uma palavra por outra[1]

Upload: aline-goncalves

Post on 16-Oct-2015

459 views

Category:

Documents


24 download

TRANSCRIPT

PAGE 4

UMA PALAVRA POR OUTRAJean Tardieu

PERSONAGENSEmpregadaMadameCondessaCondeApresentador:

Por volta de 1900 poca das mais estranhas uma curiosa epidemia alastrou-se por entre a populao das cidades, atingindo particularmente as classes favorecidas. Os infelizes atacados por este mal passaram a tomar de repente as palavras umas pelas outras, como se as pescassem ao acaso num saco.O mais interessante que os doentes no tinham conscincia da doena, continuavam, alis so de esprito, e mesmo, no auge da epidemia, as conversas mundanas prosseguiam alegremente enfim, - o nico rgo atingido era o vocabulrio. Esse fato histrico infelizmente contestado por alguns eruditos nos leva s seguintes concluses:- em geral, falamos para no dizer nada;

- se, por acaso, temos algo a dizer, podemos faz-lo de mil formas diferentes; os pretensos loucos s so assim chamados porque no compreendemos sua linguagem;

- nas relaes humanas, muitas vezes os movimentos do corpo, as inflexes da voz, e a expresso do rosto dizem bem mais que as palavras;

- e ainda: as palavras no tm em si outro sentido a no ser o que nos apraz atribuir-lhes, pois afinal, se decidirmos de comum acordo que a voz do co se chamar relincho, e a do cavalo latido, amanh ouviremos todos os ces relincharem e todos os cavalos latirem.

Graas habilidade dos atores, teremos o prazer de lhes provar estas simples verdades, alis, bem conhecidas, na pequena cena que se segue:

Empregada Madame, Madame de Perleminouse.

Madame Ah! Que cacho! Faa-a engordar! (Dirige-se ao piano e canta)

To longe, de mim pedante

Onde est, onde est meu sacramento?

Quisera comer na hora

No esqueceste o condimento...

Empregada A senhora Condessa de Perleminouse.

Madame Ah Querida, queridinha pelcia! H quanto tempero, h quantas pedrinhas eu no tenho o doceiro de te aucarar!

Condessa Nem queiras saber, querida! Eu andei to envidraada! Meus trs ltimos filisteuzinhos tiveram limonada, um depois do outro. Passei todo o comeo do corsrio chocando moinhos, correndo do rufio para o tamborete, passei noites controlando os carburadores, distribuindo alicates e pororocas. Enfim, no tive um s minueto livre! Madame Pobrezinha! E eu que nem descongelava de nada!

Condessa Melhor assim! Bem que merecias descampar, depois das borrachas que queimastes! Imagina! Desde o fez de Paio at meados do Fuzil ningum mais te viu, nem no water-proof, nem nos entremeios da Pinta da Boa Crista! Devias estar mesmo muito congestionada!

Madame verdade... Ah! Que solvente! No posso nem molhar nisso sem escurecer.

Condessa Ento, nada de cocadas?

Madame Nada.

Condessa Nem um biscoitinho?

Madame Nenhum! Ele nem se dignou a me remexer, desde a pia em que me gargarejou!

Condessa Que sacristo! Devias ter-lhe raspado umas brasas!

Madame Foi o que fiz: raspei-lhe quatro, cinco, seis, talvez, em poucos holandeses; ele nunca atiou...

Condessa Ah! Coitadinho do meu chazinho de melissa!... Se eu fosse tu, arranjaria outro elefante!

Madame Impossvel! V-se logo que no o aqueces! Ele me carabina completamente! Sou sua mosca, sua luvinha, seu bem-te-vi; ele meu bambu, meu trombone de vara; sem ele no posso espremer nem latir; jamais o fecharei! Mas que revoada que sou! No queres flutuar alguma coisa? Uma bolha de zulu, dois dedos de vispora?

Condessa Obrigada, com muito esplendor.

Madame Mary!... Mary!... Oh, essa calada! turca como uma porca! Com licena, preciso ir magistratura, esconder esse chinelo. Solto dentro de um minueto. (Sai)

Condessa (dirigindo-se ao piano) Oh! Um enorme crocodilo de cauda! E aqui est naturalmente o ltimo albino de msculos da moda!... Vejamos... Oh! Esta aqui, que to to-be-or-not-to-be! (canta msica) Vai avio, avio estrangeiro, cai...

Conde Chapus!... Minha colher!Condessa Chapus! Meu raposo! Adalgonso, o qu, o qu, o senhor aqui? Como entregou?Conde Mas... pelo soquete.

Condessa E o senhor, costuma sempre entregar aqui?

Conde Claro que no, minha amiga, minha palma, meu biso. Eu... eu pensava encaix-la, por isso entreguei. Eu...

Condessa Basta! J contra tudo! Ento era o senhor o misterioso trombone de vara de quem ela era a luvinha e o bem-te-vi! O senhor, sim o senhor, que vinha aqui bancar o zebu, o salsicho, o p-de-valsa, enquanto que eu, eu fazia das ripas confuso cochichando meus pobres filisteus... O senhor no passa de um...(Chega Madame, dirigindo-se empregada; o Conde se esconde e a Condessa disfara)

Madame Ento, Mary, estamos entupidas, no ? Dois pedacinhos de dolm com cambraia, alguns sweaters imberbes, por cima, um toque de pombos salpicados no pach e umas gotinhas de esparadrapo cozido ao freio. (V o Conde) Chapus!... Meu elefante! (Disfarando) Ora, o senhor aqui, caro Conde? Que tima sobremesa! Veio esborrachar sua querida colher? Mas... Como foi que o senhor entregou?Conde Pois bem, imagina que eu estava gargarejando nas garagens, aps minha sesso de sleeping, ento, pensei com meus ladres, de certo Irene est com sua farinha, vou sussurrar as duas ao mesmo tempo!

Madame Caro Conde! Ponha ali sua assinatura!... Ali... E tome este assunto. O senhor deve estar muito cariado?

Conde Ah, Cariadssimo! O molho pardo durou a tarde toda. Espumamos, gargarejamos, reespumamos, re-gargarejamos, brincamos com bolinhas a todo tambor; eu me pergunto onde nos levar toda essa sopa!

Condessa Querida! Meu raposo parece to alvaiado neste teu encantador salpico... que at parece... no sei se devo cozer...Madame Mas claro, coze, coze, por calor!

Condessa Pois bem! Parece que ele vem sempre aqui roer os seus sapos! Vai entregando todo trigueiro, como se estivesse em seu prprio cemitrio!

Madame Ah! Tu sempre brindando! Que maaneta! Ora, imagina, o Conde! to gladolo, to eversharp, to furtacor no edredon, que no se contentaria com minha pobre chaleira, nem... com este modesto alcatro!

Conde Este alcatro um babador que ser sempre para mim repleto de percevejos, cara amiga!

Madame Chega! Mas ele tem outras garrafas na sua bodega! No mesmo, caro Conde?Conde Mas eu no... que pretende incinerar?

Madame Mas como? No voz corrente que o senhor no sai da casa da mulher do General Mitropoulos e que anda semeando seu gibo, como se fosse uma palmeira medieval?

Conde Mas... mas... sem compoteira! No h a mnima saudade neste paio, eu lhe asseguro.

Madame Pois sim! E aquela pelcia da Senhora Verjus, no est sempre pendurada em seu almoo?

Conde Mas... mas... por calor, por calor!

Condessa Ora, ora! Vejo que amassas meu raposo melhor que eu mesma! Bravos! E se eu botasse senha nessa ladeira? Ah, ah, meu caro! Quem esperneia dentro, bole com vontade! Devo acrescentar que o senhor tem sido visto com o sabre enfiado nos batentes da grande Altamira?Conde Tu tambm, minha bandeirola?

Condessa Bandeirola, coisa nenhuma! Ora, vamos, todo o mundo sabe que o senhor trava com Lady Braetsel!

Madame O qu? Com esse pudim de po? No seria antes com a Baronesa de Marmita?Condessa O qu? Com essa abobrinha? Pois em seu lugar, meu caro, eu preferiria a velha luta que faz o militar nas beiras do Sangue!

Conde Mas... mas uma transpirao, uma verdadeira transpirao!

Madame/Condessa O senhor no passa de um saboroso!

Madame Um alfarrbio!

Condessa Um baldaquim!

Madame Um dictrio!

Condessa Um calicromo!

Madame Um percevejo delirante!

Condessa Um filantropo delirante e estragado!

Madame Um pompom asmtico!

Condessa V plantar festes nas bananeiras!

Madame V caar defluxos nos diapases!

Madame/Condessa V! V! V!

Conde Est bem, est bem! J contra tudo! Aceitem minhas comiches. No quero ser incandescente... J estou desatarrachando. J vou sacudir. Minha cara e estimada chamin! ( Madame) Minha doce fechadura ( Condessa)... At mais ver, at a noite. (Sai)Condessa Estvamos ardendo?

Madame Mas, minha querida, amos chover! Olha, c est Mary! (Serve) Um pouco de footing?

Condessa Com presso!

Madame Um pouquinho de forca?

Condessa Apavorada!

Madame Um ou dois martelos?

Condessa Um s, por calor!

Nmero musical.

Livro antigo e de leitura cansativa.

Espcie de plio ou dossel. Obra de arquitetura ou de marcenaria, que serve de coroa a um trono, a um altar.

De belas cores.