranga, Bela Vista) e outros(Moema, Campo Belo, Itaim Bibi), de classe média e média alta.

Com a finalidade, porém, de ir além da mera localização e introduzir umsegundo princípio de ordem diante da impressão inicial marcada pela heteroge-neidade de propósitos, crenças e rituais que caracteriza o universo do neo-esote-rismo, os estabelecimentos listados foram submetidos a uma primeira e provisóriaclassificação, levando-se em consideração os objetivos a que se dedicam, as nor-mas de funcionamento interno e o produto que oferecem. Dessa forma, foramidentificados cinco grupos: Grupo I — Sociedades Iniciáticas; Grupo II — Cen-tros Integrados; Grupo III — Centros Especializados; Grupo IV — Espaços Indi-vidualizados; Grupo V — Pontos de venda. Os 842 espaços estavam distribuídosde acordo com esta classificação:

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Vila Mariana, Pinheiros,Jardins, Perdizes

Moema, Campo Belo, ItaimBibi, Santana, Consolação,Saúde, Santo Amaro, Ipiranga,Sé, República, Bela Vista

Jabaquara, Lapa, Liberdade,Tatuapé, Mooca, Santa Cecília,Belém, Butantã, Cambuci,Cidade Ademar, Vila Prudente,Morumbi, Alto de Pinheiros,Raposo Tavares, Vila Sônia

Mapa dos espaços neo-esôs no município de São Paulo — 1990-92

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Grupo I 36 4,28%

Grupo II 109 12,95%

Grupo III 131 15,56%

Grupo IV 261 31,00%

Grupo V 284 33,73%

(Outros) 21 2,48%

Total 842 100,00%

Grupo I — Sociedades Iniciáticas: caracterizam-se por apresentar um sis-tema doutrinário com base em princípios filosófico-religiosos definidos, com umcorpo de rituais próprios e níveis de iniciação codificados; possuem graus dehierarquia interna, que permitem estabelecer, ao menos, a distinção entre o con-junto de seguidores e os mestres/dirigentes. Muitas delas são filiais, adaptaçõesou criações locais inspiradas em instituições com sede ou origem no exterior.Fazem parte deste grupo, entre outras, as seguintes instituições: Sociedade Teosó-fica no Brasil, Sociedade Brasileira de Eubiose,5 Sociedade Antroposófica, Or-dem Rosacruz AMORC, Sociedade Internacional Rosacruz Áurea, Círculo Eso-térico Comunhão do Pensamento.

O grupo é constituído basicamente por entidades que se inserem numa linhade continuidade, algumas com o movimento teosófico-espiritualista do séculoXIX e outras com as sociedades secretas da franco-maçonaria do século XVIII.6

Anteriores ao atual boom do neo-esoterismo e produtoras de sínteses doutrináriaspróprias, constituem pontos de referência para muitos participantes do universoneo-esô, alguns dos quais foram nelas iniciados.7

Mesmo desprovidas do elemento iniciático que caracteriza esse conjunto,mantêm alguma relação com ele determinadas instituições que apresentam aomesmo tempo um caráter propriamemente religioso e certas semelhanças e proxi-midade com o meio neo-esô. De fundação recente e com formas de gerenciamen-to e organização interna mais modernas, cultivam, entre outras características, oideal da prosperidade, a busca do auto-aperfeiçoamento, a preocupação com aecologia, a qualidade de vida etc.8

Cabe uma observação especial com relação ao budismo: apesar de sua ine-gável e importante influência sobre vários integrantes do circuito neo-esotérico,enquanto instituição religiosa não foi incluída no universo do presente estudo. Apesquisa de campo, conquanto presente em atividades desenvolvidas em algunsdos inúmeros centros, escolas e templos das variadas linhagens e procedências(tibetana, chinesa, japonesa etc.), não teve a pretensão de tomá-las em sua relação

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com o arcabouço institucional e doutrinário budista, já que isso teria exigido umalinha de análise que fugia ao enquadramento da pesquisa.9

Grupo II — Centros Integrados: são aqueles que reúnem e organizam,num mesmo espaço, vários serviços e atividades, como consultas a algum dosdiferentes sistemas oraculares, terapias e técnicas corporais alternativas, palestrase cursos de formação, venda de produtos, vivências coletivas. Não apresentam umcorpo doutrinário fechado, mas fundamentam suas escolhas (no campo editorial,no leque de serviços que oferecem, na linha de produtos que vendem) com baseem uma corrente em particular ou num conjunto de discursos mais ou menossistematizado, podendo, contudo, combinar elementos de várias tendências filosó-ficas, religiosas e esotéricas clássicas.

Gerenciados em moldes empresariais — muitos deles são microempresas —,têm como base o trabalho de profissionais da casa (geralmente são os proprietá-rios), mas abrem espaço para atuação permanente ou esporádica de pessoal defora.10 “Iluminati — Centro de Desenvolvimento Humano”; “Espaço CulturalTattva Humi”; “Triom — Centro de Estudos Marina e Martin Harvey: Livraria,Editora, Cursos”; “Espaço Astrolábio”, “Imagick”, entre outros, podem ser consi-derados integrantes do Grupo II.

Grupo III — Centros Especializados: incluem associações, institutos, es-colas, academias e clínicas voltados para pesquisa e ensino de algum tema especí-fico, assim como treinamento e/ou aplicação de algumas das técnicascorrespondentes: dança, artes marciais, artes divinatórias, práticas terapêuticas.Podem comportar mais de uma atividade, mas a principal é que dá o nome:“Associação Palas Athena — Centro de Estudos Filosóficos”; “Paz Géia — Insti-tuto de Pesquisas Xamânicas”; “Ceata — Centro de Estudos de Acupuntura eTerapias Alternativas”; “Espaço A.M.OR — Associação de Massagem Orientaldo Brasil”.

As instituições deste grupo, classificadas pela atividade que oferecem, seja oensino de temas específicos, sejam o treinamento e a aplicação de técnicas parti-culares, não se diferenciam dos espaços definidos no grupo anterior na sua formade organização, estilo de gerenciamento e dinâmica interna. Apesar da especiali-zação, característica que formalmente as distingue dos Centros Integrados, naprática oferecem também outros serviços de forma complementar. Nos termos daimplantação física e dos vínculos de sociabilidade que seus freqüentadores termi-nam criando, muitas delas aproximam-se do modelo do Grupo II.

Grupo IV — Espaços Individualizados: são aqueles que oferecem algumadas mais conhecidas modalidades de práticas neo-esotéricas, a cargo de uma ouduas pessoas, mas sem uma identificação particular ou proposta mais geral. Nãoapresentam uma linha doutrinária ou arranjo específico no interior do universo do

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neo-esoterismo, nem organização gerencial, e sim uso comum das instalações,quando se trata de mais de um profissional. Exemplos: “Faz-se mapa astrológico:Marlene”; “Liu Chi Ming, José Domingos Resende: Acupuntura e massagem”;“Michelle e Henri Feldon: cura através dos chakras”; “Quirologia, consultas indi-viduais com Celi Coutinho”; “Tânia e Mauro: Shiatsu”. “Pela primeira vez nestacidade: Dona Laura, búzios e tarô”; “Profª. Milena: Astrologia, Grafologia, Búzi-os e Tarô”.

Este grupo, o segundo maior na listagem inicial (261 casos, o que corres-ponde a 31% do total), constitui a forma mais simples e menos dispendiosa deexercício das práticas neo-esotéricas: inclui os numerosos casos em que duas oumais pessoas apenas compartilham um espaço (algumas salas, por exemplo) paraatender a seus clientes e os casos mais numerosos ainda de atendimento individu-al, na própria residência do especialista. Abrange a legião de cartomantes, viden-tes, “sensitivas”, quiromantes,11 e até pais e mães-de-santo, ekédis e ogãs quejogam búzios. São práticas oferecidas e encontradas em todo o espaço da cidadepor uma rede informal de circulação de informações que inclui principalmentefolhetos, simples cartões de visita deixados em painéis de avisos de centrosmaiores, “por ouvir dizer”, recomendação de amigos.

Tais atividades apresentam, pois, uma série de características que não sójustificariam sua inserção num grupo especial como também apontam problemasbastante específicos, sendo um deles sua aproximação com o universo da religio-sidade popular.12 Na outra ponta deste grupo, todavia, podem ser encontradosestudiosos e pesquisadores de algum ramo esotérico que até fazem atendimentos,mais por hobby do que por necessidade de profissionalização.

Grupo V — Pontos de venda: em virtude de seu caráter claramente comer-cial, são os que mantêm com o universo do neo-esoterismo uma relação maisinstrumental e pragmática que doutrinária. Apesar dessa característica, não sepode descartar, em muitos desses espaços, um genuíno interesse e envolvimentode seus proprietários ou funcionários pelos aspectos filosófico-espirituais doramo, o que se manifesta na forma de aconselhamento e indicações de uso.Importantes livrarias do circuito neo-esotérico, como a Spiro e a Zipak, nãoapenas vendem livros ou oferecem algum tipo de orientação ao consumidor:servem de contato entre profissionais e seus clientes, promovem palestras, divul-gam eventos, organizam vivências.

Este é o grupo mais numeroso, registrando 284 ocorrências, que correspon-dem a 33,73% do total. É constituído por livrarias, farmácias homeopáticas e deervas, agências de turismo eco-esotérico e produtoras de eventos, feiras e entre-postos de produtos orgânicos, lojas de comercialização de instrumentos e insumosde trabalho, imagens, incenso, talismãs, fitas de música new age etc. Exemplos:

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“Bioaccus, Comércio de Produtos Terapêuticos Ltda. — Materiais de Acupunturaem geral”; “Distribuidora de Produtos Esotéricos”; “Shopping Mágico Alemda-lenda”; “New Age Viagens e Turismo”; “Mundo Verde: produtos naturais-dietéti-cos-esotéricos”; “Sankar Sana — Distribuidora de Artigos Indianos”.

Por fim, cabe reiterar que essa classificação em cinco grupos é aproximati-va, pois nem sempre os estabelecimentos concretos, em sua diversidade e poliva-lência, se encaixam clara ou exclusivamente neste ou naquele item; sua finalidadeé introduzir um primeiro princípio de organização e estabelecer um quadro inicialde referência. Neste, os Centros Integrados ocupam um lugar especial por reuni-rem, num só espaço, características específicas de todos os demais, razão pelaqual foram privilegiados como objeto de observação. A partir da observação maispróxima de alguns deles foi possível apreender o ambiente, o “clima”, dessesespaços que, apesar de diferentes, apresentam uma aura particular, para usar umtermo corrente no meio. Concorrem para a produção desse clima especial a distri-buição dos espaços internos, a etiqueta e normas de uso.

2. A dinâmica interna

O primeiro aspecto observado foi o tipo de edificação ocupada pela maioriados Centros Integrados (Grupo II) e por muitos do Grupo III. Já a partir dolevantamento inicial pôde-se constatar que os espaços desses grupos geralmentefuncionam em casas térreas e sobrados; as plantas baixas e elevações de algunsdeles mostram sobrados com aproximadamente 150 m² de área, de três dormitóri-os, duas salas, copa e cozinha. É um tipo de edificação ainda marcante na paisa-gem de alguns bairros de classe média paulistanos, sobretudo nas regiões sul eoeste. Em razão do novo uso, foram reapropriados e reorganizados de acordo comas necessidades ditadas pelas práticas neo-esotéricas, embora as reformas nãotenham implicado alterações físicas de caráter estrutural.

O espaço interno apresenta a seguinte disposição: a) sala de recepção,loja/livraria; b) balcão para chá/café/lanches; c) auditório/salão para práticas cole-tivas; d) saletas para atendimento; e) biblioteca, no caso dos centros maiores. Esseprograma responde à principal característica dos Centros Integrados que se dedi-cam a várias atividades no campo do neo-esoterismo, pela combinação de cursos,palestras, vivências, tratamentos terapêuticos, venda de produtos. Percebe-se um

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Fachada do Aruna-Yoga

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Planta do Aruna-Yoga

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gradiente desde a área mais pública da recepção, onde o amplo painel informa aprogramação do mês, passando para o espaço dedicado à venda de livros, objetos,fitas etc., em direção ao auditório, amplo e equipado para palestras e cursos.

Na parte mais interna — nos fundos, ou, quando se trata de sobrado, nopavimento superior, em lugar dos antigos dormitórios — encontram-se as saletasde atendimento. As janelas são mantidas fechadas e a iluminação é do tipo regulá-vel: a penumbra e o silêncio constituem as condições ambientais para a corretaaplicação e o devido aproveitamento das técnicas.

Existe toda uma etiqueta condizente com essa reordenação de espaços efunções. Na recepção pode-se sentar, conversar; o movimento é mais livre, favo-recendo o clima de encontro e sociabilidade. Mas no antigo setor social da casa,agora dedicado a vivências e rituais, ou nas salas de atendimento do andar supe-rior, muda o comportamento. Região liminar da casa, a recepção ainda abriga umpouco de tudo o que se faz lá fora (conversas, luz mais intensa, agitação); noespaço considerado interno, entretanto, uma nova postura é solicitada: tiram-se ossapatos, cessa a conversa. Ultrapassado o limite que deixa para trás o exterior, aluz diminui até chegar à penumbra — o equivalente ao silêncio na fala e no andar.O espaço mobiliado torna-se espaço vazio e o corpo muitas vezes tem de acomo-dar-se ao chão ou à almofada em vez de à cadeira:

“Nessa primeira parte do sobrado as luzes são intensas, pode-se falar normalmente eaté rir sem estardalhaço. No entanto, ao passarmos pela porta da recepção queconduz ao restante da casa, nota-se imediatamente a mudança. Entramos em umcorredor com meia-luz e forte cheiro de incenso. Deixamos nossos sapatos, bolsas emochilas na sapateira e nos cabides sob a escada que leva ao andar superior. AnaTerra nos convida a entrar na sala madeira, a sala das aulas de todos os cursos. Cadasala tem o nome de um dos elementos da natureza (água, terra, fogo, ar), que paraadeptos da massagem oriental inclui a madeira, relacionada ao fígado.”13

Em resumo, na área interna, ao contrário do que ocorre com o uso habitualdo espaço, que em parte subsiste na recepção, imperam o silêncio, a penumbra, ovazio, o aroma de incenso, produzindo um clima de paz e recolhimento, emcontraposição à fala, ao cheio, ao ruído e ao movimento que preenchem, naexperiência diária, o espaço construído.14

Com relação ao funcionamento interno, um bom número de Centros Inte-grados e Especializados tem registro de microempresa. Além dos funcionáriosadministrativos, contam com profissionais “da casa” — os responsáveis peloscursos de formação ou pela prática terapêutica que constitui a pièce de resistancedo espaço —, mas recebem e promovem a participação de pessoal de fora. Infor-matizados, dotados de infra-estrutura capaz de produzir e editar ao menos materi-al informativo, de publicidade e apostilas, muitos deles contam até com editoras.

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Com relação aos serviços oferecidos, a pesquisa pôde perceber que uma dascaracterísticas que diferenciam os Centros Integrados dos demais grupos é justa-mente a de oferecer atividades de todos ou quase todos os conjuntos em que estãosubdivididas as práticas neo-esotéricas.15 Mesmo no caso dos Centros Especiali-zados, a maior ou menor ênfase nesta ou naquela prática dependerá da formacomo cada instituição elabora sua proposta: pode estar, por exemplo, centradanuma linha mais formativa, de estudo e pesquisa (palestras, cursos regulares,seminários, oficinas), como é o caso da “Associação Palas Athena — Centro deEstudos Filosóficos”, que apresenta uma ampla biblioteca (9 mil títulos), possuium centro editor responsável pela revista semestral Thot, livros16 e um informati-vo das atividades. Apesar desse enfoque, entretanto, não descura práticas comoyoga, tai-chi-chuan, lian gong, meditação.

Já o “Espaço Cultural Tattva Humi”, tipicamente um Centro Integrado, maiseclético, oferece cursos, que se dividem em “terapêuticos” (cura prânica; reiki;massagem bio-psíquica); “esotéricos” (baralho cigano; energização dos mestres edos anjos; técnicas de iniciação do Antigo Egito) e “científicos” (projeção extra-física; neurolingüística; alquimia ambiental); mantém ambulatório (de cura prâni-ca, reiki e florais), atividades permanentes como dança do ventre, yoga tibetano,além de rituais (lua cheia, lua nova) e palestras.17

Entretanto, a oferta de todas essas práticas não é aleatória ou indiscrimina-da. Existe uma lógica: o anúncio de palestras gratuitas à noite, nos fins de sema-na, atrai um público que toma conhecimento das outras atividades, como oscursos e atendimentos, devidamente pagos. Tais cursos versam sobre temas quetambém são abordados de forma prática, pelo atendimento terapêutico (shiatsu,cromoterapia, radiestesia) ou pela venda do produto (florais de Bach, essênciasaromáticas, pêndulos). Essa estratégia é reforçada, de tempos em tempos, comatividades do tipo bazares, vivências coletivas e rituais por ocasião do solstício deinverno, ou equinócio de primavera, lua cheia, excursões eco-esotéricas etc.

Produz-se, assim, uma espécie de relação que, se não configura necessaria-mente proselitismo do tipo confessional/religioso, se traduz em laços de lealdadee identificação. Os espaços que integram o circuito neo-esô, e especialmente osCentros Integrados, oferecem ao usuário uma forma de conhecimento, em seguidaprodutos que complementam esse conhecimento, uma aplicação prática e a possi-bilidade de vivenciá-los de maneira coletiva.

Para concluir a caracterização podem-se identificar seus modelos institucio-nais. Trata-se, como foi mostrado, de atividades que funcionam como pequenasempresas localizadas na região mais central e em bairros privilegiados do pontode vista de equipamentos e serviços urbanos e, finalmente, agenciadas de acordocom um programa arquitetônico funcional. Nesse aspecto aproximam-se das de-

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mais lojas e estabelecimentos comerciais instalados em sobrados e casas antigasrecicladas desses bairros que oferecem os mais variados serviços.

Se tal é o padrão de implantação e gerenciamento, a relação que se estabele-ce entre seus profissionais e o público usuário segue o modelo terapeuta/pacientee o de mestre/aprendiz. O mote do autoconhecimento, um dos eixos articuladoresdo discurso neo-esotérico, permite uma associação com o trabalho que se desen-volve na relação entre terapeuta e paciente, professor e aluno, só que — e aquireside uma das especificidades das práticas integrantes do circuito neo-esô — osprincípios, a fundamentação, a base desse trabalho são outros. Ancoradas numaconcepção “sistêmica”, “holística”, o que essas práticas contestam é justamente omodelo ocidental, tanto de ciência (racional, cartesiano) quanto de cura (biomédi-co, tecnofarmacológico).18 Mas seu formato é preservado, incorporado, até comomais uma estratégia de legitimação de atividades que não gozam ainda do avaldas instâncias de poder.

O ambiente de clínica ou escola, entretanto, é complementado e amenizadopela presença de outro modelo, o do lazer. Os Centros Integrados, e tambémalguns Centros Especializados, pontos de referência estáveis no circuito neo-eso-térico, constituem lugares de encontro e sociabilidade para pessoas cujos gostos,formação, preocupações espirituais e hábitos de vida se assemelham. Nesses es-paços os temas não são apenas discutidos ou ensinados: são praticados, vivencia-dos em grupo, complementados por objetos de consumo (livros, revistas, fitascassete e de vídeo, peças ritualísticas e decorativas, óleos aromáticos, amuletos)que são vistos, apreciados, comentados.

Dessa forma, a freqüência aos Centros Integrados, seja por ocasião de algu-ma palestra ou ritual, seja na forma de uma busca mais sistemática de um cami-nho espiritual, enseja o estabelecimento de laços entre os próprios usuários que aíencontram uma opção também para seu tempo livre mais de acordo com o estilode vida que cultivam e que os aproxima.

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Notas

1. Feita no início da primeira etapa da pesquisa, anos 1991-92. Participaram de suaelaboração Lilian de Lucca Torres, Luiz Groppo e Cristiane Gonçalves.

2. Publicação dominical distribuída gratuitamente nos domicílios da região central dacidade de São Paulo e que na época do levantamento apresentava quatro cadernos, maisdois suplementos (trinta páginas no total) contendo informações, temas e matérias varia-das sobre urbanismo, saúde, moda, comportamento, ecologia, turismo, compras, comdestaque para a cidade de São Paulo.

3. Não se trata, contudo, de uma tarefa meramente burocrática, pois o manuseio dalistagem permite identificar aquelas instituições de maior tradição — e as de fôlego curto—, assim como também acompanhar seus movimentos e tendências no mapa da cidade.Por outro lado, a contínua checagem da lista possibilita assinalar o momento de fecha-mento do corpus, ou seja, quando as informações (referentes às instituições agrupadas nointerior dos itens classificatórios) se tornam repetitivas é sinal de que o universo construí-do a partir de fontes abertas (as séries, mesmo incompletas, de publicações) começatambém a mostrar seu perfil definitivo; novos endereços constituiriam meros acréscimos aum núcleo já delineado, ou então permitiriam observar tendências tendo como referênciaesse núcleo.

4. Com o propósito de transpor para o mapa da cidade de São Paulo as informações doendereçário, foi necessário proceder a um reagrupamento, uma vez que a divisão embairros tal como aparecia na listagem (a partir dos anúncios) não coincidia com a dosdistritos usada pela Secretaria das Administrações Regionais da Prefeitura do Municípiode São Paulo.

5. Até 1969 denominada “Sociedade Teosófica Brasileira”.

6. Estas, por sua vez, remontam ao rosacrucianismo do século XVII, e daí ao movimentohermético-cabalista da Renascença, ao gnosticismo cristão do século I d. C., às “religiõesde mistério da antiguidade tardia” (Burkert, 1992) e assim por diante, numa lógica em quemito e história se imbricam para produzir uma continuidade que se pretende sem interrup-ções. (Ver, a propósito, Fortis, 1997.) Como se poderá comprovar mais adiante, essalógica também está presente no discurso dos atuais neo-esotéricos: as sínteses daí resul-tantes, contudo, ao contrário das daquelas vetustas sociedades, são mais efêmeras, conjun-turais, sujeitas às vicissitudes das trocas na dinâmica metropolitana.

7. A primeira loja teosófica no Brasil foi fundada em Pelotas (RS) em 1902; o CírculoEsotérico da Comunhão do Pensamento data de 1909; a Sociedade Antroposófica, de1917; a Sociedade Teosófica Brasileira (Eubiose), de 1916; a ordem Rosacruz AMORC de

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1956, e a Escola Espiritutal da Rosacruz Áurea, de 1956 (Fortis, op. cit.). Outras institui-ções que podem ser incluídas no Grupo I são as várias fraternidades (Aquarius-Sofia,Fraternidade dos Guardiães da Chama, Pax Universal e outras) e ordens (Golden Dawn,do Templo, dos Guardiães da Luz etc.).

8. Soka Gakkai, Sociedade Internacional da Consciência de Krishna, entre outras e tam-bém as chamadas “novas religiões” assim denominadas em contraposição às “religiõesestabelecidas” — basicamente Budismo e Xintoísmo, das quais incorporam diversos ele-mentos, como também do Cristianismo e de crenças populares. Surgidas em torno delíderes carismáticos, têm grande participação de mulheres (em muitos casos como funda-doras), dando pouca importânica à distinção entre clero e laicato. Voltadas prefencialmen-te para a vida codidiana, enfatizam o tema da prosperidade mais do que questões ligadas àvida depois da morte. Alguns autores vinculam seu surgimento com situações de crisesocial e econômica no Japão, principalmente no período da depressão e do militarismo eapós a Segunda Guerra. (Cf. Pereira, 1992:29-35)

9. É bem conhecido o fascínio que o budismo e filosofias genericamente rotuladas de“orientais” exerceram sobre os movimentos precursores do neo-esoterismo como a contra-cultura e a geração beat nos Estados Unidos. As interfaces do movimento neo-esô com asgrandes religiões constituem um tema à parte. Se o budismo (enquadrado de forma genéri-ca, junto com o hinduísmo e o taoísmo, numa suposta vertente “oriental”) tem seu lugargarantido, o mesmo não ocorre com as religiões da tradição judaico-cristã. Destas, o que éabsorvido é antes o que rejeitam, escondem ou circunscrevem a grupos específicos —misticismo, bruxaria, cabala, sufismo — do que aquilo que é pregado em sua teologia epraticado nos cultos oficiais. Quando elementos e personagens centrais são incorporados(Cristo, Maria), entram como parte de outros arranjos paradigmáticos: Cristo é um “ava-tar”, ao lado do conde Saint-Germain, Buda etc.; Maria é introduzida, juntamente comoutras entidades femininas, no panteão da “Grande-Mãe”, “Grande-Deusa”, e assim pordiante.

10. Algumas de suas características serão descritas mais adiante, no item 2, “A dinâmicainterna”.

11. Que se apresentam com o costumeiro bordão “Madame Cleide, pela primeira veznesta cidade”, apelo que remonta ao caráter muitas vezes nômade desses personagens.

12. Uma rápida verificação desses folhetos permite, contudo, perceber uma nova tendên-cia: geralmente os serviços oferecidos têm como fundamento a vidência ou o espiritismo,incluindo consulta com guias umbandistas e uso dos búzios; a maioria deles, entretanto, jávem apregoando, sistematicamente, o emprego do trio “cartas/búzios/tarô”. Um dessesfolhetos é particularmente significativo: prometendo solução para “a depressão, angústia,insegurança e insucesso para obter o autoconhecimento”, apresentava os serviços da “céle-bre d. Olga, orientadora espiritual, médium da linha oriental, vidente, que emprega bara-lho astrológico, tarô, búzios, energização com cristais e mapa astral pessoal”. Incluía

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‘angiologia’ (sic): “saiba tudo sobre seu anjo”, mas sem esquecer o velho e bom patuápara o amor. “Não confunda com outras!” é a advertência final...

13. Evento “Consciência Corporal e Dança”, Escola A.M.OR, 5 ago. 1996, 20h (relato:Adriana C. Capuchinho).

14. Cf. Fortis, 1994, também autor dos desenhos da fachada e planta mostradas.

15. a) Formação e divulgação; b) Terapias; c) Vivências. Ver adiante, capítulo 3.

16. Entre outros, O poder do mito, de Joseph Campbell (1993), de grande sucesso edito-rial; Cartas a um amigo, de Nagarjuna (1994); Mente Zen, mente de principiante, deShunryu Suzuki, tradução de Odete Lara (1994); O livro tibetano do viver e do morrer(1999), de Sogyal Rinpoche, tradução de Luiz Carlos Lisboa.

17. Os termos, bem como a classificação dos cursos em “esotéricos”, “terapêuticos”,“científicos” e demais informações foram retirados da programação do mês de abril de1998.

18. Este aspecto será retomado mais adiante.

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2As práticas

Da mesma forma como foi feito em relação aos espaços que integram ocircuito neo-esô, a pesquisa, após um tempo de contato com as atividades nelesdesenvolvidas, experimentou vários princípios classificatórios com o propósito detambém enquadrá-las num conjunto inteligível. A tarefa não se mostrou de fácilresolução: além da previsível variedade, tais práticas apresentam-se como “holís-ticas”, o que significa, entre outras conotações, que englobam as “dimensõesespiritual, física e mental”.

Assim, dificilmente uma atividade dirige-se com exclusividade a um sódesses planos; na maioria das vezes uma palestra termina com uma vivênciacoletiva, da mesma forma que um ritual sempre começa com uma explicação dosistema ou tradição de que é originário, e uma terapia corporal exige o concursode energias espirituais. Como, portanto, classificá-las? Apesar desses complicado-res, e em nome também da simplicidade, optou-se finalmente por um quadro comapenas três divisões:

1. Divulgação e formação — inclui aquelas atividades destinadas a difundir osdiferentes sistemas e ensinar suas aplicações por meio de palestras, cursos,aulas abertas, demonstrações, simpósios, congressos.

2. Terapias — grupo que inclui toda a variedade das práticas de atendimentoindividual ou coletivo voltadas para a cura e prevenção de distúrbios e tambémtécnicas para o desenvolvimento de potencialidades psíquicas ou corporais.

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3. Vivências — grupo que inclui cerimônias e ritos realizados por ocasião dedatas especialmente significativas, seja para o universo neo-esô como um todo,seja para determinado sistema ou espaço em particular, e durante workshopsde treinamento intensivo e coletivo de determinada prática.1

1. Divulgação e formação

Os espaços do circuito neo-esô desenvolvem uma intensa programação des-tinada à divulgação de suas atividades, discussão de seus temas, formação dequadros e consolidação de uma clientela. Não se trata, contudo, como já foi dito,de uma atividade de proselitismo, nos moldes de associações religiosas: em vezde “doutrinação”, os especialistas dos diferentes sistemas, apesar de sua crítica amétodos excessivamente racionais em detrimento da via mais emocional e intuiti-va, buscam o convencimento — por palestras, cursos, demonstrações, discussãode filmes, lançamento de livros, seminários, simpósios, congressos. Oferecidasprincipalmente em espaços dos Grupos II (Centros Integrados) e Grupo III (Cen-tros Especializados), as atividades de divulgação e formação pautam-se antes pelomodelo da escola ou do grupo de estudo e pesquisa do que pelo da seita religiosaou iniciática. As modalidades deste item podem ser reunidas basicamente em trêssubgrupos, a seguir.

Em primeiro lugar, as de divulgação propriamente ditas, que compreendempalestras, demonstrações, aulas abertas e fazem a primeira aproximação com opúblico. São gratuitas, mas não sem algum compromisso; em geral os folhetossolicitam que os interessados façam sua inscrição previamente por telefone —pois “as vagas são limitadas” — e cheguem com “quinze minutos de antecedên-cia”. Essas recomendações obedecem a uma estratégia: a garrafa térmica comchá, à entrada, enseja um primeiro contato entre os participantes e destes com opessoal da casa, permitindo o preenchimento de uma ficha que será utilizada paraposterior envio de correpondência via mala direta e proporcionando um tempopara a apreciação dos livros, CDs e demais objetos à venda. Exemplos:

“INSTITUTO PARA EXPANSÃO DA CONSCIÊNCIA”: Palestras gratuitas —agosto/97

01 — Massagem Tântrica: a alquimia do amor08 — A doença e a cura na Era de Aquarius

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15 — Aula aberta do Grupo de Movimento22 — Radiestesia e Radiônica29 — Dança do Ventre: a arte sagrada do feminino.“Reserve sua vaga pelo telefone ou pessolmente no IEC; o número de pessoas élimitado”

“TRIOM — Centro de Estudos Marina e Martin HarveyPalestras: entrada franca — inscreva-se com antecedência”

Como já foi assinalado, a palestra gratuita é também uma forma de fazer opúblico se interessar pelas demais atividades do espaço, permitindo, eventualmen-te, um aprofundamento do tema da palestra em cursos; estes constituem o segun-do subgrupo e podem ser de longa, média e curta duração. Os cursos de longaduração destinam-se principalmente à formação de profissionais que poderão vira exercer o ofício por conta própria, mas também constituem a principal forma decontinuidade dos princípios e métodos de trabalho da própria instituição — umaespécie de mecanismo de reprodução de sua estrutura simbólica e de seus qua-dros. Assim, por exemplo, é condição para se tornar membro pleno da AssociaçãoPalas Athena ter concluído o curso de Introdução ao Pensamento Filosófico man-tido em sua programação. Outros espaços, com diferentes propósitos, tambémoferecem cursos de longa duração:

“PAZ GÉIA: Curso de Formação de Facilitadores Xamânicos — Direção de Carmi-nha Lévi. Duração: 3 anos.”

“ESCOLA A.M.OR — Associação de Massagem Oriental do Brasil — Curso deFormação em Massagem e Sensibilidade. Duração: 2 anos.”

“ARUNA-YOGA: Formação de instrutores de yoga. Duração: março a dezembro.”

Os cursos de média duração — de dois, três meses, em média — abarcamum espectro mais amplo na medida em que incluem outros temas além daqueleque define a principal atividade da casa. Podem, dessa forma, ser ministrados porprofissionais de fora e em princípio representam para o público uma oportunidadede aprimoramento pessoal ou de reciclagem. Exemplo:

“ESPAÇO ASTROLÁBIO

• Curso de cristais: Quarta-feira — 14:00 às 16:00 e 20:00 às 22:00. (5 meses)• Cabala: Módulo I (3 meses)• Florais de Bach (4 meses)• Radiestesia e Radiônica: Módulo I (1 mês); Módulo II (2 meses); Módulo III (3

meses)”E, finalmente, os cursos de um ou dois dias, geralmente nos finais de semana:

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“ESPAÇO CULTURAL TATTVA-HUMI — Janeiro de 1998

• Cristais — Dias 17 e 18 (das 9 às 18 horas)• Angelologia — Dias 19 e 26 (das 20 às 22 horas)• Projeção extrafísica — Dia 24 (das 9 às 19 horas)• Feng Shui — Dias 24 e 25 (das 9 às 17 horas)• Transcomunicação instrumental — Dia 30 (das 20 às 22 horas)• Numerologia — Dia 31 (das 9 às 17 horas)• Reiki I — Dias 31/1 e 1/2 (das 9 às 17 horas)”

Outras modalidades complementam, nos espaços, essa programação desti-nada à divulgação de temas, princípios e sistemas que compõem o universo doneo-esoterismo: lançamento de livros, acesso a bibliotecas com salas de leitura eempréstimo de volumes, projeção e discussão de filmes, relatos de viagens e/ouexperiências iniciáticas, demonstração de técnicas e produtos, apresentações mu-sicais.2 Cabe registrar também uma intensa produção, nos próprios espaços, detextos de apoio na forma de apostilas, folhetos, manuais.

Merecem destaque, entre outros, pelo alcance, a Gráfica e Editora da Asso-ciação Palas Athena, com uma linha própria de publicações; “Planeta”,3 revistamensal de tradição e prestígio no meio neo-esô que no ano de 1997 comemorouseus 25 anos de presença no mercado nacional. Esta última publicação mantémuma seção chamada Agenda que informa mensalmente as atividades — palestras,cursos, encontros, workshops — oferecidas pelos espaços principalmente de SãoPaulo.4 E, como não poderia deixar de ser, é possível acessar, via internet, o siteAgenda Esotérica que, entre muitos outros, exibe a programação periódica deinúmeros espaços.

O terceiro subgrupo — congressos, encontros, simpósios — apresenta umoutro tipo de dinâmica que complementa a analisada nos anteriores: trata-se deeventos que, de certa forma, apresentam o lado público do debate em torno dostemas neo-esôs. Alguns exemplos:

“VII ENCONTRO PARA A NOVA CONSCIÊNCIA: o pensamento da culturaemergente” (Campina Grande—PB, 20/24 de fevereiro de 1998);

“VI CONGRESSO HOLÍSTICO E TRANSPESSOAL INTERNACIONAL: a sabe-doria da Europa, a força emergente dos EUA, o coração da América Latina e astradições do Oriente representados pelos mais famosos especialistas no assunto”(Águas de Lindóia/SP, de 4 a 7 de setembro de 1997);

“VIII CONFERÊNCIA INTERNACIONAL DE METAFÍSICA” — promoção daFraternidade Pax Universal, São Paulo, Centro de Convenções do Anhembi, 14/15de junho de 1996);

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“SIMPÓSIO SAÚDE INTEGRAL NO LIMIAR DA ALTA TECNOLOGIA: diálo-go transdisciplinar entre as práticas terapêuticas de origem ocidental e oriental” (10,11 e 12 de maio de 1996, Centro de Convenções do Anhembi, São Paulo);

“IMAGINÁRIA 95: Arte, Ciência, Economia e Espírito numa visão de futuro”.(Sesc/Pompéia, São Paulo, de 6 a 12 de novembro de 1995).

Enquanto os espaços, no seu dia-a-dia — oferecendo palestras e cursos —,dedicam-se a desenvolver e ensinar os princípios, sistemas e técnicas que fazemparte de sua proposta, esta outra modalidade oferece a oportunidade de encontrosmais amplos, organizados segundo o formato de congressos científicos ou con-venções empresariais. O evento “Imaginária 95”, por exemplo, um dos que foramacompanhados de perto pela pesquisa, foi precedido de um intenso marketing namídia e realizado em moldes profissionais, com base no apoio de uma extensalista de instituições patrocinadoras.5 Na parte da manhã ocorriam as palestras, acargo dos especialistas convidados; à tarde, colóquios nos quais os palestrantesentravam em contato mais direto com o público, ampliando e discutindo o temaapresentado. Entremeando e amenizando essas atividades, consideradas a partecentral do evento, havia rituais (dança nativa americana, danças de Findhorn,dança ritual árabe, ritual judaico), mostra de vídeos, shows musicais.

Uma das características pretendidas por esses encontros é a multidisciplina-ridade, que visa não apenas ao debate entre diferentes correntes e movimentos dopróprio meio neo-esô, como também à presença de outros sistemas, seja da ciên-cia, política, instituições privadas etc. Assim, o “Imaginária 95” — cujo subtítuloera “Arte, Ciência, Economia e Espírito numa visão de futuro” — apresentava-secomo “encontro de especialistas de diversas áreas em torno de soluções criativaspara o futuro e de novas visões de mundo numa sociedade em transformação”.

Essa multidisciplinaridade, entretanto, tende a polarizar-se em torno de doiseixos, Ciência versus Tradição, por exemplo, ou de outros que mantenham essemesmo contraste ou distância. Assim, no simpósio “Saúde integral no limiar daalta tecnologia” a tensão era entre “Ocidente versus Ocidente”, conforme sedepreende de uma chamada de seu programa de atividades: “Diálogo transdisci-plinar entre as práticas terapêuticas de origem ocidental e oriental”.

Apesar das declarações em favor de uma atitude de diálogo entre “Ciência eTradição”, “Ocidente e Oriente” etc., a tônica das discussões induz à tomada departido pelo segundo desses pólos, considerando o outro representante dos valo-res ocidentais, do paradigma racionalista, da visão positivista, de desvios tecno-cráticos. No entanto, tal visão acredita haver certos setores da ciência que fogema esse modelo, pois não só não se chocam com a perspectiva da tradição, como,ademais, a confirmam: são aqueles considerados, no meio neo-esô, “de ponta” ou

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identificados com a busca de novos paradigmas.6 No final acaba-se fazendo umaaliança entre o saber tradicional, acumulado em diferentes culturas, e as hipótesesjulgadas mais arrojadas de algumas disciplinas.

Mas se uma ciência mais convencional, identificada com instituições univer-sitárias e centros de pesquisa comprometidos com o status quo, é descartada emfavor de pesquisas e indagações afinadas com pontos de vista “holísticos”, essamesma ciência “oficial” reaparece, meio à sorrelfa, com outra função: a busca delegitimidade. Assim, a participação, nesses congressos, de acadêmicos de institui-ções consagradas é peça fundamental num processo de legitimação pública desistemas e atividades enfrentados com reservas, desconfiança e até com medidaslegais por parte de órgãos que detêm o monopólio sobre determinado campo, emespecial da área médica.

Na lista dos acadêmicos anunciados na programação oficial do evento “Ima-ginária 95”, cabe chamar a atenção para a titulação colocada em destaque: Ubira-tan D’Ambrosio “doutor em Matemática (USP), pós-doutorado na BrownUniversity, professor emérito da UNICAMP”; Alfredo Padma Samten Aveline,“ex-professor no Departamento de Física da UFGS (1969/1994), fundador e atualpresidente do Centro de Estudos Budistas, dedica-se aos fundamentos epistemo-lógicos da Teoria Quântica, é membro do corpo docente da Universidade Holísti-ca Internacional, em Porto Alegre”; Carlos Arguello, “com pós-graduação na USPe pós-doutorado nos EUA, é professor de Física na UNICAMP, criou e dirigiu oMuseu Dinâmica de Ciências de Campinas, dedicado à melhoria do ensino deciências”; José Zatz, “físico e engenheiro eletrônico formado pela USP, foi pes-quisador associado ao Centro Nuclear de Saclay (França) e ao Centro Europeu dePesquisas em Genebra”.

A presença de outras figuras de projeção, em seus respectivos domínios,reforça essa busca por legitimação. No evento em questão, por exemplo, consta-vam ainda da programação, entre outros: Jaime Lerner, então prefeito de Curitiba,conhecido por seus projetos urbanísticos para essa cidade; Fernando Gabeira,deputado federal ligado a causas ecológicas e aos direitos humanos; FábioFeldman, então deputado federal ligado à defesa do meio ambiente; Amyr Klink,economista e navegador, membro da Royal Geographical Society, protagonista dearrojadas travessias marítimas em veleiros (cabo Horn, Ártico) e autor de bestsellers com o relato de suas aventuras. E mais: os cantores e/ou compositoresGilberto Gil, Marlui Miranda e Fortuna. No simpósio “Saúde Integral...”, estavamanunciados: frei Betto, Ângelo Gaiarsa, Roberto Shinyashiki, Pierre Weill, CarlosByington; no “VI Congresso Holístico Transpessoal Internacional”: Rose MariaMuraro, Roberto Romano, Carlos Rodrigues Brandão, o rabino Henry Sobel entreoutros.7

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A participação de alguns convidados especiais, geralmente estrangeiros,pode ser encarada como parte dessa mesma estratégia. No caso do evento “Imagi-nária 95”, vale citar: Edgard D. Mitchell, “astronauta, membro da expediçãoApollo 14, sexto homem a caminhar pela superfície lunar, fundador do Instituteof Noetic Sciences (1972), voltado para pesquisas destinadas a aprofundar osinsights que teve a partir de sua experiência no espaço”; Grand Father SemuHuaute, “um dos mais respeitados índios americanos”, segundo o release, xamã ehealer da nação chumash, originária da Califórnia; Barbara Marx Hubbard, futu-róloga, ex-candidata à vice-presidência dos EUA em 1984, fundadora da SchoolFor Conscious Evolution; Elisabet Sahtoris, bióloga e ecologista, defensora da“Hipótese Gaia”,8 co-fundadora da Worldwide Indigeneous Science Network;Stanley Krippner, psicólogo e antropólogo, dedicado a estudos sobre xamanismo;Peter Russel, físico, consultor de empresas; Ralph Abraham, matemático, espe-cialista na Teoria do Caos.9

Em resumo: trata-se de invocar o testemunho da ciência considerada oficial(ainda que desqualificando alguns de seus fundamentos epistemológicos), o pres-tígio de instituições reconhecidas e a aura de personalidades de renome de formaa construir um multifacetado argumento de autoridade em favor de sistemas depensamento, crenças e práticas, muitos dos quais não gozam do reconhecimentooficial e/ou legal.

Não se trata, contudo, de mera estratégia, no sentido de um artifício monta-do de forma consciente e sub-reptícia: a participação de cientistas nesses encon-tros não significa, por um lado, nem que estejam sendo manipulados, nem, poroutro, que se identifiquem com a totalidade dos pressupostos das posições holísti-cas. Muitos deles, todavia, manifestam claramente sua insatisfação com os para-digmas vigentes e sua crença na necessidade da busca de modelos inovadores. Ocerto é que há setores do universo neo-esô que realmente colocam em pauta ediscutem questões que não fazem parte da agenda ou currículo das universidades,instituições e centros de estudo oficiais; muitas de suas formulações são altamen-te elaboradas e sofisticadas.10

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2. Terapias

Este item compreende um conjunto de práticas, com atendimento pessoal oucoletivo, voltadas para o diagnóstico, a cura e a prevenção de distúrbios e para odesenvolvimento de potencialidades nos planos corporal, psíquico e espiritual.Também conhecidas, ainda, como “alternativas”,11 essas terapias apresentam-secomo portadoras de alguns atributos que servem de contraposição às convencio-nais — aquelas desenvolvidas por especialidades médicas cujo aprendizado eexercício estão sujeitos a normas contidas em textos e mecanismos legal e institu-cionalmente constituídos.

Tais atributos são, entre outros, seu caráter “holístico”, “soft” e “natural”.Pelo primeiro deles opõem-se à excessiva especialização da medicina oficial,procurando levar em consideração o paciente em sua totalidade — corpo/men-te/espírito — e em relação com os diferentes planos em que está inserido, desde omeio ambiente imediato até o nível cósmico mais abrangente; pelo caráter “soft”essas terapias apresentam-se como menos agressivas em suas intervenções, me-nos caras que o complexo tecno-hospitalar das modalidades hard e menos de-pendentes de equipamentos. E, finalmente, são “naturais” pelo fato de, tendocomo princípio o poder curativo do próprio organismo vivo, para reforçá-lo ouregenerá-lo, usar elementos naturais, preferíveis à via medicamentosa de basequímica.

Classificar as inúmeras práticas dessa área de atuação do universo neo-esôno interior de um quadro em que se possam minimamente discriminá-las combase em algum critério não é tarefa fácil.12 No entanto, mesmo correndo o riscode uma certa arbitrariedade, vale a pena o exercício de distribuí-las segundoalguns princípios simples e advindos do próprio universo semântico do campo. Oprincipal deles e mais difundido, já explicitado anteriormente para estabelecer umponto de corte com as terapias convencionais, é o princípio holístico que, aplica-do à própria doença, permite entendê-la como um estado de desequílibrio, seja deorigem interna ao organismo, seja externa a ela, em seu regime de trocas com omeio, desde o mais imediato até o que abrange a dimensão cósmica. O que asterapias propõem é restaurar esse equilíbrio, ativando ou fortalecendo o fluxoenergético, e podem fazê-lo a partir de cada uma destas três dimensões, e pormeio delas, que para a visão holística devem estar integradas, em plena harmonia:a dimensão mental, a física e a espiritual.13

Assim, é possível classificar a maior parte das terapias alternativas confor-me os planos “corpo/mente/espírito” que as técnicas, instrumentos e métodos

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privilegiam para estabelecer a ordem ameaçada pela doença: no primeiro subgru-po, que favorece o plano mental, estão aquelas práticas que ativam “os poderes damente”, como as “mancias” e sistemas divinatórios em geral: astrologia, baralhocigano, cabala, cleromancia, encromancia, geomancia, I-Ching, numerologia, qui-rologia, quiromancia, radiestesia, runas, tarô etc. Ao contrário do que vulgarmen-te se acredita, a maioria dessas práticas não é empregada para adivinhar o futurodos consulentes — ao menos nos espaços dos grupos I, II e III; nestes, e nocontexto terapêutico, são usadas principalmente como instrumentos de diagnósti-co e de acesso ao conhecimento interior. Nesse subgrupo incluem-se as técnicasde programação neurolingüística (PNL), iridologia, psicossíntese, psicologiatranspessoal, terapias de vidas passadas (TVP), treinamento autógeno (TA), re-gressão, jogo da transformação, diferentes modalidades de meditação, desdobra-mento, viagem astral, canalização.

Se a via escolhida é a do plano físico, então é sobre o corpo que inicialmen-te incidirão as técnicas de cura. É possível distinguir o subgrupo das práticas maispropriamente denominadas “terapias corporais”,14 em que o papel mais ativo cabeao terapeuta, compreendendo as massagens áurica, automassagem dirigida, ayur-védica, a bioenergética (e outras, de inspiração reichana), o do-in, quiroprática,reiki, shantala, shiatsu, toques sutis, tui-ná; o subgrupo das técnicas em que opaciente desenvolve o papel mais ativo, principalmente as “práticas corporais”,como aikidô, biodança, dança clássica indiana, danças circulares sagradas, dançasétnicas, dança flamenca, dança do ventre, hologinástica, jin shin jyutsu, liangong,qi gong, relaxamento, respiração holotrópica, self-healing, yoga, tai-chi-chuan,entre outros; e, finalmente, o subgrupo das práticas com a utilização de algumelemento externo: acupuntura, aromaterapia, aura-soma, auriculopuntura, cromo-terapia, cromopuntura, cristaloterapia, energização com pirâmides, moxaterapia,fitoterapia, homeopatia, florais e outras mais do gênero.

Quando o processo terapêutico visa mais diretamente ao plano espiritual,procurando reestabelecer a harmonia do indivíduo com dimensões identificadascom o sobrenatural (daí esperando-se a cura), têm-se práticas realizadas comorituais no interior de sistemas religiosos específicos: roda da medicina, resgate dealma e sauna sagrada no contexto do xamanismo; rituais tântricos, roda damedicina tibetana, ritos das tradições druídica, wicca, relaxamento Kum Nye(Nyingma) e assim por diante.15

Cabe destacar, mais uma vez, que esses planos se interpenetram e dificil-mente podem ser considerados de forma estanque ou tratados isoladamente; ade-mais, há sistemas que se apresentam de maneira mais global, como é o caso damedicina antroposófica, que inclui clínica (Clínica Tobias), laboratório (Weledado Brasil — Laboratório e Farmácia Ltda.) etc.,16 cujos serviços e produtos são

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articulados de acordo com os princípios filosóficos da instituição. O mesmo podeser dito de vários outros, geralmente no interior dos espaços classificados noGrupo I, no qual as distinções apontadas, para efeitos de classificação, não seaplicam de maneira rígida.17

Com relação às formas de atendimento, podem-se distinguir três modalida-des principais; a mais recorrente é aquela que se verifica no interior dos espaços,principalmente dos Grupos II e III, segundo a dinâmica já descrita: paciente eterapeuta estabelecem um contato personalizado, mas no contexto de um espaçoprovido com determinada infra-estrutura e onde atuam outros profissionais.

Uma segunda modalidade é constituída pelo oferecimento de vários serviçose especialidades, de acordo com o modelo da clínica, do plano de saúde e atémesmo de “spa”. Assim, da mesma forma como foi observado em relação aoscongressos sobre temáticas ligadas ao universo neo-esotérico, se de um lado osdefensores das terapias alternativas contrapõem-se ao que denominam a naturezamecanicista, fragmentária e tecnocrática da medicina ocidental, nem por isso —ao menos alguns deles — rejeitam certas normas de funcionamento vigentes.Assim:

“QUALIS — QUALIDADE DE VIDA EM SAÚDE oferece plano individual eplano familiar para as seguintes especialidades, entre outras: Acupuntura e Medicinachinesa, Homeopatia, Fisioterapia, RPG, Odontologia, Psicoterapias, Terapia floral,Fonoaudiologia, Massagens etc.”

“TZOLKIN — TERAPIAS INTEGRATIVAS — descontos especiais para convenia-dos médicos nas sessões individuais.”

“PAC — Sociedade Brasileira de Programação em Auto-Conhecimento e Comuni-cação anuncia um check-up holístico.”

“SPAÇO CORPO & MENTE EM EQUILÍBRIO — Um local onde tratamentos eterapias procuram unir o Corpo e a Mente, o físico e o psíquico através da uniãoentre filosofias milenares do Oriente com as tecnologias de ponta do Ocidenteatingindo a harmonia físico-estética, emocional e mental, imprescindível para nos-sos órgãos e o perfeito equilíbrio do ser.”

Esses são alguns exemplos de formas de atendimento em moldes profissio-nais e até empresariais que vão além daquelas mais conhecidas e popularizadas,como as inúmeras propostas de massagem de inspiração vagamente “oriental”realizadas na sala de visitas da própria casa do terapeuta ou em pequenos espaçoscompartilhados com outros, como é o caso de muitos estabelecimentos do Gru-po IV. Muito difundidas — constituem a terceira modalidade —, exigem quasenenhum equipamento e, como são técnicas de conhecimento prático e progressi-vo, permitem a qualquer aficionado, mesmo iniciante, arvorar-se em terapeuta.

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Não é o caso, evidentemente, daqueles que se dedicam a essas práticassegundo um padrão mais erudito,18 ou seja, no contexto de uma instituição ousistema filosófico mais amplo, no interior do qual se situam estes últimos, aliás,preocupados com o profissionalismo e as repercussões negativas de usos indevi-dos, criticam asperamente a banalização e advertem para os perigos que o apren-diz de “massoterapia” ou até mesmo um simples curioso podem causar à colunaou aos tendões de algum desavisado. O mesmo pode ser dito com relação à fitotera-pia, florais ou outra modalidade qualquer ministrada de maneira amadorística.

Seja qual for o caminho escolhido para a cura e a obtenção do bem-estarfísico ou espiritual, é bom lembrar a importância que é dada à alimentação, desdeo cuidado na escolha dos produtos, dando-se preferência àqueles cultivados semdefensivos e adubos químicos, até a adoção de princípios mais gerais como os damacrobiótica, do vegetarianismo, veganismo19 e outros. Essa é uma das áreas naqual o universo neo-esô, em sua interface com propostas dos movimentos ecológi-cos, deixa sua marca na conformação de um estilo de vida tido como “saudável”.

3. Vivências

Enquanto as atividades do grupo “Divulgação e formação” destinam-se aoconhecimento e aprofundamento dos diferentes sistemas que compõem o univer-so neo-esô e as do grupo “Terapias” tiram desses sistemas instrumentos destina-dos à cura e ao aperfeiçoamento pleno de cada um, as atividades listadas em“Vivências” oferecem um espaço de socialização no qual aqueles princípios etécnicas são vividos, de forma mais intensa, em grupo. É possível distinguir trêssubconjuntos, a seguir descritos.

O primeiro compreende bazares, feiras místicas, festivais e modalidades dogênero que congregam um número grande de pessoas e apresentam um caráterrealmente de feira e festa. Ao lado das banquinhas expondo e vendendo os produ-tos típicos do meio neo-esô, como incensos, velas, óleos e essências aromáticas,anjos, duendes, cristais, pêndulos etc., estão as barracas onde tarólogos, numeró-logos e demais cultores de toda sorte de “mancias” oferecem suas especialidades;há demonstrações artísticas ligadas ao meio (dança do ventre, música new age) enão faltam os chás e sanduíches “naturais”.

Ponto de encontro e espaço de sociabilidade para os simpatizantes dessaspráticas, funcionam também como primeira forma de contato com o universo

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neo-esô. Analisando o conjunto dessas modalidades, nota-se claramente que setornaram uma iniciativa de fácil implementação e sucesso garantido, seja qual foro motivo ou circunstância: angariar fundos para obras beneficentes, conseguiralgum recurso extra para o espaço, encerrar as atividades do ano. É já umaespécie de “marca registrada” do universo neo-esô, com know-how de domíniopúblico.

Tais atividades, compreendidas no primeiro subconjunto da rubrica “vivên-cias”, não devem ser confundidas com as da “feira mística” como modalidadeempresarial de oferecimento regular de determinados serviços do universo neo-esô, aqueles constituídos pelos sistemas oraculares de runas, tarô, baralho, búzios,I-Ching etc. Esse modelo de atendimento, implantado em São Paulo desde 1988pelo tarólogo espanhol Matias Diego, é montado em lugares abertos, geralmentepraças — a mais conhecida é a “feira mística” do Parque Ibirapuera — nos finsde semana. Mediante pagamento padronizado, controle por fichas e tempo deter-minado para a consulta, o usuário tem acesso, à sua escolha, aos serviços dosdiferentes profissionais que aguardam no interior das barracas dispostas em filei-ra. Apesar do caráter até certo ponto descompromissado dessa forma de atendi-mento, muitos consulentes terminam mantendo vínculos mais duradouros, o quese traduz em retorno para novas consultas. Seja como for, trata-se de uma modali-dade específica de oferta de serviços identificados com o universo neo-esô, aolado dos Centros Integrados, Centros Especializados, etc.20

Já as cerimônias realizadas por ocasião de ocorrências regulares, do tipo“ritual da lua cheia”, “celebração da primavera” e outros, reúnem pequenos gru-pos para celebrações mais intimistas, alguns em clima de religiosidade. Cadaespaço escolhe a temática, reelabora ou inventa o próprio ritual; os participantessão em geral membros da casa, alunos e ex-alunos de algum curso ou workshop.É uma modalidade que mantém e reaviva os laços principalmente quando se tratade espaços que apresentam uma continuidade institucional, transformando-se emnúcleos aglutinadores de “gerações” de freqüentadores, desde os fundadores atéturmas mais recentes. Instaura uma forma de sociabilidade e confraternização quereforça laços comuns, concorrendo para a troca de experiências e para a sedimen-tação e ampliação de um estilo de vida que se compartilha.

Os workshops de fim de semana realizados em sítios próximos à cidade(Embu, Cotia, Itapecerica da Serra), em fazendas do interior do estado e até emalgumas das cidades e regiões do circuito neo-esô no plano nacional (São Tomédas Letras — MG, Chapada Diamantina — BA, Chapada dos Veadeiros — GO)envolvem maior necessidade de infra-estrutura (transporte, alojamento, alimenta-ção) e, por conseguinte, são mais caros. Intensivos, estreitam os laços entre osparticipantes e entre estes e o “facilitador”, estabelecendo vínculos de lealdade

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mais firmes com o espaço que os oferece e com o sistema que lhes serve de base.Mesmo aí não se descarta o espírito de lazer, já que um fim de semana num belosítio, com boa alimentação e a prática de saudáveis exercícios sempre faz bem,sobretudo para quem mora numa cidade como São Paulo, seja qual for a inspira-ção filosófica subjacente ao evento...

Cabe uma observação a respeito da celebração de ritos mais estruturados ede caráter propriamente religioso, em geral em instituições do Grupo I. Paratanto, é necessário algum esclarecimento a respeito de termos muitas vezes usa-dos indistintamente e até como sinônimos: religião, religiosidade e espiritualida-de. Sem nenhuma pretensão de defini-los e apenas para estabelecer algumasfronteiras e diferenciações ao longo de um continuum, pode-se dizer que numaponta está a religião, sistema institucionalizado de crenças e rituais a cargo de umcorpo de especialistas; a religiosidade pode ser entendida como um estilo peculiare coletivo de expressar o sentimento religioso; enquanto espiritualidade refere-sea uma experiência pessoal expressa em formas idiossincráticas individualizadas.21

Apesar da presença e da influência de religiões no meio neo-esô, este certa-mente não constitui um sistema religioso, no primeiro sentido: faltam-lhe a cen-tralidade de um conjunto de dogmas, a autoridade de uma hierarquia, o arcabouçolitúrgico dos rituais. A dimensão da espiritualidade, por outro lado, é uma cons-tante nas práticas do circuito neo-esô, desde uma versão mais soft, de enlevamen-to proporcionado pela contemplação da natureza, por exemplo, até genuínasexperiências de ordem mística. A religiosidade, porque supõe uma manifestaçãocoletiva, exteriorizada, pode apresentar desde formas mais codificadas até a in-venção, na hora, de gestos compartilhadas por um grupo — como acontece nascelebrações da lua cheia, encerramento de encontros etc.

Dos bazares aos workshops, passando pelos rituais cíclicos, há uma grada-ção com relação aos efeitos que as atividades do terceiro grupo produzem, emtermos de sociabilidade e vivências comuns. Bazares e feirinhas “místicas”, comseu típico ambiente de festa e “agito”, congregando às vezes um grande númerode pessoas, produzem ambiente animado, mas a permanência dos freqüentadoresé fluida e cambiante: os laços criados são ainda efêmeros. Nos rituais cíclicos, oambiente é de recolhimento, os convidados são em pequeno número e as celebra-ções são de curta duração. Os workshops, em função das condições de sua reali-zação — em geral fora da cidade, em ambiente com os participantes em constanteinteração —, criam laços de maior intensidade. Todos, no entanto, de uma formaou de outra, concorrem para a “sensação de comunidade”, experiência de funda-mental importância para se entenderem os efeitos que as práticas integrantes douniverso neo-esô produzem no plano do comportamento e da constituição de umestilo de vida no contexto, dinâmica e paisagem de uma metrópole.

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Notas

1. No decorrer da pesquisa (até 1998 inclusive) foram realizadas mais de oitenta idas acampo para observação dessas práticas, 66 das quais foram objeto de registro e descriçãomais detalhados. Algumas das idas a campo e correspondentes relatos foram realizadospor membros do NAU. Quando for o caso, haverá menção expressa da autoria.

2. Não se pode deixar de assinalar, independentemente do circuito dos espaços, o conheci-do e significativo movimento editorial (livros, revistas, CDs) cuja especificidade exigiriaum tratamento à parte. Da mesma forma cabe apenas assinalar, já que não foram objeto dopresente estudo, programas de rádio e televisão dedicados a temas neo-esôs.

3. Foi fundada em 1972 pelo conhecido escritor Ignácio de Loyola Brandão, por enco-menda de Luis Carta, da Editora Três, nos moldes da congênere francesa Planète, deLouis Pauwels e Jacques Bergier, estes últimos também autores do famoso “Le matin desmagiciens: introduction au réalisme fantastique”, de 1960, lançado no Brasil com o títuloO despertar dos mágicos (1975). Cf. Revista Planeta, ed. 300, ano 25, n. 9, setembro de1997.

4. A edição nº 305, de fevereiro de 1998, anunciava 131 eventos, oferecidos por 28espaços e instituições, para o período de 15 de fevereiro a 15 de março de 1998.

5. O evento foi realizado por “Imaginária Produções Culturais” (da jornalista MirnaGrzich, conhecida pelo programa “Música da Nova Era”, que dirigiu durante dez anos naRádio Eldorado FM (92,9 MHz) e pelo Sesc-Pompéia, com patrocínio do Banco Real eNutrimental; promoção da Revista Isto É, Rede Bandeirantes de Televisão, Rádio Eldora-do, Sistema NET de tevê a cabo; apoio de Yázigi International, Parthenon Flat, CâmaraAmericana de Comércio, Pico Cinematográfica e Ministério da Cultura — lei federal deincentivo à cultura; colaboração da Associação Palas Athena, Centro de Comunicações deArtes do Senac, Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável e Instituto deEstudos do Futuro.

6. Entram nesse rol, por exemplo, tanto a chamada “Hipótese Gaia” e a “Teoria do Caos”como a mecânica quântica, a biologia molecular etc. Ver, mais adiante, item 3 do capítu-lo 3.

7. No II Congresso Holístico Internacional, realizado em Belo Horizonte (1991), a lista deconvidados incluía, entre outros: José Angelo Gaiarsa, Rose Maria Muraro, Ailton Kre-nak, Cristovam Buarque, Ubiratan D’Ambrósio, Celina Albano, Carlos Byington, MirnaGrzich, alguns dos quais constituem presença constante nesses eventos.

8. Sistema hipotético que procura explicar o equilíbrio do planeta. Desenvolvida porJames Lovelock e Lyn Margulis, postula que a Terra, em vez de constituir espaço ou

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ambiente para o desenvolvimento de formas de vida, é ela própria um supra organismoauto regulado — dotado de consciência, em algumas versões — que mantém as condiçõesnecessárias para a existência e manutenção das diferentes espécies. (Thompson, 1990).

9. Todos os títulos, especialidades e atribuições dos nomes citados constam dos folhetos eprogramas dos respectivos eventos.

10. O que tampouco quer dizer que não haja atitudes oportunistas, levianas e de má-fé pordetrás de muitas propostas diluídas no eclético e cambiante universo neo-esô. O que estáem pauta aqui não é separar o joio do trigo, identificando as propostas “sérias”, e simcaptar lógicas e tendências mais gerais, como já foi ressalvado na “Apresentação” destelivro. Não é preciso mencionar a desconfiança e o ceticismo com que práticas do movi-mento neo-esô são vistas por parte do establishment acadêmico: a questão da “cientifici-dade” de muitas formulações correntes no meio neo-esô abre uma discussão à parte. Ofísico norte-americano Alan Sokal, autor do polêmico Impostures Intellectuelles (1997),em que denuncia o emprego abusivo e errôneo de conceitos das ciências exatas por partede alguns renomados autores da área de ciências humanas (filosofia, lingüística, teorialiterária) como Jacques Lacan, Julia Kristeva, Bruno Latour, Gilles Deleuze, entre outros,considera o não menos conhecido Fritjof Capra (autor de O Tao da Física [1995], O pontode mutação [1995 b], A teia da vida [1997] — referências obrigatórias nos círculosneo-esôs) um físico sério, principalmente nos primeiros trabalhos, mas não deixa decriticar o contexto em que esse autor manipula, nesses livros, as formulações da mecânicaquântica, por exemplo. (Comunicação pessoal do autor, quando de sua participação, junta-mente com Jean Bricmont, no evento “Visões de Ciência”, Instituto de Estudos Avançadose FFLCH/USP, 27 e 28 de abril de 1998, São Paulo.) Marcelo Gleiser, autor de A dançado Universo — dos mitos de criação ao Big Bang (1998) e Retalhos cósmicos (1999),reconhece a complementaridade entre a ciência e determinadas tradições filosóficas orien-tais e relata que sua decisão de dedicar-se à física foi em parte determinada pela leitura deCapra (revista Planeta, fevereiro de 1998).

11. Russo (1993:112) usa o termo “complexo alternativo” para se referir a um dos camposno qual situa as terapias corporais que analisa em seu trabalho.

12. Há pesquisas específicas sobre o tema. Russo (op.cit.), por exemplo, propõe umadivisão em quatro grupos das práticas que constituem ao que chama de “complexo alter-nativo”: a) “Práticas divinatórias ou esotéricas”; b) “Práticas orientais”; c) “Seitas maisexplicitamente religiosas”; d) “Práticas curativas paralelas à medicina oficial”. Entretanto,ela própria conclui que “se trata sem dúvida de uma classificação bastante precária” eaduz o motivo para isso: a dificuldade em encontrar critérios para operar a classificação(:113). Entidades do meio também têm suas próprias classificações: o “Conselho Federalde Terapia Holística”, por exemplo, lista as seguintes modalidades: arteterapeuta, cromo-terapeuta, fitoterapeuta, iridólogo, naturoterapeuta, psicoterapeuta holístico, reflexotera-peuta, terapeuta em sincronicidade, terapeuta corporal, terapeuta em estética, terapeuta

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floral, terapeuta em técnicas tradicionais, yogaterapeuta, instrutor em terapia holística. OSINTE (Sindicato dos Terapeutas), no artigo 4º de seu estatuto, enumera em torno de 97especialidades, algumas sobrepostas a outras (Cf. http://www.sintecfth.com.br). Os profis-sionais que podem se filiar ao SINATEN (Sindicato Nacional dos Terapeutas Naturistas)são, conforme sua classificação: “acupunturistas, massoterapeutas, terapeutas florais, fito-terapeutas, terapeutas com recursos autóctones (hidroterapeutas, geoterapeutas, técnicasrespiratórias, trofoterapeutas)”. Cf. O Terapeuta, ano 1, nº 0, outubro de 1997.

13. “Para desenvolvermos uma abordagem holística da saúde que seja compatível com anova física e com a concepção sistêmica dos organismos vivos, não precisamos abrirnovos caminhos, mas podemos aprender com os modelos médicos existentes em outrasculturas. O moderno pensamento científico, em física, biologia e psicologia, está condu-zindo a uma visão da realidade que se aproxima muito da visão dos místicos e de numero-sas culturas tradicionais, em que o conhecimento da mente e do corpo humano e a práticade métodos de cura são partes integrantes da filosofia natural e da disciplina espiritual. Aabordagem holística da saúde e dos métodos de cura estará, portanto, em harmonia commuitas concepções tradicionais, assim como sera compatível com as modernas teoriascientíficas”(Capra, 1995b:299).

14. Russo distingue “práticas corporais” — que não incluiriam a concepção de tratamentoou cura — das “terapias corporais”, dando como exemplo das primeiras a biodança,corpo-análise, eutonia, antiginástica, tai-chi-chuan, kempô (: 116).

15. Cabe lembrar que entre os exemplos citados para ilustrar a classificação não estãoincluídos os incontáveis casos de técnicas inventadas a partir da junção de elementos desistemas diferentes e da imaginação do terapeuta.

16. Além de um centro de pesquisas farmacêuticas, uma fazenda de agricultura biodinâmi-ca, consultoria empresarial, vários centros assistenciais, uma editora, estabelecimentos deensino, entre outros.

17. É justamente a referência a um sistema filosófico-religioso que termina constituindo oaval para a confiabilidade do produto ou prática, como observa Cândida Meirelles, astró-loga e fitoterapeuta, presidente da Associação dos Amigos do Parque Água Branca (situa-do no bairro da Barra Funda, São Paulo), e que mantinha até há pouco uma banca comervas na Feira de Produtos Orgânicos desse parque. Cândida chamou a atenção para o fatode que o aumento da procura por tais produtos acaba inviabilizando economicamente aoferta de ervas realmente cultivadas e manipuladas de acordo com as normas da naturopa-tia. Para atender a esse mercado, muitos fitoterapeutas recorrem a atravessadores paraadquirir matéria-prima e já não têm controle sobre a qualidade do produto que manipu-lam. Assim, conclui Cândida, quando não se conhece pessoalmente o fornecedor, a únicagarantia que se tem de estar consumindo um produto de qualidade é saber que provém dealguma instituição filosófico-religiosa como a antroposofia, por exemplo. Em suma, ou

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conhecimento e inserção na rede, por meio de contatos pessoais, ou a chancela de algumsistema do Grupo I para fazer frente às regras de um mercado em expansão.

18. Padrão “erudito”, como será explicitado mais adiante, não é sinônimo de “científico”;significa que é coerente com relação a determinado sistema e se pauta em procedimentosditados e referendados por ele. No meio neo-esô, por exemplo, têm muito prestígio aspráticas da medicina chinesa, com base em pressupostos da filosofia taoísta — o que nãoimplica que sejam reconhecidas como “científicas” para os padrões da medicina ocidental.

19. “Veganismo” é uma modalidade mais estrita do vegetarianismo que proscreve não sóqualquer alimento ou produto de origem animal como também aqueles em cujo processode produção tenha havido utilização de testes com animais.

20. Ver, a propósito, Magnani (1994b) e Guerriero (1998).

21. Diferentes estilos de expressão do sentimento religioso podem coexistir no interior deuma mesma religião, como é o caso do catolicismo rústico ou da renovação carismática,na Igreja Católica. Cf. Carvalho (1994), para outra categorização de estilos de espirituali-dade.

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3As regularidades

Se as práticas do circuito neo-esô não constituem propriamente um movi-mento com unidade interna, tampouco se apresentam sob a forma de uma suces-são de elementos sem nexo, produto de iniciativas erráticas e atomizadas. Aocontrário: desenvolvidas em termos profissionais e realizadas de maneira regular,tais atividades exibem modos de implantação plenamente identificáveis na paisa-gem da cidade, configurando uma rede articulada de espaços que oferecem umaampla gama de serviços e produtos.

Postulada essa regularidade, em contraposição a uma idéia corrente para aqual o universo do neo-esoterismo não passa de um mero agregado de crenças epráticas das mais variadas e díspares origens — um imenso e desencontradomosaico, desprovido de sentido —, a pesquisa buscou verificar a existência depadrões em diferentes planos: na periodicidade de seu calendário, na localizaçãodos espaços, na lógica de uma narrativa de base que preside a formação de seusinúmeros sistemas de significado e, finalmente, em códigos que definem padrõesde consumo e comportamento permitindo identificar diferentes tipos de usuários.

1. No tempo: o calendário

A primeira forma de regularidade que é possível verificar na oferta daspráticas presentes no meio neo-esô é sua freqüência: algumas vivências e celebra-

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ções, assim como a programação de cursos e palestras, distribuem-se de forma re-gular durante o ano, constituindo uma espécie de “calendário neo-esotérico”. Talfato mostra que essas práticas já estão incorporadas na dinâmica da metrópole demaneira recorrente, pois, independentemente da rotina de cada instituição, exis-tem festas, comemorações e rituais que se impõem, repetindo-se de modo cíclico.

Não se trata, evidentemente, de alguma marcação do tempo hermética eexclusiva de supostos seguidores de seitas esotéricas, no sentido mais técnico dotermo. Na realidade, é uma pontuação pública, sobreposta ou alternativa a outroscalendários e que recupera outros sistemas de classificação para estabelecer cor-tes significativos no fluxo da vida cotidiana. Mudanças no ciclo da natureza, nemsempre perceptíveis no ambiente de grandes centros urbanos, como as fases luna-res e o ciclo das estações, são especialmente enfatizadas.

A pesquisa pôde determinar eventos de freqüência anual, outros que aconte-cem a cada semestre, a cada mês, durante os fins de semana e feriados prolonga-dos, durante a semana e até mesmo ao longo de um dia. Esse calendário de certaforma funciona como estrutura de base, induzindo atitudes e comportamentos:nos inúmeros ritos que comemoram a passagem da primavera, por exemplo, comprofusão de flores, frutas, roupas claras e coloridas e música apropriada, as pesso-as comportam-se alegre e expansivamente; já na comemoração do solstício deinverno, o clima é outro, de introspecção, em consonância com o ritmo da nature-za, que mergulha no longo período de recolhimento:

“Na verdade estamos ainda no final do ciclo do inverno, que representa um mergu-lho para dentro. É a inspiração, ao contrário da primavera, que é expiração”, explicaValmira Simão, do Espaço Kiokawa Cultural.

O calendário neo-esô levantado pela pesquisa acopla-se a datas já previstas ecomemoradas nos calendários religioso e/ou civil oficiais, dando-lhes, é claro,outros significados. Veja-se por exemplo o tipo de sugestões de presentes de Natalanunciados pelo espaço Triom — Centro de Estudos Marina e Martin Harvey:

“Para você presentear neste Natal, a Livraria Triom, além de uma grande variedadede títulos nacionais e estrangeiros, faz estas sugestões especiais: agendas InnerReflections e livros vindos diretamente do Self-Realization Fellowship com os ensi-namentos de Yogananda, Cartas dos Anjos e calendários Trees for Life vindos dacomunidade de Findhorn, sinos Mensageiros da Paz em vários tamanhos, velas decera de abelha, medalhas artesanais em prata e o recém-lançado Jogo da Transfor-mação em português. Desejamos a todos um Feliz Natal e, para aqueles que vieremescolher seus presentes na TRIOM, teremos uma mensagem individual de alegria,amor e otimismo para 1995.”

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“Neste Natal, dê um presente criativo! Você só precisa nos passar os dados denascimento da pessoa e ela receberá: um mapa astrológico indiano; uma fita gravadacom a interpretação; recomendação de pedras específicas para a pessoa.” (InstitutoRatna de Cultura Indiana).

O Espaço Alquimia Interior programava eventos específicos para jovens(“Uma Aventura Alquímica”) e crianças (“Brincando de Alquimia”) como prepa-ração para o Natal; para o Ano-novo propõe um “Ritual de Renovação”, espéciede retiro no campo. “Renascer — Espaço de Reeducação Holística” propunha um“Réveillon da Nova Era”, para o dia 31/12. A agência de viagens Novo Tempo,por sua vez, anunciava:

“Réveillon da Magia! Rotas místicas e energéticas — Machu Picchu, a cidadesagrada dos Incas. Cerimônia de Ano Novo em “Intiwatana” com a energização doscristais. Viva essa experiência fascinante, de introspecção, com tempo exclusivodedicado ao seu Eu Interior em paz profunda no primeiro dia do ano de 1998.Invocando a liberdade do Ser, do Espírito, da mente, do corpo e os pensamentos.Deixar fluir toda a energia e a força cósmica da natureza envolto à todo o seu ser(sic) — Eu Interior e vibrar energias puras para 98 com vibrações positivas, medita-ção, visualização, prosperidade e abundância para você e para toda a Humanidade.”

Mas não é apenas o Ano-novo comercial que é comemorado; assim, naprogramação do primeiro semestre de 1994 do “Espaço Aruna — Yoga e Cultu-ra”, estava prevista, para os dias 18, 19 e 20 de março, em um sítio a sessentaminutos de São Paulo, uma “Maratona de Meditação de Ritual de Ano Novo”:

“A meditação é uma poderosa fonte de inspiração e criatividade para a nossa vida.Junto à natureza, você vai participar de exercícios de concentração, visualização,meditação com sons, com ideagramas cósmicos, confecção de mandalas pessoais,relax, programação de sonhos, além dos momentos de lazer. Vamos aproveitar aentrada do ano novo astrológico para realizarmos um ritual de renascimento interior.”

No ano seguinte, Aruna anunciava, para o dia 22 de março de 1995 às 20horas:

“Junto com a entrada do Outono, vamos celebrar o Ano-novo Astrológico. Um ritualalegre onde você vai conhecer as previsões para o próximo ano, assimilar os ensina-mentos do último ciclo e se reprogramar para o próximo. Traga flores e frutos.(Grátis).”

Mardoqueu Lopes, então um dos responsáveis pelo espaço, assim explicou adinâmica desses rituais:

(...) “esse ritual não foi inventado. É um ritual que faz parte do yoga. Pra gente,recebe o nome de Sat Chakra, e que pode ser feito para qualquer coisa: para

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comemorar um casamento, um batizado, uma data importante. Esse ritual, ele eraassim uma vez por ano, que é no final do ano. Um ritual de confraternização definal de ano. Aí a gente começou a fazer mais rituais, porque as pessoas começa-ram a pedir mais. Então, pensamos ‘por que a gente não faz nas mudanças deestação?’ Porque todo mundo se junta, tem toda uma vibração. Aí a gente começoua fazer mais, a cada estação. Só que também não tem uma obrigatoriedade. Àsvezes a gente resolve. ‘Vamos fazer no inverno.’ Inverno e primavera a gentesempre faz. Outono, esse ano, por exemplo, a gente não fez. Então, é assim.Inverno, primavera e verão, a gente faz. Outono a gente vê se faz ou não.” (trechode entrevista, julho de 1994)

Valmira Simão, do Espaço Kiokawa Cultural, salientava os aspectos comunsdesses rituais, o que confirma a existência de um padrão que se repete e se impõe:

— Na verdade, você que inventou seu ritual?— É.— Ele seguiria uma linha oriental, mas tem uma base...— É. Tem que ter as flores assim, essas frutas, esses mantras, esse suco e aí a gentepõe a luz assim.— É o seu jeito...— E depois veio uma aluna minha falar: ‘Você sabe que eu participei de um ritualde primavera? Era uma celebração’. Eu perguntei como foi. Ela disse que tinhafrutas, flores e que no fim as pessoas escreveram textos...— E onde é que foi feito isso?— Foi o pessoal do Alemdalenda.— Foi exatamente o que você fez?— Foi exatamente como o que eu fiz. Isso, por um lado eu fico contente. Por outro...(trecho de entrevista, 21 out. 1993)

A cerimônia de Natal do Espaço Imagick combina, no que chama de “ritualcrístico”, tradições bíblicas relativas ao nascimento de Jesus com evocações deviagens espaciais e personagens mitológicos que remetem ao universo medievalcentro e norte-europeu; realiza-se não na data convencional, mas na segundasemana do mês de dezembro.

Outras datas classificadas como anuais pela pesquisa, por exemplo as cele-brações por ocasião do Dia das Mães, também são revestidas de novos significa-dos. Assim, a Associação Hastinapura programou, para um dia 13 de maio, umapalestra com o título “Mãe Cósmica: o lado feminino de Deus: os atributos daDivindade, representada em forma de Mãe, foram cultuados por todas as culturasantigas. Conheceremos um pouco mais das deusas da Índia, Egito, etc. e do princípiofeminino no Universo”. “DéjàVu — Espaço Esotérico” prometia uma supresa para oDia dos Pais:

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“De 26 a 31 de julho venha ao DéjàVu. Nós estamos preparando uma promoçãosurpresa para o dia dos pais. Não perca porque, igual a esta, só no ano que vem!Anote na sua agenda! Não esqueça!”

Para o mês de junho, quando se celebra o Dia dos Namorados, a LivrariaSpiro e Triom — Centro de Estudos Marina e Martin Harvey anunciavam:

“Mesa-redonda sobre o encontro — masculino/feminino — a busca da unidade, dacompreensão, do amor e da sensualidade (...). Sugestões de presentes para o Dia dosNamorados: bijuterias delicadíssimas; caleidoscópios mágicos; kit de ervas; jogosde papéis de cartas” (Livraria Spiro); “Promoção para os namorados: em junho, osCDs e objetos para presente estarão com desconto de 5 a 15%” (Triom).

Já o xamã urbano Léo Artese, por intermédio da “Novo Tempo Operadorade Turismo e Eventos Ltda.”, anunciava uma nova forma de passar o Halloween:propunha um “encontro marcado com as bruxas” no Spa Holístico Embaúba(Santa Isabel, SP), no dia 20 de outubro. Essa data, bastante popular nos EstadosUnidos, até recentemente não tinha muita divulgação no Brasil, com exceção dealgumas festinhas restritas a alunos de escolas de inglês. Sua apropriação, nosespaços do circuito neo-esotérico, deu-se por duas conotações: uma, a partir daprópria figura da bruxa, valorizada enquanto detentora de um poder tipicamentefeminino; e outra, no interior de um discurso (e práticas corrrespondentes) quereinventa certa concepção de xamanismo. Esta última é a que está presente naproposta citada, como se pode perceber no texto que a acompanha:

“Um evento de caráter folclórico-cultural, que irá transpor para os dias de hoje overdadeiro espírito das festas sagradas da tradição céltica. Todos os detalhes conspi-ram para fazer desta festa um evento enriquecedor e inesquecível. As comidas,bebidas, música, dança, o cenário ao ar livre, junto à natureza, para reconstruir omais fielmente a festa do ‘shaman’. Todos os convidados participam ativamente doevento, vestidos de forma e com as cores corretas, tomando parte das danças sagra-das e rituais que irão acontecer.”

É nítida a intenção de diferenciar-se de uma mera festa “de curtição”, ressal-tando os aspectos “sagrados” do evento, sua ligação com as origens “célticas”. Jáo espaço “Alemdalenda dos Jardins” enfatizava a primeira conotação, calcada nofeminino, ao promover, na semana do Halloween (25/28 de outubro), uma sériede eventos com palestras, entre as quais:

“O caminho de Morgana: a religião feminina e a teologia da Mãe Terra; a bruxaria,o neopaganismo e o culto da Deusa no mundo atual; lançamento do livro de MárciaFrazão, Revelações de uma bruxa; poemas e contos da tradição celta, cantos celtas ecantigas mágicas das bruxas.”

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Uma citação no folheto junta as duas idéias, poder feminino e “religiãoprimitiva”:

“A bruxa é uma pessoa que acredita na religião primitiva atualmente chamada Wicca.Ela é uma religião do mundo natural e da fertilidade.” (Robin Skelton, poeta e bruxo)

“Paz Géia — Instituto de Pesquisas Xamânicas” comemora a festa da pa-droeira do Brasil:

“Dia 12/10 às 20h30, Celebração da Madona Negra (Nossa Senhora Aparecida). APaz Géia conclama todos os xamãs a uma meditação particular, em seus lares, às20h30, por Luz e Paz para o Brasil.”1

Com relação às comemorações classificadas pela pesquisa como mensais, asmais difundidas são os diversos rituais da lua cheia: Paz Géia, Centro de DharmaShi-De-Choe Tsog, Instituto Nyingma do Brasil, Triom, entre outros, promovema celebração:

“Nas noites de Lua Cheia, todos os meses, o Instituto Nyingma do Brasil realizauma cerimônia de canto de mantra, das 20h00 às 21h30. Atividade aberta ao públi-co. Sugerimos que se ofereçam frutas, flores, velas ou incenso.”

“Meditação da Lua Cheia: Reunião pela harmonia, paz e amor entre os homens. Asreuniões de 1995 já tem datas e horários marcados. Consulte-nos e chegue com 15minutos antes do horário, por favor.” (Triom — Centro de Estudos Marina e MartinHarvey)

As celebrações de ocorrência cíclica — anuais e mensais — compreendemprincipalmente as do tipo “vivências”. Não há rituais de fim de semana (no domingoou sábado), obrigatórios e/ou regulares, como acontece na maioria dos cultos religio-sos da tradição judaico-cristã. As atividades de divulgação e formação e as terapêuti-cas seguem outro tipo de periodicidade, a do calendário escolar e a do tratamento desaúde: distribuem-se durante a semana, com ênfase na parte da noite, e nos finais desemana e feriados. No entanto, acompanhando de perto o ritmo das atividades urba-nas, alguns espaços não descuram até mesmo as subdivisões do dia:

“Novidade! Meio-dia esotérico: Palestras de 45 minutos para você aproveitar suahora de almoço! Para participar, não é preciso fazer reserva: as vagas são dasprimeiras pessoas que chegarem. Sempre às 12h15. Veja os temas das palestras,assinalados com *.” (DéjàVu — Espaço Esotérico, rua Peixoto Gomide, 449, Cer-queira César)

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Quadro sinóptico do calendário das práticas neo-esotéricas

Periodicidade Tipo Exemplos

Anual

1) Comemorações que se acoplam acertas datas do calendário religiosocatólico e civil: Natal, Ano-Novo, Diada Padroeira do Brasil etc., dando -lhesoutras conotações.2) Comemorações novas: solstício deverão e inverno; equinócio de prima-vera e outono;3) Ressignificação de datas comerciaiscomo Dia dos Pais, das Crianças e di-vulgação de outras como Halloween.

“Neste Natal, dê um presente criativo! Vocêsó precisa nos passar os dados denascimento da pessoa e ela receberá: ummapa astrológico indiano; uma fita gravadacom a interpretação; recomendação depedras específicas para a pessoa.” (Ins-tituto Ratna de Cultura Indiana)“Dia 12/10 às 20h30, Celebração da Ma-dona Negra (Nossa Senhora Aparecida). APaz Géia conclama todos os xamãs a umameditação particular, em seus lares, às20h30, por Luz e Paz para o Brasil.” (PazGéia)“Junto com a entrada do Outono, vamoscelebrar o Ano Novo Astrológico. Umritual alegre onde você vai conhecer asprevisões para o próximo ano, assimilar osensinamentos do último ciclo e se reprogra-mar para o próximo. Traga flores e frutos.Grátis.” (Espaço Aruna-Yoga)

SemestralFérias de julho e fim de ano: excursõeseco-esotéricas.

“Novo Tempo — Turismo Ecológico eAventuras apresenta: Rotas Místicas(Roteiros do Autoconhecimento): MachuPicchu — Os Mistérios do Império do Sol;Bolívia, Cultura e Misticismo nos Andes;São Thomé das Letras, cidade mística daspedras — vivências/ meditação/ energi-zação.”

Mensal Cerimônias relativas às fases da lua,principalmente à da lua cheia.

— “Nas noites de Lua Cheia, todos osmeses, o Instituto Nyingma do Brasilrealiza uma cerimônia de canto de mantra,das 20h00 às 21h30. Atividade aberta aopúblico. Sugerimos que se ofereçam frutas,flores, velas ou incenso.”— “Ritual da Lua Crescente: vamos nosencontrar, comemorar mensalmente brin-cando, dançando no nosso ritual da luacrescente. Volta ao culto da grande mãe.Dias 20/10-23/11-21/12.” (Espaço Mo-mento de Paz)

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Periodicidade Tipo Exemplos

Feriados/finsde semanaprolongados

Workshops, re ti ros , treinamentosintensivos, vivências.

“Um fim de semana inesquecível ondevocê vai participar do ritual das luzes emhomenagem à Lakshmi, a deusa daprosperidade na mitologia hindu. O Diwalicelebra também o Ano-Novo indiano. Naprogramação, práticas de Yoga e medi-tação, dança indiana, caminhadas pelamata, brincadeiras, além de aproveitartodas as opções de lazer que o hoteloferece: piscina, sauna, jet-sky, caiaque,lancha, cavalos, etc. (2 parcelas de R$65,00 incluindo transporte, hospedagem erefeições)”. (Da programação distribuídapor Aruna-Yoga, out./nov./dez. 94)

Semanal

1) dias úteis: programação regular doscursos e sessões de terapia2) fins de semana: palestras, demons-trações de técnicas, aulas abertas grátis,shows, concertos.

“Os chakras e os corpos sutis” — 27 deagosto a 15 de outubro, terças-feiras, das20 às 21:30 horas.” (Atria — Espaço multi-disciplinar)“Palestras gratuitas — Sextas-feiras às20:30 — 22/11: Medicina Oriental (His-tória e Ciência) — Cuidar de si; CiênciaMental.” (Espaço Ch’i)

Cotidiano

Práticas no âmbito privado: medita-ções, exercícios, leituras, rituais pri-vados e também nos espaços do circuitoneo-esotérico.

“Novidade! Meio-dia esotérico: Palestrasde 45 minutos para você aproveitar suahora de almoço! Para participar, não épreciso fazer reserva: as vagas são dasprimeiras pessoas que chegarem. Sempreàs 12h15. Veja os temas das palestras,assinalados com *.” (DéjàVu — EspaçoEsotérico)

Eventos Congressos, encontros, jornadas.

“Simpósio ‘Saúde integral no limiar da erada alta Tecnologia’— 10/11/12 de maio de1995. Centro de Convenções Anhembi.“Imaginária 95: Arte, Ciência, Economia eEspírito numa visão de futuro” — 6 a 12 denovembro, SESC Pompéia

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2. No espaço: circuitos e trajetos

A evidência inicial de regularidades no meio neo-esô foi a forma particularde distribuição dos seus espaços na cidade, constatada a partir do levantamentopreliminar já descrito. Como foi mostrado no capítulo 1, os endereços aglutinam-se em determinadas regiões, fornecendo a pista para uma primeira correlação,aquela entre o universo neo-esô e a classe social de seus praticantes. As atividadesdesse universo, diferentemente de outras práticas mágico-religiosas, não estãoassociadas com camadas populares, de baixa renda e escassa escolaridade. Aocontrário: utilizando-se da mídia como meio de divulgação e oferecidas em esta-belecimentos implantados preponderantemente em bairros de classe média e mé-dia alta, não deixam dúvidas quanto ao meio socioeconômico de seupúblico-alvo.

Apesar de concentrada em quatros bairros de classe média, a distribuiçãodos espaços não conformava uma mancha contígua na cidade. Em busca de algumoutro padrão uniforme de implantação, optou-se por concentrar a atenção num sóbairro, naquele que se sobressaiu como o top das práticas correntes no circuitoneo-esô, com a marca de 103 espaços: trata-se da Vila Mariana, bairro misto comáreas de intensa ocupação comercial e de serviços e também residencial, comsignificativa presença, na paisagem, da edificação tipo sobrado, de casas térreas evilas.

A pesquisa, inicialmente, havia seguido a divisão por distritos, conformecritério adotado pela Secretaria Municipal do Planejamento da Prefeitura do Mu-nicípio de São Paulo; nesse caso, Vila Mariana, como distrito, abrangia os bairrosAclimação, Paraíso, Praça da Árvore e Vila Mariana propriamente dita. Umaatualização posterior listou 127 endereços para o distrito, confirmando os quepermaneceram e incorporando os novos. Agora, porém, ao focar de maneira maisrestritiva o bairro da Vila Mariana, deixou-se de lado a divisão oficial, optando-sepor aquela que é realmente utilizada como referência pela população em seususos e deslocamentos.

A estratégia de reconhecimento e identificação dos endereços foi, também,modificada: em vez de anúncios na mídia, decidiu-se pela caminhada, procurandoidentificar in situ os espaços ligados ao universo neo-esô.2 Numa primeira etapa otrecho percorrido — basicamente o núcleo do bairro — tomou como referência aprincipal via, no alto do espigão, estendendo-se por um quadrilátero compreendi-do entre as estações do metrô Vila Mariana e Ana Rosa, o Cemitério da VilaMariana e o Instituto Biológico.

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O eixo central, constituído pela rua Domingos de Morais, é cortado poralgumas vias com ocupação mais densa por espaços neo-esôs: ruas Carlos Petit,Joaquim Távora, Conselheiro Rodrigues Alves e a própria Domingos de Morais.No interior dessa malha foram percorridas, entre outras, as seguintes ruas: FrançaPinto, Tomás Alves, Morgado de Mateus, Arthur de Godoy, Dr. Fabrício Vampré,Gandavo, Gregório Serrão. O resultado, tendo em vista apenas o núcleo do bairro,foi de 82 endereços.

Alguns espaços, sobretudo os surgidos apenas em função do boom pelo qualpassou esse ramo de atividades, apresentam alta rotatividade: muitos instalam-seem endereços anteriormente ocupados por atividades similares, aproveitando-senão apenas de um espaço já devidamente reformado segundo um programa arqui-tetônico característico, mas também da clientela já formada.

Entretanto, alguns estabelecimentos mais tradicionais terminam constituin-do pólos aglutinadores em torno dos quais vão-se estabelecendo outros, de menortradição, ainda pouco conhecidos e de recente implantação. É o caso, por exem-plo, do Instituto Brasileiro de Estudos Homeopáticos, que desdobra suas funçõesem duas casas, uma na rua Ignácia Uchoa nº 4, onde funcionam o ambulatório, oconsultório homeopático e a biblioteca; e outra na rua Bartolomeu de Gusmão n.º86, a sede principal, onde são oferecidos cursos de “pós-graduação” em homeo-patia, acupuntura, psicossomática, psicologia junguiana, fitoterapia, iridologia,terapia floral e programação neurolingüística.

Os espaços mais conhecidos e localizados no núcleo do bairro funcionamtambém como centrais de informação pois, no hall de entrada, ou à porta doestabelecimento (quando se trata de ponto de venda), existe sempre um muralonde são afixados cartões, folhetos e cartazes, anunciando os mais diversos servi-ços e eventos.

Ocorre também um significativo fenômeno que mostra o apelo da “marca”do neo-esoterismo: trata-se do aproveitamento da onda neo-esô para batizar esta-belecimentos cujas atividades nada têm a ver com essas práticas: “CabeleireiroMacktub”, “Padaria Ayel” (usando no logotipo a figura do anjo); “Farmácia deManipulação Biolife”; loja de roupas “Orion”, loja de cosméticos “Namastê”,café expresso e happy hour cultural “Alquimia do Café”, “Nova Era Plásticos eEmbalagens” etc.

Caminhar pelo bairro mostrou, ademais, outra particularidade que, já seprevia, altera o resultado do número final de espaços neo-esôs, se colhidos princi-palmente com base em anúncios, cartazes, folhetos, cartões de visita: além daque-les publicamente anunciados, qualquer que seja o meio, existem os que nãoexibem sinais claros de identificação, sendo procurados por intermédio de outrosistema de comunicação, o da indicação pessoal. Muitos desses estabelecimentos,

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sobretudo os que se dedicam a atividades terapêuticas, ainda corriam o risco dedenúncia, pois seus agentes nem sempre são devidamente credenciados; nessescasos, a discrição é fundamental.

E, finalmente, numa segunda etapa, resolveu-se ampliar o raio de caminhadae observação para todo o bairro de modo a poder identificar o comportamento decategorias já utilizadas em outros estudos para designar lógicas espaciais. Otrecho percorrido foi aquele delimitado pelo seguinte perímetro: rua Luiz Góis,av. Rubem Berta, rua Pedro Alvares Cabral, av. Brigadeiro Luiz Antonio, av.Paulista, rua do Paraíso, rua Ximbó, Cemitério da Vila Mariana, av. Lins deVasconcelos, rua Domingos de Morais, rua Santa Cruz, av. Dr. Ricardo Jafet. Esseperímetro inclui Paraíso e Vila Clementino no bairro de Vila Mariana.3

O levantamento localizou 139 espaços e, mais que o número, interessaindagar a lógica de sua distribuição. Uma delas é devida ao poder aglutinadorexercido pelo metrô e nesse sentido o comportamento das atividades tipicamenteneo-esôs não difere de outros tantos serviços que usufruem das economias exter-nas induzidas por esse meio de transporte. A área contemplada pelo levantamentoé atravessada por um segmento da Linha Azul (Norte/Sul) com quatro estações:Paraíso, Ana Rosa, Vila Mariana e Santa Cruz.

Outro pólo aglutinador é exercido pelo complexo do Hospital São Paulo.Em volta desse estabelecimento-âncora distribuem-se inúmeros serviços ligados àárea da saúde como consultórios, farmácias, laboratórios, venda de produtos ci-rúrgicos, raios X, tomografia etc., entre os quais muitos espaços do circuitoneo-esô dedicados principalmente a atividades terapêuticas. Nesse caso pode-seconsiderar que se está diante da ocupação tipo “mancha”, tal como ocorre emáreas ocupadas por outros complexos hospitalares tipo Hospital das Clínicas (av.Rebouças e av. Dr. Arnaldo), Hospital São Camilo (av. Pompéia) e outros. Não setrata de uma mancha4 neo-esô propriamente dita, mas de saúde, em geral; entre-tanto, é digno de nota que uma instituição “oficial” termine sendo um ponto dereferência para práticas não convencionais.

2.1. O circuito

A partir dos casos específicos observados nesse bairro, pode-se concluir queo padrão de implantação dos espaços e atividades neo-esôs, de forma geral, não éa “mancha”, mas o “circuito”. Essa é uma categoria surgida a partir da observaçãode outras formas de uso do espaço urbano que permite identificar um conjunto de

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estabelecimentos caracterizados pelo exercício de determinada prática ou ofertade algum serviço, porém não contíguos na paisagem urbana, sendo reconhecidos,contudo, em sua totalidade, pelos usuários habituais.

Cabe aqui uma retomada da “família” de categorias a que pertence (a listacompleta inclui pedaço, mancha, pórtico, circuito, trajeto) para analisar as rela-ções — paralelismos e diferenças — entre elas.

Assim, pedaço e mancha têm em comum uma referência espacial bemdelimitada: a relação do primeiro com o espaço, entretanto, é mais transitória,pois o pedaço pode mudar-se de um ponto para outro sem se dissolver, já que seuoutro componente constituitivo é o simbólico, que lhe permite a criação de laçosem razão do manejo de determinado código por parte dos integrantes.5 Já mancha— delineada pelos equipamentos que se complementam ou competem entre si nooferecimento de determinado serviço — apresenta uma relação mais estável como espaço e é mais visível na paisagem: é reconhecida e freqüentada por umcírculo mais amplo de usuários.

Circuito é a categoria que também designa um uso do espaço e de equipa-mentos urbanos, possibilitando, por conseguinte, o exercício da sociabilidade (en-contros, comunicação, manejo de códigos), porém de forma mais independentecom relação ao espaço, sem se ater à contigüidade, como ocorre na mancha. Temexistência observável: pode ser levantado, descrito, localizado. É um conjuntoarticulado, hierarquizado, com determinado tipo de ordem; é conhecido pelosusuários habitués.

Em princípio faz parte do circuito a totalidade dos estabelecimentos queconcorrem para a oferta de determinado bem ou serviço, mas na prática terminamsendo reconhecidos apenas os mais significativos, aqueles que dão sustentação àatividade. Assim, alguns deles funcionam como referência para todo o circuito;outros são secundários. É possível distinguir circuitos em múltiplos planos: desdeum mais abrangente, que reúne as diferentes modalidades de uma mesma prática— é o circuito principal —, até segmentos mais particularizados, congregandosetores específicos. Assim, por exemplo, pode-se delimitar o circuito dos terapeu-tas naturistas e, no seu interior, distinguir o circuito dos acupunturistas, o dosmassaterapeutas etc. — são os circuitos derivados. Em outro exemplo, no interiordo circuito formado pelas artes divinatórias, pode-se contemplar apenas o seg-mento formado pelos tarólogos, e assim por diante. Seguindo essa lógica, numplano mais geral, pode-se então falar no circuito neo-esô, reunindo espaços, ativi-dades e propostas vinculados pela prática e pelo comportamento de determinadaclasse de usuários e seus contatos.

A noção de circuito tem implicações metodológicas: oferece um princípiode classificação aplicável em diferentes níveis de abrangência, permitindo distin-

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guir tantos planos quantos sejam necessários para estabelecer um conjunto homo-gêneo e comparável. Assim, se o que está em questão é uma atividade específica— digamos, a acupuntura —, é possível situá-la no circuito específico dessamodalidade e desse modo comparar os diversos estilos, metodologias, bases filo-sóficas, técnicas e até instrumentos utilizados. Esse procedimento permite encararo problema do “caos semiológico”, sensação que se tem quando se faz referênciaa uma prática vinculada diretamente ao caldeirão do universo neo-esô: nesse caso,dificilmente se encontram parâmetros comparativos, pois eliminam-se as media-ções. Caos, aliás, que também é diagnosticado em outras situações da vida metro-politana cada vez que se isola um determinado indivíduo de sua rede, enfren-tando-o diretamente com a cidade; nessas condições é inevitável a sensação deanonimato, fragmentação, desordem. Esse é um olhar de longe e de fora; ajustan-do-se devidamente o foco da análise, contudo, é possível perceber os diferentescircuitos que o usuário reconhece e percorre, ao estabelecer seus próprios traje-tos, seja no plano profissional, do lazer, do consumo, das práticas devocionais etc.O circuito formado pelos espaços e práticas neo-esôs não foge a essa dinâmica.

Mancha e circuito, todavia, têm em comum o fato de designarem recortesobserváveis e identificáveis na paisagem urbana, reunindo conjuntos de ofertasaos freqüentadores. O que movimenta esses conjuntos, no entanto, o que transfor-ma as possibilidades em uso real, é a noção de trajeto: o usuário, ou um grupohomogêneo deles, circula, vai de um ponto ou equipamento a outro, dentro deuma mancha ou no interior de um circuito.

O trajeto é resultado de escolhas, um “sintagma” particular construído apartir das possibilidades abertas pela totalidade, o “paradigma”, e sua análisepermite identificar tipos de usuários, agrupando-os segundo os critérios das esco-lhas. Um trajeto típico, no interior do circuito mais geral neo-esô, inclui o espaçode maior freqüência (dos Grupos I ou II), que funciona como o ponto de aglutina-ção para palestras, cursos, rituais, encontros; depois, a livraria, loja ou entrepostode produtos (alimentícios e de consumo pessoal ou doméstico); em seguida, umespaço (do Grupo III) que oferece alguma prática corporal. Eis um trajeto possí-vel: o usuário que segue algum curso na Associação Palas Athena (Paraíso) podecomprar seus livros ou CDs preferidos na Livraria Spiro (Jardins), adquirir seusmedicamentos na Farmácia Homeopática Brasileira (Vila Mariana), fazer o cursode cromoterapia no Espaço Tattva (Pompéia) e realizar suas sessões de massagemna Escola A.M.OR (Vila Madalena). É nesse trânsito que se forma uma teia deencontros mais vasta, ampliando a sociabilidade estabelecida no interior de cadaespaço identificado com o universo neo-esô.

O trajeto também pode estar referido a uma especialidade, como por exem-plo as escolhas de um massagista, desde sua escola de formação, passando pelos

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pontos de venda onde se abastece dos produtos necessários ao exercício de suaprática, até os espaços em que atua como profissional. Aos trajetos aplica-se ocritério de “gramaticalidade”, pois são o resultado de escolhas que obedecem auma lógica de compatibilidades, ditada pelo sistema mais geral que o usuáriosegue: não são arbitrários.6 Por isso é que, no caso dos neo-esôs, constituem umapista valiosa para identificar gostos e estilos de vida: as pessoas que perfazem osmesmos trajetos (ou aproximados) com certeza partilham valores semelhantes.

As noções de circuito e trajeto, ao possibilitar que se desvincule uma práticaou teia de sociabilidade dos limites da contigüidade espacial, oferecem condiçõespara situá-las num contexto muito mais amplo. No caso das práticas identificadascom o meio neo-esô, permitem dar conta dos laços que se estabelecem para alématé mesmo da cidade. Não é rara uma movimentação que inclui viagens, contatos,iniciações e cursos em sítios e praias, em outros estados e até mesmo em outrospaíses. O horizonte, dessa forma, alarga-se consideravelmente, permitindo conta-to com um leque muito mais variado de experiências e estabelecendo um fluxoaberto de trocas.

2.2. Um exemplo de circuito e trajetos: terapeutas naturistas

Com o propósito de mostrar mais concretamente a aplicação das categoriasacima descritas, sobretudo a de circuito, serão apresentadas algumas atividadesterapêuticas denominadas “naturistas”, em especial a acupuntura e a massotera-pia.7 Trata-se de um exemplo; ainda que inclua espaços realmente importantes,não pretende ser exaustivo pois não se propõe a dar conta de todos os estabeleci-mentos do circuito, nem dos vários pressupostos filosóficos que servem de funda-mentação para as técnicas aplicadas e os resultados esperados. Do circuito totalserá feita referência — a partir de dados obtidos no levantamento feito na VilaMariana8 — a um segmento que se estende por outros bairros, incluindo os que aprimeira fase da pesquisa revelou como os de maior incidência de espaços neo-esôs.9

O exercício dessas práticas não constitui novidade e, na cidade de SãoPaulo, sua difusão deu-se bem antes da atual onda neo-esotérica. Sua principalfonte de inspiração e quadro de referência é a chamada medicina tradicionalchinesa que, por sua vez, repousa na filosofia taoísta.

Nesse sistema, o Tao10 representa um movimento mais geral entre doispólos — yin e yang — que, aplicados ao corpo humano, permitem mapear os

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trajetos por onde circula o Ki (ou ch’í, segundo outra forma de transcrição dosideogramas), a energia vital: em seis linhas yin, a energia sobe na direção ter-ra/céu e em seis linhas yang ela desce do céu para a terra. Cada linha é acoplada auma parceira de polaridade oposta e, em pares, são relacionadas com determinadaárea fisiológica e emocional de acordo ainda com as características de cincoelementos — fogo, terra, metal, água e madeira. Da harmonia entre as forçasenergéticas yin e yang e entre os elementos decorre o equilíbrio na saúde.

A alimentação, os estados emocionais, a prática ou não de exercícios físicos,a relação com o meio, tudo irá influenciar no bom equilíbrio energético. A culiná-ria e as plantas medicinais também estão incluídas nesse sistema; a macrobiótica,por exemplo, derivada da filosofia taoísta, que classifica as ervas e alimentos emyin e yang, recomenda como saudáveis as dietas alimentares que procuram articu-lar, em cada caso e circunstância, essas duas forças.11

Alguns pontos naquelas linhas, denominadas meridianos, são portas de co-municação entre as funções do corpo e os fluxos energéticos. Os pontos detratamento podem ser estimulados por meio de agulhas (acupuntura), pressãocom os dedos (do-in) ou calor (moxabustão), desobstruindo os canais para que oKi possa fluir livremente. O princípio dessa medicina, em todas as suas ramifica-ções, é sempre o de manter livre a corrente de energia Ki no organismo, de modoque o sistema imunológico permaneça capacitado a enfrentar os distúrbios orgâ-nicos enquanto ainda estão no início. Presente em outros contextos culturais, essesistema produziu práticas locais, como o shiatsu, no caso japonês.

Essa medicina chegou ao Brasil com imigrantes provindos do ExtremoOriente, no final do século XIX e começo do século XX e, no caso de São Paulo,permaneceu restrita às comunidades que se estabeleceram no tradicional bairro daLiberdade. A partir da década de 1950, o professor Frederico Spaeth começou aministrar cursos de acupuntura para médicos brasileiros, mas, até meados de1970, quando aumentou o interesse por essas práticas, a acupuntura e terapiasafins eram ainda consideradas charlatanismo. Em 1975 a OMS recomendou quefossem utilizadas, principalmente nos países em desenvolvimento, outras formasterapêuticas então chamadas de “alternativas” — entre as quais se inclui aacupuntura.

O contato com filosofias orientais promovido pelo movimento de contracul-tura contribuiu para a disseminação dessas e de outras técnicas, como as proveni-entes da Índia e do Nepal. Por outro lado, as terapias corporais (sobretudo as deinspiração reichiana, como a bioenergética) que começaram a difundir-se porvolta do final dos anos 70 colaboraram para uma crescente tendência de contrapo-sição à medicina alopática. O aumento da demanda incentivou a formação de ummaior número de profissionais — terapeutas corporais, acupunturistas, massagis-

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tas, naturopatas, homeopatas etc. — identificados com propostas mais “holísti-cas” de tratamento.

Consolidado o mercado, já na década de 1980, os profissionais de algumasmodalidades começaram a se mobilizar para se organizar melhor como categoria.De acordo com o dr. Wu Tou Kwang, presidente da ANAMO — AssociaçãoNacional de Acupuntura e Moxabustão —, em 1985 o Conselho Federal de Fisio-terapia e Terapia Ocupacional e, em 1986, o Conselho Federal de Biomedicinaindicavam a acupuntura como habilitação. Com relação aos massoterapeutas —cuja especialidade, segundo Armando Austregésilo (diretor do Espaço A.M.OR,sede da Associação de Massagem Oriental do Brasil), já fora reconhecida peloDecreto-lei nº 8345, de 10 de dezembro de 1947 —, só recentemente, nos anosnoventa, aliaram-se a outros profissionais em prol de uma regulamentação maisadequada ao exercício da profissão.12 O processo é sustentado por uma intensamobilização envolvendo ações nos planos federal, estadual e municipal, pressãosobre parlamentares, gestões junto ao Ministério da Saúde, criação de associaçõesmais abrangentes — sindicatos, cooperativas, conselhos — e luta contra ao quechamam de “reserva de mercado” como tentativa de limitar o exercício da acu-puntura a formados em medicina ou em outra área biomédica.13

Com relação à sua distribuição espacial, a pesquisa inicial mostrou que aspráticas médicas com base em filosofias orientais não mais se limitam ao bairroda Liberdade, tendo se disseminado por toda a cidade. Se já não há uma regiãoespecífica, na forma de mancha, congregando os profissionais que seguem essessistemas, é possível, porém, identificar e localizar algumas instituições que so-bressaem nesse universo, atuando como pólos de contato entre terapeutas, ense-jando o estabelecimento de associações, sediando encontros e congressos, cons-tituindo um circuito, enfim.

Conforme foi explicitado, essa noção não designa simplesmente a totalidadeou um conjunto de atividades: quando se fala em circuito, está-se diante de umarede na qual os estabelecimentos mantêm entre si relações ditadas por princípiosde parceria, afinidade, complementaridade e também competição; é a dinânicadessas relações que torna vivo o circuito e faz dele um ponto de referência não sópara a atividade profissional, como também para a inculcação de padrões deconsumo e comportamento, possibilitando alternativas de filiação a essa ou aque-la tendência.

Assim, a Escola de Massagem Oriental de São Paulo (EMOSP), situada noCambuci, oferece, entre outros, um curso regular de acupuntura e medicina tradi-cional chinesa e mantém relação de parceria com o Centro de Estudos de Acupun-tura e Terapias Afins (CEATA), no bairro de Pinheiros. Este último, por sua vez,sedia a Associação Nacional de Acupuntura e Moxabustão (ANAMO), que partici-

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pa ativamente na luta pela regulamentação da acupuntura. No CEATA são minis-trados cursos de massagem, como o do-in e outros ligados à medicina chinesa;esse espaço oferece atendimento profissional e venda de produtos para os profis-sionais, como livros, bastões para o “moxa”, ímãs para ativação de pontos, agu-lhas para acupuntura, mapas dos meridianos etc. Tais produtos também costumamser comprados na Bioaccus, na Liberdade, loja com tradição no ramo.

O CEATA e a EMOSP participam do Congresso Nacional de Terapias Natu-rais que acontece já há oito anos e tem sido a base para o estabelecimento dasconexões entre algumas instituições que exercem atividades na área de medicinaoriental, principalmente as escolas, pois são elas que formam os profissionais elhes fornecem uma diretriz de atuação. As Faculdades Integradas São Camilosediaram o VIII Congresso Nacional de Terapias Naturais e o II Encontro Nacio-nal de Essências Florais, ocorridos em novembro de 1997. Promovido pelo SINA-TEN (Sindicato Nacional dos Terapeutas Naturistas), esse congresso teve comoprincipais temas as drogas (tratamento e prevenção) e os distúrbios emocionais ementais.

Apoiaram e também participaram do evento: ABREFLOR — AssociaçãoBrasileira de Essências Florais; ABTK — Associação Brasileira de Tchi Kun, QiGong e Terapias Afins; ANAMO; ANTN — Associação Nacional de TerapeutasNaturistas; UNITEN — Cooperativa Nacional dos Profissionais em Terapias Natu-rais; Espaço A.M.OR.14

O SINATEN e a UNITEN funcionam na sede do Espaço A.M.OR, que tam-bém abriga a Associação de Massagem Oriental do Brasil. Assim como o CEATA,com a qual mantém vínculos, essa associação é um dos pontos de referência docircuito de massagem terapêutica, pois vem lutando desde sua fundação, em1982, pela regulamentação da profissão de massoterapeuta, além de aglutinar umarede de espaços onde atuam e lecionam profissionais também formados nessainstituição.

Sua orientação, contudo, não se restringe ao taoísmo: práticas e técnicas deoutras tradições fazem parte do currículo seguido pelas escolas vinculadas. Issose deve em parte ao contato e à troca de experiências entre seus idealizadores,Sidney Donatelli, proveniente da área artística (dança e expressão corporal), alémda bioenergética, e Armando Austregésilo, mais voltado para a massagem orientale fundador da Associação. Atualmente dirigem os dois espaços mais importantesda rede: o primeiro coordena as atividades da Escola A.M.OR na Vila Madalena eo segundo, as do Espaço A.M.OR, na Vila Mariana.15

O Espaço A.M.OR da Vila Mariana, além do curso básico de formação emmassagem e sensibilidade, com duração de dois anos, oferece outros, mais breves,sobre temas afins como shantala, moxabustão, quiropraxia etc. e mantém um

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serviço de atendimento, tanto individual como coletivo. A escola estende suaatuação por meio de estágios em instituições voltadas para a população carente,como a Casa dos Velhinhos Ondina Lobo (Alto da Boa Vista), Creche Dom JoséGaspar (Vila Morse), Casa Eliane de Gramont, dedicada ao atendimento de mu-lheres em situação de violência (Vila Mariana) e Posto de Saúde Bezerra deMenezes (Itu, SP).

A Escola A.M.OR da Vila Madalena segue, apesar de algumas diferenças, amesma orientação e formato — cursos, palestras, atendimento. Merece destaque,entretanto, a idéia de circuito, a utilização de sítios fora de São Paulo (maisprecisamente em Camanducaia, MG) para vivências e workshops e também parao cultivo de plantas medicinais e o preparo de óleos, pomadas e tinturas que serãoempregados na atividades terapêuticas.

Outra instituição que mantém parceria com a A.M.OR, o Espaço Holísti-co/UTATE (Universidade de Terapias Alternativas e Técnicas de Evolução), é maiseclética, pois, apesar de manter convênio com a Associação nos estágios, seguirseu currículo e oferecer o seu curso básico, assume mais explicitamente suavinculação com outros sistemas do universo neo-esô. Seu diretor, Otávio Leal,apresenta-se como sacerdote do Budismo Tantrayana hindu, iniciado no BudismoJaponês, mestre em Reiki e membro de várias escolas iniciáticas (Rosacruz,Eubiose, Colégio dos Magos etc.), opções que se fazem presentes na orientaçãodos cursos, palestras e formas de atendimento oferecidos.

A realidade de cada uma das instituições citadas — seu leque de atividades,linhas de orientação, dinâmica interna, assim como o panorama da movimentaçãoem torno da legalização de suas práticas — é muito mais rica e complexa do queas indicações apresentadas sugerem; o propósito, no entanto, era menos o dedescrever as características de cada uma e mais as interconexões que evidenciama existência de um circuito (ou melhor, um segmento desse circuito) na paisagemda cidade.

2.3. Os trajetos

O Espaço A.M.OR da Vila Mariana, em razão de sua localização, reúnealunos de vários pontos da Grande São Paulo, os quais, para suas compras dematerial didático, podem recorrer tanto à conhecida loja Bioaccus, da Liberdade— acessível pelo metrô —, como a pontos de venda das redondezas: há umestabelecimento de produtos medicinais chineses numa galeria situada à rua Do-

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mingos de Moraes, que é indicada pelos professores do Espaço, bem como asfarmácias Panizza da rua Vergueiro e Sensitiva, vizinha à escola, na própria ruaJoaquim Távora. Na mesma galeria está instalado o consultório de uma das pro-fessoras da A.M.OR, formada na Escola da Vila Madalena, mas que leciona noEspaço da Vila Mariana e também no Espaço Holístico, em Moema. Pode-seidentificar o trajeto dessa professora, que inclui, além das escolas onde leciona, oInstituto Liu-Pai-Lin, tradicional centro de estudos da medicina chinesa, ondepratica lian-gong e tai-chi-chuan, também na Vila Mariana, e o CEATA, ondecostuma fazer cursos de especialização; seus alunos tendem a freqüentar essemesmo trajeto, ou parte dele.

Outros exemplos de trajetos de algumas pessoas16 também vinculadas àprática da massoterapia nessa região: Regina mora no bairro do Sumaré, zonaoeste, formou-se como massagista no Espaço Holístico/UTATE, na alameda dosAicás (Moema), e nas escolas A.M.OR da Vila Madalena e da Vila Mariana.Freqüenta palestras nesses espaços e também no Via Corpore, na rua Machado deAssis (estação Ana Rosa/Vila Mariana). Faz as compras necessárias ao exercíciode sua especialidade (óleos, por exemplo) na Farmácia Homeopática H&N, narua Cristiano Viana, (Pinheiros) e na Farmácia Sensitiva, na rua Joaquim Távora(Vila Mariana); livros, compra-os na Livraria Belas Artes, na av. Paulista. É nessaregião — nas bancas da av. Paulista e rua da Consolação — que adquire incensos;seu suprimento de cereais, ervas e produtos naturais é adquirido na zona cerealis-ta do Centro. Costuma freqüentar rituais e restaurante da Associação Hare-Krisna,na av. Paulista .

Isaura mora na Vila Nova Conceição (região sul) e completou sua formaçãocomo massagista no Espaço A.M.OR (Vila Mariana). Freqüenta cursos e palestrasnos seguintes espaços: Altermed, rua Loefgreen (Vila Mariana); CEMETRAC —Centro de Medicina Tradicional Chinesa, na rua Pirapitingui (Liberdade); Associ-ação Brasileira de Reiki, na rua Machado de Assis (estação Ana Rosa — VilaMariana), Livraria Triom (Jardins) e Associação Brasileira de Lian Qong, na ruaManoel da Nóbrega (Paraíso). Compra óleos e produtos naturais na FarmáciaArtemísia, (metrô Praça da Árvore) e livros na Livraria Saraiva — Mega Store(Shopping Center Eldorado/Ibirapuera) e na Ática Shopping (atual FNAC), na ruaPedroso de Moraes (Pinheiros). Em busca de tratamento (manipulação vertebral)procura a Via Corpore, na rua Machado de Assis (estação Ana Rosa do metrô), ehomeopatia na rua Pedro de Toledo (Vila Mariana). Freqüenta o Templo Taoístana rua José Antonio Coelho (Paraíso).

Cecília mora em Moema (região sul) e completou sua formação como mas-sagista no Espaço Holístico/UTATE na alameda dos Aicás (Moema) e no EspaçoA.M.OR da Vila Mariana. Frequenta cursos e palestras nos seguintes espaços: Via

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Corpore, na rua Machado de Assis (estação Ana Rosa); Espaço Seara Bendita, narua Demóstenes (Campo Belo); Círculo Esotérico da Comunhão e Pensamento,na av. do Estado; Curso de Reiki com Úrsula Pandorf (Brooklin). Compra óleos,livros e produtos naturais na Farmácia Alternativa, na rua França Pinto (VilaMariana) e em supermercados; compra incensos no entreposto indiano da rua 25de Março. Freqüenta semanalmente rituais de centro kardecista e também o Tem-plo Taoísta, na rua José Antonio Coelho (Paraíso) e a Fraternidade Branca —Ponte para a Liberdade (Moema). Trata-se com dr. Aluizio Rosa (florais), na ruaGuarará (Vila Mariana). Atividades fora de São Paulo: Comunidade Harmonia emSão Tomé das Letras (MG).

Elena mora no Brooklin (região sul) e completou sua formação como mas-sagista no Espaço A.M.OR da Vila Mariana. Freqüenta cursos e palestras nosseguintes espaços: Via Corpore, na rua Machado de Assis (estação Ana Rosa);Chandra Surya — yoga, no Brooklin; Centro de Terapias Holísticas, na rua Prin-cesa Isabel (Brooklin), Curso de Reiki com Úrsula Pandorf (Brooklin). Compraóleos, incensos, remédios e produtos naturais na Farmácia Apoteca (Brooklin);livros, em sebo da rua Guararapes (Brooklin). Freqüenta o Templo Taoísta, na ruaJosé Antonio Coelho (Paraíso) e trata-se com florais, na rua Manoel da Nóbrega(Paraíso) e reiki, na travessa da rua Thomas Carvalhal (Paraíso).

Adriana mora em Santana (região norte) e freqüenta, para consciência cor-poral e relaxamento, a Escola A.M.OR da Vila Madalena, onde também assiste apalestras. Compra óleos e incensos em O Magista, na rua Voluntários da Pátria(Santana) e na rua 24 de maio (Centro); compra livros na Spiro Livraria, naalameda Lorena (Jardins); pedras e bijouterias na Shaula, na rua Duarte de Azeve-do (Santana) e roupas indianas na Arkashan House/Samadhy: Shopping La Plage,Guarujá (SP). Costuma freqüentar shows e eventos no SESC Pompéia e da VilaMariana.

2.4. Conclusão

Se não se pode identificar, na Vila Mariana, uma mancha de atividadesligadas à medicina chinesa, em geral, e à prática da massoterapia, em particular— uma vez que não configuram contigüidade espacial —, a presença de terapeu-tas naturistas e de escolas nesse bairro levou a procurar outros padrões de implan-tação, na forma de circuito e trajetos. Os espaços listados constituem os pontos dearticulação de um segmento de circuito que se estende para outros bairros, agluti-

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nando e servindo de ponto de referência para inúmeros outros estabelecimentos,como consultórios, salas, lojas. Como já foi assinalado, a presença do HospitalSão Paulo, que oferece atendimento em acupuntura, certamente desempenha im-portante fator de atração de atividades ligadas à saúde, entre as quais as nãoconvencionais.

Cabe notar que, no circuito descrito, não obstante as inter-relações aponta-das entre as diversas instituições que o integram, não se verifica homogeneidadenas linhas de orientação e métodos de intervenção: enquanto alguns espaços,como CEATA e EMOSP, pautam-se basicamente em princípios do taoísmo, privi-legiando a acupuntura, as escolas da rede A.M.OR incorporam também técnicas esistemas de inspiração hinduísta, com ênfase na massagem, no toque. Essa cons-tatação mostra que, apesar da diversidade de sistemas e princípios filosóficos quecoexistem no universo neo-esô — o que induz a certas conclusões sobre o “caossemiológico” que, segundo alguns autores,17 imperaria nesse meio — os contatose as trocas que se realizam ao longo de circuitos e trajetos mostram configuraçõesque permitem supor a atuação de alguns poucos modelos responsáveis pelospadrões dominantes.

A partir da análise do modelo de implantação das práticas de um segmentodo circuito neo-esô num bairro específico, pode-se concluir que se está diante deuma sólida, bem estabelecida e consolidada rede, base para as escolhas que, pelostrajetos, determinam aproximações entre os freqüentadores por meio da adoçãode certos princípios, hábitos e padrões de consumo. A noção de circuito, aplicadaàs atividades do universo neo-esô permite situá-las na confluência de outros, nadinâmica da cidade, sem constituir um gueto, excêntrico, à parte: determinadoseventos, como festivais, shows, apresentações, de maior repercussão, terminamatraindo um público mais amplo, sendo realizados em espaços não necessaria-mente identificados com esse universo, como os teatros do SESC, o Tuca, daPUC, o Centro Cultural São Paulo da Secretaria Municipal de Cultura, o Parqueda Independência, no Museu do Ipiranga, e assim por diante.

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3. No discurso: a narrativa de base

“No dia 23 de janeiro de 1997 haverá um excepcionalmente raro e arquetipicamenteoportuno alinhamento planetário, um momento no tempo expresso nos céus naforma de uma perfeita estrela de seis pontas. Esta configuração surge no dia exatoem que três planetas, Júpiter, Urano e Netuno, entram em conjunção pela primeiravez em quase duzentos anos; desde a Renascença não ocorria tão harmoniosa dispo-sição. No dia 23 de janeiro este conjunto de planetas estará centrado nos primeirosgraus de Aquário, seguidos pelo Sol, com a Lua Cheia em oposição. Assim, talvezessa configuração possa ser vista como uma simbólica representação da tão anuncia-da aurora da Era de Aquário.” (Gaia Mind Project: http://www.gaiamind.com)

Planetary Alignment January 23, 1997 — 12:35 p.m. EST New York

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3.1. A grande narrativa

Com essa mensagem divulgada na internet, Gaia Mind Project18 conclama-va para um momento coletivo e simultâneo de prece e meditação, no períodocompreendido entre as 17h30 e 17h35 (GMT) desse dia. O apelo, em tom proféti-co, estilo urbi et orbi — a referência para o momento exato do alinhamento era12:35 p.m. New York City —, exortava os participantes dessa grande corrente avisualizar uma luz branca e, assim, entrar em ressonância global à espera degrandes transformações.

A mensagem propunha uma mudança no relacionamento com o planeta: emvez de pensar que nossa espécie está se transformando num tipo de câncer para omeio ambiente — a superpopulação seria um de seus sintomas mais dramáticos— devia-se considerar o gênero humano “emergente consciência auto-reflexivada Terra viva”. O limiar de grandes mudanças — prosseguia a argumentação — ésempre considerado momento de desordem e os instantes do renascimento sãoprecedidos e vividos como situações de morte, o que pode explicar a atual fasci-nação da mídia — “o sistema nervoso fetal do planeta” — por violência, sexo emorte, os três temas relacionados com a matriz do nascimento. O ano de 1997poderia vir a ser, para os anos noventa, o que 1968 representou para os sessenta,com uma diferença, porém: enquanto estes teriam constituído uma explosão dio-nisíaca, aqueles, marcados já pela dissolução, estariam plenos para uma súbitatransformação espiritual. A perfeita mandala representada pelo alinhamento pla-netário anunciava essa possibilidade e caberia pôr em movimento um processointencional para catalisar a emergência de uma consciência planetária.

Tal interpretação de uma ocorrência astrológica considerada rara e particu-larmente significativa oferece uma mostra do alcance que alguns temas da chama-da Nova Era vêm tomando, principalmente à medida que se aproxima a virada domilênio. Os excertos seguintes, provenientes de outros contextos, oferecem umbom efeito comparativo:

“Holística, do grego ‘Holos’, significa Todo/Inteiro. É um novo paradigma que seapresenta como resposta evolutiva à crise de fragmentação vivida pelo homem naatualidade, quer pela atomização do conhecimento ou pela criação e divisão defronteiras que só existem na mente humana. A Visão Holística que a UNIPAZprocura desenvolver representa o encontro entre a ciência moderna, a arte e a sabe-doria antiga. É essa visão fragmentada que levou a humanidade a um notável pro-gresso tecnológico de um lado, mas impediu uma maior expansão da consciênciapara um progresso harmônico, essencialmente holístico. As guerras, a fome, a misé-ria e todas as fronteiras econômicas, raciais e culturais são resultados dessa visão

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fragmentada. Levaram o homem a uma crise sem precedentes neste final de século.Uma das saídas para evitar o caos e a violência generalizada, que ameaça pessoas enações, está justamente nesse novo paradigma holístico.”19

“A Associação Transpessoal Internacional (ITA) anuncia seu próximo e excitanteprojeto, a Conferência Caminhos para o Sagrado, a realizar-se de 16 a 21 de maio de1996, no Hotel Tropical, em Manaus, Brasil, no coração da floresta amazônica.Nessa conferência exploraremos teórica e praticamente o amplo espectro das ‘tecno-logias do sagrado’, práticas antigas, indígenas e modernas que podem mediar oacesso às dimensões espirituais da existência (...). Há boas razões para acreditar quea investigação de estratégias experimentais voltadas para o despertar espiritual sejade grande relevância prática para o futuro de nosso planeta. À medida que nosaproximamos rapidamente do terceiro milênio encaramos uma situação sem prece-dentes em toda a história da humanidade. Este é um tempo de inimaginadas possibi-lidades, mas também de graves riscos. Ao longo deste século, os atordoantes triun-fos da ciência e da tecnologia levaram a humanidade à beira da catástrofe global, namedida em que não foram matizados por um desenvolvimento comparável nosplanos emocional, moral e espiritual (...).”20

“Fome, miséria moral, doenças incuráveis, escândalos políticos, degradação ambi-ental, intolerância religiosa, conflitos étnicos e genocídios. Pensamento dissociadodo viver (...) retratam com fidelidade a condição de crise generalizada atingida peloprocesso civilizatório neste ocaso de milênio. (...) No entanto, assim como entendi-am os gregos (krisis = decisão), crise apenas assinala um momento grave de decisãoem todo o processo de transformação que vem marcando a presença humana noPlaneta Azul. (...) Às vésperas do terceiro milênio, o VII Encontro Para a NovaConsciência tem como pauta a discussão da crise na perspectiva da transformaçãoplanetária (...). É uma nova conciência apontando rumo a uma aurora para além dacrise.”21

Dos trechos citados importa reter, se não a constatação da emergência deuma nova “consciência planetária”, ao menos a de um amplo esquema explicativocujo propósito é, diante de um quadro de incertezas levado à escala planetária, abusca de sentido e ordenamento capazes de dissipar ambigüidades, descobrir einterpetar sinais tornando-os auspiciosos e de esconjurar perigos pressentidoscomo iminentes, catastróficos. Nada muito diferente, como se pode perceber, daininterrupta fabulação que de tempos em tempos produz narrativas — seja deconotação religiosa, política ou ideológica — propondo ordem para o pensamen-to, regras para a ação e significado para o mundo.22

Postular a existência de sínteses mais abrangentes, subjacentes às múltiplaspráticas e sistemas em que se divide e subdivide o universo neo-esotérico difere,em certa medida, da linha de uma das interpretações mais conhecidas sobre aNova Era. Trata-se daquela que enfatiza seu caráter fragmentário, considerando-a

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um mero epifenômeno da pós-modernidade, identificada com a quebra de para-digmas, o império do simulacro e do pastiche, a inevitável presentificação comsua falta de profundidade histórica e perspectiva futura.23

O chamado Movimento Nova Era — ou, como está sendo preferencialmentedenominado neste trabalho, o conjunto das práticas do circuito neo-esotérico —cai como uma luva para ilustrar esse cenário no âmbito da religiosidade: à decan-tada falência das religiões institucionalizadas com seus dogmas, esquemas depoder e burocracia se sucederiam práticas ditadas pela livre experimentação eassociação; cada buscador seria levado a montar seu próprio kit devocional apartir de um mercado que expõe, lado a lado, elementos oriundos das mais diver-sas, distantes e opostas tradições espirituais. As novas propostas, pessoais ou degrupos, provindas dessa estratégia que permite infinitas possibilidades de combi-nação, parecem entregues ao acaso das escolhas aleatórias: não há autoridadenessa espécie de “religião pós-moderna” que possa impedir as junções, por maisestranhas que possam parecer — tarô de Marselha com yoga indiana, meditaçãotranscendental com xamanismo indígena, crença na reencarnação com manuaisde auto-ajuda, ritos tântricos e pesquisas ufológicas.24

Mas, tal como aconteceu na análise anterior das práticas e espaços do circui-to neo-esô — que mostrou a presença de padrões na base de sua distribuiçãoespacial, funcionamento e periodicidade —, também é possível identificar, paraalém da diversidade das explicações localizadas, a recorrência e a lógica internade alguns planos discursivos mais gerais. Pode-se mesmo postular que tais planosnão só constituem narrativas de base como, ademais, se pretendem metanarrati-vas, no sentido de se colocarem acima de diferenças étnicas, ideológicas, religio-sas ou de classe, dirigindo-se ao homem em sua condição de protagonista numplano de dimensões cósmicas. “Somos todos tripulantes da nave Terra”, costuma-se afirmar no meio neo-esotérico.

Assim, no interior das práticas, doutrinas, princípios e ritos dos gruposintegrantes do circuito neo-esô, é possível discernir algumas matrizes discursivas,e a variação que se observa na superfície do fenômeno (e que tanto chama aatenção) não é senão o resultado das escolhas e ênfases que cada arranjo particu-lar realiza a partir de uma estrutura gerativa e dentro de uma combinatória ditadapor regras de compatilibidade próprias.

Cada grupo, instituição, entidade e às vezes até mesmo cada experiênciapessoal, apoiando-se implícita ou explicitamente em alguns pressupostos, cons-truirá quadros de referência com maior ou menor coeficente de coerência internaconforme o manejo, erudito ou canhestro, das premissas e matrizes comuns. Há,evidentemente, aquelas sínteses plenamente identificadas e com maior grau deelaboração interna, como é o caso da Teosofia (com base na obra de Helena

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Petrovna Blavatski), ou da Antroposofia, de Rudolf Steiner. Essas sínteses, assimcomo o pensamento desenvolvido em escolas, obras e movimentos sob a influên-cia de personagens como G. I. Gurdjieff, Aleister Crowley, Éliphas Lévi, RenéGuénon e muitos outros — pensadores e mestres esoteristas com vasta erudiçãosobre religiões orientais e o ocultismo ocidental —, funcionam como manuais,fontes de inspiração e guias, nesses intrincados caminhos, para muitos freqüenta-dores do circuito neo-esô de hoje.

3.2. Tradição e Ciência

Antes de tudo é preciso discriminar alguns dos componentes mobilizadospara a elaboração dessas sínteses ou quadros explicativos mais amplos para emseguida identificar sua matriz discursiva de base, a partir do material difundidopelos espaços visitados, das palestras neles proferidas, das discussões dos simpó-sios, do temário dos congressos e justificativas de workshops. Cabe ressaltar quea análise não se pretende exaustiva com relação ao conjunto do chamado movi-mento da Nova Era, não se aplica integralmente a cada sistema que se identificacom ele, tampouco compulsou a infinidade de ensaios encontrados na abundanteliteratura que locupleta as estantes marcadas com o rótulo “esotérico” nas livrari-as. Tendo como fonte o material recolhido durante o trabalho de campo, seualcance limita-se ao horizonte das atividades tal como são praticadas no circuitoneo-esotérico da cidade de São Paulo e, mais especificamente, nos espaços con-templados pela pesquisa.25

Existe um grande eixo em torno do qual se aglutinam os elementos maisrecorrentes que entram na composição dos discursos correntes no meio neo-esô eque funciona também como a instância legitimadora de todos esses discursos — éo designado pelo termo “Tradição”. Não é demais lembrar que essa noção estásendo utilizada de acordo com um sentido bastante particular: no meio neo-esoté-rico, “Tradição” é considerada a fonte e depositária de determinado tipo de co-nhecimentos a respeito da natureza, destino e lugar do homem na ordem maisgeral do universo, produzidos ao longo do tempo, nas mais diferentes sociedades.Disseminados e não raro dissimulados num amplo corpo de doutrinas secretas,mitos, fórmulas herméticas e saberes empíricos, tais conhecimentos formariamuma corrente perene e ininterrupta — ainda que descontínua e às vezes subterrâ-nea ao plano da manifestação — suscitada por questões comuns a toda a humani-

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dade e ancorada em capacidades cognitivas desenvolvidas por grupos e persona-gens especiais, presentes em todas as culturas.

Dada sua amplidão, torna-se difícil determinar exatamente quais conheci-mentos, crenças, saberes, mitos e outros elementos constituem o repertório dessasabedoria tradicional; nela cabem desde peças universalmente difundidas e reco-nhecidas até por seu valor literário (como o poema épico hindu Bhagavad Gita,por exemplo, ou então os relatos da mitologia grega, as sagas nórdicas etc.) atéfórmulas e ritos mágicos atribuídos a povos caçadores pré-históricos sem escrita.Numa primeira aproximação e tomando como base os temas que mais se repetemnos espaços pesquisados, é possível começar distinguindo os elementos que cos-tumam ser reunidos no interior desse referente comum que é a Tradição: a primei-ra grande divisão a ser feita para organizar as informações é entre uma vertenteque poderia ser chamada de erudita para diferenciá-la de outra, ágrafa/popular.

No primeiro bloco, o das fontes eruditas, estaria compreendida a produçãocodificada, acessível em documentos escritos ou conjuntos significativos de cul-tura material, de quatro grupos distintos:

a) grandes civilizações do passado, já desaparecidas, ou já não mais em seusdias de esplendor. As mais recorrentes são as tradições genericamente desig-nadas como orientais — que incluem códigos e panteão religiosos, corpos demitos, sistemas divinatórios, técnicas de cura e ordenamentos morais prove-nientes de ou referidos ao Antigo Egito, às cidades-estado da Mesopotâmia, àIndia, Extremo Oriente — sem maiores referências à duração, superposiçãoou abrangência das respectivas áreas e períodos de influência;

b) o esoterismo ocidental, que vai dos cultos de mistérios gregos e romanos,passando pelo druidismo celta, pela cabala e alquimia medievais e renascen-tistas até as sociedades ocultistas da época moderna;

c) as civilizações sul e meso-americanas, principalmente a incaica, azteca emaia;

d) por último, figuram os saberes atribuídos a civilizações e/ou cidades perdidascomo “Atlântida”, “Lemúria”, conhecidos por um suposto registro arqueoló-gico (principalmente inscrições rupestres) ou por traços preservados no inte-rior da cultura de outros povos.26

O segundo bloco, o das fontes ágrafas/populares, abrange estas contribui-ções: a primeira, daquelas culturas que, desprovidas da escrita, permitem o acessoa seu legado pelo recurso à oralidade (quando contemporâneas) ou por vestígiosarqueológicos, no caso dos grupos pré-históricos. Grupos indígenas contemporâ-

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neos ou descendentes de antigos povos, principalmente da América do Norte(Estados Unidos, Canadá), América Central, altiplano andino, terras baixas daAmérica do Sul, Oceania e outras regiões com uma ainda significativa presençaindígena integram este subgrupo; a segunda contribuição, embora sem o mesmoprestígio que a anterior, pois, enquanto a distância exotiza, a proximidade, aocontrário, banaliza, é a das tradições populares camponesas e urbanas, com aimensa legião de curandeiros e adivinhos cujas práticas e ensinamentos são oresultado de trocas e fusões entre sistemas religiosos transplantados e antigaspráticas autóctones.

O quadro pode parecer demasiadamente esquemático, mas de nada adianta-ria inflacioná-lo com uma enfiada de tradições particulares de todos os quadrantesdo mundo introduzindo novas divisões e subdivisões, pois sempre subsistiria aimpressão de se estar manipulando um conjunto incompleto.27 Mais importanteque uma listagem, catálogo ou inventário, contudo, é tentar captar a especificida-de e o alcance dessa noção de “tradição” enquanto referência para os discursosneo-esôs, o que se torna mais factível quando se estabelece, para efeitos compara-tivos, o elemento que atua como o outro pólo de um sistema de oposição. Trata-seda ciência, que a todo momento aparece no contexto neo-esotérico fazendo parcom a idéia de tradição.

Como foi visto, o saber tradicional é considerado a resultante da contribui-ção de culturas distantes no tempo (as grandes civilizações do passado) ou noespaço (culturas indígenas atuais), o que lhe dá um caráter de contraponto àcivilização ocidental, encarada sob o prisma de suas mazelas e distorções. Osneo-esôs voltam-se para a Tradição justamente porque — dizem — preserva algode que o homem contemporâneo, dominado pelos imperativos de uma modernida-de que terminou se revelando arrogante e parcial, fora despojado.

Esse legado tradicional — totalizador, voltado para as perguntas básicas daexistência humana — não é, todavia, uma verdade revelada, como no cânonejudaico-cristão. Fruto da elaboração cumulativa de refinadas civilizações, tantoquanto, no outro extremo, de rudes (mas “autênticos”) selvagens, é consideradoproduto de uma multifacetada experiência humana que inclui processos de ordemespeculativa, experimental, incluindo as de caráter místico e religioso. Por conse-guinte, não se opõe ao pensamento científico, como se fosse portadora de umaverdade outorgada desde outra ordem, separada, divina. No entanto, mantém suaespecificidade demarcando o próprio campo com relação aos pressupostos, méto-dos e propósitos da ciência.

Mas, cabe perguntar, de que ciência se está falando? A visão de ciência quecircula no meio neo-esô nem sempre corresponde àquela (ou àquelas) que preva-lece(m) no campo acadêmico; tampouco existe uma visão única, e sim várias

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concepções. Em primeiro lugar, está o que se considera o paradigma “oficial” —positivista, cartesiano – diante do qual se tem uma atitude crítica, pois é tidocomo materialista e fechado a temas não convencionais.

Entretanto, cabe lembrar as estratégias pelas quais se dão os contatos com ocampo científico convencional: a pesquisa mostrou algumas delas, entre as quaisos congressos, simpósios temáticos, cursos de treinamento, palestras de especia-listas, intercâmbio nos espaços do circuito neo-esô etc., realizados segundo mol-des acadêmicos — mesas-redondas, pesquisa bibliográfica, ensaios. Mais: nãoobstante a atitude de desconfiança e as críticas às bases epistemológicas da deno-minada ciência “oficial”, paradoxalmente, quando se divulga um evento, a titula-ção dos palestrantes, assim como sua vinculação a universidades e centros depesquisa de renome, são realçadas.

Em segundo lugar, costuma-se enfatizar o que é celebrado como coincidên-cias entre descobertas científicas recentes e verdades há muito conhecidas viaTradição: aqui, porém, não se trata de qualquer ciência — há algumas preferidas.Dentre as disciplinas a que mais se recorre, como referência ou testemunho para avalidação de determinadas asserções correntes no ideário neo-esô, estão a física, amatemática e a biologia entre as naturais ou exatas; a antropologia, a arqueologia,a história das religiões e ciências cognitivas e psicológicas, entre as humanas.

Mesmo assim não se trata das mesmas disciplinas exatamente como sãoentendidas, transmitidas e praticadas nos centros de pesquisa e ensino universitá-rios convencionais. Em alguns casos, o que se privilegia são determinados enfo-ques, hipóteses ou linhas consideradas, no meio neo-esô, “de ponta”: a mecânicaquântica, a teoria do caos, as estruturas dissipativas, a hipótese Gaia, etc.;28 emoutros, constrói-se uma leitura muito particular de determinada disciplina, comoacontece com uma suposta “arqueologia fantástica”, voltada, por exemplo, para adecifração de inscrições rupestres atribuídas a civilizações desaparecidas ou mes-mo a seres de outras galáxias ou dimensões. Repete-se, aqui, o processo já men-cionado na composição da Tradição, em que o legado de civilizações plenamentedocumentadas figura, aparentemente sem maiores problemas epistemológicos, aolado de civilizações simplesmente tidas como “desaparecidas”, sem registro do-cumental.

A antropologia, para dar um exemplo, é valorizada na medida em que é tidacomo depositária de informações sobre povos primitivos e seu modo de vidaconsiderado “comunitário”, em contato com a “mãe-terra”, praticando ritos xa-mânicos, supostamente em perfeita comunhão com a natureza. Essa disciplina éainda invocada para validar a ocorrência de fases de desenvolvimento da humani-dade como a passagem do “matriarcado” para o “patriarcado” e, juntamente coma arqueologia, desvendar o significado de inscrições pré-históricas, pinturas ru-

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pestres e das conhecidas estatuetas femininas às quais se atribuem vínculos comcultos e rituais de fertilidade. A mitologia comparada e a história das religiões,por sua vez, fornecem símbolos, ritos, relatos que são reinterpretados por meio deconceitos tirados das ciências psicológicas, basicamente de perspectiva junguiana.Os ícones são Mircea Eliade, Carl Jung, Joseph Campbell, Illia Prigogine, Gre-gory Bateson, entre outros.

Em suma, no par Tradição versus Ciência, esta última não entra tanto comofonte e sim como instância legitimadora de um conhecimento que se reputaindispensável para a plena realização do homem. Se a ciência não é garantia deesperança num futuro melhor (como as Luzes anunciavam, e as guerras, a injusti-ça, os desequilíbrios ecológicos terminaram desmentindo), a ela — por meioprincipalmente daquelas disciplinas entendidas como mais próximas ou sensíveisaos valores correntes no meio neo-esô — reserva-se o papel de confirmar elegitimar a validade, coerência ou ao menos a verossimilhança das verdades tradi-cionais.

Não se trata, portanto, de escolher entre Tradição e Ciência: o homem daNova Era não opta pelo irracionalismo, pois não rejeita os incontestáveis avançoscientíficos ou seus métodos de trabalho. Diante dessa dicotomia, fica com os doistermos, definindo-os a seu modo e hierarquizando-os, pois à ciência cabe umpapel subordinado. Se a tendência é valorizar as terapias soft, o hemisfério direitodo cérebro, o contato com o “eu superior”, isso se faz em nome de uma visãoholística, integradora, em conformidade com leis cósmicas, já antevistas nas anti-gas tradições e que agora a ciência começaria a comprovar.

3.3. A matriz discursiva

Se no par Tradição/Ciência o primeiro termo reúne os elementos e contri-buições dessa fonte perene de conhecimento, e o segundo é invocado para refe-rendar verdades já antecipadas pelos antigos saberes, o que põe em movimentoesse sistema é a noção de evolução: aplicada aos vários planos — individual,histórico e cósmico, produz diferentes temporalidades. Cabe lembrar que na mai-oria das versões neo-esôs o processo evolutivo não é entendido numa única pers-pectiva, a seqüencial-progressiva: é temperado com seu concorrente, o modelocíclico.

Assim, na instância individual é possível progredir, aperfeiçoar-se, mas nolimite só se poderá chegar ao ponto de partida de onde cada indivíduo — como de

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resto o universo todo — emanou; trata-se de atingir níveis superiores de consciên-cia e não de expiar alguma falta original, como no relato bíblico. Essa particularleitura terá conseqüências: vai concluir pelo estado de perfectibilidade, porém nãode culpa, da condição humana. A visão de uma divindade separada, pessoal ecriadora é substituída pela proposição de um princípio superior, englobante —panteísta, diriam os apologetas cristãos.29

Na dimensão macro, o movimento evolutivo percorre grandes ciclos — omodelo mais conhecido é o das eras regidas pelo zodíaco; de acordo com esseesquema, a era de Touro correspondeu às religiões mesopotâmicas; a de Áries, àreligião mosaico-judaica; a de Peixes, à era cristã, e a de Aquário é a que se abreagora. Um outro modelo combina sistemas de inspiração ecológica, como a Hipó-tese Gaia, e a visão cósmica e teleologicamente orientada desenvolvida pelopadre jesuíta Teilhard de Chardin.30

O alto rendimento dessa postura evolucionista na elaboração do pensamentoneo-esô evidencia-se ainda no terceiro plano de aplicação, situado entre o planoda realização individual, restrito à biografia de cada um, e o cósmico, que apontapara níveis superiores de consciência: é o plano de processos históricos, comavanços e retrocessos, nos quais os cortes são estabelecidos com base em crité-rios tirados da paleontologia, arqueologia, história, antropologia e mitologia com-parada.

Um exemplo concreto deste último é oferecido pela aplicação das catego-rias “matriarcado” e “patriarcado” já citadas, entendidas como duas grandes eta-pas sucessivas: a primeira, marcada pela condição feminina, corresponderia aoperíodo em que a humanidade teria vivido em contato estreito com, e até imersoem, processos naturais. A então preponderância da mulher estaria diretamenteassociada àquela dependência, pois é seu corpo que exibe as regularidades ligadasà procriação; daí a idéia da natureza como a Grande Mãe, o culto à Lua, aimportância atribuída às famosas “Vênus pré-históricas”, aos ritos de fertilida-de.31 O patriarcado, na maioria das versões, está associado à era dos metais,descoberta que teria permitido aperfeiçoar as artes da guerra e o predomíniomasculino; em contraposição ao estado de igualitarismo do matriarcado, teriainstaurado a hierarquia e a propriedade. “Daí em diante, o culto à Lua passou aser substituído pelo culto ao Sol, ressaltando-se o poder masculino encarnado naimagem de um deus guerreiro, portador da luz e da razão suprema. Nessa novaestrutura de poder, a sensibilidade, o sentimento, a imaginação e a intuição —qualidades do universo feminino — teriam perdido importância para o raciocíniológico, a técnica e as leis”.32 O atual “resgate do feminino”, mote em voga emmuitos espaços do circuito neo-esô, mostraria o início de uma nova etapa, marca-da pela combinação e a colaboração entre valores masculinos e femininos.

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Esta é uma caracterização sumária e generalizante, mas que abrange grossomodo, as versões que circulam nos espaços do circuito neo-esô.33 Analisando sualógica interna, contudo, percebe-se que nem sempre há coincidência quando setrata de situar os cortes e as fronteiras entre as etapas, principalmente quando sãoutilizadas datações, terminologia e referências da história ou arqueologia. O ma-triarcado ora abrange o paleolítico, ora estende-se ao neolítico; o patriarcado emalguns casos está associado aos caçadores; em outros, começa com o neolítico;em outras, ainda, tem início com as invasões dos povos indo-europeus e suasdivindades. Aparece também a divisão nomadismo versus sedentarismo, associan-do-se o primeiro termo a uma “Idade de Ouro” e o segundo, ao início da “Idadeda Civilização”.

É preciso lembrar que, não obstante as referências a disciplinas “oficiais” —história, antropologia, paleontologia, arqueologia — e o uso de termos delasoriundos, esta é uma elaboração bastante particular, nem sempre coincidente comos resultados de pesquisas e quadros teóricos dessas disciplinas. Desse ponto devista, os próprios termos “matriarcado” e “patriarcado” seriam colocados emsuspeição: aceitos no quadro explicativo do evolucionismo cultural de meados doséculo XIX, hoje estão descartados como categorias capazes de delimitar fasessucessivas e universais de desenvolvimento da humanidade.34 O mesmo ocorrecom as datações utilizadas na pesquisa arqueológica: as grandes divisões —paleolítico, mesolítico, neolítico etc. —, em que pese seu poder evocativo, poucosignificam quando empregadas sem especificações mais detalhadas.

No entanto, se non è vero è ben trovato; a despeito das imprecisões, oesquema matriarcado-patriarcado tem ampla aceitação no meio neo-esô, pois ofe-rece um princípio classificatório de bom rendimento; o mesmo ocorre com otermo “comunidade”, entendido como típico de sociedades de pequena escalacujos membros viveriam em harmonia consigo mesmos e com a natureza35 eassim com muitos outros.

Qual seria, portanto, a lógica que costura terminologia, métodos e conclu-sões provenientes de tão diferentes campos? Uma pista, já clássica, para o enten-dimento do fenômeno é a oferecida por Lévi-Strauss (1976): estamos no terrenodo mito, não da ciência, com o modo de operar descrito por ele como bricolage;nesse esquema, alguns dos termos podem ser científicos, mas a estrutura doconstructo pertence ao mito. As incongruências, as aproximações forçadas, osanacronismos, a utilização de conceitos de diferentes contextos teóricos, tudoisso, que aos olhos da lógica da ciência constitui empecilho à formação de propo-sições com sentido, na lógica do mito é absorvido no interior de uma estruturaque é o que importa, pois é o que dá um significado particular ao todo.36

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Mesmo as grandes sínteses já apontadas, como a da Teosofia e a da Antro-posofia — de maior fôlego e coerência —, não escapam a essa forma de apropria-ção e lógica de ordenamento. Cabe lembrar, também, que mito aqui não estáempregado no sentido vulgar de “falso”, “ilusório”, mas como um gênero comconvenções retóricas próprias.37

Faz parte desse modo de operar a presença de certos mitemas, ou seja,formulações sintéticas de alto poder classificatório, empregadas com inde-pendência de seus contextos de origem: assim abundam, no meio neo-esô, asreferências aos quatro elementos — “terra, água, ar, fogo” — que se desdobramnas quatro estações, nos quatro ventos, nas quatro direções, nos quatro animaisarquetípicos etc. O mesmo ocorre com formulações ternárias: as três dimensõesdo homem (corpo, mente, espírito) e, finalmente, com as binárias — eu superiorversus eu inferior, e assim por diante. Termos como “sincronicidade”, “energia”,“elementais”, “vibração”, “holismo”, “carma”, “chakras” e outros passam a tersignificado unívoco no meio neo-esotérico: instauram uma espécie de zona francaatuando como termos de um léxico de livre circulação e imediata compreensão.

Identificados o regime da sincronia com o par Tradição/Ciência e o princí-pio que coloca seus elementos no plano diacrônico, a evolução, resta explicitar omecanismo de base que estrutura o modelo. Reitero que, também nesse caso,trata-se de uma conclusão tirada com base nos dados observados em campo e nãono conjunto exaustivo das combinações existentes no campo neo-esô, muitas dasquais podem seguir outras narrativas de base.38 A figura é um triângulo:

Numa ponta está o Indivíduo, em suas diversas denominações e graus deprofundidade — “eu interior/eu superior”, “lenda pessoal”, self, inner spirituality,self-spirituality, inner voice —;39 na outra, o pólo de onde emanou, do qual fazparte e para onde tende esse indivíduo, ou seja, a Totalidade (Transcendência,Absoluto, Cosmos, o Princípio Superior, a Natureza, conforme cada versão). Ahistória da humanidade não seria senão a longa caminhada, matizada pelas idios-sincrasias de cada cultura para restabelecer o contato pleno do múltiplo com ouno e isso só é possível porque aquele sempre foi parte deste último. Tendo em

Totalidade

Indivíduo Comunidade

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vista, porém, o caráter societário do modo de vida do ser humano, entre Indivíduoe Totalidade medeia um tertium, a Comunidade — depositária e guardiã de cadatradição particular e dos meios que possibilitam a seus membros, em cada contex-to histórico, alcançarem sua verdadeira natureza.40

O modelo ideal, portanto, supõe o indivíduo, tomado em sua integralidade(corpo/mente/espírito), que pertence ao seio de uma comunidade consideradaharmônica e se aperfeiçoa nele; ambos imersos e integrados numa realidade maisinclusiva e total, da qual é preciso tomar consciência.41

Concluindo, tem-se, deste modo, a formulação de um “modelo de” (nalinguagem geertziana) que se desdobra em “modelos para”: as terapias alternati-vas, a dinâmica das vivências, os métodos de cura, as técnicas de autoconheci-mento, os modelos de comportamento e consumo são calcados — levando-se emconta as variações de cada síntese — na combinatória do triângulo que, por suavez, articula elementos do par Ciência e Tradição.42

Muitas variantes decorrem dessa matriz discursiva, dependendo da ênfasedada a este ou aquele elemento constitutivo da estrutura; algumas serão maiselaboradas, outras menos, conforme o grau de sofisticação das escolhas e articula-ção interna. Cabe registrar (entre outras) duas dessas sínteses, já citadas: ummodelo de orientação mais ecológica representado pela Hipótese Gaia e o Holis-mo Cristão, este último apoiado nas formulações do padre jesuíta Teilhard deChardin.43 Na impossibilidade de apresentar um corpus mais completo dessassínteses, o que teria permitido um melhor acompanhamento da análise preceden-te, transcrevo o texto introdutório com que a Universidade Holística Internacio-nal, com sede em Brasília, abre a página da Formação Holística de Base de seusite e que, por sua abrangência e representatividade,44 ilustra os principais pontosda discussão anterior:

“A nossa realidade cotidiana tem nos revelado o crescente aumento de desagregação— entendida como crise de desvinculação e fragmentação que nos afasta do propó-sito maior que é a Evolução do Ser e a Integração com o Universo. Sendo assim,torna-se emergencial a possibilidade de uma consciência, de uma nova civilizaçãomais humana, justa, centrada em valores mais elevados; e uma necessidade demelhorar e ampliar a qualidade de vida em seus aspectos básicos de sobrevivência:social, político, educacional e científico. Nos horizontes já ampliados da Consciên-cia Humana, surgiu uma Visão — O Paradigma Holístico — que representa o maissignificativo evento histórico dos últimos séculos posteriores ao Renascimento,além de significar uma nova concepção do mundo. O Paradigma Holístico expressatambém uma atitude inovadora. Holístico (do grego Holos = todo) é um termo queremonta aos pré-socráticos; Heráclito, filósofo grego, já usava o termo Holismo,afirmando que o Todo está contido no Um, ou que “as partes estão no todo e o todonas partes”. A visão Holística objetiva a importância do processo de evolução das

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partes para uma síntese na totalidade e traz consigo o respeito à natureza e suasformas de vida e ao conjunto dos valores culturais e, ao mesmo tempo, incentiva odesenvolvimento em todas as áreas. A partir do momento que o homem se conside-rar integrante do Universo, terá início a transformação das relações. Visando odespertar de uma visão holística no Homem, a Unipaz implantou o curso de Forma-ção Holística de Base, constituído através de três fases:

1. O Despertar (Ecologia Interior) Integração das funções psíquicas, de acordo como modelo junguiano (sensação — intuição — pensamento — sentimento), visan-do a harmonização do plano pessoal e transpessoal.

2. O Caminho (Ecologia Social) Aprofundamento da fase anterior, com aplicaçãoda vivência pessoal às esferas do conhecimento científico, espiritual, filosófico eartístico. Inclui a realização de estágios em centros holísticos indicados pelaUnHI.

3. A Obra-Prima (Ecologia Planetária) Etapa final, que facultará ao aprendiz aexpressão do seu processo de aprendizagem e de integração holística.”

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Notas

1. Essa referência a Nossa Senhora Aparecida deve-se à ênfase ao que Paz Géia chama dexamanismo matricial: “O xamanismo matricial busca sua origem na aurora da Humanida-de quando vivíamos uma época de Ouro na qual homens, mulheres, animais e naturezafaziam parte de um contexto sagrado de adoração à Grande Deusa, a Grande Mãe, quechega até nós como a Madona Negra. O xamanismo matricial propõe uma mudança deparadigma do patriarcado para os valores da Grande Deusa — uma nova (ou antiga) formade parceria regida pela igualdade sexual, liberdade, justiça, alegria, beleza, amor e podercomo sinônimo de responsabilidade (...)”. (Do site http://www.unipaz.com.br/pazgeia,1997).

2. Participaram no processo de coleta de dados Patrícia da Silva (bolsa-trabalho, Co-seas/USP) e Daniela Sanches Carrara (bolsa CNPq/IC). Cf. “Relatório de atividades decampo na Vila Mariana entre julho e dezembro de 1996” (1997).

3. Maria Regina Cariello de Moraes, Flávia Prado Moi e Adriana Capuchinho realizaramo levantamento, com recursos de uma dotação orçamentária concedida pela Pró-Reitoriade Pesquisa da USP, em 1997.

4. Mancha, como se sabe, designa a distribuição, de forma contígua num espaço, dedeterminados estabelecimentos que se complementam ou competem no oferecimento detal ou qual bem ou serviço, muitas vezes induzidos por um em especial que os aglutina —função que nesse caso é exercida pelo Hospital São Paulo. Assim, os espaços neo-esôsentram na composição dessa mancha, mas não são eles que dão o tom. Não deixa de sersignificativo, como foi notado, que estejam na órbita de uma instituição oficial, benefici-ando-se de sua visibilidade, oferecendo também serviços de saúde mas baseados em outralógica. Cabe ressaltar, contudo, que o próprio Hospital São Paulo, da Universidade Fede-ral de São Paulo, oferece à população algumas dessas modalidades não convencionais,como a acupuntura, na forma de pronto atendimento e ambulatório. Essa modalidadeterapêutica também é oferecida como disciplina no Departamento de Ortopedia e Trauma-tologia dessa universidade. Embora reconhecida como especialidade médica pelo Conse-lho Federal de Medicina em 1995, a residência médica em acupuntura já existia desde1994. É preciso mencionar também que o Hospital do Servidor Público Municipal, quedesde 1989 mantinha o Serviço de Medicina Tradicional Chinesa com atendimento deacupuntura, acaba de inaugurar um espaço para meditação. De acordo com o médicoresponsável pelo novo serviço, nos Estados Unidos a meditação é indicada para pacientesque passaram por cirurgias cardíacas e sofreram traumas e por doentes com o sistemaimunológico deprimido (Folha de S. Paulo, 6 jun. 1999).

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5. Uma apresentação mais completa dessas categorias encontra-se em Magnani, 1998, eMagnani & Torres, 1996.

6. Da mesma forma como foi apontado no caso dos trajetos de lazer na mancha daConsolação onde o bar Riviera apresenta incompatibilidade em relação ao bar Metrópolis:“A construção dos trajetos não é aleatória nem ilimitada em suas possibilidades de combi-nação. Estamos diante de uma lógica ditada por sistemas de compatibilidades. No exem-plo ‘Livraria Belas Artes/Cine Belas Artes/Bar e Restaurante Riviera’ — que mostra umacombinação não apenas possível, mas bastante freqüente — não entra na seqüência (nemcomo alternativa) o bar Metrópolis, apesar de estar situado na mesma mancha. Outra é agramática que permite compreender o significado desse bar e do trajeto em que se increve(...)”. (Magnani & Torres, 1996:44).

7. A análise que segue incorporou alguns dados colhidos por Maria Regina CarielloMoraes (bolsa USP) e Adriana Capuchinho, em 1998. Agradeço ainda a Maria Ely pelaleitura e sugestões.

8. Dos endereços aí registrados, 29% são de consultórios e escolas voltados para aplicaçãoe ensino dessas modalidades.

9. Ver mapa apresentado no capítulo 1.

10. Todo o cuidado é pouco até para citar o Tao, tendo-se em vista que o primeiroaforismo do Tao Te King, atribuído a Lao-Tzu (fim do século VII a.C.), diz: “O Tao quepode ser pronunciado não é o Tao eterno” (Wilhelm, 1993:37). Já Radcliffe-Brown[1951](1978) não tem muitos pruridos em defini-lo: “(...) a mais completa elaboração daidéia [unidade de contrários] se encontra na filosofia Yin-Yang da antiga China. A fraseem que ela se resume é: Yi yin yi yang wei tse tao. Um yin e um yang fazem uma ordem.Yin é o princípio feminino; Yang, o masculino. A palavra tao pode aqui ser mais bemtraduzida como um todo ordenado”. Radcliffe-Brown prossegue, mostrando a aplicaçãodesse princípio ao casal (homem/mulher), a unidades de tempo (dia/noite; verão/inverno)e até para regras de casamento entre clãs: “a evidência é de que neste sistema de casamen-to um homem se casava com a filha do irmão de sua mãe, ou uma mulher da geraçãoapropriada do clã de sua mãe” (: 55).

11. Conforme explicita Da Liu, presidente da T’ai Chi Ch’uan Society de Nova York “Esteprincípio tem sido, desde tempos imemoriais, a base da interpretação chinesa da saúde eda doença. A boa saúde exige um equilíbrio entre as forças yin e yang do corpo. Quandoocorre uma acentuada predominância de uma delas, advém a doença. O objetivo dasciências médicas, que incluem tanto a acupuntura como a medicina herbácea, é descobrira origem do desequilíbrio e fazer com que as forças retornem à adequada proporção(1995:13).

12. Decreto-lei que teve continuidade na forma de lei federal aprovada pelo Congressosob o nº 3968 em 5 de outubro de 1961. (Cf. “Campanha de mobilização entre massagis-

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tas e massoterapeutas” e, para o caso da acupuntura, “Histórico da Campanha pela regula-mentação da Acupuntura”, em O Terapeuta, ano 1, nº 0, outubro de 1997.)

13. Processo nem sempre marcado pelo consenso, como mostram, por exemplo, as diver-gências de posições e estratégias entre associações como SINATEN e SINTE (Sindicato dosTerapeutas). Para informações mais detalhadas sobre o atual estágio e conquistas já alcan-çadas, ver O Terapeuta, ano 3, nº 2, abril de 1999.

14. Outro sinal da inter-relação entre as instituições do circuito: associados da ABTK têmdescontos de 10% a 30% nos produtos oferecidos — cursos, atividades, produtos fitoterá-picos — por vários desses espaços e instituições, como ABREFLOR, Espaço A.M.OR,Escola A.M.OR, Panizza Phytoshop, Corpo e Mente, Espaço Citrino Oriente, Brasil Orien-te etc.

15. Em Campinas, Curitiba e Rio de Janeiro também há espaços vinculados à A.M.OR.

16. Os nomes dessas pessoas foram modificados.

17. Cf. Ferreira (1984:23).

18. De acordo com as informações veiculadas no referido site, “O projeto Gaia Mind éuma proposta transdenominacional e sem fins lucrativos, iniciada por Juliana Balistreri eJim Fournier (San Francisco, CA), dedicada à difusão de uma meditação e prece para atransformação da consciência global, no dia 23 de janeiro de 1997. A participação é abertaa todos e não está vinculada a crenças de alguma religião ou ideologia em particular,inclusive da astrologia. Além dos fundadores, milhares de pessoas em todo o mundo, dediferentes tradições espirituais, são agora co-criadores deste evento único (...). O ProjetoGaia Mind aspira a servir de catalisador para a cura global ao buscar soluções práticas,criativas, espiritualmente orientadas aos desafios enfrentados pela humanidade e peloplaneta. O projeto serve como ponte para explorar a interface entre ciência, medicina,filosofia e as tradições da sabedoria espiritual universal. A iniciativa de 23 de janeiro de1997 posta na website como www.gaiamind.com renascerá como www.gaiamind.org paratornar-se um fórum dedicado a essas idéias” (tradução minha). Devo a Cristina Rocha, aquem agradeço, a notícia do evento e o endereço do site.

19. A UNIPAZ — Universidade Holística Internacional — foi fundada em 1986, emBrasília, por iniciativa do conhecido psicólogo Pierre Weil e atualmente conta com campiavançados em Porto Alegre, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Campinas, Salvador e Forta-leza (em fase de implantação). Entidade de expressão no meio neo-esô, oferece cursos deformação, assessorias, organiza congressos, mantém convênios com inúmeras universida-des e instituições públicas e privadas. Entre seus “facilitadores”, podem ser citados Rober-to Crema, Ubiratan D’Ambrosio, Stanley Krippner, Gray Gibsone, May East, ChagdudTulku Rinpochê, Alfredo Aveline, frei Betto, Carminha Levy, Mestre Liu Pai Lin(http://www.unipaz.com.br).

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20. Trechos da apresentação do programa, assinada pelo coordenador da conferência,Stanislav Grof.

21. “VII Encontro Para a Nova Consciência”, 20/24 de fevereiro de 1998, CampinaGrande/PB.

22. Se a comparação com o clima e as preocupações que marcaram a passagem anterior,do primeiro milênio, é inevitável, cabe distinguir o que ocorre atualmente como tendênciano circuito neo-esô de determinadas posturas de grupos milenaristas autocentrados cujofanatismo é já objeto de medidas de prevenção.

23. “(... a religiosidade da Nova Era) é simples e inexoravelmente o produto do pós-mo-derno: de uma cultura que viu ruir todos os seus mitos, as ideologias, a verdade e osvalores. É uma religiosidade amadurecida por meio de um encontro com as formas ex-pressivas e artísticas em nível de non sense e já se encontra impregnada de ‘irracional’, desensações mais do que idéias, de vontade de crer mais do que de convicções, de visões eperspectivas deformadoras e de pluralismos indefinidos mais do que apego a tradições, àsgrandes histórias e aos grandes mitos do passado” (Terrin, 1996: 9-10).

24. Algumas dessas características sem dúvida podem ser encontradas em diversos sistemasneo-esôs, como mostram vários estudos que apontam significativas e consistentes correlaçõesentre formas de religiosidade contemporânea e determinados aspectos da modernidade. O queaqui está sendo posto em questão é a relação mecânica e direta entre esses dois conjuntos defenômenos, tidos como unívocos, em que o primeiro é apresentado como o reflexo do segun-do. Nem um nem outro, contudo, são homogêneos, nem há acordo sobre seu enquadramentoconceitual: há autores inclusive que desqualificam o próprio termo “pós-moderno” por consi-derar que o projeto da modernidade ainda não se completou, sendo inadequado, por conse-guinte, falar numa etapa “pós-moderna”. Por outro lado, como vem sendo mostrado, aspráticas agrupadas sob as denominações de Nova Era, neo-esoterismo ou outras tampoucopodem ser tomadas constituindo um bloco indivisível, capaz de ser nomeado por alguns traçosinequívocos. Assim, considerar o movimento Nova Era a “religião pós-moderna”, tout court,por mais evocativo que possa parecer, está antes para título de matéria de revista semanal doque para uma proposição minimamente demonstrável.

25. O que não é pouco e, mesmo assim, deve ser considerado uma tendência.

26. Note-se que pouca diferença faz, para a lógica que preside a esta classificação, adisparidade de critérios (em termos de evidências documentais) que permite incluir esteúltimo item ao lado dos anteriores.

27. Riffard (1996: 155-166) apresenta quadros sinópticos mais detalhados, com maiornúmero de informações.

28. Um exemplo desse contato é fornecido pelas obras de Fritjof Capra. O primeiroparágrafo de um de seus livros mais divulgados, O Tao da Física (1995), descreve umaexperiência pessoal que relaciona a visão do movimento das ondas do mar — moléculas e

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átomos em vibração — com a dança do deus Shiva, da mitologia indiana (p.13), e queacabou se tornando o paradigma da aproximação entre a sabedoria tradicional e as desco-bertas num campo científico específico, no caso o da mecânica quântica. Esse tipo deaproximação pode tanto ensejar uma linha específica de reflexão conduzida com o rigorde procedimentos próprios da ciência e guiada por intuições tidas por meio de experiênci-as totalizadoras próprias das tradições místicas, quanto diluir-se na forma de uma popula-rização tal como se pode ver em muitos folhetos, palestras e comentários correntes nosespaços neo-esôs. Mesmo nesse caso, não obstante a ligeireza das aproximações entreciência e tradição, resultante da vulgarização de conceitos, pode-se reconhecer aí umabusca de novos padrões de conhecimento e explicação de fenômenos que escapam aosparadigmas e padrões cognitivos reconhecidos.

29. Nota-se aí a presença da matriz do gnosticismo: “Conhecer a centelha que é o eu maisinterior implica necessariamente conhecer o potencial do eu. Se somos fragmentos do que foioutrora uma plenitude, o Pleroma, como o chamavam os antigos gnósticos, então podemosconhecer o que fomos um dia e o que poderemos voltar a ser” (Bloom, op. cit.:163). Outraaproximação entre essa visão e a dos gnósticos do século II pode ser apreciada em Pagels(1990:179): “Además de definir a Dios de manera opuesta, los gnósticos y los ortodoxosdiagnostican la condición humana de modo muy distinto. Los ortodoxos seguían la tradicionalensenãnza judía de que lo que separa a la humanidade de Dios, además de la disimilitudesencial, es el pecado humano.(...) Muchos gnósticos, por el contrario, insistían en que laignorancia y no el pecado es lo que causa el sufirimiento de las personas”.

30. Geólogo e palentólogo, o padre jesuíta Pierre Teilhard de Chardin (1881—1955)desenvolveu uma visão evolutiva de dimensões cósmicas, e seu esforço foi demonstrar queesta não se chocava com a doutrina cristã do universo. Ele via a humanidade como o eixocentral de um fluxo que, a partir de uma “cosmogênese” primordial, passaria pela etapa da“antropogênese” e, com o surgimento da consciência (“noosfera”), avançaria em direçãoao Ponto Ômega, interpretado como o ápice da integração de todas as consciências indivi-duais, correspondendo à segunda vinda de Cristo. Há, evidentemente, muitos outros mo-delos correntes no meio neo-esô que distinguem grandes ciclos e idades, como o grego(com as quatro idades — a do Ouro, Prata, Bronze e Ferro; cf. Vernant, 1990), o hinduístadas quatro Yuga, o calendário maia etc.

31. “(...) uma imagem do mundo de harmonia e consonância no corpo vivo de uma MãeUniverso que, como o trabalho de Marija Gimbutas tem mostrado, era representada nasartes neolíticas mais primitivas da velha Europa, 7000-3500 a.C. como a única ‘GrandeDeusa da Vida, da Morte e da Regeneração’” (Campbell, 1997:144).

32. Romeo Graziano Filho, 1997:54-55.

33. Há, evidentemente, versões mais elaboradas; estou apresentando uma espécie de “tipoideal” das versões tal como aparecem em cursos, palestras, rituais, folhetos etc.

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34. No campo dos estudos de parentesco, na antropologia, os termos utilizados são “matri-linear”, “patrilinear”, “matri” e “patrilocal” etc., conforme se esteja referindo a regras dedescendência, residência etc. do grupo estudado. São termos técnicos, de uso preciso, sema abrangência e o caráter evolutivo sugeridos por “matriarcado” e “patriarcado”.

35. Os conflitos e costumes pouco “elogiáveis” (o canibalismo, por exemplo) que o relatoetnográfico registra e interpreta no contexto das culturas em que ocorrem ou ocorreramgeralmente não são mencionados. Por outro lado, termos como clã, tribo, rituais xamânicos,conselho de anciãos e outros são empregados de forma indiscriminada para designar um modode vida e instituições que se supõem serem comuns a todos os povos indígenas. Em últimaanálise, o que normalmente acontece, mesmo com o uso desses termos, é que se recorre a elesmais em busca de seu poder evocativo, metafórico, do que de uma precisão técnica.

36. Cf. Lévi-Strauss, 1976:32, 37 e ss.

37. Ver, a propósito, a discussão de Lévi-Strauss sobre as diferenças entre conto e mito, naanálise sobre a obra de Vladimir Propp (1976 (b): 133-136) e também Vernant, 1992.

38. Nesse caso prefiro manter os termos “discursos” e “narrativa” — este para referir-me aum quadro mais geral e aqueles para designar formulações localizadas — antes que“cosmologia”, para ressaltar o caráter gerativo e de combinatória do modelo proposto.Quando se trata de um repertório mais específico, em determinados contextos e sistemas,pode-se falar de uma determinada cosmologia, com cor local.

39. Cf. Heelas, 1966:16,19,56.

40. Daí a atração de alguns grupos neo-esôs, senão pela volta a um estado ideal decomunidade (ainda encontrada, segundo crêem, em culturas não contaminadas pela socie-dade moderna), ao menos por seus ideais, buscados nos limites dos pequenos grupos quese reúnem nos espaços, nas vivências e workshops intensivos de fins de semana. Essa éuma característica que se contrapõe às visões que associam, sem maiores mediações, oneo-esoterismo à fragmentação e ao individualismo da pós-modernidade.

41. O esquema acima, por constituir um modelo, ao mesmo tempo que leva ao extremo ascaracterísticas “ideais” de cada termo — a totalidade é cósmica, o indivíduo é senhor desuas escolhas e a comunidade é o reino da harmonia e consenso —, equilibra o alcance decada termo pela presença dos demais.

42. A noção de modelo tal como a define Geertz (1978) possui dupla acepção: “modelo de” e“modelo para”. Enquanto os “modelos de” oferecem uma visão de mundo “que relaciona aesfera de existência do homem a uma esfera mais ampla” (op. cit.:124), os “modelos para”transformam essa visão em normas para a ação, em regras de comportamento.

43. E que pode ser apreciado em formulações de Leonardo Boff (1998) e de frei Betto,entre outros, após suas recentes incursões pela seara da Nova Era .

44. Ver nota 13.

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4O ethos neo-esô

Identificado, em linhas gerais, um “modelo de” — a partir de marcas epistas deixadas nos planos da distribuição espacial, do calendário e do discurso—, cabe agora analisar seu processo de transformação em “modelos para”, ouseja, sua capacidade de produzir efeitos no âmbito do comportamento. Esse é omomento para retomar a hipótese inicial do trabalho, pois se trata de observar deque forma visões de mundo terminam induzindo modificações não apenas nocomportamento individual, mas na geração de padrões coletivos, configurandoassim um “estilo de vida” peculiar.1

Antes de tudo, cabe lembrar as duas visões mais correntes sobre o fenômenodo neo-esoterismo, que servem de contraponto à análise que vem sendo apresen-tada: uma que reduz seus participantes ao protótipo de seguidor crédulo, pronto aacreditar em qualquer previsão das cartas ou a confiar suas vértebras ao primeiroterapeuta autodenominado holista que se apresentar; outra, mais elaborada, quesob as lufadas da pós-modernidade não vê senão um cenário marcado pela inter-cambiabilidade dos produtos, a fragmentação das propostas e a individualizaçãodas escolhas.

Na realidade o que vem se delineando aponta para um quadro com diferen-tes graus de entendimento, inserção e compromisso em que padrões e recorrên-cias, em vários planos, mostram a presença de princípios de ordenamento. Trata-se agora de detectar esses princípios no âmbito dos freqüentadores e seus com-portamentos.

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1. Os freqüentadores

Observando a movimentação habitual nos espaços do circuito neo-esô, prin-cipalmente os do Grupo II e III, tem-se a impressão, num primeiro momento, deque os eventos que aí transcorrem e que foram objeto de observação durante apesquisa — lançamentos de livros, concertos, palestras, cursos, vernissages, exi-bição de filmes, performances etc. — não se distinguem daqueles que normal-mente constituem a rotina cultural da cidade. O elemento diferenciador começa aficar claro à medida que se constata não se tratar de quaisquer livros, concertos oupalestras.

Mas não é apenas o tema ou o conteúdo específico de tais atividades quefazem a diferença. O ambiente — a música que antecede ou acompanha o evento,os produtos oferecidos como degustação, os objetos em exposição ou à venda —assim como a atitude dos participantes não deixam lugar a dúvidas: trata-se depessoas cujas preferências não se pautam pelo que é comumente anunciado noscadernos de lazer e cultura dos jornais.

Esse quadro aplica-se perfeitamente à programação da Associação PalasAthena, por exemplo, que pressupõe um público não apenas intelectualizado, comdeterminado grau de escolaridade, mas detentor de um conjunto específico deinformações e, o que é mais importante, de um certo gosto — condições que lhepermitem compreender, por exemplo, as sutilezas do teatro nô ou apreciar asonoridade de uma sitar indiana. O mesmo se pode dizer da platéia que alicomparece para uma palestra sobre a obra de Ibn’Arabî, mestre sufi do séculoXIII, ou para assistir a um vídeo sobre Jiddu Krishnamurti, por ocasião do cente-nário de seu nascimento.2

O mesmo ocorre quando se trata do circuito da saúde no meio neo-esô:aqueles que decidiram substituir a medicina alopática pelos procedimentos natu-ristas justificam suas escolhas com um discurso sobre os fundamentos e as vanta-gens de tais sistemas e podem discorrer, com maior ou menor fluência, sobre alocalização dos “meridianos”, o papel dos chakras, os fluxos e bloqueios daenergia e assim por diante.

Contudo, não se pode generalizar. Há quem participe no universo do neo-esoterismo apenas por acreditar em duendes, consultar esporadicamente as cartasdo tarô e apreciar a fragrância de um incenso: são diferentes os graus de adesãoporque são inúmeras as possibilidades de arranjos, a partir das narrativas de basedesse universo. Esta é a razão da dificuldade em definir os possíveis adeptos: aausência de dogmas, de uma hierarquia e um código de ética comum tornam

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bastante difícil distinguir, sob a heterogeneidade das práticas, normas claras decompatibilidades determinando o quadro das prescrições e interdições. Tem-se aimpressão — e algumas análises carregam nessa linha3 — de que se está diantede um segmento do famoso “mercado de bens simbólicos”, aberto a arranjosabsolutamente individualizados, em que cada qual compõe seu próprio estojopós-moderno de primeiros socorros espiritual.

Entretanto, é possível distinguir graus de comprometimento, a que corres-pondem determinados tipos-ideais de freqüentadores. Proponho separar, numaponta do espectro, o tipo erudito, que em princípio se caracteriza por escolhasmais restritas, ditadas por critérios definidos com maior homogeneidade e clarezano interior de um sistema de compatibilidades; no outro extremo, está o tipoocasional, cujas escolhas são determinadas menos pelo manejo de algum códigodo que por apelos do marketing; entre ambos situa-se o tipo participativo,freqüentador habitual dos espaços do circuito neo-esô: diferentemente do tipoocasional, suas escolhas são ditadas por um código de compatibilidades; suaperformance, contudo, é mais maleável que a do tipo erudito.4

O tipo erudito abrange vários segmentos: compreende, por exemplo, o sub-conjunto dos profissionais — os “facilitadores”, “focalizadores” — que, em virtu-de da atuação como agentes desta ou daquela prática, possuem mais informaçõessobre o tema de sua especialidade. Outro subtipo é representado pelo iniciado,aquele cuja prática pessoal, geralmente em algum Grupo I, supõe graus de com-prometimento exclusivo e em caráter progressivo; nesse caso, seu código temcomo referente o próprio sistema ao qual está filiado. E por último inclui-se nestegrupo o estudioso ou pesquisador que por algum motivo de ordem pessoal apro-funda um tema de forma autodidata.

Todos esses subtipos têm em comum o manejo de um código que se caracte-riza pela referência a uma só matriz de significados ou, quando combina elemen-tos de várias delas, o todo é coerente — ou seja, o arranjo final obedece acompatibilidades aceitas por todos os campos semânticos envolvidos.

No outro extremo do espectro está o tipo ocasional5 que participa do univer-so neo-esô de forma assistemática: não apresenta competência6 no manejo doscódigos disponíveis, limitando-se a absorver fragmentos que lhe são oferecidosde forma aleatória pelo mercado. Assim, digamos, acompanha o horóscopo diá-rio, faz invocações ao seu anjo, lê alguma obra de auto-ajuda e não lhe causanenhum prurido a incompatibilidade entre as noções cristãs de alma e os pressu-postos reencarnacionistas da TVP (terapia de vidas passadas) ou da idéia decarma, por exemplo.

Na verdade, é a esse tipo de consumidor e às propostas a ele dirigidas que seaplicaria a maior parte das críticas negativas geralmente disparadas contra a tota-

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lidade do universo neo-esô. “Gurus” em busca de lucro fácil, manipulando algumaspecto, símbolo ou discurso muitas vezes apenas longinquamente identificadoscom determinado sistema do circuito neo-esô, só se sustentam com base numpúblico consumidor sem capacidade de discriminação e por isso mesmo sujeitoao fascínio das soluções rápidas — a possibilidade de alguma experiência espiri-tual indizível depois de umas poucas sessões de meditação, ou a tão sonhadaharmonia interior após o encontro, sem maiores sobressaltos, com o “eu maisprofundo”...

O tipo participativo, por sua vez, é o freqüentador característico e público-alvo preferido dos espaços do circuito neo-esô. Ao contrário do tipo ocasional,seu manejo dos códigos e narrativas de base correntes no universo neo-esô permi-te-lhe referir os elementos (os termos do léxico: carma, aura, chakras, animal depoder, ch’i e outros) aos campos semânticos correspondentes ou, ao menos, reco-nhecer as diferenças entre eles. Mas, diferentemente do erudito, não necessaria-mente pauta sua visão de mundo e comportamento por um só desses campos.Transita mais livremente entre eles, ainda que respeitando algum nível de compa-tibilidade:

“Pode passar do yoga para o liangong (mas não para a aeróbica), consulta ora asrunas ora o tarô, assiste à peça Laços Eternos e ao filme O Pequeno Buda, prefereSão Tomé das Letras a Campos do Jordão. Seu código registra Vivaldi (no ritual daPrimavera), os arquétipos de Jung, a dicotomia yin/yang e permite distinguir entremantras, mudras e mandalas; a culinária que aprecia (ou pratica) é light ainda quenão radicalmente macrô ou vegetariana; pode ler Paulo Coelho, mas também JosephCampbell; enfrenta pequenos distúrbios orgânicos com fitoterapia e, para o equilí-brio das emoções, recorre aos florais de Bach; quando se trata de algo mais sério,busca a homeopatia.”7

É essa competência específica, essa familiaridade com os temas correntesdo universo neo-esotérico e essa receptividade a eles — mas não a lealdadeexclusiva a algum em particular, pois pode sem maiores traumas bandear-se paraoutro sistema8 — que fazem do tipo participativo o alvo privilegiado das pales-tras, cursos e vivências oferecidos pelos espaços, principalmente os do Grupo II(Centros Integrados) e III (Centros Especializados). Note-se que esse continuumpode apresentar uma infinidade de graus intermediários e só idealmente é que oscortes propostos — erudito, participativo, ocasional — adquirem contornosdefinidos. Os que circulam no meio neo-esô e seus arranjos pessoais ou coletivosdistribuem-se de forma nuançada ao longo do gradiente, razão pela qual se tornapouco produtivo multiplicar tipos e subtipos, uma vez que nunca darão conta dasvariações empíricas.

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Esse esquema permite equacionar um problema de difícil solução em muitasdas apreciações, análises e comentários sobre as práticas do circuito neo-esô eseus seguidores: ou são jogados na vala comum da mistificação, do engano e doconsumismo, ou dissolvidos de tal forma numa fragmentação que já não subsistenenhum traço identitário ou princípio classificatório. A proposta permite compro-var as particularidades de certos grupos, espaços e personalidades que certamenterejeitariam a denominação de “neo-esotéricos” para não serem aproximados, comrazão, ao estereótipo do consumidor ingênuo e descomprometido, sem deixar dereconhecer a existência concreta de um plano — visível no espaço, na perio-dicidade, no discurso — independentemente das opções filosóficas, pureza ética erigor técnico que cada um possa exibir.

Os tipos descritos foram construídos com base nas relações que mantêmcom as referências objetivas do universo neo-esô, ou seja, o circuito, o calendário,as narrativas: maior ou menor conhecimento do circuito todo, características dostrajetos pessoais escolhidos dentre as inúmeras possibilidades, grau de assiduida-de aos espaços e suas atividades, coerência e “gramaticalidade” com relação aosdiscursos de base.

Mesmo assim não se caracterizam ou distinguem apenas pela freqüência aosespaços e manejo intelectual de um código: além da compreensão dos temas —que são tratados nos cursos, palestras e encontros —, é preciso vivenciá-los,incorporá-los na prática cotidiana, o que supõe o cultivo de uma sensibilidadeespecial.

2. A formação de uma sensibilidade

Vista de fora por alguns como excentricidade, mas vivida como exercício denovos valores, essa sensibilidade é resultado de vários fatores, entre os quais, sempretensão de exaustividade, ressalto os seguintes: a disseminação de terapias cor-porais no contexto da valorização da individualidade, a vivência comunitária, apreocupação com a ecologia e a redescoberta do feminino.

Em primeiro lugar pode ser citada a disseminação de técnicas terapêuticasalternativas ao tratamento psicológico ou psicanalítico convencional. WilliamReich, Carl Jung, Carl Rogers, Karen Horney, Arthur Janov, Stanislaf Grof, Frie-derich Peris, Ken Wilber são alguns dos nomes que, direta ou indiretamente, estão

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na base de uma infinidade de experimentos em que o primado das emoções, alinguagem do corpo e a experiência grupal são contrapostos ao caráter considera-do demasiadamente racional das abordagens principalmente da linhagem freudia-na.

Em O corpo contra a palavra (1993), Jane Russo refere-se a esse processo emostra que a proliferação das terapias corporais é um desdobramento recente, aolado do lacanismo, do boom da “cultura psi”, marcada pela difusão da psicanálisenos anos 70.9 Essas terapias, que fazem parte do que a autora denomina “comple-xo alternativo”, estabeleceram uma significativa diferença com respeito à teoria eprática dos lacanianos: enquanto estes últimos caracterizaram-se pela ênfase notexto, na palavra, o antiintelectualismo dos “alternativos” levou-os a privilegiar aemoção, a sensação, a intuição: é no corpo que eles vão buscar seu ponto deinflexão.

Russo, que nesse trabalho se dedica sobretudo às terapias corporais de ori-entação reichiana, destaca o que denomina fluidez do complexo alternativo, resul-tado, segundo ela, da indeterminação de suas fronteiras e da interpenetração entresuas diversas práticas.

No entanto, observando a rotina dos espaços que oferecem tanto terapiascomo práticas corporais, pode-se perceber a consolidação de uma forma “canôni-ca”, uma sintaxe particular, se não dos tratamentos propriamente ditos (cada qualpossui sua própria metodologia), ao menos das múltiplas vivências inspiradasneles. Eis uma seqüência muito seguida: os participantes, descalços, dispõem-seem círculo (em pé, ou sentados em almofadas), dão-se as mãos (para estabelecer ecompartilhar fluxos de energia), cantam e/ou dançam; como variantes podem serpropostos o “grito primal”, o uso de instrumentos de percussão e “lutas” ritualiza-das:

(...) “Após os aplausos e cumprimentos aos formandos seguiu-se a cerimônia deharmonização. Os presentes deram-se as mãos formando quatro círculos concêntri-cos. Sidney colocou um mantra tocado e cantado em uníssono pedindo a todos quefechassem os olhos e sentissem a energia do grupo fluir por suas mãos. Com suafala suave falou sobre a necessidade de se encontrar a paz e o amor em todas ascoisas durante todo o tempo para que todos pudessem vibrar em uníssono como omantra. Enquanto ele falava, as pessoas começaram a acompanhar a música comsons nasais e a balançar-se para um e outro lados (...).”10

O relaxamento, em meio a uma atmosfera de silêncio e penumbra, commúsica suave, onde o olhar introspectivo explora os segredos do “eu interior”,funciona como alternativa ou complemento àquelas vivências mais grupais eexpressivas. Nesses casos, o “focalizador” dirige a mentalização:

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(...) “Imaginem uma luz azulada que entra pelas plantas dos pés, percorre o corpopela pele e nervos, concentra-se nos quadris, sai pelas palmas das mãos; adiante, háuma caverna esculpida na rocha, numa magnífica floresta. Um impulso interior levaa entrar. Lá dentro um sábio, de barbas brancas, que é o sábio interior de cada um(...).”11

Os participantes são levados, na seqüência, a relatar suas emoções, experi-ências interiores e sensações. O resultado é uma maior aproximação entre aspessoas, já que os depoimentos, até por seguirem um determinado padrão narrati-vo, mostram que essas experiências percorrem caminhos comuns:

(...) “Embora o objetivo deste Ritual da Lua Cheia tenha sido despertar certasvirtudes nos participantes, este tem como efeito secundário promover uma aproxi-mação entre pessoas que em geral se desconhecem totalmente. Ou seja, aproximan-do-se em princípio por apresentarem os mesmos defeitos (ou vícios), pelo ritual, aspessoas se identificam pela manifestação de um propósito comum. Além disso, opróprio ritual na medida em que aproxima fisicamente as pessoas e faz circular‘energia’ entre elas também parece criar uma certa identidade de grupo. Nessesentido os cumprimentos frios da chegada são substituídos na despedida por conver-sas paralelas, trocas de impressões e até mesmo por uma despedida mais calorosa(...).”12

Tal tipo de vivência não se restringe aos espaços especialmente dedicados àsterapias: se nestes segue-se uma metodologia mais completa e sofisticada, formasmais simples são aplicadas ao término de palestras, encontros, workshops emqualquer um dos demais espaços. Aqui também, como se pode perceber, funcionaum gradiente homólogo ao sugerido pelo esquema erudito/participativo/ocasio-nal: as modalidades mais elaboradas correspondem ao padrão erudito enquanto asmais simples se situam na outra ponta do continuum.

Em todos eles, contudo, percebe-se a ênfase na valorização de uma realida-de interior e dos processos de transformação espiritual em que a referência é aexpressão das experiências pessoais, o cultivo da individualidade. Pode-se mesmodizer que, entre os fatores que caracterizam o ethos neo-esô, este é o que suscitarara unanimidade; do discurso corrente às interpretações mais sofisticadas, deuma leitura mais religiosa à atitude mais pragmática, da visão mística à psicologi-zante, num aspecto todos estão de acordo: o eixo dessa “nova consciência”, oplano privilegiado da “nova espiritualidade” é o da individualidade. As ênfases,assim como as denominações, variam — “eu interior /eu superior”, inner self,“lenda pessoal”, inner voice —, mas todas remetem, cada qual à sua maneira,àquele elemento que no modelo da narrativa de base constitui um dos vértices dotriângulo.

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Como já foi explicitado, esse núcleo íntimo contém em germe potencialida-des passíveis de desenvolvimento porque abriga uma centelha do Princípio deonde emanou; não se trata, porém, do binômio Queda/Remissão — aquela emrazão de uma ruptura, esta por obra da graça divina —, mas de uma progressiva(ou súbita, em alguns casos) tomada de consciência de um vínculo sempre exis-tente.

Todo sofrimento, todo mal, toda doença ou desordem advêm de algum tipode falência no trânsito entre os planos que compõem a individualidade e entreesta e os outros pólos da relação; e todas as práticas — terapias corporais, medita-ção, técnicas de respiração, alimentação natural, massagens, rituais, augúrios —têm como objetivo último desobstruir os canais de comunicação no interior domicrocosmos (corpo/mente/espírito) e em seu contato com o macrocosmos, deforma que a energia possa fluir alimentando a vida, abrindo a consciência, produ-zindo a necessária harmonia e o conseqüente desabrochar pleno do “eu inte-rior”.13

Não é pois de admirar que o papel desempenhado pelo indivíduo nesseesquema tenha suscitado linhas de análise que buscam explorar as inter-relaçõesde algumas características ligadas à chamada Nova Era com a ideologia indivi-dualista típica da sociedade moderna, da qual o “expressivismo psicológico” éuma de suas manifestações. Este último, segundo Amaral (1998:51-52), é o resul-tado da articulação de duas facetas ou modalidades do individualismo moderno:uma que busca numa natureza humana, perfeita e universal, a libertação de pres-sões e injunções externas, tidas como artificiais, e outra que se volta para ocultivo da personalidade individual com suas idiossincrasias.

Assim, o expressivismo psicológico, enquanto cultivo de características in-dividuais e subjetivas cuja base é uma natureza acabada e idêntica, é o fundamen-to dessa incessante busca de autoconhecimento, auto-aperfeiçoamento dos neo-esôs. Os “expressivistas”, diz Heelas, “estão interessados em si mesmos: em suanatureza e naquilo em que eles poderão vir a ser” (op.cit.: 144).

Essas análises têm ainda em comum o próprio recorte sociológico: trata-sebasicamente de setores das camadas médias urbanas, permeados pela ideologiaindividualista e expostos a veículos e ideologias da modernização, o que, paraSalém (1985:18), os leva a consumir as terapias alternativas.14 Modernização/in-dividualização/psicologização: eis o tripé que, segundo Russo (:37), é acionadoquando se discute o ethos de grupos pertencentes a essas camadas, no interior dasquais insere sua própria pesquisa sobre as terapias corporais de inspiração reichia-na. Com base no enquadramento teórico dumontiano, que articula individualismoe hierarquia “como duas configurações de valores que regem diferentes tipos de

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sociedades (:13),15 Russo recorta seu objeto de estudo no processo mais amplo dedifusão das práticas psi entre estratos médios urbanos no Rio de Janeiro.

Em busca de fundamentação, a autora, a partir de conceitos não só deDumont como também de Simmel (deste último retém o termo uniqueness, singu-laridade), propõe-se a buscar uma conciliação entre duas perspectivas: a desenvol-vida por Da Matta, que, segundo ela, enfatiza o individualismo jurídico —passagem da noção de pessoa para a de indivíduo, o que supõe primado daigualdade, de leis universais —, e a vertente mais psicológica desenvolvida porVelho. Assim, se no plano jurídico individualismo implica igualitarismo e leisuniversais, no plano psicológico significa antes “singularidade”, ou seja, acarretaa idéia de opção pessoal, ênfase no espaço interno e nas qualidades inerentes decada um, em detrimento da posição dada de antemão na sociedade.

Existe uma noção, contudo, que, tanto quanto a de indivíduo, entra na com-posição da ideologia das terapias corporais e das práticas “alternativas”, segundoRusso: é a de energia. Citando Soares — “energia é a moeda cultural do mundoalternativo, que prepara o terreno simbólico para o desenvolvimento de umalinguagem comum, independente das diversidades” (1989:129) —, conclui queexiste aí um paradoxo: de um lado um indivíduo quase rousseauniano e, de outro,uma totalidade cósmica, corporificada na noção de energia. Como resolver? Naverdade, o paradoxo é aparente: trata-se de uma totalidade que não contradiz ospressupostos básicos da ideologia individualista. As terapias corporais (e as alter-nativas em geral) continuam sendo individualistas: não são holistas/totalizadorasporque não supõem uma perspectiva hierárquica, como deveria ser segundo oesquema de Dumont a propósito das sociedades tradicionais:

“Mais do que uma concepção totalizante (ou holista) do mundo, o que parece haveré uma concepção universalizante de homem, na qual todo ser humano encerradentro de si, não a humanidade — como seria típico do universo individualista, masa natureza. A natureza é uma categoria de caráter nivelador e igualitário, que sobre-puja as diferenças sociais e nega a possibilidade de diferença cultural.” (:192)

Em suma, a cultura psicológica dos anos 80 volta-se para a singularidade e adiferença como representações ideais dominantes, deixando para trás o ideal deigualdade, hegemônico nos anos 70, configurando assim uma espécie de passa-gem do projeto igualitário para o reinado da singularidade, com a correspondentedissociação estrutural do campo psicanalítico (:201). Os “alternativos” fazem-sepresentes nesse campo onde trabalham

“(...) com a concepção de um indivíduo pleno de poderes, que tira sua força dacomunhão com a natureza, capaz de curvar a sociedade a seus desejos e impulsos.Indivíduo que comunga com seus semelhantes não uma cultura ou uma linguagem,

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mas a imersão no oceano cósmico da Energia Vital. E que, por isso mesmo, se fazna mais completa solidão” (:203) [grifo meu].

Na mais completa solidão?... É aqui que identifico um significativo ponto deinflexão com respeito a essa linha de análise que (com razão) enfatiza o caráterindividualizante do “mundo alternativo”, composto por pessoas que se ligam por“escolhas e afinidades”, como bem afirma Salém (:7).

Com efeito, além do indivíduo há outro elemento que, juntamente com atotalidade, completa o triângulo de base da narrativa neo-esô descrita: é a noçãode comunidade.16 E se entra como um dos termos do modelo de base dessanarrativa, reaparece como fator responsável, também, da sensibilidade caracterís-tica do modo de vida neo-esô.

Não se trata da comunidade consangüínea, rural, permanente e isolada, refú-gio dos “renunciadores” da contracultura, fugindo do mundo.17 É a comunidadeque se constrói na metrópole, efêmera, de fim de semana, que permite recarregaras baterias para enfrentar com êxito as vicissitudes do cotidiano da grande cidade.E que se dissolve ao final de cada curso, palestra, vivência, mas permanece viva,só que em estado latente, ancorada no “circuito”.

Não se trata, também, da network descrita por Salém (op.cit.) como “desta-cada de ancoragens geográficas (...) que une indivíduos dispersos no meio urba-no”,18 mas de uma rede hierarquizada e objetivada em espaços, lojas, centros comendereços na cidade e que pode ser recomposta a todo momento — se não com asmesmas pessoas, ao menos com algumas delas e outras novas; todas, porém, àvontade com os padrões discursivos e de comportamento, assim como com osvalores e o jargão do circuito, seja o xamânico, o taoísta, o tibetano, o dasmassagens, o da programação neurolingüística, o do neopaganismo ou de suaversão feminina, wicca...

É no contexto dessa comunidade de feições e dinâmica tão peculiares quetranscorre uma sociabilidade alimentada por trocas de pontos de vista, leituras,objetos, experiências de viagens no contexto do “pedaço” de cada um — aqueleendereço onde os laços de lealdade são mais fortes —, mas principalmente nos“circuitos” ao longo dos quais se recortam os “trajetos” personalizados.

Trajetos vivos, cambiantes, sempre prontos a agregar mais um ponto, quan-do se tem notícia, por exemplo, do lançamento de um livro19 sobre meditaçãoch’an que atrai não só os freqüentadores da medicina taoísta, mas também inte-ressados provenientes de outras correntes ou tradições: é sempre uma boa ocasiãopara fazer novos contatos, degustar um chá, escutar um novo disco de worldmusic. Nessas ocasiões termina-se sabendo de tal ou qual show de monges tibeta-nos, da palestra e vivência com um renomado especialista da Califórnia, ou davinda de algum xamã do altiplano com novidades em seu alforje...

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Essa é, na verdade, uma dinâmica comum a outros circuitos que a metrópolemultiplica — os circuitos de lazer, de reciclagem profissional, do consumo cultu-ral (livrarias, galerias, cines de arte, exposições) pelos quais se tem acesso ao usoe desfrute de certos bens e serviços altamente especializados e que só ocorrem naescala da grande cidade.

Esse contexto metropolitano, cosmopolita, que favorece a disseminação daspráticas neo-esôs, inclui também — basta verificar os anúncios de vivências emsítios e chácaras nas imediações do perímetro urbano e de excursões — outroelemento formador de uma sensibilidade própria que em maior ou menor grau sedissemina pelo meio neo-esô: é a relação que se estabelece com a natureza,realidade que se pensa estar regida por seres guardiães, espíritos protetores, forçase energias espirituais:

“Já em nosso primeiro dia na cidade (14/7), na entrada da Gruta do Sobradinho foicumprida uma espécie de ritual que se repetiria todos os outros dias. Antes de‘invadir’ qualquer um daqueles ambientes naturais, pedia-se licença aos domíniosmineral, vegetal e animal para desfrutar de toda a sensação de liberdade, paz, calma,revitalização, que o mundo natural nos oferece.” (...)(...) No Carimbado a nossa guia foi a Sheila, que também realizou uma vivência nointerior da gruta, no sentido de sentir o ambiente que estava a nossa volta. Aslanternas foram apagadas para que buscássemos trabalhar nossos outros sentidos. OVale das Borboletas foi outro lugar escolhido para purificar os cristais. Quem quispôde realizar uma consulta de radiestesia com a Bethy, procurando verificar oestado de equilíbrio dos sete chakras do corpo humano (básico, umbilical, plexosolar, cardíaco, laríngeo, terceiro olho e coronário). O Vale foi eleito pelos integran-tes do grupo como o lugar mais fascinante de toda a excursão. Alguns viram tocasde duendes (pequenos buracos encravados na maioria das vezes nas encostas datrilha), Marcelo viu uma fada: ‘Uma fada cor-de-rosa passou cobrindo toda aregião’.”20

Abre-se aqui uma interessante e polêmica interseção entre o universo doneo-esoterismo, a ecologia e os movimentos ambientalistas.21 Mais uma vez,está-se diante de um espectro que vai de uma visão rotulada de ingênua, a quepovoa a natureza de “elementais” — duendes, gnomos, elfos, salamandras, fadasetc.22 —, até uma perspectiva mais erudita, que incorpora perspectivas de maiorconsistência, segundo parâmetros ditados pelo discurso científico, como a já men-cionada “Hipótese Gaia”. Seja como for, uma consciência difusa de respeito eproteção ao meio ambiente, que muito deve aos valores próprios do universoneo-esô, ultrapassa os círculos mais restritos e militantes do movimento eco-lógico.

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A reverência aos elementais, a procura por produtos não contaminados ouainda a busca de sintonia com o equilíbrio energético do planeta — atitudesmotivadas por diferentes visões dentro do universo neo-esotérico em face danatureza e do caráter místico de que é revestida — migram para o domínio de umpúblico mais amplo, contribuindo para a disseminação de uma sensibilidade queacaba sendo incorporada ao senso comum.

Há, evidentemente, outras aproximações entre ecologia e neo-esoterismo.Luc Ferry, no livro A nova ordem ecológica (1994), mostra os aspectos filosóficoe político entre duas visões de ecologia: uma ainda antropocêntrica, humanista,ou seja, que subordina a natureza aos interesses do homem, e outra, radical, adeep ecology, que postula um valor intrínseco à natureza. Essa oposição terminapotencializada por outras dicotomias e posturas políticas mais conhecidas entredireita e esquerda, maioria e minorias, feminismo e opressão masculina. Umasugestiva variante dessa discussão é o “ecofeminismo” que, conforme algumasversões, postula a íntima relação entre as duas frentes de luta, ecologia e feminis-mo, pelo fato de a mulher não ter rompido com a natureza, em virtude dosmecanismos peculiares de seu próprio corpo:

“Mary O’Brien dedica-se, na mesma ótica, a mostrar como a ‘consciência reprodu-tora’ da mulher é experiência de uma continuidade fundamental com os ritmosbiológicos ‘em conseqüência de ela própria ser nascida do trabalho de uma mulher.Esse trabalho vem confirmar a coerência genética e a continuidade da espécie’, emcontraste com a consciência reprodutora do homem, que é descontínua e lagunar. Oprocesso da reprodução apresenta-se assim como um ‘ato de mediação e de sínteseque confirma empiricamente a unidade da mulher com a natureza’. É, portanto,nessa simbiose que deve se inspirar um discurso ecológico coerente” (Ferry, op. cit.:163).

Ecos dessa discussão teórico-política chegam ao universo neo-esô sob ou-tras roupagens, as de uma visão em que a natureza e determinados aspectos dofeminino (mas não do feminismo) são revestidos de uma aura mística. A presençada mulher no meio neo-esotérico, aliás, é de tal forma marcante — não apenaspela proporção de sua participação, mas como formadora da sensibilidade domi-nante no ethos neo-esô — que merece destaque.

Como já foi assinalado, a maioria das análises sobre o fenômeno do neo-esoterismo — seja de corte acadêmico, ensaístico ou da mídia — concorda numponto, o perfil geral de seu público característico: é de classe média, adulto emajoritariamente feminino. A pesquisa que está na base deste trabalho não proce-deu a nenhum levantamento quantitativo sistemático capaz de referendar ou ques-tionar tal impressão; no entanto, tomando como base a observação dos eventosque foram objeto das etnografias e os depoimentos de pessoas ligadas ao meio, é

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possível, ao menos como primeira indicação, confirmar até mesmo com porcenta-gens recorrentes o caráter basicamente feminino da freqüência às práticas neo-esotéricas, como se pode apreciar no quadro abaixo:

Evento EspaçoPúblico

Masc. Femin. % Femin.

“Bazar das Estrelas” — ba-zar de Natal e entrada doverão

Kiokawa Cultural, 12/12/93 10 90 90

“Ritual da Primavera” Aruna-Yoga, 24/9/94 3 14 83

“Encontro Imagick deNatal” Imagick, 16/12/94 28 42 60

“Cerimônia de canto da LuaCheia”

Instituto Nyingma do Brasil.27/3/94

25 25 50

Ritual da Lua CheiaPaz Géia — Instituto dePesquisas Xamânicas,18/12/94

6 24 80

“Integração do homem coma natureza”

Excursão eco-esô a SãoThomé das Letras (MG)Elo Cultural, 13-17/7/94

2 10 83

“Diwali — festival dasluzes”

Aruna Yoga – excursão aAvaré (SP), 28,29,30/10/94

14 60 80

“Festival de Yoga eMeditação”

Instituto 3HO: Serra daCantareira — (SP) 21, 22,23/4/95

8 15 65

“Demonstração de pinturasumiê”

Centro de EstudosFilosóficos Assoc. PalasAthena, 30/10/93

11 25 70

“O cristal encantado”: proje-ção e análise de filme

Paz Géia – Instituto dePesquisas Xamânicasout. 1994

— 5 100

Palestra “A tradição milenardo guerreiro sem armas”

Paz Géia — Instituto dePesquisas Xamânicas,11/11/94

4 6 60

Lançamento do livro MenteZen, mente de principiante

Centro de EstudosFilosóficos Assoc. PalasAthena, 27/9/94

20 80 80

Palestra “Tarô: uma leiturado Brasil”

Paz Géia — Instituto dePesquisas Xamânicas17/10/94

9 20 70

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Note-se que, seja qual for a dimensão do encontro, evento, ritual — consti-tuído por poucas pessoas, ou conformando um grupo maior, de até setenta, cemparticipantes —, não só se mantém a predominância feminina como a própriaproporção revela-se estável, em torno de 70% (68,5%, para ser mais preciso).Essa porcentagem, aliás, é confirmada por alguns dirigentes de centros situadosno circuito neo-esotérico.

Mardoqueu Lopes, da Aruna-Yoga, por exemplo, fornece alguns dados reve-ladores, em depoimento concedido no primeiro semestre de 1994. Os númerossão os seguintes: à época da entrevista, o espaço contava com setenta alunosregulares, inscritos nos diferentes cursos; em torno de 2 mil pessoas já haviampassado pela casa, nos últimos quatro/cinco anos (era esse o total da mala diretade que dispõe). Desse conjunto, entre quinhentas e mil pessoas podem ser consi-deradas como mantendo algum vínculo com a casa, ou seja, têm-na como pontode referência; do público que participa dos rituais, 80% são constituídos poralunos; 10% são ex-alunos e 10% vêm pela primeira vez; escolaridade: 100%universitária; idade: entre 27 e 40 anos. E 75% são mulheres, conclui.

Tarcísio da IMCA SOL, em entrevista concedida em 15 de outubro de 1992,diante da pergunta “Qual o tipo de público?”, responde:

R. Feminino. 95% são as mulheres.

P. Você tem alguma coisa para explicar isso?

R. Tenho e não tenho, né? Eu acho que a mulher, na verdade, ela é... Como é que euposso explicar isso pra você? Não é mística não, porque o homem também é místi-co. Ela é, mas a mulher... Como é que eu posso passar isso para vocês? Ela é muitomais simples, a mulher, porque acontece o seguinte: existe uma coisa em cabala quea gente chama de ser perfeito, o triângulo perfeito, e na cabeça desse triângulo vocêtem o ser andrógino, aí você tem o homem e a mulher, certo? Isso a gente aprende oseguinte: por que o andrógino é perfeito? Porque ele assume os seus dois lados,certo? O homem sofre porque nunca aceitou o seu lado feminino e a mulher hojesofre porque quer assumir o lado masculino do homem, então fica essa confusão.Então eu acredito que a mulher vem querendo se antecipar ao homem há muitotempo. Esse lado de profissionalismo, essa liberdade, negócio de libertação femini-na, ela vem querendo se antecipar ao homem e acho que é o que vai acabar aconte-cendo, porque na parte esotérica, e não é só aqui, acho que 90% são as mulheres quesaem na frente, entendem, 90% são mulheres.23

Isoladamente, tais dados não teriam maior significado; no contexto da pes-quisa, entretanto, apontam uma pista que pode ser seguida e complementada comoutro tipo de informação: os quadros de referência no interior dos quais essapresença é pensada. Não se trata de uma justificativa na linha do discurso femi-

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nista, mas de uma fundamentação cósmica, mitológica: são os temas da “MãeTerra”, “O Princípio Divino Feminino”, “A Grande Deusa”, “Mãe Cósmica”,“Mãe Natureza” e outros, como se pode perceber neste trecho encontrado emfolheto do Espaço Orion:

“O Princípio Divino Feminino, por tanto tempo negado, degradado e subordinadopelas sociedades patriarcais, renasce na consciência de homens e mulheres atravésdo resgate dos valores espirituais, da valorização do amor e da compaixão, dapreservação da natureza e respeito pela vida e da reavaliação das relações entre osseres e o Universo.”

Valmira Simão, do Espaço Kiokawa Cultural, respondendo à pergunta“Você anda lendo alguma coisa a respeito”, revela que:

“Voltei a ler As Brumas de Avalon, que é o lance da magia; tenho lido muitas coisas dofeminino, do casamento do sol com a lua, que é uma terapêutica junguiana; comprei olivro da Cris que é a fusão do feminino. Eu estou rodando nestes temas, que é dofeminino, da magia, da sincronicidade. (...) Agora fui na Zipak, queria um livro de tarô;ela me deu uma pilha; olhei e queria ver o que tinha mais, fui olhando e perguntei o quetinha do feminino; disseram que tinha os mitos do feminino e eu comecei a folhear.Achei esses três e não levei nada de Tarô”. (Trecho de entrevista, 21 out. 1993).

As explicações internas ao campo neo-esotérico vão buscar argumentos emmuitos domínios. A entrada da Era de Aquário, citada como responsável pelaatual onda mística, é também motivo para a significativa presença feminina:

“Olha, tem muitas mulheres, a maioria geralmente é mulher. Tem a explicação anível esotérico, astrológico. É o seguinte: a gente entrou na era de Aquário. O signode aquário é um signo de natureza rebelde, revolucionária, ou seja, as ondas queemanam de Aquário são as ondas de libertação, e Urano tá muito ligado com asexualidade. Urano é o regente de Aquário. Então a cada período de rotação deUrano (...) que dura 84 anos (...) ele muda sua influência sobre determinado pólosexual, o pólo feminino e o pólo masculino (...) o período que a gente está se situajustamente naquele momento que Urano está denotando uma maior influência, ummaior impulso ao pólo feminino (...) e não é só em relação ao esoterismo, a mulherestá dominando em praticamente todos os campos (...). Está havendo uma grandemodificação, a gente tem participado de vários congressos esotéricos, feiras e opúblico feminino é gigantesco.”24

Uma outra vertente para a explicação da presença da mulher no universoneo-esotérico e a valorização de seu papel é o resgate da figura da bruxa, conside-rada uma forma de poder tipicamente feminino. No dia 27 de abril de 1994, oPrograma Amaury Júnior da TV Bandeirantes apresentou “Bruxas Modernas”, no

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qual entrevistou cinco mulheres de destaque identificadas como “bruxas”: MárciaFrazão, Norma Blum, Arlete Montenegro, Flávia Muniz e Cândida Borges.

Vale a referência, pois é também um indicador da forma como um tema, que jáfoi considerado tabu, é veiculado na mídia. Excetuando-se os aspectos “exóticos”insinuados pelo entrevistador — sobre receitas de poções mágicas, sobre o uso ounão da vassoura etc. — e que inevitavelmente seriam trazidos à baila, o programamostrou aspectos que merecem registro. Márcia Frazão (de Nova Friburgo, RJ), porexemplo, autora de alguns livros sobre bruxaria, como A cozinha da bruxa e Revela-ções de uma bruxa, faz imediatamente a relação entre bruxaria e poder feminino:

Entrevistador: Fica chateada de eu te chamar de bruxa?Márcia: Não, eu tenho muito orgulho.Entrevistador: Há quanto tempo você é bruxa?Márcia: Desde que nasci. A minha avó era bruxa, a minha bisavó era bruxa. Euvenho de uma família que tem a tradição da bruxaria.Entrevistador: Que tipo de bruxa você é?Márcia: Uma bruxa como todas são, alguém que cultiva o feminino, a tradição da lua.

Instada a falar da vassoura, sai-se com a idéia de que se trata de um símbolo eque pode estar associado, por exemplo, à limpeza de impurezas deixadas no meioambiente. Relaciona também o poder feminino com a manipulação de elementosmágicos, na cozinha. A seguir é Norma Blum, atriz, quem dá o depoimento:

Entrevistador: Norma, por que você deixou a carreira no auge — você profissional-mente estava muito bem, muito requisitada — para se transformar em bruxa?Norma: Não, bruxa eu sempre fui, no bom sentido. Desde criança que eu tinha contatocom a natureza, com essa magia dos quatro elementos (da terra, do fogo, da água, do ar)e com esses elementais. Então o meu pensamento sempre foi muito mágico. Mesmocomo atriz eu trabalhei em teatro que contava contos de fadas e estudei mitologia toda aminha vida. Eu tinha uma avó que era superbruxa. Ela contava contos de morte, contosde terror. Então ela me ajudou a despertar a minha mentalidade para toda essa coisa dosobrenatural, dos mundos paralelos, do que é diferente. Então, não é que eu tenhaabandonado a minha carreira, é que atualmente com todos os cursos que a gente estádando, de autoconhecimento, de astrologia, de magia do amor...

Como se vê, o poder da bruxa é pensado como uma faculdade que não seaprende, mas que se recebe como herança.25 Solicitada pelo entrevistador a ensi-nar “alguma coisa, aí, dessa magia do amor”, explica que o curso não se propõe afazer feitiçaria, mas a ensinar as pessoas a ficarem mais sedutoras. A poção que seaprende não é para controlar o outro, é para a própria pessoa centrar-se. No curso“a magia do amor” aprende-se a ficar harmonioso consigo mesmo, com o univer-so, aí sim é possível atrair a pessoa certa e ser feliz. E assim como o mago

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trabalha com a tradição do sol, a bruxa opera com a tradição lunar, seu trabalhoacontece à noite, as ervas são colhidas no sereno e de acordo com as fases da lua.Também autora — Exorcize sua fada madrinha —, Norma Blum aproxima a tesecentral desse livro às técnicas da neuroling|üística: trata-se de transformar deter-minados comandos cerebrais, verdadeiros “embruxamentos” negativos, recebidosna infância, em comandos positivos.

Outro indicador da preponderância feminina no universo neo-esô é a posi-ção da mulher como leitora de livros classificados como “esotéricos”. Um levan-tamento feito pelo instituto Datafolha em 1995 dos mais vendidos no mês dejaneiro desse ano, discriminando porcentagens de homens e mulheres, evidenciaque estas últimas ultrapassam os homens em torno do índice (mais uma vez) de70% nesse item. Assim, Na margem do Rio Piedra eu sentei e chorei, de PauloCoelho, teve 38% de compradores entre os homens e 62% entre as mulheres; Aprofecia celestina, de James Redfield, 30% e 64%; Maktub (Paulo Coelho), 35%e 65%; Anjos cabalísticos (Mônica Buonfiglio); 21% e 79%; Auto-estima (LairRibeiro), 38% e 62%.

Comentando os resultados, o escritor Paulo Coelho no artigo “Em defesa daleitora — sensibilidade feminina está anos-luz à frente do racionalismo masculi-no”, destaca o fato de, em primeiro lugar, os dados mostrarem que a mulher lêmais que o homem;26 em seguida — seguindo uma argumentação comum nomeio neo-esô — lembra que a sensibilidade feminina, se atendida, teria mudado orumo da história: “Na Idade Média enquanto os homens se perdiam num emara-nhado de teorias a respeito de Deus, as mulheres procuravam vivenciar a experi-ência prática da comunhão com a divindade”.

Interpretações à parte, de qualquer forma não se pode negar que no universode crenças e práticas designado de neo-esotérico o papel da mulher difere radical-mente do que ocupa em sistemas religiosos da tradição judaico/cristã/islâmica.Enquanto nestes últimos sua posição foi sempre subordinada, em termos institu-cionais e rituais, naquele, ao contrário, a mulher não é apenas cliente, mas agente— proprietária, organizadora, diretora, profissional.27

A partir de todas essas evidências, pode-se concluir que a participação damulher no universo do neo-esoterismo constitui elemento determinante na cons-trução de um certo estilo de comportamento: não se trata de um peso meramentequantitativo, pois traz consigo certas atribuições associadas a uma visão, umaestética e uma sensibilidade que se consideram, nesse meio, tipicamente femini-nas.28

Tais qualidades — intuição, predominância do “lado direito do cérebro”, oualternativamente, melhor articulação entre o dois hemisférios com o conseqüente“pensamento em rede” — são reputadas fundamentais na formulação, por exem-

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plo, de diagnósticos a partir de alguns sistemas divinatórios; a sensibilidade, aespontaneidade, o senso estético são considerados determinantes na condução dealgumas terapias corporais, danças etc. A ênfase nessas características sem dúvidacontribui para qualificar algumas das práticas do circuito neo-esotérico, dando-lhes um “tom”, mesmo quando conduzidas por homens.29

3. O estilo de vida neo-esô

Uma vez identificados alguns dos elementos formadores do ethos neo-esoté-rico, cabe, por fim, a pergunta: mas, afinal, haveria uma marca comum a todosesses “buscadores”? Em algum nível seria possível identificar traços distintivosde um “estilo de vida neo-esô” — algo correspondente àquele conhecido visualhippie da contracultura dos anos 60, com as longas saias indianas ou o conjunto“barba, poncho e sandália”?

A tarefa é tentar delinear as opções concretas que compõem o que vemsendo chamado, até aqui, de maneira indistinta, de “universo” ou “mundo” neo-esô e que pode receber a chancela de um sentido mais preciso, análogo àqueleempregado por Vilhena (1990) em seu estudo sobre astrologia.

Ao falar do “mundo da astrologia” (:96 e ss.), esse autor pretende, na linhado trabalho de Howard Becker, transcender um significado apenas alusivo: estálidando com redes sociais e “padrões de ação coletiva” que permitem o exercícioconcreto dessa prática.30 O “mundo neo-esô”, mais difuso e evidentemente maisabrangente que o da astrologia, pois o inclui, tem como base de sustentação nãoapenas uma rede social, mas, conforme a pesquisa mostrou, um sistema de im-plantação bem determinado na paisagem urbana, na forma dos “circuitos” queinterconectam espaços localizados principalmente em determinados bairros —além de algumas matrizes discursivas recorrentes e até um calendário.

O reconhecimento dessa e de outras regularidades e de sua manifestaçãopública é decisivo porque, se os neo-esôs só se comportassem como tal apenas nointerior dos seus “pedaços” — constituídos por aqueles espaços que usam comoprincipal ponto de referência —, então não projetariam uma imagem externa; ora,não foi isso que a pesquisa revelou: os valores cultivados no “mundo neo-esô”,além de reconhecidos, ultrapassam suas fronteiras, influenciando comportamen-tos para além dele.

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A pergunta é: de que forma essa determinação mais geral, a do “universo”ou “mundo” neo-esô, transparece concretamente em comportamentos, hábitos,gestos, padrões de consumo, configurando um determinado estilo de vida plena-mente reconhecido?

Quando se entra nesse campo, é obrigatória a referência às categorias dePierre Bourdieu — estruturas, habitus e estilos de vida (1983). Na análise desseautor, as categorias mencionadas encadeiam-se umas às outras a partir de umasérie de determinações: os habitus, “sistemas de disposições socialmente consti-tuídos”, ancorados em estruturas objetivas, funcionam como mecanismos de re-produção dessas mesmas estruturas.31 Por outro lado, enquanto princípiounificador e gerador de todas as práticas, eles dão unidade aos estilos de vida,entendidos como conjunto de práticas, símbolos distintivos e propriedades queexpressam as condições de existência.

Nessa seqüência, estruturas, habitus e estilos de vida não só representaminstâncias de determinação mútua, como também estabelecem, umas com relaçãoàs outras, campos mais amplos de possibilidades:

“(...) a correspondência que se observa entre o espaço das posições sociais e oespaço dos estilos de vida resulta do fato de que condições semelhantes produzemhabitus substituíveis que engendram, por sua vez, segundo sua lógica específica,práticas infinitamente diversas e imprevisíveis em seu detalhe singular, mas sempreencerradas nos limites inerentes às condições objetivas das quais elas são o produtoe às quais elas estão objetivamente adaptadas” (idem, op. cit.: 83).

A aplicação dessas categorias, por conseguinte, conservando-se o marco dereferência de origem, pressuporia, na base, uma determinação das posições soci-ais dos atores; as referências são sempre as classes, frações e segmentos de classe.

No caso das práticas presentes no circuito neo-esô, apesar de sua claraincidência nas camadas médias (mesmo que não se possa ainda fazer nenhumageneralização fundamentada em dados quantitativos), não se trata de uma deter-minação de classe stricto sensu: pertencer à classe média não é, evidentemente,condição necessária nem suficiente para aderir aos valores implícitos do universoneo-esotérico. Mas, como a pesquisa mostrou, é inegável que um conjunto decomportamentos, produtos, valores e símbolos associados a esse universo come-ça, por sua recorrência, a conformar um padrão. Nesse sentido pode-se falar numacerta unidade de “propriedades”, na terminologia de Bourdieu (que assim asenumera: casas, móveis, quadros, livros, automóveis, álcoois, cigarros, perfumes,roupas) e “práticas” (esportes, jogos, distrações culturais),32 cuja particular com-binação identifica determinado estilo de vida.33

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Se não existe uma marca ou modelo de carro associado à visão de mundodos habitués do universo neo-esô, é possível identificar um freqüentador típicodesse meio por suas escolhas e preferências diante de uma ampla gama de possi-bilidades, que vai dos hábitos alimentares ao lazer, passando pela saúde e cuida-dos com o corpo, vida intelectual e espiritual, preferências estéticas, e assim pordiante.

Para atender a essa demanda, bem específica e nada desprezível em termosde mercado, existe, como se viu, toda uma rede fornecedora de bens e serviçosque poucas ressonâncias guarda com o termo “alternativo” no velho sentido derústico, amador ou improvisado: ao contrário, voltada para a produção de benscaros e sofisticados é certamente um indicador do perfil de seu consumidor —informado, exigente, com poder aquisitivo. A descrição feita anteriormente dossistemas de classificação dos espaços e práticas do circuito neo-esô dá uma idéiado caráter empresarial dos empreendimentos; é a partir desse amplo espectro depossibilidades que as escolhas são realizadas, configurando marcas distintivas deum “estilo de vida”.

O que foi se delineando, a partir da pesquisa, é que a escolha de itens nesseuniverso não é aleatória, individual, esporádica; ainda que muitas pessoas recor-ram ao I-Ching como um inofensivo entretenimento entre amigos, ou vez poroutra procurem a acupuntura para alívio de uma renitente dor nas costas, leiamum livro de auto-ajuda e até usem um adesivo sobre sua crença em duendes —atitudes que configuram o consumidor esporádico —, é possível distinguir, paraalém de modismos e até excentricidades individuais, a configuração de padrõesmais consistentes, ao menos como tendência.

Isso quer dizer, por conseguinte, que a adesão a certas crenças, a escolha dedeterminados livros e objetos de consumo, a reorganização de itens para umadieta considerada saudável, a aceitação de determinadas práticas de saúde e novasformas de uso do tempo livre começam a se constituir em conjuntos ordenados.Estruturados com base em regras de compatibilidade definidas com relação aquadros de referência comuns mais gerais, aplicam-se idealmente ao tipo inter-mediário do gradiente, o neo-esô propriamente dito, aquele entre o “tipo erudito”(que teoricamente se pauta pelas normas de seu próprio sistema) e o “ocasional”,mais identificado com a imagem de consumidor de comportamento errático.

A primeira característica, contudo, é ainda tributária de uma visão negativa:o mundo neo-esô e seu estilo de vida ainda são conhecidos por um termo que jánão corresponde adequadamente à sua feição contemporânea: é a idéia de “alter-nativo”, na acepção de “comportamento desviante”. Essa visão, gerada a partir deatitudes associadas à contracultura dos anos 50 e 60 — enfrentamento com oestablishment, renúncia a seus valores e abandono de padrões dominantes de

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trabalho, convivência e família — já não dá conta do que efetivamente ocorre nomundo neo-esô contemporâneo, alheio ao look do velho hippie psicodélico erural.

Os neo-esôs, sem dúvida, ainda se contrapõem a valores vigentes, mas essacontraposição é matizada, seletiva: dirige-se a determinados paradigmas da ciên-cia, às distorções do sistema produtivo e da tecnologia, às agressões ao meioambiente etc. e não redunda num ideal de abandono do mundo. Ao contrário: é oideal de “prosperidade”34 que dá o tom. Heelas, por exemplo (1996:68), mostraque, não obstante a atitude “fora do mundo” ser ainda encontrável no meioneo-esô, é a sua contrária, a de participar efetivamente no mainstream da vidasocial, a mais difundida.35

O freqüentador típico do circuito neo-esotérico tem como referência umCentro Integrado (Grupo II) e, para questões mais pontuais, como saúde, algumaprática corporal específica, recorre a um Centro Especializado (Grupo III). Noprimeiro encontra, a partir da sociabilidade que aí se estabelece, uma rede maispróxima de contatos, trocas de experiências e é onde obtém respaldo para suaestratégia de cultivo pessoal, por meio das palestras, cursos, vivências. É o seu“pedaço”, atende à maior parte das suas necessidades pois, como foi mostrado, oCentro Integrado reúne quase todas as funções e atividades dos demais grupos; aíé possível comprar seus livros, incensos preferidos, velas aromáticas, chás. Étambém o ponto de referência — informações, dicas, comentários — para oestabelecimento de trajetos mais amplos e diversificados, a partir das múltiplaspossibilidades dadas pelo circuito.

O calendário de cursos e palestras estende-se pelo ano todo, havendo sem-pre a possibilidade de participar de algum workshop conduzido por especialistade fora — Ken Wilber, Stanley Krippner, Peter Russel, Alberto Willoldo. Emdatas apropriadas ocorrem os rituais costumeiros da casa; é aí também que secombinam e organizam excursões de férias para Dharamsala, Santiago de Com-postela, Ilha de Páscoa ou alguma região do Brasil especialmente dotada pelanatureza: beleza, ar puro, energias telúricas... No final do ano há sempre umafesta ou jantar de confraternização e a possibilidade, no bazar, de fazer umascompras de Natal diferentes, especiais.36

Do espaço de sociabilidade para o âmbito da rotina diária, na casa: a alimen-tação é um dos primeiros itens em que se pode apreciar o estilo diferencial doneo-esô. Não é o caso de repetir o que já é um lugar-comum: a busca de umadieta saudável pelo uso de produtos naturais livres de defensivos e fertilizantesquímicos, a preferência por grãos e fibras em detrimento das proteínas de origemanimal e produtos refinados etc. Sem, está claro, os rigores do vegetarianismo oumacrobiótica estritos, ainda que a classificação yin/yang seja uma referência.

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Importa ressaltar que essa mudança de hábito, em busca de uma melhor qualidadede vida, faz-se seguindo os princípios de matrizes discursivas mais gerais, confor-me se pode apreciar na variante oferecida por este pequeno trecho da introduçãodo livro A Culinária da Nova Era:

“(...) a culinária perfeita é a própria ciência da alquimia, em nada diferente da arteespargírica dos laboratórios dos grandes mestres: as leis cósmicas e as forças aplica-das são exatamente as mesmas (...). O retorno à simplicidade original, a compreen-são do dever individual dentro do vasto processamento cósmico é o caminho para afelicidade real e para o sentido mais profundo da vida. Se a pequena engrenagemassumir o seu papel dentro do processo evolutivo, deixará de ser uma peça malfun-cionante que perturba e impede o bom funcionamento do conjunto inteiro” (Bon-tempo, 1994:13,14).

Esse mesmo cuidado verifica-se no trato com o corpo e com questões relati-vas à saúde: a preferência é pelas terapias soft e tratamentos com base em produ-tos naturais, segundo os princípios holísticos; algum exercício, como luta, dança,ginástica, de preferência fundamentado numa “filosofia oriental”, conforme já foimencionado no capítulo 2.

A casa pode passar por uma rearrumação geral, a partir das indicaçõesobtidas pelo Feng Shui, antiga prática chinesa — agora em voga — de harmoni-zação de ambientes. A decoração fica por conta das inúmeras possibilidades decombinar objetos de artesanato indígena (amazônico, norte-americano, do altipla-no andino), imagens do panteão indiano, tankas tibetanos, pedras, cristais, incen-sários, algum bonsai e o sino de vento; a coleção de CDs pode incluir Fortuna,Enya, Aurio Corrá; mantras, música céltica, gregoriana, sons da natureza... É umfilão atraente, em termos de mercado, e o perigo de cair numa espécie de consu-mismo neo-esô está sempre presente, pois as ofertas não faltam: quem achar queprecisa pode adquirir umas “mantas protetoras contra radiação cosmotelúrica pe-tron” para colocar sob o colchão,37 ou tomar um café com anjos, encomendandoas “cestas de café da manhã angelicais” para uma ocasião especial.

Não é esse o caso, porém, do tipo-ideal que estamos tomando como referên-cia para caracterizar o estilo de vida neo-esô; já a espiritualidade, sim, é umelemento fundamental, enfatizado por vários estudiosos: D’Andrea (1998) refere-se a essa dimensão como “self-reflexive religiosity”; Leila Amaral (1998), com asnoções de “errância” e “sincretismo em movimento”, aponta para o caráter abertoda religiosidade da Nova Era. Heelas (1996), que ambos citam, fala ora em “innerspirituality”, ora em “self-spirituality”. Na base dessa espiritualidade está o “ex-pressivismo psicológico”, já mencionado, que abre um campo específico de dis-cussão; cabe apenas lembrar a distinção entre os três planos muitas vezesconfundidos nas análises mais correntes: religião, religiosidade, espiritualidade.38

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Apesar de alguns templos religiosos integrarem o circuito neo-esô, este nãose caracteriza como religião; mais recorrente, entretanto, é a preocupação com aespiritualidade, na condição de experiência pessoal expressa em formas idiossin-cráticas individualizadas.

Já a religiosidade, entendida como um estilo coletivo de expressar o senti-mento religioso, aparece em algumas modalidades. Os arranjos concretos de suamanifestação podem variar, mas uma sensibilidade para com a dimensão do sa-grado, antes vivido como experiência do que tomado na forma de um conjunto deverdades reveladas, está presente como mais um componente do estilo de vidaneo-esô e se expressa em gestos simples e cerimônias inventadas ad hoc paracontemplar a lua cheia, celebrar o “fogo sagrado”, reverenciar a “Mãe Terra”,invocar o “animal de poder”.

Outra dimensão, de crescente importância na vida contemporânea, em quetransparece o estilo neo-esô é a do lazer. As preferências observadas nesse campo,aberto a um leque mais amplo de alternativas e escolhas — este ou aquele show,cinema, peça, música ou leitura —, são reveladoras da escala de valores dosusuários. No caso do mundo neo-esô, não se trata apenas de apreciar os itens quenormalmente são classificados como lazer, pois grande parte de suas atividades jáapresenta um caráter lúdico, desde (para alguns) o preparo do alimento, passandopelos cuidados com o corpo e a saúde até os próprios cursos e palestras freqüenta-dos.

Os cursos, por exemplo, são seguidos não por obrigação e sim pela busca decultivo e aprimoramento de potencialidades pessoais; o mesmo pode ser dito dasvivências e ritos, diferentemente da rotinização dos cultos dominicais de muitasreligiões. Uma interdependência entre celebrações, entretenimento e criação devínculos ocorre também naquelas atividades mais identificadas com o lazer, comoas excursões “eco-esôs”, o turismo por “lugares sagrados”, as vivências de fim desemana em sítios e chácaras.

Há eventos de grande porte e repercussão para além do calendário neo-esô,realizados em espaços e instituições de maior visibilidade na cidade, como oCentro Cultural São Paulo (da Secretaria Municipal de Cultura), Teatros do Sesc(Pompéia, Vila Mariana) e outros mais que passam a integrar, momentameamen-te, o circuito esotérico. Um exemplo é o Festival Internacional de Artes Cênicas,que no ano de 1998 trouxe, entre outros, as Danças Sagradas do Tibete com osmonges do Mosteiro de Shetchen, as Danças Tradicionais de Manipur, o Conjun-to de Percussão do Templo de Kerala.39

E como não poderia deixar de ser, além de sites na internet especialmentededicados a seus temas, os aficionados fazem uso de chats e mailing lists. Acomunidade de interesses e intercâmbio de pontos de vista, propiciados pela

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convivência e a circulação pelo circuito (o real e o virtual) terminam até criandocódigos só entendidos pelos iniciados: por exemplo, em vez de “feliz aniversá-rio”, é comum o uso da expressão “bom retorno solar”; “já passei pelo retorno deSaturno” substitui “já passei dos trinta anos”, com a conotação de “experiência devida”, e assim por diante. Foi cunhado até um termo especial, “esquisotéricos”,para se referir aos que se deixam levar pelos modismos e pelo lado consumista domundo neo-esô, descuidando o estudo e a busca mais séria da autotransforma-ção.40

Anúncios na coluna “Clube da Comunicação” da revista Planeta remetem avários desses códigos; declinar o próprio signo é fundamental na busca de conta-tos:

“Desejo conhecer pessoas que gostem de música new age, da natureza e tenhaminteresse pelos grandes centros energéticos do planeta. Sou espírita, estudante deastrologia, viagem astral, alma gêmea e me interesso muitíssimo por várias outrasciências espiritualistas. Estou com 40 anos, meu signo é Capricórnio, tenho ascen-dente em Câncer e Lua em Peixes.” (Paulo R...) Revista Planeta, out. 1998

“Tenho 33 anos e sou virginiana. Gosto de música, de ler livros sobre arqueologia,ufologia e magia e de estar em contato com a natureza. Quero contatar pessoas demente aberta para troca de informações e para uma amizade sincera.” (Rose...)Revista Planeta, jan. 1999

“Estou com 31 anos e sou libriana. Gostaria de ampliar meu círculo de amizades etambém conhecer pessoas espiritualistas que, como eu, se interessam por filosofiaoriental, terapias alternativas, magia e que gostem de palestras, cinema, teatros eparques.” (Marina...) Revista Planeta, abr. 1999.

Encerra essa caracterização um fato que ilustra certo aspecto pouco reco-nhecido do estilo de vida neo-esô: diferentemente de uma imagem bastante co-mum, não se está diante de pessoas sensibilizadas por temas irrelevantes ditadospor uma visão romântica ou ingênua de ecologia e alienadas com relação aprocessos sociais e políticos mais amplos. Ao contrário; verifica-se até mesmo umnível de militância que, se não se pauta por agendas partidárias, atua em váriosplanos, principalmente nas áreas do meio ambiente, qualidade de vida, direitos docidadão, em alguns casos por meio de ONGs e associações.

Assim, um exemplo dessa atuação pode ser apreciado na forma como algu-mas atividades próprias do universo neo-esotérico se desenvolveram no ParqueÁgua Branca, zona oeste da cidade de São Paulo. Esse parque, oficialmente“Parque Fernando Costa”, fundado em 1929, vem abrigando várias instituições,públicas e privadas, como o Fundo Social de Solidariedade do Governo do Esta-do, Núcleo de Escoteiros, Museu de Geologia, diversos centros de pesquisas,

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associações de criadores de animais (búfalos, cavalos mangalarga, árabe e ou-tros). Sedia também eventos, como exposições, shows, e é bastante utilizadocomo área de lazer sobretudo nos fins de semana em virtude de sua área verde,convidativa para passeios, caminhadas e atividades similares. Desde 1991 nelefunciona, nos sábados de manhã, a Feira de Produtores Orgânicos.

Tudo começou quando se soube da resistência, por parte da administraçãodo parque, em renovar a licença para essa feira continuar usando um galpão paraa venda de seus produtos. Correu a informação de que o espaço seria usado paraalojamento dos peões que acompanham, montam e desmontam as feiras, leilões eexposições de animais de raça e implementos agropecuários.

Paulo e Cândida Meirelles,41 que possuíam uma banca de ervas medicinaisna já concorrida “feira natural”, mobilizaram-se pela manutenção desta e deoutras atividades que estavam sendo ameaçadas pelo uso cada vez mais intenso,por parte das associações de criadores de animais e pela proliferação de pontos devenda das mais variadas mercadorias, em detrimento de uma ocupação do espaçoe dos equipamentos do parque gratuita e aberta ao público.42

Também ameaçada pela crescente expansão dos expositores e vendedores,estava uma aula aberta de tai-chi-chuan, no espaço conhecido como bambuzal: apérgola ao lado já estava sendo usada para a venda de orquídeas e implementos dejardinagem. Quando começou a mobilização, o ocupante logo notou e, alto e bomsom, fez saber sua opinião pouco amistosa a respeito “dessas velhinhas que vêmaí fazer ginástica...”.

Então, no dia 28 de abril de 1996, aconteceu, como havia sido anunciada, afundação da nova associação de usuários do parque, denominada Associação dosAmbientalistas e Amigos do Parque Água Branca (ASSAMAPAB). Um de seusobjetivos, conforme constava dos abaixo-assinados que circularam previamente,era atuar mais firmemente junto à administração, representando aqueles usuárioscujos interesses vinham sendo prejudicados.

O ato culminou com uma festa, dali a três semanas, quando a “feira natural”completaria cinco anos. A programação previa café colonial orgânico, em mesi-nhas no pátio defronte o galpão; aula aberta de yoga, com o professor AndersonAllegro, do Espaço Aruna; prática de tai-chi com o professor Jair Diniz; palestrasobre alimentação natural com o professor Tadeo, do Espaço Transmuther Athio-nem; apresentação de música new age a cargo do compositor e instrumentistaWalter Pini, do Projeto Musiconsciência, e, finalmente, exibição da dança Bum-ba-Meu-Boi pelo Grupo Cupuaçu, além de uma bandinha circense.

A partir de então, o parque mudou de cara — passou por uma série dereformas, recebeu sinalização adequada, teve o uso dos espaços disciplinado eterminou sendo tombado, em junho de 1996, pelo órgão estadual de defesa do

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patrimônio cultural — CONDEPHAT. Como se pode apreciar, foram obtidos resul-tados bastante concretos, desencadeados por uma tomada de consciência do direi-to sobre o uso do espaço público e levada a cabo por pessoas que participam, emdiversos graus, de atividades identificadas com o universo neo-esô, aliadas apreocupações relativas à ecologia, cidadania, qualidade de vida.

Assim, a feira — fiscalizada pela Associação de Agricultura Orgânica — foimantida, e a ASSAMAPAB passou a editar o boletim “Amigos do Parque”, incenti-vando e divulgando uma extensa programação cultural no qual o estilo de vidaneo-esô marca sua presença. Mas — e este é o fato digno de nota — não de formaexclusivista; ao contrário, bastante integrada a outras atividades, grupos e institui-ções.

O termo empregado para nomear a nova programação e o cumprimento detodas essas tarefas foi “parcerias”, com políticos, com a nova administração doparque, grupos de teatro, ecologistas, terapeutas e espaços do circuito neo-esô.Dessa forma, ao lado de aulas de tai-chi, lian gong, aiki-dô e yoga, aparecempalestras sobre o autismo, cura prânica, alimentação natural e medicina orto-molecular; são divulgadas e oferecidas inúmeras opções como lazer para a tercei-ra idade, oficinas de reciclagem de papel, observação de pássaros e trilhas ecoló-gicas monitoradas, artes populares (teatro, música, dança) e até vivências xamâ-nicas.

O ponto de referência, sem dúvida, continua sendo a feira. Porém, não setrata apenas de comprar e consumir; é preciso apreciar, comparar e sobretudoconversar. O espaço do “Café Colonial Orgânico”, com suas mesinhas à entrada,oferece essa oportunidade. Leite, café, sucos, tortas, pães, geléias, queijos, prove-nientes da própria feira, podem ser degustados após as compras; os adeptos dascaminhadas ou corridas matinais também costumam freqüentar o espaço para umsaudável coffee-break. É nele que às vezes se arma um tablado para a apresenta-ção de música new age, ou de alguma outra performance; é aí também que índiosXavante vez por outra expõem objetos provenientes da aldeia de Idzô’uhu e ondeo Grupo Qualis distribui folhetos sobre um plano de saúde com “600 dos melho-res profissionais em saúde holística, farmácias homeopáticas e de manipulação,associações, clínicas”.

Definitivamente, um programa que já faz parte também de outro circuitomais amplo na cidade, articulando espaços de lazer, pontos de encontro e redes desociabilidade.

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Notas

1. Cf. Geertz (1978:141): “Na discussão antropológica recente, os aspectos morais (eestéticos) de uma dada cultura, os elementos valorativos, foram resumidos sob o termo‘ethos’, enquanto os aspectos cognitivos, existenciais foram designados pelo termo ‘visãode mundo’. O ethos de um povo é o tom, o caráter e a qualidade de sua vida, seu estilomoral e estético e sua disposição, é a atitude subjacente em relação a ele mesmo e ao seumundo que a vida reflete”.

2. Eventos anunciados no Informativo do Centro de Estudos Filosóficos da AssociaçãoPalas Athena, junho/julho/agosto de 1995.

3. Cf. Terrin, 1992:40; 67, 70.

4. Essa categorização, já esboçada no Relatório Final de Pesquisa (CNPq, 1995), recobrecampo homólogo ao recortado por Heelas (1996) com os termos “fully engaged”; “seriouspartial time” e “casual part time”. A diferença reside no princípio classificatório adotado:enquanto Heelas privilegia a quantidade de tempo investida em atividades típicas da NewAge, o critério que utilizo supõe também a existência e o manejo de códigos. Registre-seque Morin (1972) também utilizou o qualificativo “erudito” para caracterizar determinadosegmento da astrologia, ligado a um público mais restrito.

5. Na realidade, o termo “ocasional” não é bem apropriado, pois há pessoas que podemparticipar de um ou outro evento do circuito neo-esô ou consumir algum produto caracte-rístico desse meio sem que se sintam de forma alguma identificadas com ele, ou que ofaçam sem discernimento. No gradiente erudito/participativo/ocasional, este último termodeve ser tomado com a conotação de credulidade, porque supõe envolvimento sem maiorjulgamento crítico.

6. O termo, aqui, não envolve juízo de valor: está empregado no sentido que tem nasciências da linguagem, quando em oposição a “desempenho”. Cf. Ducrot e Todorov, 1972:145-146.

7. Impressão registrada no caderno de campo, transcrito em Magnani 1995:105.

8. Característica já indicada pelos termos “transumância”, “nomadismo”, “andarilho” uti-lizados por Soares (1989), Brandão (1994), Amaral (1998) e que pode justificar a inclusãode um subtipo, o “curioso”, que circula entre vários sistemas e frequenta diferentes espa-ços, sem se comprometer com nenhum em especial.

9. A análise da autora tem como base uma pesquisa desenvolvida na cidade do Rio deJaneiro. Ela chama a atenção para o fato de abordagens psicológicas serem denominadas“corporais”; Ferguson (1995) usa o termo “psicotecnologias” para se referir às mesmaspráticas.

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10. Evento: Confraternização de fim de ano da Escola A.M.OR. — 12 de dezembro de1994, 20h. (Pesquisa de campo e relato, Adriana Capuchinho.)

11. Evento: Diwali — festival das luzes — excursão de três dias (28/29/30 de outubro de1994. Local: Hotel Península, município de Avaré/SP). Org. Aruna-Yoga.

12. Evento: Ritual da Lua Cheia. Paz Géia — Instituto de Pesquisas Xamânicas. 18 deoutubro de 1994. (Pesquisa de campo: Sandra Stoll e Silvana M. de Souza; relato: San-dra.)

13. É possível reconhecer, em diferentes versões desse discurso de base, ressonâncias dealguns temas clássicos como o carma hinduísta, a “centelha” do gnosticismo, o princípiodo movimento taoísta, a iluminação búdica, a evolução espiritual blavatskiana, entre ou-tros — alguns próximos da formulação original, outros já como resultado das múltiplasleituras, releituras e rearranjos em novos conjuntos significantes.

14. “... homeopatia, bioenergética, trabalhos com o corpo, alimentação ‘natural’ etc.”

15. Como se sabe, o conhecido modelo de Louis Dumont — individualismo versus hierar-quia — foi inicialmente desenvolvido a partir do sistema de castas na Índia e posterior-mente aplicado às socidades ocidentais contemporâneas.

16. Também Vilhena conclui pela existência dos dois pólos — indivíduo/totalidade — semreferência, contudo, ao terceiro, a que aqui estou chamando de comunidade: (...) “esseprocesso toma como ponto de referência não só o indivíduo como ocorre na psicanálisemas também, e ao mesmo tempo, uma totalidade que o engloba. Os símbolos que consti-tuem o sistema astrológico estariam presentes não só no microcosmo como no macrocos-mo — cada um deles se relacionando com os dois pólos da oposição que identifiquei nodiscurso dos informantes. (...) Seja privilegiando a particularidade e a individualidadequanto a totalidade, os informantes utilizam o simbolismo como ingrediente fundamen-tal”. (:202). Cf. também D’Andrea: “O Self Perfeito e a Nova Era: Individualismo eReflexividade em Religiosidades Pós-Tradicionais” (1997).

17. Como mais uma vez assinala Heelas, mesmo as comunidades mais conhecidas ecomprometidas com esse antigo ideal, como é o caso da conhecida comunidade de Fin-dhorn, na Escócia, não estão imunes a esse ideal da prosperidade. Cita, por exemplo, aprogramação de abril/dezembro de 1990 do Findhorn Foundation Guest Programmes queincluía informações sobre um Working Retreat for Consultants and Managers e IntuitiveLeadership (:65).

18. A citação mais completa diz: “O papel estratégico que a noção de network desempe-nha enquanto consubstancializando uma unidade de análise privilegiada por esta literatura[sobre camadas médias] não é casual. Com efeito, este conceito tem sido utilizado paradenotar uma unidade social cuja sociabilidade se encontra destacada tanto das redes defamília e de parentesco quanto de ancoragens geográficas e residenciais restritas. Nestesentido, a noção de network qualifica, de modo apropriado, a forma típica de organização

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da sociabilidade no espaço urbano — ou, ao menos, a das camadas médias. Mais do queisso: justamente por promover a conexão entre indivíduos geralmente dispersos no meiourbano e por ser construído com base em critérios de ‘escolhas’ e ‘afinidades’, o networkimplica, quase que por definição, fronteiras simbólicas com relação a outras identidadessociais. É com base nesse conceito que Velho (1981), Dauster (1985), Abreu Filho (1980)e Heilborn (1985) demarcam os universos sociais a serem investigados” (:6,7). Maisadiante a autora fará uma uma ressalva afirmando que em alguns casos o conceito adquire“colorido especial” e em certo sentido “não típico”, pois apresenta enraizamento justa-mente no parentesco e na localidade. Trata-se de casos de estudos em cidades menores eem subúrbios. Foi exatamente o reconhecimento dessa referência à localidade que mos-trou a pertinência da noção de “pedaço” para descrever modalidades de lazer e sociabili-dade em bairros da periferia de São Paulo (Magnani, [1984], 1998).

19. O lançamento em questão foi do livro Ch’an Tao — Essência da Meditação naLivraria Spiro, em 1998.

20. Evento “Integração do homem com a natureza”, excursão eco-esotérica a São Tomédas Letras, MG, promovida pela Agência de Turismo Elo Cultural — 13 a 17 de julho de1994. Pesquisa de campo e relato, Flávia Prado Moi. “Eu vi borboletas (dezenas delas)”,concluía, ceticamente, a pesquisadora (1995:21).

21. Tema que, sem dúvida, exigiria uma reflexão mais sistemática.

22. Ingênua quando identifica esses personagens com uma iconografia infantilizada, poishá quem tome os “elementais” e suas denominações antes como metáforas e/ou categoriasdo que como designativos de uma classe especial de seres antropozoomórficos.

23. Tarcísio, IMCA SOL, 15 out. 1992, entrevista obtida por Silva e Groppo, 1992.

24. Gledson, Associação Gnóstica de São Paulo — Agni, 27 out. 1992, entrevista colhidapor Silva e Groppo, 1992.

25. Concepção que remete à diferença entre bruxa e feiticeira: enquanto bruxaria (witch-craft) é considerada, na literatura pertinente, um poder inato, que se transmite ao longo delinhagens reconhecidas, a feitiçaria (sorcery) é uma técnica que atua por meio da manipu-lação de objetos e que pode ser aprendida.

26. Nesse levantamento, as mulheres ultrapassam os homens nos cinco mais vendidos doitem “obras de ficção” e só perdem na última posição do item “não ficção”, Chatô — Orei do Brasil, de Fernando Morais, em que os homens aparecem como 57% dos compra-dores contra 43% das mulheres. A observação de Paulo Coelho, aparentemente calcadanum mero lugar-comum, é, no entanto, avalizada (provavelmente sem que o referidoescritor saiba) pela constatação do papel desempenhado pela mulher, como leitora e tam-bém autora, no próprio processo de surgimento e consolidação do romance moderno, emmeados do século XVIII na Inglaterra e na França, como mostra Marlyse Meyer (1993).

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27. Ainda aproveitando informações adicionais, dentro do universo da pesquisa, para ofenômeno da presença feminina nos espaços neo-esotéricos, é digno de nota que, condu-zindo as sessões, palestras, aulas e demonstrações oferecidos por Palas Athena, no períodomarço/abril/maio de 1995, havia 25 mulheres e 18 homens.

28. E, acrescente-se, não apenas nesse meio: há estudos, e polêmicas, na área acadêmicavoltados para a explicitação e a fundamentação das diferenças e aptidões entre homens emulheres nos mais diversos domínios, do biológico ao cognitivo. A propósito do confron-to entre os modelos “mulher colhedora” versus “homem caçador” no processo de homini-zação, ver Johanson, Donald e Shreeve, James (1998:311 e ss.).

29. A importância desse componente pode ser comprovada, ainda, pelo tratamento dadoao tema em textos “nativos” mais analíticos e de ampla difusão no meio neo-esotérico,como é o caso de O ponto de mutação, de Fritjof Capra (1995 b). Ao discutir o modelobiomédico dominante, o autor afirma que (...) “as escolas de medicina promovem vigoro-samente um sistema de valores machista, desequilibrado, desprezando qualidades como aintuição, a sensibilidade e a solicitude, em favor de uma abordagem racional, agressiva ecompetitiva” (p. 153). As características do feminino e sua adequação às mudanças queaponta nesse livro têm uma fundamentação na conhecida polaridade yin/yang: “A auto-afirmação é conseguida através do comportamento yang: exigente, agressivo, competitivo,expansivo e — no tocante ao comportamento humano — através do pensamento linear,analítico. A integração é proporcionada pelo comportamento yin: receptivo, cooperativo,intuitivo e consciente do meio ambiente” ( p. 41).

30. Como Vilhena aponta em seu livro, Becker emprega a expressão para a área das artes:“Para ele, o mundo artístico, por exemplo, constitui o network que entra em cooperaçãopara a feitura das obras artísticas que o caracterizam. Tradicionalmente, a criação destasúltimas sempre foi vista como um mero produto do esforço criativo do artista. Becker,seguindo a linha de pesquisa que tem desenvolvido, se propõe que a arte pode ser estuda-da como também produto da ação coletiva” (op. cit., p. 106).

31. “(...) o habitus é o produto do trabalho de inculcação e de apropriação necessário paraque esses produtos da história coletiva que são as estruturas objetivas (por exemplo, dalíngua, da economia, etc.) consigam reproduzir-se, sob a forma de disposições duráveis,em todos os organismos (que podemos, se quisermos, chamar indivíduos) duravelmentesubmetidos aos mesmos condicionamentos, colocados, portanto, nas mesmas condiçõesmateriais de existência” (Bourdieu, 1983, p. 78-79)

32. Op. cit., p. 83.

33. Caberia aqui um parêntese mais longo para estabelecer mais alguns esclarecimentos arespeito dessa tão citada categoria. Como foi afirmado, a referência a Bourdieu é sempreobrigatória; veja-se o caso de Featherstone, para quem, no âmbito da cultura de consumocontemporâneo, a expressão conota individualidade, auto-expressão e uma consciência desi individualizada. “O corpo, as roupas, o discurso, os entretenimentos de lazer, as prefe-

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rências de comida e bebida, a casa, o carro, a opção de férias etc. de uma pessoa são vistoscomo indicadores da individualidade do gosto e o senso de estilo do proprietário/consumi-dor” (1995:119). Após essa caracterização, o autor reafirma que sua perspectiva de análisesegue de perto o conceito bourdieusiano de habitus. Uma visão mais ampla do uso dacategoria é fornecida por Paré (1993) na análise que faz de uma obra coletiva Life Styles:Theories, Concepts, Methods and Results of Life Style Research in International Perspec-tive (Filipcova, Glyptis e Tokarski, 1990). A apreciação dos organizadores da coletâneasobre os 21 textos que a compõem não é lá muito encorajadora: “Life style research ischaracterised by wholly terms, imprecise definitions, a lack of theoretical discussion, andarbitrary operational procedures. Everybody seems to know what life style is, and nobodycan prove them incorrect. [It is] defined as something between everything and nothing”.Das inúmeras definições e perspectivas de análise resenhadas, contudo, retenho duas, paradelas ressaltar alguns pontos comuns. A primeira é de Ruiz, que se reporta a Tönnies,Redfield e Bourdieu: “Estilo de vida é a maneira pessoal segundo a qual cada indivíduoorganiza sua vida, isto é, sua relação individual original para com as crenças, valores enormas da vida cotidiana, assim como a maneira segundo a qual ele integra as normas dogrupo, da classe e da sociedade global a que pertence”. A outra é de Scardigli, que,remetendo-se à antropologia social, considera “estilo de vida como um sistema de pensa-mento e ação próprio de um grupo social, permitindo distinguir sua identidade cultural noespaço e no tempo. O estilo confere coerência, significação e os quadros de referênciasociais à vida cotidiana”. Os elementos comuns a reter, dessa revisão, são vida cotidiana;coerência/organização; indivíduo/grupo; reordenados, permitem chegar à seguinte conclu-são: determinado estilo de vida é o resultado de escolhas (individuais ou coletivas) diantede um repertório (não aberto nem ilimitado) de alternativas que apresenta uma coerência(não é aleatória nem descontínua, mas configura padrões) que se manifesta na vida cotidi-ana ou a organiza, identificando pertencimento (a grupo). Esse, finalmente, é o sentido daexpressão “estilo de vida” que emprego neste trabalho, de forma mais pragmática e sem“comprar” todo o arcabouço bourdieusiano.

34. Mais uma vez é preciso distinguir a busca da “prosperidade” por dicas popularizadaspelos manuais de auto-ajuda, como “pense positivo”, de uma atitude mais geral queprocura, nas diferentes práticas neo-esôs, melhores condições de vida tanto pessoais comono âmbito das relações interpessoais e sociais.

35. O que não significa uma atitude simplesmente hedonista; na realidade, é possíveldistinguir no universo neo-esô várias combinatórias e arranjos entre dois pólos, um queenfatiza a prosperidade e outro que postula os ideais da simplicidade, frugalidade; não sãoincompatíveis. Compare-se a caracterização que segue com a descrição feita por Ferreira(1984:19 e seguintes) em sua dissertação de mestrado, trabalho a que tive acesso quandominha pesquisa já estava praticamete concluída.

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36. Essa caracterização serve perfeitamente também para descrever um Centro Especiali-zado e as relação que estabelece com seus próprios freqüentadores: nem sempre as distin-ções entre um e outro são suficientemente marcadas.

37. Anúncio na revista Planeta, dezembro de 1998.

38. Ver anteriormente o tópico 3 do capítulo 2.

39. Para a presidente do evento, a empresária e ex-deputada Ruth Escobar, o que unetodos os espetáculos é o caráter sacro dos programas escolhidos: “Na Ásia, além de serparte integrante do cotidiano, o sagrado está presente nas diversas formas de manifestaçãoartística”, afirmou em entrevista para a revista Veja São Paulo, julho de 1998.

40. Descrição que de certo modo corresponde às características do “tipo ocasional”.Agradeço a Rita de Cássia por essas informaçãos colhidas na internet.

41. Cândida apresenta-se como “astróloga, fitoterapeuta, psicóloga, educadora e promoto-ra de eventos ecoculturais”; e Paulo, “tarólogo, psicólogo, educador em artes cênicas,jornalista e promotor de eventos ecoculturais”, segundo cartão distribuído.

42. Já em 1992 o conhecido músico e compositor Paulinho Nogueira, então presidente daAssociação dos Amigos do Parque, liderara um movimento contra a tentativa por parte dogoverno do Estado de privatizar o parque, transformando-o numa espécie de shoppingcenter rural.

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Conclusão

A estratégia, seguida neste estudo, de situar as práticas do universo neo-esôno contexto da cidade e de sua dinâmica, conduziu a análise em duas direções:diante da heterogeneidade que o primeiro contato com o objeto mostrava, foipreciso descobrir suas regularidades; e contrariamente à visão que o consideravauma massa amorfa, indiferenciada, foram estabelecidas em seu interior as devidasdistinções.

Na primeira etapa, a realização do mapeamento, as classificações de espaçose práticas, a percepção de recorrências temáticas e, por fim, a descrição do calen-dário e de uma implantação em forma de circuito mostraram, em planos diferen-tes, a presença de regularidades. Diante de um fenômeno comumente caracteri-zado pela fluidez, fragmentação e falta de centralidade — doutrinária, ritual,simbólica —, foi possível demarcar os contornos de um conjunto, dotado desentido, mas sem incidir nos riscos de uma definição substantiva ou essencialista.

A noção de circuito, ao descrever a forma de implantação desse conjunto napaisagem da cidade e as possibilididades de contato e articulação entre os diferen-tes espaços, terminou constituindo uma das categorias chaves da pesquisa. Evitoucolocar num mesmo plano grupos e associações de maior tradição ao lado deempreendimentos mais efêmeros e comerciais sem, contudo, desconhecer os trân-sitos entre todos eles, pois, independentemente dos propósitos e definições decada um, quem estabelece as conexões são os usuários. A designação “neo-esoté-rico”, certamente inadequada para muitos dos espaços estudados, aplica-se, as-sim, antes ao circuito do que a cada instituição, prática ou participante tomadosindividualmente.1

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É a partir das múltiplas inter-relações possibilitadas pelo circuito (e realiza-das nos trajetos) que os freqüentadores usufruem os inúmeros serviços oferecidos,adquirem os produtos, familiarizam-se com o léxico provindo de algumas matri-zes discursivas comuns: é, pois, o fundamento concreto que ancora comportamen-tos coletivos, cuja recorrência configura o que foi descrito como estilo de vidaneo-esô, já no segundo momento do estudo. Estilo de vida como resultado deescolhas e não como estereótipo, pois nem todos interagem nesse universo com omesmo propósito, intensidade e entendimento: aqui, é imprescindível não confun-dir os vários graus de participação e tipos de compromisso. Encarar o fenômenoneo-esô por esse ângulo permite distinguir seus vários componentes e destacar apresença de quem por ele transita motivado por algum dos múltiplos apelos — deordem estética, terapêutica, especulativa e até espiritual.

Esta última, a dimensão da espiritualidade, presente e bastante valorizadanesse universo — por isso mesmo o foco principal de muitos estudos —, aquientra como um dos componentes do processo de auto-aprimoramento, mais doque como uma obrigação de caráter religioso ou confessional. Como já foi obser-vado, o neo-esoterismo não constitui um sistema ou credo de fronteiras nítidas aque se possa converter e, como também já foi notado por diferentes autores, não épropriamente a fidelidade o que caracteriza a adesão aos valores e normas desteou daquele espaço que integra o circuito. Adotar um determinado estilo de vidasupõe a incorporação de seus itens — não necessariamente todos —, e o resultadoserá mais ou menos consistente, num gradiente que pode ir desde o leve verniz domodismo passageiro e consumista até envolvimentos mais duradouros.

O freqüentador típico do circuito neo-esô termina funcionando como ele-mento transmissor ou intermediário junto a um público mais amplo, no sentidodado por Featherstone, “proporcionando e estimulando um interesse geral peloestilo em si mesmo” (1995:129). Assim, alguns de seus itens ou marcas sãovisíveis não apenas no comportamento de quem é habitué, mas extravasam paraum círculo mais extenso. Certos elementos provindos daqueles discursos de base— holismo, sincronicidade, canais de energia, carma, chakra, eu superior — jáfazem parte de um código amplamente reconhecido e aplicado às mais diferentessituações do cotidiano.2 O mesmo pode ser dito com relação a determinadasproposições, técnicas e princípios pinçados aqui e ali entre os componentes doque foi chamado de “sensibilidade neo-esô”: valorização de uma alimentaçãoentendida como mais saudável (o que não implica que seja integralmente segui-da), atenção para com os processos do “eu interior”, busca de equilíbrio entre osplanos “físico, mental e espiritual”, posições favoráveis à proteção ao meio ambi-ente, crença na eficácia de pensamentos e atitudes “positivas”, conhecimento eutilização de algumas técnicas de relaxamento, meditação, contemplação da natu-

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reza em busca da “harmonia cósmica” — eis alguns dos elementos mais correntesjá incorporados no plano de um senso comum associado ao ideal de uma melhorqualidade de vida.

Nessa linha de análise, que privilegia o plano dos comportamentos coleti-vos, não está em pauta a questão dos fundamentos científicos desta ou daquelaprática ou da totalidade do universo neo-esô. Como foi mostrado, este incluielementos das mais variadas vertentes e tradições, o que torna impraticável espe-cular sobre critérios de verdade, sobretudo quando estendidos para um conjunto,supostamente homogêneo, a partir da crítica (mesmo pertinente) a um item espe-cífico.

Para além dessas questões lindeiras com os campos da religião e da ciência— legítimas, mas que exigiriam outros tipos de enquadramento teórico e estraté-gias de pesquisa —, abre boas possibilidades de reflexão pensar as práticas ofere-cidas no circuito neo-esô como uma forma de uso do tempo livre em busca doaprimoramento pessoal, pelo cultivo das potencialidades do corpo e da mente.

Não se trata tanto de investimento em busca de sucesso e prosperidade,como evidencia Heelas a propósito da análise que faz da dinâmica dos semináriosde treinamento do tipo est nos Estados Unidos e Inglaterra,3 mas de uma alternati-va de uso do tempo livre, tema de crescente importância na sociedade pós-indus-trial, como mostram os estudiosos do lazer. Grande parte das atividades incluídasno universo neo-esô cabem nessa categoria, pois vão do turismo, incluindo parti-cipação em congressos, convenções, treinamentos, iniciações à culinária, passan-do pelo consumo de livros, discos, espetáculos, cursos, artesanato, participaçãoem grupos de encontro etc.

Essas formas de consumo cultural, com o correspondente desenvolvimentodas redes de sociabilidade e das atividades correlatas, têm seu cenário privilegia-do: o ambiente da metrópole.

Com efeito, os espaços e as atividades neo-esôs, quando pensados em suadistribuição e articulação pela categoria circuito, ilustram uma forma particularde prática cultural e comportamento, permitindo a formação de pequenos grupose redes, cenário que em nada lembra a fragmentação, atomização, impessoalidadee individualismo, traços comumente atribuídos ao ambiente dos grandes centrosurbanos. Pois, contrariamente à idéia de guetos fortificados, dos quarteirões pro-tegidos, refúgio das “tiranias da intimidade” (Senett, 1988), mostram a possibili-dade de uso e circulação por espaços não contíguos; e, contrariamente à idéia doconfinamento do indivíduo sufocado diante de estruturas que o sobrepassam,permite o contato e a criação de laços.

As vivências, palestras, cursos e celebrações se multiplicam ao longo docircuito, estabelecendo relações de proximidade e de trocas próprias de comuni-

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dade; não, porém, aquelas das comunidades biológicas, institucionalizadas, per-manentes, mas de um tipo que se dissolve ao término da atividade, podendo,entretanto, ser reeditada no próximo evento, em algum outro ponto do circuito —com os mesmos ou outros participantes, não importa, pois todos conhecem ocódigo ou ao menos o jargão básico.

Comunidades efêmeras, transitórias, no coração da metrópole, diferentesdaquelas que constituem os protótipos do universo neo-esô — Findhorn, na Escó-cia; Esalem, na costa oeste dos Estados Unidos; Nazaré, no interior de São Paulo;Figueira em Minas Gerais —, mas nem por isso menos efetivas. Modalidadesinspiradas nestas últimas ainda existem, são procuradas e continuam como refe-rência; contudo, no cenário urbano são as clínicas, academias, livrarias, lojas,centros de estudo, centros de convenções, parques, hotéis-fazenda e até proprieda-des rurais próximas que constituem o ambiente e fornecem a infra-estrutrura paraos encontros.

Tal é a cidade que, em sua escala metropolitana, permite tanto a vivêncianos limites do pedaço, com sua lógica de criação de vínculos identitários combase numa referência territorial, como pelos pontos do circuito, por onde transi-tam participantes de um mesmo universo de valores, ainda que não se conheçam;nesse caso, são parceiros potenciais de trocas mais amplas que as estabelecidasentre os “chegados” do pedaço. Pois metrópole não implica necessariamente ex-periências urbanas que oscilam entre dois extremos, o das multidões indiferencia-das e o do indivíduo confinado em sua solidão, e sim a possibilidade verdadei-ramente cosmopolita de trocas numa escala em que a segurança do contato noslimites de um horizonte compartilhado pode ser combinada com a abertura paranovas experiências.

Isso não quer dizer, evidentemente, que as práticas vinculadas ao mundoneo-esô e seu estilo de vida correspondente só possam existir nos grandes centros:de qualquer lugar pode-se entrar em contato com esse universo, acessível por umaimensa rede formada pelos meios de divulgação e comunicação. O diferencial,entretanto, oferecido pela escala de uma metrópole, está na variedade e complexi-dade de seus circuitos — seja qual for o recorte escolhido —, ampliando o lequedos trajetos e, por conseguinte, as alternativas de contatos, trocas e experiênciaspara além daqueles dados no horizonte de um cenário já sobejamente palmilhadoe previsível.

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Notas

1. Aplica-se menos ainda a um suposto “movimento”, pois, como foi visto, a imensavariabilidade de práticas, sistemas, técnicas e discursos que podem ser encontrados nocircuito neo-esotérico impede reconhecer neles alguma unidade interna mais consistente— doutrinária, de princípios ou de qualquer outra ordem —, além daquele plano geralrepresentado por noções do tipo “busca de valores alternativos”, “nova consciência” etc.

2. Um exemplo concreto e significativo, dadas as circunstâncias, dá a medida da difusãodesse léxico e de seu rendimento explicativo: a entrevistada no programa “Timbres, ocorpo do som: a trajetória dos instrumentos musicais” na Rádio Cultura FM — programatradicional diário de entrevistas com músicos de formação erudita onde explicam a ori-gem, particularidades, componentes e processo de confecção dos instrumentos a que sededicam —, uma acordeonista, ao descrever a especificidade de seu instrumento, ressaltaque “fica posicionado no chakra cardíaco de onde, acionado pelo braço esquerdo, aoritmo da respiração, integra os princípios masculino e feminino, o antigo e moderno, deintroversão e extroversão” (transcrição livre de trecho da entrevista levada ao ar no dia 14de setembro de 1998).

3. Est é a sigla que designa os Erhard Seminars Training, seminários propostos porWerner Erhard. Segundo Heelas, a idéia básica dos treinamentos ao estilo dos est — assimcomo de outras formas de atividades da Nova Era — é desencadear potencialidades para aobtenção de resultados (op. cit., p. 60).

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