universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

94
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ANA LUIZA MENDES ENTRE A RAZÃO E O PECADO: A LINGUAGEM DO AMOR NAS CORRESPONDÊNCIAS DE ABELARDO E HELOÍSA CURITIBA 2009

Upload: lamhanh

Post on 09-Jan-2017

233 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

Page 1: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

ANA LUIZA MENDES

ENTRE A RAZÃO E O PECADO: A LINGUAGEM DO AMOR NAS

CORRESPONDÊNCIAS DE ABELARDO E HELOÍSA

CURITIBA 2009

Page 2: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

ANA LUIZA MENDES

ENTRE A RAZÃO E O PECADO: A LINGUAGEM DO AMOR NAS

CORRESPONDÊNCIAS DE ABELARDO E HELOÍSA

Monografia apresentada à disciplina de Estágio

Supervisionado em Pesquisa Histórica como requisito

parcial à conclusão do Curso de História, Setor de

Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade

Federal do Paraná.

Orientador: Prof.ªDr.ª Marcella Lopes Guimarães

CURITIBA 2009

Page 3: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

RESUMO

Essa monografia tem como objetivo analisar as correspondências de Abelardo e

Heloísa no tocante aos diferentes aspectos da vida social na qual ambos estavam

inseridos, tal como a relação entre o universo filosófico de Abelardo e como este o

aplicou em sua vida. Tal circunstância suscita uma disparidade entre teoria e prática,

incoerência que será responsável pela contradição moral apontada por Heloísa que

argumenta sua defesa com o método e teoria do próprio Abelardo, também utilizado

para atacá-lo em torno da concepção de pecado que ele atribuiu à relação. Heloísa

aponta para a incoerência do discurso dele, que varia desde o descontrole passional até

a serenidade da vida ascética, uma vez que incorpora três elementos: o homem, ser de

desejo, corrompido, concupiscível, cuja experiência de vida e de julgamento será

diversa da expressada do ponto de vista do clérigo e do filósofo, mais próximos de

Deus, da perfeição e da salvação. Nesse contexto, é possível verificar nas

correspondências, duas formas narrativas, duas formas de expressão que proclamam

diferentes visões sobre o romance que irá modificar a vida dos seus protagonistas, fato

que possibilita examinar a tipologia da moral vivenciada por Heloísa e Abelardo que

vivendo de formas distintas este amor irão julgá-lo também de modo diferenciado.

Palavras chave: literatura medieval, dialética, moral da intenção, pecado, amor cortês

Page 4: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

ABSTRACT

The propose of this monography is to analyse the correspondences of Abelard

and Heloise in its diferents aspects of social life in whitch both were inserted, such as

the relation between the philosophical universe of Abelard and its use in his life. Such

circustancies generates a distinction between theory and praxis, inconsistency that will

be responsible for the moral contradiction adressed by Heloise, she argues her defense

with the method and the theory of Abelard, also used to attack him around the concept

of sin that he gave to the relationship. Heloise points to the inconsistency of his

speech, ranging from the lack of passion to the serenity of an ascetic life, by

incorporating three elements: the man, been of desire, corrupt, lustfull, whose

experience of life and judjement will be different from the expressed by the view of

the priest and philosopher, closer to God, of perfection and salvation. It is possible to

verify in the correspondences, two narrative forms, two forms of expression that

proclaim different views on the novel that will modify the lives of its protagonists, a

fact that allows considering the typology of moral experienced by Heloise and

Abelard, that by living in distincts ways this love, will also judge it in differents

manners.

Key Words: medieval literature, dialectic, moral of intention, sin, courtly love

Page 5: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

SUMÁRIO

Introdução...........................................................................................................5

1 – A sociedade de Abelardo e Heloísa............................................................10

1.1 – A (viva)cidade medieval............................................................................10

1.2 – A arte que ilustra a vida..............................................................................13

1.3 – Literatura e História: uma experimentação do mistério.............................16

2 – As bases ideológicas da vida moral............................................................22

2.1 – A regulação moral do corpo e da alma.......................................................22

2.2 – O pecado e os hábitos do século.................................................................24

2.3 – Os limites da visão do feminino.................................................................30

2.4 – A doutrina do amor puro x a moral da intenção.........................................34

3 – A linguagem do amor..................................................................................39

3.1 – A linguagem racional..................................................................................41

3.2 – A linguagem cortês.....................................................................................46

3.3 – A linguagem da salvação............................................................................53

Conclusão............................................................................................................60

Referências..........................................................................................................63

Anexo I – Imagem da planta do cemitério Père Lachaise...............................66

Anexo II – Foto do túmulo de Heloísa e Abelardo..........................................67

Anexo III – Poema Eloise to Abelard, de Alexander Pope..............................68

Page 6: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

INTRODUÇÃO

Ao mencionar a expressão Idade Média é comum, em discussões fora do

ambiente acadêmico, relacioná-la a conceitos referentes à obscuridade, restrições,

enclausuramento, domínio da fé em detrimento da razão, entre outros. Nessa

perspectiva, a tendência é definir a época medieval como um período em que as

atividades humanas se resumiam ao trabalho no feudo e na oração com o objetivo de

expurgar os pecados e garantir o seu espaço na morada celeste.

Essa imagem, segundo Baschet1, construída por uma corrente historiográfica

que visava valorizar o presente a partir da total ruptura com a época anterior, criou um

juízo sobre esse período histórico que minimizou a sua importância na vida dos

homens, além de ter criado um retrato romântico em que figuram o imaginário

cavaleiresco e a extrema autoridade eclesiástica.

Entretanto, hoje há uma safra de estudos que levantam outras possibilidades de

interpretação de uma época que pode ser vista como extremamente fértil em diferentes

aspectos da vida social, política e cultural, possibilitada por diferentes ângulos de

análise. É a partir desse ponto de vista que Baschet, em A civilização feudal. Do ano

mil à colonização da América apresenta uma Idade Média viva, possuidora de uma

dinâmica nem sempre atestada, mas cujo (re)conhecimento é de extrema importância

para a tentativa de compreensão do seu aparato social e mental.

Exemplo desse dinamismo é a cidade medieval que proporcionava o encontro

de diferentes indivíduos e, consequentemente diferentes formas de expressão e de ação

no convívio social. Uma das experiências que tiveram lugar no palco citadino foi

aquela que transformou o mundo em uma reflexão racional, ou seja, a vida intelectual

que, muito mais do uma forma de expressão, se constituía como um estilo de vida,

como poderá ser verificado no decorrer das correspondências de Abelardo (c.1079-

1142) e Heloísa (c.1001-1163), a fonte principal desse trabalho.

A versão aqui utilizada é edição de 1989, da editora Martins Fontes, com o

prefácio de Paul Zumthor. O livro, intitulado Correspondências de Abelardo e

1 BASCHET, J. A civilização feudal. Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006, p.25.

Page 7: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

6

Heloísa, traz a compilação do manuscrito, composto de um relato de Abelardo, o qual

escreveria a um amigo sobre os infortúnios pelos quais passou após ter se deparado

com a jovem Heloísa, cuja fama a antecedera ao conhecimento de Abelardo, devido à

sua espetacular educação. Esse relato é conhecido como Historia calamitatum

mearum, história das minhas calamidades, pois, como o próprio nome sugere, conta os

infortúnios que atingiram o filósofo do momento em que sua relação com Heloísa foi

desvendada até a escrita do texto. Após, segue-se uma série de quatro cartas (duas de

Heloísa a Abelardo e duas de Abelardo a Heloísa), as quais revelam as posições dos

antigos amantes sobre os percalços pelos quais passaram e sobre a situação a qual

estavam submetidos no momento em que rememoraram sua história, fornecendo

diferentes experimentações do passado comum.

Além dessas cartas, de caráter pessoal, seguem outras, de caráter formal, cuja

temática desenvolve-se em torno da administração do monastério do Paracleto, do qual

Heloísa se tornou abadessa em meados de 1129 e uma Regra proposta por Abelardo às

religiosas.

Desses documentos, os que interessam como fontes de estudo para esse trabalho

são: a carta de Abelardo em que conta suas calamidades e as cartas pessoais entre ele e

Heloísa que expressam os sentimentos de ambos sobre os acontecimentos de suas

vidas.

Abelardo foi a primeira configuração do intelectual moderno e um renomado

professor de lógica e teologia. Sua reputação não era restrita somente a Paris, mas é

nessa cidade que fez sua fama e também sua desgraça, como ele argumentou na

autobiografia, ao narrar os eventos que sucederam ao seu envolvimento com Heloísa,

jovem incomum para a época porque era familiarizada com os conhecimentos

culturais, literários e filosóficos do período.

A relação entre os dois se faz por meio de controvérsias em torno da situação do

filósofo e do tonsurado, cuja condição matrimonial era mal quista para o

desenvolvimento dessas funções. Então qual a conexão entre esse sacramento e a

situação de mestre de Abelardo e mais, qual a correlação entre esse casamento e o

relacionamento pessoal do casal?

Page 8: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

7

Esses são alguns dos pontos que se pretende analisar nesse estudo, além de

outras questões que se delineiam por entre as cartas de Heloísa e Abelardo, que

suscitam a observação de diferentes aspectos da vida social na qual ambos estavam

inseridos, tal como a relação entre o universo filosófico de Abelardo e aplicação dela

em sua vida. Um deles diz respeito a alguns estudos que sugerem certa emancipação

feminina protagonizada nas atitudes de Heloísa, uma vez que ela discute de igual para

igual com Abelardo sobre diferentes assuntos correlacionados com a filosofia e com a

teologia, postura não muito comum às mulheres do período em que viveu.

Outro aspecto relevante a ser analisado é a relação entre o universo filosófico de

Abelardo e como este o aplicou em sua vida. Tal circunstância suscita uma disparidade

entre teoria e prática, incoerência que será responsável pela contradição moral

apontada por Heloísa que argumenta sua defesa com o método e teoria do próprio

Abelardo, também utilizado para atacá-lo em torno da concepção de pecado que ele

atribuiu à relação.

No decorrer da correspondência de Abelardo e Heloísa é possível verificar duas

formas narrativas, duas formas de expressão que proclamam diferentes visões sobre o

romance que modificou a vida dos seus protagonistas. Esta observação é colocada

como outro tópico de análise, uma vez que possibilita examinar a tipologia da moral

vivenciada por Heloísa e Abelardo que vivendo de formas distintas este amor irão

julgá-lo também de modo diferenciado.

Nessa perspectiva é inevitável questionar o papel que a mulher exercia dentro

da sociedade feudal, sobretudo em relação ao casamento e ao amor dito cortês, gênero

literário que expõe uma doutrina de amor que codifica metodicamente a arte de amar,

não acessível ao comum dos mortais2, pois se refere ao fin’amors, amor puro, refinado,

se constituindo numa

ascese do desejo, mantido irrealiado tanto tempo quanto possível para, com isso, crescer em intensidade e ser sublimado pelos feitos cavaleirescos realizados em nome da amada. O fin’amors enseja assim, uma culto do desejo, um amor do amor: convencido de que a paixão cessa quando atinge o seu objetivo faz de sua impossibilidade a fonte do mais alto júbilo.3

2 CAPELÃO, A. Tratado do amor cortês. Martins Fontes: São Paulo, 2000, p. XXXVII. 3 BASCHET, J. A civilização feudal. Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006, p. 120.

Page 9: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

8

Algumas características dessa literatura parecem nortear algumas passagens das

cartas atribuídas a Heloísa. Isso não significa dizer que essa linguagem refletia o modo

real como as se pessoas amavam, elas poderiam nortear uma idealização do sentimento

amoroso e ter algum impacto no real. Desse modo, “a leitura das cartas [...] permite

analisar a história não somente do ponto de vista de Abelardo (como fazemos ao ler a

Historia calamitatum), mas também do de Heloísa”. 4

Outro aspecto da vida social que perpassa nessa investigação tem como objetivo

observar a relação e a interação entre o mundo feudal e a constituição do indivíduo

enquanto ser social e individual, isto é, como a individualidade desse romance, que às

vezes é-nos passado com traços de lenda, e de seus artífices se articula com os seres

que engendram o corpo social da época medieval.

Assim, o primeiro capítulo tratará dos aspectos pertinentes ao contexto da

cidade medieval, que possibilitaram o seu desenvolvimento dos pontos de vista

material e mental. A variada estrutura dela permite a fluidez de comportamentos e

idéias que foram formalizadas racionalmente através do método escolástico, originado

nas escolas medievais, gérmen das universidades.

O conhecimento era, em grande parte, monopólio dos eclesiásticos, fato que

também suscita um questionamento sobre os testemunhos escritos acerca dos modelos

de comportamento das relações entre homens e mulheres e entre clérigos e leigos,

elemento que será abordado no segundo capítulo. Este levanta questões sobre a base

ideológica da vida no contexto medieval. Abelardo irá viver com mais intensidade as

marcas da dicotomia entre céu e terra, alma e corpo, visto sua condição de clérigo e

filósofo de um lado, e amante de outro, situação que suscita questionamentos sobre sua

própria conduta, permeada de pecado, como ele mesmo condena.

Essa é uma referência comum ao homem e a mulher medieval. O pecado está

presente no mundo, segundo o discurso religioso, e é mais bem observado na figura da

4 RANGEL, P. A abadessa infiel e o cavaleiro apóstata. Revista Estudos Hum(e)anos. IUPERJ, vol.0, n.0, 2008, p.26.

Page 10: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

9

mulher que, por natureza é manipuladora e a causa da decadência do homem, por isso

deve ser controlada.

Todas essas questões estão presentes na forma como Heloísa e Abelardo

descrevem sua história. A linguagem dialética e a linguagem que dá vida ao

sentimento amoroso são o tema da análise do terceiro capítulo que permite visualizar a

alternância e dicotomia de sentimentos entre os dois amantes, que é tributária de dois

modelos de idealização do comportamento, o religioso e o cortês, que influenciam suas

ações, mas não as limitam.

Page 11: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

10

CAPÍTULO 1

A SOCIEDADE DE ABELARDO E HELOÍSA

1.1 A (VIVA)CIDADE MEDIEVAL

A cidade medieval é um tema profícuo de se repensar. Ela encarnava a

dicotomia entre a vida terrena e a vida no além, a vida de possibilidades de relações

sociais promovidas pela diversidade de pessoas que nela circulavam e que trocavam

experiências. Clérigos, comerciantes, mestres, guerreiros, prostitutas, citadinos.

Mundos, culturas, pensamentos, comportamentos diversificados, mas cujo

relacionamento era permitido pela composição da vida urbana que se assemelhava a

um teatro da convivência de sistemas de valores particulares, ainda que dentro de um

ordenamento teórico trifuncional. E justamente por permitir essa conjunção de

diferentes elementos, a cidade medieval admite uma ambiguidade, fonte da dicotomia

entre a vida terrena e a vida celestial e por se constituir em uma “sociedade da

abundância”5, fator que contribui para a dualidade de sua definição, pois ela apresenta-

se, “de um lado, Henoc, Sodoma, Babel, Babilônia. Do outro, Jerusalém, a cidade de

Deus”.6

A cidade cujo crescimento e renome são mais espetaculares, Paris, é particularmente objeto dessas atitudes contraditórias. São Bernardo acorre gritando para os mestres e estudantes que começam a povoar a montanha Santa Genoveva: “Fujam do meio da Babilônia, fujam e salvem suas almas. Voltem-se todos juntos para as cidades do recolhimento (isto é, os mosteiros)”. O abade Filipe de Harvengt, por outro lado, escreve para um jovem discípulo: “Impelido pelo amor à ciência você está em Paris, encontrou essa Jerusalém que tantos desejam”. E os goliardos, esses estudantes errantes, fazem coro: “Paris, paraíso na terra, rosa do mundo, bálsamo do universo”. 7

A cidade medieval é, portanto, uma simbiose entre múltiplas individualidades e

diferentes formas de interação, de exclusão social e até mesmo de crítica social, como

5 LE GOFF, J. “Cidade”. In: LE GOFF, J.; SCHITT, J.C. Dicionário temático do ocidente medieval. EDUSC: São Paulo, 2002, p. 223. 6 Ibid, p. 228. 7 Ibid, p.229.

Page 12: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

11

é o caso da poesia dos goliardos, clérigos errantes com espírito provocador e

anarquista, vistos por uns como vagabundos e charlatães, e como uma espécie de

inteligência urbana por outros 8. Tal ambiente, centro de novas mentalidades, também

foi propício para o desenvolvimento da cultura e da propagação do conhecimento que

possibilitou o desenvolvimento tanto das atividades ligadas ao comércio e ao

artesanato como às do intelecto.

O que seria da filosofia sem a lógica aristotélica? O que seria da agricultura sem

os progressos das técnicas de cultivo? O que seriam das igrejas sem a astúcia da

arquitetura gótica? O que seria dos intelectuais sem os scriptoria, sem as universidades

e sem as cidades?

É essencialmente por meio das cópias feitas na Idade Média que os autores da Antinguidade chegaram até nós. Copiar, ler reescrever, imitar, comentar Virgílio, Horácio, Ovídio ou Estácio é uma parte importante da atividade literária medieval. A primeira manifestação de vida literária na Idade Média é a sobrevivência da liturgia antiga, principalmente pelo uso que se fez no ensino.9

Esses elementos podem ser notados com maior ênfase a partir do renascimento

do século XII, movimento de transformações políticas, sociais, econômicas e culturais

que proporcionou, entre outros fatores, transformações e difusão de técnicas agrícolas

que contribuíram para o crescimento da população10, fortalecendo o desenvolvimento

das cidades medievais e contribuindo para a diversificação de atividades e a expansão

de outras.

No que diz respeito à filosofia aristotélica, ela já vinha sendo traduzida dos seus

comentadores árabes, mas pôde ser mais difundida com o desenvolvimento da prática

da leitura, o que permitiu a expansão da produção de livros, claro, na devida proporção

que a época, ainda sem o aparecimento da imprensa, poderia realizar através dos

copistas. Esta atividade, até um determinado momento, era restrita aos clérigos que,

8 LE GOFF, J. Os intelectuais na Idade Média. Estudos Cor: Lisboa, s/d, p. 37. 9 ZINK, M. “Literatura(s)”.In: LE GOFF, J.; SCHITT, J.C. Dicionário temático do ocidente medieval. EDUSC: São Paulo, 2002, p. 82. 10 BASCHET, J. A civilização feudal. Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006, p.25.

Page 13: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

12

aliavam a leitura e a escrita ao seu poder de sentenciar o código religioso-moral da

sociedade, uma vez que eram os únicos a ler e a interpretar a Bíblia, a partir da qual se

desenhava o modelo de comportamento para assegurar a salvação das almas.

Esse movimento de maior difusão do conhecimento libera a cidade medieval

para uma nova forma de relação com os habitantes locais e com os estrangeiros que

chegam com o intuito de adquirir o conhecimento que passou a ser transmitido através

das corporações de mestres e alunos, gérmen das universidades. É nesse contexto do

quadro urbano medieval, entre as disputas entre o poder espiritual e temporal, que

surgem os intelectuais, os quais nasceram no interior da instituição eclesiástica, mas

não permaneceram confinados nela11, que acordam com o fato de que a ciência tem

que ser posta em circulação, com o objetivo de revelar ao homem sua capacidade de

compreender a natureza através da razão e transformá-la pela sua atividade. 12

O progresso da atividade intelectual talvez seja a característica mais marcante

da cidade medieval. O domínio do saber, antes restrito ao poder eclesiástico abre-se,

através das escolas urbanas para estudantes que pagam aos mestres, clérigos de ordens

menores, o ensino das técnicas da retórica, da dialética, da lógica, aplicadas através da

lectio (comentário de textos) e disputatio (exame de um problema através da discussão

de argumentos contrários e favoráveis a ele), fundamentos do método escolástico.

A princípio, escolástico era o nome conferido ao professor das artes liberais e,

posteriormente, ao professor de filosofia ou teologia das escolas das catedrais e da

futura universidade. Portanto, escolástica significa filosofia da escola que exercita a

atividade racional para a compreensão da verdade religiosa, recorrendo à razão e às

autoridades, as quais tanto podem ser os padres da igreja como os filósofos antigos,

árabes ou judaicos. 13

Esse ambiente de intelectualidade não poderia emanar de outro contexto senão

o da cidade, como Paris. Ela foi no período medieval um centro cultural e efervescente

de escolas, mestres e estudantes, não obstante

11 DUBY, G. Idade Média na França. De Hugo Capeto a Joana D’Arc (987-1460). Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro, 1992, p. 12. 12 LE GOFF, J. Os intelectuais na Idade Média. Estúdios Cor: Lisboa, s/d. 60. 13 ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. Martins Fontes: São Paulo, 2000, p.344.

Page 14: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

13

deve seu renome, em primeiro lugar, ao brilho do ensino teológico, aquele que se situa no cimo das disciplinas escolares, mas em breve o deverá, mais ainda, àquele ramo da filosofia que, utilizando a fundo a contribuição aristotélica, e o recurso ao raciocínio, faz triunfar as capacidades racionais do espírito: a dialética. 14

São esses elementos que se conjugam para a composição do perfil dos

personagens de destaque nesse trabalho. Abelardo (c.1079-1142), “cavaleiro da

dialética” é a primeira figura do intelectual moderno15 e, por meio desse método

filosófico, através do qual tenta conciliar fé e razão, se sobressai em relação aos

demais mestres e contribuiu para a fama intelectual de Paris ao atrair alunos para

escutar seus ensinamentos, como demonstra o seu testemunho:

Propus-me um dia a discutir o princípio fundamental de nossa fé com a ajuda de analogias racionais. Meus alunos exigiam quanto a esse ponto uma argumentação humana e filosófica e, não se contentando com palavras, queriam demonstrações; “Os discursos, com efeito, diziam-me eles, são supérfluos se escapam à inteligência; não se pode crer sem antes ter compreendido, e é ridículo pregar aos outros aquilo que não se sabe melhor que eles; o próprio Senhor condena os ‘cegos que conduzem a outros cegos’”. Escrevi então para eles um tratado de teologia, Da Unidade e da

Trindade divinas.16

1.2 A ARTE QUE ILUSTRA A VIDA

Ceda ao meu encanto...sou feita da morte, mas

permaneço pelos vivos. Ouça meu canto

sublime e conheça meus segredos.

Autor desconhecido

A história vivida entre Heloísa e Abelardo nos foi legada através de documentos

que geram interpretações diversas tanto em relação ao que expressa o seu conteúdo

quanto à veracidade da autoria. É evidente que os escritos foram compilados, como

hoje os acessamos, em época posterior ao período em que foram redigidos, o que

contribui para as variações das análises, pois a cada momento surgem novas formas de

compreensão do passado, de modo que, segundo Zumthor

14 LE GOFF, J. Os intelectuais na Idade Média. Estúdios Cor: Lisboa, s/d, p. 28. 15 Ibid, p.42. 16 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p.54.

Page 15: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

14

a maioria dos medievalistas está hoje de acordo em ver na Correspondência, não o resultado puro e simples de uma colagem de cartas originais, mas um dossiê organizado; não certamente falso, mas uma “obra”, na medida em que essa palavra implica intenção e estruturação. 17

Ainda segundo o autor do prefácio da edição aqui analisada, a correspondência

foi conservada com base no exemplar existente na biblioteca de Troyes, cuja cópia foi

feita no final do século XIII, aproximadamente 150 anos após os acontecimentos

narrados. 18

Dos documentos compilados, os que interessam como fontes de estudo para

esse trabalho são: a carta de Abelardo em que conta suas calamidades e as cartas

pessoais entre ele e Heloísa que expressam os sentimentos de ambos sobre os

acontecimentos de suas vidas.

Sobre a veracidade desses documentos recorremos a Zumthor, para quem

“pouco importa: narração fictícia ou confissão autobiográfica, o texto traz seu próprio

sentido, engendrado nesse lugar utópico em que ressoam os ecos de um mundo (o dos

séculos XII e XIII) contra o qual ele se constrói, assimilando-o”. 19

Essa narração ou confissão é iniciada com as palavras de Abelardo ao relatar

suas infelicidades que foram conseqüências dos atos que revelavam, segundo ele, a sua

soberba, devido a seu prestígio como professor, cuja maestria lhe cobriu de orgulho de

modo que nada do que desejava lhe era impedido.

Ele conquistou a fama, no contexto citadino, por intermédio de sua inteligência

e comprometimento com a dialética e com o uso favorável das palavras no que tange

aos assuntos filosóficos. A conquista da fama também foi ajudada pelo empenho nos

estudos, fazendo com que negligenciasse outras atividades como o lazer e a companhia

de mulheres. A fama era uma constituinte importante para moldar o sujeito Abelardo.

Na sua história, comenta sobre sua chegada a Paris e sobre as refutações que fez aos

mestres com quem estudou. Sua fama se relacionava não somente a essa audácia, mas

17 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p.3 18 Ibid, p.2. 19 Ibid, p.5

Page 16: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

15

por ter comprovado sua capacidade nas disputas dialéticas e lógicas. Para isso

Abelardo vivia, na sua fama residia sua honra, pois ele tinha consciência de que o

intelectual era mais precioso e elevado e designava uma qualidade de elevação moral e

de dignidade indiscutível. 20

Porém, esse quadro foi alterado com a chegada de Heloísa, cuja fama intelectiva

também já percorria toda a Paris. Abelardo, então, resolveu aproximar-se dela,

fazendo-o através do tio da jovem, o cônego Fulbert, que confiou a educação de “uma

terna ovelha a um lobo esfaimado!”. 21 Segundo essa afirmação de Abelardo, nota-se

que ele tinha plena consciência do que buscava. Ele segue comentando sobre os

encontros com Heloísa que de livros nada eram nutridos, mas de todos os tipos, todas

as fases do amor eram sustentados, situação prazerosa até o momento em que Fulbert

descobriu o envolvimento dos dois. É a partir desse episódio que inicia a vida de

lamentação e tormento de Abelardo.

A situação desse relacionamento foi agravada pela gravidez de Heloísa que,

num primeiro momento recusa-se ao casamento, como será tratado em um capítulo

posterior, mas resigna-se à vontade daquele que ama. Entretanto, o casamento deveria

ficar em surdina, para não fomentar a ira dos inimigos de Abelardo e não comprometer

sua imagem com o mestre.

Porém, essa resolução não aquietou o ânimo de Fulbert que tratou de fazer

justiça com as próprias mãos, numa tentativa de restabelecer a honra de sua casa,

retirando a de Abelardo, transformando-o em um eunuco.

Aniquilado em sua honra viril, Abelardo julga-se punido por Deus por ter

exercido a concupiscência, termo como julga o seu desejo e como irá denominar sua

relação com sua esposa e mãe de seu filho Astrolábio.

Abelardo tece suas impressões e julgamentos sobre o ocorrido e compreende

que a sua entrada na vida religiosa e a de Heloísa, norma por ele imposta, seria a

maneira mais correta de expiação do pecado que cometeram.

Heloísa teria tomado ciência desses relatos e manifesta-se numa primeira carta,

na qual rememora o passado, recordando os infortúnios e o sacrifício que fez por

20 BROCCHIERI, M. F. B. “O intelectuaal”. In: LE GOFF (dir.) O homem medieval. Lisboa: Editorial Presença, 1989, p. 125-126. 21 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p.41.

Page 17: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

16

Abelardo; cobra-lhe, de certa forma, algo em troca, ao menos palavras de conforto se o

amor não era possível, mas quer a presença de Abelardo mesmo que na ausência.

Como resposta, Abelardo fala com formalidade própria de um religioso que se

dirige a uma religiosa. Não faz comentários sobre o passado com Heloísa a não ser em

uma pequena referência de autoridade sobre boas esposas, induzindo Heloísa a se

comportar como tal, resignando-se à decisão de Abelardo, seu esposo, em se dedicar a

servir a Cristo.

Numa segunda carta Heloísa ainda busca trazer Abelardo para si novamente,

revelando a falsidade de seus votos e de seu hábito, pois nunca o esqueceu e não

condena o seu passado com Abelardo, único a quem ama.

Como resposta, Abelardo responde às questões levantadas por Heloísa na carta

anterior através de uma pregação e exortação à condição religiosa de ambos, que

impõe um sentimento de caridade (caritas) e não de amor entre os dois, além de

criticar as súplicas de Heloísa que as deve fazer em prol de sua profissão e de Cristo

que a ama verdadeiramente.

Esse esboço do conteúdo dos manuscritos já introduz um dos pontos a serem

analisados nesse trabalho, o qual se refere à diferença de discurso estabelecido entre os

dois. Enquanto Heloísa tenta trazer o passado à tona, Abelardo apela para a

formalidade de um clérigo resignado com sua situação, uma vez que se visualiza sendo

castigado por Deus devido ao seu ato pecaminoso. Por outro lado, Heloísa em

nenhuma passagem condena os atos praticados com Abelardo; apenas maldiz as

conseqüências que somente recaíram sobre seu esposo e não sobre ela, motor do

desfecho trágico do relacionamento, como ela afirma.

1.3 LITERATURA E HISTÓRIA: UMA EXPERIMENTAÇÃO DO

MISTÉRIO

Darnton22, ao escrever sobre Ovídio, comenta quão difícil é esta leitura, uma

vez que, para compreender a mensagem que este lança em A Arte de Amar é preciso

22 DARNTON, R. “História da Leitura”. In: BURKE, P. (org.) A Escrita da História. Novas

Perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992.

Page 18: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

17

que nos coloquemos no lugar dos antepassados romanos e analisemos o contraste entre

a moralidade formal e os hábitos daquela sociedade.

Aqui o trabalho não será menos árduo no que diz respeito à tentativa de

apreender dos escritos sobre a relação de Heloísa e Abelardo um significado

substancial da realidade vivida por ambos, principalmente porque há o contraste do

que foi experienciado por cada um deles, de como essa história chegou até os dias de

hoje e como nós a percebemos.

É evidente que se trata de interpretações, análises tantas vezes revistas, mas que

não deixam de ter seu papel nessa tentativa de experimentação do sentimento passional

que moveu a vida desses personagens.

Podemos desfrutar da ilusão de sair do tempo para entrar em contato com autores que viveram há séculos atrás. Mas mesmo que seus textos tenham chegado intactos até nós – uma possibilidade virtual, considerando-se a evolução dos projetos e dos livros como objetos físicos – nossa relação com esses textos não pode ser a mesma que aquela dos leitores do passado. A leitura possui uma história. Mas como podemos recuperá-la?23

Essa recuperação, entretanto, nunca será total. Cada vez que nos deparamos

com a história desse casal tão peculiar, nós a vemos sob outros ângulos, inclusive

porque o relato sobre a sua vida já nos é apresentada pelas mãos de uma terceira (ou

quarta, ou quinta, etc.) pessoa, cujo julgamento sobre os fatos se entrelaça com a

narração dos acontecimentos e das atitudes que teriam tomado os protagonistas desse

enredo, o qual envolve elementos de tragédia, romance, paixão, cortesia, abdicação,

condescendência, resignação, entre tantos outros sentimentos.

Esses elementos aparentemente isolados aparecem na Correspondência como

uma rede na qual pequenos detalhes remetem a outros, fazendo com que a trama se

encaixe como uma colcha de retalhos que unidos promovem a harmonia da peça.

Além disso, estamos estudando o elemento humano, cuja complexidade e

historicidade provocam alterações no decurso dos acontecimentos e,

23 Ibid., p. 200

Page 19: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

18

consequentemente, a sua interpretação dos fatos também será alterada conforme o

juízo de valor referente ao meio social e cultural no qual está inserido.

Nesta perspectiva, é possível identificar quatro variantes nesse elemento

humano, cujas formas de expressão articulam as diferentes narrativas, próprias das

diferentes formas de julgamento e expressão dessas facetas. O discurso conferido a

Abelardo incorpora três desses elementos. Um deles, evidentemente é o homem, ser de

desejo, corrompido, concupiscível, cuja experiência de vida e de julgamento será

diversa da expressada do ponto de vista do clérigo e do filósofo, mais próximos de

Deus, da perfeição e da salvação. Essas três facetas presentes no discurso atribuído a

Abelardo se contrapõem às suposições das idéias aferidas a Heloísa sobre a validade e

condição da relação com Abelardo.

Heloísa, por sua vez, é uma figura que encerra muitas discussões acerca do seu

papel, pelo simples fato de ser mulher no medievo. Esta posição suscita muitas

questões acerca do seu significado no funcionamento da ordem da sociedade feudal.

Mas a imagem de Heloísa levanta maiores indagações dada sua relação com um ilustre

mestre do século XII. Assim Abelardo a descreve na Historia calamitatum:

Havia então em Paris uma moça chamada Heloísa, sobrinha de um certo cônego Fulbert. Este, que a amava com ternura, nada havia poupado para lhe dar uma educação refinada. Ela era bastante bonita e a extensão de sua cultura tornava-a uma mulher excepcional. Os conhecimentos literários são tão raros entre as pessoas de seu sexo que ela exercia uma atração irresistível, e sua fama já corria pelo reino.24

Pouco se sabe sobre Heloísa, mas é fato que ela circulava no meio cultural e

literário do século XII. Entretanto há que se fazer referência ao fato de que a literatura

medieval não se restringia ao domínio da escrita e da leitura silenciosa, reservada e

individual, característica de exceção da literatura nesse período. Os poemas, tais como

as canções de gesta, eram compostos não para serem lidos, mas para serem recitadas.

Outro fato comum no século XII é o que Duby denomina de “intercâmbio epistolar”,

isto é, a leitura em voz alta de cartas (assim como Heloísa teria feito com a carta

recebida de Pedro, o venerável quando da morte de Abelardo) que, posteriormente

24 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p.39.

Page 20: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

19

eram relidas, selecionadas e reunidas em coletâneas, como o foram as

correspondências de Abelardo e Heloísa.

Essa colocação reflete uma característica da cultura medieval: a oralidade.

Dessa forma, o termo literatura para a expressão cultural do período medieval pode

conter uma conotação ambígua, uma vez que o seu conceito pressupõe a atividade da

escrita. Todavia, recordando a configuração da cidade medieval, como um teatro nada

mais propício do que uma representação teatral de temas da vida citadina, como atesta

Zink:

Até meados do século XII, as jovens literaturas vernáculas conheciam apenas os gêneros cantados: a canção de gesta, a poesia lírica. A primeira conserva artificialmente as marcas da oralidade, mesmo quando é escrita (sem o quê, o que saberíamos dela?): encenação do recitante, interpelação do público, efeitos de eco e repetições ligados à composição estrófica. A segunda, que exige do poeta que seja também compositor, às vezes denuncia seu modo oral de transmissão, ao nomear o menestrel a cuja memória se confiou a canção ou a desejar que ela encontre um cantor digno de si. O romance é o primeiro gênero (se, no início, esta forma nebulosa merece esse nome) destinado à leitura, mas é uma leitura em voz alta. A arte dos menestréis deixa amplo espaço à mímica e à interpretação dramatizada: ver-se-ão, mais tarde, suas consequências, tanto para o desenvolvimento do teatro quanto para a definição do eu poético. A voz, com sua qualidade e timbre próprios, faz parte integrante da arte literária. Entre os trovadores, os dons de intérprete e de músico são frequentemente confundidos.25

O próprio Abelardo participou dessa retórica dos sentidos quando conheceu

Heloísa e ela e o amor que lhe dedicava foram os responsáveis pelo abandono dos

estudos da filosofia em prol da composição de poemas em que homenageava o seu

amor, como ele mesmo afirma: “Eu me repetia. Se conseguia escrever qualquer peça

em versos, me era ditada pelo amor, não pela filosofia. Em várias províncias, vós o

sabeis, ouve-se frequentemente, ainda hoje, outros amantes cantar meus versos...”. 26

Aos poemas de Abelardo não temos acesso, como a outras fontes de caráter

oral. A nós só é permitido conhecer a história do seu relacionamento com Heloísa

através da escrita que, não somente pelo fato de ter permanecido através do tempo,

admite o atestado de veracidade. Isto porque, como afirma Duby,

25ZINK, M. “Literatura(s)”.In: LE GOFF, J.; SCHITT, J.C. Dicionário temático do ocidente medieval. EDUSC: São Paulo, 2002, p. 81. 26

Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p.42

Page 21: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

20

a literatura do século XII não é realista. Ela representa o que a sociedade quer e deve ser. Reconstituir um sistema de valores, eis tudo o que é possível fazer a partir dessas palavras proferidas em voz alta e inteligível. E reconhecer nesse sistema o lugar designado às damas pelo poder masculino. 27

Poder masculino este que abarcava tudo o que estivesse relacionado com o

público, começando pela escrita. Entretanto, essa é mais uma afirmação proveniente de

uma literatura que profere um discurso totalizante. O próprio fato de um dos

personagens de nosso estudo ser uma mulher, cuja fama a antecedera à chegada a Paris

e suscitara a curiosidade e o amor em um dos mais famosos mestres do período, atesta

a necessidade de analisar com perícia as fontes escritas, as quais revelam em grande

parte proveniente o pensamento masculino.

As damas do século XII sabiam escrever, e com certeza melhor que os cavaleiros, seus maridos ou seus irmãos. Algumas escreveram, e talvez algumas tenham escrito o que pensavam dos homens. Mas praticamente nada subsiste da escrita feminina. Resignemo-nos: nada aparece do feminino a não ser por intermédio do olhar dos homens. 28

Sempre iremos nos deparar com problemas relacionados com as fontes escritas

e com as interpretações que delas são feitas, sobretudo com os seus elementos

simbólicos e metafóricos. Há que se ter em mente que tais resquícios históricos não

nos fornecem a essência de quem foram Heloísa e Abelardo e também não nos

permitem apreender de forma completa o sentido e o efeito de sua relação, pois essa

literatura comporta uma grande carga de idealização de seus personagens. Por este

motivo é que sempre o mistério estará pairando sobre nossas análises, pelo fato de ser

impossível abarcar toda a significação da experiência de Abelardo e Heloísa.

Instinto e o pensamento são incompatíveis; essas noções [...] encobriam uma série de outras, misturadas: sensibilidade e vontade, real concreto e abstração

27 DUBY, G. Heloísa, Isolda e outras damas no século XII. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 11-12. 28 Ibid, p. 11-12.

Page 22: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

21

dedutiva, política e ideologia, economia e moral, poder criador e ciência retórica, e, bem no fundo, apesar de certas experiências, homem e Deus 29.

Ou seja, o pensamento nunca irá definir com exatidão o sentimento dessa

experiência amorosa, apresentará sempre uma imagem deformada porque será sempre

confrontada, posta à prova, reconfigurada, reinterpretada, mas nunca será a imagem

original, que somente a Heloísa e Abelardo pertence.

29 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p.7

Page 23: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

22

CAPÍTULO 2

AS BASES IDEOLÓGICAS DA VIDA MORAL

2.1 A REGULAÇÃO MORAL DO CORPO E DA ALMA

A despeito das diferentes visões que nos são transmitidas sobre a Idade Média,

a questão que não se contesta é o fato de a igreja ter sido a instituição dominante desse

período.

Detentora de boa parte das terras, instituição dominante do feudalismo30, o

domínio da igreja não se restringia apenas ao plano espiritual, abarcando também a

esfera da política, da economia, da cultura, enfim, estava presente, em menor ou maior

grau, em todos os aspectos da vida social.

A fé medieval refere-se menos à crença íntima do que à fidelidade no sentido feudal do termo, quer dizer, uma fidelidade prática, manifestada por atos, palavras e gestos. Sobretudo, não seria questão de escolha pessoal: é-se cristão porque se nasce no cristianismo. É uma identidade herdada (pelo ritual do batismo), que não se discute.31

A vida no contexto medieval, sob o domínio da igreja e do cristianismo, tinha

um caráter guerreiro, cuja luta era travada diariamente entre os vícios e as virtudes,

entre a vida terrena e a vida no além.32 As relações entre clérigos e laicos estão

incrustadas no conjunto das realidades sociais, de modo que não se pode estudar a

Idade Média separada da igreja.

Mais do que uma luta. A vida terrena era uma provação, uma passagem e uma

preparação dolorosa para a vida eterna. Dolorosa porque o mundo sensível é o reino do

diabo e da incapacidade humana de atingir a perfeição, porque esta não é possível de

ser alcançada através de uma substância corpórea, recipiente de todos os males que

inquietam a alma. É o cristianismo e a filosofia platônica unidas para moldar o ideal

ascético da vida humana no mundo terreno. Inserida nessa perspectiva religiosa-

30 BASCHET, J. A civilização feudal. Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006. 31 Ibid, p.168. 32 LE GOFF, J. “Prefácio”. In: BASCHET, J. A civilização feudal. Do ano mil à colonização da

América. São Paulo: Globo, 2006, p. 168.

Page 24: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

23

filosófica, a igreja se impõe tanto fisicamente, através da suntuosidade de suas

construções, como ideologicamente para regrar e comandar a ordem social. Para

mantê-la, a instituição confere um caráter dúbio à cidade, ora demonizada, ora

regenerada, centro, de um lado do pecado e tentação, de outro da cultura e

oportunidades.

Essa ideologia moral institucionalizada contribuiu tanto para a determinação e

controle dos marginalizados, entendidos como fora do padrão ou naturalmente

inferiores, como para a exposição dos valores morais aceitáveis, controlando as ações

humanas, como o ritmo do trabalho, do repouso, da alimentação, do sexo. Ou seja,

onde houvesse uma pessoa lá estariam os valores morais pregados pela instituição

religiosa para manter a ordem da boa sociedade. Essa regulamentação também se

destinava ao controle da violência que não poderia ser praticada nos períodos

denominados Paz e Trégua de Deus.

Toda essa regulamentação é permeada pela lógica da salvação da alma,

formulada por meio da dualidade entre o bem e o mal, entre pecado e virtude, entre

danação e salvação. “O mundo é o teatro desse afrontamento permanente e dramático

entre o criador e o Satã”.33

Como não poderia deixar de ser, Heloísa e Abelardo também sofreram as

consequências dessa moralidade ideal. Desejo ou amor. Amor ou caritas. Vida

conjugal ou vida religiosa. Quase um ser ou não ser da consciência da época medieval.

Ou melhor, não havia a escolha do não ser. Ou se renunciava aos prazeres do século ou

se destinava à danação eterna. Pelo menos para Abelardo.

Este protagonizava de forma vívida essa articulação moral travada entre o

carnal e o espiritual. Professando a filosofia e a teologia, convive com os perigos

mundanos que a cidade oferece. Entretanto resiste.

A preparação dos meus cursos não me permitia o lazer de frequentar as mulheres da nobreza e eu tinha poucas relações com as da burguesia. Mas a fortuna, acariciando-me, como se diz, ao mesmo tempo em que me traía, encontrou um meio mais sedutor para facilitar minha queda: caí de minhas

33 BASCHET, J. A civilização feudal. Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006, p.381.

Page 25: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

24

alturas sublimes, e a misericórdia divina, para me humilhar, soube vingar-se de meu orgulho, esquecido das graças recebidas.34

Depara-se com Heloísa. Nobre, bela, letrada e jovem. Quantos atrativos

convidativos para a prática do “mal”. A partir daí não é a razão que os governa, mas a

paixão, o desejo, a carne. Até que Abelardo sofre na pele as consequências dos seus

atos e a partir daí sua história com Heloísa toma outro rumo, pois o anjo da guarda da

moral espreita os pensamentos do mestre, seu cúmplice, que o convence da

necessidade da expurgação dos seus pecados.

2.2. O PECADO E OS HÁBITOS DO SÉCULO

Soberba, avareza, luxúria. Assim Abelardo define sua trajetória como mestre

em Paris. Sua história é contada a partir do entrelaçamento com Heloísa. Como um

marco. Como um antes de Heloísa e depois de Heloísa. E o foi, mas como ele mesmo

teria apresentado na Historia calamitatum, o antes de Heloísa não escapava às

indagações morais da sua própria consciência.

Meu sucesso provocou, entre aqueles dentre os meus condiscípulos tidos por mais hábeis, uma indignação tanto maior porquanto eu era o mais jovem e o último a atender aos estudos. É daí que eu dato o início dos infortúnios dos quais ainda hoje sou vítima. Minha fama crescia dia a dia: a inveja levantava-se contra mim. Por fim, presumindo por demais o meu gênio, aspirei, malgrado toda minha juventude, a também dirigir uma escola. [...] Desde as minhas primeiras lições conquistei um tal renome como pensador dialético que a reputação dos meus condiscípulos, a própria glória do meu mestre foram quase ofuscadas. Cheio de orgulho, seguro de mim, logo transferi minha escola para Corbeil, cidade bem próxima de Paris, para ali prosseguir mais vivamente nesse torneio intelectual.35

Pecado da soberba. Tinha total consciência de sua fama e capacidade como

mestre. Tinha confiança até demais como atesta outra passagem:

Em pouco tempo, eu reinava sozinho no domínio da dialética. Seria difícil exprimir a inveja que ressequia Guillaume, o amargor que nele fermentava. Incapaz de conter seu ressentimento, procurou mais uma vez me afastar pela

34 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p.39 35 Ibid, p.30-31.

Page 26: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

25

astúcia. Com ofensas infamantes, ele fez com que aquele que me havia cedido a cátedra fosse destituído, e nela pôs outro, pensando assim criar um rival para mim. Voltei então a Melun e reconstituí minha escola. Quanto mais a inveja me perseguia diante do mundo, mais eu ganhava em autoridade!36

Ao pecado da soberba seguiu-se o da avareza, propiciado pelo dinheiro “que

passou a ser necessário, minando os valores tradicionais: honra, mérito, coragem, fé” 37, como acentua outra passagem da Historia calamitatum:

Minhas lições foram bem acolhidas: não demorou muito a se reconhecer que meu talento teológico se igualava ao me gênio de filósofo. Professava simultaneamente as duas disciplinas; uma e outra atraíam à minha escola uma multidão entusiasta. Não ignorais o lucro material nem a glória que disso tirei: o renome vos deve ter informado. Mas a prosperidade sempre enfatua os tolos, a segurança material mina o vigor da alma e a dissolve facilmente entre as seduções carnais. Acreditei ser então o único filósofo sobre a Terra; nenhum ataque me parecia digno de temor.38

Em seguida, Abelardo confessa ter praticado também o pecado da luxúria,

rompendo com o ideal de negação dos prazeres carnais da moral medieval religiosa:

Eu, que até então havia vivido numa estrita continência, comecei a dar brida a meus desejos. Quanto mais eu avançava no estudo da filosofia e da teologia, mais a impureza de minha vida me afastava dos filósofos e dos santos. [...] O orgulho e o espírito da luxúria me haviam invadido.39

Em seguida, ele confessa suas não bem intencionadas pretensões com a jovem

Heloísa:

Eu a via assim ornada de todos os encantos que atraem os amantes. Pensei que seria de bom alvitre estabelecer com ela uma ligação. Não duvidava do êxito: eu brilhava pela reputação, juventude e beleza, e não havia mulher junto a quem meu amor tivesse a temer recusa. 40

36 Ibid, p.33. 37 DUBY, G. Idade Média na França. De Hugo Capeto a Joana D’Arc (987-1460). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992, p.163. 38 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p.38 39 Ibid, p.38. 40 Ibid, p.39.

Page 27: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

26

Os três maiores inimigos do homem são: a mulher, o dinheiro, as honras41 e por

todos esses pecados, como atestam as passagens, Abelardo se corrompeu, mas, dentre

os pecados capitais, o pior conforme a gradação elaborada pela igreja é a soberba, é o

pecado do orgulho da vida, provocado pela fama, pelo apego às honras que

massageiam o ego e anuviam a razão. O esquema dos pecados capitais, aperfeiçoado

no século V por Cassiano e readaptado por Gregório Magno, esquematiza

oito pecados principais, hierarquicamente organizados em uma espécie de exército, onde o orgulho exerce funções de comandante supremo, seguido dos sete outros vícios (vaidade, inveja, cólera, preguiça, avareza, gula, luxúria), os quais, por sua vez, conduzem uma multidão de pecados secundários.42

A existência do pecado não é questionada. Ele existe e não deixará de governar

os atos humanos, reservando àqueles que são submetidos ao batismo a possibilidade de

participar do processo de redenção. O pecado se constitui como um problema da moral

cotidiana, uma vez que não se pode fugir dele, pois, por intermédio do pecado original

todos os homens e mulheres já nascem propensos ao ato pecaminoso. A questão que a

igreja se propõe a deliberar é sobre a origem do pecado e a sua diferença em relação ao

vício. A primeira questão diz respeito a quem se dirige o pecado cometido e por meio

de qual ato é praticado.

Sobre a diferença entre vício e pecado, há teorias que acabam por tirar a

responsabilidade direta do indivíduo, uma vez que este está condenado, devido a

hereditariedade do pecado original, condição estabelecida por São Bernardo.

Entretanto, essa tendência se desloca para uma concepção de pecado de Abelardo que

atribui ao ato consciente de cometer a transgressão da lei divina, a culpa pelo pecado.

Abelardo discute e teoriza sobre essa questão e ele mesmo peca. Nas passagens

descritas acima, é possível notar que ele tem consciência do pecado da avareza, da

soberba e da luxúria. Porém, as referências de uma vida desregrada por meio de vícios

41 DELARUM, J. “Olhares de clérigos”.In: DUBY, G.; PERROT, M. (org). História das mulheres no

ocidente. Vol. 2: A Idade Média. Porto: Edições Afrontamento, 1990, p.38. 42 CASAGRANDE, C; VECCHIO, S. “Pecado”. In: LE GOFF, J.; SCHMITT, J.C. Dicionário

temático do ocidente medieval. EDUSC: São Paulo, 2002, p. 345.

Page 28: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

27

só são atestadas após o desfecho trágico de sua relação com Heloísa. Vítima da

vingança familiar, sua castração levantou dúvidas sobre suas atitudes enquanto homem

da igreja e da filosofia. A partir dessa reflexão, a emasculação é concebida por

Abelardo como um castigo não só pelo pecado cometido com sua amante, mas como

também pelos vícios anteriores.

Abelardo se dá conta de que ele e Heloísa estão fora da ordem, transgrediram as

regras da boa conduta moral. Tais regras dizem respeito ao comportamento que

diferenciava clérigos e leigos.

Aos clérigos, o amor era proibido. Aos prazeres da carne eram suscetíveis

àqueles que estavam mais próximos da vida mundana. Os clérigos que, teoricamente,

desenvolviam uma experiência ascética de vida, deveriam permanecer afastados da

experiência amorosa. É preciso ter em mente, porém, que tal debate poderia

influenciar o comportamento real, mas se articula mais como modelo do que como

reflexo.43

Na verdade, existe um questionamento sobre a condição de Abelardo dentro da

igreja. A partir do século XI, a igreja passa a exigir que, ao menos os clérigos das

ordens maiores sejam celibatários. Ora, essas classes maiores dizem respeito a padres e

a bispos. Abelardo é um tonsurado, uma classe inferior, sem o sacramento do

sacerdotium, 44fato que não contribui para explicar o motivo pelo qual queria que seu

casamento com Heloísa fosse mantido em segredo.

Mas a Abelardo cabia mais um obstáculo e uma regra. Além de clérigo, era

filósofo e, como dita a tradição filosófica dos antigos, a prática da filosofia e a

experimentação dos prazeres do mundo sensível são incompatíveis. E é Heloísa quem

tenta dissuadir Abelardo do casamento com esse argumento:

Os que pela excelência de sua vida distinguiam-se entre todos os outros: essa expressão indica claramente que os sábios pagãos, os filósofos, deveram tal nome mais à conduta do que a ciência [...] Se desconheces os deveres do clérigo, preserva ao menos a dignidade do filósofo.45

43 FLORI, J. A cavalaria. A origem dos nobres guerreiros da Idade Média. Madras: São Paulo, 2005, p. 152. 44 SCHMITT, J.C. “Clérigos e leigos”. In: LE GOFF, J.; SCHMITT, J.C. Dicionário temático do

ocidente medieval. EDUSC: São Paulo, 2002, p. 242. 45 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p. 48.

Page 29: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

28

Apesar de, no século XII, o filósofo mais retomado ser Aristóteles, a concepção

da incompatibilidade da relação entre o inteligível e o sensível é apropriada da teoria

da tripartição de alma, de Platão, a qual sugere que a alma humana é regida por três

faculdades, sendo elas: a razão, a vontade e o desejo. Cada uma dessas faculdades se

impõe sobre as demais nas diferentes almas, diferenciando as posições de cada pessoa

na sociedade, relacionadas com a predisposição da alma. Nessa perspectiva, a alma do

filósofo é comandada pela razão, mais próxima do conhecimento das essências,

contrária à posição do vulgo, preso às aparências do mundo sensível, de forma que o

filósofo deveria se afastar de tudo que perturbasse o movimento da alma rumo ao

mundo das essências.

A cada uma dessas faculdades corresponde uma virtude, a saber: à da razão

corresponde a da sabedoria; à da vontade, corresponde a da coragem; à do desejo,

corresponde a da temperança. Platão imaginava um Estado como o corpo humano.

Assim como o corpo possui cabeça, peito e baixo-ventre, o Estado possui governantes,

soldados e trabalhadores. Do mesmo modo como um indivíduo saudável e harmônico

mostra equilíbrio e moderação, um Estado justo se caracteriza pelo fato de cada um

conhecer o seu lugar no todo e, para que a cidade seja justa, precisa ser comanda pela

razão. Em relação ao mundo inteligível, ou das idéias e do mundo sensível, a teoria

platônica dita que o conhecimento das essências é possível através do conhecimento da

idéia ou da forma, única e imutável, uma vez que a pluralidade das coisas é própria do

mundo sensível. Enquanto o mundo das idéias transmite conhecimento (episteme), o

mundo sensível só nos possibilita obter opiniões (doxa). 46

Heloísa defende essa idéia quando argumenta contra o casamento proposto por

Abelardo:

Pensa na situação em que uma aliança legítima te meteria: qual a relação entre os trabalhos da escola e os cuidados de um lar, entre uma escrivaninha e um berço, um livro e uma roca de fiar, um estilete ou uma pena e um fuso? Quem, então, meditando a Escritura ou os problemas da filosofia, suportaria os vagidos de um recém-nascido, as canções da ama que o embala, a multidão barulhenta dos servos e servas, a sujeira habitual da infância? [...] mas a condição dos filósofos é diferente, e aquele que busca a fortuna ou aplica seus cuidados às coisas desse mundo não se entrega aos estudos

46 ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 525.

Page 30: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

29

teológicos nem à filosofia. Eis porque os maiores filósofos da antiguidade desprezavam o mundo. Deixando, ou antes fugindo ao século, eles se proibiam toda espécie de volúpia e somente descansavam no seio da filosofia.47

Ao lado dessa perspectiva de vincular o casamento com perturbação da alma,

pois se constituía como um obstáculo à contemplação, ele também passa a ser

compreendido como um mal menor, cujo objetivo é disciplinar a sexualidade. Esta é

aceita apenas com um único fim: a procriação. Além disso, a prática do sexo era

controlada ideologicamente, pois àqueles que praticassem sexo em períodos destinados

à penitência, ou em épocas em que a mulher se encontrava “impura” ou grávida, entre

tantos outros momentos de exigência celibatária, que totalizavam mais de 250 dias48,

eram-lhes pressagiadas concepções monstruosas.

Além disso, o casamento era comumente uma associação de interesses e uma

instituição de proteção para as mulheres49, sendo a conduta delas a responsável pela

honra da casa.

Todavia, não se deve assimilar tal discurso como representativo da sociedade tal

como ela era realmente. Como lembra Duby, os testemunhos sobre casamento que

chegaram até nós são, em grande parte, de fontes eclesiásticas e para compreendê-los é

preciso “atravessar a opacidade da camada de moralismo que cobre por inteiro nossos

dados.” 50

É com base nesse discurso que se fará a análise do processo da transformação

da relação entre Heloísa e Abelardo, mas há que se ter em mente que este é apenas um

modelo de código de comportamento coletivo que, estabelecendo regras,

institucionalizou o casamento como um meio de refrear as pulsões da carne.

47 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p. 46. 48 ROSSIAUD, J. “Sexualidade”. In: LE GOFF, J.; SCHMITT, J.C. Dicionário temático do ocidente

medieval. EDUSC: São Paulo, 2002, p. 481. 49 BLOCH, M. A sociedade feudal. Edições 70: Lisboa, s/d. 50 DUBY, G. Idade Média, idade dos homens: do amor e outros ensaios. Companhia das Letras: São Paulo, 1989, p.13.

Page 31: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

30

2.3 OS LIMITES DA VISÃO DO FEMININO

Outra formulação de imagem promovida pela igreja foi a ambigüidade da figura

feminina. Na Idade Média vamos encontrar referências que relacionam a mulher com

três figuras distintas. A primeira delas é a da pecadora que compartilha a desgraça

proporcionada pelas atitudes que levaram a corrupção do homem, é Eva. Há duas

passagens bíblicas que comentam a criação da mulher. A primeira delas profere que o

homem e a mulher foram criados espiritualmente iguais (Gn.1, 27). Outra passagem, a

mais difundida e utilizada, se refere à origem carnal de Eva, que teria sido criada a

partir de uma costela de Adão (Gn.2, 21-22), e por isso à mulher estaria reservado tudo

o que se referisse ao plano carnal, “enquanto o homem, por ter adquirido a vida por um

sopro divino, estaria mais próximo a Deus e a tudo o que é espiritual.” 51

A mulher, dessa forma, é a causadora dos males destinados ao homem. “O

pecado original, pecado de orgulho intelectual, de desafio intelectual a Deus, é

transformado pelo cristianismo medieval em pecado sexual. O desprezo pelo corpo e

pelo sexo toca assim o seu ponto máximo no corpo feminino”.52

De acordo com Rossiaud, “uma mulher é sempre conhecida carnalmente, mas

jamais reconhecida em seu íntimo por um homem cujo primeiro dever consiste em não

se levar pela mulher. A relação carnal é um ritual de poder que está no centro da

identidade masculina” 53. Porém a segunda e a terceira imagem são restauradoras dessa

imagem feminina. Uma diz respeito à mulher ideal, cujo pilar é a virgindade,

personificada na figura de Maria, ideal de santidade. A outra imagem é a de Maria

Madalena, pecadora convertida que demonstra que é possível abandonar uma vida

regida pelo pecado e seguir pelo caminho da salvação.

À mulher são atribuídos os maiores mistérios da relação entre a vida e a morte,

entre a capacidade de remissão e a causa da queda dos homens, pois ela encarna tanto

a figura de Eva, que significa desgraça, mas também de vida, implícito no anagrama

51 VENTORIM, E. Misoginia e santidade na baixa idade média: os três modelos femininos no Livro

das Maravilha (1289) de Ramon Llull. Revista Mirabilia, n.5. Disponível em: http://www.revistamirabilia.com/Numeros/Num5/misoginiaeliane.htm. Acesso em: 17 mar. 2009. 52 LE GOFF, J. O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval. Edições 70: Lisboa, 1983, p. 57. 53 ROSSIAUD, J. “Sexualidade”. In: LE GOFF, J.; SCHMITT, J.C. Dicionário temático do ocidente

medieval. EDUSC: São Paulo, 2002, p. 488.

Page 32: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

31

Eva, o qual se lê Ave, de forma que invocar Eva é ao mesmo tempo invocar Maria,

como atesta Agostinho: “Pela mulher a morte, pela mulher a vida”. 54

Como exemplo desse mistério feminino tem-se a cantiga Entre Av’E Eva de

Afonso X, a qual expressa bem a faceta dúbia conferida à mulher:

Entre Av' e Eva

Esta é de loor de Santa Maria,

do departimento que á entre Ave e Eva.

Entre Av' e Eva

gran departiment' á.

Ca Eva nos tolleu

o Parays' e Deus,

Ave nos y meteu;

porend', amigos meus:

Entre Av' e Eva

gran departiment' á.

Eva nos foi deitar

do dem' en sa prijon,

e Ave en sacar;

e por esta razon:

Entre Av' e Eva

gran departiment' á.

Eva nos fez perder

amor de Deus e ben,

e pois Ave aver

no-lo fez; e poren:

Entre Av' e Eva

gran departiment' á.

Eva nos ensserrou

54 DELARUM, J. “Olhares de clérigos”.In: DUBY, G.; PERROT, M. (org). História das mulheres no

ocidete. Vol. 2: A Idade Média. Porto: Edições Afrontamento, 1990, p. 39.

Page 33: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

32

os çeos sen chave,

e Maria britou

as portas per Ave.

Entre Av' e Eva

gran departiment' á.55

Podemos dizer que Heloísa encarna essas três imagens. A pecadora que, apesar

de ter se esquivando, acaba sucumbindo às armas da sedução e se entrega a Abelardo.

O demônio bem sabe, de longa experiência, que a mulher é sempre para o homem uma causa de queda imediata, e por isso, armando para ele a armadilha de Heloísa, conseguiu levar à perdição, através do casamento, esse Abelardo que ele não conseguira arruinar pela fornicação.56

É o demônio se fazendo tentação no corpo e na mente da bela Heloisa.

Entretanto, ela se reconcilia com o caminho reto quando se converte à vida religiosa

que, ao menos pelos olhos dos outros, era uma conversão sincera. A própria Heloísa

declama sobre si o papel de ser a perdição de Abelardo, assim como toda mulher é a

perdição de qualquer homem:

Infeliz, que nasci para ser a causa de um tal crime! As mulheres não poderão então jamais conduzir os homens senão à ruína! [...] Já a primeira mulher, no jardim do Éden, seduziu o primeiro homem: criada pelo Senhor para lhe trazer assistência, ela foi sua perda. 57

Entretanto, essa passagem de Heloísa julgando a si mesma sob o signo da

maldade deve ser relacionada ao crime ao qual Abelardo foi exposto. Segundo Gilson,

a crise moral de Heloísa estava muito mais relacionada à castração de Abelardo do que

à sua relação pecadora. Para Heloísa, era frustrante e decepcionante ver o seu amado

pagando por atos que ambos cometeram. Além disso, ela teria recusado, no princípio,

o casamento porque sabia que essa condição levaria à queda moral de Abelardo diante

55 Alfonso el sabio. Cantigas de Santa Maria. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br. Acessado em: 06 jun. 2009. 56 GILSON, E. Heloísa e Abelardo. Edusp: São Paulo, 2007, p. 95. 57 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p. 116.

Page 34: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

33

dos homens da igreja e diante de seus alunos. O que interessava à Heloísa era a

grandeza de Abelardo, por cuja queda ela poderia ser responsabilizada.

A mulher era, segundo a antropologia medieval, naturalmente, posicionada em

uma condição inferior ao do homem e, na maioria das situações, se encontrava em

“absoluta dependência, primeiro do pai e, depois, do marido” 58 e relegadas à

marginalidade, através do desprezo, juntamente com doentes, pobres, crianças e

velhos.59

Mas o fato é que “as mulheres são julgadas pelo seu sexo. A morte, o

sofrimento, o trabalho entraram no mundo através delas”.60 E pela sua natureza fraca

devem, naturalmente, estar submetidas ao poder e controle masculino.

As mulheres, vista sua fraqueza, comovem mais quando caem na indigência, e sua virtude é mais do que a nossa agradável a Deus e aos homens. Deus cumulou de tantas graças a abadessa Heloísa, minha irmã, que os bispos a amavam como sua filha, os abades como sua irmã, os leigos como uma mãe. Dentro em pouco, todos admiravam sua piedade, sua sabedoria, sua incomparável mansuetude e a paciência que ela mostrava em tudo61.

Nem mesmo Heloísa escapou ao discurso misógino. Mas através das virtudes,

ela se mostrou pronta para seguir no caminho da salvação. Ou talvez não buscasse a

salvação perante Deus, mas buscasse a remissão da culpa de ter causado a ruína moral

do filósofo Abelardo. Este pecado ela reconhece. Do pecado do amor não admite a

culpa. O problema moral de Heloísa é ter pecado contra Abelardo, não contra Deus.

58 SCHLESENER, A. P. Abelardo e Heloísa: considerações sobre a situação da mulher na Idade

Média. Anacleta, Guarapuava, v.4, n.1, p.67-76, jan/jun.2003. http://www.unicentro.br/editora/revistas/analecta/v4n1/artigo%206%20abelardo%20e%20heloisa.pdf. Acesso em: 17 mar. 2009. 59 LE GOFF, J. O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval. Lisboa: Edições 70, 1983. 60 DUBY, G. PERROT, M. (org). História das mulheres no ocidente v.2: A idade média. Edições Afrontamento: Porto, 1990. p.27. 61 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p. 77-78.

Page 35: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

34

2.4 A DOUTRINA DO AMOR PURO X A MORAL DA INTENÇÃO

Ainda sobre seu peito enamorado me deixe

descansar,

Ainda beber o veneno delicioso do teu olho,

Ofegar em teus lábios, e ser pressionada em seu

coração;

Dê-me tudo que possa, e deixe-me sonhar o

resto.

Alexander Pope

Segundo a teoria sobre o pecado de Abelardo, de boas intenções o céu estaria

cheio, ao passo que o inferno estaria cheio de atos maldosos. Isto porque, Abelardo

diferencia vício de pecado. Para ele vício é uma inclinação em consentir o que não

convém, que não agrega a intenção de fazer algo degradante, imoral, vil. Por sua vez, o

pecado consiste em consentir o mal, ou seja, a ação pecadora pressupõe a consciência

da maldade, do ato imoral e mesmo assim o faz.

Segundo o filósofo e teólogo, uma ação é boa ou má dependendo da intenção que anima o ato. Ou seja, pecar é diferente de realizar o pecado, ter boa intenção é diferente de fazer uma boa ação, e assim por diante. Fazer algo de bom sem ter uma boa intenção não possui a qualidade de bom, assim como o contrário62

A moral da intenção de Abelardo é que irá nortear a sua concepção de pecado e

é o que define que, para Deus não é o ato que conta para determinar a salvação ou

danação, mas sim a intenção, pois muitas vezes se faz algo bom com a intenção de

conseguir o mal, ou se faz o mal, mas com a intenção de fazer o bem, ou simplesmente

não há a consciência de que a ação irá culminar num mal. Pecar é diferente de realizar

o pecado. Esse é o ponto de partida da autodefesa de Heloísa. Ela se defende dizendo-

se culpada da derrocada de Abelardo, mas se diz inocente porque sua intenção não era

esta. Muito pelo contrário. Quando fez a sua objeção contra o casamento era

exatamente para evitar tal situação que o fez.

62 RANGEL, P. A abadessa infiel e o cavaleiro apóstata. Revista Estudos Hum(e)anos, IUPERJ, vol.0, n.0, 2008, p. 16-17. Disponível em: www.estudoshumeanos.com/.../Art.%202,%20estudos,%200,%200,%202008.pdf. Acesso em: 18 abr. 2009.

Page 36: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

35

Pequei gravemente, tu o sabes; entretanto, sou inocente. O crime está na intenção mais que no ato. A justiça pesa o sentimento, não o gesto. Mas quais foram minhas intenções com relação a ti, tu somente, que as experimentas, podes julgar. Submeto tudo a teu exame, abandono tudo ao teu testemunho. Dize-me somente, se o podes, por que, depois de nossa conversão monástica, que tu sozinho decidiste, me deixaste com tanta negligência cair no esquecimento; por que me recusaste a alegria de tuas entrevistas, o consolo de tuas cartas?63

Nessa passagem da primeira carta de Heloisa a Abelardo, ela reconhece o ato,

não a intenção. Depois de tanto tempo sem contato, sem notícias ela se acha no direito

de cobrar. Cobra a presença na ausência, isto é, que console a saudade através de

cartas. Aqui parece haver, além de um pedido da presença, um pedido de reparação,

afinal de contas, ela o seguiu no caminho de salvação que ele almejava, ela pede que

ele “não se esquive sob uma retórica clerical a seu único dever: saldar a dívida

amorosa que ele contraiu para com ela”.64 Mas ela pede somente algo que o próprio

Abelardo prometeu no início do relacionamento, que mesmo separados, através da

correspondência, permaneceriam presentes um ao outro.65

Nesse mesmo período, Abelardo nos apresenta suas intenções perante Heloísa:

Não duvidava do êxito: eu brilhava pela reputação, juventude e beleza, e não havia mulher junto a quem meu amor tivesse recusa. Heloísa, eu estava persuadido, oporia tanto menor resistência quanto possuía uma sólida instrução e desejaria ampliá-la ainda mais. [...] Todo inflamado de amor por essa jovem, procurei a ocasião de travar com ela relações bastante estreitas que me permitissem penetrar em sua familiaridade quotidiana, e levá-la mais facilmente a ceder [...]66

Essas duas confissões revelam como os sentimentos de Heloísa e Abelardo

tiveram evoluções distintas. Heloísa é apresentada pelo próprio Abelardo como uma

presa que não tinha com escapar do seu intento e das garras do seu desejo. Essa

conquista despertou em Heloísa um amor desinteressado, o qual buscava nada mais do

que a si mesmo, isto é, Heloísa nada esperava de Abelardo, visto ter consciência do

seu status, a qual até mesmo ela colocava em primeiro lugar. 63 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p.98. 64 Ibid, p. 24. 65 Ibid, p. 39-40. 66 Ibid, p. 39-40.

Page 37: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

36

Por esse motivo é que Heloísa absolve a si mesma do pecado, uma vez que seu

amor por Abelardo era puro e desinteressado e não tinha objetivo de provocar-lhe

qualquer atribulação. Ela foi a discípula perfeita do princípio do filósofo.

Se seu amor é puro de qualquer interesse, por procurar em si mesmo a própria recompensa, é justificado por definição, e já que é apenas a intenção que determina o valor moral do ato, todo ato, mesmo repreensível em si, se for ditado por um sentimento de amor puro, será por isso mesmo considerado inocente.67

Heloísa, que nutria um amor puro por Abelardo, questiona o sentimento deste,

alegando que, perdendo a capacidade de gozar dos prazeres que ela podia lhe

proporcionar, o amor também deixou de existir, ou seja, “foi a concupiscência, mais

que uma feição verdadeira, que te ligou a mim, o gosto do prazer mais do que o amor.

A partir do dia que essas volúpias te foram arrebatadas, todas as ternuras que elas te

inspiraram se esvaneceram”. 68

Heloísa descarta a sua culpa porque se ligou a Abelardo por amor, ternura,

carinho, admiração, de modo involuntário, não podendo ser considerado um crime.

Todavia, Abelardo admite a culpa ao descrever o plano consciente de investir no jogo

de conquista da amada. Ele foi movido pelo desejo, pela concupiscência, pela lascívia.

A ele cabe a punição, pois, segundo sua teoria, ela peca, mas ele realiza o pecado. O

conflito moral que se abate entre os dois é de natureza diversa. Ela luta com o conflito

de sentimentos de culpa e inocência em relação à desgraça que se abateu sobre

Abelardo. Este aceita resignado a punição, pois, como já vimos, não precisou Heloísa

entrar em sua vida para ele praticar o pecado, ela só foi o meio pelo qual se deu o

desfecho dessa vida desregrada demais para o filósofo, pois “o fim de uma vida

permite julgar seu começo”.69

O momento crucial para Abelardo não foi a descoberta do seu caso amoroso

com Heloísa por Fulbert, mas a castração. O tio de Heloísa, não se sentiu compensado

o suficiente pela vergonha causada pelo casal. Afinal, “uma jovem do clã foi insultada.

67 GILSON, E. Heloísa e Abelardo. Edusp: São Paulo, 2007, p.91. 68 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p. 98. 69 Ibid, p.58.

Page 38: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

37

O clã a vingará”. 70 A vergonha foi pública, mas a reparação foi às escondidas,

exigência de Abelardo que não queria prejudicar sua reputação como clérigo e

professor com a notícia do seu matrimônio com Heloísa. Achando-se no direito de

vingar a sobrinha e restaurar a honra familiar, o cônego comandou a amputação das

partes do corpo com as quais Abelardo cometera o delito de que se queixavam.71

A primeira sensação foi a dor, mas não tanto a dor física, mas a dor da

vergonha:

Sentia minha vergonha mais ainda do que a mutilação. A confusão me abatia mais ainda do que a dor. Algumas horas antes eu gozava de uma glória incontestável. Um instante havia sido suficiente para rebaixá-la, talvez para destruí-la! O julgamento de Deus me batia com justiça na parte do meu corpo que havia pecado.72

Abelardo compreende o fato como um castigo de Deus por ter se desviado do

caminho que deveria seguir. Ao invés de se dedicar à vida espiritual ele se rebaixou

aos prazeres mundanos e negligenciou sua profissão e sua vocação. “A mão divina me

havia atingido, eu bem o sabia, para que, liberto das seduções carnais e da vida

tumultuada do século, eu pudesse me entregar mais livremente ao estudo das letras.

Deixava de ser o filósofo do mundo para me tornar verdadeiramente o filósofo de

Deus”.73

Entretanto, o pecado não havia sido cometido sozinho. Heloísa devia seguir

com ele no caminho da remissão da falta. Ela ingressa primeiro na vida religiosa. Mas

ela reconhece que não se arrepende do seu passado.

Devo eu, com efeito, confessar-te toda a debilidade do meu miserável coração? Não consigo suscitar em mim um arrependimento capaz de aplacar a Deus. Não cesso, ao contrário, de acusar sua crueldade a teu respeito. Eu o ofendo com movimentos de revolta contra sua vontade, em vez de pedir, pela penitência, sua misericórdia. Pode-se dizer que se faz penitência, seja qual for a mortificação que se impõe ao corpo, quando a alma conserva o gosto do pecado e arde de antigos desejos?74

70 Ibid, p.14. 71 Ibid, p.50. 72 Ibid, p.51. 73 Ibid, p.53. 74 Ibid, p.118.

Page 39: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

38

Heloísa não só não se arrepende de ter amado Abelardo como confessa que o

sentimento ainda é latente, situação que Abelardo tentará dissipar, lembrando-a de sua

condição de religiosa e da necessidade de amar aquele que a ama infinitamente e

sinceramente: Cristo e que Deus, através de um “único ferimento, infligido por justiça

a meu corpo, curou nossas duas almas”. 75

Entretanto, Heloísa não esquece. “A lembrança ‘dos prazeres muito doces’, cuja

‘pressão é tanto maior quanto mais frágil a natureza que ela assedia’, ‘os fantasmas

obscenos’ desses prazeres fazem-na ainda estremecer inclusive em meio às orações”.76

Abelardo fala de vergonha e de justiça. Heloísa fala de inocência e pecado. O

fato é que a separação dos dois foi, em grande parte, motivada pelas diferenças de

sentimento pertinentes à sua relação e como esta se vincularia com o conflito entre a

ética mundana e a moral religiosa e filosófica. Heloísa tomou as dores de Abelardo e,

apesar dele a ter socorrido quando ela necessitou, o amor que nutriam um pelo outro

era de natureza diferente. Abelardo transformou o amor carnal em espiritual. Heloísa

continuou amando, pelos dois.

75 Ibid, p.139. 76 DUBY, G. Heloísa, Isolda e outras damas no século XII. Companhia das Letras: São Paulo, 1995, p. 75.

Page 40: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

39

CAPÍTULO 3

A LINGUAGEM DO AMOR

Meu coração me abandonou, ele vive contigo.

Sem ti, ele não pode mais estar em parte alguma.

Heloísa

Alguns estudos que nos são disponíveis sobre Heloísa e Abelardo tendem a

criticar o fato de que ela só é lembrada em função dele77, ou tenta-se esmiuçar as cartas

que relatam a experiência amorosa do casal a fim de ilustrar ou de encontrar brechas

para interpretar o avançado comportamento de Heloísa para a época em vivia. 78

O próprio Duby 79, no capítulo reservado a Heloísa, começa falando sobre ela,

mas logo em seguida volta-se para Abelardo, confirmando a teoria de que a história

dos dois é indissociável. Além do mais, é ineficaz estudar a história da mulher

dissociada da história do homem80. E aqui realmente não há como estudar as duas

personagens em separado, uma vez que a relação vivenciada pelos dois proporcionou a

mudança na trajetória de suas vidas.

Gilson81 parece nortear seus estudos nessa vertente, uma vez que inverte a

ordem tradicional da referência aos dois amantes. Ao invés do comum Abelardo e

Heloísa, ela é colocada na primeira posição, pois, segundo ele “há, por certo, o

‘Abelardo sem Heloísa’, filósofo e teólogo, mas o Abelardo que interessa aqui é

justamente que se dá a compreender por ela, que de discípula, se faz mestra de seu

mestre”. 82 O autor vai mais além do que simplesmente afirmar que a vida de Abelardo

77 RANGEL, P. A abadessa infiel e o cavaleiro apóstata. Revista Estudos Hum(e)anos. IUPERJ, vol.0, n.0, 2008. Disponível em: www.estudoshumeanos.com/.../Art.%202,%20estudos,%200,%200,%202008.pdf. Acesso em: 18 abr. 2009. 78 SCHLESENER, A. P. Abelardo e Heloísa: considerações sobre a situação da mulher na Idade

Média. Anacleta, Guarapuava, v.4, n.1, p.67-76, jan/jun.2003. Disponível em: http://www.unicentro.br/editora/revistas/analecta/v4n1/artigo%206%20abelardo%20e%20heloisa.pdf. Acesso em: 17 mar. 2009. 79 DUBY, G. Heloísa, Isolda e outras damas no século XII. Companhia das Letras: São Paulo, 1995. 80 DUBY, G. Idade Média, idade dos homens: do amor e outros ensaios. Companhia das Letras: São Paulo, 1989. 81 GILSON, E. Heloísa e Abelardo. Edusp: São Paulo, 2007. 82 Ibid, p. 11.

Page 41: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

40

está também atrelada a de Heloísa, supõe que ela conduz com maior maestria o

desfecho de sua relação do que o antigo mestre.

Essa ambiguidade nas referências dos nomes também pode ser verificada na

relação dos dois, pois a forma como as correspondências a descreve revela alternância

e dicotomia de sentimentos que suscitam o interesse e o questionamento constante

sobre como foi governada essa relação, sugerindo elementos através dos quais

podemos abordar essa experiência. Essa ambiguidade é transmitida através da

linguagem que nos é apresentada; linguagem esta que não se extingue em si mesma,

mas alimenta outras formas de expressar o mesmo sentimento.

Por outro lado, as correspondências são coerentes porque manifestam a forma

de expressão própria ao ambiente filosófico desse período do medievo que valoriza a

lógica e, consequentemente a linguagem como forma de persuasão. Isto significa que,

como afirma Zumthor, “embora aparentemente heterogêneo [e ambíguo], o conjunto

possui uma indiscutível coerência interna, cuja definição (difícil de fornecer)

determina, até certo ponto, o significado que se atribui às partes”. 83 Esse significado

se dá por meio da

narrativa que Abelardo e Heloísa fazem alternadamente, bem como o comentário que eles integram à própria narração, aparecem determinados de dois modos de pensamento veiculados por duas retóricas (contemporâneas, mas distintas, no século XII; em conflito aberto no XIII): essas que, simplificando se qualificariam de “escolástica”de um lado, de “cortês do outro”. 84

A alternância dessas linguagens permite verificar a tensão existente entre os

conceitos de amor, religião e casamento, pilares mesclados e que norteiam as ações de

Heloísa e Abelardo.

83 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p. 3. 84 Ibid, p.6.

Page 42: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

41

3.1 A LINGUAGEM RACIONAL

Heloísa e Abelardo aparecem para nós como personagens sem rosto, sem corpo

e tudo o que temos sobre eles nos foi legado através de papéis e palavras. É, portanto,

através das letras que podemos nos aproximar de suas idéias e a partir delas tentar nos

aproximar da sua experiência de vida. E como as letras são a fonte do conhecimento

que temos sobre esses personagens, é pertinente analisar a forma como as palavras se

articularam para que os dois definissem sua relação e as consequências dela.

O ambiente intelectual e literário no período em que viveram Heloísa e

Abelardo era controlado pela esfera religiosa, cujo aparato ideológico e educativo era

transmitido através das corporações educacionais. Em meio à escola medieval,

desenvolveu-se a denominada escolástica. Muito mais do que uma forma de expressão

eclesiástica, o método escolástico possibilitava a formalização do pensamento através

da dialética. E é justamente a dialética uma das estruturas das correspondências, e a

qual permite visualizar a tensão existente entre as diferentes formas de sensibilidade e

experiência do sentimento amoroso entre o casal.

Mas essa tensão não necessariamente deve ser encarada num sentido negativo.

Justamente como pressupõe o método dialético, os opostos existem a fim de

complementar e permitir ao homem a possibilidade de mudança. A variação que aqui

se verifica é proposta pela diferença de pensamento e experiência de Heloísa e

Abelardo, que variam desde o descontrole passional até a serenidade da vida ascética.

A paixão é, num primeiro momento, o motor da linguagem dos amantes e é

justamente através do conteúdo passional que o filósofo tenta persuadir Heloísa a se

resignar à necessidade de remissão do pecado cometido por ambos. “Abelardo recorre

contra Heloísa toda sua habilidade dialética. Ele procede em dois tempos. Primeiro

tempo: seu amor, em sua forma antiga, chocou-se contra o pecado. É preciso

constranger a jovem a segui-lo, em sua liberdade espiritual de castrado”.85

Abelardo, como intelectual que era não poderia deixar de se impor como um

homem de autoridade, que submete todos os aspectos da vida à luz da razão. Dessa

maneira, tratou e viveu a experiência amorosa com Heloísa em momentos distintos,

85 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p.20.

Page 43: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

42

mas especificamente três momentos, três estágios. Dialeticamente falando, através de

sua historia calamitatum, analisou os fatos para chegar à síntese, à resposta, à

conclusão e à ação que deveria pautar a sua vida daí em diante.

O primeiro fato, ou a primeira tese, foi a vivência da paixão que dominou a vida

de ambos. O segundo fato, ou a segunda tese, foi desencadeado pela castração de

Abelardo, considerada por ele como a punição pela sua vida pecadora. Ou seja, aqui

temos a dualidade dialética: o amor de um lado, o pecado de outro. Qual a síntese

dessas premissas? Abelardo a encontra não na razão (ou falta dela) do homem

apaixonado; não na sabedoria do filósofo; a encontra na moral do religioso, que dita a

conversão, o arrependimento, a renúncia como conclusão desse ato. Abelardo impõe a

ascese.

Heloísa prostra-se perplexa. Ela não se desvencilha do seu amor e dos

elementos corteses, constituintes do seu universo mental, presentes no desenrolar do

discurso das suas cartas. Ela insiste ainda em manter os vínculos com Abelardo porque

ela não enxerga o pecado que ele insiste em propagar. E ela articula a defesa da sua

fidelidade ao amor e recusa do pecado a partir do conceito do próprio Abelardo de que

o pecado consiste na intenção de cometê-lo, condição que Heloisa não manifesta, uma

vez que se entregou a Abelardo de corpo e alma por amor e não com o intuito de afetar

sua honra e sua glória. Aqui, portanto, delineia-se outro aspecto dialético da história

dos amantes: as duas formas de amar que são expostas de forma visceral e através da

recordação desse amor que Heloísa tenta Abelardo.

Ela lembra a ele as horas mais ardentes, os lugares. Ela também quer persuadir, mas os argumentos não são ditados a Heloísa pela preocupação dialética. Insidiosamente, ela evoca um passado, inclina-se sobre a própria memória de Abelardo, tentando despertar lembranças mais fortes que o presente pensamento de Deus. Sem dúvida, ela não se engana senão pela metade. Heloísa joga ao mesmo tempo com esse erotismo semivergonhoso e com a ternura. 86

Nessa passagem, Zumthor afirma que a argumentação de Heloísa não é ditada

pela preocupação dialética. Mas ela joga e o que é a argumentação dialética senão um

jogo? Jogo este que Heloísa governa com maestria, talvez ainda melhor que seu mestre

86 Ibid, p.23.

Page 44: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

43

porque rebate as colocações de Abelardo com os argumentos que ele mesmo teoriza. É

a criatura contra o criador.

Entretanto, Duby questiona a atribuição a Heloísa dessa forma narrativa, uma

vez que ela se apresenta através de uma estrutura extremamente coesa, apontando para

uma construção literária, através de uma coletânea epistolar que se lê como um

romance, cujo protagonista é um homem. Ele ainda observa que tal compilação é obra

de uma demonstração erudita, cuja imagem é reforçada quando Heloísa representa o

seu papel de pecadora obstinada87.

Esses argumentos, todavia, não são suficientes para negar ou afirmar a

legitimidade da autoria de Heloísa, primeiro pelo fato de que ela não se assume como

pecadora. Ela refuta essa idéia com a teoria da moral da intenção de Abelardo. Ela

reconhece o pecado em relação à falsidade de sua vida religiosa, não pelo amor e

desejo por Abelardo, porque os considera puros, sem intenção de gerar o mal.

Em relação à linguagem das cartas atribuídas a Heloísa, é preciso lembrar que

ela foi aluna de Abelardo e, antes, já contava com uma bagagem intelectual

independente do gênio de seu mestre, de forma que, segundo Gilson “duvidar que

Heloísa utilizaria esses métodos seria duvidar que ela pudesse ser Heloísa. Seus

métodos não eram coerentes, mas ela não era comum; com certeza era mulher para

utilizar tais métodos”. 88 Não podemos esquecer que a obra faz referência a dois

filósofos, como atesta o próprio Duby, de modo que

as leis da eloquência epistolar impunham, nesse tempo barroco, uma expressão impetuosa. [...] Temos aqui dois “filósofos” célebres, muito célebres, que se uniram carnalmente, no amor dos corpos. Copulação, diz Pierre; fornicação, diz Roscelin. Em todo caso eles formaram um casal, e esse casal durou. Tendo ambos ingressado na vida monástica, marcharam ao mesmo passo rumo à salvação, a mulher no entanto submetida ao homem, servindo a Deus “sob ele”. O homem, como convém, é sempre o ator. De uma ponta à outra da aventura, é ele que age. 89

87 DUBY, G. Heloísa, Isolda e outras damas no século XII. Companhia das Letras: São Paulo, 1995, p. 68. 88 GILSON, E. Heloísa e Abelardo. Edusp: São Paulo, 2007.p.62. 89 DUBY, G. Heloísa, Isolda e outras damas no século XII. Companhia das Letras: São Paulo, 1995, p. 61.

Page 45: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

44

Duby não se detém à linguagem, diz que o mais importante é analisar o

conteúdo. Mas para o filósofo e sua sábia aprendiz, herdeiros da lógica aristotélica, um

dos pilares do estudo do trivium, a linguagem importa muito, pois é ela a mestra do

convencimento. É a retórica da escrita, como bem atesta o autor quando escreve sobre

a expressão impetuosa. A persuasão se faz com o envolvimento do espectador e,

através das palavras redigidas como seria o envolvimento senão com ímpeto, ousadia e

paixão? E essas características são muito bem articuladas nas cartas de Heloísa, pois

ela quer convencer Abelardo a restituir o seu amor, o que contraria a proposição de

Duby quando confere a Abelardo o papel principal da história. Heloísa assume o papel

principal não porque seu amor é puro e, a partir disso se questiona sobre a veracidade

do amor de Abelardo, mas porque se sobressai, pois transforma os ensinamentos do

filósofo em sua arma contra ele mesmo, contra os seus argumentos favoráveis à

conversão, contra a sua noção de pecado. Heloísa toma as rédeas do jogo através da

linguagem, herança de um dos filósofos mais importantes do século XII, do seu

mestre, do seu amante, do seu marido. Ela aprendeu muito bem a lição.

As cartas, portanto, se constituem num jogo no qual existem duas formas de

amar, e não se constituem como um diálogo. Antes, elas formam

um monólogo alternado cujo objeto deixou de ser o mesmo. Heloísa fala no passado; Abelardo, no presente e no futuro. O amor, para ela, está atrás; para ele, à frente, já dado a quem souber dizer sim, e reconhecer sua transcendência. Mas, na verdade Heloísa não pode admitir que o obstáculo tenha sido, outrora, o pecado, e nem que hoje não haja mais obstáculo. Onde procurar consolo? Heloísa resvala nas facilidades da tristeza, dessa acedia, esse “mal do século” dos monastérios medievais. Longe de se submeter, ela acusa. Ela deixa Abelardo pregar no deserto. Por que sofrer tanto? Ela retorna, último recurso, aos preconceitos de sua juventude cortesã, como à sabedoria das nações. A sorte os puniu por ter entrado nos laços do casamento. Que Abelardo, portanto, não se esquive sob uma retórica clerical a seu único dever: saldar a dívida amorosa que ele contraiu para com ela. Certamente, não é mais uma questão de prazer, mas de vida, e de palavras, e de ternura, e de não mais tolerar essa separação absurda. 90

Essa passagem ilustra o significado da alternância desse monólogo que é

articulado no jogo das palavras e também na alternância dos tempos. Existe uma

diferença de tempo não somente na referência à relação, mas no tempo de Abelardo e

90GILSON, E. Heloísa e Abelardo. Edusp: São Paulo, 2007.p, p. 24.

Page 46: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

45

Heloísa. Aquele define seu tempo como o tempo do pecado e da resignação ante a

punição. Esta define seu tempo como sendo o da ternura, do amor incondicional, mas

também da cólera e da cobrança. Cólera perante o silêncio de Abelardo, ao qual ela

responde com o mesmo gesto, quando se cala perante as críticas dele por sua

insistência em recordar o passado. “Ele fará o esforço de se calar. Sob o selo de seu

silêncio encerra o seu amor, sua amargura e os tumultos de seu desejo.” 91 Após

Heloísa cobrar a presença de Abelardo, ao menos em cartas, após cobrar a recordação

do amor que viveram, Abelardo a repreende, mas ela se cala, encerra a discussão, mais

uma vez jogando com as cartas do seu mestre, porém não escreve qualquer palavra que

possa ser compreendida como a renúncia desse amor.

A diferença no discurso também é verificada na forma como dirigem a palavra

um ao outro. Heloísa se dirige ao amante. Ele à religiosa. Os epítetos que Heloísa

oferece a Abelardo o colocam como o seu bem-amado, o seu único amor, como esboça

essa passagem de sua primeira carta:

Meu bem-amado, o acaso fez-me passar entre as mãos a carta de consolo que escreveste a um amigo. Reconheci imediatamente, pela assinatura, que ela provinha de ti. Lancei-me sobre ela e devorei-a com todo o ardor de minha ternura: já que havia perdido a presença corporal daquele que a havia escrito, ao menos as palavras reanimariam um pouco para mim a sua imagem. Lembro-me: essa carta, quase a cada linha, encheu-me de fel e de absinto, rememorando-me a história lamentável de nossa conversão e das cruzes pelas quais tu, meu único amor, ainda não deixaste de ser atormentado. 92

Ao término dessa carta, ela reforma a intenção de reacender o amor de

Abelardo quando se despede dizendo: “adeus, meu único”. 93 Como resposta a essa

escrita passional, Abelardo, reconhece que nunca escreveu para amenizar a dor de

Heloísa porque, segundo ele, isso não seria necessário graças à sua sabedoria que a

ajudaria conduzir sua nova vida. Ele dirige-se à abadessa, sua “irmã, querida outrora

91 DUBY, G. Heloísa, Isolda e outras damas no século XII. Companhia das Letras: São Paulo, 1995, p.67. 92 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p. 89. 93 Ibid, p. 100.

Page 47: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

46

no século, muito querida hoje em Cristo” 94 e que deve viver lembrando-se dele no

Cristo. 95

Heloísa persiste em confessar a contradição que vive entre a necessidade de

amar a Deus e a naturalidade de amar Abelardo. Ele chama suas súplicas de perpétuos

murmúrios96. Ele ainda “mostra-se arrogante, senhor da sua vontade e das suas

emoções” 97, mas mesmo que de maneira formal, obrigando Heloísa a manter uma

postura digna de uma religiosa, Abelardo se manifesta e atende aos pedidos de

Heloísa, ele cumpre com a promessa de estar sempre presente, ao menos em cartas.

Heloísa cala-se e talvez o seu silêncio seja mais significativo que seus excessos de

linguagem, como o próprio Abelardo definiu.

Heloísa manteve, portanto, a gratuidade do seu amor, todavia, como Pedro, o

venerável atestou, Abelardo era dela, Deus o conservou para devolvê-lo a ela. 98

Relata-se que, pouco tempo antes de sua morte, Heloísa tomara as disposições necessárias para ser enterrada com Abelardo. Quando se abriu o túmulo para ali a sepultar junto dele, ele estendeu os braços para acolhê-la, e cingiu-os estreitamente sobre ela. Assim contada, a história é bela, mas lenda por lenda, acreditaríamos mais facilmente que, ao se unir ao amigo no túmulo, Heloísa tenha aberto os braços para abraçá-lo. 99

Abelardo tanto se gabava de sua autoridade e fama como mestre, qualidades

que garantiam tudo o que desejava, porém, não conseguiu converter Heloísa ao amor

divino.

3.2 A LINGUAGEM CORTÊS

Possuías dois talentos, entre todos, capazes de seduzir imediatamente o coração de uma mulher; o de fazer versos e o de cantar. Sabemos que eles são bem raros entre os filósofos. Eles te permitiam repousar, como se estivesses brincando, dos exercícios filosóficos. A eles deves o ter composto, sobre melodias e ritmos amorosos, tantas canções cuja beleza poética e

94 Ibid, p. 102. 95 Ibid, p.110. 96 Ibid, p. 125. 97 BROOKE, C. O renascimento do século XII. Editorial Verbo: Lisboa, 1972, p. 45. 98 DUBY, G. Heloísa, Isolda e outras damas no século XII. Companhia das Letras: São Paulo, 1995, p. 57. 99 GILSON, E. Heloísa e Abelardo. Edusp: São Paulo, 2007, p. 151.

Page 48: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

47

musical conheceu sucesso público e espalhou universalmente teu nome. Mesmo os ignorantes, incapazes de compreender o texto, as retinham, retinham teu nome, graças à doçura de sua melodia. Tal era a principal razão do ardor amoroso que as mulheres nutriam por ti. E, como a maior parte dessas canções celebrava nossos amores, logo meu nome se espalhou em muitos lugares, excitando contra mim as invejas femininas. 100

Heloísa, nessa passagem chama a atenção para uma característica de Abelardo:

a de poeta do amor. Tais poesias fazem parte da produção lírica de poemas de amor,

originalmente nas línguas d’oc, do sul da França, denominados de amor cortês,

expressão utilizada pela primeira vez por Gaston Paris, em 1883, para definir o amor

entre Lancelot e Guinevere na O cavaleiro da charrete de Chrétien de Troyes. 101

O sentimento transmitido pela literatura, sob o codinome de fin’amors se refere

a um amor puro, perfeito, delicado, cujo desenrolar envolvia o frenesi provocado pelo

erotismo e pelo controle do desejo, uma vez que cantava o amor ora inacessível, que

não espera recompensa, apenas se submete totalmente à amada, com o compromisso

de honrá-la e servi-la com fidelidade e discrição, ora carnal e adúltero. O fin’amors era

o modo próprio de amar, ou de se comportar perante o ser amado, da cortesia, “ideal

do comportamento aristocrático, uma arte de viver que implica polidez, refinamento de

costumes, elegância. 102

O percurso do amor cortês assemelha-se a uma justa que promove um ideal do

sentimento articulado através de uma retórica amorosa, rica em metáforas103 que

norteiam o jogo do controle do desejo.

Nesse jogo, a mulher é um chamariz. Ela preenche duas funções: por uma lado, oferecida até um certo ponto por aquele que a mantém em seu poder e que conduz o jogo, ela constitui o prêmio de uma competição, de um concurso permanente entre os jovens da corte, atiçando entre eles a emulação, canalizando sua força agressiva, disciplinando-os, domesticando-os. Por outro lado a mulher tem a missão de educar esses jovens. O “amor delicado” civiliza, ele constitui uma das engrenagens essenciais do sistema pedagógico do qual a corte principesca é o centro. É um exercício necessário da juventude, uma escola. Nessa escola, a mulher ocupa o lugar de mestre. Ela ensina melhor porque estimula o desejo. Convém portanto que ela se recuse e sobretudo que seja inacessível. Convém que ela seja uma esposa e,

100 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p. 97. 101 RÉGNIER-BOHLER, D. “Amor cortesão”. In: LE GOFF, J.; SCHITT, J.C. Dicionário temático do

ocidente medieval. EDUSC: São Paulo, 2002, p. 47. 102 Ibid, p. 48. 103 Ibid, 47.

Page 49: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

48

melhor ainda, a esposa do senhor da fortaleza, a sua dama. Por isso mesmo, ela está em posição de domínio, esperando ser servida, dispensando parcimoniosamente seus favores, numa posição homóloga àquela em que está instalado o senhor, seu marido, no centro da rede dos verdadeiros poderes. De maneira que, na ambivalência dos papéis atribuídos às duas pessoas do par conjugal, este amor, o amor dos textos, o verdadeiro, o desejo contido, aparece de fato como escola de amizade, dessa amizade da qual se pensa, nessa mesma época, que ela deveria estreitar o laço vassálico e consolidar assim as bases políticas da organização social. 104

Heloísa não era casada, não era a dama do senhor, mas era sobrinha do cônego

Fulbert, jovem, culta, inacessível ao comum dos mortais. Mas Abelardo também não

era comum. Era simplesmente um dos mais aclamados professores de Paris, como sua

elevada auto-estima sempre se orgulhou de testemunhar. E justamente o seu grandioso

amor-próprio o convenceu a conquistar Heloísa, a qual não resistiria como outras não

resistiram.105

Com a credibilidade de preceptor, Abelardo ganha seu passe ao esconderijo do

cordeiro que, estúpido, se apaixona pelo lobo. Heloísa tentaria resistir em vão.

Abelardo “se apoderou de Heloísa. [...] Numa vasta família, a de um nobre cônego,

vivia uma adolescente, a sobrinha do patrão, disponível. Portanto, boa de se tomar”. 106

Nessa passagem pode-se estabelecer uma comparação com uma das

características do amor cortês: a dama inacessível, cuja conquista conduz a mente do

amante, como a de Abelardo que também se revela como poeta que extravasa o seu

amor. O amor, portanto, transforma-se em loucura, “na verdade uma bela loucura.

Cativo do desejo, o poeta morre de amor, mas, como a fênix, renasce das cinzas. O

tormento causado pelo amor é simultaneamente prazer e morte. Ao olhar a dama é

atribuído poder de vida e morte”. 107

E qual era a sensação senão vida e morte quando Abelardo estava na presença

de Heloísa, pois, a sua paixão dividia o mesmo teto que o tio da jovem, o qual logo

que descobre não leva Abelardo à morte física, mas o priva da honra social.

104 DUBY, G. Idade Média, idade dos homens: do amor e outros ensaios. Companhia das Letras: São Paulo, 1989, p 38. 105 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p. 39. 106 DUBY, G. Heloísa, Isolda e outras damas no século XII. Companhia das Letras: São Paulo, 1995, p.61-62. 107 RÉGNIER-BOHLER, D. “Amor cortesão”. In: LE GOFF, J.; SCHITT, J.C. Dicionário temático do

ocidente medieval. EDUSC: São Paulo, 2002, p. 50.

Page 50: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

49

A relação de Heloísa e Abelardo, evidentemente, não segue as regras

idealizadas pelo amor cortês, visto este ser uma representação literária de um estilo de

vida que não necessariamente se aplica à realidade. Enquanto Heloísa e Abelardo se

entregam ao amor carnal, o amor cortês é a ciência do erotismo, que se articula através

de uma erótica do controle do desejo, na qual é preciso aceitar a provação da castidade

antes da atingir a alegria final.108

Outra característica é a discrição. A história de Abelardo e Heloísa pode sugerir

diversos adjetivos, mas não o de ser discreta. Abelardo mesmo considera o fato

quando, ao escrever sobre suas calamidades, sugere que o amigo a quem se destina a

carta já tenha conhecimento sobre o assunto. Da mesma forma, Roscelin, critica a

atitude do ex-discípulo que, animado por um espírito de luxúria, se infiltra na casa de

uma donzela muito ajuizada com o intuito de ensiná-la a racionar e, no final das

contas, ensina a fazer amor.109

O modelo do amor cortês é anulado por Abelardo quando ele propõe o

casamento, para acalmar os ânimos de Fulbert, diante da gravidez de Heloísa. Mas ela

se manifesta contrária, devido à posição de Abelardo como clérigo e professor, além

do fato de o casamento se constituir como um contrato de posse, e ela estava disposta a

dar seu amor a Abelardo gratuitamente, sem esperar nada em troca. Ao contrário, no

casamento essa cumplicidade amorosa iria se perder, como ela mesma supõe, tal como

lembra Abelardo: “‘Então não nos resta senão uma coisa a fazer para nos perder a

ambos e para que a um tão grande amor suceda uma dor igualmente grande’. O mundo

inteiro o reconheceu em seguida, o espírito de profecia a tocou naquele dia.” 110

A recorrência a argumentos de autoridade contrários ao casamento do filósofo

por parte de Heloísa não dissuadiram Abelardo da idéia. Heloísa ainda insiste, apela e

Abelardo tem consciência do esforço da amante em evitar o enlace que só prejudicaria

Abelardo. Como ele afirma, Heloísa “preferia o título de amante ao de esposa, e o

considerava mais honroso para mim: ela estaria ligada a mim apenas pela ternura, não

108 Ibid, p. 49. 109 DUBY, G. Heloísa, Isolda e outras damas no século XII. Companhia das Letras: São Paulo, 1995, p.60. 110 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p. 49.

Page 51: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

50

pela força do laço nupcial. Nossas separações temporárias tornariam os raros instantes

de reunião tanto mais doces”.111

E a distância entre os amantes que torna mais doce a união, segundo o modelo

do amor cortês, pois o “amor é uma paixão natural que nasce da visão da beleza do

outro sexo e da lembrança obsedante dessa beleza”.112 Essa característica é Heloisa

quem defende com toda a sua força de retórica, pois defende o amor como uma

virtude, como um valor em si, por isso ela preferia o

amor ao casamento e a liberdade à ligação [...] [e] teria considerado mais doce e nobre conservar o nome de cortesã junto a [Abelardo] que tomar o de imperatriz junto a [Augusto]! A verdadeira grandeza humana não provém nem da riqueza nem da glória: aquela é o efeito do acaso; esta, da virtude. 113

Entretanto, a virtude, assim como a paixão inata, não nasce de uma ação

intencional, mas apenas da reflexão do espírito sobre aquilo que vê. Quando surge uma

mulher digna de ser amada, começa a desejá-la e pensar nela até que todo o

pensamento seja invadido por esse amor. 114

A virtude que garante a dignidade de ser amado se exprime em algumas

exigências do processo pelos quais se obtém o amor, segundo Capelão, membro do

clero e contemporâneo aos dois amantes. Seu tratado de amor teria sido escrito por

volta de 1186 para um amigo, Gautier, que nunca foi identificado, podendo ser fictício.

Sua escrita se desenvolve através da retórica através da qual expressa o modelo de

amor do meio aristocrático.

Nesse contexto, ele enumera cinco trunfos para que as pessoas exercitem a fim

de se fazerem seres dignos de serem amados. São eles: possuir um belo físico, possuir

uma excelência moral, ter facilidade de elocução, possuir riqueza e a prontidão para

ceder aos desejos do amante.115 Heloísa e Abelardo preenchem, portanto, os requisitos

que os possibilitam se inserir na arte do amor. Heloísa apresenta tais requisitos e

111 Ibid. 112 CAPELÃO, A. Tratado do amor cortês. Martins Fontes: São Paulo, 2000, p. 5. 113 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p. 95-96. 114 CAPELÃO, A. Tratado do amor cortês. Martins Fontes: São Paulo, 2000, p.8. 115 Ibid, p. 21.

Page 52: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

51

Abelardo não pensa muito em devotar seu amor a jovem, bela e educada. Mas ele não

é desmerecido, como ela mesma reconhece ao rememorar a aventura amorosa:

Meu amor por ti era assim tanto mais verdadeiro quanto melhor preservado de um erro de julgamento. Que rei, que filósofo poderia igualar tua glória? Que país, que cidade, que vilarejo não aspirava a te ver? Quem então, eu o pergunto, quando aparecias em público, não acudia para te ver e, quando te afastavas, não te seguia com o olhar, com o pescoço estendido? Que mulher casada, que moça não te desejava em tua ausência, não ardia quando estavas presente? Que rainha, que grande dama não invejou minhas alegrias e meu leito? 116

Nessa passagem Heloísa apela, mais uma vez para o orgulho de Abelardo. Além

dos encantos do corpo, que atraem o amor através da visão, Heloísa chama a atenção

também para os encantos do espírito que embelezam ainda mais Abelardo, tornando-o

mais atrativo ao amor, além de lhe garantir fama e grande auto-estima.

Contudo, Capelão salienta que esses valores se articulam como estágios, de

forma que, quanto mais os amantes retardam a efetivação do amor, quanto mais os

desejos são dominados, mais a excelência do amor é coroada. 117

Heloísa e Abelardo evoluíram para o último estágio rapidamente, acordando

com o fato de que a literatura não exprime fielmente a realidade. A literatura cortês

não aparece como uma nova forma de amar, mas como um novo discurso sobre o

amor, que se contrapõe ao discurso da igreja, e, justamente pelos fantasmas dela e das

convenções sociais, que o fin’amors é mantido em segredo118, revelando que os

discursos literários contam menos com a característica de reprodução fiel dos hábitos e

costumes de uma sociedade do que com a sua idealização.

O amor cortês dita a contenção dos desejos, os quais devem ser retardados

como uma forma de manter o estímulo e a pureza do sentimento amoroso. Entretanto,

não se pronuncia através dos moldes do amor platônico. O amor cortês não nega o

desejo, o amor corporal. Por outro lado, o discurso da igreja condena os prazeres da

carne e institui o casamento como meio de controle e domesticação dos costumes.

116 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p. 96-97. 117 CAPELÃO, A. Tratado do amor cortês. Martins Fontes: São Paulo, 2000, p. 21. 118 FLORI, J. A cavalaria. A origem dos nobres guerreiros da idade média. Madras: São Paulo, 2005, p. 146.

Page 53: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

52

Com o conhecimento da história de Abelardo e Heloísa fica evidente o

distanciamento entre a prescrição da igreja e a prática, mas também não se restringem

ao modelo cortês de amor. Evidente que podemos encontrar referências nas

correspondências, como na seguinte argumentação de Heloísa contra o casamento,

retomada por Abelardo: “Nossas separações temporárias tornariam os raros instantes

de reunião tanto mais doces”. 119

Heloísa tinha os seus motivos para recusar o casamento e ela os expõe com toda

sua incisiva retórica, mas, como é muito provável, era conhecedora do da metáfora do

fin’amors, cujo “serviço à dama revela-se, na prática, muito menos espiritual e

desinteressado do que possa parecer e a descodificação das componentes poéticas e do

sistema ideológico subjacente demonstrou quão intenso e mesmo violento era o seu

erotismo”. 120 Heloísa desejava viver o amor e a paixão livres das amarras do

casamento e das preocupações cotidianas a ele relacionadas. E será justamente em

torno da instituição do casamento que se identifica a tensão entre Abelardo e sua

consciência e entre Abelardo e Heloísa. A primeira ocorre porque Abelardo vivencia

uma crise moral, pois de uma vida ascética passa a experienciar as vicissitudes do

corpo e considera a sua castração um castigo justo à sua concupiscência.

Buscando, assim, a redenção e acreditando na vida espiritual como mais

elevada que a vida no mundo secular estabeleceu o destino dele e de Heloísa que

aceitou entrar para a vida religiosa por amor a Abelardo e, não por devoção à religião.

E assim ela o confessa em carta: “provei-te assim que reinas como único senhor tanto

sobre minha alma como sobre meu corpo”. 121

O casamento, para Heloísa, estava desacreditado filosoficamente, uma vez que

através dele não se poderia atingir o amor verdadeiro e desinteressado. “Este último

aspecto liga-se à influência do De Amicitia de Cícero e parece ser partilhado quer pela

literatura goliárdica quer pela literatura cortês (‘não usurpemos a palavra amor para

definir o afeto conjugal que une as pessoas no matrimônio’).” 122

119 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p. 49. 120 CARDINI, F. “O guerreiro e o cavaleiro”. In:LE GOFF, J. O homem medieval. Editorial Presença: Lisboa, 1989, p. 66. 121 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p. 95. 122 BROCCHIERI, M. F. B. “O intelectual”. In: In:LE GOFF, J. O homem medieval. Editorial Presença: Lisboa, 1989, p.140.

Page 54: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

53

3.3 A LINGUAGEM DA SALVAÇÃO

Recebemos ao mesmo tempo o hábito religioso: eu na abadia de Saint-Denys, e ela no monastério de Argenteuil. Movidos de compaixão, a maior parte de seus superiores quis isentá-la das observâncias mais rigorosas da regra, que deviam ser, para sua pouca idade, um fardo intolerável. Ela respondeu citando, com uma voz entrecortada pelos soluços, as lamentações de Cornélia: Ó grande esposo, Nobre demais para o meu leito! Meu destino Tinha direitos sobre uma cabeça tão elevada? Por que te esposei, ímpia, Se faço tua desgraça? Recebe agora a expiação À qual me submeto de bom grado. Pronunciando essas palavras, ela avançou para o altar. Recebeu ali do bispo o véu abençoado e recitou publicamente o juramento da profissão monástica. 123

Nessa passagem da historia calamitatum, em que são citados os versos de

Cornélia na Pharsale, de Lucano, Abelardo revela a forma como se deu a entrada de

Heloísa à vida religiosa. Ela, através dos versos recitados revela que se dirige à

expiação dos seus erros de bom grado, pois assim seria punida por ter causado a

desgraça daquele que amava.

A desgraça de Abelardo ocorre quando ele é vítima da vingança do tio de

Heloísa, pois ela é enviada ao convento logo após o seu casamento com Abelardo. Este

conjectura sobre o motivo pelo qual Fulbert teria agido dessa forma:

Alguns dias mais tarde, depois do ofício da noite numa igreja solitária, recebemos à aurora, na presença do tio de Heloísa e de alguns amigos dela e meus, a benção nupcial. Depois nos retiramos discretamente cada um para seu lado, e a partir de então não tivemos senão entrevistas raras e furtivas, a fim de dissimular o mais possível nossa união. No entanto Fulbert e as pessoas de sua casa procuravam sempre uma oportunidade de se vingar de mim. Puseram-se a divulgar nosso casamento, violando assim o juramento que me haviam feito. Heloísa protestava violentamente o contrário, que nada era mais falso. Fulbert, exasperado, a maltratou várias vezes. Tendo sabido disso, enviei minha mulher para uma abadia de religiosas reclusas, em Argenteuil, perto de Paris. [...] Quando a notícia chegou a seu tio e à sua família, eles pensaram que eu lhes havia pregado uma peça e que fizera Heloísa entrar no convento apenas para me desembaraçar dela. 124

123 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p.52. 124 Ibid, p. 49-50.

Page 55: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

54

Abelardo impõe o casamento em sigilo. Heloísa protesta, mas cede. Fulbert

aceita, mas não de dá por satisfeito, pois foi enganado de várias formas por Abelardo

que, guiado pela soberba, segue seu caminho com a sensação de missão cumprida.

Porém, suas ações nada têm de acaso. Todas foram aparentemente planejadas,

intencionadas, como ele mesmo atesta quando escreve como se envolveu no jogo de

conquista que culminou em um desfecho trágico. Ele sabia o que queria. Queria

consumir o seu objeto de desejo, ou seja, desejava Heloísa e com ela se entregou à

vazão da paixão.

Contudo, para toda ação existe uma reação. A consumação dessa paixão

conduziu à gravidez da jovem e Abelardo, para que esse episódio não manchasse a sua

honra como mestre, a raptou, levando-a para a Bretanha, onde seu filho Astrolábio

nasceu.

Evidentemente que a fuga da sobrinha aumentou o desgosto de Fulbert, já

insatisfeito com a descoberta do romance e, provavelmente maquinava uma forma de

vingar a mancha na honra de sua família. Mas o próprio Abelardo cuidara desse

intento, uma vez que empreendeu o rapto de Heloísa, ato que forçava o acordo entre as

famílias. 125 Dessa forma, Abelardo escaparia de uma punição mais severa que

prejudicasse sua condição de filósofo e se coloca na posição daquele que resolve a

situação, pois ele lança o remédio ao mal causado: o casamento. Mas também se

coloca na posição de quem tem direito de impor condições: o segredo. Extremamente

engenhoso. Não à toa era um dos maiores intelectuais da época.

Mas é exatamente a sua honra, o seu orgulho que serão maculados com a

vingança de Fulbert, que comanda o grupo responsável pela sua castração, com

Abelardo declara:

Certa noite, um dos meus servidores, comprado a preço de outro, introduziu-os no quarto retirado onde eu dormia, e eles me fizeram sofrer a vingança mais cruel, a mais vergonhosa e que todo o mundo conheceu com estupefação: amputaram-me as partes do corpo com as quais eu cometera o delito de que se queixavam. [...] Sentia minha vergonha mais ainda do que a mutilação. A confusão me abatia mais ainda do que a dor. Algumas horas antes eu gozava de uma glória

125 ZUBER, C. K. “A mulher e a família”. In: LE GOFF, J. O homem medieval. Editorial Presença: Lisboa, 1989, p.197.

Page 56: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

55

incontestável. Um instante havia sido suficiente para rebaixá-la, talvez para destruí-la! O julgamento de Deus me batia com justiça na parte do meu corpo que havia pecado. 126

É pela sua honra, pela sua fama, pela sua filosofia que ele sofre, como também

sofreu Heloísa. Ela se colocou contrária ao casamento, num primeiro momento para

que ele não abdicasse sua condição de mestre em prol de uma vida regida pelas

preocupações da vida mesquinha do vulgo. Heloísa o alertou sobre isso, recorrendo a

Cícero, a Sêneca, a São Jerônimo, para fazê-lo compreender a incompatibilidade da

vida filosófica com a vida mundana, pois elas encerram éticas diferentes e Abelardo já

havia construído sua fama, conquistado sua honra através da primeira, e Heloísa não

queria que ele a perdesse, pois “não há reputação sem honra e não há honra sem

autoridade”. 127

Entretanto, essa não foi a única argumentação de Heloísa contra o casamento.

Ela sempre se defendeu da idéia de que a sua relação com Abelardo foi movida pelo

pecado. Sua defesa, assim como a renúncia ao casamento são conduzidas através da

pureza de seu amor que, diferente de Abelardo não buscava nada em troca, a não ser o

próprio amor. Heloísa “é a campeã do amor livre que rejeitou o casamento porque ele

acorrenta e transforma em dever o dom gratuito dos corpos”. 128

Entenda-se amor livre, como amor puro, amor desinteressado, diferente do

sentimento nutrido entre cônjuges. O amor não existe entre marido e mulher “porque

os amantes concedem-se tudo mutuamente a título gratuito, sem serem impelidos por

obrigação nenhuma. Os esposos, ao contrário, são obrigados por dever a obedecer às

vontades recíprocas e não podem de modo algum recusar-se um ao outro”.129

O discurso da igreja já determina que o sentimento entre marido e mulher deve

ser a caritas, não o amor, “o amor do marido por sua mulher se chama estima, o da

mulher por seu marido se chama reverência” 130, de modo que amar demasiadamente a

126 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p. 50-51. 127 ROSSIAUD, J. “O citadino e a vida na cidade”. In: LE GOFF, J. O homem medieval. Editorial Presença: Lisboa, 1989, p.107. 128 DUBY, G. Heloísa, Isolda e outras damas no século XII. Companhia das Letras: São Paulo, 1995, p. 58. 129 CAPELÃO, A. Tratado do amor cortês. Martins Fontes: São Paulo, 2000, p. 137. 130 DUBY, G. Idade media idade dos homens. Do amor e outros ensaios. Companhia das Letras: São Paulo, 1989, p. 58.

Page 57: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

56

esposa é cometer um pecado, uma vez que o amor é reservado a Deus e a este pertence

o corpo e a alma de cada um, mas concede ao esposo o direito sobre o corpo de sua

mulher, mantendo o direito sobre sua alma atestando o caráter desigual de obrigações e

dívidas desse sacramento, como afirma Duby:

[...] no estado conjugal, a pessoa feminina era partilhada. Constato agora que a pessoa masculina também se desdobra, mas com um desdobramento diferente; o que pode haver num homem de desejo, de impulso, de amor não se desafoga, como deve fazer o amor feminino, na sublimação, no espiritual. Escapa também à sujeição matrimonial, mas sem abandonar o século, a terra, o carnal. Desvia-se para o jogo, para os espaços desembaraçados da gratuidade, da liberdade lúdica. [...] De qualquer forma, o casamento não é o lugar do que se define então como amor. Pois é proibido ao esposo e à esposa lançarem-se um ao outro no ardor e na veemência. 131

Todavia, os apelos de Heloísa não foram considerados por Abelardo e ela se

rendeu ao seu desejo, aceitando o casamento, mas não sem antes registrar sua negação

dessa atitude, quase em tom profético: “então não nos resta senão uma coisa a fazer

para nos perder a ambos e para que a um tão grande amor suceda uma dor igualmente

grande”. 132

Heloísa preferia o título de amante ao de esposa, pois recusa submeter o seu

amor à propriedade dos corpos que os cônjuges detinham um sobre o outro. Esse fato,

porém, poderia explicar porque Abelardo insistiu para que Heloísa entrasse na vida

religiosa, pois tal ação corresponderia à aceitação, à permissão para que Abelardo

também o fizesse.

Heloísa faz os votos, recitando os versos de Cornélia, sabendo que a despedida

de Abelardo que vê na conversão dos dois uma forma de expiar os pecados, tese que

Heloísa irá refutar quando tem conhecimento da carta em que Abelardo conta sobre

seus padecimentos. Heloísa entra para o convento simplesmente para aquiescer ao

desejo de seu marido, como ela o confessa:

Em todos os estados que a vida me conduziu, Deus o sabe, foi a ti, mais do que a ele, que temi ofender; foi a ti, mais do que a ele, que procurei agradar. Foi por tua ordem que tomei o hábito, não por vocação divina. Vê, então, que vida infeliz eu levo, miserável entre todas, arrastando um sacrifício sem

131 Ibid, p. 36. 132 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p. 49.

Page 58: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

57

valor e sem esperança de recompensa futura! Minha dissimulação te enganou muito tempo, como a todo o mundo, e tu chamas piedade minha hipocrisia. 133

Heloísa havia permanecido calada por muito tempo, mas a confissão de

Abelardo aguça a sua vontade de falar e de confrontar as idéias de seu amado com suas

próprias teorias, como é o fato de Abelardo considerar Heloísa sua companheira na

falta e na necessidade de pedir perdão a Deus.

Mas a abadessa, talvez pela primeira vez não atende ao pedido de contrição,

porque simplesmente não se arrepende do seu passado, o que a exime da culpa, pois

não tivera intenção de causar o mal de Abelardo. Mas ela admite a falsidade de sua

vida com Deus, pois não foi por Ele que abandou a vida mundana. Ela confessa que

sua vida é comandada não pela adoração a Deus, mas pela agonia e que carrega em seu

peito um coração ferido e infeliz, porque ela perdeu o seu único apoio, e a presença de

Abelardo lhe foi roubada

Enquanto Abelardo rejeita o passado, Heloísa confessa que seu amor permanece

latente:

Os prazeres amorosos que juntos experimentamos têm para mim tanta doçura que não consigo detestá-los, nem mesmo expulsá-los de minha memória. Para onde quer que eu me volte, eles se apresentam a meus olhos e despertam meus desejos. Sua ilusão não poupa meu sono. Até durante as solenidades da missa, em que a prece deveria ser mais pura ainda, imagens obscenas assaltam minha pobre alma e a ocupam bem mais do o ofício. Longe de gemer as faltas que cometi, penso suspirando naquelas que não pude cometer. 134

Enquanto Heloísa confessa que a paixão ainda arde em seu coração e em seu

corpo, Abelardo a repreende, indagando para que serve lembrar das antigas imundícies

e as fornicações do tempo em que ele a seduziu. 135 O papel aqui, entretanto, se

inverte. Ele confessa que seduziu Heloísa, que sua intenção nada tinha relação com o

amor puro que ela lhe devotava. Mas agora é ela quem o seduz com as palavras, para

arrancar dele ao menos suas palavras como remédio à sua tristeza.

133 Ibid, p. 121. 134 Ibid, p. 119. 135 Ibid, p. 138.

Page 59: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

58

Porém Abelardo se refere ao passado como o tempo da concupiscência, do

pecado, o que leva Heloísa a questionar a veracidade do amor de Abelardo. Ela expõe,

além do seu sentimento, o de Abelardo:

Dize, se tu podes, ou antes direi eu, o que creio saber, aquilo de que todos suspeitam! Foi a concupiscência, mais que a afeição verdadeira, que te ligou a mim, o gosto do prazer mais do que o amor. A partir do dia em essas volúpias te foram arrebatadas, todas as ternuras que elas te inspiraram se esvaneceram. 136

Abelardo nada diz sobre seus sentimentos em relação à Heloísa, pois ele amava

mais a sua fama e esta lhe foi maculada e ele teve que aprender a viver novamente. O

conflito que Abelardo vive não é em relação à Heloísa ou à sua deficiência viril, mas à

vergonha, à negação de sua essência, a honra do filósofo. Vive um dilema espiritual.

Por sua vez, “Heloísa está dividida entre ela mesma” 137, vivendo um conflito entre as

vontades e os deveres, e a aplicação das virtudes filosóficas, entre o amor puro e

desinteressado e o amor paixão, ligado ao sofrimento e aos prazeres da carne. Vive na

fronteira entre o espiritual e o carnal, vivenciando a dicotomia entre corpo e alma tão

cara à igreja católica.

Existe uma tensão constante entre os dois personagens que também se

estabelece entre os modelos da religião e do amor cortês sobre o casamento. Abelardo

segue por uma via de rejeição total do amor paixão, propiciado por sua condição de

clérigo e filósofo, mas, sobretudo porque recebeu um ataque no ponto em que não

havia questionamento: a sua glória, de forma que ele sentiu sua vergonha mais ainda

do que a mutilação138, uma vez que “todo macho reduzido a esse estado [de eunuco],

pela ablação ou lesão das partes viris, é visto como um ser fétido e imundo”. 139 Por

isso Abelardo opta pela ascese, direcionando seu amor a Deus, que o puniu pelos

pecados de uma vida inteira.

136 Ibid, p. 98. 137 Ibid, p. 23. 138 Ibid, p. 51. 139 Ibid.

Page 60: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

59

Por sua vez, a experiência de Heloísa, a qual ela mesma isenta do pecado,

através da teoria da intenção de Abelardo, concebe o amor enquanto uma presença nos

corpos dos apaixonados, o amor é factual que se faz na dinâmica do casal.

É nesse ritmo que Heloísa conduz suas cartas, sempre bendizendo o amor do

passado, nunca o julgando como culposo e nem digno de arrependimento, diferente da

posição de Abelardo que não cede aos argumentos de Heloísa e continua afirmando

sua condição de abdicação total a esse amor. O amor que ele busca nesse momento é o

amor a Deus, e orienta para que Heloísa também o faça.

Heloísa, ao contrário, se considera inocente, pois tudo o que fez foi por amor e

não pode ser julgada por amar. Além de amor, Heloísa também é nutrida por um

sentimento de admiração pelo filósofo Abelardo. Ama-o não somente pelos encantos

do corpo, mas, sobretudo, pelos encantos da alma, as quais nunca se dissipam.

Enquanto Abelardo a trata com formalidade, Heloísa o trata com desvelo,

carinho e confessa que o coração dela a ele pertence, como se ela andasse errante pelo

mundo, pois Abelardo é seu lar, situação por ele imposta e por ela criticada.

Page 61: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

60

CONCLUSÃO

Nesse trabalho analisamos a relação entre Heloísa e Abelardo através da

linguagem que eles utilizam para expressar suas idéias não só relacionadas ao seu

relacionamento, mas também ao universo filosófico, cultural e social no qual estavam

inseridos. Abelardo, como filósofo não poderia deixar de lado a lógica nas suas

argumentações sobre a imposição do asceticismo à sua vida e à de Heloísa, uma vez

que a filosofia não se constitui somente como abstrações intelectuais, como, sobretudo

um estilo de vida e de expressão.

Todavia, Heloísa, apesar de se subordinar aos comandos do amante, se tornando

sua esposa, e do marido, precedendo-o na vida religiosa, revela em suas cartas

elementos que possibilitaram a análise dessa relação sobre outros aspectos, tais como o

do amor cortês, gênero literário com o qual ela demonstrou estar muito familiarizada,

utilizando alguns de seus apelos amorosos para dissuadir Abelardo da idéia do

casamento, como a incompatibilidade entre amor e casamento, pois este se revela

como um contrato de posse e aquele deve ser nutrido, gerado e compartilhado

livremente, sem as amarras das obrigações próprias do consórcio matrimonial.

Alguns estudiosos, tal como Duby, tendem a classificar as correspondências de

Abelardo e Heloísa dentro de uma teoria moral que faz a apologia do casamento e da

submissão feminina. Entretanto, como pudemos observar, em várias passagens

Heloísa, apesar de se submeter aos desígnios de seu amado, coloca-se em posição

igualitária a ele no que diz respeito à argumentação em torno dos obstáculos que a

relação proporcionou a ambos.

É interessante observar o movimento pelo qual a obra se desenvolve, pois ele

possibilita divisar não o papel principal muitas vezes demandado a Abelardo, mas a

racionalização do amor e da fé, uma vez que estes são postos à prova através da

argumentação racional que é proposta por Heloísa.

Longe de também querer atribuir um desempenho emancipacionista à figura de

Heloísa, o fato é que as suas colocações desafiam o filósofo Abelardo. E este ponto

talvez seja o mais interessante da análise feita nesse trabalho, uma vez que é

justamente por essa condição que Abelardo sofre e se martiriza após a castração, o que

Page 62: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

61

o faz considerá-la como uma forma de purificação porque o alvo da punição não foi

sua virilidade, mas sua honra, sua fama como mestre.

Para a reparação do “erro” cometido com Heloísa ele encontra facilmente a

solução, pois, ao raptá-la coloca o tio da jovem em uma situação que não poderia

recusar o casamento e as condições do seu segredo, delimitadas para não comprometer

sua honra filosófica, não sua honra viril.

É em torno do casamento que se identifica o primeiro ponto de tensão entre

Abelardo e Heloísa. Ela se opõe ao casamento, não porque reivindica a prática do

amor livre, no sentindo que nós damos a esse conceito atualmente, mas porque aspira à

gratuidade, à reverência, não só a Abelardo, mas ao amor que por ele sentia, ao qual

permaneceu fiel.

Aqui se delineia outro ponto de tensão entre os dois, pois Heloísa parece

reconhecer a diferença de natureza do sentimento que ela nutre por Abelardo e do que

ele sente por ela140. Ela se defende alegando a pureza do seu amor e de suas intenções

a partir da teoria intencional do pecado que Abelardo elabora. Diante disso ele não tem

o que argumentar, senão entraria em contradição. Ele se gabava de não achar

adversário à sua altura, refutando as teses de todos os seus mestres. Mas a

argumentação de Heloísa não recebe resposta. Ela questiona o sentimento de Abelardo

que, para ela, mostra-se movido pelo desejo, intencional.

E esse desejo não se trata apenas da satisfação carnal. Mas também do desejo de

posse que se subentende na instituição do matrimônio. Abelardo estabeleceu, dessa

forma, o contrato que lhe dava a posse de Heloísa que, não se casando com Abelardo,

poderia, sob os desígnios do tio, casar-se com outro.

Heloísa se submete às imposições de Abelardo, pois este, como seu marido,

detinha o poder sobre seu corpo e seus atos. Mas antes de tudo ele era o seu amado e

esse amor permaneceu com ela mesmo na profissão religiosa, fato que revelou a

Abelardo, mas sem se arrepender, uma vez que ele era puro e sem qualquer intenção

malévola.

É evidente que essa literatura não permite visualizar a realidade dos

comportamentos. Entretanto, a articulação e o movimento dessas correspondências

140 Cf. Anexo III.

Page 63: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

62

permitem visualizar uma diferença de linguagem que, por sua vez, permite constatar

que os modelos desse comportamento não eram rígidos. Ao contrário, a presença de

características de ideais distintos de conduta, o religioso e o cortês, opostos entre si,

além da discussão racional proposta por Heloísa, permite visualizar a fluidez tanto dos

comportamentos e da expressão do pensamento quanto do sistema de valores que os

sustentavam.

Page 64: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

63

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes. 2000. Alfonso, el sabio. Cantigas de Santa Maria. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br. Acesso: 06 jun. 2009. BASCHET, J. A civilização feudal. Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006. BLOCH, M. A sociedade feudal. Edições 70: Lisboa, s/d. BROCCHIERI, M. F. B. “O intelectual”. In: In:LE GOFF, J. O homem medieval.

Editorial Presença: Lisboa, 1989 BROOKE, C. O renascimento do século XII. Editorial Verbo: Lisboa, 1972 CARDINI, F. “O guerreiro e o cavaleiro”. In:LE GOFF, J. O homem medieval.

Editorial Presença: Lisboa, 1989 CASAGRANDE, C; VECCHIO, S. “Pecado”. In: LE GOFF, J.; SCHMITT, J.C. Dicionário temático do ocidente medieval. EDUSC: São Paulo, 2002.

CAPELÃO, A. Tratado do amor cortês. Martins Fontes: São Paulo, 2000

Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000. DARNTON, R. “História da Leitura”. In: BURKE, P. (org.) A Escrita da História.

Novas Perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. DELARUM, J. “Olhares de clérigos”.In: DUBY, G.; PERROT, M. (org). História das

mulheres no ocidente. Vol. 2: A Idade Média. Porto: Edições Afrontamento, 1990. DUBY, G. Heloísa, Isolda e outras damas no século XII. São Paulo: Companhia das Letras, 1995 ________. Idade Média na França. De Hugo Capeto a Joana D’Arc (987-1460). Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro, 1992. ________. PERROT, M. (org). História das mulheres no ocidente v.2: A idade média. Edições Afrontamento: Porto, 1990. ________. Idade Média, idade dos homens: do amor e outros ensaios. Companhia das Letras: São Paulo, 1989.

Page 65: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

64

FLORI, J. A cavalaria. A origem dos nobres guerreiros da Idade Média. Madras: São Paulo, 2005. GILSON, E. Heloísa e Abelardo. Edusp: São Paulo, 2007. LE GOFF, J. “Cidade”. In: LE GOFF, J.; SCHITT, J.C. Dicionário temático do

ocidente medieval. EDUSC: São Paulo, 2002 ___________. O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval. Edições 70: Lisboa, 1983 ___________. Os intelectuais na Idade Média. Estudos Cor: Lisboa, s/d. POPE, A. Eloise to Abelard. Disponível em: http://rpo.library.utoronto.ca/poem/.html. Acesso em: 17 jun. 2009. RANGEL, P. A abadessa infiel e o cavaleiro apóstata. Revista Estudos Hum(e)anos, IUPERJ, vol.0, n.0, 2008. Disponível em: www.estudoshumeanos.com/.../Art.%202,%20estudos,%200,%200,%202008.pdf. Acesso em: 18 abr. 2009. RÉGNIER-BOHLER, D. “Amor cortesão”. In: LE GOFF, J.; SCHITT, J.C. Dicionário temático do ocidente medieval. EDUSC: São Paulo, 2002 ROSSIAUD, J. “Sexualidade”. In: LE GOFF, J.; SCHMITT, J.C. Dicionário temático

do ocidente medieval. EDUSC: São Paulo, 2002. ____________. “O citadino e a vida na cidade”. In: LE GOFF, J. O homem medieval.

Editorial Presença: Lisboa, 1989, SCHLESENER, A. P. Abelardo e Heloísa: considerações sobre a situação da mulher

na Idade Média. Anacleta, Guarapuava, v.4, n.1, p.67-76, jan/jun.2003. Disponível em: http://www.unicentro.br/editora/revistas/analecta/v4n1/artigo%206%20abelardo%20e%20heloisa.pdf. Acesso em: 17 mar. 2009. SCHMITT, J.C. “Clérigos e leigos”. In: LE GOFF, J.; SCHMITT, J.C. Dicionário

temático do ocidente medieval. EDUSC: São Paulo, 2002 VENTORIM, E. Misoginia e santidade na baixa idade média: os três modelos

femininos no Livro das Maravilha (1289) de Ramon Llull. Revista Mirabilia, n.5. Disponível em: http://www.revistamirabilia.com/Numeros/Num5/misoginiaeliane.htm. Acesso em: 17 mar. 2009.

Page 66: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

65

ZINK, M. “Literatura(s)”.In: LE GOFF, J.; SCHITT, J.C. Dicionário temático do

ocidente medieval. EDUSC: São Paulo, 2002, ZUBER, C. K. “A mulher e a família”. In: LE GOFF, J. O homem medieval. Editorial Presença: Lisboa, 1989

Page 67: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

66

ANEXO I

Imagem da entrada e

planta do cemitério Père

Lachaise, em Paris, no

qual encontram-se várias

sepulturas de

personalidades célebres,

como o de Heloísa e

Abelardo, localizado

com a cruz em vermelho,

na parte inferior do

mapa.

http://www.pere-lachaise.com/perelachaise.php?lang=

Page 68: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

67

ANEXO II

Foto do túmulo de Heloísa e

Abelardo, visualizado no site do

cemitério Père Lachaise.

Abaixo, detalhes do túmulo.

http://www.pere-lachaise.com/perelachaise.php?lang=

http://sistersteel.livejournal.com/25799.html

Page 69: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

68

ANEXO III

Eloise to Abelard

Alexander Pope

In these deep solitudes and awful cells,

Where heav'nly-pensive contemplation dwells,

And ever-musing melancholy reigns;

What means this tumult in a vestal's veins?

Why rove my thoughts beyond this last retreat?

Why feels my heart its long-forgotten heat?

Yet, yet I love!--From Abelard it came,

And Eloise yet must kiss the name.

Dear fatal name! rest ever unreveal'd,

Nor pass these lips in holy silence seal'd.

Hide it, my heart, within that close disguise,

Where mix'd with God's, his lov'd idea lies:

O write it not, my hand--the name appears

Already written--wash it out, my tears!

In vain lost Eloise weeps and prays,

Her heart still dictates, and her hand obeys.

Relentless walls! whose darksome round contains

Repentant sighs, and voluntary pains:

Ye rugged rocks! which holy knees have worn;

Ye grots and caverns shagg'd with horrid thorn!

Shrines! where their vigils pale-ey'd virgins keep,

And pitying saints, whose statues learn to weep!

Though cold like you, unmov'd, and silent grown,

I have not yet forgot myself to stone.

Page 70: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

69

All is not Heav'n's while Abelard has part,

Still rebel nature holds out half my heart;

Nor pray'rs nor fasts its stubborn pulse restrain,

Nor tears, for ages, taught to flow in vain.

Soon as thy letters trembling I unclose,

That well-known name awakens all my woes.

Oh name for ever sad! for ever dear!

Still breath'd in sighs, still usher'd with a tear.

I tremble too, where'er my own I find,

Some dire misfortune follows close behind.

Line after line my gushing eyes o'erflow,

Led through a sad variety of woe:

Now warm in love, now with'ring in thy bloom,

Lost in a convent's solitary gloom!

There stern religion quench'd th' unwilling flame,

There died the best of passions, love and fame.

Yet write, oh write me all, that I may join

Griefs to thy griefs, and echo sighs to thine.

Nor foes nor fortune take this pow'r away;

And is my Abelard less kind than they?

Tears still are mine, and those I need not spare,

Love but demands what else were shed in pray'r;

No happier task these faded eyes pursue;

To read and weep is all they now can do.

Then share thy pain, allow that sad relief;

Ah, more than share it! give me all thy grief.

Heav'n first taught letters for some wretch's aid,

Some banish'd lover, or some captive maid;

They live, they speak, they breathe what love inspires,

Page 71: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

70

Warm from the soul, and faithful to its fires,

The virgin's wish without her fears impart,

Excuse the blush, and pour out all the heart,

Speed the soft intercourse from soul to soul,

And waft a sigh from Indus to the Pole.

Thou know'st how guiltless first I met thy flame,

When Love approach'd me under Friendship's name;

My fancy form'd thee of angelic kind,

Some emanation of th' all-beauteous Mind.

Those smiling eyes, attemp'ring ev'ry day,

Shone sweetly lambent with celestial day.

Guiltless I gaz'd; heav'n listen'd while you sung;

And truths divine came mended from that tongue.

From lips like those what precept fail'd to move?

Too soon they taught me 'twas no sin to love.

Back through the paths of pleasing sense I ran,

Nor wish'd an Angel whom I lov'd a Man.

Dim and remote the joys of saints I see;

Nor envy them, that heav'n I lose for thee.

How oft, when press'd to marriage, have I said,

Curse on all laws but those which love has made!

Love, free as air, at sight of human ties,

Spreads his light wings, and in a moment flies,

Let wealth, let honour, wait the wedded dame,

August her deed, and sacred be her fame;

Before true passion all those views remove,

Fame, wealth, and honour! what are you to Love?

The jealous God, when we profane his fires,

Those restless passions in revenge inspires;

Page 72: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

71

And bids them make mistaken mortals groan,

Who seek in love for aught but love alone.

Should at my feet the world's great master fall,

Himself, his throne, his world, I'd scorn 'em all:

Not Caesar's empress would I deign to prove;

No, make me mistress to the man I love;

If there be yet another name more free,

More fond than mistress, make me that to thee!

Oh happy state! when souls each other draw,

When love is liberty, and nature, law:

All then is full, possessing, and possess'd,

No craving void left aching in the breast:

Ev'n thought meets thought, ere from the lips it part,

And each warm wish springs mutual from the heart.

This sure is bliss (if bliss on earth there be)

And once the lot of Abelard and me.

Alas, how chang'd! what sudden horrors rise!

A naked lover bound and bleeding lies!

Where, where was Eloise? her voice, her hand,

Her poniard, had oppos'd the dire command.

Barbarian, stay! that bloody stroke restrain;

The crime was common, common be the pain.

I can no more; by shame, by rage suppress'd,

Let tears, and burning blushes speak the rest.

Canst thou forget that sad, that solemn day,

When victims at yon altar's foot we lay?

Canst thou forget what tears that moment fell,

When, warm in youth, I bade the world farewell?

As with cold lips I kiss'd the sacred veil,

Page 73: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

72

The shrines all trembl'd, and the lamps grew pale:

Heav'n scarce believ'd the conquest it survey'd,

And saints with wonder heard the vows I made.

Yet then, to those dread altars as I drew,

Not on the Cross my eyes were fix'd, but you:

Not grace, or zeal, love only was my call,

And if I lose thy love, I lose my all.

Come! with thy looks, thy words, relieve my woe;

Those still at least are left thee to bestow.

Still on that breast enamour'd let me lie,

Still drink delicious poison from thy eye,

Pant on thy lip, and to thy heart be press'd;

Give all thou canst--and let me dream the rest.

Ah no! instruct me other joys to prize,

With other beauties charm my partial eyes,

Full in my view set all the bright abode,

And make my soul quit Abelard for God.

Ah, think at least thy flock deserves thy care,

Plants of thy hand, and children of thy pray'r.

From the false world in early youth they fled,

By thee to mountains, wilds, and deserts led.

You rais'd these hallow'd walls; the desert smil'd,

And Paradise was open'd in the wild.

No weeping orphan saw his father's stores

Our shrines irradiate, or emblaze the floors;

No silver saints, by dying misers giv'n,

Here brib'd the rage of ill-requited heav'n:

But such plain roofs as piety could raise,

And only vocal with the Maker's praise.

In these lone walls (their days eternal bound)

Page 74: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

73

These moss-grown domes with spiry turrets crown'd,

Where awful arches make a noonday night,

And the dim windows shed a solemn light;

Thy eyes diffus'd a reconciling ray,

And gleams of glory brighten'd all the day.

But now no face divine contentment wears,

'Tis all blank sadness, or continual tears.

See how the force of others' pray'rs I try,

(O pious fraud of am'rous charity!)

But why should I on others' pray'rs depend?

Come thou, my father, brother, husband, friend!

Ah let thy handmaid, sister, daughter move,

And all those tender names in one, thy love!

The darksome pines that o'er yon rocks reclin'd

Wave high, and murmur to the hollow wind,

The wand'ring streams that shine between the hills,

The grots that echo to the tinkling rills,

The dying gales that pant upon the trees,

The lakes that quiver to the curling breeze;

No more these scenes my meditation aid,

Or lull to rest the visionary maid.

But o'er the twilight groves and dusky caves,

Long-sounding aisles, and intermingled graves,

Black Melancholy sits, and round her throws

A death-like silence, and a dread repose:

Her gloomy presence saddens all the scene,

Shades ev'ry flow'r, and darkens ev'ry green,

Deepens the murmur of the falling floods,

And breathes a browner horror on the woods.

Page 75: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

74

Yet here for ever, ever must I stay;

Sad proof how well a lover can obey!

Death, only death, can break the lasting chain;

And here, ev'n then, shall my cold dust remain,

Here all its frailties, all its flames resign,

And wait till 'tis no sin to mix with thine.

Ah wretch! believ'd the spouse of God in vain,

Confess'd within the slave of love and man.

Assist me, Heav'n! but whence arose that pray'r?

Sprung it from piety, or from despair?

Ev'n here, where frozen chastity retires,

Love finds an altar for forbidden fires.

I ought to grieve, but cannot what I ought;

I mourn the lover, not lament the fault;

I view my crime, but kindle at the view,

Repent old pleasures, and solicit new;

Now turn'd to Heav'n, I weep my past offence,

Now think of thee, and curse my innocence.

Of all affliction taught a lover yet,

'Tis sure the hardest science to forget!

How shall I lose the sin, yet keep the sense,

And love th' offender, yet detest th' offence?

How the dear object from the crime remove,

Or how distinguish penitence from love?

Unequal task! a passion to resign,

For hearts so touch'd, so pierc'd, so lost as mine.

Ere such a soul regains its peaceful state,

How often must it love, how often hate!

How often hope, despair, resent, regret,

Conceal, disdain--do all things but forget.

Page 76: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

75

But let Heav'n seize it, all at once 'tis fir'd;

Not touch'd, but rapt; not waken'd, but inspir'd!

Oh come! oh teach me nature to subdue,

Renounce my love, my life, myself--and you.

Fill my fond heart with God alone, for he

Alone can rival, can succeed to thee.

How happy is the blameless vestal's lot!

The world forgetting, by the world forgot.

Eternal sunshine of the spotless mind!

Each pray'r accepted, and each wish resign'd;

Labour and rest, that equal periods keep;

"Obedient slumbers that can wake and weep;"

Desires compos'd, affections ever ev'n,

Tears that delight, and sighs that waft to Heav'n.

Grace shines around her with serenest beams,

And whisp'ring angels prompt her golden dreams.

For her th' unfading rose of Eden blooms,

And wings of seraphs shed divine perfumes,

For her the Spouse prepares the bridal ring,

For her white virgins hymeneals sing,

To sounds of heav'nly harps she dies away,

And melts in visions of eternal day.

Far other dreams my erring soul employ,

Far other raptures, of unholy joy:

When at the close of each sad, sorrowing day,

Fancy restores what vengeance snatch'd away,

Then conscience sleeps, and leaving nature free,

All my loose soul unbounded springs to thee.

Oh curs'd, dear horrors of all-conscious night!

Page 77: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

76

How glowing guilt exalts the keen delight!

Provoking Daemons all restraint remove,

And stir within me every source of love.

I hear thee, view thee, gaze o'er all thy charms,

And round thy phantom glue my clasping arms.

I wake--no more I hear, no more I view,

The phantom flies me, as unkind as you.

I call aloud; it hears not what I say;

I stretch my empty arms; it glides away.

To dream once more I close my willing eyes;

Ye soft illusions, dear deceits, arise!

Alas, no more--methinks we wand'ring go

Through dreary wastes, and weep each other's woe,

Where round some mould'ring tower pale ivy creeps,

And low-brow'd rocks hang nodding o'er the deeps.

Sudden you mount, you beckon from the skies;

Clouds interpose, waves roar, and winds arise.

I shriek, start up, the same sad prospect find,

And wake to all the griefs I left behind.

For thee the fates, severely kind, ordain

A cool suspense from pleasure and from pain;

Thy life a long, dead calm of fix'd repose;

No pulse that riots, and no blood that glows.

Still as the sea, ere winds were taught to blow,

Or moving spirit bade the waters flow;

Soft as the slumbers of a saint forgiv'n,

And mild as opening gleams of promis'd heav'n.

Come, Abelard! for what hast thou to dread?

The torch of Venus burns not for the dead.

Page 78: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

77

Nature stands check'd; Religion disapproves;

Ev'n thou art cold--yet Eloise loves.

Ah hopeless, lasting flames! like those that burn

To light the dead, and warm th' unfruitful urn.

What scenes appear where'er I turn my view?

The dear ideas, where I fly, pursue,

Rise in the grove, before the altar rise,

Stain all my soul, and wanton in my eyes.

I waste the matin lamp in sighs for thee,

Thy image steals between my God and me,

Thy voice I seem in ev'ry hymn to hear,

With ev'ry bead I drop too soft a tear.

When from the censer clouds of fragrance roll,

And swelling organs lift the rising soul,

One thought of thee puts all the pomp to flight,

Priests, tapers, temples, swim before my sight:

In seas of flame my plunging soul is drown'd,

While altars blaze, and angels tremble round.

While prostrate here in humble grief I lie,

Kind, virtuous drops just gath'ring in my eye,

While praying, trembling, in the dust I roll,

And dawning grace is op'ning on my soul:

Come, if thou dar'st, all charming as thou art!

Oppose thyself to Heav'n; dispute my heart;

Come, with one glance of those deluding eyes

Blot out each bright idea of the skies;

Take back that grace, those sorrows, and those tears;

Take back my fruitless penitence and pray'rs;

Snatch me, just mounting, from the blest abode;

Page 79: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

78

Assist the fiends, and tear me from my God!

No, fly me, fly me, far as pole from pole;

Rise Alps between us! and whole oceans roll!

Ah, come not, write not, think not once of me,

Nor share one pang of all I felt for thee.

Thy oaths I quit, thy memory resign;

Forget, renounce me, hate whate'er was mine.

Fair eyes, and tempting looks (which yet I view!)

Long lov'd, ador'd ideas, all adieu!

Oh Grace serene! oh virtue heav'nly fair!

Divine oblivion of low-thoughted care!

Fresh blooming hope, gay daughter of the sky!

And faith, our early immortality!

Enter, each mild, each amicable guest;

Receive, and wrap me in eternal rest!

See in her cell sad HHeloísa spread,

Propp'd on some tomb, a neighbour of the dead.

In each low wind methinks a spirit calls,

And more than echoes talk along the walls.

Here, as I watch'd the dying lamps around,

From yonder shrine I heard a hollow sound.

"Come, sister, come!" (it said, or seem'd to say)

"Thy place is here, sad sister, come away!

Once like thyself, I trembled, wept, and pray'd,

Love's victim then, though now a sainted maid:

But all is calm in this eternal sleep;

Here grief forgets to groan, and love to weep,

Ev'n superstition loses ev'ry fear:

For God, not man, absolves our frailties here."

Page 80: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

79

I come, I come! prepare your roseate bow'rs,

Celestial palms, and ever-blooming flow'rs.

Thither, where sinners may have rest, I go,

Where flames refin'd in breasts seraphic glow:

Thou, Abelard! the last sad office pay,

And smooth my passage to the realms of day;

See my lips tremble, and my eye-balls roll,

Suck my last breath, and catch my flying soul!

Ah no--in sacred vestments may'st thou stand,

The hallow'd taper trembling in thy hand,

Present the cross before my lifted eye,

Teach me at once, and learn of me to die.

Ah then, thy once-lov'd Eloise see!

It will be then no crime to gaze on me.

See from my cheek the transient roses fly!

See the last sparkle languish in my eye!

Till ev'ry motion, pulse, and breath be o'er;

And ev'n my Abelard be lov'd no more.

O Death all-eloquent! you only prove

What dust we dote on, when 'tis man we love.

Then too, when fate shall thy fair frame destroy,

(That cause of all my guilt, and all my joy)

In trance ecstatic may thy pangs be drown'd,

Bright clouds descend, and angels watch thee round,

From op'ning skies may streaming glories shine,

And saints embrace thee with a love like mine.

May one kind grave unite each hapless name,

And graft my love immortal on thy fame!

Page 81: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

80

Then, ages hence, when all my woes are o'er,

When this rebellious heart shall beat no more;

If ever chance two wand'ring lovers brings

To Paraclete's white walls and silver springs,

O'er the pale marble shall they join their heads,

And drink the falling tears each other sheds;

Then sadly say, with mutual pity mov'd,

"Oh may we never love as these have lov'd!"

From the full choir when loud Hosannas rise,

And swell the pomp of dreadful sacrifice,

Amid that scene if some relenting eye

Glance on the stone where our cold relics lie,

Devotion's self shall steal a thought from Heav'n,

One human tear shall drop and be forgiv'n.

And sure, if fate some future bard shall join

In sad similitude of griefs to mine,

Condemn'd whole years in absence to deplore,

And image charms he must behold no more;

Such if there be, who loves so long, so well;

Let him our sad, our tender story tell;

The well-sung woes will soothe my pensive ghost;

He best can paint 'em, who shall feel 'em most.

Heloísa para Abelardo

Nestas profundas solidões e horríveis celas,

Onde divina e pensativa contemplação habita,

E sempre pensativa reina a melancolia;

O que significa este tumulto nas veias das donzelas?

Por que meus pensamentos vagueiam para além deste último retiro?

Page 82: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

81

Porque o meu coração sente o seu longo esquecido calor?

No entanto, eu ainda amo! - De Abelardo ele veio,

E Heloísa ainda deve beijar o nome.

Querido nome fatal! Descanse sem se revelar,

Nem passar estes lábios no sagrado silêncio selado.

Escondê-lo, meu coração, dentro desse estreito disfarce,

Quando misturada com Deus, a sua idéia amada descansa:

OH, não escreva minha mão - o nome aparece

Já está escrito - lave-o para fora, minhas lágrimas!

Em vão, perdida, Heloísa chora e reza,

Seu coração ainda dita, e sua mão obedece.

Implacáveis paredes! Cujo sombrio entorno contém

Arrependidos suspiros, dores voluntárias:

Vocês rude pedras! Que santos joelhos usaram;

Vocês grutas e cavernas farpadas com espinhos horríveis!

Santuários! Onde as suas vigílias olhos pálidos mantêm virgens,

Tendo pena de santos, cujas estátuas aprendem a chorar!

Embora frio como você, imóvel, silenciosamente cultivado,

Eu ainda não me esqueci em pedra.

Tudo não é Céu enquanto Abelardo não faz parte,

Ainda natureza rebelde detém a metade do meu coração;

Nem orações nem jejuns restringem seu pulso obstinado,

Nem lágrimas, por séculos, ensinaram a fluir em vão.

Logo que eu abro suas cartas tremendo,

Este bem conhecido nome desperta todos os meus males.

Oh nome para sempre triste! Para sempre querido!

Ainda em suspiros, ainda entre lágrimas.

Eu também tremo, onde meu próprio eu encontrar,

Page 83: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

82

Algumas infelicidades terríveis seguem de perto.

Linha após linha meus olhos molhados inundam,

Liderada por uma variedade de triste desventura:

Agora quente no amor, agora escrevendo em tua florescência,

Perdido em um convento da solitária escuridão!

Ali religião severa apagou a chama desobediente,

Ali morreu o melhor das paixões, amor e fama.

Ainda assim escreva, oh escreva-me tudo, que eu possa participar

Tristezas para suas tristezas, e ecoam suspiros para ti.

Nem inimigos nem fortuna podem me tirar este poder;

É meu Abelardo pior do que eles?

As lágrimas ainda são minhas, e estas não preciso conservar,

O amor demanda apenas o que mais se derramou em oração;

Nenhuma tarefa mais feliz estes olhos desbotados prosseguem;

Ler e chorar são tudo o que podem fazer agora.

Em seguida partes tua dor, permitas este triste alívio;

Ah, mais de compartilhá-lo! Dá-me toda a sua dor.

O Céu primeiro ensinou algumas letras para ajudar aos desgraçados,

Alguns baniram o amante, ou alguma cativa donzela;

Eles vivem, eles falam, eles respiram o que é inspirado pelo amor,

Calor da alma, e fidelidade a seus incêndios,

A vontade da virgem, sem medo ela transmite,

Desculpe o rubor, e digas tudo,

Acelere o suave intercurso de alma para alma

E sopre um suspiro de Indús ao Pólo.

Tu sabes quão inocente primeiramente conheci tua chama,

Quando Amor me alcançou com nome de Amizade;

Minha imaginação formada de natureza angelical,

Alguma emanação da tua bela mente.

Page 84: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

83

Aqueles sorridentes olhos, tendando-me todos os dias

Brilhou docemente com dia celeste.

Inocente eu olhei; o Céu ouvia enquanto você cantava;

E verdades divinas que vieram remendadas de tua língua.

De lábios como aqueles que preceito falharia?

Muito cedo eles ensinaram que não era pecado amar.

De volta através dos caminhos da agradável sensação eu corri,

Nem desejei um Anjo quem eu amei foi um homem

Sombrias e remotas as alegrias dos santos eu vejo;

Não os invejo, o céu que perdi por ti.

Quão freqüente, quando pressionada ao casamento, eu disse,

Maldição sobre todas as leis, menos aquelas criadas pelo amor!

Amor, livre como o ar, à vista dos laços humanos comuns,

Espalha a suas asas luminosas, e num momento voas,

Deixa riqueza, deixe honra, esperar a dama casada,

Augusto seja seu feito, e sagrada seja sua fama;

Antes que a verdadeira paixão remova todas essas opiniões,

Fama, riquezas, e honra! O que são comparados ao Amor?

O Deus ciumento, quando profanamos seus incêndios,

Aquelas inquietas paixões em vingança inspiram;

E lhes manda que façam gemidos mortais,

Quem procurar no amor por outro, mas ama só.

Deveria aos meus pés o maior mestre do mundo cair

Ele, seu trono, seu mundo, eu desprezo a todos eles:

Nem imperatriz de César eu me dignaria a provar;

Não, faça-me amante do homem que amo;

Se não houver ainda outro nome mais livre,

Mais querida do que amante, faça-me de ti!

Oh estado feliz! Quando almas se chamam,

Quando o amor é liberdade, e natureza, e lei:

Page 85: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

84

Tudo então é pleno, possuindo e sendo possuído,

Nenhum desejo vazio doendo no peito:

Pensamentos se encontram, antes de lábios partirem

E cada desejo quente nasce mútuo do coração.

Isto certamente é felicidade (se felicidade na terra existir)

E uma vez a sorte de Abelardo e eu

Veja, como mudastes! Que repentinos horrores surgem!

Um amante nu preso e mentiras sangrentas!

Onde, onde estava Heloísa? Sua voz, sua mão,

Seu punhal, tinha se oposto ao comando direto.

Bárbara, fique! Aquele sangrento golpe restringe;

O crime foi comum, comum seja a dor

Eu não posso mais, por vergonha, por raiva reprimida

Deixe lágrimas, e rubores falarem do resto.

Não podes esquecer aquele triste, solene dia,

Quando vítimas nos pés do altar no qual estávamos?

Não podes esquecer quantas lágrimas caíram naquele momento,

Quando, quente em juventude, eu me despedi do mundo?

Com lábios frios beijei o sagrado véu,

Todos os santuários tremiam, e as luzes ficavam pálidas:

O Céu mal acreditou a conquista que conseguira,

E santos com admiração ouviram as promessas que fiz.

Ainda assim, aqueles altares tenebrosos alcancei,

Não era na Cruz que meus olhos se fixavam, mas em você:

Não era graça, ou zelo, o amor somente me chamava,

E se eu perder teu amor, eu perco tudo.

Venha! Com o teu olhar, tuas palavras, alivia minha aflição;

Você ao menos ainda pode outorgá-los.

Ainda sobre seu peito enamorado me deixe descansar,

Page 86: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

85

Ainda beber o veneno delicioso do teu olho,

Ofegar em teus lábios, e ser pressionada em seu coração;

Dê-me tudo que possa, e deixe-me sonhar o resto.

Ah, não! Dê-me outras alegrias como premio,

Com outras belezas encante meus olhos parciais,

Com minha vista cheia da brilhante morada,

E fazer a minha alma esquecer Abelardo por Deus.

Ah, pense que ao menos teu rebanho merece teu cuidado,

Plantas de sua mão, e as filhas de tua oração.

Do falso mundo elas fugiram na juventude,

Por ti, para montanhas, selvas, e desertos.

Você ergueu esses santificados muros; o deserto sorriu

E o Paraíso foi aberto na selva.

Nenhum órfão chorando viu as lojas de seu pai

Nossos santuários irradiam, ou chamuscam o chão;

Nenhum santo prateado, morrendo por misérias dadas,

Aqui subornou a raiva de mau-requerido céu:

Mas telhados tão lisos quanto os que piedade poderia levantar,

E só com os vocais com o louvor do Criador.

Nestas solitárias paredes (seus dias eternamente ligados)

Esta musguenta cúpula com arrematados torreões coroados,

Quando horríveis arcos fazem do dia, noite,

E as janelas escuras deixam passar uma solene luz;

Teus olhos difundem um raio reconciliado,

E brilham de glória clareando todos os dias.

Mas agora nenhum rosto divino mostra contentamento,

Estão todos em tristeza vazia, ou lágrimas contínuas.

Veja como tento a força da oração de outros,

(ó piedosa fraude da caridade amorosa!)

Mas por que deveria eu depender das orações alheias?

Page 87: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

86

Vem tu, meu pai, irmão, marido, amigo!

Ah deixar tua serva, irmã, filha se mover,

E todos estes nomes em um, teu amor!

Os escuros pinheiros que sobre distantes rochas reclinam

Ondas altas, e com sopro de ventos ocos

Os errantes córregos que brilham entre as colinas

As grutas que ecoam até as montanhas que tilintam,

As moribundas tempestades que suspiram sobre as árvores

Os lagos que tremem ao vento ondulado;

Nenhuma dessas cenas auxiliam minha meditação

Ou dão trégua para descansar essa visionária serva

Mas entre o crepúsculo, os olivais e as cavernas empoeiradas,

Alto-sonantes corredores, e sepulturas entremeadas,

A Melancolia Negra se instaura, e rodeia seus arremessos

Um silêncio de morte, e um pavoroso repouso:

Sua presença sombria entristece toda a cena,

Sombreia toda flor, escurece todo verde,

Aprofunda o sopro das quedas d’água

E respira um horror escuro na floresta

Ainda assim, aqui para sempre, sempre devo ficar;

Prova triste de como um amante pode obedecer!

Morte, somente a morte, pode quebrar a cadeia duradoura;

E aqui, mesmo depois, deverá minha fria poeira permanecer

Aqui todas as suas fragilidades, todas as suas chamas desistem,

E esperam até que não haja nenhum pecado para misturar com o teu.

Ah desgraça! Acreditou a esposa de Deus em vão,

Confessada dentro dos escravos do amor e homem.

Ajude-me, Céu! Mas de onde surgiu sua oração?

Surgiu da piedade, ou do desespero?

Page 88: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

87

Até mesmo aqui, onde castidades congeladas se aposentam,

O Amor encontra um altar para as chamas proibidas.

Eu deveria lamentar, mas não consigo lamentar o que deveria;

Eu lamento o amante, não lamento a culpa;

Visualizo meu crime, mas me estimula a visão,

Arrependo-me de antigos prazeres, e angario novos;

Agora tornada ao Céu, eu choro meu antigo delito,

Agora penso em ti, e amaldiçôo minha inocência.

De toda aflição já ensinada a um amante,

Com certeza esta é a ciência mais difícil de esquecer!

Como é perder o pecado, mas ainda assim manter o bom senso,

E amar quem ofendeu, mas detestar o crime?

Como remover o caro objeto do crime,

Ou como distinguir penitência de amor?

Tarefa inconstante! Uma paixão de se demitir,

Por corações tão tocados, tão penetrados, tão perdidos quanto o meu.

Onde tal alma recupera seu pacífico estado,

Quantas vezes ele deve amar, quantas vezes odiar!

Quantas vezes ter esperança, desespero, ressentimento, pesar,

Conciliar, desprezar – fazer tudo menos esquecer.

Mas deixe os Céus agarrá-las, tudo de uma vez despedi-las

Não tocado, mas extasiado; não acordado, mas inspirado!

Oh vem! Oh me ensine a suprimir,

Renuncie meu amor, minha vida, eu mesma- e você.

Encha meu coração carinhoso com Deus apenas, pois ele

Somente pode ser seu concorrente, melhor sucedido que ti.

Como são felizes as inocentes virgens!

O mundo esquecendo pelo mundo esquecido.

Brilho eterno de uma mente sem lembranças!

Cada oração aceita, e cada desejo renunciado;

Page 89: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

88

Trabalho e descanso, em iguais períodos;

"Obedientes repousos que possam despertar e chorar";

Desejos comportados, afetos nunca igualados,

Lágrimas que deliciam, e suspiros que flutuam ao Céu.

Graça brilha ao seu redor com serenos feixes de luz,

E anjos suspiram e induzem seus dourados sonhos

Para ela a imarcescível rosa do Éden desabrocha

E asas de serafins derramam perfumes divinos,

Para ela a esposa prepara o anel de noivado

Para ela virgens brancas cantam núpcias

Aos sons das harpas celestiais ela desvanece longe

E se derrete em visões do eterno dia.

Muitos outros sonhos minha alma errante cria,

Distantes rupturas de alegria profana:

Quando, no encerramento de cada triste, penoso dia,

Fantasia repõe aquilo que a vingança levou embora,

Então consciência dorme, deixando a natureza livre,

Toda a minha alma solta não reprimida salta para ti.

Oh amaldiçoados, queridos horrores de noites conscientes!

Como a brilhante culpa exalta os desejos deliciosos!

Diabos provocantes retiram todas as restrições,

E agita em mim toda fonte de amor.

Ouço-te, vejo-te, Observo todos os seus encantos,

E em volta do seu fantasma colo meus braços

Acordo – não mais ouço, não mais vejo,

O fantasma voa comigo, tão cruel como você.

Eu chamo em voz alta, ele não ouve o que eu digo;

Eu estico meus braços vazios; ele foge de mim.

Para sonhar uma vez mais fecho meus olhos;

Suaves ilusões, queridos enganos, surjam!

Page 90: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

89

Infelizmente, nada mais – Acho que continuamos vagando

Através de resíduos melancólicos, chorando o pesar um do outro,

Aonde ronda alguma torre desfeita na qual pálidas heras rastejam,

E escuras rochas caem sobre os abismos

Subitamente você monta, acena dos céus;

Nuvens vetam, ondas exaltam, e ventos surgem.

Eu guincho, começo, a mesma triste perspectiva encontro,

E desperto a todo o sofrimento que deixei para trás.

Para ti o destino, severamente bom, ordena

Um suspense frio de prazer e de dor;

Sua vida uma longa, morta calmaria de fixado repouso;

Sem pulsos que se revolta, e nenhum sangue que brilha.

Parado como o mar, onde os ventos eram ensinados a soprar,

Ou almas que se movem convidam o fluxo das águas;

Leve como o sono de um santo perdoado,

E leve como aberturas brilhantes do Céu prometido.

Vem, Abelardo! Porque o que tu tens a temer?

A tocha de Venus não queima para os mortos.

A Natureza fica marcada; A Religião desaprova;

Ainda és frio - Ainda ama Heloísa.

Ah desesperadas, duradouras chamas! Como aqueles que queimam

Ilumina os mortos, e aquecem a infrutífera urna

Que cenas aparecem sempre que torno meus olhos?

As queridas ideias, onde vôo, persigo,

Ascende no bosque, antes de subir o altar,

Mancha toda a minha alma, e desmoraliza meus olhos.

Eu gasto a luz da manhã em suspiros por ti

Tua imagem anda furtivamente entre meu Deus e eu,

Page 91: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

90

Tua voz eu percebo em cada hino que ouço,

Com cada conta do rosário eu derrubo uma lágrima suave.

Quando do incensário nuvens de fragrância saem,

E órgãos inflamados elevam as almas

Um pensamento sobre ti coloca toda a pompa a voar,

Sacerdotes, pavios, círios, templos, nadam a minha frente:

No mar de chamas minha alma é afogada,

Enquanto altares queimam, e anjos tremem em volta.

Embora prostrado aqui em humilde dor eu esteja,

Doces, virtuosas gotas se ajuntam meus olhos,

Enquanto orando, tremendo, rolo no pó,

E aurora clemente abre minha alma:

Venha, se tu se atreve, toda charmosa como tu és!

Oponha-se ao Céu; disputa meu coração;

Vem, com um olhar destes olhos que iludem

Apague cada idéia brilhante do céu;

Retome aquela graça, aquelas tristezas, e aquelas lágrimas;

Tome a minha penitência infrutífera e rezas;

Agarra-me, apenas subindo, a partir da bem-aventurado residência;

Ajude os fanáticos e arranque-me do meu Deus!

Não, voas comigo, voas comigo, tão longe como de pólo a pólo;

Levante Alpes entre nós! E oceanos inteiros rolem!

Ah, não venha, não escreva, não pense uma vez em mim,

Nem dividas um pedaço do que sentia por ti.

Teus juramentos eu renuncio, tua memória renuncio;

Esqueça, renuncia-me, odeio tudo que era meu.

Belos olhos, e aparência tentadora (que ainda vejo!)

Por muito amadas, adoradas idéias, todas adeus!

Oh Graça serene! Oh virtude celestial mente justa!

Page 92: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

91

Divino esquecimento de mal pensado cuidado!

Nova esperança que floresce filha feliz do céu!

E fé, nossa inicial imortalidade!

Entre, cada leve, cada amigável hóspede;

Receba e me envolva em eterno descanso!

Vê, em sua cela triste Heloísa deita,

Propriamente em alguma tumba, uma vizinha dos mortos.

Em cada vento fraco acho que um espírito chama,

E mais do que ecos falam ao longo das paredes.

Aqui, enquanto eu olhava as moribundas lâmpadas em volta,

Daquele santuário eu escutei o oco som

"Venha, irmã, vem!" (ele disse, ou pareceu dizer)

"Teu lugar é aqui, triste irmã, Venha-te!

Assim como a ti, eu tremi, chorei, e rezei,

Vitima do amor então, embora agora uma criada santificada:

Mas tudo é calma nesse sono eterno;

Aqui a tristeza se esquece de gemer, e o amor se esquece de chorar,

Até a superstição perde todo medo:

Pois é Deus, não o homem, que exime nossas fragilidades neste lugar."

Eu venho, venho! Prepare o seu róseo quarto,

Palmas celestiais, e flores sempre florescendo.

De lá, onde os pecadores podem ter descansado, eu vou,

Onde flamas refinadas nos peitos de brilho serafino

Você, Abelardo! Paga o último culto,

E suave minha passagem pelos reinos do dia;

Vê meus lábios tremerem, e meus olhos rolarem,

Sugue meu último suspiro, e capture minha alma que voa!

Ah não - em vestes sagradas você deve ficar,

Uma estreita vela treme em tua mão,

Page 93: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

92

Apresente a cruz diante meus olhos levantados

Ensina-me de uma vez, e aprendei de mim para morrer.

Ah, então, tua uma vez amada Heloísa vê!

Não haverá então nenhum crime a olhar-me.

Ver de minha bochecha as rosas transitórias voarem!

Ver a última centelha languir em meus olhos!

Até que todo movimento, pulso, respiração tenham acabado;

E até meu Abelardo não ser mais amado.

O toda – eloqüente Morte! Só você prova

Que nos padecemos em pó, quando o homem nos amamos

Então também, quando o destino destruir tua bela moldura,

(Causa de toda minha culpa, e de toda minha felicidade)

Em transe extático Tua agonia devera se afogar,

Nuvens brilhantes descem, e anjos observam a ronda,

De céus abertos devem glorias torrenciais brilharem,

E santos te abraçaram com um amor como o meu.

Deve uma boa tumba unir cada nome infeliz,

E encrave meu amor imortal no teu nome

Então, por anos à frente, quando todos os meus males tiverem acabados,

Quando este coração rebelde não dever mais bater;

Se alguma sorte dois amantes errantes unir

Para as paredes brancas e mananciais prateados do Paracleto

Sobre o pálido mármore juntarem suas cabeças,

E beberem as lágrimas que ambos choraram;

Então, infelizmente dirão, com mútua pena,

"Oh que nunca amemos como eles amaram!"

De todo o coro quando altas Hosanas se elevam,

E aumentar a pompa do horrível sacrifício,

Page 94: universidade federal do paraná ana luiza mendes entre a razão

93

Em meio aquela cena se algum relutante olho

Vislumbrar a pedra onde nossas frias relíquias descansam

Devoções do alto devem roubar um pensamento do Céu

Uma lágrima humana deve cair e ser perdoada.

E claro, se o mesmo destino triste se juntarem

Em triste similitude de mágoa que a minha

Condenando anos inteiros em ausência para lamentar,

E imaginar encantos que ele não deve mais contemplar;

Tais se houver, que ama há tanto tempo, tão bem;

Deixe ele nossa triste, nossa carinhosa história contar

As bem cantadas desgraças irão acalmar meu pensativo fantasma;

Ele pode melhor pintá-los, quem senti-los mais