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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE CIÊNCIAS SECÇÃO AUTÓNOMA DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS A BIOQUÍMICA – UMA “CIÊNCIA DE FRONTEIRA” Miguel de Avelar Santos Fezas Vital MESTRADO EM HISTÓRIA E FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS 2009

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE CIÊNCIAS

SECÇÃO AUTÓNOMA DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS

A BIOQUÍMICA – UMA “CIÊNCIA DE FRONTEIRA”

Miguel de Avelar Santos Fezas Vital

MESTRADO EM HISTÓRIA E FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS

2009

UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE CIÊNCIAS

SECÇÃO AUTÓNOMA DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS

A BIOQUÍMICA – UMA “CIÊNCIA DE FRONTEIRA”

Miguel de Avelar Santos Fezas Vital

Dissertação orientada por: Professora Doutora Olga Maria Pombo Martins

MESTRADO EM HISTÓRIA E FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS

2009

Agradecimentos

Quero agradecer à professora Olga Pombo pela grande ajuda e inspiração que me deu na

concretização da dissertação, à Amy Tikkanen da Encyclopaedia Britannica por me ter

ajudado desde os Estados Unidos num ponto importante do trabalho, ao Doutor William

Bechtel pela simpatia com que respondeu ao meu pedido de envio do seu paper e, claro,

à Margarida Bonneville Nesbitt e ao meu pai.

Quero também agradecer às pessoas do Centro de Filosofia das Ciências da

Universidade de Lisboa, aos meus colegas e aos meus professores e professores

convidados do Mestrado em História e Filosofia das Ciências pela ajuda que me deram

nas mais diversas formas.

1

Índice Índice 1 Índice de figuras 3 Resumo 5 Abstract 6 Nomenclatura 7 1. Introdução 8

1.1. Preâmbulo 8 1.1.1. Objectivo e estrutura 8 1.2. Interdisciplinaridade e unidade da ciência 12 1.3. Figuras da unidade da ciência 21

2. A emergência da bioquímica – um exemplo de interdisciplinaridade 24 2.1. Uma ciência de fronteira 24 2.2. Práticas interdisciplinares 28 2.2.1. Exemplos de conflitos entre escolas no desenvolvimento da bioquímica – Química vs. Física e Teoria protoplasmática vs. Teoria enzimática da vida 32 2.2.2. Desenvolvimento no período pré-paradigmático – Visão linear vs. Visão integrativa dos processos enzimáticos da vida 43 2.2.3. Contexto institucional da emergência da bioquímica – a interdisciplinaridade de um ponto de vista institucional 50 2.2.4. Conclusão sobre as práticas interdisciplinares 76

2

3. Figuras da unidade da ciência da bioquímica e o resultado da sua acção 84 3.1. República dos sábios 88

3.2. Escola 93

3.3. Biblioteca 102

3.4. Museu 114

3.5. Enciclopédia 134 4. Conclusão 137 4.1. Considerações finais sobre a dissertação 137 4.2. Perspectivas de investigação futura 140 5. Bibliografia 149

3

Índice de figuras

Figura 1. Poliedro de articulação das figuras da unidade da ciência (reprodução de figura presente em Pombo, 2006: 197).

21

Figura 2. Aparelhos utilizados por Thomas Graham, c. 1865 (imagem retirada do site do Science & Society Picture Library, mais especificamente a partir da página: http://www.ssplprints.com/image.php?imgref=10311365).

115

Figura 3. Kit de modelos moleculares, c. 1875 (imagem retirada do site do Science Museum de Londres, mais especificamente a partir da página: http://www.sciencemuseum.org.uk/images /I043/10311752.aspx).

116

Figura 4. Aparelho de Hüfner, c. 1885 (imagem retirada do site do Science & Society Picture Library, mais especificamente a partir da página: http://www.ssplprints.com/image.php? imgref=10267467).

116

Figura 5. Reconstituição de laboratório de química de 1895, em Londres, presente no espaço do Science Museum de Londres (imagem retirada do site do Science Museum de Londres, mais especificamente a partir da página: http://www.makingthemodernworld.org.uk/stories/the_second_industrial_revoluti on/05.ST.01/).

117

Figura 6. Quadro a óleo representando um laboratório de química, pintado por Mabel T. Sara, na escola de arte e ciência de Redruth, Cornualha, 1897 (imagem retirada do site do Science & Society Picture Library, mais especificamente a partir da página: http://www.ssplprints.com/image.php?imgref=10198715).

118

Figura 7. Microscópios utilizados por Louis Pasteur e Joseph Lister, finais do século XIX (imagem retirada do site do Science & Society Picture Library, mais especificamente a partir da página: http://www.ssplprints.com/image.php? imgref=10288645).

119

Figura 8. Gravura de um desenho de R. H. Laurie, mostrando um microscópio com etiqueta Dolland, Londres, século XIX, e as suas partes constituintes (imagem retirada do site do Science & Society Picture Library, mais especificamente a partir da página: http://www.ssplprints.com/image.php?imgref =10422190).

120

Figura 9. Polarímetro Shmidt and Haensh, c. 1900 (imagem retirada do site do Science Museum de Londres, mais especificamente a partir da página: http://www.sciencemuseum.org.uk/images /I062/10327125.aspx).

121

Figura 10. Centrífuga manual, 1912 (imagem retirada do site do Science & Society Picture Library, mais especificamente a partir da página: http://www.ssplprints.com/image.php?imgref=10314136).

122

4

Figura 11. Câmara de Friedrich e Knipping, 1912 (imagem retirada do site do Science & Society Picture Library, mais especificamente a partir da página: http://www.ssplprints.com/image.php?imgref=10255415).

123

Figura 12. Ultracentrífuga de Svedberg, 1936 (imagem retirada do site do Science & Society Picture Library, mais especificamente a partir da página: http://www.ssplprints.com/image.php?imgref=10268598).

124

Figura 13. Câmara de difracção de raios-x com relógio de alarme, de Bernal, c. 1940 (imagem retirada do site do Science & Society Picture Library, mais especificamente a partir da página: http://www.ssplprints.com/image.php?imgref =10437802).

125

Figura 14. O mais antigo tanque para a realização de cromatografia em papel ainda existente, c. 1944 (imagem retirada de Varii. 1977. “RIC Centenary and CS/RIC Annual Chemical Congress”. Procedings of the Analytical Division of the Chemical Society, Vol. 14, Nº 5, pág. 102).

126

Figura 15. Espectrofotómetro Fotoeléctrico Ultravioleta Beckman DU, 1935-1945 (imagem retirada do site do Science Museum de Londres, mais especificamente a partir da página: http://www.sciencemuseum.org.uk/images/ I062/10327120.aspx).

127

Figura 16. Modelo original de Kendrew da molécula de mioglobina, 1957 (imagem retirada do site do Science Museum de Londres, mais especificamente a partir da página: http://www.sciencemuseum.org.uk/images/I053/10321094 .aspx).

127

Figura 17. Modelo da estrutura cristalina da vitamina B12, 1957-1959 (imagem retirada do site do Science & Society Picture Library, mais especificamente a partir da página: http://www.ssplprints.com/image.php?imgref=10311590).

128

Figura 18. Kit de modelos estereoquímicos de Dreiding, 1958-1977 (imagem retirada do site do Science Museum de Londres, mais especificamente a partir da página: http://www.sciencemuseum.org.uk/images/I013/10268857.aspx).

129

Figura 19. Modelo da insulina do porco de Dorothy Hodgkin, c. 1967 (imagem retirada do site do Science Museum de Londres, mais especificamente a partir da página: http://www.sciencemuseum.org.uk/images/I052/10320684.aspx).

129

Figura 20. Fotografia de Hans Krebs utilizando uma pipeta, 1973 (imagem retirada do site do Science & Society Picture Library, mais especificamente a partir da página: http://www.ssplprints.com/image.php?imgref=10318599).

130

Figura 21. Manómetro de Warburg utilizado por Vladimir Engelhardt na Universidade de Kazan, c. 1929 (imagem retirada do site do Museu de História da Universidade de Kazan, mais especificamente a partir da página: http://www.ksu.ru/miku /eng/ekskurs/fzl/index.php).

132

5

Resumo

De forma a mostrar como o exemplo particular da emergência da bioquímica pode

ilustrar uma tendência para a unidade da ciência interdisciplinar que julgo estar por

detrás de todo o progresso científico, estudei as interconexões entre a biologia e a

química que permitem explicar o processo da emergência da disciplina.

Dividi o trabalho em duas partes. Na primeira, apresentei um estudo sobre vários

aspectos cognitivos e institucionais relativos à emergência da bioquímica que permitem

compreender o carácter interdisciplinar da disciplina. Conclui que a bioquímica é uma

ciência de fronteira cuja emergência teve por base práticas interdisciplinares de

importação. Conclui também, utilizando algumas teses de Thomas Kuhn, que houve um

período pré-paradigmático relativamente extenso na emergência da bioquímica.

Na segunda parte do trabalho, apresentei um estudo sobre o impacto exercido na

emergência da bioquímica pelas figuras da unidade da ciência, como descritas por Olga

Pombo (2006). São essas “figuras” – a república dos sábios, a escola, a biblioteca, o

museu e a enciclopédia – que criam as condições necessárias para a articulação das

diferentes ciências, evitando a completa dispersão dos conhecimentos. Pude concluir

que essas figuras estiveram presentes tanto num momento anterior à emergência da

bioquímica, como no momento em que esta disciplina acabava de alcançar o seu

primeiro paradigma, o que revela uma elevada maturidade da mesma.

Na conclusão do trabalho, apontei o sentido de uma possível investigação futura no

âmbito das questões interdisciplinares que envolvem a bioquímica. Mostrei ainda como

alguns aspectos relativos a processos bioquímicos que estão a ser investigados na

actualidade podem ser interpretados sob uma perspectiva não reducionista que serve

uma unidade da ciência interdisciplinar.

Palavras-chave: bioquímica, emergência da bioquímica, estudos bioquímicos,

interdisciplinaridade, unidade da ciência, figuras da unidade da ciência,

desenvolvimento pré-paradigmático.

6

Abstract

In order to show how the particular example of the emergence of biochemistry can

illustrate a tendency for an interdisciplinary unity of science that I think is behind all

scientific progress, I studied the interconnections between biology and chemistry that

can explain the process of the emergence of the discipline.

I divided the work in two parts. In the first part, I presented a study about various

intellectual and institutional aspects regarding the emergence of biochemistry that show

the interdisciplinary character of the discipline. I concluded that biochemistry is a

frontier science which had in the basis of its emergence interdisciplinary practices of

importation. I also concluded, using some of Thomas Kuhn’s thesis, that there was a

relatively long preparadigmatic period in the emergence of biochemistry.

In the second part of the work, I presented a study about the impact exerted on the

emergence of biochemistry by the figures of the unity of science, as described by Olga

Pombo (2006). These figures – the republic of the wise, the school, the library, the

museum, and the encyclopedia – create the necessary conditions for the articulation of

the different sciences, avoiding the complete dispersion of knowledge. I was able to

conclude that these figures were present both before the emergence of biochemistry and

in the moment the discipline had just attained its first paradigm, which indicates a high

level of maturity of the discipline.

In the conclusion of the work, I pointed in the direction of a possible future

investigation regarding the interdisciplinary aspects that surround biochemistry. Also I

showed some aspects related to biochemical processes that are being investigated

presently, which can be interpreted under a non reductionist perspective that serves an

interdisciplinary unity of science.

Key-Words: biochemistry, emergence of biochemistry, biochemical studies,

interdisciplinarity, unity of science, figures of the unity of science, preparadigmatic

development.

7

Nomenclatura

Abreviaturas

ADP - Adenosina difosfato

AMP - Adenosina monofosfato

ATP - Adenosina trifosfato

FAD - Dinucleótido de adenina e flavina

FEBS - Federation of European Biochemical Societies

NAD - Dinucleótido de adenina e nicotinamida

8

1. Introdução

1.1. Preâmbulo

Neste momento, em que assistimos ao fenómeno cada vez mais marcado de uma

crescente especialização disciplinar, urge perceber as características do caminho traçado

pelo desenvolvimento científico moderno. Estaremos perante uma realidade onde,

inevitavelmente, as disciplinas se tenderão a dispersar de modo irremediável? Penso que

não. Creio que, a par do desenvolvimento científico especializado, existe uma tendência

para a unidade da ciência que se faz sentir de forma silenciosa mas que nunca deixa de

se fazer sentir. Falo de uma unidade da ciência interdisciplinar, a qual tem como base

uma espécie de “polinização cruzada” entre diferentes domínios científicos e que, em

última instância, é responsável pela criação de novas disciplinas, como a bioquímica,

que surgiu da integração entre conhecimentos da biologia e da química.

1.1.1. Objectivo e estrutura

O objectivo desta dissertação é mostrar de que forma o exemplo particular da

emergência da bioquímica pode ilustrar essa tendência para a unidade da ciência.

Tendência essa que tem estado sempre presente no processo do desenvolvimento

científico ao longo dos séculos, não permitindo a fragmentação total dos diferentes

ramos científicos e a consequente incomensurabilidade entre disciplinas. Uma unidade

da ciência interdisciplinar que julgo estar por detrás de todo o progresso científico.

A minha dissertação consiste, concretamente, no estudo das interconexões entre a

biologia e a química que permitem explicar o processo da emergência da bioquímica e

que, portanto, exemplificam essa ideia de uma unidade da ciência interdisciplinar.

9

Em termos de estrutura, a minha dissertação é constituída por uma introdução, onde são

apresentados vários conceitos importantes relativos à interdisciplinaridade e à unidade

da ciência, conceitos estes que permitem estabelecer um contexto e um ponto de partida

para os estudos subsequentes realizados no corpo da dissertação. É de notar que, em

relação à introdução, utilizei essencialmente, como base, os livros

Interdisciplinaridade: Ambições e limites (2004) e Unidade da Ciência – Programas,

Figuras e Metáforas (2006), ambos de Olga Pombo. Na realidade, devo referir, como

nota prévia, que esta dissertação é em grande parte construída como um estudo de caso

a partir da exploração de algumas das teses apresentadas nesses dois livros. Outros

autores porém me acompanham neste processo. Destacarei Joseph Fruton, William

Bechtel, Thomas Kuhn e Robert Kohler.

O corpo do trabalho está dividido em duas partes. A primeira, intitulada “Emergência da

bioquímica – um exemplo de interdisciplinaridade”, consiste na apresentação de vários

aspectos da bioquímica que permitem compreender o carácter interdisciplinar da

disciplina e a forma como se deu a sua emergência. Estes aspectos dizem respeito tanto

a questões cognitivas como institucionais. No que diz respeito ao estudo que realizo

sobre a forma como se processou o desenvolvimento cognitivo da disciplina, destaco as

descobertas científicas que foram sendo realizadas e as novas técnicas que foram sendo

implementadas ao longo do tempo, reportando-me, essencialmente, ao paper de Fruton

intitulado “The Emergence of Biochemistry”, publicado na revista Science (1976), ao

livro, também da autoria de Fruton, intitulado Proteins, Enzymes, Genes: The Interplay

of Chemistry and Biology (1999), ao paper de Bechtel intitulado “Biochemistry: A

Cross-disciplinary Endeavor that Discovered a Distinctive Domain”, presente no livro

Integrating Scientific Disciplines (1986) e ainda a outras fontes. Já no que diz respeito a

questões institucionais, estudo a forma como se processou o desenvolvimento e a

emergência da bioquímica, do ponto de vista institucional (ou seja, olhando para o papel

desempenhado pelas universidades, instituições, organizações, etc., no processo de

desenvolvimento bioquímico), na Alemanha, em França, no Reino Unido e nos Estados

Unidos, sendo que faço também uma breve referência à forma como se processou a

emergência da bioquímica em Portugal. Neste ponto, reporto-me essencialmente ao

livro de Robert Kohler intitulado From Medical Chemistry to Biochemistry: The

Making of a Biomedical Discipline (1982) e ao livro de Joseph Fruton intitulado

Proteins, Enzymes, Genes: The Interplay of Chemistry and Biology (1999). Em relação

10

ao processo da emergência da bioquímica em Portugal, remeto para o livro de Isabel

Amaral intitulado A Emergência da Bioquímica em Portugal: As Escolas de

Investigação de Marck Athias e de Kurt Jacobsohn (2006). Finalmente, tendo em conta

a abordagem realizada nesta primeira parte do trabalho relativamente ao

desenvolvimento e emergência da bioquímica, passo a tirar algumas conclusões acerca

de aspectos relativos ao carácter interdisciplinar da disciplina. Uma das questões sobre a

qual tiro algumas conclusões significativas, diz respeito à caracterização do tipo de

práticas interdisciplinares que estão na base da emergência da bioquímica. Outras

considerações e conclusões importantes que tiro ao longo de toda esta primeira parte do

trabalho dizem respeito à utilização do conceito de desenvolvimento pré-paradigmático

de Thomas Kuhn, como descrito na sua obra A Estrutura das Revoluções Científicas

(2007), o qual me parece ser operatório para pensar a forma como se deu a emergência

da bioquímica.

Já na segunda parte do trabalho, intitulada “Figuras da unidade da ciência da bioquímica

e o resultado da sua acção”, apresento um estudo sobre o impacto exercido na

emergência da bioquímica pelas figuras da unidade da ciência, como descritas por Olga

Pombo no livro Unidade da Ciência – Programas, Figuras e Metáforas (2006). São

essas “figuras” – a república dos sábios, a escola, a biblioteca, o museu e a enciclopédia

– que realizam a coordenação das diferentes ciências particulares, que oferecem as

condições materiais da sua articulação e que evitam a completa dispersão dos

conhecimentos. Nesse sentido, apresento um estudo sobre o impacto de vários exemplos

destas figuras da unidade da ciência na emergência da bioquímica. Trata-se de um

estudo que abarca tanto o momento em que a bioquímica ainda não estava totalmente

consolidada como o momento em que ela acabava de se apresentar como uma disciplina

madura.

Na conclusão do trabalho, para além de tecer algumas considerações finais, aponto o

sentido de uma possível investigação posterior. Tomo como referência o paper de

Robert Kincaid intitulado “Molecular Biology and the Unity of Science”, publicado na

revista Philosophy of Science (1990), apresentando-o como indicador de uma espécie de

passo seguinte a ser dado no que diz respeito a um possível aprofundamento futuro das

questões interdisciplinares que envolvem a bioquímica. Na realidade, o paper de

Kincaid aborda já a questão de como alguns aspectos relativos a processos bioquímicos

11

que estão a ser investigados na actualidade podem ser interpretados sob uma perspectiva

não reducionista que serve uma unidade da ciência interdisciplinar.

Por fim, apresento a bibliografia consultada, composta por livros, sites, vídeos e mesmo

conversas (apenas uma) que me permitiram realizar este trabalho. Na realidade, como já

referi, esta dissertação é em grande parte construída como um estudo de caso a partir da

exploração das teses de vários autores, pelo que algumas das referências presentes na

bibliografia tiveram verdadeiramente um papel de guia na realização desta dissertação.

12

1.2. Interdisciplinaridade e unidade da ciência

A tendência para uma crescente especialização disciplinar é um fenómeno que teve a

sua origem, essencialmente, no século XIX, e alcançou a sua exponenciação máxima no

século XX, como mostra Olga Pombo no seu livro Interdisciplinaridade: Ambições e

limites (2004). A especialização, ou melhor, a forma crescente como a especialização se

começou a fazer sentir no desenvolvimento do conhecimento científico moderno, com a

constituição de um cada vez maior número de disciplinas e subdisciplinas é, na

realidade, um fenómeno recente. Este fenómeno da especialização, com novas

disciplinas a emanciparem-se das anteriores, reclamando a sua completa autonomia face

a todas as outras, teve como resultado a fragmentação do universo teórico numa

multiplicidade crescente de especialidades desligadas entre si. Esta progressiva

especialização – cujo valor em termos de progresso científico é inquestionável – teve

como efeito o desmembramento de cada ciência, “desintegrando a sua própria unidade

interna até a pulverizar em secções superespecializadas, fechadas sobre si, que muitas

vezes se ignoram mutuamente” (Pombo, 2004: 74).

Como mostra Olga Pombo (2004), o fenómeno da especialização e fragmentação

disciplinar fazem-se sentir a diversos níveis da ciência contemporânea, nomeadamente

nas suas formas institucionais, na sua dimensão cultural e na sua capacidade heurística.

Do ponto de vista institucional, o trabalho científico realiza-se actualmente numa

enorme e devastadora organização dividida internamente por inúmeras comunidades e

agregados competitivos, cada qual com os seus congressos, as suas revistas, os seus

financiamentos. Na sua dimensão cultural, é amplamente reconhecido o efeito de

empobrecimento cultural que o fenómeno da especialização implica. Saber mais sobre

uma parcela cada vez menor da realidade obriga a saber cada vez menos sobre tudo o

que está para além desse pequeno canto do universo. Como dizia Oppenheimer num

texto de 1955, “hoje, não são só os nossos reis que não sabem matemática mas também

os nossos filósofos não sabem matemática e, para ir mais longe, são também os nossos

matemáticos que não sabem matemática. Cada um deles conhece apenas um ramo do

assunto e escutam-se uns aos outros com um respeito fraternal e honesto” (cit. in

Pombo, 2004: 141-142). Finalmente, em termos heurísticos, é possível dizer que, cada

13

vez mais, o progresso do conhecimento científico se fica a dever ao cruzamento de

diversas áreas disciplinares.

De facto, como contraponto a uma especialização e fragmentação cada vez mais

pronunciadas, “o progresso da ciência, sobretudo a partir da segunda metade do século

XX, deixou de poder ser pensado como linear. Num número cada vez maior de casos,

deixou de resultar de uma especialização cada vez mais funda mas, ao contrário e cada

vez mais, depende da fecundação recíproca de diversas disciplinas, da transferência de

conceitos, problemas e métodos, numa palavra, do cruzamento interdisciplinar”

(Pombo, 2004: 18).

Como diz Olga Pombo (2004), este momento corresponde ao deslocamento do modelo

analítico da ciência para o modelo interdisciplinar. De facto, o modelo em que se parte

do princípio de que existe um conjunto finito de elementos constituintes e que só a

análise desses constituintes permite reconstruir o todo é hoje claramente insuficiente.

Reconheceu-se a determinada altura que há muita coisa que a ciência produziu que já

não cabe neste programa. Por outras palavras, a constatação de que o todo não é igual à

soma das partes, de que a fragmentação disciplinar nunca é conclusiva, implica a

necessidade de procurar um complemento para a especialização, como seja uma

compreensão capaz de dar conta das perspectivas múltiplas que a ciência tem de

convocar para o conhecimento mais aprofundado dos seus objectos de estudo. Assim,

como indica Olga Pombo (2004), reconheceu-se a determinada altura que o próprio

progresso da especialização exigia o cruzamento entre domínios, exigia um olhar

transversal para domínios que aparentemente estavam afastados. É esta racionalidade

transversal, esta fertilização heurística de umas disciplinas por outras, que revela a

tendência para a unidade da ciência, que parecia estar a desaparecer, essa determinação

profunda que atravessa toda a história da ciência e que olhos menos atentos poderiam

pensar ter desaparecido sob o estilhaçar do conhecimento científico especializado (Cf.

Pombo, 2004: 15, 18-19).

Ainda segundo Olga Pombo (2004), a transformação epistemológica referida

anteriormente dá-se também a ver na metafórica com que a ciência sempre se deixou

pensar. “Desde a Antiguidade Clássica até ao Renascimento, a ciência teve na figura do

círculo a sua metáfora por excelência” (Pombo, 2004: 21). É o círculo do conhecimento

que não conhece hierarquias. Todos os pontos do círculo têm o mesmo valor, todos

14

estão à mesma distância do centro. “No século XVII [...] Descartes propôs (e impôs), a

imagem da árvore como metáfora da ciência. A ciência era uma árvore que tinha as suas

raízes na metafísica e cujo tronco se ramificava em diversos ramos, estes, por sua vez

em ramos menores, e assim sucessivamente” (Pombo, 2004: 22). As leis e teorias eram

representadas simbolicamente pelos frutos da árvore, localizadas nas terminações cada

vez mais finas da árvore da ciência. “Nos séculos XVIII e XIX, a ideia da árvore sofreu

já uma rotação decisiva. Transformou-se em chaveta” (Pombo, 2004: 22). Uma árvore

horizontal, sem sentido metafísico, com objectivos de funcionalidade classificativa.

Neste caso, a preocupação era o estabelecimento dos limites e posições relativas de cada

disciplina. Actualmente, a metáfora da ciência é a “rede, metáfora das conexões

múltiplas, heterogéneas e descentradas” (Pombo, 2004: 23). Ao contrário da metáfora

da árvore, onde havia uma estrutura hierárquica, simbolizada pelos ramos maiores e

menores, que correspondiam a disciplinas e subdisciplinas, temos agora uma rede sem

hierarquias. É este o campo de acção da interdisciplinaridade, é aqui que ela actua, sem

um ponto fixo, numa espécie de viagem onde a ideia que sobressai é a da combinatória.

Em termos da definição do conceito de interdisciplinaridade, convém notar que é difícil

dizer com exactidão o que é que a constitui e a distingue do conjunto dos conceitos que

a circundam. Porém, como mostra Olga Pombo (2004), é possível encontrar dois pontos

comuns a todas as definições: em primeiro lugar, elas são todas construídas a partir do

confronto do conceito de interdisciplinaridade e dos dois outros conceitos afins,

nomeadamente, os de pluridisciplinaridade e transdisciplinaridade; em segundo lugar,

neste confronto conceptual, a interdisciplinaridade ocupa invariavelmente uma posição

intermédia.

Assim, em termos gerais, e tendo em conta as dificuldades que surgem na definição de

qualquer um destes termos, os quais têm significados diferentes para diferentes autores,

é possível apresentar uma pequena definição de cada um deles, especialmente tendo em

conta que estas definições aparecem como fazendo parte de um conjunto coerente que

vai desde um nível menor a um nível mais elevado de integração, o que naturalmente

põe as coisas, de certa forma, em perspectiva, e ajuda a uma maior compreensão dos

termos.

A pluridisciplinaridade consiste na colocação em presença de diversas disciplinas que

concorrem para o estudo de um objecto sem modificar a sua visão das coisas e os seus

15

métodos próprios, não implicando, desta forma, uma síntese comum (Cf. Pombo, 2004:

37-38); a interdisciplinaridade pode então ser vista como a associação entre disciplinas

com a finalidade de estudar um objecto, mas tendo como objectivo final a elaboração de

uma síntese relativamente ao objecto comum. Neste sentido, e ao contrário da

pluridisciplinaridade, é necessário que se dê uma reorganização dos métodos de

investigação ou de ensino, supondo um trabalho continuado de cooperação entre os

investigadores ou os professores envolvidos. Assim, na interdisciplinaridade dá-se uma

complexificação da identidade do objecto de estudo através dos diferentes métodos das

várias disciplinas, métodos estes que são reestruturados de acordo com o objecto e,

portanto, poderão ser métodos totalmente inovadores ou inéditos, específicos para o

objecto em estudo (Cf. Pombo, 2004: 38); finalmente, a transdisciplinaridade é o nível

máximo de integração disciplinar, correspondendo a um nível onde, para além das

interacções ou reciprocidades entre investigações especializadas, e indo mais longe do

que a mera interdisciplinaridade, existe o objectivo de situar estas relações no interior de

um sistema total, que anularia as fronteiras estáveis entre as disciplinas. Esta ausência

de fronteiras entre disciplinas implicaria profundas alterações tanto nos dispositivos da

investigação como nos regimes de ensino, tanto na reestruturação das comunidades

científicas como na organização da instituição escolar (Cf. Pombo, 2004: 38-39).

Ainda segundo Olga Pombo (2004), encontramo-nos hoje perante uma situação

paradoxal. Por um lado, não há uma teorização que enquadre, explique e oriente as

múltiplas e diversas experiências e realizações interdisciplinares a que assistimos; por

outro, a interdisciplinaridade é uma prática incontornável da ciência contemporânea. Ela

traduz-se na realização efectiva de diferentes tipos de experiências interdisciplinares de

investigação (pura e aplicada) em universidades, laboratórios e departamentos técnicos;

ela traduz-se na experimentação e na institucionalização de novos sistemas de

organização, programas interdepartamentais, redes e grupos interuniversitários; ela

manifesta-se também na criação de diversos tipos de institutos e centros de investigação

interdisciplinar que, em alguns casos, como no Santa Fe Institute, se constituem mesmo

como pólo organizador de novas ciências. No fundo, “a interdisciplinaridade tende a

tornar-se um facto novo que, tanto no domínio da produção de conhecimento como no

domínio da sua transmissão, funda a sua necessidade na sua possibilidade. Como se, em

si mesma, a prática de confluência de saberes ostentasse, na sua descrição, o seu

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princípio de explicação, transformando o facto da interdisciplinaridade na sua própria

lei de inteligibilidade” (Pombo, 2004: 69).

Assim, como consequência das diversas práticas em que se funda, “a

interdisciplinaridade traduz-se na constante emergência de novas disciplinas que não

são mais do que a estabilização institucional e epistemológica de rotinas de cruzamento

de disciplinas. Este fenómeno não torna apenas mais articulado o conjunto dos diversos

«ramos» do saber [...] como o fazem dilatar, constituindo novos espaços de

investigação” (Pombo, 2004: 75).

Entre essas novas ciências, resultantes do reordenamento da cartografia dos saberes,

Olga Pombo (2004) propõe distinguir três tipos fundamentais: ciências de fronteira,

interdisciplinas e interciências.

As ciências de fronteira são “disciplinas híbridas, construídas na fronteira de duas

disciplinas tradicionais que estavam afastadas no que diz respeito à cartografia dos

saberes clássica e que, de repente, aparecem em confluência, em articulação. Dessa

articulação vem um grande proveito e uma novidade” (Pombo, 2004a). Este fenómeno

pode-se fazer sentir tanto no campo das ciências da natureza, e nesse caso temos o

exemplo da bioquímica, da biofísica, da geofísica, etc., como também no campo das

ciências humanas e sociais e, nesse caso, temos o exemplo da psicolinguística, da

psicossociologia, etc.

“Por interdisciplinas entendem-se as novas disciplinas que aparecem com autonomia

académica a partir de 1940/50 e que surgem do cruzamento de várias disciplinas

científicas com o campo industrial e organizacional” (Pombo, 2004: 76). Um caso

paradigmático deste tipo de ciências é a Operational Research, que apareceu com o

esforço de guerra, e o processo então desencadeado de chamar um conjunto de cientistas

para ensinar aos militares como usar o radar. Desencadeou-se então um processo

intenso de colaboração entre cientistas, engenheiros e militares que levou à rápida

institucionalização deste regime cooperativo como disciplina, em Inglaterra, nos anos

sessenta.

O terceiro tipo, que Olga Pombo (2004: 77) propõe designar por interciências, é

constituído por disciplinas que resultam, não da confluência de duas disciplinas

próximas no quadro geral dos saberes, mas da aglomeração de diversas disciplinas, que

17

unem esforços para enfrentar problemas novos (é o caso da ecologia ou das ciências da

complexidade) ou impossíveis de reduzir à lógica fragmentar (ciências cognitivas).

De facto, se não temos uma teorização consistente que legitime a ideia de

interdisciplinaridade e lhe determine um verdadeiro programa de trabalhos, se é difícil

descrever o que poderá ou deverá ser exactamente uma investigação interdisciplinar, no

entanto, como acabei de referir anteriormente, tal não impede a realização de

experiências de diversos tipos, o ensaio de modelos e de métodos de trabalho

interdisciplinares. São essas práticas efectivas que permitem a emergência dos

diferentes arranjos disciplinares do tipo anteriormente referido.

Olga Pombo (2004) propõe distinguir cinco tipos de práticas interdisciplinares: 1) as

práticas de importação surgem do reconhecimento da necessidade de transcender

fronteiras disciplinares de forma a entender da melhor forma o objecto em estudo. Isto é

feito a partir da importação de conceitos, métodos e instrumentos de outras disciplinas a

favor de uma disciplina “importadora”. Esta disciplina submete os dispositivos

importados à sua própria lógica, manipulando-os e transfigurando-os (Cf. Pombo, 2004:

92-93); 2) as práticas de cruzamento são “relativas a problemas que, tendo a sua origem

numa determinada disciplina, irradiam para outras [...] Neste caso dá-se uma

fecundação recíproca das disciplinas envolvidas. Na medida em que cada disciplina é

incapaz de esgotar o problema em análise, a interdisciplinaridade traduz-se na abertura

intrínseca de cada disciplina a todas as outras, na disponibilidade de cada uma das

disciplinas envolvidas se deixar cruzar e contaminar por todas as outras” (Pombo, 2004:

93-94); 3) nas práticas de convergência, ao contrário das práticas de importação, não há

transferência de conceitos ou metodologias entre disciplinas e, ao contrário das práticas

de cruzamento, não há irradiação de problemas entre disciplinas. Trata-se aqui de

associar várias disciplinas no estudo de um problema específico, sendo que cada

disciplina utiliza o seu método específico. É, digamos, uma forma de termos uma

quantidade de pontos de vista diferentes relativamente a um objecto, para o entender

melhor sob as suas diversas vertentes; 4) as práticas de descentração têm a sua origem

“na irrupção de problemas impossíveis de reduzir às disciplinas tradicionais [...] A

interdisciplinaridade pode então ser dita descentrada, ou circular, querendo com isto

dizer que não há propriamente uma disciplina que constitua o ponto de partida ou

irradiação do problema, ou que seja o ponto de chegada do trabalho interdisciplinar. Há

um policentrismo de disciplinas ao serviço do crescimento do conhecimento.

18

Interdisciplinaridade que pode dar origem não tanto a novas disciplinas, como a

constelações de disciplinas, algo de que [...] as ciências cognitivas são exemplo

eloquente” (Pombo, 2004: 95-96); 5) por fim, temos as práticas de comprometimento,

que “visam questões vastas e difíceis, questões que resistem a todos os esforços

desenvolvidos ao longo dos séculos para a sua solução, mas que reclamam soluções

urgentes” (Pombo, 2004: 96). Neste caso, não se trata apenas de uma troca de

informações e métodos, mas de fazer circular um saber, explorar todas as suas possíveis

complementaridades, explorar possibilidades de “polinização cruzada” para encontrar

soluções técnicas para problemas como a questão da origem das partículas, a questão da

matéria e da energia, a questão da vida, da existência...

Estamos pois perante uma série de fenómenos em cadeia: fragmentação disciplinar,

consciência dos limites do modelo analítico da ciência, constituição de novas disciplinas

e novas cartografias do saber, proliferação de práticas interdisciplinares. Em paralelo, é

também a estrutura organizativa da ciência que se altera. É certo que a

institucionalização do trabalho de investigação, potenciada pelo esforço de guerra,

permitiu um grande aumento do número de investigadores devido aos enormes

financiamentos, à criação de grandes centros de investigação e outras instituições

geridas de forma empresarial e à profissionalização da actividade científica. No entanto,

os efeitos adversos desta mudança de tipo de actividade científica rapidamente se

fizeram sentir. Os cientistas, que anteriormente se limitavam a ter conflitos sobre

aspectos teóricos, ou sobre questões de prioridade, passaram a entrar numa competição

directa acerca da disciplina ou da área de investigação de cada um. Assim, para o

cientista, o que passou a importar não foi tanto a solução de um mesmo problema, mas

provar que o seu tema de investigação era mais importante que o dos outros, de forma a

garantir mais financiamentos. Assim, são os próprios cientistas, ou as instituições onde

eles se inserem, que têm interesse em extremar as diferenças entre os diversos domínios

científicos, em fragmentar cada disciplina numa poeira de especialidades que cada qual

defende a todo o custo.

No entanto, apesar deste tipo de perigo, fruto da necessidade que os cientistas têm de

preservar fronteiras e afirmar o valor das mesmas para garantir investimentos, convém

notar que estes investimentos surgem geralmente pela procura do novo. É aqui que a

interdisciplinaridade revela o seu potencial heurístico. Por um lado, “porque as novas

disciplinas não estão sujeitas aos constrangimentos e censuras próprias de uma

19

investigação disciplinar, elas podem [...] fazer uma exploração livre de métodos,

critérios e procedimentos. Podem unir-se e separar-se com grande mobilidade, transferir

metodologias” (Pombo, 2004: 153). Por outro lado, porque a criação científica e a

própria inventividade depende em grande medida da capacidade de um olhar

transversal. Nesse sentido se pode dizer que a interdisciplinaridade não faz mais do que

realizar, pela prática de cruzamento de saberes, aquilo que, até ao início do século,

constituía o ponto de partida da criação científica: a formação pluridisciplinar. Como

recorda Gilbert Durand, “os sábios criadores do fim do século XIX e dos dez primeiros

anos do século XX (esse período áureo da criação científica em que se perfilam nomes

como os [...] Curie, Rutherford, Pasteur, Max Planck, Bohr e Einstein) tiveram todos

uma formação largamente pluridisciplinar, herdeira do velho trivium [...] e do

quadrivium [...] medievais” (cit. in Pombo, 2004: 154).

Note-se que a interdisciplinaridade não consiste em unificar as disciplinas pela redução

das diferenças. A unidade da ciência interdisciplinar não tem nada a ver com os

programas reducionistas. O aspecto essencial da perspectiva reducionista é a afirmação

de que uma teoria é capaz de fazer tudo o que outra faz, mostrando que teorias de alto-

nível (ou teorias reduzidas) são apenas casos particulares de teorias mais globais e

fundamentais de baixo-nível (teorias redutoras). Assim, a redução pode mostrar como

várias ciências podem ser descritas como fazendo parte de um quadro teórico coeso,

sendo que isto implica uma forma de ligação entre as teorias (Cf. Kincaid, 1990: 576).

Não é esta unidade da ciência que defendo. O que me importa é uma unidade da ciência

baseada no cruzamento de conhecimentos, um processo de fecundação recíproca entre

disciplinas, de “transferência de conceitos, problemáticas e métodos com vista a uma

leitura mais profunda da realidade” (Pombo, 2004: 155), e não uma unidade baseada na

progressiva redução de leis, teorias ou mesmo linguagens científicas às leis, teorias ou

linguagem de uma disciplina que, em último caso, consegue explicar todas as outras,

como a física, se estivermos a falar de um fisicalismo reducionista.

Como mostra Olga Pombo, tal não impede – antes implica – o reconhecimento de que,

afinal, a interdisciplinaridade é “a manifestação actual da ideia de unidade das ciências,

invariante que atravessa a história da civilização e da cultura [...], movimento lento,

mudo, vasto que, em permanente tensão com a tendência contrária à especialização,

opera em profundidade, guiando insensivelmente aquilo que à superfície não é senão

20

um emaranhado de disciplinas, aparentemente ligadas por meras peripécias políticas ou

episódios institucionais ” (Pombo, 2004: 157).

Ou seja, a interdisciplinaridade é, não apenas um fenómeno recente de resposta à

especialização do conhecimento científico que teve a sua origem no século XIX, e

alcançou a sua exponenciação máxima no século XX, mas um efeito de superfície que

deve ser pensado e reenviado ao contexto mais profundo da unidade da ciência.

21

1.3. Figuras da unidade da ciência

Em estreita relação com o fenómeno da interdisciplinaridade, encontramos as figuras da

unidade da ciência como descritas por Olga Pombo no livro Unidade da Ciência –

Programas, Figuras e Metáforas (2006). Trata-se de um conjunto de formas

institucionais, ou dispositivos materiais que garantem a articulação dos saberes e

impedem a infinita especialização e pulverização das ciências. São as configurações

materiais pelas quais a unidade da ciência tem sido e continua a ser perseguida de forma

mais ou menos intensa. São “instituições em sentido lato que, comportando uma

dimensão ao mesmo tempo universal e concreta, traduzem um modo de visar a ideia de

unidade da ciência e de realizar transitoriamente essa unidade” (Pombo, 2006: 135). São

elas a república dos sábios, a escola, a biblioteca, o museu e a enciclopédia (Cf. Pombo,

2006: 135).

Estas figuras, e as instituições e práticas que lhes correspondem, mantêm entre si fortes

relações de interdependência e complementaridade. Segundo Olga Pombo, elas

organizam-se numa “estrutura interna densamente articulada [...] onde cada elemento

ostenta, de forma regulada, a sua própria necessidade no todo de que faz parte” (Pombo,

2006: 197).

Figura 1. Poliedro de articulação das figuras da unidade da ciência (reprodução de figura presente em Pombo, 2006: 197).

A biblioteca, por exemplo, estabelece uma relação de interdependência com a

comunidade dos sábios, pois só é concebível a sua existência no seio de uma

comunidade de investigadores que produzem os livros, as revistas, os papers científicos,

22

as cartas, os documentos que a biblioteca guarda. Por outro lado, a república dos sábios,

ou comunidade científica, também não poderia existir sem a biblioteca, caso contrário,

os homens de ciência teriam apenas acesso ao que os investigadores mais próximos

dissessem e produzissem, o que os impediria de conhecer o passado da sua disciplina e

de ter acesso aos conhecimentos adquiridos pelas outras disciplinas, pelo menos por

algumas. Isto é, sem a biblioteca, não haveria acesso nem às grandes obras do passado,

nem às grandes obras do presente.

Como escreve Olga Pombo:

“É assim que a biblioteca, por exemplo, só encontra realidade na apropriação da sua

memória por uma comunidade de investigadores ou na sua tradução metonímica na

enciclopédia. Por seu lado, sem enciclopédias, enquanto condensações ordenadas da

totalidade do saber, as bibliotecas rapidamente se teriam transformado em labirintos de

horror para os não iniciados. Horror esse que teria tornado inviável a própria ideia de

escola e de aprendizagem. Por outro lado, podemos perguntar, como se suportaria a

condensação das bibliotecas no interior das enciclopédias se tal acontecesse à margem

da experiência das coisas mesmas, nas suas versões cristalizadas, embalsamadas ou

simplesmente fossilizadas recolhidas no museu? Ou ainda, como seria possível iniciar a

leitura de uma simples entrada de uma enciclopédia se ela não nos reenviasse à memória

da nossa língua e de tudo o que aprendemos, à memória de todos os mapas e de todas as

aulas?” (Pombo, 2006: 198)

Assim, vemos que as cinco figuras da unidade da ciência se encontram articuladas numa

teia muito espessa. Como mostra Olga Pombo no Livro Enciclopédia e Hipertexto

(2006a), o que se passa hoje com a Internet é bem eloquente dessa estreita articulação

que, cada vez mais, une as figuras da unidade da ciência. A Internet surge como um

prolongamento da enciclopédia, ou melhor, como uma enciclopédia cada vez mais

vasta, mais rápida e com uma capacidade de actualização cada vez maior. Isto torna a

Internet um instrumento tão poderoso que a antiga enciclopédia começa a perder o seu

lugar, mas apenas para dar lugar a uma “enciclopédia” poderosíssima com uma

capacidade de integração de conhecimentos maior ainda e que abre novas e

insuspeitadas portas ao desenvolvimento científico. Alem disso, a Internet apresenta-se

como uma ferramenta eficaz de conglomeração de todas as restantes figuras da unidade

da ciência. “Por ela passam os destinos, não apenas da enciclopédia, cujo regime

23

combinatório e heurístico prolonga, da comunidade científica cuja comunicação hoje se

efectua em grande parte por seu intermédio, da biblioteca que, sob os nossos olhos,

vertiginosamente se transforma numa instituição electrónica universal, do museu

(virtual) que ela tende a tornar universalmente acessível, enfim, da escola que ela está a

transformar profundamente” (Pombo, 2006: 308)

Vemos assim que as figuras da unidade da ciência constituem uma espécie de “subsolo

que simultaneamente conglomeram e unificam os conhecimentos e, ao mesmo tempo,

criam condições para o desenvolvimento da ciência” (Pombo, 2004b). Ou seja, na sua

interdependência e complementaridade, as figuras da unidade da ciência permitem que

as ciências se articulem, se unifiquem, mantenham entre si conexões múltiplas. Por

outro lado, criando as condições materiais e institucionais em que a ciência se produz,

essas figuras permitem tanto o desenvolvimento das ciências já estabelecidas, como a

criação de novas ciências.

24

2. A emergência da bioquímica – um exemplo de interdisciplinaridade

2.1. Uma ciência de fronteira

O primeiro aspecto relativo à questão da relação da bioquímica com as práticas

interdisciplinares que me parece importante esclarecer é a definição do tipo de

disciplina em questão. Neste sentido, o título da dissertação indica já qual a

caracterização que proponho: a bioquímica é uma ciência de fronteira.

Trata-se de uma afirmação relativamente simples, pois surge directamente da definição

daquilo que é uma ciência de fronteira: “uma nova disciplina constituída na interface de

duas disciplinas tradicionais” (Pombo, 2004: 75), sendo estas duas disciplinas a biologia

e a química. Porém, logo aqui se poderiam levantar algumas questões, uma vez que as

disciplinas que estão na raiz da bioquímica são, mais especificamente, a fisiologia,

como ramo especializado da biologia que trata das funções dos organismos vivos e da

constituição desses mesmos organismos, e, no caso da química, embora tanto a química

orgânica como a química inorgânica estejam presentes nos processos da vida, seja

necessário salientar a ligação forte existente entre a química orgânica e a bioquímica,

tanto no que diz respeito a razões históricas relativas à emergência da bioquímica,

àquilo que foi e que é o campo de estudos da química orgânica e às relações

institucionais fortes que por vezes se estabeleceram entre as disciplinas, sendo que, no

que diz respeito a todos estes aspectos que referi, a mesma coisa se pode dizer

relativamente às relações que se desenvolveram entre as disciplinas da fisiologia e da

bioquímica, ou entre os campos de estudo fisiológico e bioquímico. No entanto, é

necessário salientar que estas ligações fortes entre disciplinas ou entre campos de estudo

que refiro são tudo menos lineares. Na realidade, os contornos que envolveram a

emergência da bioquímica são marcadamente variados em vários aspectos, isto apesar

da relativa facilidade de caracterização da bioquímica em termos de novos tipos de

arranjos disciplinares, como referi inicialmente.

Na realidade, a bioquímica não surgiu num determinado dia, fruto de uma iniciativa

individual e no interior de uma realidade institucional específica. Ela surgiu como

25

resultado de um desenvolvimento complexo que culminou, em última instância, com a

emergência da bioquímica como disciplina com domínio científico próprio. Para além

disso, importa referir que, após esta emergência disciplinar, como é natural, os estudos

bioquímicos realizados em diferentes locais ou realidades institucionais incidiram sobre

questões muito variadas, devido às raízes históricas da disciplina, as quais, como disse,

foram diferentes em diferentes locais.

Assim, no que diz respeito ao desenvolvimento da bioquímica que levou à emergência

da disciplina (refiro-me ao desenvolvimento pré-paradigmático, utilizando a

terminologia de Thomas Kuhn), é necessário dizer que este comporta uma grande

variedade de contextos institucionais. As disciplinas da fisiologia e da química, ou da

química orgânica, tiveram uma importância que variou com o local e o momento em

que se realizaram estudos que se podiam designar já de bioquímicos (isto embora a

disciplina ainda não apresentasse um domínio científico próprio, ou, utilizando a

terminologia de Kuhn, ainda não tivesse o seu primeiro paradigma). Estes estudos

bioquímicos “pré-paradigmáticos” desenvolveram-se no âmbito de uma variedade de

disciplinas, como a química fisiológica, a química médica, a química patológica, etc., as

quais estão também ligadas a diferentes locais e realidades institucionais.

Para além dos aspectos referidos anteriormente, é necessário dizer que os estudos pré-

paradigmáticos que levaram à emergência da bioquímica prolongaram-se ao longo de

um espaço cronológico bastante alargado (sensivelmente desde o início do século XIX

até cerca de meados do século XX. Mais concretamente, no meu entendimento, até aos

anos trinta do século XX, altura em que penso que a bioquímica alcançou o seu

primeiro paradigma, como explicarei no ponto 2.2.2.), tendo sido os protagonistas um

leque muito variado de investigadores com bases académicas ou profissionais na

química, na fisiologia, na biologia, na física, na medicina, etc.

Mas a partir de que momento é possível dizer que esses investigadores eram

bioquímicos? Em que circunstâncias os estudos desses investigadores podem ser

considerados no âmbito dessa disciplina?

Na realidade, mais à frente no trabalho (no ponto 2.2.2.), afirmo que a emergência da

bioquímica como uma disciplina madura, uma disciplina com o seu domínio científico

próprio, se deu por volta dos anos trinta do século XX. Mas, não é exclusivamente a

26

partir desta data, como referi anteriormente, nem mesmo a partir do momento em que

apareceu uma disciplina já com a designação de “bioquímica” (o que sucedeu antes do

momento em que eu penso que se deu a emergência da disciplina já com o seu primeiro

paradigma), que me parece ser possível falar em bioquímicos, em estudos bioquímicos,

ou em disciplinas que faziam já parte da família da bioquímica, disciplinas onde se

discutiram problemas que se podem designar já de bioquímicos. Estou a falar de

disciplinas como as mencionadas anteriormente, tais como a química fisiológica, a

química médica ou a química patológica, as quais eram já “bioquímica”. Na realidade,

eu, tal como Kohler (1982: 9), indico a existência de duas “bioquímicas”. Por um lado,

utilizo o termo “bioquímica” para designar todos os grupos históricos ou disciplinas,

tais como as que referi anteriormente e outras, cujo âmbito de estudo são as questões

bioquímicas. Por outro lado, utilizo igualmente o termo “bioquímica” para referir-me à

própria disciplina que apareceu com esta designação, a qual faz também parte,

naturalmente, do grupo que referi anteriormente.

Então, a discussão bioquímica, no meu entendimento, começou sensivelmente a partir

do início do século XIX. É a partir desse momento que falo em estudos bioquímicos.

Desta forma, os investigadores que referi atrás, com bases académicas em diversas

áreas, que desenvolveram esforços continuados no âmbito dos estudos bioquímicos, os

quais, como referi, se iniciaram antes da emergência da disciplina já com o seu primeiro

paradigma e antes também do aparecimento de uma disciplina com a designação

“bioquímica”, são investigadores que, no meu entendimento, se podem denominar já de

bioquímicos.

Concluindo, o que estou a dizer é que os estudos que designo de bioquímicos, os quais

se realizaram antes de termos o primeiro paradigma da disciplina, têm importantes

características semelhantes aos estudos bioquímicos que se desenvolveram depois deste

momento, o que é natural, de tal forma que disciplinas como as que referi

anteriormente, tais como a química fisiológica, a química patológica e a química

médica, as quais tiveram uma grande importância no momento pré-paradigmático do

desenvolvimento da bioquímica, importância que variou consoante o local e a realidade

institucional, continuaram também a ter esta mesma importância (variável consoante o

local e a realidade institucional) após o momento da emergência da bioquímica. Claro

que, com o tempo, os estudos foram tomando novas formas devido às novas técnicas e

às novas descobertas que foram sendo produzidas, e, também ao longo do tempo, as

27

designações das disciplinas foram-se alterando, de tal forma que todo um grande

conjunto de disciplinas com as mais variadas designações, as quais tinham como

domínio disciplinar o campo de estudos bioquímicos, se apresentavam já, no princípio

do século XX, simplesmente com a designação “bioquímica”. Então, o momento em

que eu penso que se deu a emergência da bioquímica (o qual não é, naturalmente,

consensual), não é, de forma alguma, um momento de corte total com o passado, com o

consequente aparecimento de estudos completamente diferentes, é um momento de

clarificação de determinados aspectos bioquímicos que proporcionou a esta disciplina

um domínio científico próprio (desenvolverei este aspecto com mais atenção no ponto

2.2.2.), sendo que os estudos que se passaram a fazer após esta “clarificação”,

apresentam semelhanças importantes relativamente aos estudos bioquímicos “pré-

paradigmáticos”.

Assim, neste ponto em que estabeleci que os estudos bioquímicos realizados pré e pós

paradigma têm semelhanças importantes, importa perguntar: que características são

estas que tornam semelhantes estes dois tipos de estudos? O que são, no fundo, estudos

bioquímicos? Estas são questões que tentarei esclarecer ao longo do ponto seguinte do

trabalho1.

1 Gostaria de clarificar que, em todos os pontos do trabalho onde falo sobre a emergência da bioquímica, me estou a referir à emergência da disciplina com domínio científico próprio, ou seja, ao momento em que a bioquímica alcançou o seu primeiro paradigma, e não ao momento em que se iniciaram os estudos bioquímicos, ou que passámos a ter uma área de estudos bioquímicos, o que, no meu entendimento, sucedeu num período anterior.

28

2.2. Práticas interdisciplinares

Um dos aspectos que referi anteriormente, e que exige um estudo mais aprofundado, é a

questão das práticas interdisciplinares que estiveram na base dos desenvolvimentos

bioquímicos que culminaram na emergência da bioquímica. No que diz respeito a esta

questão, o meu ponto de partida para o estudo das relações que se estabeleceram entre a

química e a biologia, e que possibilitaram a emergência da bioquímica, é o conceito de

Thomas Kuhn relativo ao desenvolvimento pré-paradigmático. Segundo Kuhn, este

momento em que ainda não se estabeleceu um paradigma relativamente a determinada

disciplina, é caracterizado pela existência de conflitos entre diferentes escolas, que

entram em competição. Isto acontece numa altura em que a recolha de factos

relativamente a determinada questão científica se assemelha muito a uma actividade ao

acaso, sendo que, a determinada altura, as divergências entre as diferentes escolas se

desvanecem. Geralmente, isto é causado pelo triunfo de uma das escolas pré-

paradigmáticas, a qual, devido às suas próprias crenças e preconceitos característicos,

enfatizava apenas alguma parte do material demasiado numeroso e desordenado (Cf.

Kuhn, 2007: 32, 35, 37).

Segundo Kuhn, e no que diz respeito ao caso da óptica física, as transformações de

paradigmas desta ciência que se desenvolveram após a óptica de Newton, e que

culminaram na ideia que temos actualmente acerca da luz, a qual é resultado dos

estudos desenvolvidos por Planck, Einstein e outros, apenas no princípio do século XX,

são revoluções científicas, sendo este o padrão normal de desenvolvimento. No entanto,

como refere o autor, este não foi o padrão normal de desenvolvimento antes da óptica de

Newton, o primeiro paradigma desta ciência (Cf. Kuhn, 2007: 31-32).

Assim, segundo Kuhn, no que diz respeito ao desenvolvimento pré-paradigmático da

óptica física, a situação é então a seguinte:

“Nenhum período entre a antiguidade remota e o fim do século XVII exibiu uma única

concepção da natureza da luz que fosse geralmente aceite. Em vez disso, havia um bom

número de escolas e subescolas em competição [...] Um grupo considerava a luz como

sendo composta de partículas que emanavam dos corpos materiais, outro [grupo]

explicava a luz em termos de uma interacção do meio com uma emanação do olho [...]

29

Cada uma das escolas retirava forças da sua relação com alguma metafísica

determinada” (Kuhn, 2007: 32).

“Em épocas diferentes, todas estas escolas fizeram contribuições significativas ao corpo

de conceitos, fenómenos e técnicas dos quais Newton extraiu o primeiro paradigma

quase uniformemente aceite na óptica física. Qualquer definição de cientista que exclua

os membros mais criadores destas várias escolas excluirá igualmente os seus sucessores

modernos. Aqueles homens eram cientistas. Contudo, qualquer pessoa que examine

uma amostra da óptica física anterior a Newton poderá perfeitamente concluir que,

embora os investigadores dessa área fossem cientistas, o resultado líquido das suas

actividades foi algo menos que ciência. Por não serem obrigados a assumir um corpo

qualquer de crenças comuns, cada autor de óptica física sentia-se forçado a construir

novamente o seu campo de estudos desde os fundamentos. A escolha das observações e

das experiências que sustentavam tal reconstrução era relativamente livre. Não havia

qualquer conjunto padrão de métodos ou de fenómenos que todos os investigadores da

óptica se sentissem forçados a empregar e explicar [...] Hoje em dia, esse padrão é

familiar a numerosos campos de estudo criadores e não é incompatível com invenções e

descobertas significativas, contudo, esse não é o padrão de desenvolvimento que a

óptica física adquiriu depois de Newton e nem aquele que outras ciências da natureza

tornaram familiar hoje em dia” (Kuhn, 2007: 32-33).

Segundo Kuhn, esta é a situação típica. No entanto, como Kuhn reconhece, há algumas

excepções. E a bioquímica é uma delas. De facto, como Kuhn escreve: “excluindo áreas

como a matemática e a astronomia, nas quais os primeiros paradigmas estáveis datam da

pré-história, e também aquelas, como a bioquímica, que surgiram da divisão e

combinação de especialidades já amadurecidas, as situações esboçadas acima [(Kuhn

está a referir-se ao caso da física óptica falado anteriormente e a outros exemplos, que

refere no seu livro A Estrutura das Revoluções Científicas (2007), com características

semelhantes ao caso da física óptica)] são historicamente típicas. Sugiro que desacordos

fundamentais de tipo similar caracterizaram, por exemplo, o estudo do movimento antes

de Aristóteles e da estática antes de Arquimedes, o estudo do calor antes de Black, da

química antes de Boyle e Boerhaave e da geologia histórica antes de Hutton” (Kuhn,

2007: 35, sublinhados nossos).

30

Ou seja, Thomas Kuhn diz explicitamente que, no que diz respeito à bioquímica, não se

dá um desenvolvimento pré-paradigmático, porque esta área de estudos surge da

confluência de duas ciências maduras.

Ora, neste ponto, atrevo-me a não concordar com Kuhn. É preciso notar que a

emergência da bioquímica não se realizou de uma forma linear, como já referi. Os

contextos institucionais onde se realizaram esforços no domínio do desenvolvimento e

consolidação da disciplina não podiam ser mais distintos. Para além disso, é preciso

perceber, como diz Robert Kohler, que “a linguagem das disciplinas «híbridas» não nos

pode levar a pensar que a química e a biologia ou a medicina tiveram papéis

semelhantes ou simétricos na génese e no desenvolvimento da bioquímica. De facto,

elas não tiveram. A biologia e a medicina proporcionaram os problemas; a química

proporcionou os meios” (Kohler, 1982: 253). Mas aqui é preciso ter em conta que,

quando se diz que “a química proporcionou os meios” para a resolução dos problemas

biológicos, é preciso relembrar aquilo que referi no ponto 2.1., que é a questão da

importância da química orgânica no campo dos estudos bioquímicos. Assim, sobre este

tema, importa dizer que a química orgânica, disciplina que sempre teve e continua a ter

uma ligação muito forte com a bioquímica, e que, naturalmente, teve sempre um papel

fundamental em termos da resolução dos problemas biológicos ou médicos de que

Kohler fala, apenas emergiu como um ramo independente da ciência por volta de 1860,

muito depois de já se ter iniciado a discussão bioquímica. Antes desta altura, a química

orgânica estava fortemente ligada à fisiologia, não se sabia ainda que, tal como as

moléculas inorgânicas, os compostos orgânicos eram compostos de elementos presentes

em proporções fixas e múltiplas, e foi, de facto, nesta altura, em que ainda não haviam

estas noções, que começou esta área de estudos bioquímicos, foi nesta altura que se

começaram a desenvolver estudos que se podem designar de bioquímicos, onde

determinados aspectos biológicos começaram a ser esclarecidos através de técnicas

químicas. Neste sentido, parece-me difícil falar na ausência de um momento pré-

paradigmático na formação da bioquímica, quando a discussão sobre os fundamentos

desta disciplina começou muito tempo antes de estarem estabelecidas bases firmes na

química orgânica que permitissem sequer pensar em resolver com alguma eficácia os

problemas biológicos e médicos referidos por Kohler. Assim, contrariando as palavras

de Kuhn, podemos dizer que já existia uma área de estudos bioquímicos antes da

química orgânica aparecer como disciplina madura. E é neste ponto, em que temos

31

estudos bioquímicos a depender grandemente daquilo que era realizado no âmbito da

química orgânica, disciplina que ainda não tinha alcançado a sua maturidade, que existe

um período pré-paradigmático na bioquímica.

Ainda citando Joseph Fruton “quando se olha para trás relativamente às interacções que

se deram entre a química e a biologia desde 1800 até aos anos trinta do século XX [(e

note-se que apenas se deu a emergência da química orgânica como ramo independente

da ciência, sensivelmente com as características que hoje lhe reconhecemos, por volta

de 1860,)], talvez a característica mais marcante seja a forma como as explicações

moleculares dos fenómenos biológicos estavam limitadas pelo estado do conhecimento

químico. Eu creio que isso não é menos verdade hoje e, portanto, é importante para o

futuro da bioquímica que a química seja ainda uma ciência aberta, sujeita a posteriores

mudanças fundamentais” (Fruton, 1976: 332).

De facto, os aspectos que Kuhn refere relativamente ao momento pré-paradigmático,

caracterizado por conflitos entre escolas, são factos que encontramos facilmente nos

tempos que precederam a emergência da bioquímica como disciplina com domínio

científico próprio, altura em que tínhamos estudos bioquímicos, mas ainda não havia

sido alcançado o primeiro paradigma da disciplina, pois o mesmo também não havia

sucedido ainda com a química orgânica. Como mostra Joseph Fruton no seu paper

intitulado “The Emergence of Biochemistry”, publicado na revista Science em 1976, a

resolução do que actualmente chamamos de problemas bioquímicos implicou atitudes

muito diversas que, a partir de 1800, foram levadas a cabo. Fruton, neste seu paper,

indica a existência de uma continuidade, a partir de 1800, no esforço para resolver este

tipo de problemas, não como uma sucessão de conjecturas e refutações dentro de uma

disciplina científica específica, mas como uma complexa interacção entre a química e a

biologia, em que participaram vários tipos de cientistas. Sendo que o tipo de biologia

que interagiu mais directamente com a química, era aplicada na fisiologia animal e

vegetal, e na patologia, farmacologia e embriologia associadas a estas.

32

2.2.1. Exemplos de conflitos entre escolas no desenvolvimento da bioquímica –

Química vs. Física e Teoria protoplasmática vs. Teoria enzimática da vida

Joseph Fruton sugere no seu paper de 1976 sobre a emergência da bioquímica que uma

característica essencial da interacção entre a biologia e a química referida anteriormente

foi a competição que se estabeleceu entre dois tipos de explicações moleculares para os

fenómenos biológicos: uma em que as moléculas eram consideradas como sendo

unidades de movimento físico e outra em que as mesmas eram vistas como unidades da

reacção química. No seu estudo sobre este tema, o autor aborda a questão da transição

que se realizou entre duas teorias. Falo da transição de uma crença generalizada na

teoria protoplasmática da vida para a teoria enzimática da vida. Assim, estes dois

assuntos abordados neste ponto do trabalho estão intimamente relacionados. Mas esta

relação, como passo a explicar, não é totalmente linear.

Assim, gostaria de clarificar que, no que diz respeito aos dois aspectos referidos

anteriormente (química vs. física e teoria protoplasmática vs. teoria enzimática da vida)

existiram, de facto, conflitos entre escolas. Neste caso, dois conflitos entre escolas que,

no entanto, apresentam alguns pontos de contacto, de forma que se torna mais claro

falar destes dois temas em conjunto. Na realidade, as explicações químicas e as

explicações físicas dos processos biológicos que se desenvolveram durante o século

XIX e princípios do século XX, não estão ligadas exclusivamente a cada uma das

teorias da vida enunciadas – a teoria protoplasmática e a teoria enzimática da vida.

Embora se possa dizer que o fisicalismo explicativo dos mecanismos biológicos não

teve um papel significativo no desenvolvimento da teoria enzimática da vida (muito

pelo contrário, a teoria enzimática da vida foi concebida inicialmente tendo como base

uma concepção puramente química dos aspectos da vida, embora mais tarde a química

física viesse a ter um papel importante na elucidação de vários aspectos biológicos,

como o mecanismo da acção enzimática), já no que diz respeito aos aspectos químicos

como factores explicativos dos fenómenos da vida, estes não foram definitivamente

apenas um aspecto fundamental no desenvolvimento da teoria enzimática da vida.

Também no que diz respeito à teoria protoplasmática da vida foram desenvolvidas

teorias químicas para a explicação de determinados aspectos biológicos. Desta forma,

33

podemos dizer que estamos perante dois conflitos entre escolas, que passo a explicar de

uma forma integrada.

Assim, depois desta nota, de forma a discutir a questão destes dois conflitos entre

escolas, objectivo deste ponto do trabalho, passo a referir alguns aspectos históricos im-

portantes relativos ao desenvolvimento e emergência da bioquímica que demonstram a

importância que estes conflitos entre escolas tiveram na emergência da disciplina. Como

guia para o estudo destes aspectos históricos, utilizo essencialmente o paper de Fruton

intitulado “The Emergence of Biochemistry”, publicado na revista Science em 1976, e

também o livro de Joseph Fruton intitulado Proteins, Enzymes, Genes: The Interplay of

Chemistry and Biology (1999), isto para além de recorrer também a outras fontes.

Assim, como refere Fruton (1976), na primeira década do século XIX, muitos médicos e

farmacêuticos encontravam-se empenhados no estudo químico das coisas vivas. Estes

investigadores tinham como um dos seus objectivos isolar os “princípios imediatos” de

plantas e animais, os quais consistiam em substâncias retiradas de fluidos biológicos ou

de extractos de tecidos sólidos de animais e plantas, na esperança de que a identificação

destes princípios imediatos esclarecesse alguns aspectos relevantes relativos à

organização biológica e à função fisiológica. Algumas destas substâncias identificadas

no início do século XIX, como a ureia, foram designadas de compostos orgânicos, pois

acreditava-se que elas eram produzidas pela acção das forças vitais dos organismos

vivos. Passados alguns anos tornou-se claro, contudo, como refere Fruton (1976), que

tal como as moléculas inorgânicas, os compostos orgânicos eram compostos de elemen-

tos presentes em proporções fixas e múltiplas, o que levou a que, por volta de 1860, se

completasse a unificação da química orgânica com a química inorgânica, devido ao

engenho químico de um grupo de químicos orgânicos liderados por Auguste Laurent,

que abriram caminho para o desenvolvimento de conceitos como a valência e a

estereoquímica. Isto significou que a química orgânica se apresentava agora como um

ramo científico independente, afastado da fisiologia. Esta ligação com a fisiologia havia

sido muito forte no início do século XIX, mas a verdade é que nos anos vinte desse

mesmo século, como refere Fruton (1976), começaram a realizar-se um grande número

de descobertas importantes no estudo da dinâmica química da função fisiológica; entre

elas, as experiências de Jean Louis Prévost e Jean Baptiste André Dumas relativas à

formação de ureia no corpo animal e também as experiências de Friedrich Wölher, que

foi capaz de sintetizar ureia em ambiente laboratorial, sem a necessidade de rins de

34

animais (Cf. Leicester, 1974: 154). Para além disso, “os novos conhecimentos químicos

sobre os princípios imediatos foram também aplicados a estudos sobre a digestão e ao

problema da oxidação de substâncias durante a respiração animal. [E] na fisiologia

experimental advogada por Magendie em França e Müller na Alemanha, os métodos e

conceitos químicos tomaram um papel central, sendo que, por volta de 1850, esta ênfase

já havia promovido a emergência de uma química fisiológica, ligada mais fortemente à

fisiologia médica do que à química pura” (Fruton, 1976: 328).

Mas, voltando à questão dos princípios imediatos, houve uma classe destas substâncias

que ocupou o centro da atenção biológica ao longo do século XIX, mas que suscitou

uma variedade de problemas à nova química orgânica. Foram as chamadas substâncias

albuminóides – albumina, caseína e fibrina – mais tarde conhecidas como proteínas,

termo introduzido num paper científico por Gerhardus Johannes Mulder, em 1838,

embora a palavra lhe tivesse sido sugerida pelo seu antigo professor, Jöns Jakob

Berzelius, no mesmo ano (Cf. Fruton, 1999: 171). Estas substâncias, susceptíveis a

alterações por acção química ou por acção do calor, eram consideradas não

cristalizáveis, e a sua composição elementar sugeria uma complexidade química, o que

as levou a ser excluídas da química orgânica. Apesar dos estudos sobre a constituição

química das proteínas terem continuado a ser desenvolvidos ao longo do século, fruto

da importância que os investigadores reconheciam a estas substâncias, a incerteza não

foi resolvida até ao final do século, incerteza esta que se tornou evidente em muitos

problemas fisiológicos, como nota Fruton (1976). Na realidade, como refere este autor,

esta incerteza tornou-se aparente no desenvolvimento da teoria protoplasmática da vida,

durante os anos trinta do século XIX.

Assim, para Theodor Schwann, o primeiro autor a formular uma teoria celular (ainda

que outros antes dele tivessem tentado alcançar determinados princípios gerais neste

campo, embora falhando), cuja principal característica era o reconhecimento de que a

formação das células era um princípio comum no desenvolvimento das plantas e dos

animais (Cf. Needham et al., 1992: 458), a célula representava uma unidade organizada

de actividade metabólica. Na ideia de poder metabólico de Schwann, a célula era

pensada como uma unidade dinâmica cujos componentes eram dotados de força

química (Cf. Fruton, 1976: 329). Já no subsequente desenvolvimento que se realizou no

âmbito da teoria celular, essencialmente por Thomas Huxley, a porção dinâmica da

célula tornou-se o protoplasma, cuja propriedade química mais característica era a sua

35

semelhança com a albumina, como refere Fruton (1976). Este carácter albuminóide do

protoplasma foi elevado, na famosa frase de Huxley, à base física da vida. Huxley

acreditava que, com o desenvolvimento da “física molecular”, todas as propriedades da

vida poderiam ser reportadas às propriedades químicas e físicas do protoplasma (Cf.

Fruton, 1976: 329). Convém notar que, no que diz respeito a estas propriedades

referidas, a visão de Huxley foi interpretada pelos vitalistas como sendo materialista,

num contexto científico onde as ideias vitalistas imperavam. Neste sentido, a maior

parte dos investigadores assumiram uma posição vitalista moderada. Na sua discussão

acerca do protoplasma, não restam dúvidas de que estavam a pensar nele como

constituindo uma única molécula, mesmo quando referiam algumas propriedades

químicas da sua composição. Só mais tarde, no final do século, é que as ideias vitalistas

começaram a sair da cena do pensamento biológico (Cf. Leicester, 1974: 152-153).

O impacto da teoria protoplasmática da vida no pensamento científico durante o século

XIX foi enorme e, por volta de 1870, processos como a respiração animal, a contracção

muscular ou a condução nervosa, eram considerados expressões das propriedades das

moléculas protoplasmáticas. Mas o que é que os fisiologistas queriam dizer com o

termo “molécula protoplasmática”? Essencialmente, após 1860, como refere Fruton

(1976), as explicações moleculares que os biólogos davam para os processos

fisiológicos tendiam a distinguir as moléculas como entidades físicas, onde as funções

biológicas eram vistas como expressão, por exemplo, de determinados movimentos ou

vibrações moleculares; ou como entidades químicas, onde as funções biológicas eram

consideradas como sendo consequência das diferentes propriedades específicas de

diferentes tipos de moléculas interagindo em reacções químicas, sendo que esta

aproximação implicava algum conhecimento acerca da estrutura química das moléculas

(Cf. Fruton, 1976: 329). Fruton refere inclusivamente que “a dicotomia entre os dois

tipos de especulação foi uma característica fundamental do pensamento biológico

durante a última metade do século XIX e princípios do século XX” (Fruton, 1976: 329).

Sensivelmente após 1860, nota Fruton (1976), o sucesso inquestionável de fisiologistas

com ideais físico-químicos como Hermann Helmholtz e Emil Du Bois-Reymond na

demonstração do poder explicativo daquilo que vieram a ser os primórdios da biofísica,

e a aparente incapacidade da química orgânica em elucidar a constituição do

protoplasma albuminóide, tornaram o modo fisicalista do pensamento biológico

claramente o mais atractivo. Ao virar do século, esta preferência encontrou expressão na

36

aceitação por parte dos biólogos da nova química física de Wilhelm Ostwald, baseada

na termodinâmica e na cinética (Cf. Fruton, 1976: 329).

Para além da grande importância desta disciplina no desenvolvimento da teoria química,

ela proporcionava explicações quantitativas para a química de colóides fundada por

Thomas Graham nos anos sessenta do século XIX. Graham estudou os processos de

difusão de determinadas substâncias. Este investigador reparou que as substâncias

albuminosas se difundiam muito devagar, enquanto que as substâncias cristalinas o

faziam muito rapidamente, tendo designado as primeiras substâncias de colóides, e as

últimas de cristalóides. Graham definiu o estado colóide como um estado dinâmico da

matéria, por oposição ao estado estático dos cristalóides, afirmando ainda que o estado

colóide possuía “ENERGIA”, podendo ser visto como a “fonte primária provável da

força patente nos fenómenos da vida” (cit. in Fruton, 1999: 167). Assim, como nota

Fruton (1976), “não é de estranhar que, numa altura em que o protoplasma albuminóide

era considerado como sendo a componente dinâmica das células vivas, e onde só

haviam incertezas no que diz respeito às estruturas celulares dos compostos celulares, a

química de colóides, [baseada em estudos físico-moleculares], tenha oferecido aos

biólogos um guia mais satisfatório para as explicações moleculares dos fenómenos

fisiológicos do que a química orgânica de Emil Fisher” (Fruton, 1976: 329),

investigador que, durante a última década do século XIX, trouxe para a química

enzimática o poder de uma disciplina que havia emergido há muito pouco tempo – a

química orgânica sintética.

Mas, ainda no contexto da teoria protoplasmática da vida, tal como Fruton (1976)

refere, foram igualmente desenvolvidas teorias químicas explicativas da actividade

intracelular durante o século XIX. Eduard Wilhelm Pflüger, por exemplo, sugeriu que a

oxidação intracelular era efectuada por uma proteína protoplasmática instável, rica em

energia, contendo grupos ciano, que se combinavam explosivamente com oxigénio

molecular, libertando dióxido de carbono. Na hipótese de Pflüger havia ainda uma

componente fisicalista, uma vez que o investigador propôs que as explosões referidas

provocavam vibrações intramoleculares. A popularidade das ideias de Pflüger

encorajaram outros investigadores, como Oscar Loew, a produzirem teorias variantes.

Loew, ao contrário Pflüger, atribuía aos grupos aldeído as propriedades dinâmicas da

proteína protoplasmática. Assim, para explicar o carácter do protoplasma rico em

energia, Pflüger e Loew reverteram aos conhecimentos que existiam na altura acerca da

37

reactividade elevada de alguns grupos químicos em pequenas moléculas orgânicas de

estrutura conhecida. Nesta mesma tradição química, foi também avançada uma hipótese

por parte de Paul Ehrlich, que afirmava que o protoplasma vivo era capaz de atrair para

si cadeias laterais, que representavam os agentes dos processos intracelulares. Neste

contexto, Max Verworn integrou e desenvolveu as ideias de Pflugër e Ehrlich, tendo

introduzido o termo “biogenio” para identificar o material proteico instável, rico em

energia, do protoplasma (Cf. Fruton, 1976: 329-330).

Durante a última parte do século XIX, altura em que as teorias discutidas anteriormente

relativas ao protoplasma eram bastante consideradas no seio da comunidade biológica,

um grupo de investigadores apresentava uma visão diferente e competidora

relativamente às referidas anteriormente. Este grupo “atribuía um lugar central na

dinâmica dos processos biológicos a catalisadores intracelulares não muito diferentes da

pepsina” (Fruton, 1976: 330). Note-se que, tal como refere Fruton (1976), a pepsina já

havia sido descoberta nos anos trinta do século XIX, por Shwann, no contexto das suas

investigações sobre a nutrição, tendo o investigador percebido que esta substância com

características albuminóides era responsável pela dissolução gástrica de proteínas

insolúveis, designando-a de catalisadora. Mas, nesta altura, havia ainda um grande

número de incertezas acerca desta substância, nomeadamente no que diz respeito à

natureza da sua estrutura química e à forma como actuava. Na realidade, essas

incertezas continuaram e, mesmo na altura em que o grupo de investigadores

mencionados anteriormente apareceu no final do século XIX com uma nova visão dos

processos biológicos, denominada teoria enzimática da vida (pelo facto dos

catalisadores referidos anteriormente terem passado a ser denominados de enzimas, a

partir de 1876, por sugestão de Willy Kühne), a natureza química dos catalisadores era

ainda incerta, mas era geralmente aceite pela vasta maioria dos investigadores que se

tratavam de produtos de degradação das proteínas protoplasmáticas e, assim, fora da

órbita da química orgânica (Cf. Fruton, 1976: 328-330).

Grande parte do debate que se estabeleceu em torno da teoria enzimática da vida andou,

como refere Fruton (1976), à volta da questão do processo pelo qual a levedura

fermenta a glucose para dar álcool e dióxido de carbono. Durante os anos trinta do

século XIX foram realizadas observações microscópicas que mostraram que os agentes

da fermentação alcoólica eram microorganismos, os quais se alimentavam do açúcar

que fermentavam. Este ponto de vista acerca da questão já havia sido levantado no

38

início do século, mas havia sido desconsiderado em favor da ideia de Justus Liebig,

segundo o qual o processo de fermentação era resultado da decomposição da matéria

albuminóide por acção do oxigénio, onde vibrações moleculares eram comunicadas às

moléculas de açúcar, provocando a clivagem de álcool e dióxido de carbono. Na teoria

de Liebig não havia lugar para catalisadores como a pepsina. “O envolvimento deste

tipo de agentes no processo da fermentação foi advogado, por volta de 1860, por alguns

químicos, nomeadamente por Traube e Berthelot, mas esta ideia deparou-se sempre, até

ao final do século, com a objecção de que, apesar de esforços continuados, ainda não

havia sido preparado um extracto celular, onde a estrutura celular fosse destruída, capaz

de provocar a fermentação” (Fruton, 1976: 330).

A teoria de Liebig sofreu apenas um grande abalo quando Pasteur descobriu que o

processo de fermentação se dava melhor na ausência de oxigénio, como refere Fruton

(1976). Mas, claro, Pasteur fez muito mais do que isso. Este investigador realizou um

trabalho exaustivo sobre os processos fermentativos de vários microorganismos, em

diferentes condições de alcalinidade, acidez, composição química do líquido, etc.,

aplicando critérios de pureza e de controlo cuidadoso das condições de crescimento ao

cultivo dos microorganismos, fazendo com que a química entrasse na microbiologia.

“Como consequência do seu trabalho e do de Koch, deu-se um desenvolvimento

explosivo no campo da microbiologia médica, o que veio a ter um impacto considerável

na química fisiológica do século XIX [...] Grupos de investigadores de química

fisiológica começaram a trabalhar nas actividades químicas de bactérias e nas toxinas e

enzimas que elas produziam. Após a descoberta das antitoxinas e da popularização da

soroterapia, durante a última década do século, uma nova disciplina, a imunologia,

emergiu como parte de uma bacteriologia aliada à química fisiológica” (Fruton, 1976:

330). É importante notar este facto, uma vez que aquela que havia sido a maior objecção

à teoria enzimática da vida, a incapacidade de preparar um extracto celular capaz de

provocar a fermentação, foi resolvida no contexto de experiências imunológicas. Eduard

Buchner, um químico orgânico, foi capaz de preparar um extracto celular de levedura,

onde a estrutura celular havia sido destruída, capaz de converter açúcar em álcool e

dióxido de carbono, quase por acaso, num contexto de experiências imunológicas onde

o seu irmão, Hans Buchner, tentava extrair antitoxinas de extractos microbianos (Cf.

Fruton, 1976: 330).

39

Na sequência desta descoberta, Eduard Buchner escreveu no seu famoso paper

científico de 1897: “[...] a iniciação do processo de fermentação não requer um aparelho

tão complicado como o representado pela célula da levedura. O agente responsável [...]

deve ser considerado como sendo uma substância dissolvida, sem dúvida uma proteína;

esta será denominada zimase” (cit. in Fruton, 1976: 330).

Apesar da descoberta de Buchner ter sido vista, por parte da comunidade de químicos

orgânicos, como uma prova de que a fermentação era um processo “químico” e não

“vital”, a validade deste argumento foi questionada por muitos biólogos. Não restam

dúvidas, como nota Fruton (1976), de que para muitos cientistas, a descoberta da

Buchner derrubou a divisão, existente no século XIX, entre os microorganismos vivos

responsáveis pela fermentação e os enzimas solúveis como a pepsina. A descoberta de

Buchner trouxe os processos da fermentação para o estudo enzimático. Por exemplo, já

se sabia, desde meados do século XIX, que as transformações químicas que ocorriam

durante a contracção muscular se assemelhavam às transformações que ocorriam na

fermentação microbiana em que a glucose era convertida em ácido láctico. Após 1910,

vários grupos, especialmente os associados a Gustav Embden e Otto Meyerhoff,

começaram a aplicar os resultados da levedura no tecido muscular, e a explicar as

transformações químicas ocorridas em ambos os sistemas biológicos em termos de uma

sequência unificada de reacções catalisadas por enzimas. No entanto, é preciso dizer que

durante as primeiras três décadas do século XX, como refere Fruton (1976), devido à

incerteza relativa à composição química dos enzimas, o estudo destes ainda era

dominado pelas explicações físico-moleculares da química de colóides, portanto, no

âmbito da teoria protoplasmática. A visão de que os enzimas eram proteínas era

questionada, sendo que estes, juntamente com as hormonas e as vitaminas, eram vistos

como sendo pequenas moléculas bioactivas adsorvidas em transportadores colóides não

específicos. As ideias de Fisher, referentes ao ano de 1890, sobre a especificidade

enzimática, por exemplo, onde era utilizada a analogia da chave e da fechadura, e que

tiveram uma grande importância em termos da sua influência no campo dos estudos de

cinética enzimática baseados na química física, os quais promoveram o

desenvolvimento de métodos para a definição quantitativa da especificidade dos

enzimas individuais, foram negadas pelo químico de colóides William Bayliss, vinte

anos mais tarde (Cf. Fruton, 1976: 330). Como nota Fruton (1976), as ideias destes

químicos de colóides dominaram este campo, de facto, durante os anos vinte do século

40

XX. Nesta altura, muitos bioquímicos questionavam o significado biológico de enzimas

existentes isoladamente e, indo na corrente das opiniões dominantes sobre a natureza

coloidal do protoplasma, consideravam-nos um artifício proveniente da “transformação

e degradação de uma única substância homogénea presente na vida”. Esta situação

apenas se alterou após 1930, com a cristalização da pepsina por parte de John Howard

Northrop, e com a aceitação de um vasto número de provas que a identificavam como

uma proteína (Cf. Fruton, 1976: 331). Na realidade, em 1934, John Desmond Bernal,

um pioneiro na cristalografia de raios-x, juntamente com Dorothy Crowfoot (mais tarde

Hodgkin), realizaram o espectro de difracção da pepsina, o primeiro espectro de

difracção satisfatório de uma proteína cristalina. Esta realização levou Bernal a afirmar

em 1934 que, “agora que foi possível tirar fotografias de raios-x de uma proteína, é

certo que possuímos os meios para as estudar e, através do exame da estrutura de todas

as proteínas cristalinas, chegar a conclusões muito mais detalhadas acerca da estrutura

proteica do que anteriores métodos físicos e químicos foram capazes” (cit. in Needham

et al., 1992: 334).

Após a descoberta de Northrop, “várias outras proteínas foram isoladas na forma de

proteínas cristalinas e, após 1945, a química dos enzimas tornou-se um ramo da química

das proteínas” (Fruton, 1976: 331).

Mas, para além da incerteza acerca da estrutura química dos enzimas e da sua

associação ao protoplasma das células vivas (pela teoria referida anteriormente, que

apontava à adsorção dos enzimas por transportadores colóides), a teoria enzimática da

vida encontrou outras objecções que não puderam ser resolvidas pela descoberta de

Buchner, como refere Fruton (1976). Mais concretamente, considerava-se que os

enzimas fora da célula eram apenas capazes de catalisar a parte do metabolismo

referente às degradações, sendo que os processos biossintéticos, onde determinadas

proteínas e outros constituintes celulares complexos eram formados, eram uma

propriedade do protoplasma vivo, e não um processo catalisado enzimaticamente. A

síntese da ureia no fígado, por exemplo, era considerada uma propriedade ligada à vida

porque só podia ser efectuada por tecido hepático vivo na presença de oxigénio, e não

por tecido desintegrado ou por extractos de tecido. Muitos bioquímicos, então, tendo

isto em conta, consideravam que a teoria enzimática da vida era irrelevante para o

estudo da actividade protoplasmática (Cf. Fruton, 1976: 331).

41

“Para outros, contudo, a descoberta de Buchner proporcionou um ímpeto para o estudo

do metabolismo de compostos orgânicos relativamente simples, cujas transformações

no organismo animal pudessem ser explicadas com base na nova química orgânica,

baseada na valência e na estereoquímica” (Fruton, 1976: 331).

Um tipo destes estudos baseava-se, em termos práticos, como refere Fruton (1976), na

administração a animais de compostos proporcionados pela nova química orgânica, e

posterior verificação dos produtos de excreção, de forma a perceber se se produziam

transformações, o que ocorria frequentemente. O objectivo destas experiências era

entender aquilo que veio a ser denominado “metabolismo intermediário”, e, de facto,

por volta de 1900, estes estudos já haviam proporcionado boas pistas no que diz respeito

aos intermediários das transformações metabólicas de açúcares, lípidos e aminoácidos.

Estes estudos metabólicos diferiam fundamentalmente de outro tipo de investigações

relativas à química fisiológica, que se podem designar de termoquímicas, onde o calor

produzido pelo corpo animal era relacionado com a entrada de oxigénio e saída de

dióxido de carbono, e com a quantidade e composição química da dieta e dos produtos

de excreção. Para Claude Bernard, contudo, os dois tipos de experiências mencionadas

anteriormente não diziam nada acerca daquilo que se passava no corpo animal. A

estratégia apropriada, segundo ele, era a utilização de cirurgia experimental e de

métodos químicos para descobrir a sequência de eventos da degradação ou síntese

metabólica de importantes constituintes celulares. De todas as formas, a partir de todos

estes tipos de estudos, que começaram a ter lugar sensivelmente a partir da última parte

do século XIX, começaram a emergir hipóteses acerca das vias metabólicas (Cf. Fruton,

1976: 331).

“Numa altura, então, em que as ideias da química física relativas à química de colóides

imperavam sobre o pensamento biológico, o estudo dos processos metabólicos, como o

catalisado pela zimase de Buchner, fortaleciam uma estratégia alternativa mais

fortemente ligada à química orgânica. Como Gowland Hopkins pôs o problema, em

1913, era uma questão de estudar «substâncias simples sendo submetidas gradualmente

a um conjunto de reacções», ao invés de especular acerca de grandes moléculas

protoplasmáticas. Claro que as ideias de Hopkins reflectiam a incerteza que imperava

nessa altura no que diz respeito à natureza dos enzimas, mas a ênfase que ele havia

posto na utilidade da química orgânica no domínio do estudo do metabolismo

intermediário, representou uma atitude que encontrou cada vez mais defensores no

42

campo da bioquímica. Isto tornou-se especialmente evidente nos anos trinta do século

XX, quando Krebs descobriu o ciclo da ureia, e quando Schoenheimer e Hevesy

introduziram a técnica dos isótopos para o estudo do metabolismo intermediário. Nessa

altura, era já reconhecido que os enzimas eram proteínas catalíticas e que o

metabolismo, incluindo os processos de biossíntese, consistia numa sequência

coordenada de reacções catalisadas por enzimas. Para além disto, também nos anos

trinta do século XX, os conceitos e técnicas da química orgânica estavam a ser

aplicados com sucesso na elucidação de muitos constituintes celulares importantes,

como os nucleótidos e os esteróides. No entanto, apesar do esmorecer do impacto da

química de colóides, a química física em que ela se baseava continuou a influenciar o

desenvolvimento da pesquisa relativamente à estrutura de proteínas e outras

biomoléculas, às oxidações biológicas e ao mecanismo da acção enzimática” (Fruton,

1976: 331).

Concluindo, neste caso específico estudado, parece bastante clara a existência de

conflitos entre escolas, como os relatados por Kuhn, no que diz respeito ao

desenvolvimento pré-paradigmático. Na realidade, essencialmente no que diz respeito à

teoria protoplasmática da vida, todas as teorias e investigações que foram realizadas

neste âmbito (e pode-se dizer que foram formuladas teorias tanto no campo da física

como no campo da química) parecem um pouco menos que ciência, essencialmente por

não haverem dados suficientes nessa altura relativamente aos assuntos sobre os quais se

estava a especular.

Mais tarde, no entanto, como refere Kuhn, dá-se o triunfo de uma das escolas. Neste

caso, dá-se tanto o triunfo da teoria enzimática da vida como o triunfo da química

orgânica, no que diz respeito ao estudo dos mecanismos biológicos, e esse triunfo dá-se

da forma descrita por Kuhn. A química orgânica como factor explicativo dos fenómenos

biológicos e a teoria enzimática da vida, surgiram inicialmente ainda num momento em

que não haviam provas que pudessem sustentar as crenças das pessoas que assumiam

estas posições, apareceram num momento em que, como Kuhn diz, os dados ainda eram

muito numerosos e desordenados. Mais concretamente, nessa altura, apenas haviam

incertezas no que diz respeito à estrutura dos enzimas e ao mecanismo de acção destas

mesmas substâncias. Apenas devido aos desenvolvimentos que se deram mais tarde, as

hipóteses destes grupos começaram a fazer mais sentido; mas estávamos já na presença

do paradigma da bioquímica?

43

2.2.2. Desenvolvimento no período pré-paradigmático – Visão linear vs. Visão

integrativa dos processos enzimáticos da vida

No que diz respeito às ideias de Kuhn no âmbito do desenvolvimento científico, só no

período pré-paradigmático é que se dá um verdadeiro progresso científico. A partir do

momento em que uma ciência tem já o seu primeiro paradigma, passa-se a dar um

desenvolvimento interno dentro dos paradigmas que é algo menos que um verdadeiro

progresso. É mais, como lhe chama Kuhn, um processo de resolução de puzzles. São

puzzles que é necessário resolver e que ampliam o raio de acção do paradigma,

constituindo estes puzzles o trabalho da ciência normal dos investigadores, sendo que as

bases para a resolução destes puzzles estão já contidas nos próprios paradigmas. A certa

altura podem-se verificar anomalias, as quais provocam revoluções científicas, que

fazem com que os paradigmas sejam modificados. Mas este processo, segundo Kuhn,

não representa um verdadeiro progresso científico, ou melhor, não significa que o

homem, através do novo paradigma, seja confrontado com uma maior verdade, embora

o novo paradigma seja normalmente mais eficaz na resolução de problemas que o

paradigma anterior. É neste ponto que muitos autores consideram que as posições de

Kuhn são relativistas.

Assim, posso dizer que se dá um verdadeiro progresso científico no que diz respeito aos

desenvolvimentos científicos que descrevi no ponto anterior, os quais dizem respeito ao

período pré-paradigmático da bioquímica, tal como se dá igualmente um verdadeiro

progresso científico na transição de uma visão linear para uma visão integrativa dos

processos enzimáticos da vida. É neste ponto que eu, concordando com as ideias que

William Bechtel expõe no seu paper “Biochemistry: A Cross-disciplinary Endeavor that

Discovered a Distinctive Domain”, presente no livro Integrating Scientific Disciplines

(1986), paper que analisarei neste ponto do trabalho, penso que se pode passar a falar da

bioquímica como sendo uma disciplina com o seu próprio domínio científico. É neste

ponto que eu penso que a bioquímica atinge, então, o seu primeiro paradigma.

Segundo Bechtel, durante a última parte do século XIX e a primeira parte do século XX,

a bioquímica constituiu uma área florescente de investigação devido ao

desenvolvimento de um grande esforço institucional e devido à concepção clara,

44

referida no ponto anterior, que havia relativamente aos processos envolvidos no

metabolismo intermediário. No entanto, segundo Bechtel, a bioquímica, neste momento,

continuava ainda a ser uma disciplina na fronteira entre a química orgânica e a

fisiologia, e não uma disciplina independente. Para Bechtel, a bioquímica veio apenas a

reclamar a sua própria autonomia disciplinar quando determinados temas clássicos da

bioquímica, como os processos da glicólise, da oxidação celular e outros, referentes ao

metabolismo intermediário, começaram a ser vistos como ocorrendo a um nível de

organização que não era nem químico, nem fisiológico. Este nível de organização,

segundo Bechtel, apenas foi descoberto nos anos trinta do século XX (Cf. Bechtel,

1986: 77-78).

No ponto anterior do trabalho (ponto 2.2.1), que se refere quase exclusivamente ao

estudo do desenvolvimento cognitivo da bioquímica, com a análise dos processos

interdisciplinares envolvidos na emergência da disciplina, não foi apontado o momento

específico fundamental no que diz respeito à emergência da bioquímica como disciplina

madura, com domínio científico próprio. Na realidade, o ponto anterior consta quase

totalmente da análise do paper de Fruton intitulado “The Emergence of Biochemistry”,

publicado na revista Science em 1976, onde, de facto, o objectivo do autor não passa por

apresentar um momento para a emergência da bioquímica. Na verdade, tal é apenas

natural, uma vez que Fruton, como refere Isabel Amaral, “estuda o período

compreendido entre 1800 e 1950, e estabelece um percurso evolutivo da bioquímica

com base nas grandes temáticas de investigação constantes e por vezes coexistentes ao

longo deste período” (Amaral, 2006: 25). Este aspecto é algo que é possível constatar

no ponto 2.2.1., onde, baseando-me nos estudos do autor, apresentei alguns aspectos

importantes relativos ao desenvolvimento cognitivo da bioquímica. No entanto, se

Fruton não apresenta um momento específico para a emergência bioquímica, já Bechtel

faz exactamente isso e, curiosamente, começa sensivelmente onde a minha análise

respeitante ao ponto anterior terminou.

Poderá parecer estranho passar, essencialmente, da análise do paper de Fruton, onde o

objectivo não é traçar datas para estágios de desenvolvimento específicos, para a análise

de um paper que anuncia o momento exacto da emergência da bioquímica. No entanto,

penso que a forma do paper de Fruton me permite fazê-lo (não penso, contudo, que esse

facto elimine totalmente a estranheza de estar, neste momento, a estabelecer uma

ligação entre as conclusões de Bechtel e aquilo que analisei relativamente ao paper de

45

Fruton, mas por essa razão deixo esta nota). Fruton não estabelece uma data para a

emergência da bioquímica. No entanto, a forma do paper de Fruton permitiu-me fazer

aquilo que pretendia, que era traçar um percurso do desenvolvimento cognitivo da

bioquímica, ou de estudos que se podem designar de bioquímicos, ao longo do tempo.

Neste momento, como já afirmei, vou fazer o que Fruton não fez e estabelecer uma data

precisa para a emergência da bioquímica, baseando-me nos estudos de Bechtel. E, como

já disse, esta minha análise do paper de Bechtel, começa exactamente onde o ponto

anterior terminou: nas descobertas e nos novos métodos que se começaram a produzir,

sensivelmente, a partir de 1930.

Na realidade, no ponto anterior terminei no princípio dos anos trinta do século XX,

altura em que Hans Krebs descobriu o ciclo da ureia (1932). No entanto, apenas nos

anos após 1932 é que se percebeu a importância de substâncias como o citocromo c, o

NAD e o ATP no metabolismo, especialmente através do trabalho realizado por Otto

Warburg.

Hans Krebs, por exemplo, foi mal sucedido nas suas tentativas de sintetizar ureia em

laboratório a partir de extractos celulares com as células desintegradas. Apenas catorze

anos após estas experiências realizadas por Krebs, é que tal experiência foi realizada

com sucesso por Philip Cohen e Mika Hayano. Estes investigadores prepararam

homogenatos onde um dos principais requerimentos era a adição de cofactores como

NAD e ATP, uma vez que se dava a diluição destes cofactores quando se provocava a

desintegração celular num meio aquoso, e a sua adição ao meio restaurava, em certa

medida, as suas concentrações normais (Cf. Krebs, 1981: 59). Este facto demonstrava a

importância destas substâncias nos processos metabólicos, e é sobre estes cofactores

que Bechtel baseia a sua teoria acerca da emergência da bioquímica.

Antes dos anos trinta do século XX, segundo Bechtel, a célula era considerada, em

geral, como um sistema que podia ser decomposto, onde cada componente do sistema

podia realizar a sua função isoladamente, sendo a interacção entre componentes menos

importante que a função autónoma dos mesmos. Assim, no princípio do século XX,

num contexto de aceitação da teoria enzimática da vida, estes componentes referidos

anteriormente eram os enzimas, havendo então a ideia, nessa altura, que se podiam

estudar os processos metabólicos decompondo o sistema nos seus componentes

enzimáticos, imperando a concepção de que o sistema possuía um carácter linear, onde

46

as substâncias eram metabolizadas numa sequência de passos catalisados

enzimaticamente até restarem apenas os produtos finais. Esta concepção da bioquímica

fazia da disciplina, segundo Bechtel, apenas uma aplicação da química orgânica (Cf.

Bechtel, 1986: 78).

No entanto, como já referi, “uma nova concepção do domínio da bioquímica emergiu

nos anos trinta do século XX. Percebeu-se que processos bioquímicos básicos, como a

glicólise, envolviam, não apenas uma sequência de reacções, mas sistemas químicos

altamente integrados” (Bechtel, 1986: 78). Esta mudança de visão, como refere Bechtel,

deu-se essencialmente numa altura em que foram descobertas as funções de vários

coenzimas durante os anos trinta do século XX, particularmente a adenosina trifosfato

(ATP). No entanto, convém notar que a descoberta da existência dos coenzimas já havia

sido realizada muito antes de 1930, sendo que, em 1906, Arthur Harden e William J.

Young já haviam percebido a importância da presença daquilo que denominaram

“coenzimas”, “cofactores” ou “cozimases”, nos processos enzimáticos. No entanto,

nesta altura haviam ainda grandes dúvidas quanto à estrutura e função destes

compostos, e a visão linear acerca dos processos metabólicos que imperava não

permitiu reconhecer o papel que eles desempenhavam. Sabia-se que eles tinham um

papel importante no processo da fermentação, altura em que vários estudos foram

realizados sobre estes compostos mas, neste momento, era ainda desconhecida a forma

como estes compostos actuavam, pensando-se que tinham um papel meramente

facilitador da actividade enzimática (Cf. Bechtel, 1986: 86-87).

Como refere Bechtel, “o que foi descoberto durante os anos trinta do século XX é que

as diferentes substâncias que compõem o cofactor não funcionavam em apenas um

passo da via, mas serviam para estabelecer a ligação entre diversos passos da mesma

através do transporte de produtos formados numa reacção da via, para outra reacção

onde estes produtos eram necessários. Desta forma, os coenzimas serviam para integrar

as várias reacções das vias metabólicas. Um exemplo desta função integrativa envolve o

NAD, que, tal como foi demonstrado por Otto Warburg e os seus colegas [...]

funcionava recebendo o hidrogénio removido no decurso da oxidação das trioses-fosfato

numa reacção, e libertando-o no processo da redução do piruvato. Assim, o que se viu

que o NAD fazia era estabelecer uma ligação entre estas duas reacções, tornando-as

interdependentes. Se a redução do piruvato fosse bloqueada, a oxidação das trioses-

fosfato era inibida” (Bechtel, 1986: 87). Na realidade, Otto Warburg desempenhou um

47

papel crucial no desenvolvimento e na emergência da bioquímica. Ele desenvolveu

métodos no âmbito da manometria, o que teve uma importância fundamental na

descoberta da fermentação láctica do tecido canceroso, em muito do trabalho realizado

no domínio da respiração celular, na fermentação, etc., tendo também desenvolvido

métodos espectrofotométricos fundamentais para a descoberta dos cofactores e enzimas

da cadeia respiratória (Cf. Krebs, 1981a: 13-17).

Em termos da sua função como elemento integrativo da fermentação, o entendimento do

papel do ATP pressupôs uma reconceptualização radical do processo metabólico. A

função do ATP como reserva de energia foi a responsável pela necessidade desta

reconceptualização radical, como refere Bechtel, uma vez que, antes de 1930, não havia

ainda esta ideia de que a energia podia ser armazenada e transportada quimicamente.

Nesta altura, assumia-se que a energia era transmitida na forma de calor. Mas nos anos

vinte do século XX, com a descoberta do fosfato de creatina e do ATP, percebeu-se que

estas substâncias possuíam ligações fosfato com um elevado calor de hidrólise, o que

sugeria que estas substâncias podiam representar um papel importante na contracção

muscular, o que veio a ser verificado por Einar Lundsgaard, em 1930. Por outro lado, o

papel do ATP como cofactor importante no processo de fermentação estava nessa altura

a ser estudado. Assim, em 1931, Karl Lohman estabeleceu que a sua presença era

necessária no processo da fermentação e, conjuntamente com Otto Meyerhoff, veio a

sugerir que a transformação de ATP em AMP (na realidade, era apenas a ADP) num

passo da fermentação estava acoplado à síntese de ATP, mais tarde, na via. Com esta

sugestão de um ciclo, começava-se já a perceber o papel integrativo do ATP. No

entanto, foi necessária mais uma década para entender em pormenor o papel

desempenhado pelo ATP (Cf. Bechtel, 1986: 88-89).

Assim, após a realização de vários estudos sobre esta molécula, foi reconhecido que os

diferentes processos energéticos na célula se encontram acoplados entre si. Por

exemplo, percebeu-se que, de forma a que a glucose pudesse ser fermentada, era

necessário que ela fosse esterificada, o que só podia acontecer se houvesse ATP

disponível na célula, o qual, por sua vez, era produzido em estágios mais adiantados da

fermentação. Por outro lado, as trioses-fosfato (que já se havia descoberto anteriormente

serem as substâncias fosforiladas que eram oxidadas no processo da fermentação),

formadas a partir da clivagem da glucose fosforilada, só podiam ser fermentadas na

48

presença de ADP, para onde a ligação altamente energética podia ser transferida (Cf.

Bechtel, 1986: 91).

Assim, as descobertas que foram realizadas nos anos trinta do século XX relativamente

à estrutura e função dos coenzimas, demonstraram que a célula era um sistema

altamente integrado. “Uma reacção específica podia ser dependente de outra não apenas

no que diz respeito à obtenção de um substrato, mas também no que diz respeito à

disponibilidade dos coenzimas necessários para essa reacção” (Bechtel, 1986: 91).

Assim, foi esta concepção de metabolismo intermediário altamente integrado que,

segundo Bechtel, proporcionou à bioquímica um domínio próprio com um nível distinto

de organização, domínio este que se encontrava a um nível mais elevado que o da

química orgânica ou inorgânica, mas a um nível inferior da fisiologia. Neste sentido,

segundo o autor, a bioquímica apresenta-se como o resultado da integração entre a

química e a fisiologia, integração esta que não pode ser vista como o produto da redução

das funções fisiológicas a reacções químicas, uma vez que “as reacções metabólicas são

o resultado de um sistema organizado, e não meramente de componentes operando de

forma independente” (Bechtel, 1986: 91-92).

No entanto, apenas o facto de estarmos na presença de um sistema organizado não

significa que esse sistema não possa ser reduzido, como nota o próprio Bechtel. Na

realidade, os reducionistas, na presença de um sistema organizado, e notando a presença

de um padrão na organização das partes, poderão simplesmente tomar a organização

como uma das condições de fronteira de forma a realizar a redução. No entanto, para

Bechtel, não é o simples facto de haver um sistema organizado que impede a redução,

mas sim o tipo de organização que se encontra nos sistemas envolvidos no metabolismo

intermediário. Neste sentido, para além de Bechtel notar que o sistema não pode ser

decomposto pelas razões já anunciadas, também fala no conceito de subordinação,

caracterizando um sistema integrado como um sistema envolvendo subordinação

funcional. A subordinação funcional é possuída por sistemas onde as funções dos

componentes são definidas apenas em termos da sua contribuição para o sistema como

um todo, sendo que este tipo de contribuição apenas poderá ocorrer se o sistema estiver

suficientemente interligado. Assim, aplicando estas noções no caso do metabolismo

intermediário, o tipo de reacções efectuadas pelos coenzimas não serve apenas para

manter o sistema interligado, mas também permite que o comportamento dos

49

componentes esteja subordinado às necessidades do sistema como um todo. Na

realidade, a concentração de ATP serve para governar a ocorrência das reacções

catabólicas envolvidas na libertação de energia, permitindo que estas apenas ocorram

quando necessário para manter as funções celulares. Quando todo o ADP se transforma

em ATP, as reacções libertadoras de energia, como a oxidação e a fermentação, param,

o que significa que param todos os passos das vias em questão. Ou seja, param todas os

componentes do sistema, cujo comportamento está subordinado às necessidades do

mesmo (Cf. Bechtel, 1986: 92, 94-95).

Em termos da teoria da evolução, estes aspectos fazem sentido, como referido por Hans

Krebs, por exemplo, que nota que a célula tem de usar reacções irreversíveis, isto no

contexto do ciclo dos ácidos tricarboxílicos, por ele descoberto em 1937, e outras vias

complexas envolvendo FAD e NAD, de forma a libertar energia dos substratos. Krebs

nota ainda que estas reacções ocorrem tão rapidamente que, se não fossem reguladas da

forma relatada anteriormente, seriam necessárias enormes quantidades de substrato para

restaurar o sistema. A regulação permitida pela presença de ATP, diz Krebs, permite à

célula utilizar uma sequência geral não reversível sem que seja destruído o equilíbrio

dinâmico (Cf Bechtel, 1986: 95-96).

No entanto, como nota Bechtel, apesar das vantagens evolutivas referidas

anteriormente, estas não se processam de uma forma, digamos, que possa ser prevista,

não existe um padrão exacto para todas as reacções metabólicas. No decurso do

processo evolutivo, os organismos poderão desenvolver estruturas que serão

perpetuadas ao longo do tempo devido às vantagens adaptativas que conferem, mas isto

não é um processo linear, uma vez que os mesmos organismos poderão também criar

estruturas que não conferem qualquer vantagem, as quais poderão igualmente ser

perpetuadas ao longo do tempo. Este aspecto é fundamental, e não permite que os

sistemas referidos anteriormente sejam reduzidos. Como tinha dito anteriormente, os

reducionistas poderão tomar a organização como uma condição de fronteira de forma a

realizar a redução se houver um padrão de organização entre as partes mas, como foi

visto, esse padrão não existe.

Então, concluindo, diz Bechtel, são este tipo de vias não redutíveis devido à presença de

coenzimas, um tipo de vias estruturadas presentes em várias funções celulares, que dão

à bioquímica um domínio próprio. “Embora as reacções destas vias estejam de acordo

50

com as leis básicas da química orgânica, para percebê-las é necessário, contudo, ter

também um entendimento sobre as vias estruturadas da célula” (Bechtel, 1986: 97). Para

além disto, e como consequência do que foi relatado, Bechtel apresenta ainda uma data

bastante precisa (os anos trinta do século XX) para este momento da emergência da

bioquímica como uma disciplina madura, com um domínio científico próprio. Refiro-

me ao momento em que a disciplina alcança, então, o seu primeiro paradigma.

Da mesma forma, como o autor afirma (e depois argumenta, no sentido de concretizar

com provas as suas afirmações), a bioquímica apresenta-se como o resultado da

integração entre a química e a fisiologia, integração esta que não pode ser vista como o

produto da redução das funções fisiológicas a reacções químicas. As conclusões de

Bechtel não sustentam uma unidade da ciência baseada na progressiva redução

disciplinar, sustentando, isso sim, um tipo de unidade baseada na cooperação entre

disciplinas que não se podem reduzir umas às outras, mas que trocam conhecimentos e

métodos no sentido de concretizar o progresso científico. Estou a falar de uma unidade

da ciência interdisciplinar.

2.2.3. Contexto institucional da emergência da bioquímica – a interdisciplinaridade de

um ponto de vista institucional

Até este ponto apenas me referi aos aspectos cognitivos que estão por detrás da

emergência da bioquímica. É um facto que, quando se fala em interdisciplinaridade, se

está a falar numa integração de teorias, de métodos, de aspectos cognitivos, mas a

verdade é que esses programas são muitas vezes definidos pelas necessidades e

oportunidades do contexto institucional. Os estudos e desenvolvimentos científicos que

levaram à emergência da bioquímica, por exemplo, desenvolveram-se num conjunto

variado de contextos institucionais que interessa perceber no âmbito do estudo dos

fenómenos de interdisciplinaridade. Na realidade, estes desenvolvimentos processaram-

se de forma diferente na Alemanha, no Reino Unido, em França, nos Estados Unidos...

por vezes com relações mais fortes com a fisiologia, por vezes com relações mais fortes

com a química orgânica, outras vezes em contextos puramente clínicos, etc., de tal

forma que designações como química patológica, química fisiológica e química médica

51

dizem todas respeito à família da bioquímica. Estas disciplinas constituem todas já

estudos bioquímicos. Em todas estas disciplinas se estava já a tentar explicar fenómenos

fisiológicos em termos químicos, muito embora a emergência da bioquímica como

disciplina madura só se tenha dado, como já referi, na minha opinião, por volta dos anos

trinta do século XX.

Assim, tendo em conta a diversidade relatada anteriormente, no que diz respeito à

realidade institucional nos Estados Unidos, por exemplo, os desenvolvimentos

científicos que levaram à emergência da bioquímica de uma forma mais consistente

estiveram intrinsecamente ligados à reforma do ensino médico. No entanto, na Europa,

por exemplo, mais concretamente na Alemanha e no Reino Unido, não foi este o

contexto institucional predominante. Os estudos bioquímicos, nestes locais,

apresentaram uma maior independência relativamente a interesses clínicos.

Tendo isto em conta, vou passar a referir alguns aspectos institucionais que me parecem

importantes relativos ao desenvolvimento dos estudos bioquímicos na Alemanha, em

França, no Reino Unido e nos Estados Unidos, talvez os países mais representativos do

fenómeno da emergência da disciplina, de forma a que se entenda como se processou a

emergência da bioquímica em termos institucionais. No final, irei também referir o

processo da emergência da bioquímica em Portugal, pois este me parece ser um caso

interessante onde a emergência da disciplina se deu já com um certo atraso

relativamente a países pioneiros na disciplina, como a Alemanha ou o Reino Unido, mas

onde as características desta emergência disciplinar apresentam semelhanças

importantes relativamente ao que se passou nos países referidos anteriormente, embora

com certas variações.

Assim, para este estudo utilizo como guias, essencialmente, o livro de Robert Kohler

intitulado From Medical Chemistry to Biochemistry: The Making of a Biomedical

Discipline (1982) e o livro de Joseph Fruton intitulado Proteins, Enzymes, Genes: The

Interplay of Chemistry and Biology (1999). Em relação ao processo da emergência da

bioquímica em Portugal, remeto ao livro de Isabel Amaral intitulado A Emergência da

Bioquímica em Portugal: As Escolas de Investigação de Marck Athias e de Kurt

Jacobsohn (2006).

52

Na Alemanha, refere Kohler, foi onde primeiro se desenvolveram disciplinas com

designações como química patológica, química fisiológica e outras, que dizem já

respeito à família da bioquímica. Destas disciplinas, como já dei a entender

anteriormente ao longo do trabalho, aquela mais representativa em termos do

desenvolvimento dos estudos bioquímicos, terá sido a química fisiológica.

Neste ponto, é importante referir que, no que diz respeito à designação “química

fisiológica”, vários autores lhe dão um significado diferente. Henry Leicester, por

exemplo, diz que a química fisiológica representou um passo prévio relativamente à

emergência da bioquímica. Diz que a química fisiológica se converteu em bioquímica,

uma ciência essencialmente nova, quando a teoria enzimática da vida começou a

imperar em termos dos estudos bioquímicos, com a visão expressa por Gowland

Hopkins de que, em termos do estudo do metabolismo intermediário, os investigadores

se deviam orientar para o estudo de substâncias simples sendo submetidas gradualmente

a um conjunto de reacções que podiam ser estudadas e reconhecidas individualmente

pelos métodos químicos existentes (Cf. Leicester, 1974: 202). Já Fruton, diz que uma

razão plausível para o aumento do uso do termo “bioquímica” no início do século XX se

deveu ao desejo de enfatizar a sua separação da fisiologia médica. Exemplificando,

Fruton afirma que alguns bioquímicos proeminentes, como Gowland Hopkins, achavam

o termo pouco atractivo e, mesmo nos Estados Unidos, por exemplo, alguns

departamentos universitários importantes, como o de Yale, até 1954, continuavam a

utilizar a designação “química fisiológica”. Fruton nota ainda que o termo “bioquímica”

já era utilizado, pelo menos, desde 1858, e que servia para designar o que o termo

“chimie biologique” designava em França, o que o termo “physiologischue Chemie”

designava na Alemanha, e ainda o que outros termos, como “fisiologia celular”,

designavam (Cf. Fruton, 1976: nota 8 na pág. 332).

Em termos do entendimento que tenho acerca desta questão, o qual expressei no ponto

2.1., naturalmente que a minha opinião diverge da de Leicester. Em primeiro lugar, este

autor aponta para um momento da emergência da bioquímica anterior ao momento em

que eu penso que esta emergência se processou (como expliquei no ponto anterior). Em

segundo lugar, Leicester fala na conversão da química fisiológica em bioquímica, uma

ciência essencialmente nova. Como expressei no ponto 2.1., para mim, a química

fisiológica já era “bioquímica”. Apesar de também eu referir um momento para a

emergência da bioquímica, este trata-se de um momento de clarificação de

53

determinados aspectos bioquímicos que proporcionou a esta disciplina um domínio

científico próprio, sendo que os estudos bioquímicos que passaram a ser realizados após

esta clarificação tinham importantes características semelhantes relativamente aos

estudos que eram realizados anteriormente. Assim, não ponho esta questão como

Leicester, não vejo que nenhuma disciplina se transformou em bioquímica. Noto sim

que passamos a ter “bioquímica”, ou várias disciplinas onde o objectivo era o

desenvolvimento do campo de estudos bioquímicos, a partir do início do século XIX.

Neste sentido, vejo a questão das designações mais como Fruton a vê. Claro que eu

apresento um momento de emergência para a bioquímica, coisa que Fruton não faz mas,

como já expliquei, este momento não representa, de forma alguma, um corte total com o

passado. Noto que os estudos bioquímicos realizados após este momento tinham

importantes características semelhantes relativamente aos estudos realizados antes da

emergência da disciplina.

No entanto, apesar destas divergências em termos de terminologia, parece-me que há

alguns aspectos importantes a reter. Em primeiro lugar, é importante notar que existe

uma relação muito estreita entre a química fisiológica e a bioquímica, de tal forma que

as duas designações quase se confundem (sejam a bioquímica e a química fisiológica a

mesma coisa ou não, o que varia com o entendimento que diferentes autores têm) e, em

segundo lugar, é importante também notar que, apesar das divergências que referi

relativamente ao significado das duas designações, a verdade é que, sensivelmente a

partir do início do século XX, uma designação passou a dar lugar à outra.

Assim, depois desta nota, no que diz respeito ao desenvolvimento de estudos

bioquímicos na Alemanha, é importante começar por realçar o papel importante

desempenhado, em termos institucionais, pelo laboratório de Liebig em Giessen,

estabelecido em 1825. Liebig realizou várias aplicações da química à fisiologia e à

agricultura que fizeram dele uma pessoa reconhecida a nível mundial, e que

influenciaram muitos dos desenvolvimentos bioquímicos que vieram a ser realizados no

futuro. No entanto, a partir dos anos quarenta do século XIX, a sua reputação era maior

no Reino Unido e nos Estados Unidos do que propriamente na Alemanha. Nesta altura

os seus trabalhos começaram a receber críticas desfavoráveis (Cf. Fruton, 1999: 35-36).

Já no que diz respeito ao desenvolvimento específico de uma cadeira com a designação

de “química fisiológica” na Alemanha, segundo Robert Kohler, houve essencialmente

54

três períodos que importa registar. O primeiro momento deu-se entre 1840 e 1850,

quando a Alemanha tomou uma rápida liderança no que diz respeito ao

desenvolvimento desta disciplina, tendo sido criada uma cadeira para ela em várias

universidades, essencialmente nas universidades do Sul da Alemanha, como Tübingen,

onde estiveram Felix Hoppe-Seyler (1861-72) e Gustav Hüfner (1872-1908), entre

outros; Friburgo, onde leccionaram e trabalharam Eugene Baumann e Franz Knoop;

Erlangen; Munique, onde Max Pettenkoffer estabeleceu um programa de química

fisiológica com ligações à saúde pública; e, em último lugar (a última a ser criada neste

período), Estrasburgo, onde o instituto de química fisiológica de Felix Hoppe-Seyler

tentou seguir o modelo de Tübingen, onde Hoppe-Seyler já havia estado. Franz

Hoffmeister veio a suceder Hoppe-Seyler em Estrasburgo. Também convém referir o

caso da Universidade de Leipzig, a única do Norte da Alemanha que participou neste

momento do desenvolvimento da química fisiológica, onde Carl Lehmann foi professor

desta disciplina. Estas primeiras experiências de desenvolvimento disciplinar da

química fisiológica estavam sobretudo ligadas aos tratados de química animal e agrícola

de Justus Liebig, os quais ainda tiveram uma grande popularidade durante os anos

quarenta do século XIX (Cf. Kohler, 1982: 15-19, 22, 24), mas, como já referi, se foram

tornando menos viáveis ao longo do tempo, especialmente a partir de 1850. Na

realidade, o desenvolvimento inicial da disciplina em Tübingen, por exemplo, teve um

começo muito humilde devido, essencialmente, à influência das ideias de Liebig. Só a

partir de 1861, com a chegada de Hoppe-Seyler, é que foi estabelecido um programa de

investigação e de ensino mais produtivo (Cf. Fruton, 1999: 53-54). Nestas universidades

do Sul da Alemanha, como refere Kohler, a disciplina de química fisiológica

encontrava-se intrinsecamente ligada à disciplina de química orgânica, sendo habitual

um mesmo professor dar as duas cadeiras. Esta relação entre a química fisiológica e a

química orgânica deu-se mais no Sul da Alemanha, uma vez que, no Norte, a química

orgânica já se encontrava num processo de separação das faculdades de medicina, sendo

que nestas condições era mais difícil para estas faculdades suportarem uma cadeira de

química fisiológica. As faculdades de medicina sustentavam que os seus alunos

deveriam ter um ensino especializado de química em faculdades separadas onde se

estava a desenvolver a química orgânica. Assim, desta forma, devido ao aumento deste

tipo de pressão exercida pelas faculdades de medicina, por volta de 1870, também os

postos de professor de química fisiológica apoiados na química orgânica da maior parte

das universidades do Sul da Alemanha, onde a química orgânica se começava

55

igualmente a separar das faculdades de medicina, estavam a desaparecer, à excepção de

alguns casos pontuais, como em Tübingen e Friburgo. Nesta altura, não haviam grandes

esperanças de futuro para os investigadores que se queriam estabelecer nesta disciplina.

As faculdades de medicina pediam cada vez mais por químicos orgânicos, e as

disciplinas de química fisiológica começaram, gradualmente, a ser substituídas por

disciplinas de química orgânica ou fisiologia (Cf. Kohler, 1982: 17, 20, 25).

Como refere Kohler, o segundo momento em que se deu um grande desenvolvimento da

química fisiológica foi por volta da década de setenta de século XIX, e aconteceu fruto

do aparecimento de novos institutos de fisiologia, essencialmente no Norte da

Alemanha, em universidades como as de Berlim, Breslau, Jena e Leipzig, sendo que

todos os institutos de fisiologia criados nesta altura tinham fortes ligações com a escola

de Berlim, de Johannes Müller e Hermann Helmholtz, procurando os seus ideais físico-

químicos. Emil Du Bois-Reymond foi um dos discípulos de Helmholtz. Nesta altura, a

fisiologia passava por um processo de separação da anatomia, e a química fisiológica

fornecia-lhe um domínio que oferecia mais força a este movimento de separação

disciplinar. A fisiologia precisava da química fisiológica para se poder separar

legitimamente da anatomia e, para isso, tinha de fazer força para que a química

fisiológica não fizesse o mesmo em relação à fisiologia. Neste contexto, a química

fisiológica foi muito desenvolvida dentro do domínio da fisiologia, mas encontrava-se,

contudo, dependente desta disciplina, sem possibilidades de afirmar o seu território

disciplinar. Não havia uma separação de cadeiras. Este desenvolvimento da química

fisiológica também começou a esmorecer a partir de 1880, provavelmente porque nesta

altura já todas as universidades que haviam estabelecido a disciplina de química

fisiológica no primeiro momento do desenvolvimento desta disciplina, como afirmei

anteriormente, se encontravam já a substituí-la por outras, como a química orgânica.

Assim, como os fisiologistas já não sentiam nessa altura uma ameaça separatista por

parte dos químicos fisiológicos, foram deixando gradualmente de desenvolver estudos

nessa área. Nesta altura, os fisiologistas já não estavam interessados em criar papéis

especializados para os químicos fisiológicos, como foi assinalado em 1877 por Hoppe-

Seyler, que acusou os fisiologistas de manterem uma atitude possessiva relativamente à

química fisiológica (Cf. Kohler, 1982: 26-31).

Finalmente, o terceiro momento de desenvolvimento da química fisiológica na

Alemanha, refere Kohler, reporta ao ano de 1904, quando foi estabelecida a obrigatorie-

56

dade de realização de um exame de química fisiológica no âmbito do curso de medicina.

No entanto, como nota Kohler, “quase invariavelmente, contudo, as divisões de química

fisiológica continuaram a ser estabelecidas como subdivisões da fisiologia, sem haver

uma separação de cadeiras. Este padrão simplesmente formalizou uma relação que havia

sido prática comum durante os trinta anos anteriores [...] A história da química

fisiológica na Alemanha foi uma de tentativas repetidas e geralmente mal sucedidas do

estabelecimento de cadeiras independentes da fisiologia” (Kohler, 1982: 32).

No entanto, apesar disto, refere Kohler, a investigação bioquímica continuou a ser

realizada no âmbito de outras disciplinas, como a química; a patologia, onde Rudolf

Virchow estabeleceu uma cadeira de patologia química em Berlim; a farmacologia; a

higiene e a clínica médica, o que teve uma grande influência no desenvolvimento do

campo da bioquímica. A maior parte do trabalho bioquímico era realizado fora do

âmbito da química fisiológica, nomeadamente por químicos orgânicos e fisiologistas.

Na realidade, no final do século XIX, os laboratórios de bioquímicos-fisiologistas como

o de Kühne, em Heidelberg, que estabeleceu um programa prolífico de química

fisiológica com ligações à fisiologia, e o de Albrecht Kossel, em Magdeburgo, eram

mais influentes que os de Tübingen ou Friburgo, pelo menos para os estrangeiros. Como

a química fisiológica se encontrava ligada à fisiologia, os fisiologistas não tinham

qualquer pudor em entrar na área da química fisiológica. Da mesma forma, havia muitos

químicos orgânicos com interesses bioquímicos. Para dar um exemplo, os sucessivos

ocupantes da cadeira de química orgânica de Munique de 1870 a 1940, Adolf von

Baeyer, Richard Willstäter e Heinrich Wieland, eram participantes activos em debates

sobre os mecanismos químicos da fermentação, da acção enzimática, e da oxidação

biológica. (Cf. Kohler, 1982: 32-33, 35-36).

Aquilo que caracteriza o desenvolvimento bioquímico na Alemanha, como nota Kohler,

é um “nível elevado, em termos de realizações intelectuais, na periferia da disciplina, e

instituições subdesenvolvidas no centro” (Kohler, 1982: 37). Na realidade, os

bioquímicos mais produtivos e influentes da Alemanha, durante o período de 1920 a

1940, trabalhavam em institutos de investigação que, ao contrário do que ocorria nas

universidades, não incluíam uma componente escolar propriamente dita. Otto Warburg,

por exemplo, talvez o mais admirado e respeitado bioquímico da sua geração, foi

director do Instituto de Biologia Experimental Kaiser Wilhelm, em Berlim. Otto

Warburg era um discípulo de Emil Fisher, tendo sido responsável pela realização de

57

grandes desenvolvimentos, tanto no corpo do conhecimento teórico da bioquímica,

como em termos de métodos (Cf. Kohler, 1982: 37-38). Quem também trabalhou neste

centro de investigação foi Carl Neuberg, a quem foi atribuída, à data da formação do

centro, a liderança de uma secção de bioquímica, separada do laboratório de Otto

Warburg (Cf. Fruton, 1999: 44).

No entanto, institutos de investigação como o de Warburg ofereciam grandes

oportunidades de investigação mas não para o estabelecimento disciplinar. Warburg, por

exemplo, não fazia grande questão em treinar novos bioquímicos (Cf. Kohler, 1982:

38).

Assim, como conclusão, é possível dizer que o sistema institucional alemão relativo à

bioquímica era muito fraco. Como nota Kohler (1982: 39), havia uma “quase total

ausência de um sistema de recrutamento e recompensa”; havia um “fosso entre uma

avant-garde privilegiada e a disciplina oficial académica”; e vivia-se num contexto de

“constante picardia entre fisiologistas e químicos, sem haver um grande empenho

relativamente ao desenvolvimento da disciplina”. Como refere ainda este autor, “estas

características da bioquímica alemã deveram-se ao desenvolvimento anómalo da

química fisiológica durante o grande período de desenvolvimento disciplinar entre 1840

e 1890” (Kohler, 1982: 39), altura em que foram criadas um grande número de

disciplinas académicas no domínio da bioquímica.

Em termos do desenvolvimento da bioquímica em França, no que diz respeito às

questões institucionais, convém destacar que, durante a segunda metade do século XIX,

houve um número significativo de químicos como Marcellin Berthelot no Collège de

France, Charles Adolfe Wurz na Sorbonne, Charles Friedal na Sorbonne e, claro, Louis

Pasteur na Ecole Normale Supérieure e na Sorbonne, que realizaram importantes

estudos no campo da química orgânica e também no campo da bioquímica (Cf. Fruton,

1999: 35). Para além disto, é impossível falar no desenvolvimento bioquímico deste

país sem referir o Instituto Pasteur. Esta instituição foi criada em 1888, tendo Pasteur

exercido as funções de director até à sua morte. Como refere Fruton (1999), para além

dos trabalhos importantes de investigação e de preparação de vacinas que foram

desenvolvidos neste centro, também a instrução de química biológica, realizada por

Emile Duclaux, foi transferida da Sorbonne para o instituto. Durante o período de 1900

até 1940, foram realizadas importantes investigações neste instituto no campo da

58

microbiologia, imunologia e quimioterapia. Mais tarde, depois da Segunda Guerra

Mundial, as investigações de Jackes Monod no campo da bioquímica, no instituto

Pasteur, fizeram com que os estudos biológicos voltassem a ter um grande

desenvolvimento em França (Cf. Fruton, 1999: 48).

Digo voltassem porque, no que diz respeito à realidade do desenvolvimento científico

francês, tanto na área da química como nos restantes domínios científicos, este

encontrava-se já em declínio devido a uma quantidade de situações políticas e sociais,

como nota Fruton (1999). Assim, já entre 1900 e 1950, é preciso dizer que a

contribuição francesa para o corpo teórico da química orgânica foi muito menor do que

havia sido anteriormente, comparando com a realidade alemã, britânica e americana.

“Apesar de, como seria previsível no país de Lavoisier, Bernard e Pasteur, aquilo que

foi denominado de chimie biologique em França ter adquirido em 1914 um maior

reconhecimento que a biochemie na Alemanha, a disparidade relativamente à qualidade

e variedade dos estudos neste campo era inquestionável” (Fruton, 1999: 61). Na

Alemanha, a qualidade dos estudos bioquímicos era muito superior.

Um caso paradigmático é o de François Magendie e Claude Bernard. François

Magendie foi o maior implementador de um movimento que pretendia substituir a

observação anatómica pela prática da vivissecção e utilização de métodos químicos. É

de salientar, no entanto, que Magendie deu aulas e demonstrações de fisiologia

experimental durante dezoito anos antes de ser nomeado professor de medicina no

Collège de France. No que diz respeito a Claude Bernard – o mais famoso pupilo de

Magendie e seu sucessor –, ele enfatizava a importância da realização de vivissecções e,

apesar de receber ajuda dos seus colegas na utilização de métodos químicos como

principais ferramentas da fisiologia experimental, este investigador dava menos ênfase

do que os seus colegas alemães à utilização de métodos físicos. Neste contexto, Bernard

foi considerado o maior fisiologista do século XIX, mas a verdade é que os seus

métodos experimentais foram menos seguidos em França do que no Reino Unido e na

Alemanha. Um dos visitantes estrangeiros de Bernard foi Willy Kühne, que prosseguiu

o trabalho de Bernard no domínio dos enzimas pancreáticos (Cf. Fruton, 1999: 60).

No entanto, existem razões para os atrasos que ocorreram no desenvolvimento do

campo da bioquímica em França, ou no campo científico em geral, como já referi.

Houve uma sucessão de situações políticas e militares que afectaram todos os aspectos

59

da vida francesa a partir de 1815 – as revoltas de 1830 e 1848, o Golpe de Estado de

1851, o resultado da guerra Franco-Prussiana, o caso Dreifus, a dispendiosa vitória de

1918 e o desastre de 1940 (Cf. Fruton, 1999: 61).

No Reino Unido, como refere Robert Kohler, “a bioquímica desenvolveu-se dentro de

departamentos de fisiologia, começando como um sub-domínio especializado, a

química fisiológica e, gradualmente, adquirindo um status independente como uma dis-

ciplina separada. Este foi [também] o padrão alemão prevalecente” (Kohler, 1982: 40).

Assim, foram estabelecidas aulas de química fisiológica nas faculdades de medicina

mais importantes, como o University College London, e as universidades de Cambridge,

Edimburgo, Glasgow, Kings e Oxford, entre 1895 e 1905, onde programas de fisiologia

experimental modernos haviam sido implementados entre 1870 e 1900. Seguiram-se

depois as universidades de província, no interior, onde se desenvolveram aulas de

química fisiológica entre 1909 e 1914, e as universidades técnicas de maiores

dimensões nos anos vinte. Uma excepção relativamente a este padrão deu-se na

Universidade de Liverpool, onde se estabeleceu a primeira cadeira de bioquímica, a

primeira a ter esta designação, na School of Public Health. O primeiro professor desta

cadeira foi Benjamin Moore, que desenvolveu um programa bioquímico vasto, no

domínio do estudo de enzimas, proteínas, fotossíntese, etc., independente da química

fisiológica. Mas, passada uma década, com o seu abandono do cargo, esta disciplina já

havia revertido a química fisiológica. Para além disto, um número razoável de

bioquímicos também se estabeleceu em alguns hospitais de Londres, especialmente

antes da Primeira Guerra Mundial (Cf. Kohler, 1982: 40, 42, 55-56).

Como refere Kohler, “a explicação deste padrão tem a ver com o subdesenvolvimento

geral das ciências biomédicas no Reino Unido do século XIX, e a importação selectiva

dos modelos e ideais alemães” (Kohler, 1982: 40-41), os modelos de desenvolvimento

da química fisiológica alemã dos anos setenta do século XIX, onde a química

fisiológica pertencia à fisiologia. Não havia sequer competição por parte das ciências

clínicas, como a farmacologia, a patologia ou a higiene, uma vez que estas se

encontravam totalmente sob o controlo da classe médica, como refere Kohler. Assim,

não existiam contextos alternativos para o desenvolvimento da química fisiológica fora

da fisiologia, a qual dominou as ciências médicas e biológicas durante a última parte do

século XIX no Reino Unido, muito mais do que no resto da Europa, e bastante mais

60

ainda do que nos Estados Unidos. A fisiologia tornou-se um dos passos prévios a seguir

no caminho para o estudo académico da medicina, disciplina com a qual mantinha

relações privilegiadas. Mas a fisiologia não se deixava dominar pela medicina. Na

universidade, os fisiologistas trabalhavam em locais que se encontravam separados da

escola médica. A fisiologia era a rainha das ciências biomédicas. Um dos grandes

responsáveis por estas características tão fortes da disciplina foi William Sharpey, do

University College London. Foi ele o grande inspirador da criação dos centros de

fisiologia modernos, já referidos, entre 1870 e 1900. No entanto, este programa vasto, o

qual envolvia o desenvolvimento de várias subdivisões na fisiologia, como a fisiologia

física, a química fisiológica e a histologia, tinha o risco de poder provocar uma

separação disciplinar (Cf. Kohler, 1982: 41-43).

Neste momento, no que diz respeito à química fisiológica, refere Kohler, os químicos

recrutados para esta disciplina começaram a desempenhar um papel fundamental,

havendo um ponto em que a sua influência começou a predominar na emergência de

uma especialidade independente. Neste contexto, com uma influência crescente por

parte dos químicos, os fisiologistas começaram a ver cada vez mais os químicos

fisiológicos como outsiders, ao ponto da química fisiológica, em alguns casos, se ter

separado da fisiologia, desenvolvendo departamentos próprios. Como nota Kohler, “este

conflito constituiu a experiência unificadora comum para a primeira geração de

bioquímicos britânicos” (Kohler, 1982: 44).

Papéis distintos para químicos fisiológicos desenvolveram-se gradualmente, de uma

forma natural, fruto das necessidades institucionais em termos de prática laboratorial.

No University College, por exemplo, William Sharpey criou um posto de assistente

numa altura de grande especialização disciplinar, que se deu por volta de 1890. O cargo

estabelecido por Shriver não era para um químico fisiológico, mas em termos práticos

acabou por ser, porque a instrução laboratorial, em grande medida, era química, e a

maior parte dos professores existentes eram fisiologistas físicos. Assim, gradualmente, o

posto tornou-se numa posição para um químico fisiológico (Cf. Kohler, 1982: 44).

Os postos de química fisiológica em Oxford, Kings e Edimburgo desenvolveram-se

sensivelmente da mesma forma, sendo que posteriores variações deste padrão de

especialização e subdivisão ocorreram nas universidades de Glasgow, Manchester e

Yorkshire (Cf. Kohler, 1982: 45).

61

À medida que mais químicos foram sendo contratados para departamentos de fisiologia,

mais aparente se foi tornando que eles constituíam uma classe académica distinta. A

especialização interna de funções levou a um movimento drástico em que as fronteiras

entre disciplinas tiveram de ser redesenhadas, emergindo uma nova classe de químicos

fisiológicos, ou bioquímicos. Antes de 1905, os fisiologistas dominaram os postos de

química fisiológica, mas a partir deste ano começaram a aparecer mais químicos,

acabando por ser estes a exercer o domínio sobre a disciplina. Os fisiologistas que

ocupavam a cadeira de química fisiológica acabavam por reverter, na maior parte das

vezes, para a fisiologia, que lhes oferecia mais oportunidades de trabalho, enquanto que

a transição que os químicos faziam no sentido da química fisiológica era normalmente

irreversível (Cf. Kohler, 1982: 58, 60).

Neste contexto, nota Kohler, é importante realçar o papel fundamental desempenhado

pelas instituições de investigação em Londres, como o Lister Institute, as quais

representaram o mercado mais importante para os bioquímicos profissionais, oferecendo

treino e emprego a uma geração de bioquímicos antes do aparecimento de grandes

escolas, um grande número de bolsas e um mercado regular para os bioquímicos nas

universidades britânicas. Estes centros funcionaram como uma fonte importante de

bioquímicos à medida que as cadeiras especializadas eram criadas (Cf. Kohler, 1982:

60). De facto, o Lister Institute, fundado inicialmente em 1891 com o nome de British

Institute for Preventive Medicine, tendo mudado de nome em 1912 com a morte de

Joseph Lister (um reconhecido investigador que realizou um trabalho importante na área

da microbiologia e da cirurgia, introduzindo o uso de condições antisépticas nos locais

onde eram realizadas operações), tinha como principal função o estudo de doenças

infecciosas. No entanto, durante os anos da sua existência (fechou em 1975), foi

realizado no seu espaço um trabalho muito significativo no campo do estudo de

enzimas, proteínas e vitaminas (Cf. Fruton, 1999: 47).

Assim, como refere Kohler, “as diferenças de estilo entre os antigos químicos

fisiológicos e os primeiros bioquímicos que se estavam a separar demarcaram duas

subculturas científicas distintas. Os químicos fisiológicos eram membros de uma elite

académica que se especializavam, mas sem cortar a sua relação com a fisiologia. Os

bioquímicos eram membros de uma comunidade profissional emergente localizada em

instituições que desenvolviam a ciência por razões práticas, como instituições

industriais, hospitais, comissões sanitárias e estações experimentais. A especialização

62

trouxe poucas recompensas aos químicos fisiológicos em termos de carreira; os lugares

que eles podiam ocupar estavam a ser preenchidos gradualmente por químicos, cujo

treino e diferente perspectiva sob o campo os tornava mais capazes para desempenhar

os cargos especializados de investigação” (Kohler, 1982: 60, 62).

A 1ª geração de bioquímicos tinha consciência das mudanças que estavam a ocorrer na

química fisiológica. Eles acreditavam que o aumento e prosperidade da sua carreira

dependiam do recrutamento de mais químicos. Hopkins, ele próprio um químico, foi

especialmente activo nesse recrutamento. Ele também esperava que mais biólogos e

fisiologistas se virassem para a bioquímica, mas a verdade é que sentia que era mais

fácil aprender novos problemas do que novas técnicas (Cf. Kohler, 1982: 62-63).

Assim, “o influxo de químicos nos departamentos universitários de fisiologia resultou

no reconhecimento gradual da bioquímica como uma disciplina independente. A

bioquímica começou a separar-se da fisiologia ainda antes da Primeira Guerra Mundial,

e várias cadeiras novas foram estabelecidas no período de reconstrução do pós-guerra.

Nas grandes universidades orientadas para a medicina de Londres e Edimburgo, a

separação disciplinar aconteceu quando os bioquímicos adquiriram a responsabilidade

do ensino da química orgânica a estudantes de medicina. Esta mudança de papéis

causou um conflito de interesses entre fisiologistas e químicos. No University College, a

bioquímica permaneceu ligada à fisiologia mas, em Edimburgo, ela separou-se, ligando-

se à química” (Kohler, 1982: 65-66). Já em Oxford e Cambridge, nota Kohler, onde não

havia esta ligação à clínica médica, e onde a criação de postos de bioquímica se deu

pela oferta de grandes doações de origem filantrópica, a competição era menos marcada,

e não se desenvolveu entre a fisiologia e a química, mas entre a bioquímica e as outras

ciências biomédicas.

Neste momento, convém destacar alguns aspectos referentes a estas duas universidades,

pelo carácter particular que tiveram.

Como acabei de afirmar, as universidades de Cambridge e Oxford tiveram a

oportunidade de desenvolver a bioquímica devido a doações de origem filantrópica,

nomeadamente uma doação referente ao Legado de Dunn, no caso de Cambridge, e uma

doação do Rockefeller Institute, no caso de Oxford. Este tipo de filantropismo marcou,

essencialmente, o período após a Primeira Guerra Mundial. A visão das mortes, do

63

sofrimento e da perda, fez surgir este tipo de filantropismo “preventivo”, o qual veio

substituir o anterior filantropismo, marcado por acções de caridade com vista a melhorar

o sofrimento das vítimas dos problemas sociais. A ideia do filantropismo “preventivo”

era ajudar instituições e indivíduos que pudessem prevenir as causas dos problemas

sociais (Cf. Kohler, 1982: 79, 81, 89).

Neste sentido, em Cambridge, foi possível realizar um grande desenvolvimento no

campo da bioquímica, a partir de 1921, o qual teve como personagem principal

Gowland Hopkins, embora seja necessário reconhecer que, aqui, o sucesso do

desenvolvimento bioquímico se deveu, em grande parte, ao papel desempenhado

inicialmente pelo fisiologista Michael Foster, que possuía uma ampla visão da

fisiologia, e que, a meados dos anos setenta do século XIX e, posteriormente, a meados

dos anos noventa do mesmo século, guiou vários dos seus estudantes na direcção de

diversas especialidade da fisiologia, como a química fisiológica. Foi Michael Foster que

abriu caminho ao trabalho que foi posteriormente realizado por Gowland Hopkins, o

qual estabeleceu, a partir de 1921, um programa de bioquímica geral cujo tema

unificador era a preocupação com a forma e função biológicas. Tratava-se de um

programa vasto, com vários investigadores a desenvolverem estudos em campos

distintos: Robin Hill no campo da biofísica química das proteínas vegetais e na

fotossíntese, Malcom Dixon no campo da enzimologia, Dorothy Needham no campo da

contracção muscular, Marjory Stephenson no campo da microbiologia, Joseph Needham

na embriologia bioquímica, etc. Na realidade, tratava-se de um programa vastíssimo que

não mais foi igualado por outra instituição. No entanto, as qualidades deste programa

não conseguiram sobreviver à ausência de Hopkins (Cf. Kohler, 1982: 47, 81-88).

Entretanto, a escola de Oxford, sob a direcção de Rudolf Peters e do seu sucessor, Hans

Krebs (mas especialmente sob o comando deste último, uma vez que, com Peters, ainda

havia uma ligação muito forte à fisiologia e aos interesses médicos), prosseguiu a

tradição de Hopkins (Cf. Kohler, 1982: 89, 91).

Mas é preciso perceber, como nota Kohler, que estes foram dois casos isolados, tal

como o de Warburg na Alemanha. “O estilo intelectual da bioquímica na maior parte

das universidades britânicas reflectia [...] a sua evolução histórica como química

fisiológica. Ela estava amplamente limitada à fisiologia animal e humana, especialmente

no que concerne às áreas mais acessíveis à investigação química: as vitaminas e a

64

nutrição, o metabolismo e as hormonas [...] Da mesma forma, os bioquímicos

concentravam o seu estudo em questões relativas à fisiologia e patologia humanas. Este

campo de estudo relativamente estreito reflecte os limites impostos aos bioquímicos

pelo trabalho que eles desempenhavam no campo da fisiologia e da medicina” (Kohler,

1982: 72).

No que diz respeito ao processo de desenvolvimento institucional da bioquímica nos

Estados Unidos, como refere Robert Kohler, é necessário salientar que muitas das

práticas americanas tiveram a sua fonte de inspiração nas práticas alemãs. Na realidade,

Kohler destaca as ideias do autor Joseph Ben-David, para quem os principais

desenvolvimentos caracterizadores das universidades americanas foram criados quando

as práticas de exigência de desempenho alemãs foram introduzidas num sistema cultural

igualitário, sendo que na Alemanha eram essencialmente as elites que obtinham estudos

universitários. Assim, o sistema universitário diversificado, com as suas várias escolas

profissionais, presentes nos Estados Unidos, eram uma adaptação das práticas elitistas

alemãs a uma sociedade democrática (Cf. Kohler, 1982: 94-95).

Deste modo, as instituições bioquímicas americanas, entre 1875 e 1900, apresentavam

uma grande semelhança com as alemãs. Por exemplo, Wilbur Olin Atwater, Samuel W.

Johnson, e outros fisiologistas e químicos agrícolas, eram descendentes directos de

Justus Liebig (no entanto, tal como na Alemanha, poucos praticantes desta escola se

tornaram bioquímicos; a maioria virou-se para a química ou para o nutricionismo). Na

Sheffield Scientific School, Russell H. Chittenden, estudante de Johnson, combinou a

fisiologia com a química fisiológica ao estilo do seu mentor Willy Kühne. Na

University of Michigan Medical School, Victor C. Vaughan combinou a química

fisiológica com a higiene, tal como Pettenkoffer havia feito em Munique, isto depois de

ter visitado vários centros de higiene por toda a Europa antes de estabelecer o seu

departamento. E, finalmente, a química fisiológica foi incluída no departamento de

farmacologia de John J. Abel, na Johns Hopkins Medical School, tendo-se a química

fisiológica eventualmente separado como uma disciplina individual, isto depois de Abel

ter passado sete anos a estudar na Alemanha, onde terminou o seu curso de medicina em

Estrasburgo (Cf. Kohler, 1982: 95-96).

Como nota Kohler, é impressionante o facto de que nenhum dos quatro fundadores da

bioquímica nos Estados Unidos era um biólogo químico, tendo estabelecido, todos, o

65

trabalho bioquímico sobre as bases assentes de uma disciplina mais firmemente

estabelecida. Eles tiveram, contudo, os mesmos problemas de falta de estudantes e

limitação de recursos que os seus colegas alemães, especialmente antes do virar do

século. Na realidade, eles até tiveram bastantes mais problemas, uma vez que as escolas

de medicina ainda estavam muito subdesenvolvidas nos Estados Unidos, especialmente

no que diz respeito à fisiologia. Haviam, contudo, outras hipóteses de trabalho para os

químicos fisiológicos, antes de 1900, de natureza mais prática, que apresentavam um

menor status relativamente a funções que tivessem a ver com a prática da própria

química fisiológica, como a química agrícola, onde a procura era muito maior.

Chittenden, Vaughan, Atwater e Abel foram dos poucos que conseguiram sobreviver

neste mercado de características generalistas como químicos fisiológicos especializados

(Cf. Kohler, 1982: 96-97).

Assim, Chittenden começou a ensinar química fisiológica na Sheffield Scientific School

em 1874 e, em 1882, ficou encarregue da primeira cadeira de química fisiológica dos

Estados Unidos, tendo dominado a disciplina durante três décadas (retirando-se em

1921). A escola de Chittenden esteve sempre sob um certo domínio de Yale. A sua

principal audiência era composta por estudantes com ambições no campo da medicina

que desejavam tirar um diploma em cursos colegiais pré-médicos como o seu, antes de

ingressar na própria faculdade de medicina. Era esta a base político-económica do

programa. É espantoso que um programa pré-médico conseguisse sobreviver num

contexto onde os pré-requisitos de entrada na faculdade de medicina eram muito baixos,

mas a principal audiência de Chittenden eram indivíduos com pretensões muito altas,

indivíduos que pretendiam, por exemplo, vir a leccionar nas faculdades de medicina.

Assim, entre 1880 e 1890, um número cada vez mais elevado de estudantes foi-se

inscrevendo no curso de biologia pré-médica. Como resultado, a química fisiológica

floresceu em New Haven, numa altura em que não havia mercado académico para

químicos fisiológicos profissionais. No entanto, não havia outras escolas como a de

Chittenden e, nestas condições, era possível dominar um mercado que era muito

limitado. Mas, a partir do ano de 1900, começou a haver uma grande procura de

químicos fisiológicos e, nesta altura, a escola de Chittenden era a maior fornecedora.

Para não dizer a única (Cf. Kohler, 1982: 97-101). Já em 1903, refere Fruton (1999), um

estudante de Chittenden, Benedict Mendel, tornou-se segundo responsável da cadeira de

química fisiológica e, devido ao aumento do trabalho administrativo que Chittenden

66

começou a ter que realizar, a determinada altura foi ele o grande responsável pelo

desenvolvimento do departamento. Sob a liderança de Mendel, o seu departamento

tornou-se, após a Primeira Guerra Mundial, num dos mais importantes centros de

nutrição do mundo (Cf. Fruton, 1999: 86-87).

Já Vaughan, desenvolveu a química fisiológica noutro contexto, um contexto bastante

menos viável que o referido anteriormente, durante os anos oitenta e noventa do século

XIX – a própria faculdade de medicina. Nesta altura, mesmo as melhores faculdades de

medicina eram bastante primitivas comparadas com as alemãs. O curso tinha três anos e

a anatomia ocupava a maior parte do tempo dedicado às disciplinas pré-clínicas. Só

quando foi introduzido um quarto ano no curso é que houve espaço no currículo para

disciplinas como a fisiologia, a patologia geral ou a química fisiológica. As ciências

pré-clínicas eram ensinadas por professores-médicos, e não por professores

profissionais assalariados. A maior parte dos primeiros anos do curso eram dedicados a

disciplinas elementares, como física, biologia ou química, e as disciplinas pré-clínicas

ocupavam o espaço estreito entre estas disciplinas elementares e as ciências clínicas.

Nestas condições, era difícil para os químicos fisiológicos conseguir organizar matérias

de estudo mais avançadas e definir papéis especializados, mas foi isso que Vaughan fez

na University of Michigan Medical School, tendo estabelecido uma cadeira de química

fisiológica em 1875. Desde 1879 até 1921, Vaughan dominou esta cadeira num

contexto parecido com o de Chittenden, um contexto fortemente ligado às ciências

clínicas. Mas a audiência de Vaughan era bastante diferente da de Chittenden; ela era

composta unicamente por estudantes de medicina. Estes estudantes estavam apenas

interessados na química para a toxicologia e para a realização de análises de urina.

Neste contexto, a carreira de Vaughan começou a abranger outras realidades. Ele

começou a afastar-se da química fisiológica no sentido da higiene e da saúde pública, de

tal forma que, a determinada altura, a cadeira de química fisiológica deixou de existir

como um departamento separado. Na realidade, Vaughan havia-se especializado em

química fisiológica numa altura e num lugar onde esta estava limitada ao ensino da

urologia. As grandes faculdades de medicina davam uma maior ênfase à prática clínica,

o que limitava as oportunidades na química fisiológica (Cf. Kohler, 1982: 101-104).

Abel, por sua vez, desenvolveu a química fisiológica na Johns Hopkins Medical School.

Esta escola era um local de elite, e apresentava tudo o que de melhor havia nas

universidades alemãs, como refere Kohler. As especialidades biomédicas estavam todas

67

representadas, incluindo a farmacologia e a química fisiológica. E, nesta faculdade, ao

contrário do que acontecia em Michigan, eram requeridos aos alunos, para admissão,

quatro anos de estudos colegiais em campos como a química orgânica e inorgânica.

Assim, disciplinas como a química fisiológica e a química médica podiam ser ensinadas

como disciplinas biomédicas intermédias, onde já se lhes concedia mais tempo. No

entanto, a determinada altura, começaram a ocorrer problemas financeiros, e a química

fisiológica acabou por se ligar à farmacologia. Foi por esta razão que Abel, responsável

pela cadeira de farmacologia, começou a dar aulas de química fisiológica, embora, na

verdade, o próprio não se sentisse preparado para tal (Cf. Kohler, 1982: 104-105).

Abel tinha uma paixão pela química fisiológica desde o tempo em que tinha estudado

com Carl Ludwig em Leipzig (1884-6), mas havia terminado por concluir o curso de

medicina em Estrasburgo, pensando que esta hipótese lhe dava mais hipóteses de futuro.

Assim, neste sentido, e apesar de ter aumentado posteriormente os seus conhecimentos

químicos de forma a voltar à sua paixão da química fisiológica, o que chegou a fazer,

desenvolvendo estudos no domínio dos produtos tóxicos de degradação das proteínas e

dando aulas de química fisiológica (apenas durante um ano), sentiu sempre a sua falta

de treino sistemático na química. Por fim, quando um departamento separado de

química fisiológica foi implementado, o posto foi atribuído a Walter Jones, que havia

sido previamente enviado para a Alemanha para estudar com Kossel, em Magdeburgo

(Cf. Kohler, 1982: 105-107).

Assim, “Chittenden, Vaughan e Abel foram os únicos três bioquímicos americanos com

reputação internacional antes de 1900 [...] A baixa procura que havia pela química

fisiológica por parte dos estudantes de medicina tornou difícil a manutenção de papéis

especializados, a não ser onde investigadores empreendedores de talento excepcional ou

onde condições locais favoráveis o tornassem possível. Não havia muito no sistema

médico americano que pudesse ser sistematicamente mobilizado no sentido da criação

de uma disciplina, e as pessoas com talento eram desviadas para a química, medicina,

farmacologia ou higiene” (Kohler, 1982: 108).

Como foi referido relativamente aos casos do desenvolvimento da química fisiológica

na Europa, a fisiologia desempenhou normalmente um papel fundamental na forma

como a disciplina progrediu mas, à excepção de casos pontuais, como o de Chittenden,

esse não foi o padrão dominante nos Estados Unidos. Isto deve-se ao facto de que a

68

fisiologia era um recurso muito menos importante para os americanos do que para os

europeus. “Os anatomistas e os médicos viam a fisiologia como um acessório da

anatomia e da medicina clínica, e a batalha pelo status académico que os Alemães

haviam ganho por volta de 1870 estava ainda a ser travada nas escolas de medicina

americanas nos anos noventa do mesmo século [...] No Reino Unido, a biologia geral

desenvolveu-se a partir da fisiologia; nos Estados Unidos, a fisiologia permaneceu

como uma parte menor da biologia” (Kohler, 1982: 109). Assim, as limitações que os

fisiologistas sentiam nas faculdades de medicina não lhes permitiam considerar a

possibilidade de desenvolver a química fisiológica. A sua preocupação era a

manutenção da própria disciplina, numa altura em que os bioquímicos lutavam pela sua

própria independência, como refere Kohler. Nestas condições, nos anos 90 do século

XIX, era impossível a fisiologia lutar pela bioquímica, quando ambas as disciplinas

lutavam pela sobrevivência. Na realidade, a mais próspera escola de fisiologia nos

Estados Unidos durante esta época era a de Chittenden. Grande parte dos papers do

primeiro volume do American Journal of Physiology, fundado em 1898, provinham do

laboratório de Chittenden. Neste contexto, “a química fisiológica era uma parte muito

mais importante da disciplina nos Estados Unidos do que na Europa [...] Numa altura

em que os fisiologistas podiam começar a pensar em hipóteses expansionistas, já os

bioquímicos haviam estabelecido instituições separadas” (Kohler, 1982: 110-111).

Depois de 1900, como refere Kohler, a fisiologia e a química fisiológica

desenvolveram-se rapidamente nas faculdades de medicina, numa parceria menos

desigual com a clínica médica. As cadeiras pré-clínicas não eram mais uma mera forma

de chegar às cadeiras médicas e cirúrgicas de maior prestígio; as mais importantes

faculdades de medicina começaram a substituir os professores-médicos por professores-

investigadores assalariados, e a esperar mais resultados em termos de investigação; e os

métodos de ensino também começaram a mudar, havendo a realização de mais

demonstrações e exercícios laboratoriais (Cf. Kohler, 1982: 114).

Nos anos noventa do século XIX, a química fisiológica foi introduzida como disciplina

laboratorial obrigatória para todos os estudantes de medicina. Como consequência, no

início do século XX, muitas faculdades de medicina americanas estavam já a oferecer

um melhor treino laboratorial que as escolas europeias. Na realidade, os americanos

estavam a fazer uma coisa totalmente nova relativamente aos alemães: estavam a

proporcionar ensino médico a toda a gente e não apenas a um grupo selecto. “Os ideais

69

europeus, postos em prática numa sociedade mais democrática e menos hierarquizada,

davam lugar a instituições com um potencial de crescimento, recrutamento e

participação muito mais elevado” (Kohler, 1982: 115).

“O aumento crescente das disciplinas laboratoriais, que consumiam muito tempo,

exerceu uma pressão adicional nos currículos médicos tradicionais [...] Em meados dos

anos 90 do século XIX, um curso de quatro anos era a regra nas melhores faculdades de

medicina” (Kohler, 1982: 116).

Assim, com mais tempo disponível, as ciências intermédias passaram a ocupar quase

metade do currículo médico. Estes cursos mais longos começaram a justificar um maior

investimento em professores mais especializados, os quais pediam melhores condições

de trabalho e mais tempo, tanto no que diz respeito ao currículo escolar como à

investigação. As expectativas estavam a aumentar e, o custo, nesta altura, não era

elevado, como refere Kohler. As expectativas ainda não eram muito altas; o ensino nos

hospitais permitia poupar dinheiro, pois não era necessário construir outro tipo de

instalações mais modernas; e os professores constituíam uma nova onda de talento

local, sem grandes reputações e, portanto, sem grandes exigências (Cf. Kohler, 1982:

116-117).

Neste contexto, puderam-se realizar grandes melhorias no ensino durante os anos

noventa do século XIX. Mas a verdade é que estas medidas não transformaram

fundamentalmente a estrutura política e económica das faculdades. Os ideais científicos

eram elevados, mas as oportunidades de desenvolvimento profissional ainda eram

modestas. As faculdades de medicina ainda eram instituições “proprietárias”, isto é, elas

eram geridas como empresas para dar lucro, e não mantinham laços efectivos com as

universidades. Assim, mesmo com elevados ideais científicos, quaisquer medidas que

limitassem a entrada de estudantes nas faculdades, como o aumento dos pré-requisitos

de entrada, na forma, por exemplo, de estudos colegiais prévios, não eram aceites, pois

a única fonte de rendimento das faculdades eram as propinas dos alunos. Nesta altura,

realmente, a ênfase continuava no ensino e não na investigação, a qual era apregoada

mas não fazia ainda parte das carreiras académicas. Estes professores que iniciaram as

melhorias e apontaram para a reforma do ensino médico que estava para acontecer,

acreditavam na investigação, mas eles próprios não a puseram em prática (Cf. Kohler,

1982: 117-120).

70

Assim, a partir do início do século XX, começaram a ser traçadas as linhas mestras que

iriam conduzir um processo generalizado de reforma do ensino médico. Neste sentido, a

American Medical Association e a Rockefeller General Education Board, a última na

pessoa de Abraham Flexner, puseram a reforma a correr em todas as universidades do

país, com vista à reestruturação radical da instituição médica, de forma a alcançar os

novos ideais. Neste sentido, foi criado um mercado nacional nas ciências biomédicas

onde a competição por estudantes acelerou o processo de mudança. Para além disso,

deu-se a transição das antigas faculdades proprietárias para o sistema universitário,

provavelmente a mudança mais radical sofrida pelas faculdades, neste processo de

reforma, em termos político-económicos. As faculdades de medicina passaram a ter

uma ligação formal com as universidades, as quais eram capazes de mobilizar recursos

estáveis para a contratação de mais pessoal, e para o melhoramento das condições das

faculdades, permitindo que cadeiras individuais se expandissem e formassem

departamentos com pessoal qualificado, e com um orçamento estável destinado à

investigação (Cf. Kohler, 1982: 121-122).

No entanto, por outro lado, a dependência das faculdades de medicina relativamente às

universidades permitia que estas impusessem os seus valores académicos. Mais

concretamente, as universidades começaram a controlar as contratações, onde o papel

do professor-investigador passou a ser preponderante, e as promoções, onde era dado

cada vez mais valor à investigação (Cf. Kohler, 1982: 122).

Assim, neste contexto, em 1915, a maior parte das faculdades tinha já como pré-

requisito de entrada a realização de dois anos de estudos colegiais em matérias como a

física, a química e a biologia elementares. Estes pré-requisitos reduziam bastante o

número de estudantes habilitados a entrar nas faculdades, o que gerou uma crise

financeira responsável pela necessidade que referi anteriormente das faculdades se

unirem às universidades. Mas os problemas financeiros não atrasaram a reforma, pelo

contrário, como refere Kohler, eles foram o motor da mesma (Cf Kohler, 1982: 123-

124).

Às crises financeiras, as faculdades responderam com um aumento cada vez mais

pronunciado dos critérios académicos e com uma ligação cada vez mais cerrada às

universidades, de forma a poderem competir pelo mercado de “topo”. Este ciclo de

crises financeiras e mudanças sucessivas não terminaram até que se desse a emergência

71

de um novo sistema médico. Em mais nenhum país do mundo os médicos passavam

tanto tempo na escola, especialmente no que diz respeito às cadeiras pré-médicas e

biomédicas (Cf. Kohler, 1982: 124).

Na realidade, foram mesmo as cadeiras biomédicas as mais beneficiadas numa fase

inicial da reforma, uma vez que era consensual que estas disciplinas, como a bioquímica

e a fisiologia, haviam sido muito pouco desenvolvidas nas faculdades proprietárias, e a

sua transição para o sistema universitário era, em termos políticos, algo bastante mais

fácil de realizar do que pôr a cirurgia e a medicina sob controlo das universidades.

Assim, foi a transição da medicina e da cirurgia para o sistema universitário que fez

tremer todo o sistema, mas era geralmente aceite que as ciências biomédicas eram

necessárias em termos da prática médica, de forma que também estas aproveitaram a

onda da reforma (Cf. Kohler, 1982: 125).

Convém salientar, no entanto, como refere Kohler, que a reforma não foi realizada pela

American Medical Association, nem por Flexner, estes apenas deram, digamos assim, o

pontapé de saída. O motor da reforma, entre 1900 e 1910, foram as próprias faculdades

de medicina, que empreenderam um caminho gradual no sentido de elevados ideais

científicos (Cf. Kohler, 1982: 125-127).

Mas todo este processo dependia, em última instância, do sucesso nas inscrições de

estudantes, o que se veio a verificar. De facto, o número de inscrições começou a

aumentar gradualmente a partir de 1910 (Cf. Kohler, 1982: 132).

Assim, “à medida que as universidades foram ganhando controlo sobre as ciências pré-

clínicas, [como a bioquímica e a fisiologia], elas começaram a estabelecer critérios para

as contratações e promoções [...] A presença de estudantes de medicina mais

sofisticados tornou possível aos anatomistas, fisiologistas e bioquímicos ensinar

matérias mais especializadas” (Kohler, 1982: 158). Por outro lado, a investigação

também estava na ordem do dia. As universidades tinham grandes expectativas neste

sentido, e os próprios investigadores esperavam ser recompensados pelo seu trabalho de

investigação. Também no que diz respeito à investigação, os novos papéis académicos

encorajaram igualmente a constituição de novos estilos de investigação biomédica. Os

problemas de processos e de função começaram a conferir mais prestígio do que as

questões relacionadas com a morfologia. Da mesma forma, a fisiologia tradicional de

72

descrição e análise de substâncias químicas começou a suscitar menos interesse do que

os estudos que se estavam a realizar de processos enzimáticos em tecidos vivos. Neste

contexto, os anteriores químicos-médicos das faculdades proprietárias começaram a ser

rapidamente substituídos pelos novos bioquímicos (Cf. Kohler, 1982: 158-159, 166).

Como nota Kohler, “a maior parte dos químicos-médicos eram treinados, não como

químicos fisiológicos, mas como químicos ou médicos. A maioria não tinha interesse na

química fisiológica em si. Os químicos-médicos viam a química médica como um lugar

temporário enquanto esperavam por uma cadeira de medicina que lhes conferisse mais

prestígio [...] Na maior parte das cadeiras de química médica, a matéria consistia quase

inteiramente em química inorgânica elementar, com uma pequena parte de química

orgânica e química fisiológica empurrada para a parte final, e também em alguns

estudos de análises de urina e de toxicologia” (Kohler, 1982: 160).

Mas, em 1905, como já referi, a ligação das faculdades de medicina às universidades, e

o consequente aumento dos pré-requisitos de admissão, significava que os estudantes

que entravam na faculdade já haviam estudado química geral. Assim, a saída desta

matéria da disciplina de química médica, obrigou a que esta se especializasse,

constituindo uma nova disciplina – a bioquímica. Neste sentido, os químicos-médicos

passaram a ser substituídos por bioquímicos profissionais mais especializados, como

Otto Folin e Donald Dexter Van Slyke (dois dos maiores pioneiros desta disciplina),

num campo onde as hipóteses de progressão eram já maiores. Assim, aquilo que havia

constituído um papel marginal para os químicos-médicos, tornou-se a base para a

constituição de uma nova disciplina biomédica, que surgia em pé de igualdade com a

anatomia, a fisiologia e a patologia (Cf. Kohler, 1982: 164-168).

Neste momento, é importante referir o papel desempenhado pelo Rockefeller Institute

no desenvolvimento da bioquímica, especialmente antes de 1940, como refere Fruton

(1999). Foi nesta instituição que trabalhou Van Slyke, investigador que realizou

importantes contribuições para a química clínica, e Phoebus Levene, o líder de um

departamento que constituiu o centro da química bioorgânica nos Estados Unidos. Neste

departamento foi implantado um amplo programa de investigação no campo dos ácidos

nucleicos, das proteínas, dos hidratos de carbono, dos fosfolípidos, da estereoquímica,

etc. No entanto, as contribuições do Rockefeller Institute, no que diz respeito ao

desenvolvimento bioquímico, não se restringiram ao desenvolvimento teórico. Esta

73

instituição também desempenhou um papel importante na formação de pessoal, que era

depois enviado para os departamentos universitários, e na política académica,

estabelecendo critérios académicos para várias disciplinas (Cf. Fruton, 1999: 89-91).

Neste contexto, longe iam os tempos em que a química fisiológica ocupava um espaço

ultra-limitado nos currículos das anteriores faculdades proprietárias. De facto, como

refere Kohler, “no breve espaço de tempo de uma década, os antigos departamentos de

química médica das melhores faculdades de medicina já haviam sido reorganizados em

departamentos de bioquímica” (Kohler, 1982: 167), sendo que, neste período, a maior

fonte de recrutamento para a bioquímica continuava a ser a química, tal como havia sido

para a química fisiológica na altura das faculdades proprietárias, como já referi em

relação ao exemplo de Abel, que considerava ter poucas habilitações em química, razão

pela qual foi considerada a atribuição da posição de química fisiológica da University of

Michigan Medical School a vários químicos, entre os quais foi escolhido Walter Jones.

Na realidade, a existência de departamentos de bioquímica, independentes da fisiologia

e da química, e localizados nas faculdades de medicina, era uma medida bastante

consensual. Por um lado, no que diz respeito à localização da bioquímica nas faculdades

de medicina, os médicos não queriam perder as cadeiras biomédicas por razões

políticas, pois temiam que a criação desse precedente pudesse, eventualmente, levar à

perda de outras cadeiras, como a anatomia. Para além disso, a química fisiológica,

tradicionalmente, tinha sempre feito parte do currículo médico, esta disciplina havia

sempre sido parte constituinte da química médica. Então, as faculdades de medicina

eram o local onde se podiam encontrar químicos fisiológicos quando a procura pelos

serviços destes aumentou. Por esta mesma razão, não tinha lógica a bioquímica aparecer

ligada a departamentos de fisiologia ou de química, uma vez que a sua evolução havia

sido realizada directamente a partir da química médica, com uma ocupação literal do

espaço anteriormente ocupado por esta disciplina. Isto aconteceu porque, como já referi

anteriormente, o desenvolvimento da fisiologia nos Estados Unidos se deu de uma

forma muito lenta (Cf. Kohler, 1982: 168, 170-172).

Mas esta ligação das faculdades de medicina às universidades também tinha um preço.

“Os interesses dos bioquímicos americanos, em termos de investigação, estavam mais

fortemente orientados para as análises clínicas, comparativamente com a realidade

europeia, e menos para a fisiologia geral. Nos Estados Unidos, não havia uma escola

74

equivalente à de Hopkins” (Kohler, 1982: 193). Ainda havia algo da antiga química

médica na bioquímica americana. Na realidade, o padrão mais significativo da história

da bioquímica americana, antes de 1940, foi a sua forte ligação à medicina. A primeira

geração de bioquímicos americanos a adquirirem reputação internacional era conhecida

pelos seus feitos na bioquímica clínica.

Por outro lado, no que diz respeito às vantagens do sistema americano, em 1920 já a

maioria das faculdades de medicina dos Estados Unidos tinha um departamento de

bioquímica, possuindo esta disciplina um status idêntico às restantes disciplinas

biomédicas. Já no que diz respeito ao programa curricular, apesar das fortes relações

entre a bioquímica e a realidade médica, a ênfase do programa era bastante maior nos

princípios fundamentais do que nas aplicações clínicas; as sessões laboratoriais davam

um maior foco aos procedimentos analíticos e a questões relacionadas com o

metabolismo do que ao exame de materiais patológicos (Cf. Kohler, 1982: 194-195).

No que diz respeito à unificação e consolidação da disciplina nos Estados Unidos, como

refere Kohler, “antes da fundação de departamentos especializados, jornais e

sociedades, a bioquímica era exercida por indivíduos cuja filiação principal era à

química, à biologia, à patologia, à fisiologia ou à clínica médica. Porque a química

médica era concebida em termos tão estreitos, muita da melhor bioquímica era realizada

sob a égide de outras disciplinas” (Kohler, 1982: 196), isto apesar de estes indivíduos

não terem realizado esforços no que diz respeito à consolidação da disciplina que, de

facto, nos Estados Unidos, nasceu a partir da química médica (os fisiologistas, por

exemplo, podiam realizar bons estudos no campo da bioquímica, mas a verdade é que o

desenvolvimento atrasado da fisiologia nos Estados Unidos não permitiu que estes

investigadores desempenhassem um papel mais decisivo na emergência da bioquímica,

como havia acontecido no Reino Unido).

Para além disso, entre 1905 e 1915, várias instituições não académicas começaram a

criar cargos para bioquímicos profissionais. Institutos de pesquisa médica, laboratórios

de pesquisa e desenvolvimento industrial, agências reguladoras governamentais... todo

um conjunto de instituições que ofereciam oportunidades para carreiras de investigação

(Cf. Kohler, 1982: 196). Neste contexto, como era possível unificar a disciplina?

75

Em termos práticos, apenas para tentar sintetizar os esforços que se realizaram no

sentido da unificação disciplinar, em primeiro lugar, como nota Kohler, foi adoptada a

palavra “bioquímica” a partir do virar do século, sendo que antes de esta altura não

havia disciplina que tivesse tantas designações, tais como química animal, fitoquímica,

citoquímica, química fisiológica, química patológica, etc. Isto constituiu uma estratégia

política para quebrar a ligação à fisiologia que a designação “química fisiológica”

implicava. Para além disto, como medida unificadora, foi também criado o Journal of

Biological Chemistry, em 1905, que tinha como objectivo a publicação de todos os

papers relativos às ciências biomédicas, e a American Society of Biological Chemists,

em 1906-7, como meio político de consolidação dos interesses bioquímicos (Cf. Kohler,

1982: 197-198).

Para finalizar, em Portugal, a emergência da bioquímica deu-se com um certo atraso

relativamente a países pioneiros nesta disciplina. Na realidade, como refere Isabel

Amaral, o surgimento do primeiro grupo de investigação em bioquímica unido em torno

de um programa de investigação coerente e inovador em Portugal deu-se com um atraso

de quase três décadas face aos países onde a disciplina foi pioneira – a Alemanha e o

Reino Unido (Cf. Amaral, 2006: XXIII). No entanto, apesar deste atraso, existe um

ponto comum entre os países pioneiros na emergência da bioquímica e Portugal: o facto

de, em ambos os casos, as escolas fisiológica e de química orgânica terem

desempenhado um papel fundamental, embora com certas variações, na emergência da

disciplina. Assim, como refere Isabel Amaral “o processo de emergência da bioquímica

em Portugal difere do alemão e do britânico, na medida em que nestes países a

bioquímica surgiu de duas tradições científicas distintas, uma proveniente da fisiologia,

outra, da química orgânica, que concorreram, independentemente, para o seu reconheci-

mento como disciplina autónoma. Em Portugal, a bioquímica surgiu de forma sequen-

cial, primeiro como química fisiológica, na linha da fisiologia, especializando-se depois

como área de investigação, na linha da química orgânica” (Amaral, 2006: 338-339).

Assim, no que diz respeito à linha fisiológica, Marck Athias desenvolveu um programa

de investigação constituído por várias linhas de investigação distintas. Este programa

desenvolvido pela “escola” de Marck Athias, a qual se encontrava principalmente

sediada na Faculdade de Medicina de Lisboa, “iniciou-se pela histofisiologia nervosa,

em 1897 [...] Esta área alargou-se para abranger a histofisiologia geral a partir de 1905 e

diversificou-se para a fisiologia e a química fisiológica, a partir de 1911, e a

76

histopatologia a partir de 1923” (Amaral, 2006: 340-341). Foi este programa que levou

ao desenvolvimento da química fisiológica. Assim, pela acção de Ferreira da Mira e

Anselmo da Cruz, discípulos de Mark Athias, a disciplina de química fisiológica foi

instituída na Faculdade de Medicina de Lisboa, tendo sido leccionada, a partir de 1919,

por Ferreira de Mira. Já em 1929, Ferreira de Mira criou a Secção de Química Biológica

no Instituto Rocha Cabral. Kurt Jacobsohn, um bioquímico que havia sido assistente de

Carl Neuberg no Kaiser Wilhelm-Institut für Biochemie até 1929, foi a pessoa escolhida

para liderar a secção a partir dessa data. Assim, no que diz respeito à linha da química

orgânica referida anteriormente, é necessário salientar o nome deste investigador, cuja

“escola”, sediada no Instituto de Investigação Científica Bento da Rocha Cabral,

“assentou numa abordagem molecular dos fenómenos biológicos, no âmbito da química

orgânica” (Amaral, 2006: 344). Assim, mesmo tendo em conta várias vicissitudes

financeiras e de outros tipos que assolaram o Instituto Rocha Cabral ao longo dos anos,

foi essencialmente neste contexto que a bioquímica se desenvolveu em Portugal, tendo

sido um discípulo de Jacobsohn, Ruy E. Pinto, o líder do processo que conduziu à

criação de uma Licenciatura em Bioquímica no Departamento de Química da Faculdade

de Ciências da Universidade de Lisboa, já em 1992 (Cf. Amaral, 2006: 344-347).

2.2.4. Conclusão sobre as práticas interdisciplinares

Assim, quanto mais investigo a história da bioquímica, mais me afasto da tese de Kuhn

relativa à ausência de um período pré-paradigmático na emergência da bioquímica por

esta se ter desenvolvido a partir de ciências maduras. No entanto, também me afasto

cada vez mais de respostas concretas que procuro encontrar relativamente a

determinadas questões. Como referi anteriormente, é o meu objectivo perceber que tipo

de práticas interdisciplinares estão envolvidas no processo de emergência da

bioquímica. Ora, como os contextos institucionais e intelectuais em que se desenvolveu

a bioquímica são muito variados, poderemos pensar que poderão ser também variados

os tipos de práticas interdisciplinares em causa, ou pelo menos que poderão ser variadas

as características específicas de uma mesma prática interdisciplinar que se possa

considerar mais decisiva.

77

O meu objectivo não é enunciar um sem número de práticas interdisciplinares, mas sim

tentar apontar apenas uma que se possa considerar mais decisiva no processo da

emergência da bioquímica. No entanto, é preciso perceber que isto implica uma

definição clara daquilo que é a bioquímica. Na realidade, parece-me que para falar sobre

as práticas mais decisivas que possibilitaram a emergência desta disciplina, é necessário

partir daquilo que é o mais básico, e o mais básico é, de facto, partir de um ponto onde

se tenha estabelecido uma noção muito concreta daquilo que é a bioquímica. Neste

sentido, relativamente a este ponto, parece-me que é possível chegar a um consenso. Na

minha opinião, um aspecto fundamental na definição da bioquímica é a

consciencialização de que, no desenvolvimento desta disciplina, como refere Kohler

(precisamente o autor que representa a minha maior fonte de pesquisa em termos das

relações institucionais da bioquímica, as quais, como se pôde comprovar, tiveram uma

natureza altamente diversificada), com quem eu concordo, a biologia funcionou como

uma espécie de fonte de problemas a serem estudados, tendo a química funcionado

como meio de resolução desses problemas. Esta concepção da bioquímica parece-me

clara, tendo em conta os aspectos relatados nos pontos anteriores, onde foi discutido o

processo da emergência da bioquímica. Na realidade, foi sempre o desenvolvimento dos

conhecimentos e das técnicas químicas que permitiu resolver os conflitos entre as

diferentes visões existentes relativamente aos mecanismos da vida, e também o

posterior desenvolvimento da bioquímica depende do desenvolvimento das técnicas e

dos métodos químicos, aspecto que já referi anteriormente, o qual é destacado por

Fruton (1976). Esta ideia da bioquímica também se encontra bem expressa na visão que

Gowland Hopkins dela tinha. Hopkins, como referi no ponto 2.2.3., também esperava

que mais biólogos e fisiologistas se virassem para a bioquímica, mas a verdade é que

sentia que era mais fácil aprender novos problemas do que novas técnicas. Neste caso,

temos Hopkins a falar de problemas no contexto da biologia, e de técnicas no contexto

da química.

Então, quando afirmei anteriormente que os estudos bioquímicos realizados pré e pós

paradigma, os quais se começaram a desenvolver no início do século XIX, possuíam

importantes características semelhantes, estava-me a referir precisamente à natureza da

bioquímica que descrevi, onde a biologia funcionou sempre como uma espécie de fonte

de problemas a serem estudados, tendo a química funcionado como meio de resolução

desses problemas. No entanto, ao apontar para esta continuidade no que diz respeito aos

78

estudos bioquímicos, não quero com isto tirar significado ao momento em que se atinge

o primeiro paradigma da bioquímica, nem pretendo descaracterizar este conceito de

Kuhn. Como expliquei no ponto 2.2.2., o momento em que a bioquímica passou a

apresentar o seu primeiro paradigma é uma altura em que se deu uma clarificação

fundamental sobre a disciplina que atribuiu à mesma um domínio próprio com um nível

distinto de organização separado da fisiologia e da química. Apenas noto que os estudos

realizados antes (a partir do início do século XIX) e após o momento da emergência da

bioquímica (o momento em que a disciplina passou a apresentar o seu primeiro

paradigma), têm importantes características semelhantes que, na minha opinião,

definem precisamente aquilo que é o objectivo fundamental da disciplina. Claro que,

após a emergência da bioquímica, os estudos realizados no âmbito desta disciplina se

começaram a fazer num contexto diferente, onde passou a haver uma maior clareza

relativamente a determinadas questões que estavam a ser estudadas, o que,

naturalmente, terá também modificado ligeiramente a forma como alguns estudos

passaram a ser efectuados, mas o que me parece importante salientar, como disse, é que

os estudos bioquímicos que começaram a ser realizados a partir do início do século

XIX, os quais foram sofrendo modificações ao longo do tempo com as novas técnicas e

as novas descobertas que foram sendo produzidas (e neste ponto é necessário salientar

as descobertas que, do meu ponto de vista, levaram à emergência da bioquímica),

mantiveram sempre determinadas características que, como disse, no meu

entendimento, definem aquilo que é o objectivo fundamental da disciplina.

Assim, tendo em conta as práticas de importação, um tipo de práticas interdisciplinares,

as quais consistem na “cooptação, a favor da disciplina «importadora», de conceitos,

métodos e instrumentos já provados noutras disciplinas, [...] [onde, uma vez que] o

objectivo é resolver um problema da disciplina que toma a iniciativa do processo, a

incorporação é feita segundo os interesses da disciplina importadora, disciplina esta que

submete os dispositivos importados à sua própria lógica, os transfigura, os inscreve na

tradição teórica que é sua” (Pombo, 2004: 93), podemos então dizer que elas estiveram

na base da emergência da bioquímica e, também, naturalmente, nos posteriores

desenvolvimentos que foram e continuam a ser realizados no campo da bioquímica (ou

não correspondessem estas práticas de importação àquelas características essenciais dos

estudos bioquímicos que afirmei representarem o objectivo fundamental da disciplina),

surgindo a biologia como disciplina importadora de métodos e conceitos químicos para

79

resolver questões biológicas, sendo que, relativamente à biologia, me refiro mais

especificamente à fisiologia, e, no que diz respeito à química, seja necessário ressaltar o

papel representado pela química orgânica, embora a química inorgânica esteja também

envolvida neste processo de resolução de problemas.

Então, chegados a este ponto, temos já uma concepção clara da bioquímica, sendo esta

uma disciplina que estuda, em termos químicos, a estrutura e função de componentes

celulares como proteínas, lípidos, ácidos nucleicos, hidratos de carbono e outras

biomoléculas, que são compostos orgânicos que estão na base dos processos da vida.

Neste sentido, volto a reafirmar a forte ligação da química orgânica com a bioquímica e,

consequentemente, o importante papel representado por este ramo especializado da

química na resolução dos problemas biológicos de que Kohler fala.

No entanto, apesar de salientar o carácter decisivo das práticas de importação, não

apenas durante o período de desenvolvimento científico que levou à emergência da

bioquímica, que era o ponto fundamental ao qual queria chegar, de maneira a poder tirar

conclusões sobre a forma como os processos interdisciplinares permitem explicar o

“nascimento” da disciplina, mas também relativamente aos posteriores

desenvolvimentos bioquímicos que foram e continuam a ser desenvolvidos, o que

demonstra o carácter verdadeiramente interdisciplinar da disciplina, onde as práticas de

importação têm, como sempre tiveram, um papel determinante, isto não implica que não

existam práticas de cruzamento no processo de desenvolvimento bioquímico, que certos

conhecimentos sobre determinadas realidades químicas não sejam alcançados com a

ajuda de um número de aspectos biológicos, ou mesmo através de métodos

essencialmente biológicos. No entanto, o que a mim me parece importante salientar é

que, mesmo que algum conhecimento químico possa ser desenvolvido através de dados

biológicos, o objectivo final da bioquímica é utilizar estes mesmos conhecimentos

químicos, e outros, na procura de explicações para determinadas realidades biológicas.

Neste contexto, não é de estranhar, como já referi anteriormente, que a maior parte dos

mais importantes protagonistas da emergência da bioquímica tivessem bases

académicas no domínio da química, e houvessem poucos biólogos envolvidos neste

processo de consolidação disciplinar. Tal poderá parecer, de certa forma, paradoxal,

uma vez que os biólogos deveriam ser os maiores interessados em obter respostas para

aquilo que eram problemas de natureza biológica, mas quem possuía o conhecimento

dos métodos de aplicação de natureza química para a resolução dos problemas

80

biológicos eram, naturalmente, os próprios químicos. Eram eles que tinham os

conhecimentos necessários para realizar as experiências adequadas com vista à

resolução das questões de carácter inerentemente biológico e, como pensava Hopkins,

era mais fácil aprender novos problemas do que novas técnicas.

Voltando à questão relativa ao desenvolvimento pré-paradigmático, tal como descrito

por Kuhn, podemos dizer que tínhamos uma disciplina que já havia alcançado um certo

estado de maturidade, a biologia, mas, por outro lado, parece que estávamos na presença

de uma disciplina, a química orgânica, que ainda não havia alcançado um verdadeiro

estado de maturidade no momento em que se começaram a dar os primeiros passos no

que diz respeito ao desenvolvimento da bioquímica. Na realidade, quando se deu o

começo da discussão bioquímica, ainda imperavam ideias vitalistas acerca das

moléculas que constituíam os organismos vivos. Só por volta de 1860, já com a ideia

clara de que as moléculas orgânicas, tal como as moléculas inorgânicas, eram

compostas de elementos presentes em proporções fixas e múltiplas, é que se deu a

emergência da química orgânica como ramo independente da ciência e com as

características que hoje lhe reconhecemos. Neste sentido, pode-se dizer que o

desenvolvimento da bioquímica acompanhou de perto o desenvolvimento da química

orgânica e, ao contrário do que diz Thomas Kuhn, a bioquímica passou, de facto, por

um período de desenvolvimento pré-paradigmático. Daí que a emergência da disciplina

tenha sido um processo relativamente longo. Só a partir do momento em que foram

sendo alcançados determinados conhecimentos técnicos, essencialmente ao nível da

química orgânica, é que, paralelamente, se foi dando o desenvolvimento da bioquímica,

de tal forma que a bioquímica também só alcançou um certo nível de maturidade

quando a química orgânica se apresentava já como uma disciplina madura. Mas a

discussão bioquímica, o desenvolvimento pré-paradigmático relativamente à

bioquímica, já havia começado há muito tempo. No entanto, queria deixar bem claro

que quando falo em biologia, me estou a referir, como já disse, à fisiologia como ramo

da biologia que trata das funções dos organismos vivos e da constituição destes mesmos

organismos. Ou seja, quando falo na resolução de problemas biológicos pela química,

estou a referir-me à determinação da constituição química dos organismos e à

explicação de certas funções dos organismos através da química. Refiro-me,

precisamente, como disse anteriormente, ao estudo, em termos químicos, da estrutura e

função de componentes celulares como proteínas, lípidos, ácidos nucleicos, hidratos de

81

carbono e outras biomoléculas, que são compostos orgânicos que estão na base dos

processos da vida. Neste sentido, poderíamos então pensar que também a biologia ou,

mais especificamente, a fisiologia, não era uma ciência madura na altura em que havia

um desconhecimento relativamente às estruturas químicas e funções de compostos

como os que referi anteriormente. No entanto, não é esse o caso, simplesmente porque

neste ponto existe, de facto, uma falta de maturidade, mas não é da biologia nem da

fisiologia, é já da própria bioquímica na fase em que se iniciaram os estudos relativos a

esta disciplina, sendo que estes estudos bioquímicos se desenvolveram precisamente

com o objectivo de analisar, em termos químicos, as estruturas e funções dos compostos

de que falei, os quais estão na base de todos os processos da vida.

Em relação à análise que faço acerca do que Thomas Kuhn diz sobre a bioquímica,

queria deixar claro que, apesar do autor afirmar que na emergência da disciplina não

houve uma fase de desenvolvimento pré-paradigmático, aspecto com o qual não

concordo, eu não faço uma crítica às teses do autor relativamente ao período pré-

paradigmático. Na realidade, se tal fosse o caso, não utilizaria precisamente estas teses

de Kuhn, as quais me parecem enquadrar-se de forma adequada com o exemplo da

emergência da bioquímica (isto apesar do autor pensar o contrário). Ou seja, eu não faço

uma crítica às suas teorias, as quais utilizo. Critico apenas a leitura que o autor faz da

área de estudos bioquímicos. Kuhn afirma que áreas de estudos como a bioquímica não

apresentam período pré-paradigmático por serem fruto da confluência de especialidades

já amadurecidas. Ora, como já afirmei, eu discordo que a área de estudos bioquímicos

tenha sido fruto de especialidades amadurecidas, pois a química orgânica ainda não

tinha alcançado a sua maturidade no momento em que começou a discussão bioquímica,

no momento em que, de facto, já havia aparecido uma área de estudos bioquímicos.

Assim, este período em que haviam estudos bioquímicos e também, naturalmente,

estudos de química orgânica, onde ambas as disciplinas ainda não apresentavam,

utilizando a terminologia de Kuhn, o seu primeiro paradigma, foi o período onde se deu

o desenvolvimento pré-paradigmático da bioquímica. Assim, uma vez que até poderia

ter concordado com Kuhn, caso o seu exemplo tivesse sido outro neste ponto específico

relativo ao desenvolvimento pré-paradigmático (de facto, áreas de estudo que se iniciam

a partir da confluência de outras áreas de estudo já totalmente amadurecidas, não

apresentarão, naturalmente, todos os aspectos que Kuhn refere relativamente ao

desenvolvimento pré-paradigmático. Haverão, naturalmente, debates internos sobre a

82

disciplina, mas os dados sob escrutínio estarão ordenados, não haverá aquela busca ao

acaso e desordem caracterizadoras do momento pré-paradigmático), o máximo que

posso dizer é que não concordo com a sua frase, não concordo com o exemplo que dá da

bioquímica, mas penso que as suas teses relativas ao desenvolvimento pré-

paradigmático são aplicáveis ao desenvolvimento científico inicial de várias disciplinas,

tais como a óptica física, como relatei no princípio do ponto (2.2.), e a própria

bioquímica.

Claro que as ideias de Kuhn acerca do desenvolvimento científico vão bastante mais

além desta questão. Estou-me a referir a questões que têm a ver com as mudanças de

paradigma, onde as posições de Kuhn são consideradas como sendo relativistas por

muitos autores (e também por mim). Penso que, neste campo, existem problemas que é

legítimo questionar, mas, no que diz respeito às teses de Kuhn relativas ao

desenvolvimento científico, não posso tirar grandes conclusões, pois o estudo realizado

nesta parte do trabalho diz respeito, essencialmente, ao período pré-paradigmático, o

período que vai até ao ponto em que é alcançado o primeiro paradigma de uma

disciplina.

Na verdade, apesar do objectivo principal desta parte do meu trabalho ter sido a

identificação das práticas interdisciplinares que levaram à emergência da bioquímica,

isto de maneira a perceber a forma como os fenómenos interdisciplinares podem

conduzir à formação disciplinar, teci também algumas considerações sobre as práticas

interdisciplinares existentes pós paradigma. Tal é apenas natural, uma vez que as

práticas que entendo terem estado na base da emergência da bioquímica, apontam para

determinadas características invariáveis relativamente àquilo que se podem considerar

estudos bioquímicos. Neste sentido, como disse, teci também algumas considerações

sobre os estudos bioquímicos numa altura em que já se havia alcançado o primeiro

paradigma da disciplina, de forma a dar a entender, de forma ampla, o carácter

interdisciplinar da disciplina. No entanto, mesmo assim, não me é possível tirar

conclusões acerca das alegadas posições relativistas de Kuhn, pois os estudos pós-

paradigmáticos de que falo são sempre referentes ao primeiro paradigma da bioquímica.

Refiro-me àquele que, no meu entendimento, é o paradigma actual da disciplina, o qual

surgiu nos anos trinta do século XX, sendo que as posições de Kuhn consideradas como

relativistas por vários autores têm a ver com o momento em que se dá uma mudança de

paradigma através de uma revolução científica, sendo que Kuhn, como já afirmei

83

anteriormente (no ponto 2.2.2), considera que o homem, através do novo paradigma,

não é confrontado com uma maior verdade.

84

3. Figuras da unidade da ciência da bioquímica e o resultado da sua

acção

Se na primeira parte do meu trabalho (ponto 2.), tentei identificar o momento em que se

deu a emergência da bioquímica, e perceber a forma como se processou esta emergência

a partir do estudo do tipo de práticas interdisciplinares que estiveram na sua base, nesta

segunda parte (relativa a todo o ponto 3.) tenho como objectivo ver de que modo as

figuras da unidade da ciência, como descritas por Olga Pombo no seu livro Unidade da

Ciência – Programas, Figuras e Metáforas (2006), intervieram no período em que, do

meu ponto de vista, se desenvolveu a discussão que levou à emergência da bioquímica

(por outras palavras, no período pré-paradigmático da bioquímica, utilizando a

terminologia de Kuhn). Finalmente, pretendo verificar os resultados da acção destas

figuras no momento em que considero que a bioquímica se acabava de apresentar como

uma disciplina com um domínio científico próprio (uma disciplina já com o seu

primeiro paradigma, utilizando, de novo, a terminologia de Kuhn), para perceber se,

nessa altura, estávamos, de facto, na presença de uma disciplina com um certo nível de

maturidade. Assim, num primeiro momento, no âmbito da república dos sábios,

analisarei algumas discussões de teor bioquímico que me parecem relevantes quanto ao

desenvolvimento da disciplina e que se deram entre vários tipos de investigadores

(biólogos, químicos...) no momento pré-paradigmático; no âmbito da biblioteca,

apresentarei um número de livros, revistas especializadas e papers científicos

representativos da disciplina, originados no contexto anterior; em termos da escola,

identificarei as disciplinas curriculares mais importantes que foram criadas já com o

intuito da transmissão de conhecimentos no âmbito de questões que se podem designar

de bioquímicas; no âmbito dos museus, apresentarei alguns artefactos museológicos

relativos à fase pré-paradigmática em estudo; e, finalmente, em termos da enciclopédia,

irei falar do momento em que determinadas palavras representativas deste momento

pré-paradigmático foram introduzidas na enciclopédia. Num segundo momento, em que

pretendo avaliar o resultado da acção das diferentes figuras da unidade da ciência na

constituição da bioquímica, irei revelar, no âmbito da república dos sábios,

determinadas discussões de teor científico que se deram entre bioquímicos numa altura

em que se acabava de alcançar o primeiro paradigma da bioquímica; no âmbito da

85

biblioteca, irei apresentar alguns livros, revistas especializadas e papers científicos

produzidos também no ponto subsequente à formação do primeiro paradigma da

bioquímica; em termos da escola, irei identificar as primeiras disciplinas que

apareceram já com a designação formal de bioquímica; no âmbito dos museus, irei

apresentar artefactos museológicos relativos, também, ao momento subsequente à

emergência da bioquímica; e, finalmente, em termos da enciclopédia, irei falar do

momento em que a palavra “bioquímica” foi introduzida na enciclopédia. Claro que

apresentarei todos estes estudos integrados de uma forma cronológica. Isto é, no que diz

respeito, por exemplo, ao caso da figura da unidade da ciência relativa aos museus, irei

apresentar uma lista ordenada de forma cronológica, onde estão já representadas as

figuras da unidade da ciência e os resultados da sua acção.

Em termos práticos, poderá parecer estranho eu fazer, neste ponto relativo ao estudo das

figuras da unidade da ciência, também o estudo sobre os seus resultados, utilizando

exactamente as figuras da unidade da ciência. Por outras palavras, poderá parecer

estranho eu utilizar uma figura da unidade da ciência para estudar o diálogo entre

biólogos e químicos e, depois, voltar a utilizar a mesma figura da unidade da ciência

para estudar o diálogo entre bioquímicos. Na realidade, como já referi, as figuras da

unidade da ciência são dispositivos gerais que agrupam as diferentes ciências através de

determinados mecanismos. Então, porquê utilizar as figuras da unidade da ciência para

estudar a bioquímica, uma ciência individual? A realidade é que todas as figuras da

unidade da ciência dizem respeito a uma integração disciplinar, ou seja, a uma

integração entre determinadas disciplinas específicas que pelo menos já se encontram

desenvolvidas ao ponto de serem foco de discussão entre um número de investigadores,

de integrarem currículos escolares e colecções de museus, de terem os seus estudos mais

ou menos significativos representados em livros, manuais ou papers científicos e de

terem já um elevado número de entradas inscritas numa enciclopédia.

Por outras palavras, as figuras da unidade da ciência apontam para a formação de

disciplinas específicas já com um certo grau de maturidade, sendo que é a integração de

conhecimentos dessas disciplinas através das várias práticas relativas às figuras da

unidade da ciência que pode levar à emergência das novas ciências que se apropriam

dos conhecimentos das primeiras. A maior parte das novas ciências, especialmente a

partir do momento em que o fenómeno da especialização disciplinar se tornou mais

pregnante, emergiram a partir de bases sólidas. E estas bases sólidas são as ciências já

86

com um certo nível de maturidade, isto é, disciplinas onde se reconhece uma

participação nos diversos mecanismos que permitem a unificação das ciências, sendo

estes mecanismos a escola, a república dos sábios, o museu, a biblioteca e a

enciclopédia, isto é, as figuras da unidade da ciência. Assim, falando em termos menos

abstractos, relativamente à escola, por exemplo, é difícil conceber a existência de uma

ciência madura sem que esta esteja integrada no currículo escolar. Pelo contrário, a

integração no currículo escolar é indicativa da maturidade dessa disciplina. Por outro

lado, é a presença dessa disciplina na escola, em especial naquilo que à universidade diz

respeito, que permite que ela se articule com outras ciências, sendo que é esse processo

de articulação que permite a formação de novas disciplinas, as quais se encontram

ligadas às disciplinas “mãe”. É neste sentido que falamos em figuras da unidade da

ciência, enquanto dispositivos materiais que oferecem as condições de possibilidade

para o desenvolvimento científico.

Por outras palavras, existe uma unidade da ciência interdisciplinar que liga as diferentes

disciplinas, seja através do diálogo entre praticantes da ciência, seja através da

transmissão de conhecimentos que se estabelece na escola, seja através de uma

comunicação de conhecimentos na forma de livros ou papers científicos, seja através

dos diferentes artefactos que se encontram em museus organizados em colecções ou seja

através das entradas de uma enciclopédia.

Concluindo, quando falo sobre as figuras da unidade da ciência, vejo-me quase que

obrigado a falar sobre o resultado da sua acção nos mesmos termos. Uma vez que só

com a existência de um desenvolvimento escolar da bioquímica, de congressos e

colóquios entre bioquímicos, de livros e papers científicos relativos a esta disciplina, de

artefactos museológicos desta disciplina, e das palavras mais representativas desta

disciplina que se encontram inscritas na enciclopédia, só partindo de uma realidade em

que estes dispositivos existam de facto para a disciplina em questão, é que podemos

então falar numa nova disciplina científica. E, de facto, quando falo nos resultados da

acção das várias figuras da ciência, estou também já a falar, implicitamente, da

integração disciplinar, uma vez que me estou a referir ao resultado da integração que se

deu entre a biologia e a química, integração essa que permitiu a emergência da

bioquímica.

87

No entanto, é necessário deixar claro que nem todas as novas disciplinas se começaram

a desenvolver a partir de ciências maduras. Na realidade, o caso da bioquímica é

bastante eloquente no que diz respeito a este tema. Como já tive oportunidade de

clarificar, a bioquímica não se começou inicialmente a desenvolver a partir de duas

disciplinas maduras. Ela como que se foi desenvolvendo paralelamente à química

orgânica. Isto significa que este período de desenvolvimento prévio à formação do

primeiro paradigma da bioquímica (utilizando a terminologia de Kuhn) não foi um

período curto. Eu penso que este facto faz da bioquímica um bom objecto de estudo no

que diz respeito a várias questões abordadas neste trabalho. A bioquímica, por um lado,

como foi possível perceber a partir do estudo relativo à primeira parte do trabalho,

constitui uma disciplina onde se deram importantes processos de interdisciplinaridade

que levaram à sua emergência e, por outro lado, é uma disciplina onde estes processos

interdisciplinares pré-paradigmáticos se desenvolveram num largo período de tempo.

Estes aspectos, na minha opinião, são importantes, pois permitem estudar este processo

interdisciplinar pré-paradigmático em maior pormenor, ou, pelo menos, proporcionam

um campo de estudo mais alargado no que diz respeito a este tema.

Assim, concluindo, o objectivo final do meu estudo nesta segunda parte do trabalho é

demonstrar o estatuto disciplinar da bioquímica, utilizando o conceito das figuras da

unidade da ciência como descritas por Olga Pombo (2006), as quais, como já referi na

introdução, constituem um conjunto de formas institucionais e dispositivos materiais

que garantem a articulação dos saberes e impedem a infinita especialização e

pulverização das ciências. Assim, podendo eu concretizar com sucesso este estudo e

apresentar bons argumentos no que diz respeito à relação da bioquímica com as figuras

da unidade da ciência, terei, então também, revelado a maturidade da disciplina e o

interesse que a comunidade científica no seu todo reconhece a esta mesma disciplina no

quadro geral dos saberes. Estamos, assim, perante uma perspectiva de análise

interdisciplinar onde as figuras da unidade da ciência se revelam claramente como

condição necessária para o desenvolvimento da própria Ciência.

88

3.1. República dos sábios

A emergência e a consolidação da bioquímica como disciplina autónoma implicaram o

estabelecimento de vários tipos de contactos inter-pessoais, quer na forma de meras

relações informais, quer na forma de congressos ou outro tipo de reuniões científicas.

Assim, aquilo que pretendo fazer neste ponto é indicar alguns exemplos deste tipo de

contactos que se estabeleceram desde o momento em que a discussão começou até ao

momento em que a bioquímica se apresentava já como uma disciplina consolidada.

Em termos da república dos sábios, é importante realçar o papel representado pelas

associações. Este tipo de organizações eram formadas no sentido de unificar uma classe,

e no âmbito destas mesmas associações eram realizadas reuniões e congressos onde se

discutiam questões teóricas e organizacionais que permitiam estabelecer consensos (ou

não), entre vários investigadores. Algumas destas associações tiveram um papel muito

importante no desenvolvimento da bioquímica, e penso que isso é algo que importa

assinalar neste ponto relativo à república dos sábios.

A American Medical Association, por exemplo, teve um papel fundamental no

desenvolvimento da bioquímica nos Estados Unidos, mesmo que indirectamente. Foi no

seio desta sociedade que se discutiu a forma como se iria realizar a reforma do sistema

médico americano, no início do século XX. Ora, como já referi anteriormente (no ponto

2.2.3.), todas as disciplinas biomédicas, incluindo a bioquímica, foram altamente

beneficiadas por esta reforma em termos do seu desenvolvimento (Cf. Kohler, 1982:

121-127).

Em Dezembro de 1905, nos Estados Unidos, Abel e William J. Gies planearam uma

reunião em conjunção com a reunião anual da Physiological Society, de forma a

organizar uma sociedade separada. Gies receava que os fisiologistas e os químicos

quisessem impedir a formação de uma sociedade separada de bioquímica. Foi neste

contexto que surgiu a American Society of Biological Chemists, em 1906-7. Os

fundadores desta sociedade sentiram que, naquela altura, a bioquímica já estava a ser

reconhecida pelos empregadores como uma especialidade ocupacional e que, portanto,

era altura de organizar uma instituição para proteger e expandir os interesses deste novo

tipo de investigadores. Inicialmente, foram feitos esforços no sentido de incluir na

89

sociedade membros de várias áreas com interesses em estudos bioquímicos, como

médicos, zoólogos, biólogos, bacteriologistas, etc., o que mostra o sentido

verdadeiramente interdisciplinar vivido inicialmente no seio da sociedade (Cf. Kohler,

1982: 200).

Já em 1911, no Reino Unido, foi criada a Biochemical Society por um grupo de

bioquímicos londrinos, como forma política de consolidar a posição ocupacional dos

bioquímicos na botânica, na agricultura, na medicina, na patologia e na saúde pública.

No âmbito desta sociedade eram realizadas reuniões em hospitais, estações agrícolas,

universidades, etc. (Cf. Kohler, 1982: 198)

Falando em universidades, Buchner, por exemplo, deu uma conferência na

Universidade de Tübingen, na Alemanha. Saliento esta conferência por aí ter sido

apresentado um seu tema de uma importância fundamental no que diz respeito ao

desenvolvimento da bioquímica. Em 1897, quando Buchner foi nomeado professor da

Universidade de Tübingen, um dos temas da sua conferência inaugural foi o processo da

fermentação. Esta conferência foi, quase de certeza, a primeira vez que se falou

publicamente sobre a observação de que a fermentação alcoólica não dependia de

células de levedura vivas, mas que podia ser promovida a partir de um extracto celular

das mesmas (Cf. Needham et al., 1992: 44).

Na Sociedade Kaiser Wilhelm também eram realizadas reuniões sobre questões

bioquímicas importantes. Em 1912 foi realizada uma reunião na presença de Emil

Fisher, um membro da direcção deste instituto, para discutir propostas relativas ao

estabelecimento de institutos de investigação biológica. Fisher tinha uma posição que

lhe permitia influenciar as mais altas instâncias governamentais no que diz respeito aos

apelos que lhe eram feitos pelos bioquímicos alemães para que houvesse um maior

reconhecimento institucional da bioquímica e, nesta reunião, Fisher mostrou alguma

simpatia por tais apelos (Cf. Fruton, 1999: 57-58).

Finalmente, após a Segunda Guerra Mundial, foi criada a Federation of European

Biochemical Societies (FEBS). Foi neste contexto que se realizou o primeiro congresso

internacional de bioquímica, em Cambridge, no ano de 1949, o qual foi seguido, numa

base trienal, por reuniões em várias cidades, incluindo Moscovo, Tóquio, Montreal e

Praga (Cf. Fruton, 1999: 99).

90

Outro aspecto interessante que tem a ver com esta figura da unidade da ciência diz

respeito às relações que se estabeleceram entre investigadores de diferentes países, o

que marcou a forma como a bioquímica se desenvolveu em determinados locais. Por

exemplo, nos Estados Unidos, a bioquímica desenvolveu-se inicialmente a partir do

exemplo alemão. Nas primeiras escolas americanas onde se leccionou a disciplina de

química fisiológica, estas cadeiras foram criadas, na sua grande maioria, por

investigadores que haviam estado na Alemanha, e que tentaram integrar uma forma de

desenvolvimento bioquímico nas realidades institucionais do seu próprio país (Cf.

Kohler, 1982: 93-96). Curiosamente, mais tarde, por volta de 1900, numa altura em que

as faculdades de medicina americanas estavam a proporcionar um treino laboratorial

melhor do que aquele que era realizado na maior parte das escolas europeias, vários

investigadores europeus, como Charles Sherrington, foram aos Estados Unidos ver

como é que eles estavam a fazer as coisas (Cf. Kohler, 1982: 115). Estes exemplos

mostram a articulação existente entre as figuras da república dos sábios e da escola. Na

realidade, como refere Olga Pombo “o destino da ciência, e o da república dos sábios

em que ela se materializa em cada época, está desde sempre ligado ao destino da escola.

E isto por uma razão decisiva. É que não há ciência sem escola. É de tal modo forte a

articulação entre a ciência e a escola que é frequente fazer coincidir uma nova disciplina

científica com a criação de uma cadeira ou licenciatura universitária” (Pombo, 2006:

150).

De facto, o exemplo de que falei da constituição da química fisiológica nos Estados

Unidos, em várias universidades, é exemplificativo daquilo que acabei de dizer.

Alguns investigadores americanos com interesses na área da bioquímica, realizaram

estudos neste domínio num país estrangeiro, onde trocaram várias experiências com

outros investigadores. Depois, chegados ao seu país, local onde não havia ensino escolar

no campo de estudos bioquímicos, tiveram necessidade de criar cadeiras curriculares

neste domínio disciplinar de forma a transmitir o conhecimento científico novo. Mas

estas cadeiras não eram as mesmas da Alemanha, eram já cadeiras diferentes, adaptadas

às realidades de um país diferente. Neste sentido, quase se pode dizer que eram cadeiras

novas que surgiram da articulação de conhecimentos entre vários investigadores. Neste

caso, dei um exemplo de uma articulação de conhecimentos que se estabeleceu entre

pessoas de diferentes países, mas isto foi apenas para demonstrar o carácter realmente

global deste tipo de articulação científica. Naturalmente, este tipo de troca de

91

conhecimentos que pode levar à criação de novas cadeiras, poderá surgir de uma

articulação de saberes entre “sábios” que podem ter nacionalidades diferentes, carreiras

académicas diferentes, etc.

Ainda no que diz respeito ao desenvolvimento da disciplina, há vários exemplos de

conversas informais ou outro tipo de contactos orais, dos quais há registo, que mostram

alguns aspectos interessantes de como se deu o desenvolvimento bioquímico. Estes

exemplos que irei referir não apresentam uma linha condutora específica, são apenas

alguns casos, que me parecem interessantes, de contactos inter-pessoais que se deram

(ou que não se deram, no que diz respeito ao último exemplo) no âmbito do campo da

bioquímica, e que mostram a importância da figura da república dos sábios.

Por exemplo, um destes casos tem a ver com o interesse que alguns químicos orgânicos

alemães tinham pelo campo da bioquímica. Desde os anos setenta do século XIX até aos

anos trinta do século XX, os sucessivos ocupantes da cadeira de química orgânica de

Munique, Adolf von Baeyer, Richard Wïlstater e Heinrich Wieland, participaram

activamente em debates sobre os mecanismos químicos da fermentação, da acção

enzimática e da oxidação biológica (Cf. Kohler, 1982: 36)

Outro exemplo tem a ver com a grande quantidade de visitantes estrangeiros que Claude

Bernard recebia no seu laboratório. Um dos visitantes foi Willy Kühne, que deu

continuidade ao trabalho de Bernard no campo dos enzimas pancreáticos. Outro

visitante foi o britânico William Pavy, que trabalhou no estudo da diabetes (Cf. Fruton,

1999: 60-61).

Outro exemplo ainda, diz respeito ao início da carreira de Gowland Hopkins, em

Cambridge. Hopkins havia sido treinado como químico, mas o facto de ter sido

apontado para dar aulas de química fisiológica em Cambridge tem a ver com o interesse

que o investigador tinha relativamente aos problemas da nutrição e do metabolismo, e

com os contactos que mantinha com um grupo de jovens químicos e fisiologistas que

trabalhavam com Ernest Starling, nomeadamente, J. B. Leathes e William Bayliss,

contactos que lhe possibilitaram promover os seus conhecimentos nesse seu campo de

interesse, no qual ele inicialmente sentia que não possuía as credenciais suficientes (Cf.

Kohler, 1982: 49). Já Abel, nos Estados Unidos, que havia tirado o curso de medicina,

sentia que tinha poucas qualificações no campo da química para dar a cadeira de

92

química fisiológica na University of Michigan Medical School, razão pela qual se

dirigiu para Berna com o intuito de estudar química clínica com Marcel Nencki (Cf.

Kohler, 1982: 105-106).

Por último, gostaria de falar num caso onde houve restrição de contactos entre

investigadores. Como refere Kohler, Otto Warburg, sem dúvida um nome incontornável

no que diz respeito ao desenvolvimento da bioquímica, tinha pouco interesse em treinar

uma nova geração de bioquímicos no Instituto de Biologia Experimental Kaiser

Wilhelm. Ele utilizava os seus investigadores, essencialmente, como técnicos

especializados para resolverem os problemas que ele próprio formulava. Diz Kohler que

Warburg impedia o seu mais brilhante pupilo, Hans Krebs, de aplicar os seus métodos

ao metabolismo intermediário (a linha de estudo que mais tarde conduziu Krebs à

descoberta do ciclo da ureia e do ciclo dos ácidos tricarboxílicos); que havia mandado

embora do seu laboratório George Wald, um jovem biofísico americano, quando se

tornou claro que este investigador iria seguir a sua própria linha de investigação; e que

havia pedido aos seus trabalhadores para cortarem todos os contactos com um

bioquímico importante que estava de visita por vê-lo como um possível competidor.

Kohler conclui dizendo que as limitações do instituto de Warburg não eram apenas

resultado do seu carácter idiossincrático, mas reflectiam as fraquezas estruturais das

instituições bioquímicas alemãs (Cf. Kohler, 1982: 38-39). Assim, um fraco

desenvolvimento no que diz respeito à figura da unidade da ciência da república dos

sábios aponta para o fraco desenvolvimento estrutural das instituições bioquímicas

alemãs.

93

3.2. Escola

“O saber é irradiante pela sua própria natureza, difusivo, tende a comunicar-se”

(Pombo, 2006: 137). Esta frase é tão válida para este ponto como para o anterior, e

representa um aspecto muito importante daquilo que é o desenvolvimento científico.

Sem a escola, este desenvolvimento não existe mas, com ela, o progresso científico

realiza-se de uma forma natural. Os estudantes podem começar a partir daquilo que já

está conquistado, de tal forma que se pode dizer que hoje, um aluno que acaba a sua

licenciatura em Física sabe mais de física do que Newton. Neste sentido, a emergência

da bioquímica está profundamente ligada ao contexto escolar que se desenvolveu em

seu redor, sendo que um grande número de disciplinas, como a química fisiológica, a

patologia química, etc., ao indicarem já estudos bioquímicos, nos dizem bastante acerca

do desenvolvimento da bioquímica. Isto para além do surgimento de disciplinas

curriculares, num momento posterior ao surgimento das referidas anteriormente,

designadas já de bioquímica.

Assim, em termos práticos, aquilo que vou passar a fazer neste ponto do trabalho é

indicar as primeiras escolas onde se leccionaram cadeiras que já diziam respeito ao

estudo de questões bioquímicas, e outras escolas onde também se deram cadeiras com

estudos bioquímicos já num primeiro momento em que a bioquímica havia alcançado

um certo nível de maturidade. Ou seja, indicarei uma série de exemplos de escolas onde

se realizaram estudos bioquímicos desde o momento em que a discussão bioquímica

entrou na sala de aulas até ao momento em que a cadeira de bioquímica estava já

consolidada, e apresentarei estes exemplos de forma cronológica e por país. Claro que

irei dar mais atenção aos locais onde a disciplina se desenvolveu mais rapidamente, pois

são estes os locais que mostram de melhor forma a maneira como se deu a emergência

da bioquímica e os factores interdisciplinares que estiveram por detrás desta mesma

emergência disciplinar. No entanto, tenho a consciência de que, no que diz respeito a

este estudo, já me adiantei bastante no ponto onde referi os aspectos institucionais que

envolveram a emergência da bioquímica (ponto 2.2.3.). Nesse ponto do trabalho, fiz já

um estudo sobre a forma como se desenvolveram os vários programas disciplinares

académicos nos países onde a bioquímica se desenvolveu mais rapidamente mas, ainda

assim, indicarei agora, de uma forma resumida, tentando não me repetir (ou pelo menos

94

não muito, porque são inevitáveis algumas repetições, especialmente quando falar sobre

os países que referi no ponto 2.2.3., relativo aos aspectos institucionais que envolveram

a emergência da bioquímica), os nomes de algumas disciplinas, universidades e outros

aspectos escolares que representam, de certa forma, a maneira como se realizou o

desenvolvimento académico da bioquímica.

Na Alemanha, como já referi, houve essencialmente três períodos que importa registar,

no que diz respeito ao desenvolvimento da química fisiológica. O primeiro momento

deu-se entre 1840 e 1850, em que a Alemanha tomou uma rápida liderança no que diz

respeito ao desenvolvimento desta disciplina, tendo sido criadas cadeiras neste domínio,

essencialmente nas universidades do Sul deste país, como Tübingen, onde foi

estabelecida a primeira cadeira de química fisiológica em 1945, Friburgo, Erlangen,

Munique e Estrasburgo. A Universidade de Leipzig foi a única do Norte da Alemanha a

participar neste momento do desenvolvimento da química fisiológica. Nesta primeira

onda de criação da química fisiológica, a disciplina encontrava-se intrinsecamente

ligada à disciplina de química orgânica. No entanto, Por volta de 1870, os postos de

professor de química fisiológica apoiados na química orgânica da maior parte destas

universidades do Sul da Alemanha, onde a química orgânica se começava a separar das

faculdades de medicina, começaram a desaparecer, à excepção de alguns casos pontuais,

como em Tübingen e Friburgo (Cf. Kohler, 1982: 15-16, 25). O segundo momento em

que se deu um grande desenvolvimento académico da química fisiológica foi por volta

da década de setenta do século XIX, onde a química fisiológica passou a apresentar uma

forte ligação com a fisiologia. A criação de novas cadeiras de química fisiológica deu-se

com o aparecimento de novos institutos de fisiologia, essencialmente no Norte da

Alemanha, em universidades como as de Berlim, Breslau, Jena e Leipzig, sendo que

todos os institutos de fisiologia criados nesta onda tinham fortes ligações com a escola

de Berlim, de Johannes Müller e Hermann Helmholtz, procurando os seus ideais físico-

químicos. Este desenvolvimento da química fisiológica começou a esmorecer a partir de

1880 (Cf. Kohler, 1982: 26-31). Finalmente, o terceiro momento de desenvolvimento da

química fisiológica na Alemanha reporta ao ano de 1904, quando foi estabelecida a

obrigatoriedade da realização de um exame desta disciplina no âmbito do curso de

medicina. No entanto, a química fisiológica continuou nessa altura a ser uma subdivisão

da fisiologia, não havendo uma separação de cadeiras (Cf. Kohler, 1982: 32).

95

No entanto, apesar disto, a investigação bioquímica também foi realizada no âmbito de

outras disciplinas, como a química, a farmacologia, a patologia, a higiene e a clínica

médica. Assim, entre 1871 e 1880, foram criados lugares para professores de química

fisiológica em institutos de patologia em Berlim, Halle, Leipzig, Bern e Könisberg, tal

como cadeiras conjuntas de farmacologia e química fisiológica em Rostock e Giessen, o

que teve uma grande influência no desenvolvimento da química fisiológica (Cf. Kohler,

1982: 32-33).

Convém notar que os bioquímicos mais produtivos e influentes da Alemanha, durante o

período de 1920 a 1940, como já referi anteriormente, trabalhavam em institutos de

investigação, como o Instituto de Biologia Experimental Kaiser Wilhelm que, ao

contrário do que ocorria nas universidades, não incluíam uma componente escolar. No

entanto, é natural que existisse uma componente de ensino nestes centros de

investigação. Os investigadores mais novos tinham de aprender a partir dos

investigadores mais experientes. Já referi no ponto anterior que, no caso do Instituto de

Biologia Experimental Kaiser Wilhelm, Otto Warburg não tinha a intenção de formar

novos bioquímicos. A componente de ensino era muito limitada, sendo que Otto

Warburg tratava os seus investigadores essencialmente como técnicos especializados.

Mas o facto é que, mesmo neste contexto, bioquímicos importantes, como Hans Krebs,

que mais tarde veio a ser professor em Oxford, tiveram grande parte da sua formação

neste instituto (Cf. Kohler, 1982: 37-38).

Em termos do desenvolvimento académico da bioquímica em França, convém destacar

que, durante a segunda metade do século XIX, houve um número significativo de

químicos que realizaram contribuições importantes para a química orgânica e para a

bioquímica, como Marcellin Berthelot no Collège de France, Charles Adolfe Wurz na

Sorbonne, Charles Friedal na Sorbonne e, claro, Louis Pasteur na Ecole Normale

Supérieure e na Sorbonne. Entretanto, também é importante referir que no Collège de

France, François Magendie e Claude Bernard, que começou a dar aulas em 1853,

implementaram um importante programa de fisiologia experimental, isto no que diz

respeito ao desenvolvimento da bioquímica. Para além disto, o Instituto Pasteur, criado

em 1888, um importante centro no âmbito da investigação e da preparação de vacinas,

também foi importante em termos académicos. Após a formação do instituto, a

instrução de química biológica, realizada por Emile Duclaux, foi transferida da

Sorbonne para o Instituto Pasteur (Cf. Fruton, 1999: 35-48).

96

Mas já entre 1900 e 1950, a contribuição francesa para o corpo teórico da química

orgânica e da bioquímica foi muito menor do que havia sido anteriormente, comparando

com a realidade alemã, britânica e americana, essencialmente devido a uma sucessão de

situações políticas e militares que afectaram todos os aspectos da vida francesa a partir

de 1815 (Cf. Kohler, 1982: 35, 61).

No Reino Unido, como refere Robert Kohler, a bioquímica desenvolveu-se

essencialmente dentro de departamentos de fisiologia (disciplina que mantinha uma

relação privilegiada com a medicina), começando como um sub-domínio especializado

e, gradualmente, adquirindo um status independente, como uma disciplina separada,

essencialmente a partir do momento em que os químicos começaram a exercer uma

influência cada vez maior em termos da ocupação de cadeiras de química fisiológica.

Assim, foram estabelecidas aulas de química fisiológica nas faculdades de medicina

mais importantes, como o University College London, e as universidades de Cambridge,

Edimburgo, Glasgow, Kings e Oxford, entre 1895 e 1905, onde programas de fisiologia

experimental modernos haviam sido implementados entre 1870 e 1900. Seguiram-se

depois as universidades de província, no interior, onde se desenvolveram aulas de

química fisiológica entre 1909 e 1914, e as universidades técnicas de maiores

dimensões nos anos vinte. Uma excepção relativamente a este padrão deu-se na

Universidade de Liverpool, onde se estabeleceu a primeira cadeira de bioquímica, a

primeira a ter esta designação, na School of Public Health, em 1902 (Cf. Kohler, 1982:

40, 42, 55).

Com o passar do tempo, foi-se dando o aumento do influxo de químicos nos

departamentos universitários de fisiologia que referi inicialmente, o que resultou no

reconhecimento gradual da bioquímica como uma disciplina independente. A

bioquímica começou a separar-se da fisiologia antes da Primeira Guerra Mundial, e

várias cadeiras novas foram estabelecidas no período de reconstrução do pós-guerra.

Nas grandes universidades orientadas para a medicina, de Londres e Edimburgo, a

separação disciplinar aconteceu quando os bioquímicos adquiriram a responsabilidade

do ensino da química orgânica a estudantes de medicina. Já em Oxford e Cambridge,

não havia esta ligação à clínica médica, a criação de postos de bioquímica, neste

período, deu-se pela oferta de grandes doações de origem filantrópica (Cf. Kohler,

1982: 65-66).

97

No contexto do ensino da bioquímica no Reino Unido, também convém destacar o

papel fundamental desempenhado pelas instituições de investigação em Londres, como

o Lister Institute, o Welcome Physiological Research Laboratory e o National Institute

for Medical Research, as quais, não sendo instituições escolares propriamente ditas,

ofereceram treino e emprego a uma geração de bioquímicos antes do aparecimento de

grandes escolas, e um mercado regular para os bioquímicos nas universidades

britânicas. Estes centros funcionaram como uma fonte importante de bioquímicos à

medida que as cadeiras especializadas eram criadas (Cf. Kohler, 1982: 60).

No que diz respeito ao processo de desenvolvimento académico da bioquímica nos

Estados Unidos, é necessário salientar que muitas das práticas americanas tiveram a sua

fonte de inspiração nas práticas alemãs. Desta forma, as instituições bioquímicas

americanas, entre 1875 e 1900, apresentavam uma grande semelhança com as

instituições alemãs. Assim, na Sheffield Scientific School, Russell H. Chittenden

combinou a fisiologia com a química fisiológica ao estilo do seu mentor Willy Kühne,

tendo começado a ensinar química fisiológica em 1872, ficando posteriormente

encarregue, em 1874, da primeira cadeira de química fisiológica dos Estados Unidos.

Na University of Michigan Medical School, Victor C. Vaughan combinou a química

fisiológica com a higiene, tal como Pettenkoffer havia feito em Munique, tendo

estabelecido uma cadeira de química fisiológica em 1875. E, finalmente, a química

fisiológica foi incluída no departamento de farmacologia de John J. Abel, na Johns

Hopkins Medical School, tendo-se posteriormente separado como uma disciplina

individual, isto depois de Abel ter passado sete anos a estudar na Alemanha (Cf. Kohler,

1982: 93, 95-96). Assim, nenhum dos fundadores da bioquímica nos Estados Unidos era

um biólogo químico, tendo estabelecido, todos, o trabalho bioquímico sobre as bases

seguras de uma disciplina mais firmemente estabelecida. Para além disso, todos estes

programas de ensino estavam muito ligados à realidade médica, característica da

bioquímica americana que esteve sempre presente até bastante tarde (até cerca de 1940).

Assim, Chittenden, Vaughan e Abel foram os únicos três bioquímicos com reputação

internacional antes de 1900, pois havia uma baixa procura pela química fisiológica por

parte dos estudantes de medicina. Nesta altura, não havia muito no sistema médico

americano que pudesse ser sistematicamente mobilizado no sentido da criação de uma

disciplina, e as pessoas com talento eram desviadas para a química, medicina,

farmacologia ou higiene (Cf. Kohler, 1982: 96, 108).

98

No entanto, a partir do início do século XX, começaram a ser traçadas as linhas mestras

que iriam conduzir um processo generalizado de reforma do ensino médico, o que iria

ter enormes repercussões nas cadeiras biomédicas, como a bioquímica. Os ideais

científicos eram elevados, as faculdades de medicina aumentaram o número de anos dos

cursos, com o aumento dos estudos laboratoriais, e passaram também a solicitar pré-

requisitos de entrada mais exigentes, de tal forma que, a determinada altura, em mais

nenhum país do mundo os médicos passavam tanto tempo na escola, especialmente no

que diz respeito às cadeiras pré-medicas e biomédicas, como a bioquímica (Cf. Kohler,

1982: 121-125).

Assim, a presença de estudantes de medicina mais sofisticados tornou possível aos

bioquímicos ensinar matérias mais especializadas. Por outro lado, a investigação

também estava na ordem do dia, e os novos papéis académicos encorajaram a

constituição de novos estilos de investigação biomédica. Os problemas de processos e

de função começaram conferir mais prestígio que as questões relacionadas com a

morfologia. Da mesma forma, a fisiologia tradicional de descrição e análise de

substâncias químicas começou a suscitar menos interesse do que os estudos que se

estavam a realizar de processos enzimáticos em tecidos vivos. Neste contexto, os

anteriores químicos-médicos das faculdades de medicina num momento anterior à

reforma, altura em que a matéria da disciplina de química médica consistia quase

inteiramente em química inorgânica elementar, com uma pequena parte de química

orgânica e química fisiológica empurrada para a parte final, e também em alguns

estudos de análises de urina e de toxicologia, começaram a ser rapidamente substituídos

pelos novos bioquímicos. Na realidade, nos Estados Unidos, a bioquímica surgiu

directamente a partir da química médica, sendo que a química fisiológica havia sempre

feito parte desta disciplina neste país. (Cf. Kohler, 1982: 158-159, 160, 166,171-172).

Assim, em 1920, já a maioria das faculdades de medicina dos Estados Unidos tinha um

departamento de bioquímica, possuindo esta disciplina um status idêntico às restantes

disciplinas biomédicas. Mas esta ligação das faculdades de medicina às universidades

também tinha as suas desvantagens. Os interesses dos bioquímicos americanos, em

termos de investigação, estavam mais orientados para as análises clínicas,

comparativamente com a realidade europeia, e menos para a fisiologia geral. De facto, o

padrão mais significativo da história da bioquímica americana, antes de 1940, foi a sua

forte ligação à medicina (Cf. Kohler, 1982: 193-194).

99

Neste contexto, é importante referir o papel desempenhado pelo Rockefeller Institute no

desenvolvimento da bioquímica, especialmente antes de 1940. Esta instituição não foi

importante, apenas, em termos de investigação, mas desempenhou também um papel

importante na formação de pessoal que era depois enviado para os departamentos

universitários, e na política académica, estabelecendo critérios académicos para várias

disciplinas (Cf. Fruton, 1999: 89-91).

Também na Rússia dos Czares existem alguns exemplos académicos do

desenvolvimento da bioquímica. O estímulo destes desenvolvimentos surgiu, sobretudo,

fruto do contacto de alguns investigadores russos com aquilo que estava a ser realizado

nos laboratórios franceses e alemães. Neste sentido, Sergei Botkin, um médico que

havia trabalhado com Hoppe-Seyler e com Claude Bernard, nomeado professor da

Academia Médico-Cirúrgica de São Petersburgo, advogava o uso de métodos químicos

e a realização de vivissecções na medicina experimental. Um dos estudantes de Botkin,

Ivan Pavlov, professor de fisiologia em São Petersburgo desde 1896 até 1924, ficou

famoso pelo seu trabalho na fisiologia da digestão e na função cerebral. Outro médico,

Aleksandr Danilevski, que havia trabalhado no laboratório de Kühne em Berlim,

tornou-se professor de química fisiológica em São Petersburgo (1892-1923) (Cf. Fruton,

1999: 73).

Um caso especialmente notável é o da cidade de Kazan (que irei referir mais à frente no

ponto 3.4., referente aos museus), uma cidade de província. Apesar de haverem grandes

químicos em Moscovo e em São Petersburgo, foi em Kazan que emergiu uma das mais

distintas escolas de química orgânica, a qual contribuiu para o desenvolvimento das

novas ideias acerca da estrutura química e da valência, delineadas a meados do século

XIX. Nesta escola, como irei falar adiante, foram realizados importantes experiências

no domínio da fosforilação oxidativa, já nos anos trinta do século XX, por parte de

Vladimir Engelhardt, uma das figuras líderes do desenvolvimento institucional pós-

revolucionário da bioquímica na União Soviética (Cf. Fruton, 1999: 48-49, 74).

Já na Suécia, Olof Hammarsten, professor de química e fisiologia médica em Uppsala,

de 1883 até 1906, foi um grande impulsionador do desenvolvimento académico da

bioquímica. Várias edições do seu manual Lehrbuch der physiologischen Chemie,

foram consideradas das melhores que existiam na altura sobre o tema da química

fisiológica (Cf. Fruton, 1999: 72). Este facto torna bastante clara a articulação existente

100

entre as figuras da escola e da biblioteca. Como diz Olga Pombo, “como seria possível a

biblioteca sem que a escola tivesse preparado o terreno [...] para a produção da obra que

na biblioteca se reúne e conserva?” (Pombo, 2006: 188)

Mas, voltando à questão do desenvolvimento académico da bioquímica na Suécia, um

dos estudantes de Olof Hammarsten, Thorsten Thunberg, que se tornou professor de

fisiologia em Lund (1905-1938), fez contribuições importantes no domínio da oxidação

biológica. Já Hans Von Euler, que se tornou professor de química em Estocolmo,

também realizou estudos importantes no domínio da enzimologia. Por fim, também

houve um grande aumento da fama da bioquímica sueca com as conquistas

experimentais realizadas por Theodor Svedberg, professor de química física em Uppsala

entre 1912-1949, que se dedicou ao estudo das proteínas. Foi ele o inventor da

Ultracentrífuga de Svedberg, nos anos vinte do século XX (objecto sobre o qual falarei

no ponto 3.4., relativo aos museus) (Cf. Fruton, 1999: 72-73, 200).

Em relação às referências que realizei relativas a esta figura da unidade da ciência, noto

que em relação ao desenvolvimento académico da bioquímica na Rússia e na Suécia, dei

alguns exemplos acerca de conquistas e trabalhos científicos realizados por alguns

professores de uma forma que não fiz no caso dos outros países por duas razões

essenciais. Em primeiro lugar, porque tanto na Rússia como na Suécia, não apontei para

muitos casos onde se estivesse a falar exactamente da disciplina de química fisiológica

ou de bioquímica, como fiz para o caso dos restantes países (que é o que mais interessa

para o meu estudo). Indiquei, essencialmente, professores de outras disciplinas que

estavam a realizar investigações importantes no domínio da bioquímica, de forma que

se tratava necessário especificar que investigações eram estas, uma vez que não é

possível perceber, à partida, que um professor de química física, como Svedberg, tenha

realizado estudos no campo da bioquímica, se estes mesmos estudos não forem

referidos. Já no que diz respeito a professores de química fisiológica ou de bioquímica,

não existe obviamente a necessidade de fazer esta referência, porque a própria

disciplina, naturalmente, já indica o desenvolvimento de estudos no campo da

bioquímica. Em segundo lugar, também há alguns aspectos em relação ao

desenvolvimento académico, e em relação aos programas académicos na Alemanha,

França, Reino Unido e Estados Unidos que já referi em grande pormenor no ponto sobre

o contexto institucional que envolveu a emergência da bioquímica (ponto 2.2.3.), pelo

101

que não achei necessário repetir, embora tenha acabado por fazê-lo em vários

momentos.

Na realidade, como acabei de afirmar, são os estudos sobre o desenvolvimento

académico na Alemanha, França, Reino Unido e Estados Unidos que têm maior

interesse no que diz respeito ao estudo desta figura da unidade da ciência. Claro que o

desenvolvimento bioquímico académico se deu em vários países sob a égide de outras

disciplinas (e refiro-me, de facto, ao desenvolvimento académico, e não apenas ao

desenvolvimento científico, uma vez que professores de outras disciplinas que não a

bioquímica, como uma outra disciplina que tivesse grandes pontos de ligação com esta

disciplina, que tivessem os seus grandes interesses de investigação no campo da

bioquímica, naturalmente trariam esses interesses para a sala de aulas). Isto é algo que

também se passou, obviamente, na Alemanha, França, Reino Unido e Estados Unidos,

mas para o estudo que estou a fazer importa mais olhar exactamente para as disciplinas

que estão directamente ligadas à bioquímica, cadeiras cujo objectivo era o

desenvolvimento de estudos que se podem designar de bioquímicos. Falo de cadeiras

como a química fisiológica, a química patológica, a química médica, e a própria

bioquímica, as quais estiveram presentes no período de desenvolvimento e consolidação

do campo de estudos bioquímicos. A escola esteve, então, de facto, presente em todo o

processo da emergência da bioquímica.

102

3.3. Biblioteca

A emergência da bioquímica está intimamente ligada ao aparecimento de manuais,

livros, revistas especializadas e papers científicos (para além de outro tipo de

documentação escrita, como cartas pessoais). É nesses elementos que os cientistas

delimitam os problemas em estudo, assinalam as perspectivas de análise e apontam os

contornos metodológicos em que a investigação deve prosseguir, como aconteceu no

caso da bioquímica. Na realidade, os papers científicos, por exemplo, constituíram (e

continuam, naturalmente, a constituir) uma forma excelente de troca de conhecimentos

e informações entre os elementos de uma comunidade, de tal modo que é possível

aproximá-los do próprio contacto oral de que falei no ponto sobre a república dos

sábios. Da mesma forma que se podem estabelecer acesas discussões entre

investigadores presentes numa sala, com troca de argumentos e contra-argumentos,

pode dizer-se que o mesmo é realizado através dos papers científicos. Estes permitem

tanto a comunicação de conhecimentos na forma escrita como a resposta (ou mesmo a

crítica), também na forma escrita. O que significa que é possível estabelecer uma

articulação entre a biblioteca e a república dos sábios em dois pontos. Em primeiro

lugar, os papers podem ser o resultado de investigações realizadas por vários cientistas

(e normalmente são, uma vez que os papers são geralmente produzidos por grupos de

investigação, e não por investigadores trabalhando em solitário) que, naturalmente,

trocam ideias e impressões e, em segundo lugar, estes papers podem constituir as bases

para que se estabeleçam discussões e trocas de ideias entre diferentes cientistas, tanto na

forma oral como escrita.

Assim, tendo isto em conta, passarei a apresentar um conjunto de livros, revistas e

papers que pontificaram no período pré-paradigmático do desenvolvimento da

bioquímica, e no momento em que acabava der ser alcançado o seu primeiro paradigma.

No que diz respeito aos papers científicos, olhando para desenvolvimento cognitivo da

bioquímica que relatei nos pontos 2.2.1. e 2.2.2. (o qual, devo notar, não abarca,

naturalmente, todos os aspectos históricos do desenvolvimento bioquímico), é possível

verificar que a maior parte das diferentes ideias expressas pelos diversos autores de que

103

falei foram impressas na forma de papers científicos que eram publicados em revistas

especializadas. Assim, convém destacar os seguintes papers:

As experiências de Jean Louis Prévost e Jean Baptiste André Dumas relativas à

formação de ureia no corpo animal nos anos vinte do século XIX foram publicadas sob

a seguinte forma: Prévost, J.-L.; Dumas, J.-A. 1823. “Examen du sang et de son action

dans les divers phénomènes de la vie”. Annales de Chimie et de physique. 23: 90-104.

(Cf. Leicester, 1974: 154, 256)

As experiências de Friedrich Wölher, que foi capaz de sintetizar ureia em ambiente

laboratorial, sem a necessidade de rins de animais, foram publicadas sob a seguinte

forma: Wöhler, F. 1828. “Ueber die künstliche Bildung des Harnstoffe”. Poggendorfs

Annalen der Physik und Chemie. 12: 253-256. (Cf. Leicester, 1974: 154, 256)

A descoberta da pepsina por Schwann encontra-se publicada sob a seguinte forma:

Schwann, T. 1836. “Ueber das Wesen des Verdauungsprocesses”. Liebigs Annalen der

Pharmacie. 20: 28-34. (Cf. Leicester, 1974: 165, 258)

O paper onde Thomas Huxley primeiro revelou as suas ideias relativas à teoria proto-

plasmática da vida, embora nesta altura ainda não utilizasse esta designação (apenas em

1868 Huxley falou em protoplasma), é o seguinte: Huxley, T. 1853. “The cell-theory”.

British and Foreign Medico-Chirurgical Review. 12: 285-314. (Cf. Needham et al.,

1992: 480, 554)

Por volta dos anos sessenta do século XIX, já Traube acreditava que catalisadores como

a pepsina desempenhavam um papel importante na fermentação, ideia que nesta altura

era descartada por grande parte da comunidade científica. As ideias de Traube relativas

a este tema foram publicadas sob a seguinte forma: Traube, M. 1858. “Zur Theorie der

Gährungs- und Verwesungs erscheinungen, wie der Fermentwirkungen überhaupt”.

Poggendorfs Annalen der Physik und Chemie. 103: 331-344. (Cf. Leicester, 1974: 180,

196-197, 265)

Os estudos de Graham, que o levaram a afirmar que o estado colóide era o estado dinâ-

mico da matéria, e o estado cristalóide o estado estático, foram publicados sob a forma:

Graham, T. 1861. “Liquid Diffusion Applied to Analysis”. Philosophical Transactions

of the Royal Society of London. 151: 183-224. (Cf. Fruton, 1976: 329, 333)

104

As investigações de Pasteur sobre o fenómeno da fermentação, onde o investigador

determinou que esta podia decorrer na ausência de oxigénio, encontram-se publicadas

sob a seguinte forma: Pasteur, L. 1861. “Expériences et vues nouvelles sur la nature de

fermentation”. Comptes Rendus. 52: 1260-1264; Oeuvres, p. 142-147. (Cf. Leicester,

1974: 179, 260)

Em 1897, Buchner escreveu o seu importante paper onde afirmava que a fermentação

alcoólica não dependia de células de levedura vivas, mas que podia ser promovida a

partir de um extracto celular das mesmas. Este paper foi publicado sob a seguinte

forma: Buchner, E. 1897. “Alkoholische Gährung ohne Hefezellen”. Berichte der

Deutschen chemischen Gesellschaft. 30: 117-124. (Cf. Leicester, 1974: 181-182, 261)

Em 1906, Arthur Harden e William J. Young perceberam a importância da presença

daquilo que denominaram “coenzimas”, “cofactores” ou “cozimases” nos processos

enzimáticos. Os seus estudos relativos a esta matéria encontram-se publicados sob a

seguinte forma: Harden, A.; Young, W. J. 1906. “The alcoholic ferment of yeast-juice”.

Proceedings of the Royal Society of London. B77: 405-420. (Cf. Bechtel, 1986: 87, 98)

Em 1913, Gowland Hopkins declarou, no contexto dos estudos acerca do metabolismo

intermediário que, naquele momento, era uma questão de estudar “substâncias simples

sendo submetidas gradualmente a um conjunto de reacções”, ao invés de especular

acerca de grandes moléculas protoplasmáticas. Esta forma de ver a questão, que

favorecia a química orgânica no estudo do metabolismo intermediário, representou uma

atitude que encontrou cada vez mais defensores no campo da bioquímica. Esta visão de

Hopkins encontra-se publicada sob a seguinte forma: Hopkins, F. G. 1913. “The

dynamic side of biochemistry”. Nature. 92: 213-223. (Cf. Fruton, 1976: 331, 334)

Em 1925, David Keilin descobriu pigmentos contendo ferro, que eram capazes de se

oxidar e reduzir de uma forma reversível, numa grande variedade de células. Keilin

chamou-lhes citocromos. Esta descoberta foi publicada sob a seguinte forma: Keilin, D.

1925. “On Cytochrome, a Respiratory Pigment, Common to Animals, Yeast and Higher

Plants”. Proceedings of the Royal Society of London. B. 98: 312-339. (Cf. Leicester,

1974: 198-199, 265)

105

Em 1929, Karl Lohmann identificou a molécula de ATP nas células. A descoberta foi

publicada sob a seguinte forma: Lohmann, K. 1929. “Über die pyrophosphatfraktion im

Muskel”. Naturwissenschaften. 17: 624-625. (Cf. Bechtel, 1986: 88, 99)

Em 1930, Northrop foi capaz de isolar a pepsina e identificá-la como sendo uma

proteína. Estes estudos encontram-se publicados sob a seguinte forma: Northrop, J. H.

1930. “Crystalline Pepsin. I. Isolation and Tests of Purity”. Journal of General

Physiology. 13: 739-766. (Cf. Leicester, 1974: 183, 261)

Em 1932, Hans Krebs chegou ao conceito de mecanismo cíclico de ligação entre séries

de reacções, no âmbito das suas investigações sobre a formação de ureia no fígado. A

descoberta do ciclo da ureia por parte de Krebs foi publicada sob a seguinte forma:

Krebs, H.; Hanseleit, K. 1932. “Untersuchungen über die Harnstoffbildung im

Tierkörper”. Zeitschrift für physiologische Chemie. 210: 33-66. (Cf. Leicester, 1974:

205-206, 267)

Em 1932 e 1935, Otto Warburg e os seus colegas descobriram, respectivamente, a

natureza estrutural dos transportadores de hidrogénio de flavina e nicotinamida. Os seus

resultados foram publicados sob a seguinte forma, respectivamente: Warburg, O.;

Christian, W. 1933. “Über das gelbe Ferment und seine Wirkungen”. Biochemische

Zeitschrift. 266: 377-411; e Warburg, O.; Christian, W. 1935. “Co-Fermentproblem”.

Biochemische Zeitschrift. 275: 464. (Cf. Leicester, 1974: 199, 265)

Em 1936, Otto Warburg e os seus colegas caracterizaram a função integrativa do NAD.

Eles perceberam que esta substância funcionava recebendo o hidrogénio removido no

decurso da oxidação das trioses-fosfato numa reacção e libertando-o na redução do

piruvato. Assim, o que se viu que o NAD fazia era estabelecer uma ligação entre estas

duas reacções, tornando-as interdependentes. Estes estudos encontram-se publicados

sob a seguinte forma: Warburg, O.; Christian, W. 1936. “Pyridin, der

wasserstoffübertragende Bestandteil von Gärungsfermenten”. Biochemische Zeitschrift.

287: 291-328 (Cf. Bechtel, 1986: 87, 100).

Em 1937, Hans Krebs descobriu o ciclo dos ácidos tricarboxílicos. Esta descoberta foi

publicada sob a seguinte forma: Krebs, H.; Johnson, W. A. 1937. “The Role of Citric

Acid in Intermediate Metabolism in Animal Tissues”. Enzymologia. 4: 148-156. (Cf.

Leicester, 1974: 205-206, 267)

106

Hans Krebs, em 1946, notou que a célula tem de usar reacções irreversíveis, as quais

ocorrem muito rapidamente, isto no contexto do ciclo dos ácidos tricarboxílicos e outras

vias complexas envolvendo FAD e NAD, de forma a libertar energia dos substratos.

Krebs concluiu então que a regulação permitida pela presença de ATP, por exemplo,

permite à célula utilizar uma sequência geral não reversível sem que seja destruído o

equilíbrio dinâmico. Estas considerações feitas por Krebs relativamente às reacções que

ocorrem nas células foram publicadas sob a seguinte forma: Krebs, H. 1946. “Cyclic

processes in living matter”. Enzymologia. 12: 88-100. (Cf. Bechtel, 1986: 95-96, 99)

Também as revistas especializadas tiveram um papel determinante no desenvolvimento

da bioquímica, ao reunirem um conjunto de papers científicos importantes para esta

classe de investigadores, como se viu anteriormente. As revistas especializadas foram

um importante veículo de informações bioquímicas. Estas revistas especializadas, e

estou-me a referir a revistas que, sendo ou não totalmente dedicadas ao tema da

bioquímica, apresentaram importantes trabalhos no âmbito desta disciplina, foram elas

próprias um instrumento de unificação da disciplina, com os seus critérios de escolha de

papers a publicar. Assim, em termos de revistas especializadas que tiveram uma grande

importância no desenvolvimento da bioquímica, convém referir as seguintes, com

destaque também para o contexto em que surgiram:

Em 1789, saiu a primeira edição da Annales de chimie, editada por Lavoisier e seus

colegas. Esta revista representou, no âmbito da interacção entre o saber químico e

biológico, juntamente com outras revistas especializadas que saíram na mesma altura,

uma mudança em termos da perspectiva científica com que era abordado o campo de

estudo em questão. Foi nesta revista, a qual, em 1816, passou a ser denominada Annales

de Chimie et de Physique (Cf. Fruton, 1999: 97), que foi editado, por exemplo, o

primeiro paper que referi anteriormente, sobre as experiências de Jean Louis Prévost e

Jean Baptiste André Dumas relativas à formação de ureia no corpo animal.

Nas décadas subsequentes, muitas outras revistas especializadas foram criadas por

químicos e biólogos interessados na rápida publicação dos seus papers. Neste contexto,

em 1832, Justus Liebig fundou a revista Annalen der Pharmacie (Cf. Fruton, 1999: 97).

Esta revista, mais conhecida simplesmente pela denominação Liebigs Annalen, teve um

papel destacado na transmissão de vários trabalhos importantes no campo da química

fisiológica, como a descoberta da pepsina por Schwann (como referi na parte sobre os

107

papers científicos). Esta revista, que já teve várias denominações ao longo dos anos, é

actualmente o European Journal of Organic Chemistry (Cf. http://www3.interscience.

wiley.com/journal/117930401/tocgroup).

Em meados do século XIX, assiste-se à criação de sociedades nacionais de química e

também de biologia, em países como a Alemanha, França e Reino Unido. Essas

sociedades passaram a ser responsáveis pela publicação de revistas especializadas e,

desta forma, também pela forma como o saber científico era divulgado nestes países, o

que teve como consequência a redução de alguns abusos de privilégios editoriais que se

verificavam no panorama que descrevi anteriormente. Neste contexto, a Société de

biologie de Paris foi responsável pela publicação da revista Comptes Rendus (Cf.

Fruton, 1999: 97). Nesta revista foram publicadas, como referi na parte sobre os papers

científicos, as investigações de Pasteur sobre o fenómeno da fermentação, onde o

investigador determinou que esta podia decorrer na ausência de oxigénio.

Hoppe-Seyler, na Alemanha, foi o fundador e editor da Zeitschrift für physiologische

Chemie, em 1877, que combinava química orgânica básica com processos biológicos,

ao estilo de Tübingen. Durante trinta anos este foi o único jornal especializado de

química fisiológica (Cf. Kohler, 1982: 23). Apenas para dar um exemplo, o trabalho de

Hans Krebs relativo ao ciclo da ureia, que referi na parte relativa aos papers científicos,

foi publicado nesta revista.

Hofmeister, professor em Estrasburgo, na Alemanha, e um digno sucessor de Hoppe-

Seyler, lançou um segundo jornal, em 1902, com uma ampla e imaginativa visão

programática da disciplina, à qual aplicou o novo termo “Biochemie” (Cf. Kohler, 1982:

24).

Em 1906, devido ao aumento do interesse na química física e na química dos colóides

por parte da comunidade bioquímica alemã, foi fundado o Biochemishe Zeitshrift,

editado por Carl Neuberg (Cf. Fruton, 1999: 98). Esta revista teve uma grande

importância na transmissão do conhecimento bioquímico. Como referi na parte sobre os

papers científicos, aí foram publicados estudos importantes como os realizados por

Warburg sobre os transportadores de hidrogénio de flavina e nicotinamida.

108

Em Liverpool, no Reino Unido, Benjamin Moore organizou o Biochemical Journal, em

1906, apenas como forma de publicar os papers da sua escola, uma vez que estes não

eram aceites pelo Journal of Physiology. Este facto devia-se ao carácter ecléctico das

investigações biológicas de Moore. O Biochemical Journal tornou-se a revista

profissional não oficial dos bioquímicos britânicos e, em 1911, foi adquirida pela

Biochemical Society, a qual tinha sede nacional. É de notar que, a meados dos anos

vinte do século XX, quase metade dos papers publicados nesta revista provinham da

escola de Hopkins (Cf. Kohler, 1982: 56, 81).

Nos Estados Unidos, o American Journal of Physiology foi fundado em 1898. Esta

revista foi muito importante no contexto dos estudos bioquímicos. Basta dizer que sete

dos trinta e dois papers do primeiro volume desta revista vieram do laboratório de

Chittenden, que presidiu a American Physiological Society de 1894 a 1904 (Cf. Kohler,

1982: 110-111).

Em 1905, foi fundado o Journal of Biological Chemistry por Christian Herter, que foi

também o editor da revista. A revista foi criada nos Estados Unidos como forma de

unificar uma disciplina muito diversa (Cf. Kohler, 1982: 197-198).

Finalmente, a Federation of European Biochemical Societies (FEBS), criada após a

Segunda Guerra Mundial, patrocinou a publicação do European Journal of

Biochemistry (Cf. Fruton, 1999: 99). Esta revista, que tem as suas raízes no

Biochemishe Zeitshrift, editado por Carl Neuberg (que referi anteriormente), continua

ainda a ter uma importância fundamental em termos da transmissão do conhecimento

bioquímico, tendo mudado o nome, em 2005, para FEBS Journal (Cf.

http://www.ejb.org/default.asp).

Outro importante elemento da figura da biblioteca diz respeito aos livros e manuais que

foram fundamentais no desenvolvimento da disciplina. Os manuais, por exemplo, são

bem eloquentes das importantes articulações que é possível estabelecer entre duas

figuras da unidade da ciência – a escola e a biblioteca –, uma vez que constituem um

tipo especial de livro que se destina especificamente ao contexto escolar e que, como

mostrou Thomas Kuhn (2007: 209-210), são determinantes na formação dos futuros

praticantes de uma disciplina e, portanto, na transmissão do paradigma. Assim, passo a

109

dar alguns exemplos de livros e manuais importantes no desenvolvimento da

bioquímica:

Em 1817, Magendie publicou o seu livro Précis élémentaire de physiologie, onde

estavam patentes os seus estudos de fisiologia experimental (Cf. Leicester, 1974: 161,

257). Na realidade, foram estes estudos de Magendie que proporcionaram um contexto

ideal para a emergência de uma química fisiológica ligada mais fortemente à fisiologia

médica do que à química pura (Cf. Fruton, 1976: 328).

Em 1842 foi editada a obra de Liebig sob o título Die Organische Chemie in ihrer

Anwendung auf Physiologie and Pathologie, livro onde estão expostas grande parte das

ideias do autor no que diz respeito ao campo da química fisiológica (Cf. Fruton, 1999:

64).

Carl Lehmann, da Universidade de Leipzig, nomeado professor de química fisiológica

em 1843, foi autor daquele que terá sido, provavelmente, o primeiro livro de texto

moderno sobre a disciplina, o qual era muito mais efectivo no que diz respeito à

definição da química fisiológica do que eram os trabalhos idiossincráticos de Liebig

(Cf. Kohler, 1982: 19). Este livro de Lehmann sobre a química fisiológica, intitulado

Lehrbuch der physiologischen Chemie, data de 1853 (Cf. Lehmann, 1850).

O fisiologista Michael Foster, no Reino Unido, que possuía uma ampla visão da

fisiologia, e que, a meados dos anos setenta do século XIX e, posteriormente, a meados

dos anos noventa do mesmo século, guiou vários dos seus estudantes, entre os quais

Gowland Hopkins, na direcção de diversas especialidade da fisiologia, como a química

fisiológica, escreveu o seu Textbook of Physiology (1876), que contava na sua sexta

edição com um texto em apêndice escrito por William J. Gies no campo da química

fisiológica, intitulado The Chemical Basis of The Animal Body (Cf. Fruton, 1999: 65).

No Reino Unido, o fisiologista William Bayliss, investigador com ligações à área da

química de colóides, realizou importantes investigações no campo da bioquímica, e a

sua obra Principles of General Fisiology (quarta edição, 1924), foi muito popular (Cf.

Fruton, 1999: 68).

Já na Suécia, Olof Hammarsten, professor de química e fisiologia médica em Uppsala,

de 1883 até 1906, foi um grande impulsionador do desenvolvimento académico da

110

bioquímica. Várias edições do seu manual Lehrbuch der physiologischen Chemie,

foram consideradas das melhores que existiam na altura sobre o tema da química

fisiológica (Cf. Fruton, 1999: 72). Apenas para dar uma ideia do número variado de

edições realizadas desta obra, em 1891 foi editada a 2ª edição do livro (não me foi

possível encontrar registo da data da publicação da 1ª edição da obra) de Hamarsten (Cf.

http://books.google.com/books?id=rPL_PAAACAAJ&printsec=frontcover&dq=editi

ons:OCLC8760978&lr=&hl=pt-PT), e já em 1922 foi editada a 9ª edição (Cf. http://

books.google.com/books?id=QT5QMg268Ss C&hl=pt-PT).

No que diz respeito à realidade americana, os velhos livros de texto de química médica

começaram rapidamente a perder o seu mercado a partir de 1910 para textos mais

especializados. Manuais de laboratório como o de Philip Hawk, por exemplo, o qual

dava uma grande ênfase a áreas como os enzimas digestivos, análises de urina e

metabolismo, proliferaram nesta altura (Cf. Kohler, 1982: 195).

O primeiro livro de texto americano de química fisiológica a ser publicado foi o de

Albert Mathews, intitulado Physiological chemistry; a text-book and manual for

students (1915). Este livro era destinado a estudantes de medicina, como quase todos os

textos americanos. Só a partir de 1930 apareceram outros livros de texto de autores

americanos (Cf. Kohler, 1982: 195-196).

Do trabalho realizado por Van Slyke – um dos pioneiros da bioquímica americana, a

qual veio tomar o lugar da química médica –, no hospital do Rockefeller Institute, e da

sua colaboração com muitos dos líderes da medicina académica americana, como John

Punnet Peters, surgiu o livro de dois volumes Quantitative Clinical Chemistry (1931,

1932), de Peters e Van Slyke; o segundo volume, com o subtítulo Methods, tornou-se o

livro de mão mais utilizado, na época, no seu campo (Cf. Fruton, 1999: 89).

No início deste ponto, anunciei que a emergência da bioquímica estava intimamente

ligada ao aparecimento de manuais, livros, revistas especializadas e papers científicos,

tendo sido sobre este tipo de documentos escritos que realizei o meu estudo. E isto

porque estes são talvez os registos escritos mais importantes que acompanharam o

desenvolvimento científico. Para além disso, é sobre estes registos escritos que existe

uma maior documentação, o que diz muito da sua importância na transmissão do

conhecimento científico. No entanto, existiram também outro tipo de documentos

111

escritos que tiveram a sua importância no desenvolvimento da disciplina. Neste sentido,

gostaria de referir-me à correspondência, nomeadamente, às cartas pessoais onde existe

a transmissão de dados científicos. Na realidade, para dar apenas um exemplo

demonstrativo da importância deste tipo de documento escrito, mencionarei a

correspondência entre Chittenden e Kühne.

Após o regresso de Chittenden aos Estados Unidos, depois de uma estadia em

Heidelberg, na Alemanha, onde se havia convertido à concepção de química fisiológica

de Kühne, de quem se chegou a tornar primeiro assistente, estabeleceu-se uma extensa

troca de correspondência entre estes dois investigadores que tem grande interesse. De

facto, nos anos oitenta do século XIX, ambos os investigadores iniciaram um projecto

de investigação cooperativo, através de uma troca de correspondência trans-Atlântica,

sobre o tema da degradação de proteínas, que se tornou a base da reputação de

Chittenden e do trabalho que o investigador desenvolveu ao longo da sua vida (Cf.

Kohler, 1982: 99). Este exemplo parece-me muito interessante pois, neste caso, existe

uma articulação muito forte entre duas figuras da unidade da ciência, a república dos

sábios e a biblioteca. O que me parece ser o ponto chave demonstrativo da articulação

existente entre estas duas figuras é o facto de essa correspondência estar bem

documentada. Se as cartas tivessem sido enviadas e tivessem desaparecido, estaríamos

muito perto daquilo que é uma conversa ou troca de impressões de teor científico entre

investigadores, uma vez que elas haviam sido enviadas apenas para um destinatário

específico e só para ele poderiam ter tido importância. O exemplo seria então interno à

figura da república dos sábios. No entanto, não é isso que se passa neste caso. As cartas

foram enviadas, guardadas e devidamente conservadas, e os investigadores que vieram

depois puderam lê-las. Não é necessário especular sobre o momento em que esta

correspondência passou a fazer parte do domínio público para poder reconhecer o seu

valor em termos da figura da biblioteca, pois a verdade é que, pelo menos a determinada

altura, e esse é que é o ponto importante, elas passaram a constituir documentos

equiparáveis a um paper, constituindo pequenos esboços incompletos de papers

científicos.

Inicialmente, afirmei que os papers científicos ilustravam bem a articulação existente

entre as figuras da biblioteca e da república dos sábios pois, fazendo parte da figura da

biblioteca, podiam constituir as bases para que se estabelecessem discussões e trocas de

impressões entre diferentes cientistas, tanto na forma oral como escrita. Já no que diz

112

respeito à correspondência pessoal de natureza científica, poderei dizer que, fazendo

sempre parte da figura da república dos sábios, pois têm um destinatário específico, essa

correspondência pode ser também um elemento representativo da figura da biblioteca

desde que seja devidamente guardada e conservada, porque assim passa a fazer parte do

domínio público, de uma forma mais ou menos alargada, e pode também contribuir para

o desenvolvimento científico.

Poderá parecer estranho que eu fale da correspondência entre cientistas como possuindo

uma ligação mais forte à figura da república dos sábios, quando elas são documentos

escritos. Mas essa estranheza é natural, porque, em geral, apenas falamos de cartas que

foram guardadas, porque a elas temos acesso e sabemos da sua existência. Não falamos

das cartas que desapareceram ou daquelas cuja existência desconhecemos, mas sem

dúvida que também essas, como veículo de informação científica, desempenharam um

papel importante no contacto entre investigadores. Daí a sua forte ligação à figura da

república dos sábios. É que, enquanto que os livros e as revistas especializadas são

realizadas, em primeira instância, para perdurar no tempo, isto é, com o intuito de

transmitir conhecimentos científicos para um número relativamente alargado de

pessoas, a correspondência pessoal não tem inicialmente este objectivo mas, em

determinadas circunstâncias, poderá desempenhar exactamente essa função. Foi isso,

aliás, que aconteceu nos primeiros séculos da ciência moderna (sécs. XVI e XVII),

quando as revistas científicas eram em número reduzido.

Aqui se revela, de forma clara, o modo de funcionamento das figuras da unidade da

ciência. De facto, e como referi, os livros e as revistas especializadas são feitas para

perdurarem no tempo e com o objectivo de serem lidas por um número relativamente

alargado de pessoas. Por exemplo, os papers científicos que apresentei anteriormente,

encontram-se disponíveis hoje como se encontravam disponíveis na altura em que

foram escritos. De facto, a forma como realizei a lista dos referidos papers ilustra desde

logo o seu poder unificador. Fi-lo a partir de livros de história da bioquímica, como o

livro de Leicester (1974), ou a partir de papers científicos, como o de Fruton (1976) e o

de Bechtel (1986), que são eles já objectos de unificação do saber. Os autores dos livros

sobre a história da bioquímica (como é o caso do livro de Leicester), tiveram como

objectivo expor de forma organizada e com referências a trabalhos anteriores, aspectos

que dizem respeito ao desenvolvimento da bioquímica. E fizeram-no recorrendo,

naturalmente, aos papers que referi e que pude expor neste trabalho de uma forma

113

relativamente simples, devido a este aspecto estruturado dos livros, que serve a unidade

da ciência. É também desta forma que os próprios papers científicos servem a unidade

da ciência, por serem trabalhos organizados que, também eles, fazem referência a outros

papers científicos que foram utilizados pelos autores e que lhes permitiram chegar às

conclusões originais dos seus papers. Ou seja, este exemplo ilustra de forma clara, não

apenas o carácter colectivo do conhecimento científico, mas de que modo a actividade

científica consiste nesta interminável – e admirável – ligação dos trabalhos científicos

uns com os outros, onde as referências a trabalhos anteriores têm um papel fundamental

na organização e interligação do saber científico e, consequentemente, no próprio

desenvolvimento científico. É interessante notar que se, em grande parte, nos dias que

correm, a actividade dos cientistas e o seu mérito se mede pela quantidade de

publicações que são capazes de produzir, também o número de referências que um

investigador tem em outros trabalhos científicos é uma medida do seu mérito. Quase se

pode dizer que os próprios investigadores trabalham na “causa” da unidade da ciência

no momento em que oferecem, recebem e contabilizam o seu reconhecimento mútuo.

Neste ponto, importa também referir o importante papel desempenhado hoje pela

Internet. É surpreendente a forma como cada vez mais documentos, sejam eles antigos

ou de origem mais recente, se encontram disponíveis, na sua forma digitalizada, na

Internet. Toda uma quantidade enorme de informação pode ser facilmente encontrada

nesse autêntico universo do saber. E não restem dúvidas de que a Internet é uma

verdadeira ferramenta de conglomeração do saber, porque esta informação que encontra

o seu lugar na Internet não está dispersa. Motores de busca, links para sites com

informações relacionadas, enfim, todos estes elementos que constituem a verdadeira

natureza da Internet, permitem uma recuperação fácil e rápida daquilo que se procura no

seu espaço.

114

3.4. Museu

A consolidação da bioquímica como ciência madura encontra-se materializada na forma

de instrumentos científicos, modelos, fotografias, quadros, desenhos e alguns

documentos que tiveram uma grande relevância na formação desta disciplina híbrida, os

quais se encontram organizados em colecções museológicas que integram os acervos

dos museus. No caso da bioquímica, é possível encontrar um número de instrumentos

laboratoriais, modelos e outras peças, que remetem, de forma material e visual, para o

modo como se processou a emergência da disciplina.

Curiosamente, o trabalho que efectuei sobre o papel do museu na emergência da

bioquímica, não poderia ter sido feito sem o apoio de uma outra figura da unidade da

ciência: a enciclopédia. De facto, a apresentação de um número variado de

instrumentos, fotografias, modelos, etc., que se encontram em museus espalhados pelo

mundo (nomeadamente, no Science Museum de Londres e no Museu de História da

Universidade de Kazan, na Rússia) só foi possível porque tive acesso à Internet. Ora,

como mostra Olga Pombo no livro Enciclopédia e Hipertexto (2006a), a Internet é a

forma actual da enciclopédia. Neste sentido, estes elementos de pesquisa são

representativos de uma articulação muito particular estabelecida entre duas importantes

figuras da unidade da ciência: o museu e a enciclopédia, na sua forma actual de Internet.

Relativamente aos objectos do Science Museum de Londres, as minhas buscas dizem

respeito a dois sites da Internet, o próprio site do Science Museum de Londres

(http://www.sciencemuseum.org.uk/) e um outro site, relativo ao Science & Society

Picture Library (http://www.scienceandsociety.co.uk/), o qual apresenta ligações ao

Science Museum. Para além disso, existe ainda um objecto (peça relativa ao ponto 13 da

lista que apresentarei de seguida) do Science Museum de Londres, que encontrei num

artigo de 1977 da revista Proceedings of the Analytical Division of the Chemical

Society. Assim, passo a apresentar uma lista ordenada de forma cronológica relativa às

peças do Science Museum a que tive acesso e que me parecem mais significativas em

termos do desenvolvimento da bioquímica, acompanhadas de imagens e de alguns

comentários. E isto porque, obviamente, essas peças não podem ser aqui apresentadas

na sua materialidade. Essa é a especificidade do Museu. Mas podem ser apresentadas a

115

partir da sua reprodução imagética. O que mostra novamente a ligação da figura do

museu à figura da Internet enquanto manifestação actual da enciclopédia. Noto ainda

que apresento algumas peças de forma individual, e outras integrando um conjunto de

peças correlacionadas.

1 – Aparelhos utilizados por Thomas Graham, c. 1865 (Cf. http://www.science

andsociety.co.uk/results.asp?image=10311365&wwwflag=2&imagepos=48). Entre

estes objectos encontra-se um aparelho inventado por Graham, que ele denominou

dialisador, onde uma membrana semi-permeável é colocada na extremidade de um jarro

em forma de sino, o qual é colocado num reservatório de água. O estudo de Graham

consistia em identificar os processos de difusão de determinadas substâncias. Ele

reparou que as substâncias albuminosas se difundiam muito devagar, enquanto que as

substâncias cristalinas o faziam muito rapidamente, tendo designado as primeiras

substâncias de colóides e as últimas de cristalóides. Nas décadas que se sucederam, a

ideia de que as proteínas protoplasmáticas eram substâncias ricas em energia sofreu um

grande impulso devido às experiências de Graham relativas aos colóides (incluindo a

fibrina, a caseína e o albúmen), os quais eram representativos de um estado dinâmico da

matéria, por oposição à condição estática dos cristalóides (Cf. Fruton, 1999: 167).

Figura 2. Aparelhos utilizados por Thomas Graham, c. 1865 (imagem retirada do site do Science & Society Picture Library, mais especificamente a partir da página: http://www.ssplprints.com /image.php?imgref=10311365).

2 – Kit de modelos moleculares, c. 1875. Trata-se de um kit de modelos moleculares

etiquetados com o nome de August Wilhelm von Hoffman. O kit compreende cinco

suportes e bolas coloridas ligadas a tubos, etiquetadas com fórmulas químicas e aros

metálicos. Cada bola representa um átomo de um elemento químico, e pode ser ligada a

116

outros “átomos” por intermédio de ligações, as quais são representadas na forma de

tubos que se inserem nos buracos existentes nas bolas. O número de buracos numa bola

representa o número de ligações moleculares que os átomos de diferentes elementos são

capazes de formar. Isto é determinado pela valência de um elemento (Cf.

http://www.sciencemuseum.org.uk/images/I043/10311752.aspx).

Figura 3. Kit de modelos moleculares, c. 1875 (imagem retirada do site do Science Museum de Londres, mais especificamente a partir da página: http://www.sciencemuseum.org.uk/images/ I043/10311752.aspx).

3 – Aparelho de Hüfner, c. 1885. Este aparelho foi utilizado na estimativa do conteúdo

de azoto na ureia. Muitas substâncias orgânicas foram examinadas cuidadosamente no

século XIX, de entre as quais se deve destacar a ureia, sendo de notar que a sua síntese

constituiu um marco determinante na percepção dos fenómenos da vida (Cf. http://www

.scienceandsociety.co.uk/results.asp?image=10267467&wwwflag=2&imagepos=77).

Figura 4. Aparelho de Hüfner, c. 1885 (imagem retirada do site do Science & Society Picture Library, mais especificamente a partir da página: http://www.ssplprints.com/image.php?imgref =10267467).

117

4 – Reconstituição de laboratório de química de 1895, em Londres. Trata-se de um

espaço no Science Museum que consiste na mobília, nos instrumentos e nos arranjos

espaciais representativos de uma pequena parte de um antigo laboratório de maiores

dimensões em Londres, o laboratório do Government Chemist. As características deste

laboratório faziam dele um dos mais avançados para a época. Inclui uma central de

fornecimento de água quente que possibilitava a existência de uma placa aquecida de

forma constante e um local de secagem de materiais. Outros aparelhos incluem um

microscópio, um aparelho para produzir chama, um refractómetro, um polarímetro e

uma centrífuga para a análise de leite (Cf. http://www.scienceandsociety.co.uk/results.

asp?image=10255397&wwwflag=2&imagepos=5).

Figura 5. Reconstituição de laboratório de química de 1895, em Londres, presente no espaço do Science Museum de Londres (imagem retirada do site do Science Museum de Londres, mais especificamente a partir da página: http://www.makingthemodernworld.org.uk/stories/the_ second_industrial_revolution/05.ST.01/).

5 – Quadro a óleo representando um laboratório de química, pintado por Mabel T. Sara,

na escola de arte e ciência de Redruth, Cornualha, 1897. O quadro representa um

laboratório de química, onde se encontram representadas prateleiras com frascos

contendo substâncias químicas, vários guarda-louças e uma mesa de trabalho com

aparelhos, frascos e barris (Cf. http://www.scienceandsociety.co.uk/results.asp?image=

10198715&wwwflag=2&imagepos=18). Estamos mais perante uma obra de arte do que

um desenho com grande relevância científica. Contudo, a sua inclusão nesta lista

justifica-se por oferecer uma perspectiva sobre aquilo que era um laboratório de química

no final do século XIX. Neste ponto, convém sublinhar que os museus científicos,

118

mesmo tendo esta designação, não são depósitos de objectos escolhidos apenas pelo seu

valor científico. Pode também existir uma apreciação estética de algumas peças que, por

essa razão, são incorporadas nos acervos dos museus e, posteriormente, podem integrar

exposições.

Figura 6. Quadro a óleo representando um laboratório de química, pintado por Mabel T. Sara, na escola de arte e ciência de Redruth, Cornualha, 1897 (imagem retirada do site do Science & Society Picture Library, mais especificamente a partir da página: http://www.ssplprints.com /image.php?imgref=10198715).

6 – Microscópios utilizados por Louis Pasteur e por Joseph Lister, finais do século XIX.

(Cf. http://www.scienceandsociety.co.uk/results.asp?image=10288645&wwwflag=2&

imagepos=16). Como já referi anteriormente (no ponto 2.2.1.), durante os anos trinta do

século XIX, foram realizadas observações microscópicas que mostraram que os agentes

da fermentação alcoólica eram microorganismos, os quais se alimentavam do açúcar

que fermentavam. Neste contexto de estudos microbiológicos, Pasteur descobriu que o

processo de fermentação se dava melhor na ausência de oxigénio, como refere Fruton

(1976). Na realidade, Pasteur realizou um trabalho exaustivo sobre os processos

fermentativos de vários microorganismos, fazendo com que a química entrasse na

microbiologia.

No campo da microbiologia, também importa referir o nome de Joseph Lister, que

realizou um trabalho importante nesta área, introduzindo o uso de condições antisépticas

nos locais onde eram realizadas operações, diminuindo, em grande parte, o risco de

contracção de infecções por parte dos doentes. De facto, o Lister Institute, importante

119

centro de investigação em Londres, o qual teve uma importância fundamental no

desenvolvimento da bioquímica, como referi nos pontos 2.2.3. e 3.2., deve o seu nome a

este investigador.

Figura 7. Microscópios utilizados por Louis Pasteur e Joseph Lister, finais do século XIX (imagem retirada do site do Science & Society Picture Library, mais especificamente a partir da página: http://www.ssplprints.com/image.php?imgref=10288645).

7 – Gravura de um desenho de R. H. Laurie, mostrando um microscópio com etiqueta

Dolland, Londres, século XIX, e as suas partes constituintes (Cf. http://www.science

andsociety.co.uk/results.asp?image=10422190&wwwflag=2&imagepos=5). Como não

existe uma referência precisa relativamente à data desta peça, escolhi colocá-la nesta

posição da lista por duas razões: 1) para aparecer no seguimento dos microscópios

referidos anteriormente, onde é explicada a importância deste instrumento no

desenvolvimento da bioquímica e 2) para figurar também depois da peça relativa ao

ponto 5 da lista, de forma a destacar, por comparação, um tipo de desenho onde existe já

toda uma relevância científica, contrariamente ao que acontece no que diz respeito à

peça relativa ao ponto 5 da lista. Na realidade, em termos científicos, este tipo de peças

existentes nos museus (desenhos) têm uma importância extremamente relevante no

processo de desenvolvimento disciplinar. No contexto dos estudos científicos que

abordo na minha dissertação, apenas para dar alguns exemplos, o desenho teve e tem

um papel fundamental, como acontece neste caso, na representação pormenorizada de

instrumentos científicos, como o microscópio, e das suas peças constituintes; na

120

reprodução das observações microscópicas (nomeadamente no campo da microscopia

óptica); na preparação de experiências a serem realizadas; e na representação de

diversos fenómenos e processos relativos, por exemplo, à constituição molecular de

determinados compostos químicos, às vias metabólicas ou aos mecanismos de acção

química.

Figura 8. Gravura de um desenho de R. H. Laurie, mostrando um microscópio com etiqueta Dolland, Londres, século XIX, e as suas peças constituintes (imagem retirada do site do Science & Society Picture Library, mais especificamente a partir da página: http://www.ssplprints.com /image.php?imgref=10422190).

121

8 – Polarímetro Shmidt and Haensh, c. 1900. Este aparelho, inventado em 1848, mede o

ângulo de rotação de um plano polarizado de um raio de luz quando este atravessa uma

substância activa em termos ópticos (Cf. http://www.sciencemuseum.org.uk/images

/I062/10327125.aspx). A sua invenção surgiu na sequência da descoberta realizada por

Jean Baptiste Biot de que vários compostos orgânicos eram activos em termos ópticos, e

tinham a capacidade de virar o plano da luz polarizada para a direita ou para a esquerda.

Desta forma, a importância deste aparelho em termos do desenvolvimento da

bioquímica não pode ser subestimada, nomeadamente no que diz respeito à

caracterização da actividade óptica dos compostos orgânicos. Na realidade, a ideia do

que hoje se denomina de quiralidade tem desempenhado um papel muito importante no

desenvolvimento do pensamento químico moderno (Cf. Fruton, 1999: 134).

Figura 9. Polarímetro Shmidt and Haensh, c. 1900 (imagem retirada do site do Science Museum de Londres, mais especificamente a partir da página: http://www.sciencemuseum.org.uk/images /I062/10327125.aspx).

122

9 – Centrífuga manual, 1912 (Cf. http://www.scienceandsociety.co.uk/results.asp?

image=10314136&wwwflag=2&imagepos=74). Este aparelho, que começou a ser

utilizado a meados do século XIX, representa os primórdios da técnica da centrifugação,

a qual consiste na rotação de suspensões líquidas de forma a provocar uma rápida

sedimentação de partículas que se encontram em suspensão. Assim, através desta força

centrífuga de rotação, as partículas são deslocadas no sentido contrário ao eixo de

rotação da centrífuga, de forma a sedimentarem no fundo dos recipientes onde estão

contidas as suspensões. Mas estas primeiras centrífugas apresentavam grandes

desvantagens, na medida em que as velocidades necessárias para impedir que a

centrífuga, literalmente, se partisse, eram demasiado baixas para permitir a separação

das macromoléculas que começaram a despertar o interesse de químicos, biólogos e

físicos da época (Cf. Koehler, 2003: 63-66).

Figura 10. Centrífuga manual, 1912 (imagem retirada do site do Science & Society Picture Library, mais especificamente a partir da página: http://www.ssplprints.com/image.php?imgref =10314136).

10 – Câmara de Friedrich e Knipping, 1912. Este aparelho foi utilizado para provar que

os compostos eram formados por estruturas ordenadas de átomos (Cf.

http://www.scienceandsociety.co.uk/results.asp?image=10255415&wwwflag=2&image

pos=69). Em 1912, Max von Lue, num contexto em que ainda se especulava sobre a

natureza ondulatória dos raios-x, sugeriu a Paul Knipping e Walter Friedrich que,

devido a que o presumível comprimento de onda dos raios-x deveria ser menor que a

123

distância entre átomos espaçados de uma forma regular no seio de um cristal, deveriam

ser produzidos efeitos de refracção quando estes raios atravessassem os cristais. Assim,

Friedrich e Knipping fizeram com que os raios de um tubo de raios-x passassem através

de um pequeno orifício e atravessassem um cristal que se encontrava colocado sobre um

aparelho que media os ângulos do mesmo. Do lado oposto colocaram uma placa

fotográfica, que ao ser revelada mostrou um padrão regular de pontos, o que

comprovava a natureza ondulatória dos raios-x, e a sua interacção com estruturas

cristalinas (Cf. Fruton, 1999: 195).

Figura 11. Câmara de Friedrich e Knipping, 1912 (imagem retirada do site do Science & Society Picture Library, mais especificamente a partir da página: http://www.ssplprints.com/image.php? imgref=10255415).

11 – Ultracentrífuga de Svedberg, 1936 (Cf. http://www.scienceandsociety.co.uk

/results.asp?image=10268598&wwwflag=2&imagepos=8). Theodor Svedberg foi um

químico que se dedicou ao estudo de proteínas (consideradas colóides na época), tendo

inventado este aparelho durante os anos vinte do século XX, de forma a realizar a

caracterização de proteínas, tanto em termos da sua massa molecular como em termos

da sua estrutura molecular. A ultra-centrífuga de Svedberg, cujas características técnicas

foram sendo melhoradas ao longo dos anos, chegando a operar a milhares de rotações

por minuto, sendo suficientemente poderosa para separar macromoléculas, permitiu

124

fazer uma estimativa muito aproximada da massa molecular de um grande número de

proteínas. Para além disso, permitiu a Svedberg tirar conclusões acerca da estrutura

molecular das proteínas, nomeadamente no que diz respeito à sua agregação em

subunidades, por observação da forma como se dava a sedimentação de diversas

proteínas possuindo diferentes massas moleculares (Cf. Fruton, 1999: 200-201).

Figura 12. Ultracentrífuga de Svedberg, 1936 (imagem retirada do site do Science & Society Picture Library, mais especificamente a partir da página: http://www.ssplprints.com/image.php? imgref=10268598).

125

12 – Câmara de difracção de raios-x com relógio de alarme, de Bernal, c. 1940. John D.

Bernal foi um pioneiro na cristalografia de raios-x (Cf. http://www.scienceandsociety

.co.uk/results.asp?image=10437802&wwwflag=2&imagepos=37). Este investigador

realizou um trabalho importante no que diz respeito à caracterização da estrutura dos

compostos orgânicos, tendo realizado, em 1934, juntamente com Dorothy Crowfoot

(mais tarde Hodgkin), o primeiro espectro de difracção satisfatório de uma proteína

cristalina – a pepsina (Cf. Needham et al., 1992: 332-334).

Figura 13. Câmara de difracção de raios-x com relógio de alarme, de Bernal, c. 1940 (imagem retirada do site do Science & Society Picture Library, mais especificamente a partir da página: http://www.ssplprints.com/image.php?imgref=10437802).

13 – O mais antigo tanque para a realização de cromatografia em papel ainda existente,

c.1944. Este tanque foi referido no primeiro paper sobre cromatografia em papel,

realizado por R. Consden, A. H. Gordon e A. J. P. Martin, publicado em 1944 (Cf.

Varii. 1977. “RIC Centenary and CS/RIC Annual Chemical Congress”. Procedings of

the Analytical Division of the Chemical Society, Vol. 14, Nº 5, pág. 102). A croma-

tografia é uma técnica que permite separar e analisar uma mistura de gases, líquidos ou

outras substâncias dissolvidas. Isto é concretizado pela utilização de duas substâncias

imiscíveis, uma das quais, a fase móvel, transporta a amostra (ou mistura) através da

outra, a fase estacionária. Na cromatografia em papel, um pedaço de papel de filtro

constitui a fase estacionária e um solvente escolhido constitui a fase móvel. Pequenas

quantidades da amostra são então aplicadas no papel, correndo então a cromatografia,

com as diferentes componentes da mistura a serem separadas à medida que o solvente

126

sobe no papel de filtro (Cf. http://www.scienceandsociety.co.uk/results.asp?image=

10255820&www flag=2&imagepos=22). A cromatografia é um método que teve um

grande impacto em muitos ramos da bioquímica, como no campo da análise de

proteínas. A cromatografia em papel foi muito popular no domínio da investigação

bioquímica, uma vez que este tipo de cromatografia era bastante eficiente quando se

tinha uma quantidade muito pequena do produto natural. “Entre 1945 e 1955, foram

realizados numerosos esforços no sentido de aplicar este método à análise quantitativa

de hidrolisados proteicos, mas tornou-se evidente que a sua precisão era demasiado

baixa para este propósito” (Fruton, 1999: 214).

Figura 14. O Mais antigo tanque para a realização de cromatografia em papel ainda existente, c. 1944 (imagem retirada de Varii. 1977. “RIC Centenary and CS/RIC Annual Chemical Congress”. Procedings of the Analytical Division of the Chemical Society, Vol. 14, Nº 5, pág. 102).

14 – Espectrofotómetro Fotoeléctrico Ultravioleta Beckman DU, 1935-1945. Um

espectrofotómetro é um instrumento que mede a intensidade da luz em várias zonas do

espectro, especialmente se transmitida ou emitida por uma substância ou solução num

determinado ponto. Como muitos dos espectrofotómetros iniciais, este era um

espectrofotómetro “ponto a ponto”, ou seja, não era capaz de desenvolver um espectro

contínuo. No entanto, a sua rapidez e facilidade de utilização tornaram-no muito popular

nos anos quarenta e cinquenta do século XX (Cf. http://www.sciencemuseum.org.uk

/images/I062/10327120.aspx). É de salientar que, por detrás da origem da técnica

espectrofotométrica, está sem dúvida o engenho metodológico de Otto Warburg. “Foi

Warburg quem, a partir de 1928, desenvolveu o uso da célula fotoeléctrica e a provisão

127

de fontes adequadas de luz monocromática, em primeira instância, no sentido da

realização das suas experiências relativas à medição do espectro de acção do enzima da

respiração responsável pela transferência de O2. Muito mais tarde, nos anos quarenta do

século XX, estes princípios foram incorporados nos espectrofotómetros comerciais,

sendo que o primeiro a ser comercializado foi o da companhia Beckman” (Krebs,

1981a: 16).

Figura 15. Espectrofotómetro Fotoeléctrico Ultravioleta Beckman DU, 1935-1945 (imagem retirada do site do Science Museum de Londres, mais especificamente a partir da página: http://www.sciencemuseum.org.uk/images/I062/10327120.aspx). 15 – Modelo original de Kendrew da molécula de mioglobina, 1957. Trata-se de um

modelo de plasticina, realizado por Sir John Kendrew, que constituiu o primeiro modelo

de uma proteína a ser realizado. Em 1957, John Kendrew e Max Perutz foram

galardoados com o Prémio Nobel da química devido à realização de um modelo da

estrutura tridimensional da mioglobina (Cf. http://www.sciencemuseum.org.uk/images

/I053/10321094.aspx).

Figura 16. Modelo original de Kendrew da molécula de mioglobina, 1957 (imagem retirada do site do Science Museum de Londres, mais especificamente a partir da página: http://www.sciencemuseum.org.uk/images/I053/10321094.aspx).

128

16 – Modelo da estrutura cristalina da vitamina B12, 1957-1959. Trata-se de um modelo

da estrutura cristalina da estrutura da vitamina B12, realizado por Dorothy Crowfoot

Hodgkin, na sequência da determinação da sua estrutura completa por cristalografia de

raios-x, em 1957, realizada pela própria Dorothy Hodgkin. A vitamina B12 é muito

importante em termos da saúde humana, sendo que níveis baixos da vitamina podem

levar ao desenvolvimento de anemia (Cf. http://www.scienceandsociety.co.uk/results

.asp?image=10311590). É de salientar que Dorothy Hodgkin fez um trabalho muito

importante no que diz respeito à cristalografia de raios-x. Como já referi anteriormente,

foi ela que, juntamente com Bernal, realizou em 1934 o primeiro espectro de difracção

satisfatório de uma proteína cristalina – a pepsina (Cf. Needham et al., 1992: 333-334).

Figura 17. Modelo da estrutura cristalina da vitamina B12, 1957-1959 (imagem retirada do site do Science & Society Picture Library, mais especificamente a partir da página: http://www.ssplprints.com/image.php?imgref=10311590).

17 – Kit de modelos estereoquímicos de Dreiding, 1958-1977. Trata-se de um kit de

modelos moleculares desenhados pelo químico suíço Andre Dreiding, em 1958, para a

montagem de modelos de moléculas orgânicas. Os modelos são baseados no conceito de

bola e tubo, com tubos representativos de ligações moleculares ligados a bolas que

representam o núcleo atómico. Estes modelos são particularmente úteis para a

demonstração da estereoquímica, a forma pela qual os átomos se arranjam

espacialmente no seio da molécula. Este kit, que se encontra no Science Museum,

contém 182 partes separadas, existindo outros conjuntos disponíveis que permitem

129

montar grupos específicos de compostos orgânicos (Cf. http://www.sciencemuseum

.org.uk/images/I013/10268857.aspx).

Figura 18. Kit de modelos estereoquímicos de Dreiding, 1958-1977 (imagem retirada do site do Science Museum de Londres, mais especificamente a partir da página: http://www.sciencemuseum.org.uk/images/I013/10268857.aspx). 18 – Modelo da insulina do porco de Dorothy Hodgkin, c. 1967. A insulina é uma

hormona produzida no pâncreas que regula o metabolismo da glucose, dos lípidos e das

proteínas. Esta hormona foi descoberta em 1921 pelo físico canadiano Frederick

Banting, um pioneiro na utilização da insulina para o tratamento da diabetes. A insulina

foi a primeira proteína a ter a sua estrutura molecular totalmente estabelecida, por

Dorothy Hodgkin, através da utilização de cristalografia de raios-x (Cf.

http://www.sciencemuseum.org.uk/images/I052/10320684.aspx).

Figura 19. Modelo da insulina do porco de Dorothy Hodgkin, c. 1967 (imagem retirada do site do Science Museum de Londres, mais especificamente a partir da página: http://www.sciencemuseum.org.uk/images/I052/10320684.aspx).

130

19 – Fotografia de Hans Krebs utilizando uma pipeta, 1973 (Cf. http://www.science

andsociety.co.uk/results.asp?image=10318599&wwwflag=2&imagepos=1). Tal como

aconteceu com as peças relativas aos pontos 5 e 7 da lista, incluí esta fotografia nesta

lista para demonstrar, igualmente, a variedade do tipo de artefactos museológicos

existentes que podem ajudar a perceber o carácter das disciplinas em estudo. Na

realidade, as fotografias constituem um tipo de artefactos museológicos muito

importantes. Claro que, neste caso, e tendo em conta a data da fotografia, esta imagem

vale pela pessoa que é fotografada. A imagem está identificada no museu, não como

representando um investigador a realizar uma experiência altamente relevante do ponto

de vista científico, mas como mostrando o grande bioquímico, Hans Krebs, a utilizar

uma pipeta, numa altura da sua vida em que já havia realizado um grande número de

investigações “altamente relevantes” no domínio da bioquímica. No entanto, noutras

circunstâncias, a fotografia pode focar uma experiência científica propriamente dita,

mostrando como é feita a montagem de uma experiência; como são realizados os

diferentes passos dessa mesma experiência e como são utilizados determinados

instrumentos que eventualmente até poderão já não existir; oferecendo imagens das

substâncias químicas resultantes das experiências; etc.

Figura 20. Fotografia de Hans Krebs utilizando uma pipeta, 1973 (imagem retirada do site do Science & Society Picture Library, mais especificamente a partir da página: http://www.ssplprints.com/image.php?imgref=10318599).

131

No que diz respeito à organização das peças nos respectivos sites, as peças relativas aos

pontos 2, 8, 14, 15, 17 e 18 da lista podem ser localizadas no site do Science Museum

através da sequência dos seguintes links: Coisas online > Objectos do museu > A

química na vida quotidiana, sendo que os objectos relativos aos pontos da lista referidos

se encontram em exposição à época da sua visualização. As peças relativas aos pontos

4, 5 e 11 da lista podem ser localizadas no site do Science & Society Picture Library

através da sequência dos seguintes links: Categorias > Ciência e Tecnologia > Química

> Laboratórios Químicos (1850-1949). A peça relativa ao ponto 16 da lista pode ser

localizada no site do Science & Society Picture Library através da sequência dos

seguintes links: Categorias > Ciência e Tecnologia > Química > Átomos, Elementos e

Moléculas, Modelos (embora neste caso seja necessário escolher o modelo da vitamina

B12 que aparece, o qual não é o indicado, mas que contém um link para a peça relativa

ao ponto 16). As peças relativas aos pontos 1, 3, 9, 10 e 12 da lista podem ser

localizadas no site do Science & Society Picture Library através da sequência dos

seguintes links: Categorias > Ciência e Tecnologia > Química > Aparelhos de

Laboratórios Químicos (1850-1949). As peças relativas aos pontos 6 e 7 da lista podem

ser localizadas no site do Science & Society Picture Library através da sequência dos

seguintes links: Categorias > Ciência e Tecnologia > Microscopia > Microscópios,

século XIX e a peça relativa ao ponto 19 da lista pode ser localizada no site do Science

& Society Picture Library através da sequência dos seguintes links: Categorias >

Personalidades > Personalidades > Krebs, Hans, Sir.

É de salientar a excelente organização dos artefactos museológicos que apresentei (na

minha lista), nos sites referidos. Também nos museus as peças são inventariadas,

organizadas, conservadas e posteriormente expostas segundo critérios muito precisos e

aperfeiçoados. Esta organização dos objectos nos museus foi algo que pude constatar no

próprio site do Science Museum, que apresenta alguns dos objectos na forma como eles

se encontram em exposição no museu. Ou seja, hoje, ao lado dos museus clássicos,

temos os museus virtuais, o que é um aspecto interessante desta figura da unidade da

ciência

Quero ainda referir que me foi possível descobrir na Internet um museu onde se pode

encontrar o manómetro de Warburg (Cf. http://www.ksu.ru/miku/eng/index.htm), um

instrumento altamente representativo do desenvolvimento da bioquímica. A teoria e

prática da manometria, a qual consiste na medição das diferenças de pressão que se

132

estabelecem dentro de um recipiente a temperatura e volume constantes, foram

aperfeiçoadas em 1920. Posteriormente, Warburg implementou novas elaborações nos

anos cinquenta do século XX, sendo que a principal inovação técnica de Warburg foi o

desenvolvimento de um aparelho capaz de medir directamente os incrementos de

pressão, ao contrário dos métodos anteriores que mediam as diferenças. A manometria

foi um factor essencial na descoberta da fermentação láctica do tecido canceroso, em

muito do trabalho realizado no domínio da respiração celular, na fermentação, etc. (Cf.

Krebs, 1981a: 14-16) O museu referido é o Museu de História da Universidade de

Kazan, na Rússia, onde Vladimir Engelhardt, professor no departamento de bioquímica

durante um breve período, a partir de 1929, foi responsável por importantes estudos no

domínio da fosforilação oxidativa. O manómetro de Warburg encontra-se em exibição

no museu, organizado num conjunto de objectos referentes à escola fisiológica da

Universidade de Kazan (Cf. http://www.ksu.ru/miku/eng/ekskurs/fzl/index.php).

Figura 21. Manómetro de Warburg utilizado por Vladimir Engelhardt na Universidade de Kazan, c. 1929 (imagem retirada do site do Museu de História da Universidade de Kazan, mais especificamente a partir da página: http://www.ksu.ru/miku/eng/ekskurs/fzl/index.php).

A forma como encontrei este instrumento permite revelar a articulação entre três figuras

da unidade da ciência, o museu, a escola e a Internet que, como acima referi, se

apresenta actualmente e cada vez mais, como a forma actual dessa importante figura da

unidade da ciência que é a enciclopédia.

133

Para concluir este ponto, penso que a amostra de artefactos museológicos que apresentei

constitui um pequeno esboço da forma como se deu a evolução da disciplina.

Nomeadamente, noto a maneira como, ao longo do tempo, foram surgindo novas

“técnicas”, onde eram utilizados instrumentos cada vez mais sofisticados, que

possibilitaram o esclarecimento de um número cada vez maior de “problemas”

biológicos.

134

3.5. Enciclopédia

A partir do momento em que determinadas palavras-chave relativas à bioquímica são

inscritas numa enciclopédia, passam a fazer parte do universo do saber organizado, um

universo onde um conceito se pode encontrar no livro ao lado, ou no livro da prateleira

de cima, mas sempre de uma forma organizada que não permite que o sujeito se perca.

Por outro lado, esta inscrição de determinadas palavras na enciclopédia sob a forma de

novas entradas também confere um certo estatuto ao que elas representam. Nesse

sentido, é eloquente a designação de “entrada” que lhes é dada. É como se cada nova

“entrada” de uma enciclopédia marcasse a entrada da entidade que ela designa, seja um

artefacto, um ente ou uma disciplina, no universo da cultura, dos existentes ou do

conhecimento. Como mostra Olga Pombo (2006a: 188), é mesmo possível acompanhar

os progressos do conhecimento científico, tanto pelas entradas que surgem de novo (por

exemplo, “bioquímica”) como por aquelas que desaparecem (por exemplo, “flogisto”).

No meu estudo sobre a enciclopédia, falando em termos práticos, fiz uma única

pesquisa. No entanto, tive o cuidado de escolher a mais antiga enciclopédia em uso, a

Encyclopaedia Britannica, para realizar esta pesquisa, relativa ao ano em que as

palavras “proteína”, “enzima” e “bioquímica” foram introduzidas, palavras estas que

são, de certa forma, representativas da disciplina que estudo neste trabalho – a

bioquímica2.

A primeira referência no que diz respeito ao termo “proteína” aparece no artigo

AGRICULTURAL CHEMISTRY (XVII:671), na 8ª edição da Encyclopaedia Britannica

(1852-60). O autor do artigo foi Thomas Andersson, professor de química na University

of Glasgow. A secção “Caseína” refere as “pequenas quantidades de enxofre e fósforo

que elas contêm” e nota que “muita importância tem sido atribuída a estes constituintes

por parte de vários químicos, e especialmente por Mulder, sendo que ele indicou que

todas as substância albuminosas são compostos de uma substância a que ele deu o nome 2 Gostaria de referir que não tive possibilidade de consultar pessoalmente as antigas edições da

Encyclopaedia Britannica onde constam os artigos que cito. A informação relativa a esta enciclopédia

foi-me disponibilizada por uma funcionária desta instituição, via e-mail, desde a sede nos Estados Unidos.

135

proteína, com diferentes quantidades de enxofre e fósforo” (Amy Tikkanen, in litt. 30

Maio 2009).

A primeira referência relativa ao termo “enzima” aparece no artigo NUTRITION

(XVII:671), na 9ª edição da Encyclopaedia Britannica (1875-89). O autor do artigo foi

Arthur Gamgee, professor de fisiologia na Owens College de Glasgow. A secção

relativa a “Secreções do Canal Alimentar – Produção de Sucos Alimentares” indica que

“os constituintes característicos dos diversos sucos que estão especialmente envolvidos

nas alterações químicas produzidas no canal alimentar, são determinadas substâncias

referidas usualmente como fermentos «desorganizados», que vamos, seguindo a

sugestão de Kühne, denominar enzimas [...]” (Amy Tikkanen, in litt. 30 Maio 2009).

Finalmente, a primeira referência relativa ao termo “bioquímica” aparece no artigo

PHYSIOLOGY (III:100), na 12ª edição da Encyclopaedia Britannica (1921-22). O autor

do artigo foi William Maddock Bayliss, professor de fisiologia geral no University

College London. A primeira secção deste artigo refere que, “por uma questão de

conveniência em termos de investigação, a fisiologia é dividida muitas vezes em

bioquímica e biofísica. Mas esta distinção não pode ser satisfatoriamente considerada

como científica, uma vez que em todos os processos vitais intervêm tanto factores

químicos como físicos” (Amy Tikkanen, in litt. 30 Maio 2009).

O primeiro aspecto a notar relativamente à data em que estes termos foram introduzidos

na enciclopédia é que, como é natural, tal só aconteceu, para cada um dos casos, alguns

anos depois deles fazerem parte do vocabulário dos cientistas, como podemos ver pela

comparação entre estas datas e as datas referidas na parte anterior do trabalho (isto

embora, no caso referente ao termo “enzima”, seja necessário supor uma data mais

adiantada no que diz respeito ao intervalo de tempo referido para a realização da

enciclopédia, o que é mesmo necessário supor, uma vez que Kühne só sugeriu a

utilização da palavra enzima para designar os catalisadores semelhantes à pepsina em

1876). Recordo que o termo “proteína” foi introduzido em 1938 (Cf. Fruton, 1999:

171), o termo “enzima” foi introduzido em 1876 para designar os catalisadores

semelhantes à pepsina (embora a palavra já existisse há muito tempo, tendo sido

utilizada pelos teólogos medievais na sua disputa sobre se a Eucaristia deveria ser

celebrada com pão fermentado ou não fermentado – pão com enzima ou sem enzima)

(Cf. Fruton, 1999: 148) e o termo “bioquímica” começou a ser utilizado, de uma forma

136

quase generalizada, no princípio do século, embora já tivesse sido utilizado

anteriormente (Cf. Fruton, 1976: nota 8 da pág. 332). Isto é natural, e é demonstrativo

daquilo que a enciclopédia representa. Uma enciclopédia é um texto que tem de ter

como base um grande consenso científico. De facto, é este aspecto da enciclopédia que

a torna tão importante ao ponto de ser uma das figuras da unidade da ciência. Na

enciclopédia estão já representados conhecimentos avalizados pela comunidade

científica.

137

4. Conclusão

4.1. Considerações finais sobre a dissertação

O objectivo da minha dissertação, como anunciei inicialmente, era mostrar de que forma

o exemplo particular da emergência da bioquímica podia ajudar a explicar a existência

de uma tendência à unidade da ciência interdisciplinar, a qual sempre esteve presente no

processo do desenvolvimento científico ao longo dos séculos, não permitindo uma

fragmentação total dos diferentes ramos científicos ultra-especializados e que hoje

orienta, em grande parte, o desenvolvimento científico e o cruzamento interdisciplinar

que o caracteriza.

Na primeira parte do trabalho, utilizei conceitos que permitem clarificar determinados

fenómenos interdisciplinares, como a questão do tipo de ciência que é a bioquímica e

qual o tipo de práticas interdisciplinares que estiveram na base da emergência da

disciplina, sendo que utilizei também as teorias de Kuhn relativas ao período pré-

paradigmático para pensar esta emergência. Assim, depois de estabelecer que a

bioquímica era uma ciência de fronteira, o que surge directamente da definição daquilo

que é uma ciência deste tipo, tentei perceber que espécie de relações entre a biologia e a

química estavam na base da constituição dessa disciplina híbrida, uma vez que a mera

caracterização da bioquímica como ciência de fronteira nos diz pouco relativamente à

sua natureza. Neste contexto, tentei responder à questão essencial dessa primeira parte

do trabalho: quais eram as práticas interdisciplinares determinantes envolvidas no

processo de emergência da bioquímica?

Praticamente, todo o meu estudo e a minha discussão nessa parte do trabalho giraram à

volta desta pergunta, a qual tem um enorme significado, isto no sentido da compreensão

dos factores interdisciplinares que poderão levar à emergência de novas disciplinas. No

entanto, tendo respondido a esta questão, onde concluí que as práticas interdisciplinares

de importação estiveram na base da emergência da bioquímica, o facto é que me parece

que acabei por fazer algo mais. Penso que, através da apresentação de uma grande

quantidade de dados de natureza cognitiva e institucional, consegui mostrar a natureza

138

verdadeiramente interdisciplinar dos processos que estiveram na base da origem da

disciplina. Claro que isto não é de todo extraordinário, basta olhar para a palavra

“bioquímica” para perceber que existiram fenómenos de interdisciplinaridade por detrás

da sua emergência. Mas isso não é suficiente. Não basta saber que existem processos

interdisciplinares por trás de uma disciplina, é preciso olhar com atenção e perceber de

que tipo são os fenómenos que levaram à emergência da mesma, isto de forma a poder

tirar conclusões relativamente à forma como os processos interdisciplinares

influenciaram a emergência da disciplina.

Como disse na introdução, é difícil teorizar o conceito de interdisciplinaridade. É difícil

dizer com exactidão o que ela é. Mas não podem restar dúvidas de que ela está bem

presente numa quantidade significativa de práticas que se podem designar de

interdisciplinares. Assim, neste sentido, o que importa fazer em relação ao estudo de

uma disciplina, é ver o que aconteceu com algum pormenor, é perceber as práticas

específicas que estiveram em causa nessa emergência. Em relação ao estudo que realizei

sobre a bioquímica, onde abordei, como disse, tanto os aspectos cognitivos relativos ao

seu desenvolvimento e emergência, onde referi as descobertas científicas e os novos

métodos que foram sendo produzidos, como os aspectos institucionais, onde falei sobre

a forma como se processaram os estudos bioquímicos em diversos contextos

institucionais, penso que ficou bem patente a necessidade de olhar, com algum detalhe,

para os processos relativos ao desenvolvimento da disciplina, de forma a perceber que

tipo de integração ocorreu, que tipo de práticas interdisciplinares foram decisivas no

processo de formação da disciplina.

Para além destes aspectos que têm a ver com a emergência da bioquímica, e tendo em

conta a natureza das práticas interdisciplinares de importação que estiveram em causa

neste processo, práticas que afirmei constituírem aquilo que sempre foi e continua a ser

o objectivo fundamental da disciplina, teci também algumas considerações sobre o

carácter verdadeiramente interdisciplinar da disciplina, onde as práticas que estiveram

na origem da disciplina continuam a ser as mesmas práticas interdisciplinares que

conduzem os actuais desenvolvimentos bioquímicos.

Já no que diz respeito à segunda parte do trabalho, relativa às figuras da unidade da

ciência, onde demonstrei a presença das mesmas tanto num momento anterior à

emergência da bioquímica, como no momento em que esta disciplina acabava de

139

alcançar o seu primeiro paradigma, o que revela uma elevada maturidade da mesma,

penso que esta se trata da contribuição mais significativa do meu trabalho.

A questão da unidade da ciência é, de facto, uma questão abrangente, para além de ser

uma questão de importância fundamental para a filosofia da ciência, e as figuras da

unidade da ciência apresentadas por Olga Pombo (2006) constituem, na minha opinião,

conceitos simples e operatórios que ajudam a perceber determinações muito importantes

da actividade científica. Consequentemente, estes dispositivos materiais unificadores

também nos ajudam a estudar esta mesma unidade da ciência interdisciplinar, de uma

forma organizada, no estudo de casos concretos, mas sempre tendo a noção de que a

unidade da ciência é algo que não se reduz a casos concretos, que os casos concretos são

apenas elos numa corrente de várias disciplinas interligadas. Estas figuras da unidade da

ciência estiveram na origem de processos que permitiram a formação de bases

disciplinares sólidas, as quais podem permitir a formação de novas disciplinas através

de novos processos de integração, havendo assim uma continuidade no

desenvolvimento disciplinar que demonstra a forma como a unidade da ciência nunca

deixará de estar presente no processo do desenvolvimento científico.

140

4.2. Perspectivas de investigação futura

Para terminar, e antes de concluir o trabalho, gostaria de apresentar uma perspectiva

diferente de abordagem da questão que estudei.

O meu trabalho consistiu em perceber o carácter interdisciplinar da bioquímica olhando

para o processo de emergência da disciplina. Tentei perceber o que era a bioquímica,

que tipo de estudos, de práticas e de instituições estiveram presentes no processo da sua

emergência. Em termos do desenvolvimento cognitivo da disciplina, terminei este meu

estudo afirmando que o primeiro paradigma da bioquímica tinha surgido nos anos trinta

do século XX. Esta afirmação resulta da minha concordância com Bechtel, que afirma

que a bioquímica passou a apresentar um domínio científico próprio a partir dos anos

trinta do século XX, pois apenas nesta altura se percebeu a função desempenhada pelos

coenzimas. Bechtel realizou um estudo detalhado sobre o papel desempenhado pelos

coenzimas no metabolismo intermediário, para chegar à conclusão de que a bioquímica

não podia ser reduzida à química e, consequentemente, que as funções fisiológicas não

podiam ser reduzidas à química. Assim, os estudos realizados por Bechtel, que afirma

que a bioquímica surge da integração entre a fisiologia e a química, apontam para uma

unidade interdisciplinar da ciência, para uma cooperação entre disciplinas, que não

permite, contudo, a sua redução.

Assim, no seguimento deste estudo, o próprio estudo dos processos bioquímicos numa

fase em que a bioquímica já atingiu um elevado nível de maturidade, o estudo de

processos bioquímicos que poderão estar a ser investigados na actualidade, também

pode ajudar a explicar a existência de uma unidade interdisciplinar, e é esse aspecto que

gostaria de desenvolver agora nesta conclusão do trabalho, apontando simultaneamente

para uma espécie de passo seguinte a ser desenvolvido numa futura investigação. Trata-

se de pensar os estudos bioquímicos no contexto do programa reducionista da unidade

da ciência. Será a bioquímica um exemplo de reducionismo? Ou, pelo contrário, como

defendi nesta dissertação, um caso paradigmático de um processo de unidade da ciência

interdisciplinar?

É certo que este tipo de estudos filosóficos têm sido realizados. Não estou a dizer nada

de novo. Nesse sentido, gostaria de referir um paper de Robert Kincaid intitulado

141

“Molecular Biology and the Unity of Science”, publicado na revista Philosophy of

Science (1990), que vai de encontro às minhas próprias ideias. No entanto, antes de falar

sobre o paper de Kincaid, preciso de esclarecer que o autor chama biologia molecular

ao que eu chamo bioquímica (e já clarifiquei anteriormente o que é que eu entendo por

bioquímica) e, por outro lado, reduz a bioquímica aos processos químicos que ocorrem

no organismo, ou seja, para Kincaid, a bioquímica é simplesmente química, a química

relativa aos organismos vivos (que poderá ser tanto orgânica como inorgânica). Na

realidade, o autor utiliza várias vezes as palavras bioquímica e química como se fossem

a mesma coisa, o que tem lógica, tendo em conta o entendimento que Kincaid tem

acerca do significado da palavra bioquímica. Desta forma, nesta pequena análise que

faço ao paper de Robert Kincaid, estabeleço uma troca de termos, mas deixo desde logo

a nota que os termos que utilizo são diferentes dos utilizados por Kincaid. Faço esta

alteração terminológica porque um dos pontos essenciais da minha dissertação é

estabelecer uma ideia clara sobre aquilo que é a bioquímica, de forma que apresentar

agora um texto onde a bioquímica é outra coisa, me parece que iria tornar a dissertação

confusa para o leitor. É importante clarificar que não se trata de uma forma de integrar

as ideias de Kincaid na minha dissertação, trata-se apenas de uma opção realizada de

forma a que a dissertação não se torne confusa. É uma espécie de “tradução” de alguns

conceitos de Kincaid, “tradução” que eu poderia mesmo não ter realizado, sendo que

nesse caso teria de deixar uma nota explicativa.

Depois desta nota prévia, regressemos ao paper de Kincaid. Segundo o autor, os

avanços ao nível da bioquímica (o que eu chamo bioquímica e o que Kincaid chama

biologia molecular) têm sido interpretados pela generalidade dos investigadores como

suportando a hipótese de que a biologia é redutível à química (o que eu chamo química,

neste caso a química relativa aos processos que ocorrem nos seres vivos, e o que

Kincaid chama bioquímica). Kincaid argumenta contra esta hipótese, apresentando um

número de resultados centrais da bioquímica, como a hipótese do sinal, a comunicação

celular e os receptores envolvidos nesta mesma comunicação, mecanismos de acção

imunológica, etc., mostrando que nenhum destes resultados serve como suporte ao

reducionismo. Para demonstrar esta afirmação, Kincaid descreve três obstáculos

essenciais ao reducionismo, mostrando que todos eles estão presentes nos resultados de

bioquímica apresentados (Cf. Kincaid, 1990: 575, 579, 583-584).

142

Assim, estes três tipos de obstáculos que se apresentam à perspectiva reducionista são,

em primeiro lugar, o problema das realizações múltiplas: reduzir uma teoria para outra

requer a existência de um vocabulário capaz de conectar as duas teorias. No entanto, se

se chega aos tipos de eventos descritos pela teoria de alto-nível a partir de um enorme

número de entidades de baixo-nível, poderá não ser possível estabelecer esta conexão,

falhando a redução; em segundo lugar, Kincaid analisa o problema referente à

sensibilidade ao contexto. Pode muito bem ser que eventos descritos em termos de

baixo-nível não possam ser unicamente correlacionados com uma descrição de alto-

nível, dependendo do contexto; em terceiro lugar, outro problema é a pressuposição de

explicações de alto-nível (nas explicações de baixo-nível). É essencial que as descrições

de baixo-nível procedam em termos unicamente de baixo-nível. No entanto, acontece

muitas vezes os reducionistas providenciarem pontes de ligação reducionistas e, mesmo

assim, falharem no processo de redução, ao pressuporem explícita ou implicitamente

explicações ou descrições de alto-nível no processo (Cf. Kincaid, 1990: 576-577).

Neste ponto, Kincaid apresenta um grande número de exemplos de processos

bioquímicos para explicar como estes obstáculos são incontornáveis e impedem uma

visão reducionista sobre a questão. Sendo que, neste caso, a bioquímica seria a teoria

candidata a ser reduzida, e a química a teoria redutora. Assim, apenas para dar um

exemplo, Kincaid fala na “hipótese do sinal”, relativa ao transporte de proteínas.

As proteínas são sintetizadas no citoplasma, sendo depois transportadas para o seu

destino final. Assim, a proteína tem de codificar a informação que determina o seu

destino final. É neste contexto que foi proposta a “hipótese do sinal”, segundo a qual a

informação que determina o local para onde a proteína é transportada está contida numa

“sequência sinal” – uma sequência de aminoácidos incorporada no próprio precursor da

proteína (Cf. Kincaid, 1990: 578-579).

Assim, segundo Kincaid, os três obstáculos por ele descritos relativamente à redução de

teorias, são obstáculos reais no que diz respeito à tentativa de explicar o transporte de

proteínas em termos puramente químicos. A “sequência sinal”, por exemplo, é um

predicado que tem realizações múltiplas em termos químicos (debruçar-me-ei,

sobretudo, sobre este obstáculo). Existem pelo menos 200 tipos diferentes de sequências

de aminoácidos que funcionam como sinais (Cf. Kincaid, 1990: 579).

143

Há, no entanto, várias estratégias para contornar este obstáculo. No entanto, para

Kincaid, as evidências empíricas indicam que se tratam de becos sem saída.

Uma forma de contornar o problema das realizações múltiplas, diz Kincaid, seria definir

“sequência sinal” simplesmente em termos das cadeias de aminoácidos conhecidas que

realizam esta função. Estamos a falar de uma definição disjuntiva do género: as

proteínas são transportadas e direccionadas de acordo com as sequências de

aminoácidos s1 ou s2…..sn. No entanto, como refere Kincaid, estas definições seriam

apenas adequadas se soubéssemos todas as sequências sinal possíveis. Mas isso parece

pouco provável, uma vez que o número de sequências sinal é muito elevado e não há

forma de prever as futuras descobertas que poderão ser realizadas (Cf. Kincaid, 1990:

580, 588).

Outra forma de contornar este problema das realizações múltiplas, continua Kincaid,

seria reconhecer muitos sinais – um para cada mecanismo químico. Uma vez que isto

fosse conseguido, o problema das realizações múltiplas desapareceria, pois teríamos

uma única propriedade química para os nossos sinais. Nada impede que isto seja

realizado, diz Kincaid, mas há enormes dificuldades na base da concretização deste

“projecto”. Em primeiro lugar, mesmo que a divisão dos conceitos biológicos, por

vezes, possa dar os seus frutos, a forma mais natural de fragmentar “sinal”, seria

distinguindo sinais de secreção, sinais de transporte mitocondrial, sinais de localização

nuclear, etc. No entanto, esta subdivisão é realizada em linhas funcionais, não químicas,

pelo que não nos dá uma definição química. Outra dificuldade é que, mesmo dentro

destas subclasses de sinais, há muito poucas perspectivas de ultrapassar o problema das

realizações múltiplas. A razão é que a função de sinal, mesmo que se reconheça uma

diversidade de sinais, é levada a cabo por uma grande diversidade de propriedades

químicas: as sequências sinal para inserção no retículo endoplasmático podem ser tanto

co- como pós-translacionais; algumas vezes dependem e outras não das características

da proteína; podem variar em cerca de 200% de tamanho; aparentemente, podem

apresentar diferentes interacções físico-químicas com os lípidos da membrana; os sinais

de transporte mitocondrial são específicos relativamente a cada espécie e envolvem

diferentes mecanismos para cada proteína; as sequências sinal podem encontrar-se tanto

na extremidade como no interior da proteína, sendo que estes dois tipos de sequências

são estruturalmente diferentes; etc. Assim, diz Kincaid, isto mostra-nos que há uma

grande diversidade química mesmo depois de distinguirmos vários tipos de sinais.

144

Teríamos que subdividir em grande detalhe, reconhecendo sinais para cada tipo de

mecanismo e sub-mecanismo, destino e espécie. A biologia celular seria capaz de dizer

pouco de natureza geral, ficaria reduzida a uma simples listagem de factos químicos

conhecidos, o que tem pouco a ver com o reducionismo, uma vez que as generalizações

não seriam capturadas (Cf. Kincaid, 1990: 580-582).

Concluindo este ponto, o autor prossegue afirmando que as dificuldades de redução, no

que diz respeito à hipótese do sinal, fazem sentido em termos da teoria da evolução,

concluindo então que, dado que a selecção natural pode ser várias vezes cega aos

mecanismos subjacentes e permitir a existência de estruturas diversas, desde que elas

produzam o mesmo efeito, então é de esperar que funções semelhantes possam ser

realizadas por vários tipos de mecanismos químicos, e que são as semelhanças

funcionais, e não os detalhes químicos, que as várias espécies e tipos celulares têm em

comum. Assim, é esta diversidade química de que Kincaid fala, a qual se encontra na

base da unidade biológica, que surge como principal obstáculo ao reducionismo (Cf.

Kincaid, 1990: 583).

Kincaid também considera as implicações heurísticas da irredutibilidade e argumenta

que as aproximações puramente químicas não são capazes de confirmar um grande

número de resultados.

Por exemplo, refere que tentativas para explicar os resultados da bioquímica em termos

puramente químicos tendem a ver diversidade química onde há uma importante

unidade. Porque os estudos realizados pelos bioquímicos têm muitas vezes realizações

múltiplas, o procedimento químico não revelará mecanismos e explicações comuns.

Pelo contrário, os dados químicos tenderão a indicar que os processos sob investigação

diferem em tipo (Cf. Kincaid, 1990: 587).

Por outro lado, o autor critica a teoria puramente química em termos heurísticos,

afirmando que estas explicações não possuem place holders. Um place holder é um

termo de uma teoria que é introduzido para designar uma entidade, um processo, etc.,

em relação ao qual temos algumas provas, mas cuja natureza precisa é desconhecida.

Muitas vezes, os biólogos têm algumas provas de que uma determinada função

biológica existe, muito antes de saberem todos os seus detalhes com precisão. O

progresso muitas vezes surge pela descrição de tais funções, designação de um place

145

holder, e a investigação deste em termos químicos e biológicos. Uma aproximação

puramente química, conclui Kincaid, simplesmente desiste do uso destes place holders

e, ao fazê-lo, está a perder uma ferramenta heurística importante, pois a bioquímica está

cheia de termos que descrevem funções biológicas, e muitos resultados importantes têm

surgido da postulação de processos biológicos e a sua posterior investigação (Cf.

Kincaid, 1990: 588).

Finalmente, Kincaid termina o seu paper afirmando que a bioquímica representa um

paradigma de unidade não reducionista. Neste caso, um paradigma de unidade que diz

respeito às relações interdisciplinares.

Segundo Kincaid, a bioquímica está a providenciar grandes avanços na causa da

unidade da ciência, mas não porque ela opere uma redução da biologia à química. Para

este autor, a bioquímica é um excelente exemplo de uma unidade não reducionista, a

qual envolve interconexões e dependências entre teorias, sem que haja a possibilidade,

contudo, de uma teoria ser substituída pela outra. Estas interconexões podem consistir,

por exemplo, no facto de uma teoria depender heuristicamente de outra; da confirmação

de uma teoria depender de outra, usando-a no seu desenho experimental; de uma teoria

usar explícita ou implicitamente explicações de outra teoria, etc. Assim, duas teorias

podem ser ligadas, ou incorporadas, numa teoria integrada entre níveis. Uma teoria

entre níveis, então, unifica duas teorias diferentes empregando explicações, processos

de confirmação, etc., invocando ambos os níveis. No entanto, convém notar que duas

teorias podem ter um grande nível de interdependência, mas a sua redução parecer

impossível (Cf. Kincaid, 1990: 589-590).

Para o autor, a química depende da informação biológica sobre o comportamento

celular (neste ponto, eu acrescentaria que a química precisa da biologia, essencialmente,

no sentido de que precisa de um “substrato” sobre o qual actuar. Ela precisa de

problemas para resolver, isto no âmbito dos estudos bioquímicos), da mesma forma que

as experiências biológicas também dependem de todo o tipo de informações químicas

de forma a confirmar os seus resultados (está aqui a prática de importação que referi no

ponto 2.2.4.). Por outras palavras, mesmo que a bioquímica não sirva de suporte para a

redução da biologia à química, ela certamente constitui um forte argumento a favor da

sua unidade. A bioquímica combina, de forma interdisciplinar, as informações

biológicas com as informações químicas (Cf. Kincaid, 1990: 591).

146

Assim, para Harold Kincaid, a bioquímica representa um paradigma de unidade, e esta

unidade diz respeito, na realidade, às relações interdisciplinares. Para este autor, a

bioquímica une a teoria biológica, ao nível celular, com a química.

Numa posição diametralmente oposta a Kincaid, existem autores que tomam a

bioquímica como base para comprovar a teoria reducionista. É o caso de Joseph D.

Robinson, que inclusivamente escreveu um paper de resposta ao paper de Kincaid,

intitulado “Aims and Achievements of the Reductionist Approach in Biochemistry /

Molecular Biology / Cell Biology: A Response to Kincaid”, publicado na revista

Philosophy of Science (1992).

Assim, em termos gerais, se no seu paper Kincaid fala, essencialmente, sobre casos que

têm um maior interesse para a defesa da sua tese, ou seja, casos em que as estruturas

químicas são muito diversas, e apenas se podem agrupar os dados descrevendo as

funções biológicas, Robinson responde a Kincaid descrevendo casos em que

determinados agentes com estruturas químicas semelhantes desempenham funções que

anteriormente se pensavam bastante diversas. Um exemplo que Robinson dá deste tipo

de casos é o dos citocromos, havendo um tipo de citocromos importantes em processos

oxidativos relativos à nutrição dentro do mitocôndrio, e outros citocromos que realizam

oxidações, de estrutura ligeiramente diferente mas parecida, fora do mitocôndrio, mas,

neste caso, com a função de destoxificação dos xenobióticos. (Cf. Robinson, 1992: 466)

Este é um caso interessante onde, de facto, os dados químicos indicam mecanismos e

explicações comuns. Um caso onde se encontra uma unidade funcional a partir de

estruturas semelhantes. No entanto, na minha opinião, há uma coisa que convém não

esquecer. O programa reducionista é um programa amplo que procura reconverter a

teorias de baixo nível. Ora, se Kincaid mostra que tal não é possível em vários casos,

mesmo que Robinson argumente que tal é possível em outros tantos casos, o programa

reducionista encontra-se já posto em causa, pois a tal amplitude globalizadora do

projecto reducionista encontra-se já em xeque a partir do momento em que haja apenas

uma quantidade de casos relevantes onde se mostre que a perspectiva reducionista não

funciona.

Outro aspecto do paper de Robinson que convém salientar e pôr a par com as ideias de

Kincaid, é um que diz respeito a questões mais gerais relacionadas com a teoria da

evolução. Kincaid diz, como referi anteriormente, que, uma vez que a selecção natural

147

pode ser várias vezes cega aos mecanismos subjacentes e permitir a existência de

estruturas diversas, desde que elas produzam o mesmo efeito, então é de esperar que

funções semelhantes possam ser realizadas por vários tipos de mecanismos químicos, e

que são as semelhanças funcionais que as várias espécies e tipos celulares têm em

comum, não os detalhes químicos. Por seu lado, Robinson nota que as proteínas, os

actores principais do “palco” celular, podem ser modificadas por discretas e pequenas

mutações, e seleccionadas pela sua eficácia, podendo haver grandes homologias entre

estas proteínas. Robinson nota ainda que os registos bioquímicos estão cheios de

referências a homologias nas sequências das proteínas e a famílias de domínios

funcionais (Cf. Robinson, 1992: 467). Eu estou de acordo com Robinson no sentido em

que, de facto, se poderão dar mutações nas proteínas que serão, muitas vezes, pequenas

e discretas, as quais serão seleccionadas pela sua eficácia, de tal forma que as proteínas

poderão apresentar grandes homologias, mas o problema que se põe é o seguinte: as

mutações não têm uma lógica subjacente, portanto, mesmo que as estruturas químicas

dos compostos em causa possam ser semelhantes, estas pequenas diferenças existentes

poderão não ser suficientes para criar toda uma lógica de agrupamento numa

determinada família de compostos. Haverão homologias e mesmo algumas famílias de

domínios funcionais como Robinson nota? Sem dúvida, mas tal será fruto do acaso, o

que significa que haverá também muitos casos em que determinados compostos não

caberão em qualquer tipo de família e, como já disse, isto põe logo em causa o

programa reducionista.

É interessante notar como os papers de Kincaid e de Bechtel vão parar sensivelmente ao

mesmo ponto. Ambos os autores tomam em consideração aspectos relativos à teoria da

evolução para formular teses impeditivas de uma teoria reducionista. Tal não é estranho

pois, apesar dos trabalhos serem diferentes, ambos abordam sensivelmente a mesma

questão. Os dois trabalhos olham para processos bioquímicos (totalmente distintos), no

sentido de chegar a uma bioquímica com domínio próprio, irredutível à química

Penso pois que há uma discussão a fazer sobre a bioquímica enquanto fenómeno de

unidade da ciência. Há um debate em curso, uma história recente a revisitar, um

processo que está na origem da formação de uma disciplina de grande importância

como é a bioquímica e cujo sentido deve ser avaliado à luz das concepções reducionista

ou interdisciplinar da unidade da ciência. Se apresento este ponto como perspectivas de

investigação futura, também posso dizer que a dissertação que realizei sobre a

148

emergência da bioquímica, no contexto da unidade da ciência, é um trabalho de base

importante que permite ter uma perspectiva mais alargada sobre todas estas questões, e

que permite também que se possa embarcar posteriormente, com bases firmes, num tipo

de estudo onde existe uma abordagem diferente. Trabalho que, contudo, vai desembocar

na mesma questão: o sentido de uma concepção interdisciplinar da unidade da ciência.

149

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