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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
ANA LUIZA MENDES
ENTRE A RAZÃO E O PECADO: A LINGUAGEM DO AMOR NAS
CORRESPONDÊNCIAS DE ABELARDO E HELOÍSA
CURITIBA 2009
ANA LUIZA MENDES
ENTRE A RAZÃO E O PECADO: A LINGUAGEM DO AMOR NAS
CORRESPONDÊNCIAS DE ABELARDO E HELOÍSA
Monografia apresentada à disciplina de Estágio
Supervisionado em Pesquisa Histórica como requisito
parcial à conclusão do Curso de História, Setor de
Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade
Federal do Paraná.
Orientador: Prof.ªDr.ª Marcella Lopes Guimarães
CURITIBA 2009
RESUMO
Essa monografia tem como objetivo analisar as correspondências de Abelardo e
Heloísa no tocante aos diferentes aspectos da vida social na qual ambos estavam
inseridos, tal como a relação entre o universo filosófico de Abelardo e como este o
aplicou em sua vida. Tal circunstância suscita uma disparidade entre teoria e prática,
incoerência que será responsável pela contradição moral apontada por Heloísa que
argumenta sua defesa com o método e teoria do próprio Abelardo, também utilizado
para atacá-lo em torno da concepção de pecado que ele atribuiu à relação. Heloísa
aponta para a incoerência do discurso dele, que varia desde o descontrole passional até
a serenidade da vida ascética, uma vez que incorpora três elementos: o homem, ser de
desejo, corrompido, concupiscível, cuja experiência de vida e de julgamento será
diversa da expressada do ponto de vista do clérigo e do filósofo, mais próximos de
Deus, da perfeição e da salvação. Nesse contexto, é possível verificar nas
correspondências, duas formas narrativas, duas formas de expressão que proclamam
diferentes visões sobre o romance que irá modificar a vida dos seus protagonistas, fato
que possibilita examinar a tipologia da moral vivenciada por Heloísa e Abelardo que
vivendo de formas distintas este amor irão julgá-lo também de modo diferenciado.
Palavras chave: literatura medieval, dialética, moral da intenção, pecado, amor cortês
ABSTRACT
The propose of this monography is to analyse the correspondences of Abelard
and Heloise in its diferents aspects of social life in whitch both were inserted, such as
the relation between the philosophical universe of Abelard and its use in his life. Such
circustancies generates a distinction between theory and praxis, inconsistency that will
be responsible for the moral contradiction adressed by Heloise, she argues her defense
with the method and the theory of Abelard, also used to attack him around the concept
of sin that he gave to the relationship. Heloise points to the inconsistency of his
speech, ranging from the lack of passion to the serenity of an ascetic life, by
incorporating three elements: the man, been of desire, corrupt, lustfull, whose
experience of life and judjement will be different from the expressed by the view of
the priest and philosopher, closer to God, of perfection and salvation. It is possible to
verify in the correspondences, two narrative forms, two forms of expression that
proclaim different views on the novel that will modify the lives of its protagonists, a
fact that allows considering the typology of moral experienced by Heloise and
Abelard, that by living in distincts ways this love, will also judge it in differents
manners.
Key Words: medieval literature, dialectic, moral of intention, sin, courtly love
SUMÁRIO
Introdução...........................................................................................................5
1 – A sociedade de Abelardo e Heloísa............................................................10
1.1 – A (viva)cidade medieval............................................................................10
1.2 – A arte que ilustra a vida..............................................................................13
1.3 – Literatura e História: uma experimentação do mistério.............................16
2 – As bases ideológicas da vida moral............................................................22
2.1 – A regulação moral do corpo e da alma.......................................................22
2.2 – O pecado e os hábitos do século.................................................................24
2.3 – Os limites da visão do feminino.................................................................30
2.4 – A doutrina do amor puro x a moral da intenção.........................................34
3 – A linguagem do amor..................................................................................39
3.1 – A linguagem racional..................................................................................41
3.2 – A linguagem cortês.....................................................................................46
3.3 – A linguagem da salvação............................................................................53
Conclusão............................................................................................................60
Referências..........................................................................................................63
Anexo I – Imagem da planta do cemitério Père Lachaise...............................66
Anexo II – Foto do túmulo de Heloísa e Abelardo..........................................67
Anexo III – Poema Eloise to Abelard, de Alexander Pope..............................68
INTRODUÇÃO
Ao mencionar a expressão Idade Média é comum, em discussões fora do
ambiente acadêmico, relacioná-la a conceitos referentes à obscuridade, restrições,
enclausuramento, domínio da fé em detrimento da razão, entre outros. Nessa
perspectiva, a tendência é definir a época medieval como um período em que as
atividades humanas se resumiam ao trabalho no feudo e na oração com o objetivo de
expurgar os pecados e garantir o seu espaço na morada celeste.
Essa imagem, segundo Baschet1, construída por uma corrente historiográfica
que visava valorizar o presente a partir da total ruptura com a época anterior, criou um
juízo sobre esse período histórico que minimizou a sua importância na vida dos
homens, além de ter criado um retrato romântico em que figuram o imaginário
cavaleiresco e a extrema autoridade eclesiástica.
Entretanto, hoje há uma safra de estudos que levantam outras possibilidades de
interpretação de uma época que pode ser vista como extremamente fértil em diferentes
aspectos da vida social, política e cultural, possibilitada por diferentes ângulos de
análise. É a partir desse ponto de vista que Baschet, em A civilização feudal. Do ano
mil à colonização da América apresenta uma Idade Média viva, possuidora de uma
dinâmica nem sempre atestada, mas cujo (re)conhecimento é de extrema importância
para a tentativa de compreensão do seu aparato social e mental.
Exemplo desse dinamismo é a cidade medieval que proporcionava o encontro
de diferentes indivíduos e, consequentemente diferentes formas de expressão e de ação
no convívio social. Uma das experiências que tiveram lugar no palco citadino foi
aquela que transformou o mundo em uma reflexão racional, ou seja, a vida intelectual
que, muito mais do uma forma de expressão, se constituía como um estilo de vida,
como poderá ser verificado no decorrer das correspondências de Abelardo (c.1079-
1142) e Heloísa (c.1001-1163), a fonte principal desse trabalho.
A versão aqui utilizada é edição de 1989, da editora Martins Fontes, com o
prefácio de Paul Zumthor. O livro, intitulado Correspondências de Abelardo e
1 BASCHET, J. A civilização feudal. Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006, p.25.
6
Heloísa, traz a compilação do manuscrito, composto de um relato de Abelardo, o qual
escreveria a um amigo sobre os infortúnios pelos quais passou após ter se deparado
com a jovem Heloísa, cuja fama a antecedera ao conhecimento de Abelardo, devido à
sua espetacular educação. Esse relato é conhecido como Historia calamitatum
mearum, história das minhas calamidades, pois, como o próprio nome sugere, conta os
infortúnios que atingiram o filósofo do momento em que sua relação com Heloísa foi
desvendada até a escrita do texto. Após, segue-se uma série de quatro cartas (duas de
Heloísa a Abelardo e duas de Abelardo a Heloísa), as quais revelam as posições dos
antigos amantes sobre os percalços pelos quais passaram e sobre a situação a qual
estavam submetidos no momento em que rememoraram sua história, fornecendo
diferentes experimentações do passado comum.
Além dessas cartas, de caráter pessoal, seguem outras, de caráter formal, cuja
temática desenvolve-se em torno da administração do monastério do Paracleto, do qual
Heloísa se tornou abadessa em meados de 1129 e uma Regra proposta por Abelardo às
religiosas.
Desses documentos, os que interessam como fontes de estudo para esse trabalho
são: a carta de Abelardo em que conta suas calamidades e as cartas pessoais entre ele e
Heloísa que expressam os sentimentos de ambos sobre os acontecimentos de suas
vidas.
Abelardo foi a primeira configuração do intelectual moderno e um renomado
professor de lógica e teologia. Sua reputação não era restrita somente a Paris, mas é
nessa cidade que fez sua fama e também sua desgraça, como ele argumentou na
autobiografia, ao narrar os eventos que sucederam ao seu envolvimento com Heloísa,
jovem incomum para a época porque era familiarizada com os conhecimentos
culturais, literários e filosóficos do período.
A relação entre os dois se faz por meio de controvérsias em torno da situação do
filósofo e do tonsurado, cuja condição matrimonial era mal quista para o
desenvolvimento dessas funções. Então qual a conexão entre esse sacramento e a
situação de mestre de Abelardo e mais, qual a correlação entre esse casamento e o
relacionamento pessoal do casal?
7
Esses são alguns dos pontos que se pretende analisar nesse estudo, além de
outras questões que se delineiam por entre as cartas de Heloísa e Abelardo, que
suscitam a observação de diferentes aspectos da vida social na qual ambos estavam
inseridos, tal como a relação entre o universo filosófico de Abelardo e aplicação dela
em sua vida. Um deles diz respeito a alguns estudos que sugerem certa emancipação
feminina protagonizada nas atitudes de Heloísa, uma vez que ela discute de igual para
igual com Abelardo sobre diferentes assuntos correlacionados com a filosofia e com a
teologia, postura não muito comum às mulheres do período em que viveu.
Outro aspecto relevante a ser analisado é a relação entre o universo filosófico de
Abelardo e como este o aplicou em sua vida. Tal circunstância suscita uma disparidade
entre teoria e prática, incoerência que será responsável pela contradição moral
apontada por Heloísa que argumenta sua defesa com o método e teoria do próprio
Abelardo, também utilizado para atacá-lo em torno da concepção de pecado que ele
atribuiu à relação.
No decorrer da correspondência de Abelardo e Heloísa é possível verificar duas
formas narrativas, duas formas de expressão que proclamam diferentes visões sobre o
romance que modificou a vida dos seus protagonistas. Esta observação é colocada
como outro tópico de análise, uma vez que possibilita examinar a tipologia da moral
vivenciada por Heloísa e Abelardo que vivendo de formas distintas este amor irão
julgá-lo também de modo diferenciado.
Nessa perspectiva é inevitável questionar o papel que a mulher exercia dentro
da sociedade feudal, sobretudo em relação ao casamento e ao amor dito cortês, gênero
literário que expõe uma doutrina de amor que codifica metodicamente a arte de amar,
não acessível ao comum dos mortais2, pois se refere ao fin’amors, amor puro, refinado,
se constituindo numa
ascese do desejo, mantido irrealiado tanto tempo quanto possível para, com isso, crescer em intensidade e ser sublimado pelos feitos cavaleirescos realizados em nome da amada. O fin’amors enseja assim, uma culto do desejo, um amor do amor: convencido de que a paixão cessa quando atinge o seu objetivo faz de sua impossibilidade a fonte do mais alto júbilo.3
2 CAPELÃO, A. Tratado do amor cortês. Martins Fontes: São Paulo, 2000, p. XXXVII. 3 BASCHET, J. A civilização feudal. Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006, p. 120.
8
Algumas características dessa literatura parecem nortear algumas passagens das
cartas atribuídas a Heloísa. Isso não significa dizer que essa linguagem refletia o modo
real como as se pessoas amavam, elas poderiam nortear uma idealização do sentimento
amoroso e ter algum impacto no real. Desse modo, “a leitura das cartas [...] permite
analisar a história não somente do ponto de vista de Abelardo (como fazemos ao ler a
Historia calamitatum), mas também do de Heloísa”. 4
Outro aspecto da vida social que perpassa nessa investigação tem como objetivo
observar a relação e a interação entre o mundo feudal e a constituição do indivíduo
enquanto ser social e individual, isto é, como a individualidade desse romance, que às
vezes é-nos passado com traços de lenda, e de seus artífices se articula com os seres
que engendram o corpo social da época medieval.
Assim, o primeiro capítulo tratará dos aspectos pertinentes ao contexto da
cidade medieval, que possibilitaram o seu desenvolvimento dos pontos de vista
material e mental. A variada estrutura dela permite a fluidez de comportamentos e
idéias que foram formalizadas racionalmente através do método escolástico, originado
nas escolas medievais, gérmen das universidades.
O conhecimento era, em grande parte, monopólio dos eclesiásticos, fato que
também suscita um questionamento sobre os testemunhos escritos acerca dos modelos
de comportamento das relações entre homens e mulheres e entre clérigos e leigos,
elemento que será abordado no segundo capítulo. Este levanta questões sobre a base
ideológica da vida no contexto medieval. Abelardo irá viver com mais intensidade as
marcas da dicotomia entre céu e terra, alma e corpo, visto sua condição de clérigo e
filósofo de um lado, e amante de outro, situação que suscita questionamentos sobre sua
própria conduta, permeada de pecado, como ele mesmo condena.
Essa é uma referência comum ao homem e a mulher medieval. O pecado está
presente no mundo, segundo o discurso religioso, e é mais bem observado na figura da
4 RANGEL, P. A abadessa infiel e o cavaleiro apóstata. Revista Estudos Hum(e)anos. IUPERJ, vol.0, n.0, 2008, p.26.
9
mulher que, por natureza é manipuladora e a causa da decadência do homem, por isso
deve ser controlada.
Todas essas questões estão presentes na forma como Heloísa e Abelardo
descrevem sua história. A linguagem dialética e a linguagem que dá vida ao
sentimento amoroso são o tema da análise do terceiro capítulo que permite visualizar a
alternância e dicotomia de sentimentos entre os dois amantes, que é tributária de dois
modelos de idealização do comportamento, o religioso e o cortês, que influenciam suas
ações, mas não as limitam.
10
CAPÍTULO 1
A SOCIEDADE DE ABELARDO E HELOÍSA
1.1 A (VIVA)CIDADE MEDIEVAL
A cidade medieval é um tema profícuo de se repensar. Ela encarnava a
dicotomia entre a vida terrena e a vida no além, a vida de possibilidades de relações
sociais promovidas pela diversidade de pessoas que nela circulavam e que trocavam
experiências. Clérigos, comerciantes, mestres, guerreiros, prostitutas, citadinos.
Mundos, culturas, pensamentos, comportamentos diversificados, mas cujo
relacionamento era permitido pela composição da vida urbana que se assemelhava a
um teatro da convivência de sistemas de valores particulares, ainda que dentro de um
ordenamento teórico trifuncional. E justamente por permitir essa conjunção de
diferentes elementos, a cidade medieval admite uma ambiguidade, fonte da dicotomia
entre a vida terrena e a vida celestial e por se constituir em uma “sociedade da
abundância”5, fator que contribui para a dualidade de sua definição, pois ela apresenta-
se, “de um lado, Henoc, Sodoma, Babel, Babilônia. Do outro, Jerusalém, a cidade de
Deus”.6
A cidade cujo crescimento e renome são mais espetaculares, Paris, é particularmente objeto dessas atitudes contraditórias. São Bernardo acorre gritando para os mestres e estudantes que começam a povoar a montanha Santa Genoveva: “Fujam do meio da Babilônia, fujam e salvem suas almas. Voltem-se todos juntos para as cidades do recolhimento (isto é, os mosteiros)”. O abade Filipe de Harvengt, por outro lado, escreve para um jovem discípulo: “Impelido pelo amor à ciência você está em Paris, encontrou essa Jerusalém que tantos desejam”. E os goliardos, esses estudantes errantes, fazem coro: “Paris, paraíso na terra, rosa do mundo, bálsamo do universo”. 7
A cidade medieval é, portanto, uma simbiose entre múltiplas individualidades e
diferentes formas de interação, de exclusão social e até mesmo de crítica social, como
5 LE GOFF, J. “Cidade”. In: LE GOFF, J.; SCHITT, J.C. Dicionário temático do ocidente medieval. EDUSC: São Paulo, 2002, p. 223. 6 Ibid, p. 228. 7 Ibid, p.229.
11
é o caso da poesia dos goliardos, clérigos errantes com espírito provocador e
anarquista, vistos por uns como vagabundos e charlatães, e como uma espécie de
inteligência urbana por outros 8. Tal ambiente, centro de novas mentalidades, também
foi propício para o desenvolvimento da cultura e da propagação do conhecimento que
possibilitou o desenvolvimento tanto das atividades ligadas ao comércio e ao
artesanato como às do intelecto.
O que seria da filosofia sem a lógica aristotélica? O que seria da agricultura sem
os progressos das técnicas de cultivo? O que seriam das igrejas sem a astúcia da
arquitetura gótica? O que seria dos intelectuais sem os scriptoria, sem as universidades
e sem as cidades?
É essencialmente por meio das cópias feitas na Idade Média que os autores da Antinguidade chegaram até nós. Copiar, ler reescrever, imitar, comentar Virgílio, Horácio, Ovídio ou Estácio é uma parte importante da atividade literária medieval. A primeira manifestação de vida literária na Idade Média é a sobrevivência da liturgia antiga, principalmente pelo uso que se fez no ensino.9
Esses elementos podem ser notados com maior ênfase a partir do renascimento
do século XII, movimento de transformações políticas, sociais, econômicas e culturais
que proporcionou, entre outros fatores, transformações e difusão de técnicas agrícolas
que contribuíram para o crescimento da população10, fortalecendo o desenvolvimento
das cidades medievais e contribuindo para a diversificação de atividades e a expansão
de outras.
No que diz respeito à filosofia aristotélica, ela já vinha sendo traduzida dos seus
comentadores árabes, mas pôde ser mais difundida com o desenvolvimento da prática
da leitura, o que permitiu a expansão da produção de livros, claro, na devida proporção
que a época, ainda sem o aparecimento da imprensa, poderia realizar através dos
copistas. Esta atividade, até um determinado momento, era restrita aos clérigos que,
8 LE GOFF, J. Os intelectuais na Idade Média. Estudos Cor: Lisboa, s/d, p. 37. 9 ZINK, M. “Literatura(s)”.In: LE GOFF, J.; SCHITT, J.C. Dicionário temático do ocidente medieval. EDUSC: São Paulo, 2002, p. 82. 10 BASCHET, J. A civilização feudal. Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006, p.25.
12
aliavam a leitura e a escrita ao seu poder de sentenciar o código religioso-moral da
sociedade, uma vez que eram os únicos a ler e a interpretar a Bíblia, a partir da qual se
desenhava o modelo de comportamento para assegurar a salvação das almas.
Esse movimento de maior difusão do conhecimento libera a cidade medieval
para uma nova forma de relação com os habitantes locais e com os estrangeiros que
chegam com o intuito de adquirir o conhecimento que passou a ser transmitido através
das corporações de mestres e alunos, gérmen das universidades. É nesse contexto do
quadro urbano medieval, entre as disputas entre o poder espiritual e temporal, que
surgem os intelectuais, os quais nasceram no interior da instituição eclesiástica, mas
não permaneceram confinados nela11, que acordam com o fato de que a ciência tem
que ser posta em circulação, com o objetivo de revelar ao homem sua capacidade de
compreender a natureza através da razão e transformá-la pela sua atividade. 12
O progresso da atividade intelectual talvez seja a característica mais marcante
da cidade medieval. O domínio do saber, antes restrito ao poder eclesiástico abre-se,
através das escolas urbanas para estudantes que pagam aos mestres, clérigos de ordens
menores, o ensino das técnicas da retórica, da dialética, da lógica, aplicadas através da
lectio (comentário de textos) e disputatio (exame de um problema através da discussão
de argumentos contrários e favoráveis a ele), fundamentos do método escolástico.
A princípio, escolástico era o nome conferido ao professor das artes liberais e,
posteriormente, ao professor de filosofia ou teologia das escolas das catedrais e da
futura universidade. Portanto, escolástica significa filosofia da escola que exercita a
atividade racional para a compreensão da verdade religiosa, recorrendo à razão e às
autoridades, as quais tanto podem ser os padres da igreja como os filósofos antigos,
árabes ou judaicos. 13
Esse ambiente de intelectualidade não poderia emanar de outro contexto senão
o da cidade, como Paris. Ela foi no período medieval um centro cultural e efervescente
de escolas, mestres e estudantes, não obstante
11 DUBY, G. Idade Média na França. De Hugo Capeto a Joana D’Arc (987-1460). Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro, 1992, p. 12. 12 LE GOFF, J. Os intelectuais na Idade Média. Estúdios Cor: Lisboa, s/d. 60. 13 ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. Martins Fontes: São Paulo, 2000, p.344.
13
deve seu renome, em primeiro lugar, ao brilho do ensino teológico, aquele que se situa no cimo das disciplinas escolares, mas em breve o deverá, mais ainda, àquele ramo da filosofia que, utilizando a fundo a contribuição aristotélica, e o recurso ao raciocínio, faz triunfar as capacidades racionais do espírito: a dialética. 14
São esses elementos que se conjugam para a composição do perfil dos
personagens de destaque nesse trabalho. Abelardo (c.1079-1142), “cavaleiro da
dialética” é a primeira figura do intelectual moderno15 e, por meio desse método
filosófico, através do qual tenta conciliar fé e razão, se sobressai em relação aos
demais mestres e contribuiu para a fama intelectual de Paris ao atrair alunos para
escutar seus ensinamentos, como demonstra o seu testemunho:
Propus-me um dia a discutir o princípio fundamental de nossa fé com a ajuda de analogias racionais. Meus alunos exigiam quanto a esse ponto uma argumentação humana e filosófica e, não se contentando com palavras, queriam demonstrações; “Os discursos, com efeito, diziam-me eles, são supérfluos se escapam à inteligência; não se pode crer sem antes ter compreendido, e é ridículo pregar aos outros aquilo que não se sabe melhor que eles; o próprio Senhor condena os ‘cegos que conduzem a outros cegos’”. Escrevi então para eles um tratado de teologia, Da Unidade e da
Trindade divinas.16
1.2 A ARTE QUE ILUSTRA A VIDA
Ceda ao meu encanto...sou feita da morte, mas
permaneço pelos vivos. Ouça meu canto
sublime e conheça meus segredos.
Autor desconhecido
A história vivida entre Heloísa e Abelardo nos foi legada através de documentos
que geram interpretações diversas tanto em relação ao que expressa o seu conteúdo
quanto à veracidade da autoria. É evidente que os escritos foram compilados, como
hoje os acessamos, em época posterior ao período em que foram redigidos, o que
contribui para as variações das análises, pois a cada momento surgem novas formas de
compreensão do passado, de modo que, segundo Zumthor
14 LE GOFF, J. Os intelectuais na Idade Média. Estúdios Cor: Lisboa, s/d, p. 28. 15 Ibid, p.42. 16 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p.54.
14
a maioria dos medievalistas está hoje de acordo em ver na Correspondência, não o resultado puro e simples de uma colagem de cartas originais, mas um dossiê organizado; não certamente falso, mas uma “obra”, na medida em que essa palavra implica intenção e estruturação. 17
Ainda segundo o autor do prefácio da edição aqui analisada, a correspondência
foi conservada com base no exemplar existente na biblioteca de Troyes, cuja cópia foi
feita no final do século XIII, aproximadamente 150 anos após os acontecimentos
narrados. 18
Dos documentos compilados, os que interessam como fontes de estudo para
esse trabalho são: a carta de Abelardo em que conta suas calamidades e as cartas
pessoais entre ele e Heloísa que expressam os sentimentos de ambos sobre os
acontecimentos de suas vidas.
Sobre a veracidade desses documentos recorremos a Zumthor, para quem
“pouco importa: narração fictícia ou confissão autobiográfica, o texto traz seu próprio
sentido, engendrado nesse lugar utópico em que ressoam os ecos de um mundo (o dos
séculos XII e XIII) contra o qual ele se constrói, assimilando-o”. 19
Essa narração ou confissão é iniciada com as palavras de Abelardo ao relatar
suas infelicidades que foram conseqüências dos atos que revelavam, segundo ele, a sua
soberba, devido a seu prestígio como professor, cuja maestria lhe cobriu de orgulho de
modo que nada do que desejava lhe era impedido.
Ele conquistou a fama, no contexto citadino, por intermédio de sua inteligência
e comprometimento com a dialética e com o uso favorável das palavras no que tange
aos assuntos filosóficos. A conquista da fama também foi ajudada pelo empenho nos
estudos, fazendo com que negligenciasse outras atividades como o lazer e a companhia
de mulheres. A fama era uma constituinte importante para moldar o sujeito Abelardo.
Na sua história, comenta sobre sua chegada a Paris e sobre as refutações que fez aos
mestres com quem estudou. Sua fama se relacionava não somente a essa audácia, mas
17 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p.3 18 Ibid, p.2. 19 Ibid, p.5
15
por ter comprovado sua capacidade nas disputas dialéticas e lógicas. Para isso
Abelardo vivia, na sua fama residia sua honra, pois ele tinha consciência de que o
intelectual era mais precioso e elevado e designava uma qualidade de elevação moral e
de dignidade indiscutível. 20
Porém, esse quadro foi alterado com a chegada de Heloísa, cuja fama intelectiva
também já percorria toda a Paris. Abelardo, então, resolveu aproximar-se dela,
fazendo-o através do tio da jovem, o cônego Fulbert, que confiou a educação de “uma
terna ovelha a um lobo esfaimado!”. 21 Segundo essa afirmação de Abelardo, nota-se
que ele tinha plena consciência do que buscava. Ele segue comentando sobre os
encontros com Heloísa que de livros nada eram nutridos, mas de todos os tipos, todas
as fases do amor eram sustentados, situação prazerosa até o momento em que Fulbert
descobriu o envolvimento dos dois. É a partir desse episódio que inicia a vida de
lamentação e tormento de Abelardo.
A situação desse relacionamento foi agravada pela gravidez de Heloísa que,
num primeiro momento recusa-se ao casamento, como será tratado em um capítulo
posterior, mas resigna-se à vontade daquele que ama. Entretanto, o casamento deveria
ficar em surdina, para não fomentar a ira dos inimigos de Abelardo e não comprometer
sua imagem com o mestre.
Porém, essa resolução não aquietou o ânimo de Fulbert que tratou de fazer
justiça com as próprias mãos, numa tentativa de restabelecer a honra de sua casa,
retirando a de Abelardo, transformando-o em um eunuco.
Aniquilado em sua honra viril, Abelardo julga-se punido por Deus por ter
exercido a concupiscência, termo como julga o seu desejo e como irá denominar sua
relação com sua esposa e mãe de seu filho Astrolábio.
Abelardo tece suas impressões e julgamentos sobre o ocorrido e compreende
que a sua entrada na vida religiosa e a de Heloísa, norma por ele imposta, seria a
maneira mais correta de expiação do pecado que cometeram.
Heloísa teria tomado ciência desses relatos e manifesta-se numa primeira carta,
na qual rememora o passado, recordando os infortúnios e o sacrifício que fez por
20 BROCCHIERI, M. F. B. “O intelectuaal”. In: LE GOFF (dir.) O homem medieval. Lisboa: Editorial Presença, 1989, p. 125-126. 21 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p.41.
16
Abelardo; cobra-lhe, de certa forma, algo em troca, ao menos palavras de conforto se o
amor não era possível, mas quer a presença de Abelardo mesmo que na ausência.
Como resposta, Abelardo fala com formalidade própria de um religioso que se
dirige a uma religiosa. Não faz comentários sobre o passado com Heloísa a não ser em
uma pequena referência de autoridade sobre boas esposas, induzindo Heloísa a se
comportar como tal, resignando-se à decisão de Abelardo, seu esposo, em se dedicar a
servir a Cristo.
Numa segunda carta Heloísa ainda busca trazer Abelardo para si novamente,
revelando a falsidade de seus votos e de seu hábito, pois nunca o esqueceu e não
condena o seu passado com Abelardo, único a quem ama.
Como resposta, Abelardo responde às questões levantadas por Heloísa na carta
anterior através de uma pregação e exortação à condição religiosa de ambos, que
impõe um sentimento de caridade (caritas) e não de amor entre os dois, além de
criticar as súplicas de Heloísa que as deve fazer em prol de sua profissão e de Cristo
que a ama verdadeiramente.
Esse esboço do conteúdo dos manuscritos já introduz um dos pontos a serem
analisados nesse trabalho, o qual se refere à diferença de discurso estabelecido entre os
dois. Enquanto Heloísa tenta trazer o passado à tona, Abelardo apela para a
formalidade de um clérigo resignado com sua situação, uma vez que se visualiza sendo
castigado por Deus devido ao seu ato pecaminoso. Por outro lado, Heloísa em
nenhuma passagem condena os atos praticados com Abelardo; apenas maldiz as
conseqüências que somente recaíram sobre seu esposo e não sobre ela, motor do
desfecho trágico do relacionamento, como ela afirma.
1.3 LITERATURA E HISTÓRIA: UMA EXPERIMENTAÇÃO DO
MISTÉRIO
Darnton22, ao escrever sobre Ovídio, comenta quão difícil é esta leitura, uma
vez que, para compreender a mensagem que este lança em A Arte de Amar é preciso
22 DARNTON, R. “História da Leitura”. In: BURKE, P. (org.) A Escrita da História. Novas
Perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992.
17
que nos coloquemos no lugar dos antepassados romanos e analisemos o contraste entre
a moralidade formal e os hábitos daquela sociedade.
Aqui o trabalho não será menos árduo no que diz respeito à tentativa de
apreender dos escritos sobre a relação de Heloísa e Abelardo um significado
substancial da realidade vivida por ambos, principalmente porque há o contraste do
que foi experienciado por cada um deles, de como essa história chegou até os dias de
hoje e como nós a percebemos.
É evidente que se trata de interpretações, análises tantas vezes revistas, mas que
não deixam de ter seu papel nessa tentativa de experimentação do sentimento passional
que moveu a vida desses personagens.
Podemos desfrutar da ilusão de sair do tempo para entrar em contato com autores que viveram há séculos atrás. Mas mesmo que seus textos tenham chegado intactos até nós – uma possibilidade virtual, considerando-se a evolução dos projetos e dos livros como objetos físicos – nossa relação com esses textos não pode ser a mesma que aquela dos leitores do passado. A leitura possui uma história. Mas como podemos recuperá-la?23
Essa recuperação, entretanto, nunca será total. Cada vez que nos deparamos
com a história desse casal tão peculiar, nós a vemos sob outros ângulos, inclusive
porque o relato sobre a sua vida já nos é apresentada pelas mãos de uma terceira (ou
quarta, ou quinta, etc.) pessoa, cujo julgamento sobre os fatos se entrelaça com a
narração dos acontecimentos e das atitudes que teriam tomado os protagonistas desse
enredo, o qual envolve elementos de tragédia, romance, paixão, cortesia, abdicação,
condescendência, resignação, entre tantos outros sentimentos.
Esses elementos aparentemente isolados aparecem na Correspondência como
uma rede na qual pequenos detalhes remetem a outros, fazendo com que a trama se
encaixe como uma colcha de retalhos que unidos promovem a harmonia da peça.
Além disso, estamos estudando o elemento humano, cuja complexidade e
historicidade provocam alterações no decurso dos acontecimentos e,
23 Ibid., p. 200
18
consequentemente, a sua interpretação dos fatos também será alterada conforme o
juízo de valor referente ao meio social e cultural no qual está inserido.
Nesta perspectiva, é possível identificar quatro variantes nesse elemento
humano, cujas formas de expressão articulam as diferentes narrativas, próprias das
diferentes formas de julgamento e expressão dessas facetas. O discurso conferido a
Abelardo incorpora três desses elementos. Um deles, evidentemente é o homem, ser de
desejo, corrompido, concupiscível, cuja experiência de vida e de julgamento será
diversa da expressada do ponto de vista do clérigo e do filósofo, mais próximos de
Deus, da perfeição e da salvação. Essas três facetas presentes no discurso atribuído a
Abelardo se contrapõem às suposições das idéias aferidas a Heloísa sobre a validade e
condição da relação com Abelardo.
Heloísa, por sua vez, é uma figura que encerra muitas discussões acerca do seu
papel, pelo simples fato de ser mulher no medievo. Esta posição suscita muitas
questões acerca do seu significado no funcionamento da ordem da sociedade feudal.
Mas a imagem de Heloísa levanta maiores indagações dada sua relação com um ilustre
mestre do século XII. Assim Abelardo a descreve na Historia calamitatum:
Havia então em Paris uma moça chamada Heloísa, sobrinha de um certo cônego Fulbert. Este, que a amava com ternura, nada havia poupado para lhe dar uma educação refinada. Ela era bastante bonita e a extensão de sua cultura tornava-a uma mulher excepcional. Os conhecimentos literários são tão raros entre as pessoas de seu sexo que ela exercia uma atração irresistível, e sua fama já corria pelo reino.24
Pouco se sabe sobre Heloísa, mas é fato que ela circulava no meio cultural e
literário do século XII. Entretanto há que se fazer referência ao fato de que a literatura
medieval não se restringia ao domínio da escrita e da leitura silenciosa, reservada e
individual, característica de exceção da literatura nesse período. Os poemas, tais como
as canções de gesta, eram compostos não para serem lidos, mas para serem recitadas.
Outro fato comum no século XII é o que Duby denomina de “intercâmbio epistolar”,
isto é, a leitura em voz alta de cartas (assim como Heloísa teria feito com a carta
recebida de Pedro, o venerável quando da morte de Abelardo) que, posteriormente
24 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p.39.
19
eram relidas, selecionadas e reunidas em coletâneas, como o foram as
correspondências de Abelardo e Heloísa.
Essa colocação reflete uma característica da cultura medieval: a oralidade.
Dessa forma, o termo literatura para a expressão cultural do período medieval pode
conter uma conotação ambígua, uma vez que o seu conceito pressupõe a atividade da
escrita. Todavia, recordando a configuração da cidade medieval, como um teatro nada
mais propício do que uma representação teatral de temas da vida citadina, como atesta
Zink:
Até meados do século XII, as jovens literaturas vernáculas conheciam apenas os gêneros cantados: a canção de gesta, a poesia lírica. A primeira conserva artificialmente as marcas da oralidade, mesmo quando é escrita (sem o quê, o que saberíamos dela?): encenação do recitante, interpelação do público, efeitos de eco e repetições ligados à composição estrófica. A segunda, que exige do poeta que seja também compositor, às vezes denuncia seu modo oral de transmissão, ao nomear o menestrel a cuja memória se confiou a canção ou a desejar que ela encontre um cantor digno de si. O romance é o primeiro gênero (se, no início, esta forma nebulosa merece esse nome) destinado à leitura, mas é uma leitura em voz alta. A arte dos menestréis deixa amplo espaço à mímica e à interpretação dramatizada: ver-se-ão, mais tarde, suas consequências, tanto para o desenvolvimento do teatro quanto para a definição do eu poético. A voz, com sua qualidade e timbre próprios, faz parte integrante da arte literária. Entre os trovadores, os dons de intérprete e de músico são frequentemente confundidos.25
O próprio Abelardo participou dessa retórica dos sentidos quando conheceu
Heloísa e ela e o amor que lhe dedicava foram os responsáveis pelo abandono dos
estudos da filosofia em prol da composição de poemas em que homenageava o seu
amor, como ele mesmo afirma: “Eu me repetia. Se conseguia escrever qualquer peça
em versos, me era ditada pelo amor, não pela filosofia. Em várias províncias, vós o
sabeis, ouve-se frequentemente, ainda hoje, outros amantes cantar meus versos...”. 26
Aos poemas de Abelardo não temos acesso, como a outras fontes de caráter
oral. A nós só é permitido conhecer a história do seu relacionamento com Heloísa
através da escrita que, não somente pelo fato de ter permanecido através do tempo,
admite o atestado de veracidade. Isto porque, como afirma Duby,
25ZINK, M. “Literatura(s)”.In: LE GOFF, J.; SCHITT, J.C. Dicionário temático do ocidente medieval. EDUSC: São Paulo, 2002, p. 81. 26
Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p.42
20
a literatura do século XII não é realista. Ela representa o que a sociedade quer e deve ser. Reconstituir um sistema de valores, eis tudo o que é possível fazer a partir dessas palavras proferidas em voz alta e inteligível. E reconhecer nesse sistema o lugar designado às damas pelo poder masculino. 27
Poder masculino este que abarcava tudo o que estivesse relacionado com o
público, começando pela escrita. Entretanto, essa é mais uma afirmação proveniente de
uma literatura que profere um discurso totalizante. O próprio fato de um dos
personagens de nosso estudo ser uma mulher, cuja fama a antecedera à chegada a Paris
e suscitara a curiosidade e o amor em um dos mais famosos mestres do período, atesta
a necessidade de analisar com perícia as fontes escritas, as quais revelam em grande
parte proveniente o pensamento masculino.
As damas do século XII sabiam escrever, e com certeza melhor que os cavaleiros, seus maridos ou seus irmãos. Algumas escreveram, e talvez algumas tenham escrito o que pensavam dos homens. Mas praticamente nada subsiste da escrita feminina. Resignemo-nos: nada aparece do feminino a não ser por intermédio do olhar dos homens. 28
Sempre iremos nos deparar com problemas relacionados com as fontes escritas
e com as interpretações que delas são feitas, sobretudo com os seus elementos
simbólicos e metafóricos. Há que se ter em mente que tais resquícios históricos não
nos fornecem a essência de quem foram Heloísa e Abelardo e também não nos
permitem apreender de forma completa o sentido e o efeito de sua relação, pois essa
literatura comporta uma grande carga de idealização de seus personagens. Por este
motivo é que sempre o mistério estará pairando sobre nossas análises, pelo fato de ser
impossível abarcar toda a significação da experiência de Abelardo e Heloísa.
Instinto e o pensamento são incompatíveis; essas noções [...] encobriam uma série de outras, misturadas: sensibilidade e vontade, real concreto e abstração
27 DUBY, G. Heloísa, Isolda e outras damas no século XII. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 11-12. 28 Ibid, p. 11-12.
21
dedutiva, política e ideologia, economia e moral, poder criador e ciência retórica, e, bem no fundo, apesar de certas experiências, homem e Deus 29.
Ou seja, o pensamento nunca irá definir com exatidão o sentimento dessa
experiência amorosa, apresentará sempre uma imagem deformada porque será sempre
confrontada, posta à prova, reconfigurada, reinterpretada, mas nunca será a imagem
original, que somente a Heloísa e Abelardo pertence.
29 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p.7
22
CAPÍTULO 2
AS BASES IDEOLÓGICAS DA VIDA MORAL
2.1 A REGULAÇÃO MORAL DO CORPO E DA ALMA
A despeito das diferentes visões que nos são transmitidas sobre a Idade Média,
a questão que não se contesta é o fato de a igreja ter sido a instituição dominante desse
período.
Detentora de boa parte das terras, instituição dominante do feudalismo30, o
domínio da igreja não se restringia apenas ao plano espiritual, abarcando também a
esfera da política, da economia, da cultura, enfim, estava presente, em menor ou maior
grau, em todos os aspectos da vida social.
A fé medieval refere-se menos à crença íntima do que à fidelidade no sentido feudal do termo, quer dizer, uma fidelidade prática, manifestada por atos, palavras e gestos. Sobretudo, não seria questão de escolha pessoal: é-se cristão porque se nasce no cristianismo. É uma identidade herdada (pelo ritual do batismo), que não se discute.31
A vida no contexto medieval, sob o domínio da igreja e do cristianismo, tinha
um caráter guerreiro, cuja luta era travada diariamente entre os vícios e as virtudes,
entre a vida terrena e a vida no além.32 As relações entre clérigos e laicos estão
incrustadas no conjunto das realidades sociais, de modo que não se pode estudar a
Idade Média separada da igreja.
Mais do que uma luta. A vida terrena era uma provação, uma passagem e uma
preparação dolorosa para a vida eterna. Dolorosa porque o mundo sensível é o reino do
diabo e da incapacidade humana de atingir a perfeição, porque esta não é possível de
ser alcançada através de uma substância corpórea, recipiente de todos os males que
inquietam a alma. É o cristianismo e a filosofia platônica unidas para moldar o ideal
ascético da vida humana no mundo terreno. Inserida nessa perspectiva religiosa-
30 BASCHET, J. A civilização feudal. Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006. 31 Ibid, p.168. 32 LE GOFF, J. “Prefácio”. In: BASCHET, J. A civilização feudal. Do ano mil à colonização da
América. São Paulo: Globo, 2006, p. 168.
23
filosófica, a igreja se impõe tanto fisicamente, através da suntuosidade de suas
construções, como ideologicamente para regrar e comandar a ordem social. Para
mantê-la, a instituição confere um caráter dúbio à cidade, ora demonizada, ora
regenerada, centro, de um lado do pecado e tentação, de outro da cultura e
oportunidades.
Essa ideologia moral institucionalizada contribuiu tanto para a determinação e
controle dos marginalizados, entendidos como fora do padrão ou naturalmente
inferiores, como para a exposição dos valores morais aceitáveis, controlando as ações
humanas, como o ritmo do trabalho, do repouso, da alimentação, do sexo. Ou seja,
onde houvesse uma pessoa lá estariam os valores morais pregados pela instituição
religiosa para manter a ordem da boa sociedade. Essa regulamentação também se
destinava ao controle da violência que não poderia ser praticada nos períodos
denominados Paz e Trégua de Deus.
Toda essa regulamentação é permeada pela lógica da salvação da alma,
formulada por meio da dualidade entre o bem e o mal, entre pecado e virtude, entre
danação e salvação. “O mundo é o teatro desse afrontamento permanente e dramático
entre o criador e o Satã”.33
Como não poderia deixar de ser, Heloísa e Abelardo também sofreram as
consequências dessa moralidade ideal. Desejo ou amor. Amor ou caritas. Vida
conjugal ou vida religiosa. Quase um ser ou não ser da consciência da época medieval.
Ou melhor, não havia a escolha do não ser. Ou se renunciava aos prazeres do século ou
se destinava à danação eterna. Pelo menos para Abelardo.
Este protagonizava de forma vívida essa articulação moral travada entre o
carnal e o espiritual. Professando a filosofia e a teologia, convive com os perigos
mundanos que a cidade oferece. Entretanto resiste.
A preparação dos meus cursos não me permitia o lazer de frequentar as mulheres da nobreza e eu tinha poucas relações com as da burguesia. Mas a fortuna, acariciando-me, como se diz, ao mesmo tempo em que me traía, encontrou um meio mais sedutor para facilitar minha queda: caí de minhas
33 BASCHET, J. A civilização feudal. Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006, p.381.
24
alturas sublimes, e a misericórdia divina, para me humilhar, soube vingar-se de meu orgulho, esquecido das graças recebidas.34
Depara-se com Heloísa. Nobre, bela, letrada e jovem. Quantos atrativos
convidativos para a prática do “mal”. A partir daí não é a razão que os governa, mas a
paixão, o desejo, a carne. Até que Abelardo sofre na pele as consequências dos seus
atos e a partir daí sua história com Heloísa toma outro rumo, pois o anjo da guarda da
moral espreita os pensamentos do mestre, seu cúmplice, que o convence da
necessidade da expurgação dos seus pecados.
2.2. O PECADO E OS HÁBITOS DO SÉCULO
Soberba, avareza, luxúria. Assim Abelardo define sua trajetória como mestre
em Paris. Sua história é contada a partir do entrelaçamento com Heloísa. Como um
marco. Como um antes de Heloísa e depois de Heloísa. E o foi, mas como ele mesmo
teria apresentado na Historia calamitatum, o antes de Heloísa não escapava às
indagações morais da sua própria consciência.
Meu sucesso provocou, entre aqueles dentre os meus condiscípulos tidos por mais hábeis, uma indignação tanto maior porquanto eu era o mais jovem e o último a atender aos estudos. É daí que eu dato o início dos infortúnios dos quais ainda hoje sou vítima. Minha fama crescia dia a dia: a inveja levantava-se contra mim. Por fim, presumindo por demais o meu gênio, aspirei, malgrado toda minha juventude, a também dirigir uma escola. [...] Desde as minhas primeiras lições conquistei um tal renome como pensador dialético que a reputação dos meus condiscípulos, a própria glória do meu mestre foram quase ofuscadas. Cheio de orgulho, seguro de mim, logo transferi minha escola para Corbeil, cidade bem próxima de Paris, para ali prosseguir mais vivamente nesse torneio intelectual.35
Pecado da soberba. Tinha total consciência de sua fama e capacidade como
mestre. Tinha confiança até demais como atesta outra passagem:
Em pouco tempo, eu reinava sozinho no domínio da dialética. Seria difícil exprimir a inveja que ressequia Guillaume, o amargor que nele fermentava. Incapaz de conter seu ressentimento, procurou mais uma vez me afastar pela
34 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p.39 35 Ibid, p.30-31.
25
astúcia. Com ofensas infamantes, ele fez com que aquele que me havia cedido a cátedra fosse destituído, e nela pôs outro, pensando assim criar um rival para mim. Voltei então a Melun e reconstituí minha escola. Quanto mais a inveja me perseguia diante do mundo, mais eu ganhava em autoridade!36
Ao pecado da soberba seguiu-se o da avareza, propiciado pelo dinheiro “que
passou a ser necessário, minando os valores tradicionais: honra, mérito, coragem, fé” 37, como acentua outra passagem da Historia calamitatum:
Minhas lições foram bem acolhidas: não demorou muito a se reconhecer que meu talento teológico se igualava ao me gênio de filósofo. Professava simultaneamente as duas disciplinas; uma e outra atraíam à minha escola uma multidão entusiasta. Não ignorais o lucro material nem a glória que disso tirei: o renome vos deve ter informado. Mas a prosperidade sempre enfatua os tolos, a segurança material mina o vigor da alma e a dissolve facilmente entre as seduções carnais. Acreditei ser então o único filósofo sobre a Terra; nenhum ataque me parecia digno de temor.38
Em seguida, Abelardo confessa ter praticado também o pecado da luxúria,
rompendo com o ideal de negação dos prazeres carnais da moral medieval religiosa:
Eu, que até então havia vivido numa estrita continência, comecei a dar brida a meus desejos. Quanto mais eu avançava no estudo da filosofia e da teologia, mais a impureza de minha vida me afastava dos filósofos e dos santos. [...] O orgulho e o espírito da luxúria me haviam invadido.39
Em seguida, ele confessa suas não bem intencionadas pretensões com a jovem
Heloísa:
Eu a via assim ornada de todos os encantos que atraem os amantes. Pensei que seria de bom alvitre estabelecer com ela uma ligação. Não duvidava do êxito: eu brilhava pela reputação, juventude e beleza, e não havia mulher junto a quem meu amor tivesse a temer recusa. 40
36 Ibid, p.33. 37 DUBY, G. Idade Média na França. De Hugo Capeto a Joana D’Arc (987-1460). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992, p.163. 38 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p.38 39 Ibid, p.38. 40 Ibid, p.39.
26
Os três maiores inimigos do homem são: a mulher, o dinheiro, as honras41 e por
todos esses pecados, como atestam as passagens, Abelardo se corrompeu, mas, dentre
os pecados capitais, o pior conforme a gradação elaborada pela igreja é a soberba, é o
pecado do orgulho da vida, provocado pela fama, pelo apego às honras que
massageiam o ego e anuviam a razão. O esquema dos pecados capitais, aperfeiçoado
no século V por Cassiano e readaptado por Gregório Magno, esquematiza
oito pecados principais, hierarquicamente organizados em uma espécie de exército, onde o orgulho exerce funções de comandante supremo, seguido dos sete outros vícios (vaidade, inveja, cólera, preguiça, avareza, gula, luxúria), os quais, por sua vez, conduzem uma multidão de pecados secundários.42
A existência do pecado não é questionada. Ele existe e não deixará de governar
os atos humanos, reservando àqueles que são submetidos ao batismo a possibilidade de
participar do processo de redenção. O pecado se constitui como um problema da moral
cotidiana, uma vez que não se pode fugir dele, pois, por intermédio do pecado original
todos os homens e mulheres já nascem propensos ao ato pecaminoso. A questão que a
igreja se propõe a deliberar é sobre a origem do pecado e a sua diferença em relação ao
vício. A primeira questão diz respeito a quem se dirige o pecado cometido e por meio
de qual ato é praticado.
Sobre a diferença entre vício e pecado, há teorias que acabam por tirar a
responsabilidade direta do indivíduo, uma vez que este está condenado, devido a
hereditariedade do pecado original, condição estabelecida por São Bernardo.
Entretanto, essa tendência se desloca para uma concepção de pecado de Abelardo que
atribui ao ato consciente de cometer a transgressão da lei divina, a culpa pelo pecado.
Abelardo discute e teoriza sobre essa questão e ele mesmo peca. Nas passagens
descritas acima, é possível notar que ele tem consciência do pecado da avareza, da
soberba e da luxúria. Porém, as referências de uma vida desregrada por meio de vícios
41 DELARUM, J. “Olhares de clérigos”.In: DUBY, G.; PERROT, M. (org). História das mulheres no
ocidente. Vol. 2: A Idade Média. Porto: Edições Afrontamento, 1990, p.38. 42 CASAGRANDE, C; VECCHIO, S. “Pecado”. In: LE GOFF, J.; SCHMITT, J.C. Dicionário
temático do ocidente medieval. EDUSC: São Paulo, 2002, p. 345.
27
só são atestadas após o desfecho trágico de sua relação com Heloísa. Vítima da
vingança familiar, sua castração levantou dúvidas sobre suas atitudes enquanto homem
da igreja e da filosofia. A partir dessa reflexão, a emasculação é concebida por
Abelardo como um castigo não só pelo pecado cometido com sua amante, mas como
também pelos vícios anteriores.
Abelardo se dá conta de que ele e Heloísa estão fora da ordem, transgrediram as
regras da boa conduta moral. Tais regras dizem respeito ao comportamento que
diferenciava clérigos e leigos.
Aos clérigos, o amor era proibido. Aos prazeres da carne eram suscetíveis
àqueles que estavam mais próximos da vida mundana. Os clérigos que, teoricamente,
desenvolviam uma experiência ascética de vida, deveriam permanecer afastados da
experiência amorosa. É preciso ter em mente, porém, que tal debate poderia
influenciar o comportamento real, mas se articula mais como modelo do que como
reflexo.43
Na verdade, existe um questionamento sobre a condição de Abelardo dentro da
igreja. A partir do século XI, a igreja passa a exigir que, ao menos os clérigos das
ordens maiores sejam celibatários. Ora, essas classes maiores dizem respeito a padres e
a bispos. Abelardo é um tonsurado, uma classe inferior, sem o sacramento do
sacerdotium, 44fato que não contribui para explicar o motivo pelo qual queria que seu
casamento com Heloísa fosse mantido em segredo.
Mas a Abelardo cabia mais um obstáculo e uma regra. Além de clérigo, era
filósofo e, como dita a tradição filosófica dos antigos, a prática da filosofia e a
experimentação dos prazeres do mundo sensível são incompatíveis. E é Heloísa quem
tenta dissuadir Abelardo do casamento com esse argumento:
Os que pela excelência de sua vida distinguiam-se entre todos os outros: essa expressão indica claramente que os sábios pagãos, os filósofos, deveram tal nome mais à conduta do que a ciência [...] Se desconheces os deveres do clérigo, preserva ao menos a dignidade do filósofo.45
43 FLORI, J. A cavalaria. A origem dos nobres guerreiros da Idade Média. Madras: São Paulo, 2005, p. 152. 44 SCHMITT, J.C. “Clérigos e leigos”. In: LE GOFF, J.; SCHMITT, J.C. Dicionário temático do
ocidente medieval. EDUSC: São Paulo, 2002, p. 242. 45 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p. 48.
28
Apesar de, no século XII, o filósofo mais retomado ser Aristóteles, a concepção
da incompatibilidade da relação entre o inteligível e o sensível é apropriada da teoria
da tripartição de alma, de Platão, a qual sugere que a alma humana é regida por três
faculdades, sendo elas: a razão, a vontade e o desejo. Cada uma dessas faculdades se
impõe sobre as demais nas diferentes almas, diferenciando as posições de cada pessoa
na sociedade, relacionadas com a predisposição da alma. Nessa perspectiva, a alma do
filósofo é comandada pela razão, mais próxima do conhecimento das essências,
contrária à posição do vulgo, preso às aparências do mundo sensível, de forma que o
filósofo deveria se afastar de tudo que perturbasse o movimento da alma rumo ao
mundo das essências.
A cada uma dessas faculdades corresponde uma virtude, a saber: à da razão
corresponde a da sabedoria; à da vontade, corresponde a da coragem; à do desejo,
corresponde a da temperança. Platão imaginava um Estado como o corpo humano.
Assim como o corpo possui cabeça, peito e baixo-ventre, o Estado possui governantes,
soldados e trabalhadores. Do mesmo modo como um indivíduo saudável e harmônico
mostra equilíbrio e moderação, um Estado justo se caracteriza pelo fato de cada um
conhecer o seu lugar no todo e, para que a cidade seja justa, precisa ser comanda pela
razão. Em relação ao mundo inteligível, ou das idéias e do mundo sensível, a teoria
platônica dita que o conhecimento das essências é possível através do conhecimento da
idéia ou da forma, única e imutável, uma vez que a pluralidade das coisas é própria do
mundo sensível. Enquanto o mundo das idéias transmite conhecimento (episteme), o
mundo sensível só nos possibilita obter opiniões (doxa). 46
Heloísa defende essa idéia quando argumenta contra o casamento proposto por
Abelardo:
Pensa na situação em que uma aliança legítima te meteria: qual a relação entre os trabalhos da escola e os cuidados de um lar, entre uma escrivaninha e um berço, um livro e uma roca de fiar, um estilete ou uma pena e um fuso? Quem, então, meditando a Escritura ou os problemas da filosofia, suportaria os vagidos de um recém-nascido, as canções da ama que o embala, a multidão barulhenta dos servos e servas, a sujeira habitual da infância? [...] mas a condição dos filósofos é diferente, e aquele que busca a fortuna ou aplica seus cuidados às coisas desse mundo não se entrega aos estudos
46 ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 525.
29
teológicos nem à filosofia. Eis porque os maiores filósofos da antiguidade desprezavam o mundo. Deixando, ou antes fugindo ao século, eles se proibiam toda espécie de volúpia e somente descansavam no seio da filosofia.47
Ao lado dessa perspectiva de vincular o casamento com perturbação da alma,
pois se constituía como um obstáculo à contemplação, ele também passa a ser
compreendido como um mal menor, cujo objetivo é disciplinar a sexualidade. Esta é
aceita apenas com um único fim: a procriação. Além disso, a prática do sexo era
controlada ideologicamente, pois àqueles que praticassem sexo em períodos destinados
à penitência, ou em épocas em que a mulher se encontrava “impura” ou grávida, entre
tantos outros momentos de exigência celibatária, que totalizavam mais de 250 dias48,
eram-lhes pressagiadas concepções monstruosas.
Além disso, o casamento era comumente uma associação de interesses e uma
instituição de proteção para as mulheres49, sendo a conduta delas a responsável pela
honra da casa.
Todavia, não se deve assimilar tal discurso como representativo da sociedade tal
como ela era realmente. Como lembra Duby, os testemunhos sobre casamento que
chegaram até nós são, em grande parte, de fontes eclesiásticas e para compreendê-los é
preciso “atravessar a opacidade da camada de moralismo que cobre por inteiro nossos
dados.” 50
É com base nesse discurso que se fará a análise do processo da transformação
da relação entre Heloísa e Abelardo, mas há que se ter em mente que este é apenas um
modelo de código de comportamento coletivo que, estabelecendo regras,
institucionalizou o casamento como um meio de refrear as pulsões da carne.
47 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p. 46. 48 ROSSIAUD, J. “Sexualidade”. In: LE GOFF, J.; SCHMITT, J.C. Dicionário temático do ocidente
medieval. EDUSC: São Paulo, 2002, p. 481. 49 BLOCH, M. A sociedade feudal. Edições 70: Lisboa, s/d. 50 DUBY, G. Idade Média, idade dos homens: do amor e outros ensaios. Companhia das Letras: São Paulo, 1989, p.13.
30
2.3 OS LIMITES DA VISÃO DO FEMININO
Outra formulação de imagem promovida pela igreja foi a ambigüidade da figura
feminina. Na Idade Média vamos encontrar referências que relacionam a mulher com
três figuras distintas. A primeira delas é a da pecadora que compartilha a desgraça
proporcionada pelas atitudes que levaram a corrupção do homem, é Eva. Há duas
passagens bíblicas que comentam a criação da mulher. A primeira delas profere que o
homem e a mulher foram criados espiritualmente iguais (Gn.1, 27). Outra passagem, a
mais difundida e utilizada, se refere à origem carnal de Eva, que teria sido criada a
partir de uma costela de Adão (Gn.2, 21-22), e por isso à mulher estaria reservado tudo
o que se referisse ao plano carnal, “enquanto o homem, por ter adquirido a vida por um
sopro divino, estaria mais próximo a Deus e a tudo o que é espiritual.” 51
A mulher, dessa forma, é a causadora dos males destinados ao homem. “O
pecado original, pecado de orgulho intelectual, de desafio intelectual a Deus, é
transformado pelo cristianismo medieval em pecado sexual. O desprezo pelo corpo e
pelo sexo toca assim o seu ponto máximo no corpo feminino”.52
De acordo com Rossiaud, “uma mulher é sempre conhecida carnalmente, mas
jamais reconhecida em seu íntimo por um homem cujo primeiro dever consiste em não
se levar pela mulher. A relação carnal é um ritual de poder que está no centro da
identidade masculina” 53. Porém a segunda e a terceira imagem são restauradoras dessa
imagem feminina. Uma diz respeito à mulher ideal, cujo pilar é a virgindade,
personificada na figura de Maria, ideal de santidade. A outra imagem é a de Maria
Madalena, pecadora convertida que demonstra que é possível abandonar uma vida
regida pelo pecado e seguir pelo caminho da salvação.
À mulher são atribuídos os maiores mistérios da relação entre a vida e a morte,
entre a capacidade de remissão e a causa da queda dos homens, pois ela encarna tanto
a figura de Eva, que significa desgraça, mas também de vida, implícito no anagrama
51 VENTORIM, E. Misoginia e santidade na baixa idade média: os três modelos femininos no Livro
das Maravilha (1289) de Ramon Llull. Revista Mirabilia, n.5. Disponível em: http://www.revistamirabilia.com/Numeros/Num5/misoginiaeliane.htm. Acesso em: 17 mar. 2009. 52 LE GOFF, J. O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval. Edições 70: Lisboa, 1983, p. 57. 53 ROSSIAUD, J. “Sexualidade”. In: LE GOFF, J.; SCHMITT, J.C. Dicionário temático do ocidente
medieval. EDUSC: São Paulo, 2002, p. 488.
31
Eva, o qual se lê Ave, de forma que invocar Eva é ao mesmo tempo invocar Maria,
como atesta Agostinho: “Pela mulher a morte, pela mulher a vida”. 54
Como exemplo desse mistério feminino tem-se a cantiga Entre Av’E Eva de
Afonso X, a qual expressa bem a faceta dúbia conferida à mulher:
Entre Av' e Eva
Esta é de loor de Santa Maria,
do departimento que á entre Ave e Eva.
Entre Av' e Eva
gran departiment' á.
Ca Eva nos tolleu
o Parays' e Deus,
Ave nos y meteu;
porend', amigos meus:
Entre Av' e Eva
gran departiment' á.
Eva nos foi deitar
do dem' en sa prijon,
e Ave en sacar;
e por esta razon:
Entre Av' e Eva
gran departiment' á.
Eva nos fez perder
amor de Deus e ben,
e pois Ave aver
no-lo fez; e poren:
Entre Av' e Eva
gran departiment' á.
Eva nos ensserrou
54 DELARUM, J. “Olhares de clérigos”.In: DUBY, G.; PERROT, M. (org). História das mulheres no
ocidete. Vol. 2: A Idade Média. Porto: Edições Afrontamento, 1990, p. 39.
32
os çeos sen chave,
e Maria britou
as portas per Ave.
Entre Av' e Eva
gran departiment' á.55
Podemos dizer que Heloísa encarna essas três imagens. A pecadora que, apesar
de ter se esquivando, acaba sucumbindo às armas da sedução e se entrega a Abelardo.
O demônio bem sabe, de longa experiência, que a mulher é sempre para o homem uma causa de queda imediata, e por isso, armando para ele a armadilha de Heloísa, conseguiu levar à perdição, através do casamento, esse Abelardo que ele não conseguira arruinar pela fornicação.56
É o demônio se fazendo tentação no corpo e na mente da bela Heloisa.
Entretanto, ela se reconcilia com o caminho reto quando se converte à vida religiosa
que, ao menos pelos olhos dos outros, era uma conversão sincera. A própria Heloísa
declama sobre si o papel de ser a perdição de Abelardo, assim como toda mulher é a
perdição de qualquer homem:
Infeliz, que nasci para ser a causa de um tal crime! As mulheres não poderão então jamais conduzir os homens senão à ruína! [...] Já a primeira mulher, no jardim do Éden, seduziu o primeiro homem: criada pelo Senhor para lhe trazer assistência, ela foi sua perda. 57
Entretanto, essa passagem de Heloísa julgando a si mesma sob o signo da
maldade deve ser relacionada ao crime ao qual Abelardo foi exposto. Segundo Gilson,
a crise moral de Heloísa estava muito mais relacionada à castração de Abelardo do que
à sua relação pecadora. Para Heloísa, era frustrante e decepcionante ver o seu amado
pagando por atos que ambos cometeram. Além disso, ela teria recusado, no princípio,
o casamento porque sabia que essa condição levaria à queda moral de Abelardo diante
55 Alfonso el sabio. Cantigas de Santa Maria. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br. Acessado em: 06 jun. 2009. 56 GILSON, E. Heloísa e Abelardo. Edusp: São Paulo, 2007, p. 95. 57 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p. 116.
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dos homens da igreja e diante de seus alunos. O que interessava à Heloísa era a
grandeza de Abelardo, por cuja queda ela poderia ser responsabilizada.
A mulher era, segundo a antropologia medieval, naturalmente, posicionada em
uma condição inferior ao do homem e, na maioria das situações, se encontrava em
“absoluta dependência, primeiro do pai e, depois, do marido” 58 e relegadas à
marginalidade, através do desprezo, juntamente com doentes, pobres, crianças e
velhos.59
Mas o fato é que “as mulheres são julgadas pelo seu sexo. A morte, o
sofrimento, o trabalho entraram no mundo através delas”.60 E pela sua natureza fraca
devem, naturalmente, estar submetidas ao poder e controle masculino.
As mulheres, vista sua fraqueza, comovem mais quando caem na indigência, e sua virtude é mais do que a nossa agradável a Deus e aos homens. Deus cumulou de tantas graças a abadessa Heloísa, minha irmã, que os bispos a amavam como sua filha, os abades como sua irmã, os leigos como uma mãe. Dentro em pouco, todos admiravam sua piedade, sua sabedoria, sua incomparável mansuetude e a paciência que ela mostrava em tudo61.
Nem mesmo Heloísa escapou ao discurso misógino. Mas através das virtudes,
ela se mostrou pronta para seguir no caminho da salvação. Ou talvez não buscasse a
salvação perante Deus, mas buscasse a remissão da culpa de ter causado a ruína moral
do filósofo Abelardo. Este pecado ela reconhece. Do pecado do amor não admite a
culpa. O problema moral de Heloísa é ter pecado contra Abelardo, não contra Deus.
58 SCHLESENER, A. P. Abelardo e Heloísa: considerações sobre a situação da mulher na Idade
Média. Anacleta, Guarapuava, v.4, n.1, p.67-76, jan/jun.2003. http://www.unicentro.br/editora/revistas/analecta/v4n1/artigo%206%20abelardo%20e%20heloisa.pdf. Acesso em: 17 mar. 2009. 59 LE GOFF, J. O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval. Lisboa: Edições 70, 1983. 60 DUBY, G. PERROT, M. (org). História das mulheres no ocidente v.2: A idade média. Edições Afrontamento: Porto, 1990. p.27. 61 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p. 77-78.
34
2.4 A DOUTRINA DO AMOR PURO X A MORAL DA INTENÇÃO
Ainda sobre seu peito enamorado me deixe
descansar,
Ainda beber o veneno delicioso do teu olho,
Ofegar em teus lábios, e ser pressionada em seu
coração;
Dê-me tudo que possa, e deixe-me sonhar o
resto.
Alexander Pope
Segundo a teoria sobre o pecado de Abelardo, de boas intenções o céu estaria
cheio, ao passo que o inferno estaria cheio de atos maldosos. Isto porque, Abelardo
diferencia vício de pecado. Para ele vício é uma inclinação em consentir o que não
convém, que não agrega a intenção de fazer algo degradante, imoral, vil. Por sua vez, o
pecado consiste em consentir o mal, ou seja, a ação pecadora pressupõe a consciência
da maldade, do ato imoral e mesmo assim o faz.
Segundo o filósofo e teólogo, uma ação é boa ou má dependendo da intenção que anima o ato. Ou seja, pecar é diferente de realizar o pecado, ter boa intenção é diferente de fazer uma boa ação, e assim por diante. Fazer algo de bom sem ter uma boa intenção não possui a qualidade de bom, assim como o contrário62
A moral da intenção de Abelardo é que irá nortear a sua concepção de pecado e
é o que define que, para Deus não é o ato que conta para determinar a salvação ou
danação, mas sim a intenção, pois muitas vezes se faz algo bom com a intenção de
conseguir o mal, ou se faz o mal, mas com a intenção de fazer o bem, ou simplesmente
não há a consciência de que a ação irá culminar num mal. Pecar é diferente de realizar
o pecado. Esse é o ponto de partida da autodefesa de Heloísa. Ela se defende dizendo-
se culpada da derrocada de Abelardo, mas se diz inocente porque sua intenção não era
esta. Muito pelo contrário. Quando fez a sua objeção contra o casamento era
exatamente para evitar tal situação que o fez.
62 RANGEL, P. A abadessa infiel e o cavaleiro apóstata. Revista Estudos Hum(e)anos, IUPERJ, vol.0, n.0, 2008, p. 16-17. Disponível em: www.estudoshumeanos.com/.../Art.%202,%20estudos,%200,%200,%202008.pdf. Acesso em: 18 abr. 2009.
35
Pequei gravemente, tu o sabes; entretanto, sou inocente. O crime está na intenção mais que no ato. A justiça pesa o sentimento, não o gesto. Mas quais foram minhas intenções com relação a ti, tu somente, que as experimentas, podes julgar. Submeto tudo a teu exame, abandono tudo ao teu testemunho. Dize-me somente, se o podes, por que, depois de nossa conversão monástica, que tu sozinho decidiste, me deixaste com tanta negligência cair no esquecimento; por que me recusaste a alegria de tuas entrevistas, o consolo de tuas cartas?63
Nessa passagem da primeira carta de Heloisa a Abelardo, ela reconhece o ato,
não a intenção. Depois de tanto tempo sem contato, sem notícias ela se acha no direito
de cobrar. Cobra a presença na ausência, isto é, que console a saudade através de
cartas. Aqui parece haver, além de um pedido da presença, um pedido de reparação,
afinal de contas, ela o seguiu no caminho de salvação que ele almejava, ela pede que
ele “não se esquive sob uma retórica clerical a seu único dever: saldar a dívida
amorosa que ele contraiu para com ela”.64 Mas ela pede somente algo que o próprio
Abelardo prometeu no início do relacionamento, que mesmo separados, através da
correspondência, permaneceriam presentes um ao outro.65
Nesse mesmo período, Abelardo nos apresenta suas intenções perante Heloísa:
Não duvidava do êxito: eu brilhava pela reputação, juventude e beleza, e não havia mulher junto a quem meu amor tivesse recusa. Heloísa, eu estava persuadido, oporia tanto menor resistência quanto possuía uma sólida instrução e desejaria ampliá-la ainda mais. [...] Todo inflamado de amor por essa jovem, procurei a ocasião de travar com ela relações bastante estreitas que me permitissem penetrar em sua familiaridade quotidiana, e levá-la mais facilmente a ceder [...]66
Essas duas confissões revelam como os sentimentos de Heloísa e Abelardo
tiveram evoluções distintas. Heloísa é apresentada pelo próprio Abelardo como uma
presa que não tinha com escapar do seu intento e das garras do seu desejo. Essa
conquista despertou em Heloísa um amor desinteressado, o qual buscava nada mais do
que a si mesmo, isto é, Heloísa nada esperava de Abelardo, visto ter consciência do
seu status, a qual até mesmo ela colocava em primeiro lugar. 63 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p.98. 64 Ibid, p. 24. 65 Ibid, p. 39-40. 66 Ibid, p. 39-40.
36
Por esse motivo é que Heloísa absolve a si mesma do pecado, uma vez que seu
amor por Abelardo era puro e desinteressado e não tinha objetivo de provocar-lhe
qualquer atribulação. Ela foi a discípula perfeita do princípio do filósofo.
Se seu amor é puro de qualquer interesse, por procurar em si mesmo a própria recompensa, é justificado por definição, e já que é apenas a intenção que determina o valor moral do ato, todo ato, mesmo repreensível em si, se for ditado por um sentimento de amor puro, será por isso mesmo considerado inocente.67
Heloísa, que nutria um amor puro por Abelardo, questiona o sentimento deste,
alegando que, perdendo a capacidade de gozar dos prazeres que ela podia lhe
proporcionar, o amor também deixou de existir, ou seja, “foi a concupiscência, mais
que uma feição verdadeira, que te ligou a mim, o gosto do prazer mais do que o amor.
A partir do dia que essas volúpias te foram arrebatadas, todas as ternuras que elas te
inspiraram se esvaneceram”. 68
Heloísa descarta a sua culpa porque se ligou a Abelardo por amor, ternura,
carinho, admiração, de modo involuntário, não podendo ser considerado um crime.
Todavia, Abelardo admite a culpa ao descrever o plano consciente de investir no jogo
de conquista da amada. Ele foi movido pelo desejo, pela concupiscência, pela lascívia.
A ele cabe a punição, pois, segundo sua teoria, ela peca, mas ele realiza o pecado. O
conflito moral que se abate entre os dois é de natureza diversa. Ela luta com o conflito
de sentimentos de culpa e inocência em relação à desgraça que se abateu sobre
Abelardo. Este aceita resignado a punição, pois, como já vimos, não precisou Heloísa
entrar em sua vida para ele praticar o pecado, ela só foi o meio pelo qual se deu o
desfecho dessa vida desregrada demais para o filósofo, pois “o fim de uma vida
permite julgar seu começo”.69
O momento crucial para Abelardo não foi a descoberta do seu caso amoroso
com Heloísa por Fulbert, mas a castração. O tio de Heloísa, não se sentiu compensado
o suficiente pela vergonha causada pelo casal. Afinal, “uma jovem do clã foi insultada.
67 GILSON, E. Heloísa e Abelardo. Edusp: São Paulo, 2007, p.91. 68 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p. 98. 69 Ibid, p.58.
37
O clã a vingará”. 70 A vergonha foi pública, mas a reparação foi às escondidas,
exigência de Abelardo que não queria prejudicar sua reputação como clérigo e
professor com a notícia do seu matrimônio com Heloísa. Achando-se no direito de
vingar a sobrinha e restaurar a honra familiar, o cônego comandou a amputação das
partes do corpo com as quais Abelardo cometera o delito de que se queixavam.71
A primeira sensação foi a dor, mas não tanto a dor física, mas a dor da
vergonha:
Sentia minha vergonha mais ainda do que a mutilação. A confusão me abatia mais ainda do que a dor. Algumas horas antes eu gozava de uma glória incontestável. Um instante havia sido suficiente para rebaixá-la, talvez para destruí-la! O julgamento de Deus me batia com justiça na parte do meu corpo que havia pecado.72
Abelardo compreende o fato como um castigo de Deus por ter se desviado do
caminho que deveria seguir. Ao invés de se dedicar à vida espiritual ele se rebaixou
aos prazeres mundanos e negligenciou sua profissão e sua vocação. “A mão divina me
havia atingido, eu bem o sabia, para que, liberto das seduções carnais e da vida
tumultuada do século, eu pudesse me entregar mais livremente ao estudo das letras.
Deixava de ser o filósofo do mundo para me tornar verdadeiramente o filósofo de
Deus”.73
Entretanto, o pecado não havia sido cometido sozinho. Heloísa devia seguir
com ele no caminho da remissão da falta. Ela ingressa primeiro na vida religiosa. Mas
ela reconhece que não se arrepende do seu passado.
Devo eu, com efeito, confessar-te toda a debilidade do meu miserável coração? Não consigo suscitar em mim um arrependimento capaz de aplacar a Deus. Não cesso, ao contrário, de acusar sua crueldade a teu respeito. Eu o ofendo com movimentos de revolta contra sua vontade, em vez de pedir, pela penitência, sua misericórdia. Pode-se dizer que se faz penitência, seja qual for a mortificação que se impõe ao corpo, quando a alma conserva o gosto do pecado e arde de antigos desejos?74
70 Ibid, p.14. 71 Ibid, p.50. 72 Ibid, p.51. 73 Ibid, p.53. 74 Ibid, p.118.
38
Heloísa não só não se arrepende de ter amado Abelardo como confessa que o
sentimento ainda é latente, situação que Abelardo tentará dissipar, lembrando-a de sua
condição de religiosa e da necessidade de amar aquele que a ama infinitamente e
sinceramente: Cristo e que Deus, através de um “único ferimento, infligido por justiça
a meu corpo, curou nossas duas almas”. 75
Entretanto, Heloísa não esquece. “A lembrança ‘dos prazeres muito doces’, cuja
‘pressão é tanto maior quanto mais frágil a natureza que ela assedia’, ‘os fantasmas
obscenos’ desses prazeres fazem-na ainda estremecer inclusive em meio às orações”.76
Abelardo fala de vergonha e de justiça. Heloísa fala de inocência e pecado. O
fato é que a separação dos dois foi, em grande parte, motivada pelas diferenças de
sentimento pertinentes à sua relação e como esta se vincularia com o conflito entre a
ética mundana e a moral religiosa e filosófica. Heloísa tomou as dores de Abelardo e,
apesar dele a ter socorrido quando ela necessitou, o amor que nutriam um pelo outro
era de natureza diferente. Abelardo transformou o amor carnal em espiritual. Heloísa
continuou amando, pelos dois.
75 Ibid, p.139. 76 DUBY, G. Heloísa, Isolda e outras damas no século XII. Companhia das Letras: São Paulo, 1995, p. 75.
39
CAPÍTULO 3
A LINGUAGEM DO AMOR
Meu coração me abandonou, ele vive contigo.
Sem ti, ele não pode mais estar em parte alguma.
Heloísa
Alguns estudos que nos são disponíveis sobre Heloísa e Abelardo tendem a
criticar o fato de que ela só é lembrada em função dele77, ou tenta-se esmiuçar as cartas
que relatam a experiência amorosa do casal a fim de ilustrar ou de encontrar brechas
para interpretar o avançado comportamento de Heloísa para a época em vivia. 78
O próprio Duby 79, no capítulo reservado a Heloísa, começa falando sobre ela,
mas logo em seguida volta-se para Abelardo, confirmando a teoria de que a história
dos dois é indissociável. Além do mais, é ineficaz estudar a história da mulher
dissociada da história do homem80. E aqui realmente não há como estudar as duas
personagens em separado, uma vez que a relação vivenciada pelos dois proporcionou a
mudança na trajetória de suas vidas.
Gilson81 parece nortear seus estudos nessa vertente, uma vez que inverte a
ordem tradicional da referência aos dois amantes. Ao invés do comum Abelardo e
Heloísa, ela é colocada na primeira posição, pois, segundo ele “há, por certo, o
‘Abelardo sem Heloísa’, filósofo e teólogo, mas o Abelardo que interessa aqui é
justamente que se dá a compreender por ela, que de discípula, se faz mestra de seu
mestre”. 82 O autor vai mais além do que simplesmente afirmar que a vida de Abelardo
77 RANGEL, P. A abadessa infiel e o cavaleiro apóstata. Revista Estudos Hum(e)anos. IUPERJ, vol.0, n.0, 2008. Disponível em: www.estudoshumeanos.com/.../Art.%202,%20estudos,%200,%200,%202008.pdf. Acesso em: 18 abr. 2009. 78 SCHLESENER, A. P. Abelardo e Heloísa: considerações sobre a situação da mulher na Idade
Média. Anacleta, Guarapuava, v.4, n.1, p.67-76, jan/jun.2003. Disponível em: http://www.unicentro.br/editora/revistas/analecta/v4n1/artigo%206%20abelardo%20e%20heloisa.pdf. Acesso em: 17 mar. 2009. 79 DUBY, G. Heloísa, Isolda e outras damas no século XII. Companhia das Letras: São Paulo, 1995. 80 DUBY, G. Idade Média, idade dos homens: do amor e outros ensaios. Companhia das Letras: São Paulo, 1989. 81 GILSON, E. Heloísa e Abelardo. Edusp: São Paulo, 2007. 82 Ibid, p. 11.
40
está também atrelada a de Heloísa, supõe que ela conduz com maior maestria o
desfecho de sua relação do que o antigo mestre.
Essa ambiguidade nas referências dos nomes também pode ser verificada na
relação dos dois, pois a forma como as correspondências a descreve revela alternância
e dicotomia de sentimentos que suscitam o interesse e o questionamento constante
sobre como foi governada essa relação, sugerindo elementos através dos quais
podemos abordar essa experiência. Essa ambiguidade é transmitida através da
linguagem que nos é apresentada; linguagem esta que não se extingue em si mesma,
mas alimenta outras formas de expressar o mesmo sentimento.
Por outro lado, as correspondências são coerentes porque manifestam a forma
de expressão própria ao ambiente filosófico desse período do medievo que valoriza a
lógica e, consequentemente a linguagem como forma de persuasão. Isto significa que,
como afirma Zumthor, “embora aparentemente heterogêneo [e ambíguo], o conjunto
possui uma indiscutível coerência interna, cuja definição (difícil de fornecer)
determina, até certo ponto, o significado que se atribui às partes”. 83 Esse significado
se dá por meio da
narrativa que Abelardo e Heloísa fazem alternadamente, bem como o comentário que eles integram à própria narração, aparecem determinados de dois modos de pensamento veiculados por duas retóricas (contemporâneas, mas distintas, no século XII; em conflito aberto no XIII): essas que, simplificando se qualificariam de “escolástica”de um lado, de “cortês do outro”. 84
A alternância dessas linguagens permite verificar a tensão existente entre os
conceitos de amor, religião e casamento, pilares mesclados e que norteiam as ações de
Heloísa e Abelardo.
83 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p. 3. 84 Ibid, p.6.
41
3.1 A LINGUAGEM RACIONAL
Heloísa e Abelardo aparecem para nós como personagens sem rosto, sem corpo
e tudo o que temos sobre eles nos foi legado através de papéis e palavras. É, portanto,
através das letras que podemos nos aproximar de suas idéias e a partir delas tentar nos
aproximar da sua experiência de vida. E como as letras são a fonte do conhecimento
que temos sobre esses personagens, é pertinente analisar a forma como as palavras se
articularam para que os dois definissem sua relação e as consequências dela.
O ambiente intelectual e literário no período em que viveram Heloísa e
Abelardo era controlado pela esfera religiosa, cujo aparato ideológico e educativo era
transmitido através das corporações educacionais. Em meio à escola medieval,
desenvolveu-se a denominada escolástica. Muito mais do que uma forma de expressão
eclesiástica, o método escolástico possibilitava a formalização do pensamento através
da dialética. E é justamente a dialética uma das estruturas das correspondências, e a
qual permite visualizar a tensão existente entre as diferentes formas de sensibilidade e
experiência do sentimento amoroso entre o casal.
Mas essa tensão não necessariamente deve ser encarada num sentido negativo.
Justamente como pressupõe o método dialético, os opostos existem a fim de
complementar e permitir ao homem a possibilidade de mudança. A variação que aqui
se verifica é proposta pela diferença de pensamento e experiência de Heloísa e
Abelardo, que variam desde o descontrole passional até a serenidade da vida ascética.
A paixão é, num primeiro momento, o motor da linguagem dos amantes e é
justamente através do conteúdo passional que o filósofo tenta persuadir Heloísa a se
resignar à necessidade de remissão do pecado cometido por ambos. “Abelardo recorre
contra Heloísa toda sua habilidade dialética. Ele procede em dois tempos. Primeiro
tempo: seu amor, em sua forma antiga, chocou-se contra o pecado. É preciso
constranger a jovem a segui-lo, em sua liberdade espiritual de castrado”.85
Abelardo, como intelectual que era não poderia deixar de se impor como um
homem de autoridade, que submete todos os aspectos da vida à luz da razão. Dessa
maneira, tratou e viveu a experiência amorosa com Heloísa em momentos distintos,
85 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p.20.
42
mas especificamente três momentos, três estágios. Dialeticamente falando, através de
sua historia calamitatum, analisou os fatos para chegar à síntese, à resposta, à
conclusão e à ação que deveria pautar a sua vida daí em diante.
O primeiro fato, ou a primeira tese, foi a vivência da paixão que dominou a vida
de ambos. O segundo fato, ou a segunda tese, foi desencadeado pela castração de
Abelardo, considerada por ele como a punição pela sua vida pecadora. Ou seja, aqui
temos a dualidade dialética: o amor de um lado, o pecado de outro. Qual a síntese
dessas premissas? Abelardo a encontra não na razão (ou falta dela) do homem
apaixonado; não na sabedoria do filósofo; a encontra na moral do religioso, que dita a
conversão, o arrependimento, a renúncia como conclusão desse ato. Abelardo impõe a
ascese.
Heloísa prostra-se perplexa. Ela não se desvencilha do seu amor e dos
elementos corteses, constituintes do seu universo mental, presentes no desenrolar do
discurso das suas cartas. Ela insiste ainda em manter os vínculos com Abelardo porque
ela não enxerga o pecado que ele insiste em propagar. E ela articula a defesa da sua
fidelidade ao amor e recusa do pecado a partir do conceito do próprio Abelardo de que
o pecado consiste na intenção de cometê-lo, condição que Heloisa não manifesta, uma
vez que se entregou a Abelardo de corpo e alma por amor e não com o intuito de afetar
sua honra e sua glória. Aqui, portanto, delineia-se outro aspecto dialético da história
dos amantes: as duas formas de amar que são expostas de forma visceral e através da
recordação desse amor que Heloísa tenta Abelardo.
Ela lembra a ele as horas mais ardentes, os lugares. Ela também quer persuadir, mas os argumentos não são ditados a Heloísa pela preocupação dialética. Insidiosamente, ela evoca um passado, inclina-se sobre a própria memória de Abelardo, tentando despertar lembranças mais fortes que o presente pensamento de Deus. Sem dúvida, ela não se engana senão pela metade. Heloísa joga ao mesmo tempo com esse erotismo semivergonhoso e com a ternura. 86
Nessa passagem, Zumthor afirma que a argumentação de Heloísa não é ditada
pela preocupação dialética. Mas ela joga e o que é a argumentação dialética senão um
jogo? Jogo este que Heloísa governa com maestria, talvez ainda melhor que seu mestre
86 Ibid, p.23.
43
porque rebate as colocações de Abelardo com os argumentos que ele mesmo teoriza. É
a criatura contra o criador.
Entretanto, Duby questiona a atribuição a Heloísa dessa forma narrativa, uma
vez que ela se apresenta através de uma estrutura extremamente coesa, apontando para
uma construção literária, através de uma coletânea epistolar que se lê como um
romance, cujo protagonista é um homem. Ele ainda observa que tal compilação é obra
de uma demonstração erudita, cuja imagem é reforçada quando Heloísa representa o
seu papel de pecadora obstinada87.
Esses argumentos, todavia, não são suficientes para negar ou afirmar a
legitimidade da autoria de Heloísa, primeiro pelo fato de que ela não se assume como
pecadora. Ela refuta essa idéia com a teoria da moral da intenção de Abelardo. Ela
reconhece o pecado em relação à falsidade de sua vida religiosa, não pelo amor e
desejo por Abelardo, porque os considera puros, sem intenção de gerar o mal.
Em relação à linguagem das cartas atribuídas a Heloísa, é preciso lembrar que
ela foi aluna de Abelardo e, antes, já contava com uma bagagem intelectual
independente do gênio de seu mestre, de forma que, segundo Gilson “duvidar que
Heloísa utilizaria esses métodos seria duvidar que ela pudesse ser Heloísa. Seus
métodos não eram coerentes, mas ela não era comum; com certeza era mulher para
utilizar tais métodos”. 88 Não podemos esquecer que a obra faz referência a dois
filósofos, como atesta o próprio Duby, de modo que
as leis da eloquência epistolar impunham, nesse tempo barroco, uma expressão impetuosa. [...] Temos aqui dois “filósofos” célebres, muito célebres, que se uniram carnalmente, no amor dos corpos. Copulação, diz Pierre; fornicação, diz Roscelin. Em todo caso eles formaram um casal, e esse casal durou. Tendo ambos ingressado na vida monástica, marcharam ao mesmo passo rumo à salvação, a mulher no entanto submetida ao homem, servindo a Deus “sob ele”. O homem, como convém, é sempre o ator. De uma ponta à outra da aventura, é ele que age. 89
87 DUBY, G. Heloísa, Isolda e outras damas no século XII. Companhia das Letras: São Paulo, 1995, p. 68. 88 GILSON, E. Heloísa e Abelardo. Edusp: São Paulo, 2007.p.62. 89 DUBY, G. Heloísa, Isolda e outras damas no século XII. Companhia das Letras: São Paulo, 1995, p. 61.
44
Duby não se detém à linguagem, diz que o mais importante é analisar o
conteúdo. Mas para o filósofo e sua sábia aprendiz, herdeiros da lógica aristotélica, um
dos pilares do estudo do trivium, a linguagem importa muito, pois é ela a mestra do
convencimento. É a retórica da escrita, como bem atesta o autor quando escreve sobre
a expressão impetuosa. A persuasão se faz com o envolvimento do espectador e,
através das palavras redigidas como seria o envolvimento senão com ímpeto, ousadia e
paixão? E essas características são muito bem articuladas nas cartas de Heloísa, pois
ela quer convencer Abelardo a restituir o seu amor, o que contraria a proposição de
Duby quando confere a Abelardo o papel principal da história. Heloísa assume o papel
principal não porque seu amor é puro e, a partir disso se questiona sobre a veracidade
do amor de Abelardo, mas porque se sobressai, pois transforma os ensinamentos do
filósofo em sua arma contra ele mesmo, contra os seus argumentos favoráveis à
conversão, contra a sua noção de pecado. Heloísa toma as rédeas do jogo através da
linguagem, herança de um dos filósofos mais importantes do século XII, do seu
mestre, do seu amante, do seu marido. Ela aprendeu muito bem a lição.
As cartas, portanto, se constituem num jogo no qual existem duas formas de
amar, e não se constituem como um diálogo. Antes, elas formam
um monólogo alternado cujo objeto deixou de ser o mesmo. Heloísa fala no passado; Abelardo, no presente e no futuro. O amor, para ela, está atrás; para ele, à frente, já dado a quem souber dizer sim, e reconhecer sua transcendência. Mas, na verdade Heloísa não pode admitir que o obstáculo tenha sido, outrora, o pecado, e nem que hoje não haja mais obstáculo. Onde procurar consolo? Heloísa resvala nas facilidades da tristeza, dessa acedia, esse “mal do século” dos monastérios medievais. Longe de se submeter, ela acusa. Ela deixa Abelardo pregar no deserto. Por que sofrer tanto? Ela retorna, último recurso, aos preconceitos de sua juventude cortesã, como à sabedoria das nações. A sorte os puniu por ter entrado nos laços do casamento. Que Abelardo, portanto, não se esquive sob uma retórica clerical a seu único dever: saldar a dívida amorosa que ele contraiu para com ela. Certamente, não é mais uma questão de prazer, mas de vida, e de palavras, e de ternura, e de não mais tolerar essa separação absurda. 90
Essa passagem ilustra o significado da alternância desse monólogo que é
articulado no jogo das palavras e também na alternância dos tempos. Existe uma
diferença de tempo não somente na referência à relação, mas no tempo de Abelardo e
90GILSON, E. Heloísa e Abelardo. Edusp: São Paulo, 2007.p, p. 24.
45
Heloísa. Aquele define seu tempo como o tempo do pecado e da resignação ante a
punição. Esta define seu tempo como sendo o da ternura, do amor incondicional, mas
também da cólera e da cobrança. Cólera perante o silêncio de Abelardo, ao qual ela
responde com o mesmo gesto, quando se cala perante as críticas dele por sua
insistência em recordar o passado. “Ele fará o esforço de se calar. Sob o selo de seu
silêncio encerra o seu amor, sua amargura e os tumultos de seu desejo.” 91 Após
Heloísa cobrar a presença de Abelardo, ao menos em cartas, após cobrar a recordação
do amor que viveram, Abelardo a repreende, mas ela se cala, encerra a discussão, mais
uma vez jogando com as cartas do seu mestre, porém não escreve qualquer palavra que
possa ser compreendida como a renúncia desse amor.
A diferença no discurso também é verificada na forma como dirigem a palavra
um ao outro. Heloísa se dirige ao amante. Ele à religiosa. Os epítetos que Heloísa
oferece a Abelardo o colocam como o seu bem-amado, o seu único amor, como esboça
essa passagem de sua primeira carta:
Meu bem-amado, o acaso fez-me passar entre as mãos a carta de consolo que escreveste a um amigo. Reconheci imediatamente, pela assinatura, que ela provinha de ti. Lancei-me sobre ela e devorei-a com todo o ardor de minha ternura: já que havia perdido a presença corporal daquele que a havia escrito, ao menos as palavras reanimariam um pouco para mim a sua imagem. Lembro-me: essa carta, quase a cada linha, encheu-me de fel e de absinto, rememorando-me a história lamentável de nossa conversão e das cruzes pelas quais tu, meu único amor, ainda não deixaste de ser atormentado. 92
Ao término dessa carta, ela reforma a intenção de reacender o amor de
Abelardo quando se despede dizendo: “adeus, meu único”. 93 Como resposta a essa
escrita passional, Abelardo, reconhece que nunca escreveu para amenizar a dor de
Heloísa porque, segundo ele, isso não seria necessário graças à sua sabedoria que a
ajudaria conduzir sua nova vida. Ele dirige-se à abadessa, sua “irmã, querida outrora
91 DUBY, G. Heloísa, Isolda e outras damas no século XII. Companhia das Letras: São Paulo, 1995, p.67. 92 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p. 89. 93 Ibid, p. 100.
46
no século, muito querida hoje em Cristo” 94 e que deve viver lembrando-se dele no
Cristo. 95
Heloísa persiste em confessar a contradição que vive entre a necessidade de
amar a Deus e a naturalidade de amar Abelardo. Ele chama suas súplicas de perpétuos
murmúrios96. Ele ainda “mostra-se arrogante, senhor da sua vontade e das suas
emoções” 97, mas mesmo que de maneira formal, obrigando Heloísa a manter uma
postura digna de uma religiosa, Abelardo se manifesta e atende aos pedidos de
Heloísa, ele cumpre com a promessa de estar sempre presente, ao menos em cartas.
Heloísa cala-se e talvez o seu silêncio seja mais significativo que seus excessos de
linguagem, como o próprio Abelardo definiu.
Heloísa manteve, portanto, a gratuidade do seu amor, todavia, como Pedro, o
venerável atestou, Abelardo era dela, Deus o conservou para devolvê-lo a ela. 98
Relata-se que, pouco tempo antes de sua morte, Heloísa tomara as disposições necessárias para ser enterrada com Abelardo. Quando se abriu o túmulo para ali a sepultar junto dele, ele estendeu os braços para acolhê-la, e cingiu-os estreitamente sobre ela. Assim contada, a história é bela, mas lenda por lenda, acreditaríamos mais facilmente que, ao se unir ao amigo no túmulo, Heloísa tenha aberto os braços para abraçá-lo. 99
Abelardo tanto se gabava de sua autoridade e fama como mestre, qualidades
que garantiam tudo o que desejava, porém, não conseguiu converter Heloísa ao amor
divino.
3.2 A LINGUAGEM CORTÊS
Possuías dois talentos, entre todos, capazes de seduzir imediatamente o coração de uma mulher; o de fazer versos e o de cantar. Sabemos que eles são bem raros entre os filósofos. Eles te permitiam repousar, como se estivesses brincando, dos exercícios filosóficos. A eles deves o ter composto, sobre melodias e ritmos amorosos, tantas canções cuja beleza poética e
94 Ibid, p. 102. 95 Ibid, p.110. 96 Ibid, p. 125. 97 BROOKE, C. O renascimento do século XII. Editorial Verbo: Lisboa, 1972, p. 45. 98 DUBY, G. Heloísa, Isolda e outras damas no século XII. Companhia das Letras: São Paulo, 1995, p. 57. 99 GILSON, E. Heloísa e Abelardo. Edusp: São Paulo, 2007, p. 151.
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musical conheceu sucesso público e espalhou universalmente teu nome. Mesmo os ignorantes, incapazes de compreender o texto, as retinham, retinham teu nome, graças à doçura de sua melodia. Tal era a principal razão do ardor amoroso que as mulheres nutriam por ti. E, como a maior parte dessas canções celebrava nossos amores, logo meu nome se espalhou em muitos lugares, excitando contra mim as invejas femininas. 100
Heloísa, nessa passagem chama a atenção para uma característica de Abelardo:
a de poeta do amor. Tais poesias fazem parte da produção lírica de poemas de amor,
originalmente nas línguas d’oc, do sul da França, denominados de amor cortês,
expressão utilizada pela primeira vez por Gaston Paris, em 1883, para definir o amor
entre Lancelot e Guinevere na O cavaleiro da charrete de Chrétien de Troyes. 101
O sentimento transmitido pela literatura, sob o codinome de fin’amors se refere
a um amor puro, perfeito, delicado, cujo desenrolar envolvia o frenesi provocado pelo
erotismo e pelo controle do desejo, uma vez que cantava o amor ora inacessível, que
não espera recompensa, apenas se submete totalmente à amada, com o compromisso
de honrá-la e servi-la com fidelidade e discrição, ora carnal e adúltero. O fin’amors era
o modo próprio de amar, ou de se comportar perante o ser amado, da cortesia, “ideal
do comportamento aristocrático, uma arte de viver que implica polidez, refinamento de
costumes, elegância. 102
O percurso do amor cortês assemelha-se a uma justa que promove um ideal do
sentimento articulado através de uma retórica amorosa, rica em metáforas103 que
norteiam o jogo do controle do desejo.
Nesse jogo, a mulher é um chamariz. Ela preenche duas funções: por uma lado, oferecida até um certo ponto por aquele que a mantém em seu poder e que conduz o jogo, ela constitui o prêmio de uma competição, de um concurso permanente entre os jovens da corte, atiçando entre eles a emulação, canalizando sua força agressiva, disciplinando-os, domesticando-os. Por outro lado a mulher tem a missão de educar esses jovens. O “amor delicado” civiliza, ele constitui uma das engrenagens essenciais do sistema pedagógico do qual a corte principesca é o centro. É um exercício necessário da juventude, uma escola. Nessa escola, a mulher ocupa o lugar de mestre. Ela ensina melhor porque estimula o desejo. Convém portanto que ela se recuse e sobretudo que seja inacessível. Convém que ela seja uma esposa e,
100 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p. 97. 101 RÉGNIER-BOHLER, D. “Amor cortesão”. In: LE GOFF, J.; SCHITT, J.C. Dicionário temático do
ocidente medieval. EDUSC: São Paulo, 2002, p. 47. 102 Ibid, p. 48. 103 Ibid, 47.
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melhor ainda, a esposa do senhor da fortaleza, a sua dama. Por isso mesmo, ela está em posição de domínio, esperando ser servida, dispensando parcimoniosamente seus favores, numa posição homóloga àquela em que está instalado o senhor, seu marido, no centro da rede dos verdadeiros poderes. De maneira que, na ambivalência dos papéis atribuídos às duas pessoas do par conjugal, este amor, o amor dos textos, o verdadeiro, o desejo contido, aparece de fato como escola de amizade, dessa amizade da qual se pensa, nessa mesma época, que ela deveria estreitar o laço vassálico e consolidar assim as bases políticas da organização social. 104
Heloísa não era casada, não era a dama do senhor, mas era sobrinha do cônego
Fulbert, jovem, culta, inacessível ao comum dos mortais. Mas Abelardo também não
era comum. Era simplesmente um dos mais aclamados professores de Paris, como sua
elevada auto-estima sempre se orgulhou de testemunhar. E justamente o seu grandioso
amor-próprio o convenceu a conquistar Heloísa, a qual não resistiria como outras não
resistiram.105
Com a credibilidade de preceptor, Abelardo ganha seu passe ao esconderijo do
cordeiro que, estúpido, se apaixona pelo lobo. Heloísa tentaria resistir em vão.
Abelardo “se apoderou de Heloísa. [...] Numa vasta família, a de um nobre cônego,
vivia uma adolescente, a sobrinha do patrão, disponível. Portanto, boa de se tomar”. 106
Nessa passagem pode-se estabelecer uma comparação com uma das
características do amor cortês: a dama inacessível, cuja conquista conduz a mente do
amante, como a de Abelardo que também se revela como poeta que extravasa o seu
amor. O amor, portanto, transforma-se em loucura, “na verdade uma bela loucura.
Cativo do desejo, o poeta morre de amor, mas, como a fênix, renasce das cinzas. O
tormento causado pelo amor é simultaneamente prazer e morte. Ao olhar a dama é
atribuído poder de vida e morte”. 107
E qual era a sensação senão vida e morte quando Abelardo estava na presença
de Heloísa, pois, a sua paixão dividia o mesmo teto que o tio da jovem, o qual logo
que descobre não leva Abelardo à morte física, mas o priva da honra social.
104 DUBY, G. Idade Média, idade dos homens: do amor e outros ensaios. Companhia das Letras: São Paulo, 1989, p 38. 105 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p. 39. 106 DUBY, G. Heloísa, Isolda e outras damas no século XII. Companhia das Letras: São Paulo, 1995, p.61-62. 107 RÉGNIER-BOHLER, D. “Amor cortesão”. In: LE GOFF, J.; SCHITT, J.C. Dicionário temático do
ocidente medieval. EDUSC: São Paulo, 2002, p. 50.
49
A relação de Heloísa e Abelardo, evidentemente, não segue as regras
idealizadas pelo amor cortês, visto este ser uma representação literária de um estilo de
vida que não necessariamente se aplica à realidade. Enquanto Heloísa e Abelardo se
entregam ao amor carnal, o amor cortês é a ciência do erotismo, que se articula através
de uma erótica do controle do desejo, na qual é preciso aceitar a provação da castidade
antes da atingir a alegria final.108
Outra característica é a discrição. A história de Abelardo e Heloísa pode sugerir
diversos adjetivos, mas não o de ser discreta. Abelardo mesmo considera o fato
quando, ao escrever sobre suas calamidades, sugere que o amigo a quem se destina a
carta já tenha conhecimento sobre o assunto. Da mesma forma, Roscelin, critica a
atitude do ex-discípulo que, animado por um espírito de luxúria, se infiltra na casa de
uma donzela muito ajuizada com o intuito de ensiná-la a racionar e, no final das
contas, ensina a fazer amor.109
O modelo do amor cortês é anulado por Abelardo quando ele propõe o
casamento, para acalmar os ânimos de Fulbert, diante da gravidez de Heloísa. Mas ela
se manifesta contrária, devido à posição de Abelardo como clérigo e professor, além
do fato de o casamento se constituir como um contrato de posse, e ela estava disposta a
dar seu amor a Abelardo gratuitamente, sem esperar nada em troca. Ao contrário, no
casamento essa cumplicidade amorosa iria se perder, como ela mesma supõe, tal como
lembra Abelardo: “‘Então não nos resta senão uma coisa a fazer para nos perder a
ambos e para que a um tão grande amor suceda uma dor igualmente grande’. O mundo
inteiro o reconheceu em seguida, o espírito de profecia a tocou naquele dia.” 110
A recorrência a argumentos de autoridade contrários ao casamento do filósofo
por parte de Heloísa não dissuadiram Abelardo da idéia. Heloísa ainda insiste, apela e
Abelardo tem consciência do esforço da amante em evitar o enlace que só prejudicaria
Abelardo. Como ele afirma, Heloísa “preferia o título de amante ao de esposa, e o
considerava mais honroso para mim: ela estaria ligada a mim apenas pela ternura, não
108 Ibid, p. 49. 109 DUBY, G. Heloísa, Isolda e outras damas no século XII. Companhia das Letras: São Paulo, 1995, p.60. 110 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p. 49.
50
pela força do laço nupcial. Nossas separações temporárias tornariam os raros instantes
de reunião tanto mais doces”.111
E a distância entre os amantes que torna mais doce a união, segundo o modelo
do amor cortês, pois o “amor é uma paixão natural que nasce da visão da beleza do
outro sexo e da lembrança obsedante dessa beleza”.112 Essa característica é Heloisa
quem defende com toda a sua força de retórica, pois defende o amor como uma
virtude, como um valor em si, por isso ela preferia o
amor ao casamento e a liberdade à ligação [...] [e] teria considerado mais doce e nobre conservar o nome de cortesã junto a [Abelardo] que tomar o de imperatriz junto a [Augusto]! A verdadeira grandeza humana não provém nem da riqueza nem da glória: aquela é o efeito do acaso; esta, da virtude. 113
Entretanto, a virtude, assim como a paixão inata, não nasce de uma ação
intencional, mas apenas da reflexão do espírito sobre aquilo que vê. Quando surge uma
mulher digna de ser amada, começa a desejá-la e pensar nela até que todo o
pensamento seja invadido por esse amor. 114
A virtude que garante a dignidade de ser amado se exprime em algumas
exigências do processo pelos quais se obtém o amor, segundo Capelão, membro do
clero e contemporâneo aos dois amantes. Seu tratado de amor teria sido escrito por
volta de 1186 para um amigo, Gautier, que nunca foi identificado, podendo ser fictício.
Sua escrita se desenvolve através da retórica através da qual expressa o modelo de
amor do meio aristocrático.
Nesse contexto, ele enumera cinco trunfos para que as pessoas exercitem a fim
de se fazerem seres dignos de serem amados. São eles: possuir um belo físico, possuir
uma excelência moral, ter facilidade de elocução, possuir riqueza e a prontidão para
ceder aos desejos do amante.115 Heloísa e Abelardo preenchem, portanto, os requisitos
que os possibilitam se inserir na arte do amor. Heloísa apresenta tais requisitos e
111 Ibid. 112 CAPELÃO, A. Tratado do amor cortês. Martins Fontes: São Paulo, 2000, p. 5. 113 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p. 95-96. 114 CAPELÃO, A. Tratado do amor cortês. Martins Fontes: São Paulo, 2000, p.8. 115 Ibid, p. 21.
51
Abelardo não pensa muito em devotar seu amor a jovem, bela e educada. Mas ele não
é desmerecido, como ela mesma reconhece ao rememorar a aventura amorosa:
Meu amor por ti era assim tanto mais verdadeiro quanto melhor preservado de um erro de julgamento. Que rei, que filósofo poderia igualar tua glória? Que país, que cidade, que vilarejo não aspirava a te ver? Quem então, eu o pergunto, quando aparecias em público, não acudia para te ver e, quando te afastavas, não te seguia com o olhar, com o pescoço estendido? Que mulher casada, que moça não te desejava em tua ausência, não ardia quando estavas presente? Que rainha, que grande dama não invejou minhas alegrias e meu leito? 116
Nessa passagem Heloísa apela, mais uma vez para o orgulho de Abelardo. Além
dos encantos do corpo, que atraem o amor através da visão, Heloísa chama a atenção
também para os encantos do espírito que embelezam ainda mais Abelardo, tornando-o
mais atrativo ao amor, além de lhe garantir fama e grande auto-estima.
Contudo, Capelão salienta que esses valores se articulam como estágios, de
forma que, quanto mais os amantes retardam a efetivação do amor, quanto mais os
desejos são dominados, mais a excelência do amor é coroada. 117
Heloísa e Abelardo evoluíram para o último estágio rapidamente, acordando
com o fato de que a literatura não exprime fielmente a realidade. A literatura cortês
não aparece como uma nova forma de amar, mas como um novo discurso sobre o
amor, que se contrapõe ao discurso da igreja, e, justamente pelos fantasmas dela e das
convenções sociais, que o fin’amors é mantido em segredo118, revelando que os
discursos literários contam menos com a característica de reprodução fiel dos hábitos e
costumes de uma sociedade do que com a sua idealização.
O amor cortês dita a contenção dos desejos, os quais devem ser retardados
como uma forma de manter o estímulo e a pureza do sentimento amoroso. Entretanto,
não se pronuncia através dos moldes do amor platônico. O amor cortês não nega o
desejo, o amor corporal. Por outro lado, o discurso da igreja condena os prazeres da
carne e institui o casamento como meio de controle e domesticação dos costumes.
116 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p. 96-97. 117 CAPELÃO, A. Tratado do amor cortês. Martins Fontes: São Paulo, 2000, p. 21. 118 FLORI, J. A cavalaria. A origem dos nobres guerreiros da idade média. Madras: São Paulo, 2005, p. 146.
52
Com o conhecimento da história de Abelardo e Heloísa fica evidente o
distanciamento entre a prescrição da igreja e a prática, mas também não se restringem
ao modelo cortês de amor. Evidente que podemos encontrar referências nas
correspondências, como na seguinte argumentação de Heloísa contra o casamento,
retomada por Abelardo: “Nossas separações temporárias tornariam os raros instantes
de reunião tanto mais doces”. 119
Heloísa tinha os seus motivos para recusar o casamento e ela os expõe com toda
sua incisiva retórica, mas, como é muito provável, era conhecedora do da metáfora do
fin’amors, cujo “serviço à dama revela-se, na prática, muito menos espiritual e
desinteressado do que possa parecer e a descodificação das componentes poéticas e do
sistema ideológico subjacente demonstrou quão intenso e mesmo violento era o seu
erotismo”. 120 Heloísa desejava viver o amor e a paixão livres das amarras do
casamento e das preocupações cotidianas a ele relacionadas. E será justamente em
torno da instituição do casamento que se identifica a tensão entre Abelardo e sua
consciência e entre Abelardo e Heloísa. A primeira ocorre porque Abelardo vivencia
uma crise moral, pois de uma vida ascética passa a experienciar as vicissitudes do
corpo e considera a sua castração um castigo justo à sua concupiscência.
Buscando, assim, a redenção e acreditando na vida espiritual como mais
elevada que a vida no mundo secular estabeleceu o destino dele e de Heloísa que
aceitou entrar para a vida religiosa por amor a Abelardo e, não por devoção à religião.
E assim ela o confessa em carta: “provei-te assim que reinas como único senhor tanto
sobre minha alma como sobre meu corpo”. 121
O casamento, para Heloísa, estava desacreditado filosoficamente, uma vez que
através dele não se poderia atingir o amor verdadeiro e desinteressado. “Este último
aspecto liga-se à influência do De Amicitia de Cícero e parece ser partilhado quer pela
literatura goliárdica quer pela literatura cortês (‘não usurpemos a palavra amor para
definir o afeto conjugal que une as pessoas no matrimônio’).” 122
119 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p. 49. 120 CARDINI, F. “O guerreiro e o cavaleiro”. In:LE GOFF, J. O homem medieval. Editorial Presença: Lisboa, 1989, p. 66. 121 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p. 95. 122 BROCCHIERI, M. F. B. “O intelectual”. In: In:LE GOFF, J. O homem medieval. Editorial Presença: Lisboa, 1989, p.140.
53
3.3 A LINGUAGEM DA SALVAÇÃO
Recebemos ao mesmo tempo o hábito religioso: eu na abadia de Saint-Denys, e ela no monastério de Argenteuil. Movidos de compaixão, a maior parte de seus superiores quis isentá-la das observâncias mais rigorosas da regra, que deviam ser, para sua pouca idade, um fardo intolerável. Ela respondeu citando, com uma voz entrecortada pelos soluços, as lamentações de Cornélia: Ó grande esposo, Nobre demais para o meu leito! Meu destino Tinha direitos sobre uma cabeça tão elevada? Por que te esposei, ímpia, Se faço tua desgraça? Recebe agora a expiação À qual me submeto de bom grado. Pronunciando essas palavras, ela avançou para o altar. Recebeu ali do bispo o véu abençoado e recitou publicamente o juramento da profissão monástica. 123
Nessa passagem da historia calamitatum, em que são citados os versos de
Cornélia na Pharsale, de Lucano, Abelardo revela a forma como se deu a entrada de
Heloísa à vida religiosa. Ela, através dos versos recitados revela que se dirige à
expiação dos seus erros de bom grado, pois assim seria punida por ter causado a
desgraça daquele que amava.
A desgraça de Abelardo ocorre quando ele é vítima da vingança do tio de
Heloísa, pois ela é enviada ao convento logo após o seu casamento com Abelardo. Este
conjectura sobre o motivo pelo qual Fulbert teria agido dessa forma:
Alguns dias mais tarde, depois do ofício da noite numa igreja solitária, recebemos à aurora, na presença do tio de Heloísa e de alguns amigos dela e meus, a benção nupcial. Depois nos retiramos discretamente cada um para seu lado, e a partir de então não tivemos senão entrevistas raras e furtivas, a fim de dissimular o mais possível nossa união. No entanto Fulbert e as pessoas de sua casa procuravam sempre uma oportunidade de se vingar de mim. Puseram-se a divulgar nosso casamento, violando assim o juramento que me haviam feito. Heloísa protestava violentamente o contrário, que nada era mais falso. Fulbert, exasperado, a maltratou várias vezes. Tendo sabido disso, enviei minha mulher para uma abadia de religiosas reclusas, em Argenteuil, perto de Paris. [...] Quando a notícia chegou a seu tio e à sua família, eles pensaram que eu lhes havia pregado uma peça e que fizera Heloísa entrar no convento apenas para me desembaraçar dela. 124
123 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p.52. 124 Ibid, p. 49-50.
54
Abelardo impõe o casamento em sigilo. Heloísa protesta, mas cede. Fulbert
aceita, mas não de dá por satisfeito, pois foi enganado de várias formas por Abelardo
que, guiado pela soberba, segue seu caminho com a sensação de missão cumprida.
Porém, suas ações nada têm de acaso. Todas foram aparentemente planejadas,
intencionadas, como ele mesmo atesta quando escreve como se envolveu no jogo de
conquista que culminou em um desfecho trágico. Ele sabia o que queria. Queria
consumir o seu objeto de desejo, ou seja, desejava Heloísa e com ela se entregou à
vazão da paixão.
Contudo, para toda ação existe uma reação. A consumação dessa paixão
conduziu à gravidez da jovem e Abelardo, para que esse episódio não manchasse a sua
honra como mestre, a raptou, levando-a para a Bretanha, onde seu filho Astrolábio
nasceu.
Evidentemente que a fuga da sobrinha aumentou o desgosto de Fulbert, já
insatisfeito com a descoberta do romance e, provavelmente maquinava uma forma de
vingar a mancha na honra de sua família. Mas o próprio Abelardo cuidara desse
intento, uma vez que empreendeu o rapto de Heloísa, ato que forçava o acordo entre as
famílias. 125 Dessa forma, Abelardo escaparia de uma punição mais severa que
prejudicasse sua condição de filósofo e se coloca na posição daquele que resolve a
situação, pois ele lança o remédio ao mal causado: o casamento. Mas também se
coloca na posição de quem tem direito de impor condições: o segredo. Extremamente
engenhoso. Não à toa era um dos maiores intelectuais da época.
Mas é exatamente a sua honra, o seu orgulho que serão maculados com a
vingança de Fulbert, que comanda o grupo responsável pela sua castração, com
Abelardo declara:
Certa noite, um dos meus servidores, comprado a preço de outro, introduziu-os no quarto retirado onde eu dormia, e eles me fizeram sofrer a vingança mais cruel, a mais vergonhosa e que todo o mundo conheceu com estupefação: amputaram-me as partes do corpo com as quais eu cometera o delito de que se queixavam. [...] Sentia minha vergonha mais ainda do que a mutilação. A confusão me abatia mais ainda do que a dor. Algumas horas antes eu gozava de uma glória
125 ZUBER, C. K. “A mulher e a família”. In: LE GOFF, J. O homem medieval. Editorial Presença: Lisboa, 1989, p.197.
55
incontestável. Um instante havia sido suficiente para rebaixá-la, talvez para destruí-la! O julgamento de Deus me batia com justiça na parte do meu corpo que havia pecado. 126
É pela sua honra, pela sua fama, pela sua filosofia que ele sofre, como também
sofreu Heloísa. Ela se colocou contrária ao casamento, num primeiro momento para
que ele não abdicasse sua condição de mestre em prol de uma vida regida pelas
preocupações da vida mesquinha do vulgo. Heloísa o alertou sobre isso, recorrendo a
Cícero, a Sêneca, a São Jerônimo, para fazê-lo compreender a incompatibilidade da
vida filosófica com a vida mundana, pois elas encerram éticas diferentes e Abelardo já
havia construído sua fama, conquistado sua honra através da primeira, e Heloísa não
queria que ele a perdesse, pois “não há reputação sem honra e não há honra sem
autoridade”. 127
Entretanto, essa não foi a única argumentação de Heloísa contra o casamento.
Ela sempre se defendeu da idéia de que a sua relação com Abelardo foi movida pelo
pecado. Sua defesa, assim como a renúncia ao casamento são conduzidas através da
pureza de seu amor que, diferente de Abelardo não buscava nada em troca, a não ser o
próprio amor. Heloísa “é a campeã do amor livre que rejeitou o casamento porque ele
acorrenta e transforma em dever o dom gratuito dos corpos”. 128
Entenda-se amor livre, como amor puro, amor desinteressado, diferente do
sentimento nutrido entre cônjuges. O amor não existe entre marido e mulher “porque
os amantes concedem-se tudo mutuamente a título gratuito, sem serem impelidos por
obrigação nenhuma. Os esposos, ao contrário, são obrigados por dever a obedecer às
vontades recíprocas e não podem de modo algum recusar-se um ao outro”.129
O discurso da igreja já determina que o sentimento entre marido e mulher deve
ser a caritas, não o amor, “o amor do marido por sua mulher se chama estima, o da
mulher por seu marido se chama reverência” 130, de modo que amar demasiadamente a
126 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p. 50-51. 127 ROSSIAUD, J. “O citadino e a vida na cidade”. In: LE GOFF, J. O homem medieval. Editorial Presença: Lisboa, 1989, p.107. 128 DUBY, G. Heloísa, Isolda e outras damas no século XII. Companhia das Letras: São Paulo, 1995, p. 58. 129 CAPELÃO, A. Tratado do amor cortês. Martins Fontes: São Paulo, 2000, p. 137. 130 DUBY, G. Idade media idade dos homens. Do amor e outros ensaios. Companhia das Letras: São Paulo, 1989, p. 58.
56
esposa é cometer um pecado, uma vez que o amor é reservado a Deus e a este pertence
o corpo e a alma de cada um, mas concede ao esposo o direito sobre o corpo de sua
mulher, mantendo o direito sobre sua alma atestando o caráter desigual de obrigações e
dívidas desse sacramento, como afirma Duby:
[...] no estado conjugal, a pessoa feminina era partilhada. Constato agora que a pessoa masculina também se desdobra, mas com um desdobramento diferente; o que pode haver num homem de desejo, de impulso, de amor não se desafoga, como deve fazer o amor feminino, na sublimação, no espiritual. Escapa também à sujeição matrimonial, mas sem abandonar o século, a terra, o carnal. Desvia-se para o jogo, para os espaços desembaraçados da gratuidade, da liberdade lúdica. [...] De qualquer forma, o casamento não é o lugar do que se define então como amor. Pois é proibido ao esposo e à esposa lançarem-se um ao outro no ardor e na veemência. 131
Todavia, os apelos de Heloísa não foram considerados por Abelardo e ela se
rendeu ao seu desejo, aceitando o casamento, mas não sem antes registrar sua negação
dessa atitude, quase em tom profético: “então não nos resta senão uma coisa a fazer
para nos perder a ambos e para que a um tão grande amor suceda uma dor igualmente
grande”. 132
Heloísa preferia o título de amante ao de esposa, pois recusa submeter o seu
amor à propriedade dos corpos que os cônjuges detinham um sobre o outro. Esse fato,
porém, poderia explicar porque Abelardo insistiu para que Heloísa entrasse na vida
religiosa, pois tal ação corresponderia à aceitação, à permissão para que Abelardo
também o fizesse.
Heloísa faz os votos, recitando os versos de Cornélia, sabendo que a despedida
de Abelardo que vê na conversão dos dois uma forma de expiar os pecados, tese que
Heloísa irá refutar quando tem conhecimento da carta em que Abelardo conta sobre
seus padecimentos. Heloísa entra para o convento simplesmente para aquiescer ao
desejo de seu marido, como ela o confessa:
Em todos os estados que a vida me conduziu, Deus o sabe, foi a ti, mais do que a ele, que temi ofender; foi a ti, mais do que a ele, que procurei agradar. Foi por tua ordem que tomei o hábito, não por vocação divina. Vê, então, que vida infeliz eu levo, miserável entre todas, arrastando um sacrifício sem
131 Ibid, p. 36. 132 Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p. 49.
57
valor e sem esperança de recompensa futura! Minha dissimulação te enganou muito tempo, como a todo o mundo, e tu chamas piedade minha hipocrisia. 133
Heloísa havia permanecido calada por muito tempo, mas a confissão de
Abelardo aguça a sua vontade de falar e de confrontar as idéias de seu amado com suas
próprias teorias, como é o fato de Abelardo considerar Heloísa sua companheira na
falta e na necessidade de pedir perdão a Deus.
Mas a abadessa, talvez pela primeira vez não atende ao pedido de contrição,
porque simplesmente não se arrepende do seu passado, o que a exime da culpa, pois
não tivera intenção de causar o mal de Abelardo. Mas ela admite a falsidade de sua
vida com Deus, pois não foi por Ele que abandou a vida mundana. Ela confessa que
sua vida é comandada não pela adoração a Deus, mas pela agonia e que carrega em seu
peito um coração ferido e infeliz, porque ela perdeu o seu único apoio, e a presença de
Abelardo lhe foi roubada
Enquanto Abelardo rejeita o passado, Heloísa confessa que seu amor permanece
latente:
Os prazeres amorosos que juntos experimentamos têm para mim tanta doçura que não consigo detestá-los, nem mesmo expulsá-los de minha memória. Para onde quer que eu me volte, eles se apresentam a meus olhos e despertam meus desejos. Sua ilusão não poupa meu sono. Até durante as solenidades da missa, em que a prece deveria ser mais pura ainda, imagens obscenas assaltam minha pobre alma e a ocupam bem mais do o ofício. Longe de gemer as faltas que cometi, penso suspirando naquelas que não pude cometer. 134
Enquanto Heloísa confessa que a paixão ainda arde em seu coração e em seu
corpo, Abelardo a repreende, indagando para que serve lembrar das antigas imundícies
e as fornicações do tempo em que ele a seduziu. 135 O papel aqui, entretanto, se
inverte. Ele confessa que seduziu Heloísa, que sua intenção nada tinha relação com o
amor puro que ela lhe devotava. Mas agora é ela quem o seduz com as palavras, para
arrancar dele ao menos suas palavras como remédio à sua tristeza.
133 Ibid, p. 121. 134 Ibid, p. 119. 135 Ibid, p. 138.
58
Porém Abelardo se refere ao passado como o tempo da concupiscência, do
pecado, o que leva Heloísa a questionar a veracidade do amor de Abelardo. Ela expõe,
além do seu sentimento, o de Abelardo:
Dize, se tu podes, ou antes direi eu, o que creio saber, aquilo de que todos suspeitam! Foi a concupiscência, mais que a afeição verdadeira, que te ligou a mim, o gosto do prazer mais do que o amor. A partir do dia em essas volúpias te foram arrebatadas, todas as ternuras que elas te inspiraram se esvaneceram. 136
Abelardo nada diz sobre seus sentimentos em relação à Heloísa, pois ele amava
mais a sua fama e esta lhe foi maculada e ele teve que aprender a viver novamente. O
conflito que Abelardo vive não é em relação à Heloísa ou à sua deficiência viril, mas à
vergonha, à negação de sua essência, a honra do filósofo. Vive um dilema espiritual.
Por sua vez, “Heloísa está dividida entre ela mesma” 137, vivendo um conflito entre as
vontades e os deveres, e a aplicação das virtudes filosóficas, entre o amor puro e
desinteressado e o amor paixão, ligado ao sofrimento e aos prazeres da carne. Vive na
fronteira entre o espiritual e o carnal, vivenciando a dicotomia entre corpo e alma tão
cara à igreja católica.
Existe uma tensão constante entre os dois personagens que também se
estabelece entre os modelos da religião e do amor cortês sobre o casamento. Abelardo
segue por uma via de rejeição total do amor paixão, propiciado por sua condição de
clérigo e filósofo, mas, sobretudo porque recebeu um ataque no ponto em que não
havia questionamento: a sua glória, de forma que ele sentiu sua vergonha mais ainda
do que a mutilação138, uma vez que “todo macho reduzido a esse estado [de eunuco],
pela ablação ou lesão das partes viris, é visto como um ser fétido e imundo”. 139 Por
isso Abelardo opta pela ascese, direcionando seu amor a Deus, que o puniu pelos
pecados de uma vida inteira.
136 Ibid, p. 98. 137 Ibid, p. 23. 138 Ibid, p. 51. 139 Ibid.
59
Por sua vez, a experiência de Heloísa, a qual ela mesma isenta do pecado,
através da teoria da intenção de Abelardo, concebe o amor enquanto uma presença nos
corpos dos apaixonados, o amor é factual que se faz na dinâmica do casal.
É nesse ritmo que Heloísa conduz suas cartas, sempre bendizendo o amor do
passado, nunca o julgando como culposo e nem digno de arrependimento, diferente da
posição de Abelardo que não cede aos argumentos de Heloísa e continua afirmando
sua condição de abdicação total a esse amor. O amor que ele busca nesse momento é o
amor a Deus, e orienta para que Heloísa também o faça.
Heloísa, ao contrário, se considera inocente, pois tudo o que fez foi por amor e
não pode ser julgada por amar. Além de amor, Heloísa também é nutrida por um
sentimento de admiração pelo filósofo Abelardo. Ama-o não somente pelos encantos
do corpo, mas, sobretudo, pelos encantos da alma, as quais nunca se dissipam.
Enquanto Abelardo a trata com formalidade, Heloísa o trata com desvelo,
carinho e confessa que o coração dela a ele pertence, como se ela andasse errante pelo
mundo, pois Abelardo é seu lar, situação por ele imposta e por ela criticada.
60
CONCLUSÃO
Nesse trabalho analisamos a relação entre Heloísa e Abelardo através da
linguagem que eles utilizam para expressar suas idéias não só relacionadas ao seu
relacionamento, mas também ao universo filosófico, cultural e social no qual estavam
inseridos. Abelardo, como filósofo não poderia deixar de lado a lógica nas suas
argumentações sobre a imposição do asceticismo à sua vida e à de Heloísa, uma vez
que a filosofia não se constitui somente como abstrações intelectuais, como, sobretudo
um estilo de vida e de expressão.
Todavia, Heloísa, apesar de se subordinar aos comandos do amante, se tornando
sua esposa, e do marido, precedendo-o na vida religiosa, revela em suas cartas
elementos que possibilitaram a análise dessa relação sobre outros aspectos, tais como o
do amor cortês, gênero literário com o qual ela demonstrou estar muito familiarizada,
utilizando alguns de seus apelos amorosos para dissuadir Abelardo da idéia do
casamento, como a incompatibilidade entre amor e casamento, pois este se revela
como um contrato de posse e aquele deve ser nutrido, gerado e compartilhado
livremente, sem as amarras das obrigações próprias do consórcio matrimonial.
Alguns estudiosos, tal como Duby, tendem a classificar as correspondências de
Abelardo e Heloísa dentro de uma teoria moral que faz a apologia do casamento e da
submissão feminina. Entretanto, como pudemos observar, em várias passagens
Heloísa, apesar de se submeter aos desígnios de seu amado, coloca-se em posição
igualitária a ele no que diz respeito à argumentação em torno dos obstáculos que a
relação proporcionou a ambos.
É interessante observar o movimento pelo qual a obra se desenvolve, pois ele
possibilita divisar não o papel principal muitas vezes demandado a Abelardo, mas a
racionalização do amor e da fé, uma vez que estes são postos à prova através da
argumentação racional que é proposta por Heloísa.
Longe de também querer atribuir um desempenho emancipacionista à figura de
Heloísa, o fato é que as suas colocações desafiam o filósofo Abelardo. E este ponto
talvez seja o mais interessante da análise feita nesse trabalho, uma vez que é
justamente por essa condição que Abelardo sofre e se martiriza após a castração, o que
61
o faz considerá-la como uma forma de purificação porque o alvo da punição não foi
sua virilidade, mas sua honra, sua fama como mestre.
Para a reparação do “erro” cometido com Heloísa ele encontra facilmente a
solução, pois, ao raptá-la coloca o tio da jovem em uma situação que não poderia
recusar o casamento e as condições do seu segredo, delimitadas para não comprometer
sua honra filosófica, não sua honra viril.
É em torno do casamento que se identifica o primeiro ponto de tensão entre
Abelardo e Heloísa. Ela se opõe ao casamento, não porque reivindica a prática do
amor livre, no sentindo que nós damos a esse conceito atualmente, mas porque aspira à
gratuidade, à reverência, não só a Abelardo, mas ao amor que por ele sentia, ao qual
permaneceu fiel.
Aqui se delineia outro ponto de tensão entre os dois, pois Heloísa parece
reconhecer a diferença de natureza do sentimento que ela nutre por Abelardo e do que
ele sente por ela140. Ela se defende alegando a pureza do seu amor e de suas intenções
a partir da teoria intencional do pecado que Abelardo elabora. Diante disso ele não tem
o que argumentar, senão entraria em contradição. Ele se gabava de não achar
adversário à sua altura, refutando as teses de todos os seus mestres. Mas a
argumentação de Heloísa não recebe resposta. Ela questiona o sentimento de Abelardo
que, para ela, mostra-se movido pelo desejo, intencional.
E esse desejo não se trata apenas da satisfação carnal. Mas também do desejo de
posse que se subentende na instituição do matrimônio. Abelardo estabeleceu, dessa
forma, o contrato que lhe dava a posse de Heloísa que, não se casando com Abelardo,
poderia, sob os desígnios do tio, casar-se com outro.
Heloísa se submete às imposições de Abelardo, pois este, como seu marido,
detinha o poder sobre seu corpo e seus atos. Mas antes de tudo ele era o seu amado e
esse amor permaneceu com ela mesmo na profissão religiosa, fato que revelou a
Abelardo, mas sem se arrepender, uma vez que ele era puro e sem qualquer intenção
malévola.
É evidente que essa literatura não permite visualizar a realidade dos
comportamentos. Entretanto, a articulação e o movimento dessas correspondências
140 Cf. Anexo III.
62
permitem visualizar uma diferença de linguagem que, por sua vez, permite constatar
que os modelos desse comportamento não eram rígidos. Ao contrário, a presença de
características de ideais distintos de conduta, o religioso e o cortês, opostos entre si,
além da discussão racional proposta por Heloísa, permite visualizar a fluidez tanto dos
comportamentos e da expressão do pensamento quanto do sistema de valores que os
sustentavam.
63
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Editorial Presença: Lisboa, 1989 BROOKE, C. O renascimento do século XII. Editorial Verbo: Lisboa, 1972 CARDINI, F. “O guerreiro e o cavaleiro”. In:LE GOFF, J. O homem medieval.
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64
FLORI, J. A cavalaria. A origem dos nobres guerreiros da Idade Média. Madras: São Paulo, 2005. GILSON, E. Heloísa e Abelardo. Edusp: São Paulo, 2007. LE GOFF, J. “Cidade”. In: LE GOFF, J.; SCHITT, J.C. Dicionário temático do
ocidente medieval. EDUSC: São Paulo, 2002 ___________. O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval. Edições 70: Lisboa, 1983 ___________. Os intelectuais na Idade Média. Estudos Cor: Lisboa, s/d. POPE, A. Eloise to Abelard. Disponível em: http://rpo.library.utoronto.ca/poem/.html. Acesso em: 17 jun. 2009. RANGEL, P. A abadessa infiel e o cavaleiro apóstata. Revista Estudos Hum(e)anos, IUPERJ, vol.0, n.0, 2008. Disponível em: www.estudoshumeanos.com/.../Art.%202,%20estudos,%200,%200,%202008.pdf. Acesso em: 18 abr. 2009. RÉGNIER-BOHLER, D. “Amor cortesão”. In: LE GOFF, J.; SCHITT, J.C. Dicionário temático do ocidente medieval. EDUSC: São Paulo, 2002 ROSSIAUD, J. “Sexualidade”. In: LE GOFF, J.; SCHMITT, J.C. Dicionário temático
do ocidente medieval. EDUSC: São Paulo, 2002. ____________. “O citadino e a vida na cidade”. In: LE GOFF, J. O homem medieval.
Editorial Presença: Lisboa, 1989, SCHLESENER, A. P. Abelardo e Heloísa: considerações sobre a situação da mulher
na Idade Média. Anacleta, Guarapuava, v.4, n.1, p.67-76, jan/jun.2003. Disponível em: http://www.unicentro.br/editora/revistas/analecta/v4n1/artigo%206%20abelardo%20e%20heloisa.pdf. Acesso em: 17 mar. 2009. SCHMITT, J.C. “Clérigos e leigos”. In: LE GOFF, J.; SCHMITT, J.C. Dicionário
temático do ocidente medieval. EDUSC: São Paulo, 2002 VENTORIM, E. Misoginia e santidade na baixa idade média: os três modelos
femininos no Livro das Maravilha (1289) de Ramon Llull. Revista Mirabilia, n.5. Disponível em: http://www.revistamirabilia.com/Numeros/Num5/misoginiaeliane.htm. Acesso em: 17 mar. 2009.
65
ZINK, M. “Literatura(s)”.In: LE GOFF, J.; SCHITT, J.C. Dicionário temático do
ocidente medieval. EDUSC: São Paulo, 2002, ZUBER, C. K. “A mulher e a família”. In: LE GOFF, J. O homem medieval. Editorial Presença: Lisboa, 1989
66
ANEXO I
Imagem da entrada e
planta do cemitério Père
Lachaise, em Paris, no
qual encontram-se várias
sepulturas de
personalidades célebres,
como o de Heloísa e
Abelardo, localizado
com a cruz em vermelho,
na parte inferior do
mapa.
http://www.pere-lachaise.com/perelachaise.php?lang=
67
ANEXO II
Foto do túmulo de Heloísa e
Abelardo, visualizado no site do
cemitério Père Lachaise.
Abaixo, detalhes do túmulo.
http://www.pere-lachaise.com/perelachaise.php?lang=
http://sistersteel.livejournal.com/25799.html
68
ANEXO III
Eloise to Abelard
Alexander Pope
In these deep solitudes and awful cells,
Where heav'nly-pensive contemplation dwells,
And ever-musing melancholy reigns;
What means this tumult in a vestal's veins?
Why rove my thoughts beyond this last retreat?
Why feels my heart its long-forgotten heat?
Yet, yet I love!--From Abelard it came,
And Eloise yet must kiss the name.
Dear fatal name! rest ever unreveal'd,
Nor pass these lips in holy silence seal'd.
Hide it, my heart, within that close disguise,
Where mix'd with God's, his lov'd idea lies:
O write it not, my hand--the name appears
Already written--wash it out, my tears!
In vain lost Eloise weeps and prays,
Her heart still dictates, and her hand obeys.
Relentless walls! whose darksome round contains
Repentant sighs, and voluntary pains:
Ye rugged rocks! which holy knees have worn;
Ye grots and caverns shagg'd with horrid thorn!
Shrines! where their vigils pale-ey'd virgins keep,
And pitying saints, whose statues learn to weep!
Though cold like you, unmov'd, and silent grown,
I have not yet forgot myself to stone.
69
All is not Heav'n's while Abelard has part,
Still rebel nature holds out half my heart;
Nor pray'rs nor fasts its stubborn pulse restrain,
Nor tears, for ages, taught to flow in vain.
Soon as thy letters trembling I unclose,
That well-known name awakens all my woes.
Oh name for ever sad! for ever dear!
Still breath'd in sighs, still usher'd with a tear.
I tremble too, where'er my own I find,
Some dire misfortune follows close behind.
Line after line my gushing eyes o'erflow,
Led through a sad variety of woe:
Now warm in love, now with'ring in thy bloom,
Lost in a convent's solitary gloom!
There stern religion quench'd th' unwilling flame,
There died the best of passions, love and fame.
Yet write, oh write me all, that I may join
Griefs to thy griefs, and echo sighs to thine.
Nor foes nor fortune take this pow'r away;
And is my Abelard less kind than they?
Tears still are mine, and those I need not spare,
Love but demands what else were shed in pray'r;
No happier task these faded eyes pursue;
To read and weep is all they now can do.
Then share thy pain, allow that sad relief;
Ah, more than share it! give me all thy grief.
Heav'n first taught letters for some wretch's aid,
Some banish'd lover, or some captive maid;
They live, they speak, they breathe what love inspires,
70
Warm from the soul, and faithful to its fires,
The virgin's wish without her fears impart,
Excuse the blush, and pour out all the heart,
Speed the soft intercourse from soul to soul,
And waft a sigh from Indus to the Pole.
Thou know'st how guiltless first I met thy flame,
When Love approach'd me under Friendship's name;
My fancy form'd thee of angelic kind,
Some emanation of th' all-beauteous Mind.
Those smiling eyes, attemp'ring ev'ry day,
Shone sweetly lambent with celestial day.
Guiltless I gaz'd; heav'n listen'd while you sung;
And truths divine came mended from that tongue.
From lips like those what precept fail'd to move?
Too soon they taught me 'twas no sin to love.
Back through the paths of pleasing sense I ran,
Nor wish'd an Angel whom I lov'd a Man.
Dim and remote the joys of saints I see;
Nor envy them, that heav'n I lose for thee.
How oft, when press'd to marriage, have I said,
Curse on all laws but those which love has made!
Love, free as air, at sight of human ties,
Spreads his light wings, and in a moment flies,
Let wealth, let honour, wait the wedded dame,
August her deed, and sacred be her fame;
Before true passion all those views remove,
Fame, wealth, and honour! what are you to Love?
The jealous God, when we profane his fires,
Those restless passions in revenge inspires;
71
And bids them make mistaken mortals groan,
Who seek in love for aught but love alone.
Should at my feet the world's great master fall,
Himself, his throne, his world, I'd scorn 'em all:
Not Caesar's empress would I deign to prove;
No, make me mistress to the man I love;
If there be yet another name more free,
More fond than mistress, make me that to thee!
Oh happy state! when souls each other draw,
When love is liberty, and nature, law:
All then is full, possessing, and possess'd,
No craving void left aching in the breast:
Ev'n thought meets thought, ere from the lips it part,
And each warm wish springs mutual from the heart.
This sure is bliss (if bliss on earth there be)
And once the lot of Abelard and me.
Alas, how chang'd! what sudden horrors rise!
A naked lover bound and bleeding lies!
Where, where was Eloise? her voice, her hand,
Her poniard, had oppos'd the dire command.
Barbarian, stay! that bloody stroke restrain;
The crime was common, common be the pain.
I can no more; by shame, by rage suppress'd,
Let tears, and burning blushes speak the rest.
Canst thou forget that sad, that solemn day,
When victims at yon altar's foot we lay?
Canst thou forget what tears that moment fell,
When, warm in youth, I bade the world farewell?
As with cold lips I kiss'd the sacred veil,
72
The shrines all trembl'd, and the lamps grew pale:
Heav'n scarce believ'd the conquest it survey'd,
And saints with wonder heard the vows I made.
Yet then, to those dread altars as I drew,
Not on the Cross my eyes were fix'd, but you:
Not grace, or zeal, love only was my call,
And if I lose thy love, I lose my all.
Come! with thy looks, thy words, relieve my woe;
Those still at least are left thee to bestow.
Still on that breast enamour'd let me lie,
Still drink delicious poison from thy eye,
Pant on thy lip, and to thy heart be press'd;
Give all thou canst--and let me dream the rest.
Ah no! instruct me other joys to prize,
With other beauties charm my partial eyes,
Full in my view set all the bright abode,
And make my soul quit Abelard for God.
Ah, think at least thy flock deserves thy care,
Plants of thy hand, and children of thy pray'r.
From the false world in early youth they fled,
By thee to mountains, wilds, and deserts led.
You rais'd these hallow'd walls; the desert smil'd,
And Paradise was open'd in the wild.
No weeping orphan saw his father's stores
Our shrines irradiate, or emblaze the floors;
No silver saints, by dying misers giv'n,
Here brib'd the rage of ill-requited heav'n:
But such plain roofs as piety could raise,
And only vocal with the Maker's praise.
In these lone walls (their days eternal bound)
73
These moss-grown domes with spiry turrets crown'd,
Where awful arches make a noonday night,
And the dim windows shed a solemn light;
Thy eyes diffus'd a reconciling ray,
And gleams of glory brighten'd all the day.
But now no face divine contentment wears,
'Tis all blank sadness, or continual tears.
See how the force of others' pray'rs I try,
(O pious fraud of am'rous charity!)
But why should I on others' pray'rs depend?
Come thou, my father, brother, husband, friend!
Ah let thy handmaid, sister, daughter move,
And all those tender names in one, thy love!
The darksome pines that o'er yon rocks reclin'd
Wave high, and murmur to the hollow wind,
The wand'ring streams that shine between the hills,
The grots that echo to the tinkling rills,
The dying gales that pant upon the trees,
The lakes that quiver to the curling breeze;
No more these scenes my meditation aid,
Or lull to rest the visionary maid.
But o'er the twilight groves and dusky caves,
Long-sounding aisles, and intermingled graves,
Black Melancholy sits, and round her throws
A death-like silence, and a dread repose:
Her gloomy presence saddens all the scene,
Shades ev'ry flow'r, and darkens ev'ry green,
Deepens the murmur of the falling floods,
And breathes a browner horror on the woods.
74
Yet here for ever, ever must I stay;
Sad proof how well a lover can obey!
Death, only death, can break the lasting chain;
And here, ev'n then, shall my cold dust remain,
Here all its frailties, all its flames resign,
And wait till 'tis no sin to mix with thine.
Ah wretch! believ'd the spouse of God in vain,
Confess'd within the slave of love and man.
Assist me, Heav'n! but whence arose that pray'r?
Sprung it from piety, or from despair?
Ev'n here, where frozen chastity retires,
Love finds an altar for forbidden fires.
I ought to grieve, but cannot what I ought;
I mourn the lover, not lament the fault;
I view my crime, but kindle at the view,
Repent old pleasures, and solicit new;
Now turn'd to Heav'n, I weep my past offence,
Now think of thee, and curse my innocence.
Of all affliction taught a lover yet,
'Tis sure the hardest science to forget!
How shall I lose the sin, yet keep the sense,
And love th' offender, yet detest th' offence?
How the dear object from the crime remove,
Or how distinguish penitence from love?
Unequal task! a passion to resign,
For hearts so touch'd, so pierc'd, so lost as mine.
Ere such a soul regains its peaceful state,
How often must it love, how often hate!
How often hope, despair, resent, regret,
Conceal, disdain--do all things but forget.
75
But let Heav'n seize it, all at once 'tis fir'd;
Not touch'd, but rapt; not waken'd, but inspir'd!
Oh come! oh teach me nature to subdue,
Renounce my love, my life, myself--and you.
Fill my fond heart with God alone, for he
Alone can rival, can succeed to thee.
How happy is the blameless vestal's lot!
The world forgetting, by the world forgot.
Eternal sunshine of the spotless mind!
Each pray'r accepted, and each wish resign'd;
Labour and rest, that equal periods keep;
"Obedient slumbers that can wake and weep;"
Desires compos'd, affections ever ev'n,
Tears that delight, and sighs that waft to Heav'n.
Grace shines around her with serenest beams,
And whisp'ring angels prompt her golden dreams.
For her th' unfading rose of Eden blooms,
And wings of seraphs shed divine perfumes,
For her the Spouse prepares the bridal ring,
For her white virgins hymeneals sing,
To sounds of heav'nly harps she dies away,
And melts in visions of eternal day.
Far other dreams my erring soul employ,
Far other raptures, of unholy joy:
When at the close of each sad, sorrowing day,
Fancy restores what vengeance snatch'd away,
Then conscience sleeps, and leaving nature free,
All my loose soul unbounded springs to thee.
Oh curs'd, dear horrors of all-conscious night!
76
How glowing guilt exalts the keen delight!
Provoking Daemons all restraint remove,
And stir within me every source of love.
I hear thee, view thee, gaze o'er all thy charms,
And round thy phantom glue my clasping arms.
I wake--no more I hear, no more I view,
The phantom flies me, as unkind as you.
I call aloud; it hears not what I say;
I stretch my empty arms; it glides away.
To dream once more I close my willing eyes;
Ye soft illusions, dear deceits, arise!
Alas, no more--methinks we wand'ring go
Through dreary wastes, and weep each other's woe,
Where round some mould'ring tower pale ivy creeps,
And low-brow'd rocks hang nodding o'er the deeps.
Sudden you mount, you beckon from the skies;
Clouds interpose, waves roar, and winds arise.
I shriek, start up, the same sad prospect find,
And wake to all the griefs I left behind.
For thee the fates, severely kind, ordain
A cool suspense from pleasure and from pain;
Thy life a long, dead calm of fix'd repose;
No pulse that riots, and no blood that glows.
Still as the sea, ere winds were taught to blow,
Or moving spirit bade the waters flow;
Soft as the slumbers of a saint forgiv'n,
And mild as opening gleams of promis'd heav'n.
Come, Abelard! for what hast thou to dread?
The torch of Venus burns not for the dead.
77
Nature stands check'd; Religion disapproves;
Ev'n thou art cold--yet Eloise loves.
Ah hopeless, lasting flames! like those that burn
To light the dead, and warm th' unfruitful urn.
What scenes appear where'er I turn my view?
The dear ideas, where I fly, pursue,
Rise in the grove, before the altar rise,
Stain all my soul, and wanton in my eyes.
I waste the matin lamp in sighs for thee,
Thy image steals between my God and me,
Thy voice I seem in ev'ry hymn to hear,
With ev'ry bead I drop too soft a tear.
When from the censer clouds of fragrance roll,
And swelling organs lift the rising soul,
One thought of thee puts all the pomp to flight,
Priests, tapers, temples, swim before my sight:
In seas of flame my plunging soul is drown'd,
While altars blaze, and angels tremble round.
While prostrate here in humble grief I lie,
Kind, virtuous drops just gath'ring in my eye,
While praying, trembling, in the dust I roll,
And dawning grace is op'ning on my soul:
Come, if thou dar'st, all charming as thou art!
Oppose thyself to Heav'n; dispute my heart;
Come, with one glance of those deluding eyes
Blot out each bright idea of the skies;
Take back that grace, those sorrows, and those tears;
Take back my fruitless penitence and pray'rs;
Snatch me, just mounting, from the blest abode;
78
Assist the fiends, and tear me from my God!
No, fly me, fly me, far as pole from pole;
Rise Alps between us! and whole oceans roll!
Ah, come not, write not, think not once of me,
Nor share one pang of all I felt for thee.
Thy oaths I quit, thy memory resign;
Forget, renounce me, hate whate'er was mine.
Fair eyes, and tempting looks (which yet I view!)
Long lov'd, ador'd ideas, all adieu!
Oh Grace serene! oh virtue heav'nly fair!
Divine oblivion of low-thoughted care!
Fresh blooming hope, gay daughter of the sky!
And faith, our early immortality!
Enter, each mild, each amicable guest;
Receive, and wrap me in eternal rest!
See in her cell sad HHeloísa spread,
Propp'd on some tomb, a neighbour of the dead.
In each low wind methinks a spirit calls,
And more than echoes talk along the walls.
Here, as I watch'd the dying lamps around,
From yonder shrine I heard a hollow sound.
"Come, sister, come!" (it said, or seem'd to say)
"Thy place is here, sad sister, come away!
Once like thyself, I trembled, wept, and pray'd,
Love's victim then, though now a sainted maid:
But all is calm in this eternal sleep;
Here grief forgets to groan, and love to weep,
Ev'n superstition loses ev'ry fear:
For God, not man, absolves our frailties here."
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I come, I come! prepare your roseate bow'rs,
Celestial palms, and ever-blooming flow'rs.
Thither, where sinners may have rest, I go,
Where flames refin'd in breasts seraphic glow:
Thou, Abelard! the last sad office pay,
And smooth my passage to the realms of day;
See my lips tremble, and my eye-balls roll,
Suck my last breath, and catch my flying soul!
Ah no--in sacred vestments may'st thou stand,
The hallow'd taper trembling in thy hand,
Present the cross before my lifted eye,
Teach me at once, and learn of me to die.
Ah then, thy once-lov'd Eloise see!
It will be then no crime to gaze on me.
See from my cheek the transient roses fly!
See the last sparkle languish in my eye!
Till ev'ry motion, pulse, and breath be o'er;
And ev'n my Abelard be lov'd no more.
O Death all-eloquent! you only prove
What dust we dote on, when 'tis man we love.
Then too, when fate shall thy fair frame destroy,
(That cause of all my guilt, and all my joy)
In trance ecstatic may thy pangs be drown'd,
Bright clouds descend, and angels watch thee round,
From op'ning skies may streaming glories shine,
And saints embrace thee with a love like mine.
May one kind grave unite each hapless name,
And graft my love immortal on thy fame!
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Then, ages hence, when all my woes are o'er,
When this rebellious heart shall beat no more;
If ever chance two wand'ring lovers brings
To Paraclete's white walls and silver springs,
O'er the pale marble shall they join their heads,
And drink the falling tears each other sheds;
Then sadly say, with mutual pity mov'd,
"Oh may we never love as these have lov'd!"
From the full choir when loud Hosannas rise,
And swell the pomp of dreadful sacrifice,
Amid that scene if some relenting eye
Glance on the stone where our cold relics lie,
Devotion's self shall steal a thought from Heav'n,
One human tear shall drop and be forgiv'n.
And sure, if fate some future bard shall join
In sad similitude of griefs to mine,
Condemn'd whole years in absence to deplore,
And image charms he must behold no more;
Such if there be, who loves so long, so well;
Let him our sad, our tender story tell;
The well-sung woes will soothe my pensive ghost;
He best can paint 'em, who shall feel 'em most.
Heloísa para Abelardo
Nestas profundas solidões e horríveis celas,
Onde divina e pensativa contemplação habita,
E sempre pensativa reina a melancolia;
O que significa este tumulto nas veias das donzelas?
Por que meus pensamentos vagueiam para além deste último retiro?
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Porque o meu coração sente o seu longo esquecido calor?
No entanto, eu ainda amo! - De Abelardo ele veio,
E Heloísa ainda deve beijar o nome.
Querido nome fatal! Descanse sem se revelar,
Nem passar estes lábios no sagrado silêncio selado.
Escondê-lo, meu coração, dentro desse estreito disfarce,
Quando misturada com Deus, a sua idéia amada descansa:
OH, não escreva minha mão - o nome aparece
Já está escrito - lave-o para fora, minhas lágrimas!
Em vão, perdida, Heloísa chora e reza,
Seu coração ainda dita, e sua mão obedece.
Implacáveis paredes! Cujo sombrio entorno contém
Arrependidos suspiros, dores voluntárias:
Vocês rude pedras! Que santos joelhos usaram;
Vocês grutas e cavernas farpadas com espinhos horríveis!
Santuários! Onde as suas vigílias olhos pálidos mantêm virgens,
Tendo pena de santos, cujas estátuas aprendem a chorar!
Embora frio como você, imóvel, silenciosamente cultivado,
Eu ainda não me esqueci em pedra.
Tudo não é Céu enquanto Abelardo não faz parte,
Ainda natureza rebelde detém a metade do meu coração;
Nem orações nem jejuns restringem seu pulso obstinado,
Nem lágrimas, por séculos, ensinaram a fluir em vão.
Logo que eu abro suas cartas tremendo,
Este bem conhecido nome desperta todos os meus males.
Oh nome para sempre triste! Para sempre querido!
Ainda em suspiros, ainda entre lágrimas.
Eu também tremo, onde meu próprio eu encontrar,
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Algumas infelicidades terríveis seguem de perto.
Linha após linha meus olhos molhados inundam,
Liderada por uma variedade de triste desventura:
Agora quente no amor, agora escrevendo em tua florescência,
Perdido em um convento da solitária escuridão!
Ali religião severa apagou a chama desobediente,
Ali morreu o melhor das paixões, amor e fama.
Ainda assim escreva, oh escreva-me tudo, que eu possa participar
Tristezas para suas tristezas, e ecoam suspiros para ti.
Nem inimigos nem fortuna podem me tirar este poder;
É meu Abelardo pior do que eles?
As lágrimas ainda são minhas, e estas não preciso conservar,
O amor demanda apenas o que mais se derramou em oração;
Nenhuma tarefa mais feliz estes olhos desbotados prosseguem;
Ler e chorar são tudo o que podem fazer agora.
Em seguida partes tua dor, permitas este triste alívio;
Ah, mais de compartilhá-lo! Dá-me toda a sua dor.
O Céu primeiro ensinou algumas letras para ajudar aos desgraçados,
Alguns baniram o amante, ou alguma cativa donzela;
Eles vivem, eles falam, eles respiram o que é inspirado pelo amor,
Calor da alma, e fidelidade a seus incêndios,
A vontade da virgem, sem medo ela transmite,
Desculpe o rubor, e digas tudo,
Acelere o suave intercurso de alma para alma
E sopre um suspiro de Indús ao Pólo.
Tu sabes quão inocente primeiramente conheci tua chama,
Quando Amor me alcançou com nome de Amizade;
Minha imaginação formada de natureza angelical,
Alguma emanação da tua bela mente.
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Aqueles sorridentes olhos, tendando-me todos os dias
Brilhou docemente com dia celeste.
Inocente eu olhei; o Céu ouvia enquanto você cantava;
E verdades divinas que vieram remendadas de tua língua.
De lábios como aqueles que preceito falharia?
Muito cedo eles ensinaram que não era pecado amar.
De volta através dos caminhos da agradável sensação eu corri,
Nem desejei um Anjo quem eu amei foi um homem
Sombrias e remotas as alegrias dos santos eu vejo;
Não os invejo, o céu que perdi por ti.
Quão freqüente, quando pressionada ao casamento, eu disse,
Maldição sobre todas as leis, menos aquelas criadas pelo amor!
Amor, livre como o ar, à vista dos laços humanos comuns,
Espalha a suas asas luminosas, e num momento voas,
Deixa riqueza, deixe honra, esperar a dama casada,
Augusto seja seu feito, e sagrada seja sua fama;
Antes que a verdadeira paixão remova todas essas opiniões,
Fama, riquezas, e honra! O que são comparados ao Amor?
O Deus ciumento, quando profanamos seus incêndios,
Aquelas inquietas paixões em vingança inspiram;
E lhes manda que façam gemidos mortais,
Quem procurar no amor por outro, mas ama só.
Deveria aos meus pés o maior mestre do mundo cair
Ele, seu trono, seu mundo, eu desprezo a todos eles:
Nem imperatriz de César eu me dignaria a provar;
Não, faça-me amante do homem que amo;
Se não houver ainda outro nome mais livre,
Mais querida do que amante, faça-me de ti!
Oh estado feliz! Quando almas se chamam,
Quando o amor é liberdade, e natureza, e lei:
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Tudo então é pleno, possuindo e sendo possuído,
Nenhum desejo vazio doendo no peito:
Pensamentos se encontram, antes de lábios partirem
E cada desejo quente nasce mútuo do coração.
Isto certamente é felicidade (se felicidade na terra existir)
E uma vez a sorte de Abelardo e eu
Veja, como mudastes! Que repentinos horrores surgem!
Um amante nu preso e mentiras sangrentas!
Onde, onde estava Heloísa? Sua voz, sua mão,
Seu punhal, tinha se oposto ao comando direto.
Bárbara, fique! Aquele sangrento golpe restringe;
O crime foi comum, comum seja a dor
Eu não posso mais, por vergonha, por raiva reprimida
Deixe lágrimas, e rubores falarem do resto.
Não podes esquecer aquele triste, solene dia,
Quando vítimas nos pés do altar no qual estávamos?
Não podes esquecer quantas lágrimas caíram naquele momento,
Quando, quente em juventude, eu me despedi do mundo?
Com lábios frios beijei o sagrado véu,
Todos os santuários tremiam, e as luzes ficavam pálidas:
O Céu mal acreditou a conquista que conseguira,
E santos com admiração ouviram as promessas que fiz.
Ainda assim, aqueles altares tenebrosos alcancei,
Não era na Cruz que meus olhos se fixavam, mas em você:
Não era graça, ou zelo, o amor somente me chamava,
E se eu perder teu amor, eu perco tudo.
Venha! Com o teu olhar, tuas palavras, alivia minha aflição;
Você ao menos ainda pode outorgá-los.
Ainda sobre seu peito enamorado me deixe descansar,
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Ainda beber o veneno delicioso do teu olho,
Ofegar em teus lábios, e ser pressionada em seu coração;
Dê-me tudo que possa, e deixe-me sonhar o resto.
Ah, não! Dê-me outras alegrias como premio,
Com outras belezas encante meus olhos parciais,
Com minha vista cheia da brilhante morada,
E fazer a minha alma esquecer Abelardo por Deus.
Ah, pense que ao menos teu rebanho merece teu cuidado,
Plantas de sua mão, e as filhas de tua oração.
Do falso mundo elas fugiram na juventude,
Por ti, para montanhas, selvas, e desertos.
Você ergueu esses santificados muros; o deserto sorriu
E o Paraíso foi aberto na selva.
Nenhum órfão chorando viu as lojas de seu pai
Nossos santuários irradiam, ou chamuscam o chão;
Nenhum santo prateado, morrendo por misérias dadas,
Aqui subornou a raiva de mau-requerido céu:
Mas telhados tão lisos quanto os que piedade poderia levantar,
E só com os vocais com o louvor do Criador.
Nestas solitárias paredes (seus dias eternamente ligados)
Esta musguenta cúpula com arrematados torreões coroados,
Quando horríveis arcos fazem do dia, noite,
E as janelas escuras deixam passar uma solene luz;
Teus olhos difundem um raio reconciliado,
E brilham de glória clareando todos os dias.
Mas agora nenhum rosto divino mostra contentamento,
Estão todos em tristeza vazia, ou lágrimas contínuas.
Veja como tento a força da oração de outros,
(ó piedosa fraude da caridade amorosa!)
Mas por que deveria eu depender das orações alheias?
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Vem tu, meu pai, irmão, marido, amigo!
Ah deixar tua serva, irmã, filha se mover,
E todos estes nomes em um, teu amor!
Os escuros pinheiros que sobre distantes rochas reclinam
Ondas altas, e com sopro de ventos ocos
Os errantes córregos que brilham entre as colinas
As grutas que ecoam até as montanhas que tilintam,
As moribundas tempestades que suspiram sobre as árvores
Os lagos que tremem ao vento ondulado;
Nenhuma dessas cenas auxiliam minha meditação
Ou dão trégua para descansar essa visionária serva
Mas entre o crepúsculo, os olivais e as cavernas empoeiradas,
Alto-sonantes corredores, e sepulturas entremeadas,
A Melancolia Negra se instaura, e rodeia seus arremessos
Um silêncio de morte, e um pavoroso repouso:
Sua presença sombria entristece toda a cena,
Sombreia toda flor, escurece todo verde,
Aprofunda o sopro das quedas d’água
E respira um horror escuro na floresta
Ainda assim, aqui para sempre, sempre devo ficar;
Prova triste de como um amante pode obedecer!
Morte, somente a morte, pode quebrar a cadeia duradoura;
E aqui, mesmo depois, deverá minha fria poeira permanecer
Aqui todas as suas fragilidades, todas as suas chamas desistem,
E esperam até que não haja nenhum pecado para misturar com o teu.
Ah desgraça! Acreditou a esposa de Deus em vão,
Confessada dentro dos escravos do amor e homem.
Ajude-me, Céu! Mas de onde surgiu sua oração?
Surgiu da piedade, ou do desespero?
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Até mesmo aqui, onde castidades congeladas se aposentam,
O Amor encontra um altar para as chamas proibidas.
Eu deveria lamentar, mas não consigo lamentar o que deveria;
Eu lamento o amante, não lamento a culpa;
Visualizo meu crime, mas me estimula a visão,
Arrependo-me de antigos prazeres, e angario novos;
Agora tornada ao Céu, eu choro meu antigo delito,
Agora penso em ti, e amaldiçôo minha inocência.
De toda aflição já ensinada a um amante,
Com certeza esta é a ciência mais difícil de esquecer!
Como é perder o pecado, mas ainda assim manter o bom senso,
E amar quem ofendeu, mas detestar o crime?
Como remover o caro objeto do crime,
Ou como distinguir penitência de amor?
Tarefa inconstante! Uma paixão de se demitir,
Por corações tão tocados, tão penetrados, tão perdidos quanto o meu.
Onde tal alma recupera seu pacífico estado,
Quantas vezes ele deve amar, quantas vezes odiar!
Quantas vezes ter esperança, desespero, ressentimento, pesar,
Conciliar, desprezar – fazer tudo menos esquecer.
Mas deixe os Céus agarrá-las, tudo de uma vez despedi-las
Não tocado, mas extasiado; não acordado, mas inspirado!
Oh vem! Oh me ensine a suprimir,
Renuncie meu amor, minha vida, eu mesma- e você.
Encha meu coração carinhoso com Deus apenas, pois ele
Somente pode ser seu concorrente, melhor sucedido que ti.
Como são felizes as inocentes virgens!
O mundo esquecendo pelo mundo esquecido.
Brilho eterno de uma mente sem lembranças!
Cada oração aceita, e cada desejo renunciado;
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Trabalho e descanso, em iguais períodos;
"Obedientes repousos que possam despertar e chorar";
Desejos comportados, afetos nunca igualados,
Lágrimas que deliciam, e suspiros que flutuam ao Céu.
Graça brilha ao seu redor com serenos feixes de luz,
E anjos suspiram e induzem seus dourados sonhos
Para ela a imarcescível rosa do Éden desabrocha
E asas de serafins derramam perfumes divinos,
Para ela a esposa prepara o anel de noivado
Para ela virgens brancas cantam núpcias
Aos sons das harpas celestiais ela desvanece longe
E se derrete em visões do eterno dia.
Muitos outros sonhos minha alma errante cria,
Distantes rupturas de alegria profana:
Quando, no encerramento de cada triste, penoso dia,
Fantasia repõe aquilo que a vingança levou embora,
Então consciência dorme, deixando a natureza livre,
Toda a minha alma solta não reprimida salta para ti.
Oh amaldiçoados, queridos horrores de noites conscientes!
Como a brilhante culpa exalta os desejos deliciosos!
Diabos provocantes retiram todas as restrições,
E agita em mim toda fonte de amor.
Ouço-te, vejo-te, Observo todos os seus encantos,
E em volta do seu fantasma colo meus braços
Acordo – não mais ouço, não mais vejo,
O fantasma voa comigo, tão cruel como você.
Eu chamo em voz alta, ele não ouve o que eu digo;
Eu estico meus braços vazios; ele foge de mim.
Para sonhar uma vez mais fecho meus olhos;
Suaves ilusões, queridos enganos, surjam!
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Infelizmente, nada mais – Acho que continuamos vagando
Através de resíduos melancólicos, chorando o pesar um do outro,
Aonde ronda alguma torre desfeita na qual pálidas heras rastejam,
E escuras rochas caem sobre os abismos
Subitamente você monta, acena dos céus;
Nuvens vetam, ondas exaltam, e ventos surgem.
Eu guincho, começo, a mesma triste perspectiva encontro,
E desperto a todo o sofrimento que deixei para trás.
Para ti o destino, severamente bom, ordena
Um suspense frio de prazer e de dor;
Sua vida uma longa, morta calmaria de fixado repouso;
Sem pulsos que se revolta, e nenhum sangue que brilha.
Parado como o mar, onde os ventos eram ensinados a soprar,
Ou almas que se movem convidam o fluxo das águas;
Leve como o sono de um santo perdoado,
E leve como aberturas brilhantes do Céu prometido.
Vem, Abelardo! Porque o que tu tens a temer?
A tocha de Venus não queima para os mortos.
A Natureza fica marcada; A Religião desaprova;
Ainda és frio - Ainda ama Heloísa.
Ah desesperadas, duradouras chamas! Como aqueles que queimam
Ilumina os mortos, e aquecem a infrutífera urna
Que cenas aparecem sempre que torno meus olhos?
As queridas ideias, onde vôo, persigo,
Ascende no bosque, antes de subir o altar,
Mancha toda a minha alma, e desmoraliza meus olhos.
Eu gasto a luz da manhã em suspiros por ti
Tua imagem anda furtivamente entre meu Deus e eu,
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Tua voz eu percebo em cada hino que ouço,
Com cada conta do rosário eu derrubo uma lágrima suave.
Quando do incensário nuvens de fragrância saem,
E órgãos inflamados elevam as almas
Um pensamento sobre ti coloca toda a pompa a voar,
Sacerdotes, pavios, círios, templos, nadam a minha frente:
No mar de chamas minha alma é afogada,
Enquanto altares queimam, e anjos tremem em volta.
Embora prostrado aqui em humilde dor eu esteja,
Doces, virtuosas gotas se ajuntam meus olhos,
Enquanto orando, tremendo, rolo no pó,
E aurora clemente abre minha alma:
Venha, se tu se atreve, toda charmosa como tu és!
Oponha-se ao Céu; disputa meu coração;
Vem, com um olhar destes olhos que iludem
Apague cada idéia brilhante do céu;
Retome aquela graça, aquelas tristezas, e aquelas lágrimas;
Tome a minha penitência infrutífera e rezas;
Agarra-me, apenas subindo, a partir da bem-aventurado residência;
Ajude os fanáticos e arranque-me do meu Deus!
Não, voas comigo, voas comigo, tão longe como de pólo a pólo;
Levante Alpes entre nós! E oceanos inteiros rolem!
Ah, não venha, não escreva, não pense uma vez em mim,
Nem dividas um pedaço do que sentia por ti.
Teus juramentos eu renuncio, tua memória renuncio;
Esqueça, renuncia-me, odeio tudo que era meu.
Belos olhos, e aparência tentadora (que ainda vejo!)
Por muito amadas, adoradas idéias, todas adeus!
Oh Graça serene! Oh virtude celestial mente justa!
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Divino esquecimento de mal pensado cuidado!
Nova esperança que floresce filha feliz do céu!
E fé, nossa inicial imortalidade!
Entre, cada leve, cada amigável hóspede;
Receba e me envolva em eterno descanso!
Vê, em sua cela triste Heloísa deita,
Propriamente em alguma tumba, uma vizinha dos mortos.
Em cada vento fraco acho que um espírito chama,
E mais do que ecos falam ao longo das paredes.
Aqui, enquanto eu olhava as moribundas lâmpadas em volta,
Daquele santuário eu escutei o oco som
"Venha, irmã, vem!" (ele disse, ou pareceu dizer)
"Teu lugar é aqui, triste irmã, Venha-te!
Assim como a ti, eu tremi, chorei, e rezei,
Vitima do amor então, embora agora uma criada santificada:
Mas tudo é calma nesse sono eterno;
Aqui a tristeza se esquece de gemer, e o amor se esquece de chorar,
Até a superstição perde todo medo:
Pois é Deus, não o homem, que exime nossas fragilidades neste lugar."
Eu venho, venho! Prepare o seu róseo quarto,
Palmas celestiais, e flores sempre florescendo.
De lá, onde os pecadores podem ter descansado, eu vou,
Onde flamas refinadas nos peitos de brilho serafino
Você, Abelardo! Paga o último culto,
E suave minha passagem pelos reinos do dia;
Vê meus lábios tremerem, e meus olhos rolarem,
Sugue meu último suspiro, e capture minha alma que voa!
Ah não - em vestes sagradas você deve ficar,
Uma estreita vela treme em tua mão,
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Apresente a cruz diante meus olhos levantados
Ensina-me de uma vez, e aprendei de mim para morrer.
Ah, então, tua uma vez amada Heloísa vê!
Não haverá então nenhum crime a olhar-me.
Ver de minha bochecha as rosas transitórias voarem!
Ver a última centelha languir em meus olhos!
Até que todo movimento, pulso, respiração tenham acabado;
E até meu Abelardo não ser mais amado.
O toda – eloqüente Morte! Só você prova
Que nos padecemos em pó, quando o homem nos amamos
Então também, quando o destino destruir tua bela moldura,
(Causa de toda minha culpa, e de toda minha felicidade)
Em transe extático Tua agonia devera se afogar,
Nuvens brilhantes descem, e anjos observam a ronda,
De céus abertos devem glorias torrenciais brilharem,
E santos te abraçaram com um amor como o meu.
Deve uma boa tumba unir cada nome infeliz,
E encrave meu amor imortal no teu nome
Então, por anos à frente, quando todos os meus males tiverem acabados,
Quando este coração rebelde não dever mais bater;
Se alguma sorte dois amantes errantes unir
Para as paredes brancas e mananciais prateados do Paracleto
Sobre o pálido mármore juntarem suas cabeças,
E beberem as lágrimas que ambos choraram;
Então, infelizmente dirão, com mútua pena,
"Oh que nunca amemos como eles amaram!"
De todo o coro quando altas Hosanas se elevam,
E aumentar a pompa do horrível sacrifício,
93
Em meio aquela cena se algum relutante olho
Vislumbrar a pedra onde nossas frias relíquias descansam
Devoções do alto devem roubar um pensamento do Céu
Uma lágrima humana deve cair e ser perdoada.
E claro, se o mesmo destino triste se juntarem
Em triste similitude de mágoa que a minha
Condenando anos inteiros em ausência para lamentar,
E imaginar encantos que ele não deve mais contemplar;
Tais se houver, que ama há tanto tempo, tão bem;
Deixe ele nossa triste, nossa carinhosa história contar
As bem cantadas desgraças irão acalmar meu pensativo fantasma;
Ele pode melhor pintá-los, quem senti-los mais