um telescópio brasileiro nos andes

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Pesquisa FAPESP - Ed. 169

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Page 3: Um telescópio brasileiro nos Andes

PESQUISA FAPESP 169 n março DE 2010 n 3

imagem do mês*

a foto de uma esfera de poliestireno microscópica cercada por fibras de polímeros com diâmetros equivalentes a 1/500 do de um fio de cabelo venceu um concurso anual promovido pela revista Science e pela National Science Foundation, dos Estados Unidos, cujo objetivo é premiar imagens e ilustrações de beleza impactante e capazes de traduzir conceitos científicos potencialmente difíceis de compreender. os autores da foto, batizada de Save our Earth. Let’s go green (Salve a nossa Terra. Vamos nos tornar verdes), são três pesquisadores da Escola de Engenharia e Ciências aplicadas da Universidade Harvard e produziram a imagem com um microscópio de varredura eletrônica para demonstrar novas maneiras de controlar a automontagem de polímeros. Segundo eles, o resultado também é uma representação da necessidade de cooperação entre pessoas de todas as áreas para enfrentar, de forma sustentável, as questões fundamentais do planeta.

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Metáfora microscópica

Page 4: Um telescópio brasileiro nos Andes

169 MARÇO 2010

16 CAPA

> E

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82

58

> CAPA > POLíTICA CIENTíFICA > CIÊNCIA ZOOLOGIA 5816 Instrumentos E TECNOLÓGICA Sapos da Caatinga têm

astronômicos feitos Z NEUROLOGIA adaptações fisiológicasno Brasil equipam 30 COOPERAÇÃO Prática de exercícios para sobreviver aoso telescópio Soar, Tese discute por que físicos e consumo meses sem chuvanos Andes chilenos não cresce a participação de ômega-3 emergem

da pesquisa brasileira como tratamentos GENÉTICA 61

> ENTREVISTA em redes internacionais complementares Equipe de São Paulo10 O biólogo Miguel da epilepsia identifica estrutura

Trefaut, da USP, é 34 INTEGRAÇÃO rara no materialum dos especialistas Ampliação dos grupos SAÚDE INFANTIL genético de moscasque mais descreveram de trabalho nos Estados Mães nem sempreespécies e gêneros Unidos deve acelerar reconhecem quando GEOLOGIA

novos de répteis aplicações de suas crianças estão Impacto de meteoritono mundo pesquisa médica acima do peso ergueu cadeia de

morros no oeste doRio Grande do Sul

> SEÇÕES 3 IMAGEM DO MÊS 6 CARTAS 7 CARTA DA EDITORA 8 MEMÓRIA 24 ESTRATÉGIAS 38 LABORATÓRIO 62 SCIELO NOTíCIAS 64

Page 5: Um telescópio brasileiro nos Andes

> EDITORIAS > POLíTICA C&T > CIÊNCIA > TECNOLOGIA > HUMANIDADES

/

/

58 ASTROFíSICA

Estudo flagra o iníciodo processo de fusãode um grupo depequenas galáxias

61 FíSICA

Equipe internacionalexplica comportamentode partículas emexperimento quereproduz os momentosiniciais do Universo

48

> TECNOLOGIA

68 ENGENHARIA QUíMICA

Novos processosde pré-tratamentodo baqaço da canafacilitam a produçãode etanol desegunda geração

72 QUíMICA

Polímero misturadoao etanol faz obiocombustívelpercorrer um alcooldutocom mais velocidade

42

74 NANOTECNOLOGIA

Novas aptiçações parananotubos de carbonosão geradas na USPem Ribeirão Preto

76 ÓPTICA

Pesquisador da Unicamppublica artigo sobrea nova geraçãode fibras ópticas

80 ENGENHARIA

ELETRÔNICA

Aparelho destinadoa deficientes visuaisidentifica e comunicanomes de cores e ovalor do dinheiro

s 64 LINHA DE PRODUÇÃO 96 RESENHA 91 LIVROS 98 CLASSIFICADOS

WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR

cafi).-i

> HUMANIDADES

82 LITERATURA

O livro que ElizabethBishop escreveusobre o Brasil

88 CIÊNCIA POLíTICA

Ao contrário domito, parlamentaresentram no Congressocom experiência

92 SOCIOLOGIA

Seminário discutedilemas da segregaçãosocial brasileira

CAPA LAURA DAVINA FOTO RICARDO ZORZETTO

Page 6: Um telescópio brasileiro nos Andes

rUNDAçÃO DE AMPARO ÀPESQUISA 00 ESTADO DE SÃO PAULO

CELSO lArERPRESIDENTE

JOst ARANA VARELAVICE·PRESIDENTE

CONSELHO SUPERIOR

CELSO LAFER, EDUARDO MOACYR KRIEGER, HORÁCIO LAFER PIVA,HERMAN JACOBUS CORNElIS VOORWALD, JOSÉ ARANA VARELA,.iosé DE SOUZA MARTINS, JOSÉ TADEU JORGE, LUIZ GONZAGABELLUZZO, SEDI HIRANO, SUElY VllELA SAMPAIO, VAHAN AGOPYAN,YOSHIAKI NAKANO

CONSELHO TÉCNICO'ADMINISTRATIVO

RICARDO RENZO BRENTANIDIRETOR PRESIDENTE

CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZDIRETOR CIENT(FICO

JOAOUIM J. DE CAMARGO ENGLERDIRETOR ADMINISTRATIVO

CONSELHO EDITORIALunz HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADORCIENTlnco),CARLOS HENRIOUE DE BRlTO CRUZ, CVLON GONÇALVES DA SILVA,FRANCISCO ANTONIO BEZERRA COUTtNHO, JOAQUIM J. DE CAMARGOENGLER, JOÃO FURTADO, .iost ROBERTO PARRA, LUiS AUGUSTOBARBOSA CORTEl, LuiS FERNANDES LOPEZ, MARIE ANNE VAN SLUYS,MÁRIO JOSÉ ABDALLA SAAD, PAULA MONTERO, RICARDO RENZOBRENTANI, SÉRGIO OUEIROZ, WAGNER DO AMARAL, WALTER COLU

DIRETORA DE REDAÇÃOMARILUCE MOURA

EDITOR CHEFENELDSON MARCOLlN

EDITORES EXECUTIVOSCARLOS HAAG (HUMAHI04DES),FABRICIO MAROUES (POCIncA),MARCOS DE OLIVEIRA (lEOtOLOGIA),RICARDO ZORZETIO (CI(NCIA)

EDITORES ESPECIAISCARlOS FlORAVANTI. MARCOS PIVETTA ([(HÇÃOOH·UND

EDITORAS ASSISTENTESDINORAH ERENO, MARIA GUIMARÃES

REVISÃOMÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGO NEGRO

EDITORA DE ARTELAURA DAVINA E MAYUMI OKUVAMA (COORDENAÇÃO)

ARTEMARIA CECILIA FELU E JÚllA CHEREM RODRIGUES

FOTÓGRAFOSEDUARDO CESAR, MIGUEL BOYAYAN

WEBMASTERSOLON MACEDONIA SOARES

SECRETARIA DA REDAÇÃOANORESSA MATlAS

COLABORADORESANA UMA, ANDRt SERRADAS (BANCO DE (4005), BRAZ, DANIELLE MAClEL,EVANILOO DA SllVEIRA, JOSEUA AGUIAR, LAURABEATRIZ, REINAlDQ.ost LOPES, SALVADOR NOGUEIRA E YURI VASCONCELOS.

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INSTITUTO VERIFICADOR OE CIRCULAÇÃO

6 • MARÇO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 169

[email protected]

Raios X

Parabéns pelo artigo "Segredos debai-xo da tinta" (edição 168). Ao divulgaro interessante trabalho da pesquisadoraCristiane Calza, a revista contribui paraque pessoas leigas em física como eu,mas apaixonadas pelas artes plásticas,saibam que a energia nuclear pode serum grande aliado para melhor conhe-cer e preservar nosso patrimônio ar-tístico. Tendo em mente que a revistaPesquisa FAPESP divulga, como diz seutítulo, a ciência e a tecnologia no Brasil,acrescentaria, sobre o mesmo assunto,o trabalho pioneiro desenvolvido peloGrupo de Física Nuclear Aplicada daUniversidade Estadual de Londrina. Ogrupo tem uma linha de pesquisa emfluorescência de raio X desde 1999, cominúmeros trabalhos com o mesmo focoapresentado na matéria em tela. Umavisita ao site do grupo (www.fisica.uel.br/gfna) permitirá aprofundar as infor-mações trazidas no excelente artigo.

Lurz ANTONIO DIAS QUITÉRIO

São Paulo, SP

Marcello Damy

Li a homenagem muito justa que vo-cês prestaram a Damy, grande cientistae empreendedor ("Talento e energia':edição 167). No entanto vocês come-teram uma injustiça ao esquecer demencionar que a instalação do reatornão foi somente obra de Damy, massim dele e de Paulo Saraiva de Toledo,professor do Instituto de Física da USP,físico de renome internacional, naquelemomento trabalhando em estreita cola-boração com Damy, O professor Saraivateve atuação extremamente relevantena instalação do reator e vocês nem se-quer mencionaram seu nome junto aode outros que trabalharam com Damy.Gostaria muito que vocês pudessem re-parar essa omissão, que, tenho certeza,foi totalmente involuntária.

JEANElTE CARDOSO DE MELLO

Professora aposentada do IB/USPSão Paulo, SP

Recomendação contestada

Causou-nos certa preocupação a reco-mendação dos pesquisadores do Proje-to Temático sobre o uso de efluentes deesgotos tratados para irrigação agríco-la ("Irrigação alternativa", edição 166)qualificando o sistema de irrigação porgotejamento como o método indica-do nessa aplicação. Somos forçadosa admitir que, por esquecimento, ospesquisadores consultados ignorarama alternativa de irrigação por sulcosque, em muitos locais, constitui o úni-co sistema indicado para assegurar osucesso desse tratamento. Em trabalhoque resultou em dissertação de mes-trado em nossa unidade universitária,utilizamos a água de um ribeirão querecebia o esgoto urbano da cidadede Botucatu para irrigar plantas dealface por sulcos, em um período deestiagens, com grande concentraçãode poluentes. Os resultados revelaramque, além dos benefícios nutricionaisà cultura, a fração orgânica contida naágua comprovadamente poluída con-tribuiu para melhorar a condição físicado solo e que não houve contaminaçãopor coliformes nas plantas, uma vezque a água foi aplicada na superfíciedo solo. Além disso, todo o materialpatogênico existente na água foi ex-posto à ação profilática exerci da pelaradiação solar.

EDMAR Iost SCAWPPI

FCA/UnespBotucatu, SP

Correção

Na edição de fevereiro o texto "Assí-duas em hospitais", sobre a resistênciabacteriana a medicamentos, trouxeo nome da bactéria Staphylococcusaureus grafado erroneamente, comoStreptococus aureus.

Cartas para esta revista devem ser enviadas para oe·mail [email protected] ou para a rua JoaquimAntunes. 727 . 10° andar· CEP 05415·001 . Pinheiros'São Paulo, SP.As cartas poderão ser resumidaspor motivo de espaço e clareza.

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PESQUISA FAPESP 169 n março DE 2010 n 7

O impacto visual provocado pela inesperada elegância da cúpula branca e brilhante sobre o telescópio Soar contra o céu azul intenso dos Andes ou a aguda

percepção da formidável energia que o planeta acionou para, num remotíssimo passado, fazer levantar, dobrar e redobrar a cordilheira impressionante, certamente não foram pequenos para o autor da reportagem de capa desta edição de Pesquisa FAPESP, o editor de ciência, Ricardo Zorzetto. Mas não o desviaram, ainda bem, de seu foco principal em Cerro Pachón, ou seja, detalhar a recente montagem de um enorme e pesado espectrógra-fo no Observatório Austral de Pesquisa Astrofísica, que é o nome por inteiro do Soar, sem esquecer o contexto da coisa. Algo como observar detidamente a árvore sem perder a percepção da floresta, digamos, o que aqui é mesmo total metáfora, já que só um ou outro cac-to cortam de vez em quando a aridez extrema da paisagem nos Andes.

Vamos, contudo, nos concentrar no espectrógrafo: trata-se, como Zor-zetto relata a partir da página 16, do maior e mais complexo equipamento astronômico já feito no Brasil, com 3 mil peças, peso de meia tonelada, cuja função é decompor a luz nos diferentes espectros ou cores que a formam, algumas das quais, como a ultravioleta e a infravermelha, invisí-veis para o olho humano. No interior de qualquer espectrógrafo, como ele observa, “a luz de astros próximos ou distantes explode em uma sucessão de cores do arco-íris, em proporções que variam segun-do a composição química do objeto observado”. Mas o espectrógrafo instalado no Soar, depois de uma viagem de mais de 3 mil quilômetros desde Itajubá, em Minas, não é um qualquer, e vale a pena ler a reportagem para entender por quê.

Permito-me um salto, com certo grau de risco, do mirante de estrelas num cume dos Andes para o interior da subjetividade poética de uma aclamada escritora norte-americana, Elizabeth Bishop. É essa subjetividade que inquestionavelmente está em cena mesmo quando ela busca objetivar seu olhar para falar, por exemplo, do Brasil, por encomenda da editora Time-Life. O contrato resultaria no Brazil, livro de 1962 que logo adiante a au-tora iria recusar e que recentemente se transformou em

objeto de pesquisa abordado pelo editor de humanida-des, Carlos Haag, em reportagem a partir da página 82. Para além de um olhar sobre as idas e vindas da relação de Bishop com este país, no qual, entre outras coisas pôde experimentar a profunda viagem emocional por um amor intenso e duradouro, Pesquisa FAPESP oferece ao leitor dois pequenos textos inéditos da escritora sobre o Amazonas. Trechinho: “O menino correu pelo cais e escalou o paredão, arrastando-se, segurando em plantas e pedras. Ele parecia prestes a cair e ser engolido a cada segundo. O capitão apareceu sobre nossas cabeças, na escada, de pijama branco, e atirou na margem o que pa-

recia ser um envelope grosso – por que ele não o entregou ao menino é um mistério (...)”. Melhor ir direto à página 87!

Preciso, entretanto, deixar o terreno encharcado de poesia para entrar no campo mais duro e pro-saico da tecnologia, onde a editora assistente Dinorah Ereno relata, a partir da página 68, como dois grupos brasileiros de pesquisa de-senvolveram novos processos para vencer o grande obstáculo atual à produção do chamado etanol celu-lósico, qual seja, a conversão quími-ca da celulose em glicose, chamada também de hidrólise. No caso bra-sileiro, isso permitiria aproveitar todo o açúcar contido no bagaço e na palha da cana para a produção do etanol. Os dois grupos propõem atingir ou quebrar os polissacarí-

deos em que o açúcar de bagaço e palha se encontra estruturado via modos diversos de pré-tratamento da biomassa, um a temperatura ambiente e outro térmico a vapor. Vale a pena ler a reportagem para conferir tudo em detalhes.

E encerrando, uma notícia importante para nossos leitores: a redação de Pesquisa FAPESP, juntamente com seus setores de distribuição, circulação e marketing, está deixando por razões operacionais a sede da Fundação, na Pio XI, e se instalando no 10o andar do prédio nú-mero 727, da Joaquim Antunes, em Pinheiros.

Os e-mails de todas as pessoas vinculadas à revista permanecem os mesmos. Quanto aos telefones, os divulgaremos em breve em nosso site <www.revista pesquisa.fapesp.br>.

O mirante de estrelas e os textos iluminados

Mariluce Moura - Diretora de Redação

carta da editora

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8 n março DE 2010 n PESQUISA FAPESP 169

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Anatome plantarum (1675), de Marcello Malpighi. Este é o título mais antigo do acervo do IB/USP. Trata-se do maior tratado de anatomia de plantas daquela época. Malpighi foi um dos primeiros a usar o microscópio para estudar vegetais e animais.

Diplusodon floribundus, inclusa em Plantarum brasiliae icones et descriptiones hactenus ineditae (1826-33), de Johann Baptist Emanuel Pohl. As litografias de Wilhelm Sandler, como esta, compõem uma das mais bonitas publicações da flora brasileira.

Acrydium latreillei, inclusa em Delectus animalium articulorum (1830-34), de Johann Baptist von Spix. Junto com o botânico Martius, o zoólogo Spix viajou por boa parte do Brasil e produziu relatos e desenhos magníficos, como este.

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PESQUISA FAPESP 169 n março DE 2010 n 9

A Biblioteca do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB/USP) deu uma dupla contribuição à difusão da ciência no começo deste ano. A primeira foi organizar um catálogo de obras raras e especiais de seu acervo. A segunda foi ilustrá-lo com algumas das mais belas e significativas imagens do próprio acervo, feitas em sua maioria por artistas contratados pelos cientistas. Dessas duas ações resultou

um catálogo com jeito de livro de arte, que traz o que há de melhor da ciência sistematizada do século XVII ao XIX. Ciência, história e arte (Edusp/FAPESP, 352 páginas) foi idealizado e organizado por Nelsita Trimer, diretora técnica do Serviço de Biblioteca do IB/USP, e levou cinco anos e meio para ficar pronto.

A maioria das obras é do século XVIII ao XIX. O acervo foi formado por meio de doações, pela aquisição de outros acervos,

Eucheuma isiforme, alga da coleção Phycotheca Boreali-Americana (1895-1912), de Frank Collins, Isaac Holden e William Setchell. São 41 volumes encadernando páginas onde foram distendidos 1.900 espécimes de algas. A obra é praticamente um herbário portátil.

instituto de Biociências da usp lança catálogo de obras raras com o melhor da ciência do século Xviii e XiX

Neldson Marcolin

Brilho do passado

pela transferência de obras da biblioteca da Escola Politécnica e da Faculdade de Farmácia e por títulos importantes identificados no próprio IB. A restauração dos 2.440 títulos começou há 14 anos com recursos da FAPESP, em sua maior parte, Fundação Vitae e do IB. “No meio do processo achei que deveríamos publicar um catálogo com descrições mais rigorosas do que as existentes e ilustrá-lo com as lindas imagens disponíveis”, diz Nelsita. “Nossa sala de obras raras e especiais é pequena, mas tem quase tudo o que foi produzido de importante nas ciências naturais nos últimos três séculos.” Entre elas estão os 40 volumes da Flora brasiliensis (1840-1906), de Carl von Martius, os 11 da Florae fluminensis (1825-27), de frei José Mariano da Conceição Vellozo, Historie naturelle, de Buffon (1825), Le règne animal (1827-38), de George Curvier e Edward Griffith, e outras preciosidades.

“A obra é de grande importância, pelo acervo que classifica e revela, e é de impressionante beleza, pelo cuidado e esmero das imagens e dos textos”, diz o linguista Carlos Vogt, presidente da FAPESP na época em que o projeto foi apresentado a ele por Nelsita, e um dos principais incentivadores do projeto. Além da descrição técnica dos livros, há pequenas resenhas e perfis de cientistas escritos por 12 pesquisadores do IB. Veja nestas duas páginas uma amostra de algumas imagens de Ciência, história e arte.

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10 n março DE 2010 n PESQUISA FAPESP 169

entrevista

Miguel Trefaut Urbano Rodrigues

entre cobras e lagartosBiólogo da USP descreveu 53 espécies e gêneros novos de répteis

Em 3 de agosto de 1970, Jandyra Planet do Amaral, diretora do Instituto Butantan, escreveu no pé de um formulário de so-licitação de estágio: “Esse rapaz se interessa pela herpetologia”. Ela tinha razão sobre o então jo-

vem Miguel Trefaut Urbano Rodrigues. Nascido em Lisboa, no Brasil desde os 3 anos, filho de mãe francesa e pai portu-guês, Rodrigues começou o estágio no Butantan aos 16 anos, quando cursava o primeiro ano do atual ensino médio, e saiu de lá cinco anos depois saben-do muito sobre serpentes brasileiras. Entrou em biologia na Universidade de São Paulo (USP), mas terminou o curso na Université Paris VII – Diderot, em Paris. Lecionou três anos na Uni-versidade Federal da Paraíba, voltou à USP e é hoje um dos grandes sistematas – especialistas em classificar seres vivos – do Brasil. Em um artigo de janeiro de 2010 na revista Zootaxa, Peter Uetz, do J.Craig Venter Institute, dos Estados Unidos, apresentou os 40 biólogos que mais descreveram espécies de répteis no mundo desde o século XVIII, quando o botânico sueco Lineu criou o sistema binomial de classificação de seres vivos, em que cada animal ou planta é identi-ficado por dois nomes, um para o gêne-ro e outro para a espécie. Rodrigues, o único brasileiro dessa lista, está em 35o lugar, com 53 espécies descritas, duas delas mostradas mais adiante – o belga George Albert Boulanger (1858-1937) está em primeiro lugar, com 573 espécies

Carlos Fioravanti e Neldson Marcolin

descritas. Entre as 25 revistas que mais apresentaram novas espécies de répteis, estão duas brasileiras, a Papéis Avulsos de Zoologia, do Museu de Zoologia da USP, e a Memórias do Instituto Butantan, hoje extinta. Nesta entrevista Rodrigues conta de sua vida entre cobras e lagartos e de espaços ricos em espécies únicas, como as dunas do rio São Francisco, na qual ele pisou pela primeira vez há 30 anos e para onde voltou outra vez em fevereiro. Aos 57 anos, Rodrigues deve passar duas semanas deste mês de março nas matas da Guiné-Bissau, com o mes-mo propósito: encontrar bichos novos e entender melhor como os seres vivos surgiram e evoluíram.

n Este trabalho da revista Zootaxa colocou o senhor entre os 40 maiores descritores de répteis do mundo desde Lineu. Desse grupo de zoólogos, só oito estão vivos. Os outros são de 1700, 1800 ou do início de 1900. Por quê?— Essa é a época em que se descrevia muita coisa. Começou com o Lineu, que criou o sistema binomial de nomenclatu-ra. Depois estão os nomes que dominam a herpetologia mundial, como George Boulenger, do Museu Britânico de His-tória Natural, e os curadores das grandes coleções de museus zoológicos do mundo, como Dumeril do Museu de Paris, que ti-nha a maior coleção de répteis do mundo do final do século XVIII e início do século XIX, suplantado depois pelo Museu Bri-tânico, que no final do século XIX acabou superando a herpetologia francesa.

n Como mostrar que uma espécie é real-mente nova? O que o senhor faz, por exem-plo, quando traz do campo um animal que suspeita que seja de uma espécie nova?— Como já conheço a literatura sobre as espécies semelhantes, a primeira coi-sa é pegar as espécies mais conhecidas usadas como modelo para comparações e examinar todas, incluindo a suposta-mente nova, sob a lupa. Tenho de com-parar absolutamente todos os caracteres: o número, tamanho, formato, posição, ornamentação das escamas dorsais, ven-trais, da cabeça, cada uma delas com um nome específico; o tamanho e a posição do olho, do ouvido, da narina; a colora-ção do bicho; o comprimento do corpo, da cabeça e de cada membro; os poros femorais, que são glândulas de feromô-nios; enfim, uma série bem grande de variáveis. E as estruturas internas, o es-queleto? Podemos fazer uma radiografia ou diafanizar, tornando transparente, e assim por diante. Quando encontro di-ferenças consistentes entre o grupo de indivíduos que trouxe do campo e outro já conhecido e quando essas diferenças afetam mais de um caractere e ocorrem em uma mesma área geográfica, não há dúvida de que essas diferenças resultam da expressão de um patrimônio genético distinto, e não de variação geográfica, individual ou sexual. Aí tem de fazer uma descrição e uma comparação, que é uma defesa de por que essa espécie é nova, mostrando por que pode ser sepa-rada de outras. Tem de escrever um ar-tigo e submeter a uma revista científica. E

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12 n março DE 2010 n PESQUISA FAPESP 169

meu pai, que era um jornalista conhe-cido, era editorialista do Estadão. Dali a pouco chamam ele e outro jornalista que estava lá dentro, o Anthony de Christo, e ficam com eles mais ou menos uma meia hora. Quando Markun volta, vejo que ele está completamente transtornado. Falei: “O que foi, Markun?”. Ele falou: “Não, não foi nada”. “Como não foi nada? Eu sei que você está perturbado.” Passou um tempo, insisti, ele falou: “Miguel, mata-ram o Vlado. Agora a gente sabe o que aconteceu, você parou de apanhar por causa disso, agora eles estão apavorados, daqui a 10 minutos vão vir me pegar e o Anthony, para levar a gente para o enter-ro, já pediram para pôr manga comprida para esconder os sinais de tortura”.

n O senhor militava na época?— Eu era militante do Partido aqui na universidade, o Partidão. Fazia jornal de classe, coisas de estudante, absolutamen-te inócuas... Saí do Doi-Codi, fui para o presídio do Hipódromo, fiquei lá durante dois meses mais ou menos... Fui preso em 17 de outubro e saí em 23 de dezem-bro. Voltei para casa e começou uma sé-rie de atentados em casa, com pichações nas paredes dizendo que iam matar todo mundo. Achei melhor ir embora para a França. O cônsul francês e o português me levaram para o Paraguai, de lá fui para Lima e fiquei na casa do Darcy Ri-beiro, que era amigo do meu pai. De lá fui para Paris. Cheguei em Paris, pedi equivalência [de disciplinas] daquele ano e meio de curso que já tinha começado. Na verdade consegui mais, porque fiz um exame e consegui os dois primeiros anos completos na universidade e terminei a faculdade na França. Depois voltei para o Brasil para fazer o doutorado.

n O senhor terminou o curso de biologia em 1978 já com a primeira espécie des-crita, certo?— O primeiro bicho que descrevi foi uma cobrinha da Guiana Francesa, Atractus zidoki, junto com o Jean-Pierre Gasc, do Museu de Paris. Sempre observava bi-chos de lugares diferentes e falava: “Puxa vida, o que aconteceu?”. O que mais me interessava era a evolução, a história de um grupo de espécies, que um sistema-ta vai traçando a partir do estudo dos caracteres dos animais. Ser sistemata é ser sistemata para tudo. Quer dizer, en-contrar diferenças, o que separa as coisas, fazer agrupamentos de várias maneiras possíveis. A primeira parte do trabalho de sistemata é justamente responder o

O artigo vai ser examinado por outros especialistas e, se convencer, é aceito e publicado. A espécie nova passará a exis-tir oficialmente a partir da publicação desse artigo que a apresenta. n A revista Papéis Avulsos de Zoologia também apareceu com destaque...— Gostei muito que a Papéis Avulsos, que a Capes [Coordenação de Aperfei-çoamento de Pessoal de Nível Superior] considera brega e diz que não serve para nada, tenha aparecido na Zootaxa como uma das 20 revistas mais importantes para descrição de espécies de répteis da biodiversidade mundial. O pessoal não colocou na cabeça que informa-ção é absolutamente importante para a humanidade, esteja onde estiver. Se amanhã dependermos de uma informa-ção que foi publicada em um jornaleco em um dialeto da Ucrânia, vamos ter de encontrar e traduzir aquilo. É impor-tante publicar na Science e na Nature, mas o mais importante é ter informa-ção e informação de qualidade. Como as revistas brasileiras podem chegar ao nível das revistas do exterior se a Capes desestimula as revistas brasileiras? Está todo mundo indo para a Zootaxa, mas os trabalhos publicados lá não são me-lhores que os da Papéis Avulsos; saem lá simplesmente porque a Zootaxa tem mais saída, tem dinheiro para publicar e, por causa dos direitos autorais, ganha dinheiro com os artigos.

n A quantidade enorme de espécies de rép-teis que o senhor descreveu, 53, impressio-na. Tem alguma explicação para isso?— Não, não tenho. É simplesmente vontade de trabalhar. É a curiosidade. Sempre fui muito curioso. Desde me-nino, eu ia para o litoral e saía muito com os caiçaras. Aprendi a andar no mato com os caiçaras, caçava, pescava com eles, e comecei a me interessar pe-los répteis. Depois entrei no Butantan. Fiquei fascinado com aquelas coleções de cobras e pedi para um amigo do meu pai, Alberto Candeias, que era professor no ICB [Instituto de Ciências Biomé-dicas da USP], para fazer um estágio lá. Tenho até o original do pedido da doutora Jandira do Amaral, que era di-retora do Butantan, encaminhado para Alphonse Richard Hoge, chefe da divisão de biologia, dizendo assim: “Esse rapaz foi recomendado pelo doutor Alberto Candeias, parece que se interessa pela herpetologia, veja se dá para aproveitar”. E o Hoge escreveu embaixo: “Podemos

Quando fazemos trabalhos mais refinados, utilizando caracteres moleculares, a sistemática feita com base em dados morfológicos às vezes precisa ser toda refeita

receber por seis meses”. Eu tinha 16 anos incompletos, estava no primeiro ano do colégio, quando fui estagiar no Butantan. Três anos depois eu já conhecia todas as cobras brasileiras... Fiquei lá até entrar para a universidade.

n Já em Paris?— Não, na Universidade de São Paulo. Entrei na USP, fiz um ano e meio – te-nho uma vida acadêmica conturbada –, quando estava no final do segundo ano na USP consegui a primeira bolsa de ini-ciação científica da FAPESP, que nunca usufruí, já como estagiário de [Paulo Emílio] Vanzolini no Museu de Zoolo-gia, a quem admiro muito.

n Por que não usufruiu a bolsa?— Porque fui preso naquela leva de pri-sões de 1975. Fui preso, torturado, parei de apanhar no dia em que mataram o Vlado [jornalista Vladimir Herzog]. Não sabia por que pararam, pois eu estava apanhando há quase 72 horas seguidas, me jogaram num pátio do lado do Doi- Codi, no 2o Exército, tinha umas celas na frente, eu fiquei lá no pátio durante uma meia hora, tentando me recuperar, dali a pouco me jogam dentro de uma cela e a primeira pessoa que vem tratar de mim ali foi o Paulo Sérgio Markun, da TV Cultura hoje, que estava preso comigo. Markun era muito amigo do

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PESQUISA FAPESP 169 n março DE 2010 n 13

seguinte: “Quais são as unidades evolu-tivas com que estou mexendo aqui? São espécies ou são variações geográficas?”. Foi isso que fiz no meu doutorado, pe-guei um grupo de lagartos que todo mundo achava que era a mesma coisa na América do Sul e acabei descobrindo que tinha ali 14 espécies, várias tiveram de ser descritas como novas. n Há muitos sistematas no Brasil?— Faltam sistematas. A ornitologia é uma das áreas onde faltam muitos sistematas. Olha como a história explica: quando fiz minha pós-graduação com Vanzoli-ni, havia pouquíssimos herpetólogos no Brasil. Tinha o Vanzolini, o Tales de Lima no Rio Grande do Sul, e praticamente só. O primeiro curso de pós em herpetologia foi o Instituto de Biociências da USP, jun-to com o Museu de Zoologia. Comecei a ser orientado por Vanzolini e orientei uma leva de gente. Hoje um congresso de herpetologia reúne 800 pessoas. Na ornitologia, a pessoa mais importante no século passado foi Olivério Pinto, pai da professora Eudóxia Froehlich, daqui do departamento. Olivério Pinto foi diretor do Museu de Zoologia, se aposentou e nunca orientou na pós-graduação. Ou seja, não teve nenhum orientador em ornitologia sistemática no Brasil. Hoje os poucos ornitólogos sistematas, por in-crível que pareça, são alunos da Elizabe-th Höfling, desse departamento, que foi orientada pelo Vanzolini em anatomia. Ela é anatomista e resolveu orientar os alunos porque não havia mais ninguém. Só em alguns anos é que teremos um número de sistematas adequado, o que é péssimo num país com uma diversidade biológica altíssima como o Brasil.

n Em vista disso, como fica a proteção da biodiversidade?— Muito difícil, se não temos sistema-tas o bastante e se não conhecemos a biodiversidade. Estamos fazendo vários trabalhos em morfologia e outros com a parte molecular, mas quando iniciamos com trabalhos mais refinados, utilizan-do caracteres moleculares, a sistemática feita com base em dados morfológicos às vezes precisa ser toda refeita. Apenas pela morfologia não conseguimos detec-

tar espécies crípticas [morfologicamente idênticas, mas geneticamente distintas]. Se queremos conservar uma determina-da espécie em uma área, posso falar “ela está preservada nesta área aqui”. Menti-ra, porque, na hora em que vou fazer o trabalho molecular, vejo que o que estou preservando é uma espécie. A outra, que detectei com os dados moleculares, está numa área que não está protegida.

n O senhor abre um capítulo do livro Fau-na da Caatinga dizendo que durante muito tempo prevaleceu a ideia de que a Caatinga não tinha fauna própria. Cita Vanzolini e o zoólogo norte-americano Michael Mares e em seguida faz uma crítica, dizendo que foi uma visão apressada, baseada em cole-ções biológicas pouco representativas, com uma amostragem geográfica insuficiente dos ecossistemas vizinhos. Quer dizer, não obstante a importância do trabalho de Van-zolini, o conhecimento sobre a diversidade de répteis está cheio de lacunas?— Sim, e o problema é que estamos percebendo isso tarde. Só no final dos anos 1990 é que, com um pesquisador americano, Jack Sites, e Nelson Jorge da Silva, de Goiânia, é que decidimos mudar

o método de amostragem de répteis no Brasil. Decidimos fazer uma coleta gran-de na região de serra da Mesa, em Goiás, com armadilhas de interceptação e queda, que os americanos já usavam para coletar em desertos. É uma armadilha simples, você enterra baldes e entre eles faz uma cerca de lona plástica; os bichos batem na cerca e a seguem até que caem nos baldes. Com essas armadilhas mudamos a maneira de coletar no Brasil, e hoje ninguém mais coleta só manualmente. Começamos a pegar uma quantidade imensa de bichos desconhecidos e espé-cies antes consideradas raras passaram a ser comuns. Alguns marsupiais do gênero Monodelphis, considerados raríssimos, eram na verdade comuníssimos. Uma parte dessa fauna secretiva [difícil de ser detectada]começou a aparecer com esse método de coleta, que fez com que cres-cesse bastante o conhecimento sobre a fauna brasileira. Até essa época se pensava que a Caatinga não tinha fauna própria ou tinha uma fauna comum com o Cer-rado, mas aí começamos a ver que havia muito endemismo [espécies de animais ou plantas próprias em uma área geográ-fica restrita] na Caatinga e no Cerrado.

Psilophthalmus paeminosus, de Santo Inácio: membros

anteriores com quatro dedos e posteriores com cinco

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n As pesquisas nas dunas do São Francisco são um dos marcos de sua trajetória cien-tífica, certo? Como é que começou?— Eu estava fazendo meu doutorado com os lagartos do gênero Tropidurus e desco-bri que numa área da Caatinga, em Santo Inácio, na Bahia, tinha duas espécies de Tropidurus. Falei: “Ué, por que lá tem duas espécies se no resto da Caatinga tem uma só?”. Fui para lá, confirmei a existência das duas e peguei outro bicho, que descrevi como Tropidurus amathites. O Tropidu-rus de Santo Inácio vivia na areia, quando todos os outros eram bichos saxícolas, quer dizer, viviam sobre pedras. Além de estar na areia, o parente mais próximo dele era um bicho saxícola da serra do Es-pinhaço em Minas Gerais, a mais de mil e tantos quilômetros dali. “Puxa, como é possível? Como um bicho saxícola acaba virando um que vive na areia, ou vice- -versa?” Descobri que Richard Burton, o pesquisador, dizia que nessa região do São Francisco havia um pequeno Saara. Pensei: “Se tem um pequeno Saara, tem areia que não é brincadeira”. Fui atrás e encontrei os trabalhos do Aziz Ab’Saber e do Jean Tricart mostrando que a maior região de paleodunas da América do Sul estava ali. Descobri ali um ecossistema novo, do qual descrevemos gêneros e es-pécies novas de cobra, de lagarto, de sapo, de várias coisas.

n Essa área foi reconhecida como biologi-camente relevante?— Não só foi reconhecida, como está em processo a criação do Parque Nacional das Dunas do São Francisco, por propos-ta minha. Fiz uma proposta ao Ibama, foi

aceita, fiz um sobrevoo com eles, uma área grande...

n Deve ter outras áreas como as dunas pelo Brasil, não?— Com certeza. Nossos trabalhos no Cerrado têm mostrado que as regiões arenosas comportam espécies endêmicas que eram desconhecidas. A única maneira de ver se a situação é semelhante à en-contrada nas dunas do São Francisco é trabalhando no campo. É impossível dizer se uma área é importante sem coletar no lugar. Nosso conhecimento sobre os me-canismos que levaram à diferenciação das espécies é insuficiente para dizer se uma área é ou não relevante para a diferencia-ção dos bichos. Quem chegar no topo da serra de Baturité, no Ceará, vai ver que a área montanhosa dos arredores é de Mata Atlântica. Em volta é tudo caatinga, aquele sertão incrível. Quem coleta ali em cima tem uma probabilidade alta de encontrar espécies endêmicas, porque as espécies de floresta não atravessam as áreas abertas, estão isoladas desde o tempo em que essa mancha de floresta estava em contato com a floresta atlântica ou com a Amazônia.

n A confusão causada por uma deformação das leis do Ministério do Meio Ambiente en-tre pesquisador e biopirata ainda persiste?— Em parte sim. Falaram que biodiversi-dade dá dinheiro, quando não necessaria-mente dá, e colocaram isso na cabeça de todo mundo. Nas comunidades indígenas e quilombolas – boa parte do pessoal fala “quero dinheiro para você trabalhar na minha terra”–, os caras perderam com-pletamente a noção de que aquilo, para

dar dinheiro algum dia, às vezes precisa de 10 anos de investigação. Trabalhos meus e de meus alunos foram tremen-damente prejudicados, tínhamos de ir para o exterior para ver material porque eles [pesquisadores de outros países] não mandavam o material para o Brasil. Hoje a coisa está mais simples, mas ainda resta um pouco da noção de que pesquisador é um cara que é meio criminoso, que está matando bicho ou fazendo pirataria... Tudo por causa de dois ou três casos...

n Para resolver esses conflitos, seria im-portante integrar os pesquisadores com outros grupos, para que participassem das pesquisas, não?— Lógico. Isso é uma coisa que sempre defendi. O problema é que a maioria dos parques nacionais, que poderiam fazer essas ligações, infelizmente não funciona. A maioria dos parques deveria ter mui-to mais informação e não tem. Faltam guias de campo para a maior parte dos grupos. Os parques nacionais teriam que ter dinheiro e acordos amplos com as universidades, porque é lá, nos parques, que está a matéria-prima para os pesqui-sadores trabalharem. O Museu Goeldi tem o parque e a reserva de Caxiuanã, cedida a eles por 30 anos pelo Ibama. O Museu Goeldi está gerindo Caxiuanã e gerando conhecimento, já saíram vários livros, mas o que predomina nos par-ques nacionais são pesquisas sem norte, porque resultam do pedido espontâneo de cada pesquisador. Você chega num parque nacional e quer saber qual é a

São Paulo, a cidade mais rica do país, não tem um museu de zoologia à altura

Phyllopezus periosus: maior lagartixa da Caatinga

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infraestrutura e a base de dados e vê que eles não têm nada sobre variação de tem-peratura, clima ou fenologia das plantas mais comuns... Uma equipe de técnicos em cada parque poderia se responsabi-lizar por esses dados, manter contato com o pessoal das universidades, levar o pessoal, sei lá, com apoio da FAB, co-mo o antigo Projeto Rondon, e acertar coisas do tipo “durante 10 anos vocês vão estudar este parque nacional para termos informações sobre esse ecossis-tema; coisa planejada”. Outra coisa que está relegada a décimo quinto plano de importância no Brasil é o turismo. Com a biodiversidade que temos! Não temos nada tão chamativo como a megafauna de mamíferos da África, mas temos on-ças, macacos... Em que país se consegue ver 14 ou 15 espécies de macacos numa só localidade, como na Amazônia? O turista adora ver lagarto no campo e fo-tografar sapo à noite no campo, mas não exploramos isso. Quem trabalha nesse ramo não conhece a fauna brasileira, não conhece os ecossistemas brasileiros, nem o que o turista gosta.

n Como foi seu trabalho como diretor do Museu de Zoologia?

n Qual?— São Paulo, por ser a cidade mais rica do Brasil, e o Brasil, por ser líder mundial em biodiversidade, deveriam ter um mu-seu à altura. E não temos. No Museu de Zoologia faltam técnicos, falta uma série de coisas importantes para poder tocar o trabalho. Eu poderia ter descrito muito mais do que 50 espécies se tivesse tido mais apoio de técnicos para trabalhar no museu. Falta apoio infraestrutural, falta espaço para exposições e para as coleções. Isso é o que às vezes a universidade não enxerga, e é muito importante. Uma co-leção que não está arrumada não serve para estudar, é a mesma coisa que uma biblioteca desarrumada. A ciência não avança assim. Se um cara publica um trabalho na Nature ou na Science, você olha e fala: “Putz, tenho um bicho que mostra que o negócio é diferente, mas cadê esse bicho? Coletei anos atrás, mas a coleção está desarrumada...”, acabou, você perdeu o tempo da resposta. Agilidade é importante, as coleções têm que estar bem organizadas, com gente capaz para tomar conta delas. Com o Infra [projeto do programa Infraestrutura da FAPESP], consegui compactar praticamente todas as coleções do museu e abrir novos es-paços, mas eu sabia que aquilo seria para quatro anos. Já faz oito, o museu está es-tourando. O museu precisa de três vezes a área dele, não tem mais como crescer. É um prédio que foi construído para abri-gar coleções no começo do século XX.

n Qual a solução?— Construir um prédio grande para o museu aqui na Cidade Universitária. Tinha um projeto para fazer um prédio do Museu de Zoologia aqui, a Praça dos Museus, que eu propus à USP. Foi aceito pela Reitoria, mas ficou parado por falta de vontade política. O Brasil merece um museu à altura. Ainda mais agora, ano da Copa do Mundo, o Brasil sendo colocado em evidência, não tem uma dessas coi-sas que é um marco cultural de qualquer cidade importante. Você não vai a Paris e deixa de ir ao Jardin des Plantes e ao Museu de História Natural, nem a Lon-dres sem ir ao British Museum. Buenos Aires tem o Museu de La Plata, aquela coisa espetacular. O Brasil não tem um museu assim. Tem o Museu Nacional do Rio de Janeiro, que dá pena, ver aquela casa maravilhosa que foi o palácio impe-rial caindo aos pedaços. Agora está sendo reformado. São Paulo, a cidade mais rica do Brasil, ainda não tem um museu de zoologia à altura de sua riqueza. n

— Estive na direção do museu por qua-tro anos. Fui o primeiro diretor depois que Vanzolini se aposentou. Trabalhei com empenho máximo para valorizar o museu e acho que consegui. O Museu de Zoologia hoje tem uma posição de desta-que na universidade. Não se faz nenhu-ma pós-graduação em zoologia no Brasil sem consultar as coleções do museu. As coleções neotropicais mais importantes do globo estão lá. As coleções, que o mu-seu acumula desde a fundação, em 1885, são a base para entender a história dos ecossistemas e para retraçar um futuro melhor para o país. Se pensar na expan-são de doenças endêmicas, as coleções de dípteros [insetos] são estratégicas. Darwin não teria elaborado a teoria da seleção natural se não tivesse acesso às coleções do Museu Britânico e compa-rado os bichos que ele pegou com os que haviam sido depositados ali ao longo de gerações. O museu representa o âmago do trabalho do pesquisador. As coleções que fiz ao longo da minha vida vão estar depositadas no Museu de Zoologia e da-qui a 20, 30 anos alguém vai olhar aquilo e se aproveitar do meu trabalho, enrique-cendo com o material que ele mesmo pegou. Mas tem um problema...

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O branco e o prata: o elegante prédio do Soar e o vizinho Gemini Sul, ao fundo

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Instrumentos astronômicos feitos no Brasil equipam o telescópio Soar, nos andes chilenos

O físico Antônio César de Oliveira mal viu a luz do dia na última semana de janeiro. Ele, o astrôno-mo Flávio Ribeiro e o engenheiro mecânico Fernando Santoro pas-saram cinco dias seguidos traba-lhando em uma sala sem janelas

no topo de uma montanha pedregosa e sem vegetação dos Andes chilenos. Deixa-vam o dormitório pela manhã, percorriam três quilômetros em uma estrada de terra estreita e poeirenta e só retornavam tarde da noite, quando um número incontável de estrelas já povoava o céu. Havia pouco tempo e muito a fazer. Com a ajuda de téc-nicos chilenos, eles conectavam o maior e mais complexo equipamento astronômico já feito no Brasil ao telescópio do Obser-vatório Austral de Pesquisa Astrofísica (Soar), construído com financiamento brasileiro e norte-americano próximo à cidade de Vicuña, no norte do Chile.

Ricardo Zorzetto, de Cerro Pachón

Com cerca de 3 mil peças e pouco mais de meia tonelada, o equipamento que os brasileiros instalavam no final de janeiro é um espectrógrafo, aparelho que decompõe a luz nas diferentes cores (espectros) que a formam – algumas delas invisíveis ao olho humano, como o ultravioleta e o infraver-melho. No interior do espectrógrafo, a luz de astros próximos ou distantes explode em uma sucessão de cores do arco-íris, mas em proporções que variam segundo a compo-sição química do objeto observado.

O instrumento instalado no Soar, po-rém, não é um espectrógrafo qualquer. O aparelho que chegou ao prédio do observatório no Cerro Pachón em 10 de dezembro, depois de viajar quase 3,5 mil quilômetros por ar e terra desde as oficinas do Laboratório Nacional de Astrofísica (LNA) em Itajubá, Minas Gerais, é um es-pectrógrafo com inovações tecnológicas que o tornam único no mundo. Uma das

Rumo às estrelas

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características que fazem do Espectró-grafo de Campo Integral do Soar (Sifs) um instrumento especial é sua capa-cidade de fracionar a imagem de um objeto celeste em 1.300 partes iguais e, a um só tempo, registrar o espectro de todas elas. Em alguns meses, quando estiver funcionando com todo o seu potencial, o Sifs permitirá, por exem-plo, avaliar a composição química de 1.300 pontos de uma galáxia em uma única medição de poucos minutos, tarefa que até então exigia centenas de medições distintas.

“Para os astrônomos, isso é mui-ta informação”, explicou o físico Cle-mens Gneiding em outubro passado, durante a etapa final de montagem do Sifs nos laboratórios do LNA, antes do embarque para o Chile. E não é só. Esse espectrógrafo foi projetado para ter um altíssimo poder de resolução espa-cial. “Ele pode distinguir objetos muito próximos no céu, separados por um segundo de arco [unidade de medida de ângulo]”, completou. Em termos mais concretos, isso corresponde ao tamanho de uma bola de futebol vista a 50 quilômetros de distância – algo absurdamente pequeno.

Na tarde de 28 de janeiro a equipe brasileira corria de um lado para o outro no prédio branco reluzente do Soar que pode ser visto ao longe por passageiros dos voos que pousam na região. Eles tentavam concluir a conexão do Sifs antes que a semana terminasse. “Uma semana é muito pouco tempo para com-pletar a instalação e fazer os ajustes ne-cessários”, afirmou Santoro, responsável pela parte mecânica do projeto.

“O mais complicado é instalar o cabo com as fibras ópticas que unem as duas partes do espectrógrafo”, co-mentou Oliveira, enquanto avaliava a melhor maneira de acomodar na base do telescópio o tubo flexível de oito centímetros de diâmetro e 14 metros de comprimento contendo as fibras de vidro superfinas – têm metade da

espessura de um fio de cabelo – que devem conduzir a luz do primeiro ao segundo módulo do instrumento. “Te-mos de ser cuidadosos porque essas fibras vão se mover alguns centímetros para acompanhar os movimentos do telescópio, mas não podem ficar ten-sionadas”, explicou o físico especialista em óptica, coordenador do Laborató-rio de Fibras Ópticas do LNA. Se forem tracionadas, as fibras podem romper e deixar cego o espectrógrafo de US$ 1,8 milhão financiado pela FAPESP.

Com o Sifs em atividade, a luz cole-tada pelo espelho de 4,1 metros do Soar será focalizada no chamado módulo pré-óptico do espectrógrafo, uma caixa preta retangular um pouco maior que o gabinete de um computador, acoplada à base do telescópio. No interior desse módulo um conjunto de lentes ampli-fica de 10 a 20 vezes a intensidade da luz e a lança sobre 1.300 microlentes. Cada microlente, por sua vez, orienta a luz que recebe para uma das 1.300 fibras ópticas, que, como os fios de eletricidade de uma casa, a conduzem até o segundo e maior módulo do equi-pamento: o espectrógrafo de bancada, instalado dois metros abaixo, na torre

Fios de luz:1.300 fibras conectam o

telescópio ao espectrógrafo Sifs

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Sem descanso: equipe de instrumentação do Soar faz ajustes no equipamento recebido em dezembro

tório do Pico dos Dias, em Brasópolis, cidade mineira vizinha a Itajubá.

Motivos não faltavam para justificar o investimento na inovação – um deles, econômico. Quanto menor o diâmetro das fibras, mais próximas entre si elas podem ser alinhadas na entrada do se-gundo módulo do equipamento. Como consequência, também diminuem as dimensões das lentes e dos outros com-ponentes ópticos, cujo preço aumenta proporcionalmente ao tamanho. “O uso de fibras com o dobro do diâmetro faria o espectrógrafo dobrar de tamanho”, conta o astrônomo Jacques Lépine, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciên cias Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), o primeiro coordenador do projeto que desenvol-veu o Sifs em parceria com Gneiding, do LNA. No caso desse espectrógrafo, duplicar o tamanho do segundo módu-lo – um octógono de 70 centímetros de altura e 2,4 metros na sua maior dimen-são – significaria deixá-lo com a altura de quase uma pessoa e a largura de um quarto amplo de apartamento.

Nos 15 metros que separam o foco do telescópio do sensor do espectrógra-fo, a luz já tênue de estrelas, galáxias ou

de sustentação do telescópio. Ali outras 18 lentes – algumas delas podem girar até 130 graus com a precisão de milési-mos de milímetro – ora dispersam, ora alinham, ora fazem convergir os feixes luminosos até que alcancem o sensor onde serão registrados.

A escolha de fibras ópticas tão deli-cadas e finas foi uma aposta arris-cada dos pesquisadores brasileiros.

O núcleo das fibras, por onde de fato passa a luz, tem apenas 50 micrômetros (milésimos de milímetro) de espessura e, na época, diferentes grupos de pes-quisa afirmavam que fibras com menos de 100 micrômetros causariam a perda de boa parte da luz que deveria chegar ao segundo módulo do espectroscópio. Baseando-se nos bons resultados de um equipamento construído na Austrália, a equipe que projetou o Sifs decidiu experimentar as fibras mais finas. Mas foi um risco bem calculado. Antes de empenhar tanto esforço e dinheiro no equipamento, eles construíram em par-ceria com os australianos uma versão menor do espectrógrafo, que há cerca de dois anos funciona – e muito bem, por sinal – no telescópio do Observa-fo

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1. Construção de dois espectrógrafos ópticos para o telescópio Soar – nº 1999/03744-12. Steles: espectrógrafo de alta resolução para o Soar – nº 2007/02933-33. Evolução e atividade de galáxias – nº 2000/06695-04. Nova física no espaco – formação e evolução de estruturas no Universo – nº 2006/56213-9

mOdAlIdAdE

1. auxílio regular a Projeto de Pesquisa2., 3. e 4. Projeto temático

CO Or dE nA dOrES

1. Beatriz Leonor SiLveira BarBuy – IaG/USP2. auguSto DamineLi neto – IaG/USP3. ronaLDo euStáquio De Souza – IaG/USP4. reuven opher – IaG/USP

InvEStImEntO

1. r$ 3.254.030,59 (faPESP)2. r$ 1.373.456,33 (faPESP)3. r$ 1.520.687,31 (faPESP)4. r$ 1.926.187,91 (faPESP)

Os prOjetOs>

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planetas sofre uma série de desvios e reflexões e perde intensidade. E, quan-to menos intensa, pior a definição do espectro produzido pelo equipamento. Os pesquisadores reduziram essa perda usando espelhos com maior capacidade reflexiva e lentes com tratamento an-tirreflexo, que evitam a perda de luz. Assim conseguiram garantir a chegada de 80% a 85% da luz captada pelo te-lescópio ao sensor do Sifs.

P lanejado há pouco mais de uma década, o Sifs integra a primeira geração de equipamentos do Soar,

que só estará completa em 2011, com a instalação do quarto e último instru-mento que o Brasil se comprometeu a fornecer. “Na criação do consórcio que administra o telescópio, o país ficou responsável por produzir esses equipamentos”, diz Beatriz Barbuy, as-trofísica do IAG-USP e coordenadora do Projeto Temático que financiou a construção do espectrógrafo.

Foram quase 10 anos de trabalho da concepção à instalação do equipa-mento, que usou a mão de obra e o

conhecimento de ao menos 20 pesqui-sadores e técnicos altamente especiali-zados. A execução do projeto também exigiu a formação de uma parceria pouco frequente no país, entre uni-versidades, institutos de pesquisa e empresas privadas.

“Não havia no Brasil a cultura e a expertise de produzir equipamentos de astronomia com tal porte”, comen-ta Keith Taylor, astrofísico inglês que coordenou o grupo de óptica do Obser-vatório Anglo-australiano, na Austrália, e há dois anos gerencia o desenvolvi-mento de instrumentos do Soar.

O tempo de produção do Sifs, di-zem os pesquisadores, talvez fosse bem menor caso houvesse no país acesso mais fácil aos materiais que precisa-ram ser importados. Parte do atraso se deveu a complicações na importação de peças como as lentes de fluoreto de cálcio fornecidas pela empresa norte--americana Harold Jonhson, que leva-ram nove meses para chegar ao Bra-sil, e das fibras ópticas compradas da Polymicro Technologies, também nos Estados Unidos.

Primeira geração

de equipamentos

só estará completa

em 2011, com a

instalação do quarto

e último instrumento

que o país se

comprometeu

a fornecer para

o telescópio

Made in Brazil: o espectrógrafo Sifs, já instalado no telescópio, e ao lado o imageador BtFi, que segue para o chile em breve

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mecânico dessa câmera e comprou dois dos quatro detectores infravermelhos”, conta Ronaldo de Souza, astrônomo do IAG que assumiu a coordenação do projeto após a mudança de Sueli para os Estados Unidos.

Só os dois detectores custaram cerca de US$ 700 mil, metade paga com verba do projeto de Sueli Viegas e metade com verba do Instituto do Milênio, coorde-nado por Beatriz Barbuy, do IAG-USP, e Miriani Pastoriza, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Desde setembro de 2009 a Spartan funciona em modo experimental. Nessa fase, os astrônomos estão aprendendo a lidar com o equipamento, que ainda pode passar por ajustes, e não há garantia de que as observações sejam muito precisas. “O Soar foi projetado para apresentar um alto desempenho, com equipamentos de altíssima qualidade óptica”, afirma Keith Taylor.

Pouco mais de cinco anos após a conclusão do prédio e a montagem do telescópio, o Soar vai ganhando vida e se tornando independente. Está pre-vista para este mês a entrega do filtro imagea dor ajustável brasileiro (BTFI), equipamento de US$ 2,2 milhões que permitirá identificar a composição quí-mica e medir os movimentos relativos internos dos objetos celestes. “Esse ins-trumento será acoplado a um módulo que corrige os efeitos da turbulência na atmosfera”, conta Claudia Mendes de Oliveira, da USP. “Aliada à qualidade de imagem do BTFI, essa correção re-sultará em imagens com nitidez inédita, dando ao Soar capacidades que outros telescópios do mesmo porte não têm”, diz a astrofísica, que coordenou as equi-pes do Brasil, da França e do Canadá que construíram o BTFI.

“A produção desses instrumentos inaugurou uma nova era da astronomia

lado a lado: arranjo de fibras

ópticas exigiu precisão e

muita paciência

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Em meados de 2009, poucos meses antes de o Sifs seguir para o Chile, ou-tro equipamento projetado e construído com a participação de brasileiros havia sido conectado ao Soar: a câmera Spar-tan, especializada em produzir imagens no infravermelho – forma de radiação eletromagnética percebida pelos seres humanos na forma de calor e capaz de atravessar as gigantescas nuvens de poei-ra interestelar que ocultam galáxias e berçários de estrelas. Parte do primeiro grupo de instrumentos fabricados espe-cificamente para esse telescópio, a Spar-tan substituiu uma câmera emprestada do telescópio Blanco do Observatório Interamericano de Cerro Tololo, locali-zado cerca de 10 quilômetros a noroeste do Soar em uma das inúmeras monta-nhas avermelhadas da cordilheira.

A astrônoma Sueli Viegas, aposen-tada da USP, iniciou cerca de oito anos atrás, em cooperação com a

Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, o projeto que levou ao desen-volvimento da Spartan. “O Brasil parti-cipou da elaboração do projeto óptico e

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brasileira e impulsionou a instrumenta-ção astronômica nacional”, afirma Bea-triz Barbuy. É que esses aparelhos caros, pensados com o objetivo de ampliar a compreensão humana do Universo, consomem um número grande de pe-ças muito pequenas que se encaixam e se movimentam com altíssima precisão. “Só para ao BTFI, fornecemos cerca de 1.500 peças”, conta Paulo Silvano Car-doso, diretor da empresa material op-tomecânico Metal Card, de São José dos Campos, interior de São Paulo.

“Em 10 anos o Brasil conseguiu es-tabelecer um programa de instrumen-tação de nível internacional”, afirma João Steiner, o astrofísico do IAG-USP que integrou o conselho diretor do Soar por 12 anos e participou do projeto do telescópio desde sua concepção, em 1993 (ver Pesquisa FAPESP nº 98). Ele conta que os pesquisadores brasi-leiros até tentaram começar a produ-ção de instrumentos astronômicos anos

atrás, quando o país passou a integrar o consórcio do observatório Gemini, que conta com dois telescópios com espelhos de 8,2 metros, um instalado no Havaí e outro a 350 metros do Soar, no Cerro Pachón, a 2.701 metros acima do nível do mar. Mas o projeto não vin-gou. “O salto era grande demais”, expli-ca Steiner, que chegou a ser internado por causa do nível de estresse durante a construção do telescópio.

A té o início de 2011 um quarto instrumento deve ficar pronto: o espectrógrafo échelle do teles-

cópio Soar (Steles), que a equipe do astrônomo Bruno Vaz Castilho cons-trói atualmente nos laboratórios do LNA. De modo semelhante ao Sifs, o espectroscópio que os brasileiros ins-talavam em janeiro no prédio do Cer-ro Pachón, o Steles também analisará as cores da luz emitida por estrelas e galáxias. A diferença é que enxergará

dois anos depois de aprovado o projeto, as obras iniciam em 1998 com a explosão do topo do cerro Pachón, em Vicuña, norte do chile, e a extração de 13 mil metros cúbicos de pedras para aplainar o local da sede do Soar

cerca de um ano mais tarde começa a ganhar corpo o prédio que abrigará o telescópio e a sala de controles, erguido em um terreno a 2.701 metros acima do nível do mar e 80 quilômetros de distância do oceano Pacífico

em 2002 o prédio recebe a cúpula metálica de 14 metros de altura feita pela empresa equatorial, de São José dos campos, no interior paulista, que protege o telescópio de dia e quando a umidade do ar aumenta à noite

o espelho de 4,1 metros de diâmetro e poder de captação de luz 350 mil vezes superior ao do olho humano chega ao Soar em janeiro de 2004, após viajar quase 10 mil quilômetros desde o local de fabricação nos estados Unidos

o nascimento de um telescópio

Em dez anos

o Brasil conseguiu

estabelecer um

programa de

instrumentação

astronômica de nível

internacional, com

benefícios também

para a indústria

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uma proporção maior do espectro da luz visível – e com melhor resolução. Pode parecer redundante o uso de dois instrumentos da mesma família, mas não é. Cada um tem aplicações específicas. Enquanto o Sifs gera 1.300 espectros em uma única exposição, o Steles produz um só. “Como o Steles registrará todo o espectro da luz visível de uma única vez, permitirá analisar diferentes características do objeto ob-servado, como composição química, temperatura, velocidade de rotação ou de afastamento”, conta Castilho.

“Com a entrega desses equipamen-tos, a primeira e a segunda geração de instrumentos definidas no projeto inicial estarão completas”, diz Alberto Rodriguez Ardila, gerente nacional do Soar. Isso não significa, porém, que o telescópio estará completamente equi-pado. “O avanço científico sempre ge-ra a necessidade de desenvolver novos instrumentos”, afirma. Na opinião des-

se astrofísico do LNA, o resultado de tanto trabalho deverá ser notado em alguns anos nos projetos científicos desenvolvidos no Soar. “O uso desses instrumentos deverá aumentar a dispu-ta por tempo de observação e melhorar a qualidade das pesquisas”, diz Ardila.

Antes mesmo da chegada de seu próprio conjunto de equipamentos, o telescópio branco do Cerro Pachón não ficou parado. Desde que recebeu a primeira luz de uma estrela em 2004 até dezembro do ano passado, o Soar gerou 36 artigos científicos publicados em periódicos internacionais. Deles, 19 artigos (53% do total) foram produzi-dos por pesquisadores brasileiros, que dispõem de apenas 34% do tempo de observação do telescópio.

M as o reconhecimento da comu-nidade científica internacional veio mesmo em 2007, quando o

resultado de uma observação feita no Soar por um brasileiro saiu nas cobi-çadas páginas da revista Nature. Quase dois anos antes, na madrugada de 25 de setembro de 2004, o observatório espacial Swift, da agência espacial nor-te-americana (Nasa), emitiu um alerta com as coordenadas do que poderia ser uma explosão de raios gama – a morte de uma estrela com massa dezenas de vezes superior à do Sol que se trans-forma em um buraco negro, um dos eventos mais energéticos conhecidos – ocorrida nos confins da constelação de Peixes (ver Pesquisa FAPESP nº 116). Eduardo Cypriano, um dos primeiros astrônomos residentes do Soar, uma espécie de desbravador do telescópio, trabalhava naquela noite e detectou os primeiros sinais da explosão.

A pedido de Daniel Reichart, norte-americano estudioso desses fenômenos, Cypriano apontou o telescópio para o mesmo ponto do céu por mais alguns dias. Uma semana mais tarde veio o anúncio oficial: as imagens feitas por Cypriano e analisadas com o auxílio de sua mulher, a astrônoma Elysandra Figueredo, haviam flagrado a explosão de uma estrela a 12,7 bilhões de anos- -luz da Terra. O Soar havia sido o único telescópio em terra a acompanhar esse fenômeno raro, mais tarde confirmado por outros observatórios. “Era o objeto mais distante e antigo já observado, ao menos até aquela data”, conta Cypriano,

para quem, tão logo estejam terminados os ajustes nos equipamentos do Soar, os astrônomos brasileiros estarão bem servidos por pelo menos uma década.

Enquanto aguardam a conclusão dos últimos equipamentos – o Soar comporta oito no total –, os brasilei-ros planejam os próximos passos. Um grupo coordenado por João Steiner e Beatriz Barbuy avalia a possível par-ticipação do país na próxima geração de telescópios. São projetos grandiosos que devem consumir de US$ 700 mi-lhões a US$ 1,4 bilhão para erguer te-lescópios com espelho de até 40 metros de diâmetro, quatro vezes maior que o dos maiores telescópios em atividade. Só para ter um parâmetro de compara-ção, o Soar custou US$ 28 milhões, dos quais US$ 14 milhões foram pagos pelo Brasil, divididos entre o Conselho Na-cional para o Desenvolvimento Cien-tífico e Tecnológico (US$ 12 milhões) e a FAPESP (US$ 2 milhões).

O ingresso para a primeira divisão da astronomia, porém, não sai barato. O Brasil negocia pagar 10% do valor total para ter acesso ao Thirty Meter Telescope, com espelho de 30 metros, ou 5% para ter o direito de usar o Giant Magellan Telescope ou o European Ex-tremely Large Telescope, de 22 metros e 42 metros, respectivamente. Mas exige uma contrapartida. “Não entraremos em nenhum projeto se ao menos 70% desses recursos não forem destinados à fabricação de equipamentos pela in-dústria nacional”, afirma Steiner.

Os astrônomos têm ao menos dois bons motivos para justificar tamanho investimento. O primeiro e mais abs-trato: o acesso a esses megatelescópios garantiria aos pesquisadores brasileiros pelo menos a chance de olhar cada vez mais longe no Universo à procura de respostas convincentes para uma das perguntas mais simples e fundamentais que o ser humano sempre se fez: Co-mo tudo começou? O segundo e mais pragmático: a astronomia nacional, uma área jovem que cresceu muito rapidamente na década de 1990, não pode estagnar caso queira se manter competitiva internacionalmente. “Se pararmos”, diz Steiner, “condenaremos a próxima geração de astrônomos a ficar fora da pesquisa de ponta nessa área a partir de 2025. Seríamos o único dos países emergentes a fazer isso”. n

Na noite de 17 de abril de 2004 o telescópio faz sua primeira observação ou, como dizem os astrônomos, vê sua primeira luz, ainda utilizando equipamentos emprestados de outros observatórios

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> ESTRATÉGIAS MUNDO

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Vários países doOriente Médio se uni-ram para ajud-ar osagricultores de suasregiões mais áridasa tirar o máximo pro-veito dos recursos hí-dricos disponíveis. Ainiciativa vai envolvercomunidades ruraisdo Egito, Jordânia,Líbano, Palestina, Sí-ria, Iraque e lêmen.O objetivo é ampliara produtividade dasculturas agrícolas eda pecuária. O Cen-tro Internacional paraPesquisa Agrícola emÁreas Secas (lcarda), com se-de na Síria, vai liderar o projetoe gerenciar os recursos forne-cidos por agências e doadoresestrangeiros. Universidadesnorte-americanas fornecerãosuporte tecnológico. TheibOweis, pesquisador do Icar-da, disse que os agricultoresconhecerão técnicas parafazer um uso "mais efetivo econstrutivo" da água, como achamada irrigação suplemen-tar. Por meio dela, as culturassão irrigadas durante os está-gios críticos de crescimentoutilizando apenas um terçodo consumo habitual de água.Até agora a iniciativa já rece-beu US$ 1 milhão da Usaid, aagência norte-americana parao desenvolvimento internacio-nal. O sucesso do plano serámonitorado em nível local,com pesquisadores medindoa produtividade de água antese depois da aplicação de umanova técnica. A ideia é que osresultados do projeto ajudema moldar novas políticas pú-blicas na região.

> Degelomonitorado

A Agência deCooperação Internacionaldo Japão (Iica) fez umacordo com a UniversidadMayor de San Andrés(Umsa), da Bolívia,e disponibilizou US$ 3,8milhões para desenvolverestudos capazes demedir o impacto doderretimento de geleirasno abastecimentode água das cidades deLa Paz e EI Alto, quejuntas formam a principalaglomeração urbanado país. O acordoprevê treinamentode profissionaisbolivianos em cursosde pós-graduação,intercâmbio de especialistase fornecimento deequipamentos ao longodos próximos quatro anos.Segundo um informe deimprensa da Iica, o projetovai desenvolver

metodologias e propostaspara a gestão sustentáveldos recursos hídricos,levando em conta cenáriosdas mudanças climáticase o crescimento dademanda nas cidadesanalisadas. O diretordo Instituto de Hidrologiae Hidráulica da Umsa,Carlos Herbas, disse àagência SciDev.Net que já

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começou a coletarinformações hidrológicase meteorológicas nacordilheira oriental do país,especificamente nasgeleiras Huayna Potosie Tuni Condoriri, quefornecem água para asduas cidades e abastecem10 usinas hidrelétricasresponsáveis por 80%da energia elétrica da região.

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Embora não tenha experiência cientí-fica, uma irlandesa de 59 anos vai ocu-par um dos cargos mais influentes dapesquisa europeia. Máire Geoghegan-

Quinn é uma ex-parlamentar da Irlanda que já foi ministra depastas como Transportes, Justiça e Turismo, mas afastou-seda política em 2000 para se tornar membro do Tribunal deContas Europeu. Escolhida para o cargo de comissária paraPesquisa, Inovação e Ciência, ela assume com o desafio depromover mudanças na política científica do bloco que vãoafetar os pesquisadores dos 27 países membros. Segundo arevista Nature, sua principal tarefa será organizar o OitavoPrograma-Quadro de Pesquisa (FP8), a ser lançado em 2014.Os programas-quadro recebem críticas pelo excesso de bu-rocracia que impõem aos pesquisadores, mas são o principalmecanismo de financiamento à ciência da União Europeia.A oitava edição deve investir pelo menos € 50 bilhões emsete anos. A comissária propõe gerar uma estrutura maisleve, capaz de dar suporte à criação do Espaço Europeu dePesquisa, iniciativa voltada para integrar os pesquisadoressob um mesmo arcabouço jurídico e permitir que, indepen-dentemente da nacionalidade, eles possam disputar recursosoferecidos pelos governos de quaisquer países do bloco.

CZARINAEUROPEIA

> Jovens queremser ouvidos

Jovens pesquisadores doPaquistão criaram umainstituição para compartilharpreocupações, como afalta de oportunidades decarreira e os baixos saláriosno país, e tentar ampliarseu espaço no sistemanacional de ciência e

tecnologia. A Academiaacional de Jovens

Pesquisadores é voltada paracientistas com 40 anos oumenos e também está abertaa paquistaneses que atuemno exterior. Já conta comcerca de 350 filiados, quemantêm uma newsletter,obtiveram representaçãona Academia de Ciênciasdo Paquistão e lançaram

propostas de parceria comorganizações multilaterais.A meta principal dainstituição é convencer asautoridades a dar um papelmaior aos jovens cientistasno desenvolvimento dopaís, aproveitando sua forçade trabalho e ouvindosuas reivindicações, disseà agência SciDev.Neto presidente da academia,Aftab Ahmad.

> A geopolíticadas patentes

Dados divulgados pelaOrganização Mundial dePropriedade Intelectual(Ompi) mostram queo volume de patentesinternacionais sofreu em2009 a primeira quedaem 30 anos, em virtude dacrise financeira internacional.A redução foi de 4,5%.A liderança ainda é dosEstados Unidos, queregistraram no ano passado

45,7 mil patentes, quase30% do total. Mas, devidoà recessão, o país amargouuma queda de 11,4%no número de patentesentre 2008 e 2009, reduçãosemelhante à de outrasnações desenvolvidas.A emergente China andana contramão da tendênciae aumentou o número depatentes em 29,7% entre2008 e 2009. Registrou maisde 7,9 mil patentes noano passado, superando aFrança e o Reino Unido e setornando a quinta economiamais inovadora do planeta.Mas ainda está atrás deoutro emergente, a Coreiado Sul, com 8 mil patentes.Entre 2005 e 2009,o Brasil praticamentedobrou seu número depatentes. Mas isso representauma fração restrita dasinovações registradas noplaneta. Em 2009 foramcontabilizadas 470 patentesbrasileiras, 0,3%do total mundial.

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> ESTRATÉGIAS MUNDO

SpaceShipTwo: desenvolvido para transporte suborbital

> A transformaçãodos óvnis

Os Arquivos Nacionais daGrã-Bretanha liberarampara análise de especialistase do público leigo um novolote de 6 mil páginas dedocumentos que incluemrelatos de supostas apariçõesde objetos voadores nãoidentificados entre 1994e 2000. Segundo a agênciaBBC, pesquisadores queavaliaram o material dizemque o alegado formatodos óvnis mudou em relaçãoao declarado em décadasanteriores e a explicaçãopode estar nas representaçõesda cultura popularpara tais objetos. Váriosrelatos no último lote dedocumentos - o quintode um projeto de três anospara a liberação de arquivos- descrevem as supostasnaves como grandes, negras,triangulares e com luzesnas pontas. Nas décadas de

1940 e 1950, o formatopredominante era de disco."No período coberto pelosmais recentes documentosliberados, bombardeirosamericanos de formatotriangular e aviões espiõesAurora apareciam muitona TV, assim como emprogramas como Arquivo X.As referências de apariçõesde óvnis são semelhantes",diz David Clarke, professorda Universidade HallamSheffield.

> Da indústriapara Harvard

Um executivo da empresa-farmacêutica Eli Lilly vaitornar-se decano da área depesquisa da Escola Médicada Universidade Harvard.O endocrinologista WilliamChin atuava na companhiadesde 1999, ocupando, nosúltimos anos, o cargo device-presidente de pesquisa

o presidente norte-america-no, Barack Obama, desistiudos planos de enviar missõestripuladas à Lua em 2020 equer delegar à iniciativa pri-vada a tarefa de conduzir tri-pulantes para a Estação Espa-ciallnternacional. O abandonodo programa lunar, que haviaconsumido US$ 9 bilhões,segue recomendações de umpainel de especialistas, que oapontou como excessivamen-te caro. Já a ideia de desen-volver a exploração comercialdo espaço, que custará US$ 6bilhões em incentivos a em-presas nos próximos anos, éjustificada pela redução decustos no orçamento da Nasa

e pela capacidade de gerar empregos na iniciativa priva-da. Foguetes suborbitais, como o SpaceShipTwo, da VirginGalactic, programado para voar em 2011, podem ofereceracesso frequente ao espaço. Outra empresa, a SpaceX, dizque pode produzir em três anos uma cápsula de sete lugarespara acoplar em seu foguete Falcon. Ela estima que umaviagem à estação custaria US$ 20 milhões - uma pechinchase comparada aos US$ 50 milhões que os Estados Unidospagam à Rússia por voo na nave Soyuz. O Congresso norte--americano ainda vai avaliar as decisões de Obama.

clínica. Formado emHarvard na turma de 1972,ele terá agora a missão desupervisionar a pesquisabiomédica da escola e suasinterações científicas coma indústria. Arnold Relman,ex-editor da revista The NewEngland [ournal of Medicine,disse ao jornal The BostonGlobe que a indicação deChin é preocupante portornar fluida a necessáriaseparação de papéis entrea medicina acadêmica e ascompanhias farmacêuticas.Jeffrey Flier, diretor daescola, disse que o novo

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decano vai ajudar aimplementar uma novaestratégia, "com ênfaseespecial na pesquisainterdisciplinar queperpassa as fronteirasde departamentos einstituições;' e também seráresponsável por estabelecerparâmetros de interaçãocom a indústria capazes de,ao mesmo tempo, respeitaras normas relacionadasa conflitos de interesse eavançar na busca de meiospara engajar a massacrítica da escola na criaçãode terapias inovadoras.

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> ESTRATÉGIAS BRASIL

o prazo médio para análisedas 18.177 solicitações rece-bidas pela FAPESP em 2009foi de 80 dias, o menor dosúltimos nove anos. "Esseprazo médio é bem menor doque o anunciado pela NationalScience Foundation (NSF), nosEstados Unidos,em seu Grants

Proposal Guide, que é de 180dias", disse Carlos Henriquede Brito Cruz, diretor cien-tífico da FAPESP. "Tambémé menor do que o praticadopelos Institutos Nacionais deSaúde (NIH) para propostasdo tipo ROl (similares a umTemático), que é de nove a 12meses. Nosso principal objeti-vo é o constante aperfeiçoamento do processo de análise e deseleção de propostas na FAPESP,visando à melhor qualidadenas decisões. Nos últimos anos, temos conseguido melhorar aqualidade do processo e ao mesmo tempo reduzir os prazos",destacou. Os prazos médios para análise e as quantidadesde propostas despachadas anualmente, com dados desde1992, estão reunidos na página <www.fapesp.br/estatisticas/analise>. Os dados mostram o grande aumento no númerode propostas analisadas a cada ano. Em 1992, o total foi de3.655; em 2009, chegou a 18.177.

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> Da militânciaà academia

Morreu no dia 15de fevereiro, aos 60 anos,Gildo Marçal BezerraBrandão, pesquisadordo Centro de Estudos deCultura Contemporâneada Universidade deSão Paulo (Cedec/USP), emdecorrência de problemascardíacos. Natural deAlagoas, Brandão atuoucomo jornalista e militouno Partido Comunista

Gildo Marçal Brandão:analista político e cientista

Brasileiro (PCB), sendo oprimeiro editor do jornalVoz da Unidade, publicaçãodo partido. Nos anos 1970deixou a militância políticapara se dedicar à carreiraacadêmica. Lecionou naUniversidade EstadualPaulista, na PontifíciaUniversidade Católica de SãoPaulo e na USP. Sua tese dedoutoramento deu origemao livro A esquerda positiva(As duas almas do PartidoComunista, 1920-1964).Brandão era assessor ad hocda FAPESP e coordenava oProjeto Temático "Linhagensde pensamento político esocial brasileiro", apoiadopela Fundação. "Gildoera um arguto analistapolítico e cientista degrande competência. Foium incansável defensorde referenciais acadêmicoselevados para a universidadepública brasileira", disseCarlos Henrique de BritoCruz, diretor científicoda FAPESP.

> Ecologicamentecorreto

A partir desta edição,Pesquisa FAPESP passaa circular com o seloFSC (Forest StewardshipCouncil), que certificaprodutos impressos compapéis provenientes deflorestas manejadasde forma ecologicamentecorreta, socialmente justa,economicamente viável ecom respeito à legislação.O selo foi obtido pelagráfica Plural, de São Paulo,onde são impressos osexemplares da revista.O FSC é uma organizaçãonão governamental presenteem 81 países, que atua detrês maneiras: desenvolveos princípios e critériospara certificação, credenciaorganizações certificadorasespecializadas eindependentes; e apoia odesenvolvimento de padrõesnacionais e regionais demanejo florestal.

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> ESTRATÉGIAS BRASIL

> Espaçointerativo

A capital paulista ganhouuma nova biblioteca pública.A Biblioteca de São Paulofoi inaugurada no dia8 de janeiro no Parque daJuventude, zona Norteda cidade, criado no localem que funcionou aCasa de Detenção, demolidaem 2002. Instalado numaárea de 4.257 rrr', o espaçoconta com uma centenade computadores comacesso à internet e recursosmultimídia, 30 mil livros,4 mil CDs e DVDs,mil audiolivros, mil álbunsde história em quadrinhos,50 títulos de gibis, 100 jogoseletrônicos, cerca de 20 jornaisnacionais e internacionais emais de 15 títulos de revistas.Com foco na literaturabrasileira, internacional elatino-americana, também

disponibiliza títulos sobrefilosofia, religião, história,geografia, artes, administração,entre outros, que podem seremprestados aos usuárioscadastrados por um períodode até 15 dias. Inspiradanos serviços e programasda Biblioteca Pública de

o Instituto de Pesquisas Tecnoló-gicas (lPT) comprou um novo mi-croscópio eletrônico de varredura(MEV), que permitirá pesquisas em

escala nanométrica. O custo total foi de € 1,046 milhão, eminvestimento do governo paulista. O novo equipamento trabalhacom dois tipos de feixes: o feixe principal de elétrons é capazde produzir imagens de alta resolução com uma ampliação deaté 300 mil vezes, enquanto o feixe de íons de qállo executa ausinagem de amostras - pode, por exemplo, realizar um cortede superfícies para observação em três dimensões. O institutojá possuía dois microscópios de varredura, adquiridOS na décadade 1990. Recentemente recebeu também um modelo de alta re-solução, no projeto viabilizado pela Rede Temática de Materiaise Controle de Corrosão da Petrobras. Nenhum desses micros-cópios, contudo, dispõe de recursos tão avançados quanto osdo modelo recém-adquirido. "As partículas caracterizadas nosmodelos convencionais atingiam somente a escala de mícrons,em uma ampliação de até 20 mil vezes. Agora podemos chegara 500 mil vezes", disse o pesquisador Adriano Marim.

ESCALANANOMÉTRICA

Santiago, no Chile, aBiblioteca de São Paulopossui cinco áreas deatividades, divididas porfaixas etárias. Foraminvestidos R$ 12,5 milhões,sendo R$ Iü-milhões dogoverno paulista e R$ 2,5milhões do Ministério da

Cultura. Será a sede doSistema Estadual deBibliotecas, que integra 941bibliotecas públicas paulistas.Um auditório para 106pessoas será utilizado paraa realização de cursos detreinamento dos profissionaisda rede de bibliotecas.

Biblioteca de São Paulo: atividades divididas por faixas etárias

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> À frente daCTNBio

o agrônomo e geneticistaEdilson Paiva foi escolhidopara presidir a ComissãoTécnica Nacional deBiossegurança (CTNBio).Seu nome era o primeirode uma lista trípliceencaminhada pela comissãoao ministro da Ciência eTecnologia, Sergio Rezende.Ele assume a coordenaçãodo colegiado de 27integrantes, cuja missão éassessorar o governona formulação da políticade biossegurança emrelação aos organismosgeneticamente modificados.Cabe à CTNBio analisarpedidos de pesquisa e deliberação de transgênicos.Pesquisador da EmpresaBrasileira de PesquisaAgropecuária (Embrapa)desde 1974, Paiva ocupounos últimos dois anos avice-presidência dacomissão, que tinha à frenteWalter Colli, professor doInstituto de Química daUniversidade de São Paulo e

o satélite Cbers-3: lançamento adiado para 2011

coordenador adjunto daFAPESP. Graduado emagronomia pela UniversidadeFederal de Lavras (1973),Paiva fez mestrado emfisiologia vegetal (1977)e doutorado em biologiamolecular de plantas (1983)na Universidade Purdue,Estados Unidos. Desenvolvepesquisas em genéticamolecular e celular deplantas e microrganismos.

> Proezainesperada

a estudante RicardoBarroso Ferreira, doInstituto de Química daUniversidade Estadualde Campinas (Unicamp),conseguiu um feitoraro para um aluno degraduação: foi coautorde um artigo na revistaScience. No início de2009 ele foi enviado àUniversidade da Califórnia,Los Angeles (Uela),como bolsista de iniciaçãocientífica de um programade intercâmbio que envolve

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Um estudo divulgadopela consultaria leqls-lativa da Câmara dosDeputados chamouatenção para a fragi-lidade orçamentáriado Programa EspacialBrasileiro. Segundoo texto, o orçamentoprevisto para 2010, deR$ 353 milhões, é ametade do necessáriopara fazer frente aosprojetos em andamen-to, informação atribuí-da ao diretor da Agên-cia Espacial Brasileira,Carlos Ganem. Outrospaíses emergentes in-vestem muito mais emseus programas, casoda índia e da China,

com orçamentos de, respectivamente, US$ 800 milhões eUS$1 bilhão. As consequências da escassez de recursos são oatraso em diversos projetos, como os lançamentos do fogueteVLS 1e do satélite Cbers-3, previstos, respectivamente, para2009 e 2007, mas adiados para 2011. "Estima-se que os Es-tados Unidos detenham 41% do mercado global de satélites,deixando 59% para o restante do mundo, sendo de 1,9% aparticipação do mercado brasileiro. O desafio dos gestores depolíticas públicas é avaliar se esse percentual corresponde àspotencial idades do país e atende às necessidades da socieda-de brasileira ou se é preciso empreender mais esforços paraalavancar as atividades espaciais brasileiras", diz o estudo.

a FAPESP e a Divisão deQuímica da NationalScience Foundation (NSF),nos Estados Unidos.Fez parte, durante trêsmeses, da equipe depesquisa coordenada poramar Yaghi no Institutode Nanossistemas da Uela.a grupo desenvolveu umcristal capaz de capturaremissões de dióxido decarbono. Embora aexperiência tenha sidoenriquecedora, a publicaçãofoi uma conquistainesperada. "Fiquei muitosurpreso", disse à AgênciaFAPESP. Segundo ele,Yaghi criou uma nova elasse

de materiais, as estruturasmetalorgânicas. Descritoscomo "cristais esponja", têmporos em nanoescala, emque é possível armazenargases. "Sintetizamos váriosmateriais diferentes. Eume encarreguei da síntese eda análise de alguns deles",disse. Criado em 2008,o Programa Piloto deIntercâmbio em Pesquisapara Bolsistas de IniciaçãoCientífica da Área deQuímica já teve quatrochamadas, que selecionaram38 estudantes paulistas paraestágios de pesquisa de até12 semanas em instituiçõesdos Estados Unidos.

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PESQUISA FAPESP 169 n março De 2010 n 31

Enquanto várias nações conseguiram ampliar sua produção científica feita em colaboração internacional, os artigos de pesquisadores bra-sileiros escritos em parceria com estrangeiros estacionaram na casa dos 30% e vêm crescen-do, em números absolutos, num ritmo menor do que as colaborações internas, aquelas que

resultam do trabalho conjunto de cientistas da mesma nacionalidade. Essa evidência é um dos destaques de uma tese de doutorado sobre as redes de colaboração científica do país, defendida no ano passado por Sa-mile Vanz, pesquisadora e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sob orien-tação de Ida Stumpf. Samile analisou 49.046 artigos brasileiros publicados em revistas indexadas na base Web of Science, da empresa Thomson Reuters, entre os anos de 2004 e 2006, e constatou que mais de 95% deles baseavam-se em algum tipo de colaboração. As parcerias dentro do próprio país respondiam por cerca de dois terços dos artigos e registraram estabilidade, com uma ligeira alta: de 69,2% do total em 2004 para 70,1% em 2006. Já o nível de colaborações internacio-nais apresentou uma pequena oscilação negativa.

A proporção de artigos brasileiros com pelo me-nos um autor estrangeiro, que era de 30,8% do total em 2004, foi a 30,1% em 2005 e a 30% em 2006. A estabilidade nesse patamar chamou a atenção da pes-quisadora, num período em que a produção científica brasileira cresceu a taxas anuais que chegam a 8%, sendo responsável atualmente por 2% da produção mundial e 45% da América Latina, e políticas para ampliar a inserção internacional foram criadas – no início dos anos 2000, a Coordenação de Aperfeiçoa-mento do Pessoal de Nível Superior (Capes) passou a conceder os conceitos mais elevados (6 e 7) apenas a programas de pós-graduação que mantivessem cola-borações internacionais. “O trabalho em colaboração

COOPERAÇÃO

a construção da teiatese discute por que não cresce a participação da pesquisa brasileira em redes internacionais

Fabrício Marques

está crescendo no Brasil e é responsável por quase a totalidade da produção científica indexada, mas as parcerias internacionais oscilam sem conseguir avan-çar”, conclui Samile Vanz.

A quantidade de artigos escritos em coautoria é usada como indicação da colaboração científica entre países, instituições e pesquisadores, ou entre setores (academia, governo e empresas privadas). Embora existam caminhos para ampliar a inserção internacio-nal da pesquisa que não necessariamente resultam na publicação de artigos, como o intercâmbio de alunos de pós-graduação e a participação em congressos e workshops, a importância para a pesquisa brasileira do indicador de coautoria já foi observada em vários estudos. Um deles, publicado em 2006 por Abel Packer e Rogério Meneghini, do Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (Bire-me), analisou os artigos brasileiros com mais de 100 citações na base Web of Science entre os anos de 1994 e 2003. Constatou-se que 84,3% deles eram fruto de parcerias com outros países. Outro estudo de Rogério Meneghini publicado em 1996 mostrara que artigos resultantes de colaborações internacionais têm, em média, quatro vezes mais citações do que os trabalhos que envolvem colaborações nacionais, os quais, por sua vez, têm impacto 60% superior aos publicados por um único autor. “O Brasil precisa lutar para que sua pesquisa tenha uma inserção internacional maior, porque isso dará mais visibilidade à sua produção e significará o acesso a recursos e equipamentos que não estão disponíveis quando se faz pesquisa de forma isolada”, afirma a pesquisadora Samile, cujo trabalho teve a colaboração de um grupo especializado em bibliometria da China – ela fez um estágio doutoral de um ano num laboratório da Universidade Tecnológica de Dalian, onde aprendeu técnicas de tratamento e análise de dados utilizados na tese.

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32 n março De 2010 n PESQUISA FAPESP 169

A tendência ao trabalho colabora-tivo é justificada, segundo a literatura, por múltiplos fatores, que vão desde a necessidade de dividir custos de equipamentos e de se relacionar com pesquisadores de outros campos do conhecimento em estudos interdisci-plinares até a ampliação do acesso a fi-nanciamentos e o desejo de aumentar a bagagem acadêmica, conhecer novas metodologias e desenvolver habilidades por meio do contato com quem tem mais experiência. O advento da internet e das redes sem fio facilitou o acesso de pesquisadores separados por grandes distâncias. As motivações para a cola-boração, diz Samile, não são as mesmas em todos os campos do conhecimento. Na matemática, por ser uma disciplina teórica, as parcerias tendem a resultar da necessidade de trocar ideias e deba-ter problemas. Já na física a colaboração é fortemente marcada pela necessidade de compartilhar equipamentos custo-sos, como aceleradores de partículas.

O s cerca de 30% de colaborações obtidas pelo Brasil nem de longe representam um dado trivial. “A

estabilidade desses números mostra que temos uma comunidade científi-ca consolidada, com grupos fortes em várias áreas que conseguem caminhar sozinhos”, diz Jacqueline Leta, profes-sora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que participou da banca da tese de Samile. “Uma explicação possível é que a comunidade científica formal, que é aquela que celebra as par-cerias, está relativamente estabilizada. O que vem crescendo não é o número de pesquisadores, mas o de estudantes de pós-graduação, para quem produ-zir em colaboração é uma tarefa mais difícil”, afirma. Segundo Jacqueline, países pequenos tendem a ter índices de colaboração muito elevados, o que denota dependência de sua comunidade científica. Os 30% do Brasil estão acima dos cerca de 25% obtidos pelos Estados Unidos, responsáveis por mais de um terço de toda a produção científica do planeta. Mas se encontram abaixo de outros países da América Latina, como Chile, Argentina e México. A Europa vem ampliando seus índices de colabo-ração. Eles chegam a 50% da produção, o dobro de duas décadas atrás, e foram impulsionados por políticas no âmbito

da União Europeia de aproximação dos cientistas de seus países membros. O nível europeu é duas vezes maior que o de países como Estados Unidos e Japão, mas o patamar desses países também vem crescendo, num sinal de crescente internacionalização da pesquisa.

Lea Velho, professora do Departa-mento de Política Científica e Tecnoló-gica da Unicamp, diz que é difícil avaliar o significado dos 30%. “Ainda não existe uma teoria clara capaz de interpretar da-dos desse tipo”, diz. Mas afirma que o patamar pode ser útil para refletir sobre os motivos que levam o Brasil a não con-seguir elevar esses indicadores. “Faltam estímulos para que a nossa comunidade científica se relacione mais com o exte-rior”, ela diz. “De um lado, deixamos de mandar alunos de doutorado para o exterior, o que era uma fonte potencial de colaborações no futuro, e passamos a privilegiar os doutorados sanduíche e os pós-doutorados lá fora, que não geram vínculos tão fortes. De outro, dispomos de um sistema de financiamento que vem oferecendo oportunidades cada vez maiores de bolsas e recursos para projetos aqui mesmo no Brasil. É bem diferente do que acontece em outros países, onde a participação em redes internacionais e a disputa por recursos do exterior são cru-ciais para que o pesquisador possa seguir trabalhando”, afirma. Segundo Lea, nos países da Europa é fundamental que um

pesquisador consiga obter recursos dos programas-quadro da União Europeia, baseados em redes. “As universidades europeias chegam a contratar pessoas para formatar a apresentação dos pro-jetos, tal é a sua importância. Aqui no Brasil não há esse tipo de estímulo para as parcerias.”

A internacionalização da pesquisa brasileira é um tópico importan-te da estratégia da FAPESP, que

mantém acordos de cooperação com agências, empresas e/ou instituições científicas da Alemanha, do Canadá, dos Estados Unidos, da França, do México, de Portugal, do Reino Unido e da Suíça. Um exemplo é o acordo de cooperação firmado em 2004 com o Centro Nacional de Pesquisa Cientí-fica (CNRS) da França, voltado para estimular o intercâmbio de cientistas e a submissão de projetos conjuntos en-volvendo pesquisadores de instituições paulistas e colegas franceses, que já ge-raram quatro chamadas de propostas e contemplaram 27 projetos. Em moldes semelhantes, a FAPESP mantém um convênio com o DFG (Deutsche Fors-chungsgemeinschaft), principal agência de fomento à pesquisa da Alemanha. No ano passado, a Fundação estabeleceu uma ponte com a pesquisa britânica, ao firmar acordos de cooperação com os Conselhos de Pesquisa do Reino Unido (RCUK, na sigla em inglês) e com o King’s College London, que se tornou a primeira universidade britânica par-ceira da FAPESP. Tais acordos ainda vão gerar chamadas de propostas. A estraté-gia de internacionalização da FAPESP inclui também trazer cientistas de fo-ra. Por isso, oportunidades de bolsas de pós-doutorado são oferecidas em anúncios mensais na revista Nature e também no site da fundação, em portu-guês e em inglês. Grandes iniciativas da Fundação, como os programas Biota, que estuda a biodiversidade paulista, o Bioen, de pesquisa em bioenergia, e o programa de pesquisa sobre mudanças climáticas globais, vêm promovendo workshops e seminários com a partici-pação de pesquisadores estrangeiros, a fim de estimular a participação dos pesquisadores paulistas em redes in-ternacionais e mantê-los em contato com o estado da arte mundial em seus campos do conhecimento.

As colaborações

internacionais se

justificam, entre

outros fatores,

pela oportunidade

de dividir custos

em grandes projetos

e de aprender com

quem tem mais

experiência

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PESQUISA FAPESP 169 n março De 2010 n 33

Um dos objetivos do trabalho de Samile foi atualizar o estudo sobre a coautoria, que já havia sido alvo de pes-quisas anteriores. Um exemplo é o artigo publicado em 2006 na revista Sciento-metrics pelo húngaro Wolfgang Glänzel, a brasileira Jacqueline Leta e o belga Bart Thijs, que traçou um panorama da ciên-cia brasileira na base ISI entre 1999 e 2003, mostrando que o Brasil ostentava o menor percentual de publicações com pelo menos um parceiro internacional quando comparado a países latino-ame-ricanos como Argentina, Chile, México e Venezuela. Dez anos antes, Jacqueli-ne Leta e Hernan Chaimovich haviam analisado a produção científica brasi-leira entre 1981 e 1990 e observaram um aumento no período de 21,6% para 26,7% nas colaborações internacionais. Esse percentual, porém, estabilizou-se a partir de 1993, descolando-se da evolu-ção da produção científica.

Segundo a tese de Samile, as áreas com maior índice de parcerias são de geociências, com mais de 50% de arti-gos em colaboração internacional, de matemática e de física, com cerca de 40% cada uma. Os Estados Unidos são o parceiro brasileiro mais frequente, com 22% das coautorias. Em seguida, vêm França (8,2%), Alemanha e Grã-Bretanha (7,3%), Itália (4,3%), Canadá (4%), Espanha e Argentina (3,8%). Já a análise relativizada desses dados, que le-

va em conta a comparação entre os arti-gos em coautoria com a produção total dos países, mostrou, segundo Samile, que os principais parceiros do Brasil são os Estados Unidos e a Argentina. As colaborações com os Estados Unidos concentram-se em áreas como medi-cina clínica e experimental, biologia e biociências. No caso da França, as áreas prioritárias são a física e a química. Co-laborações com o Chile se destacam em geociências e ciências espaciais (15,7% do total), provavelmente pela partici-pação brasileira em consórcios res-ponsáveis pela construção de grandes telescópios em território chileno.

A pesar da estabilidade no plano in-ternacional, sobram evidências de que o trabalho em rede vem cres-

cendo no país. Os dados da tese mos-tram que a média de autores nos artigos brasileiros chegou a 6,3, bem além de uma média mundial contabilizada no ano 2000, que foi de 4,16. E a tendência observada é de crescimento: a média foi de 5,9 autores em 2004, de 6,4 em 2005 e de 6,5 em 2006. Segundo Sami-le, isso pode ser explicado pela adesão da comunidade científica brasileira ao trabalho em cooperação, assim como pode ser uma resposta dos pesquisado-res à cobrança para publicar mais – o compartilhamento maior da autoria atenderia a essa demanda.

A análise da teia de colaborações internas das 16 instituições brasileiras com maior produtividade científica revelou a formação de várias redes re-gionais. As instituições paulistas, como a USP, a mais produtiva de todas, a Uni-camp e a Unesp, formam claramente uma rede. A USP, por exemplo, pro-duziu 1.157 artigos em parceria com a Unicamp e 1.291 com a Unesp. Uma ex-ceção é a Unifesp, que se apresenta, se-gundo a autora, de forma mais isolada, ainda que compartilhe 730 artigos com a USP. Samile atribui o desempenho das instituições paulistas aos investi-mentos realizados em ciência no estado de São Paulo. Na Região Sul, a UFRGS também tende a isolar-se, enquanto as federais de Santa Catarina (UFSC) e do Paraná (UFPR) formam um grupo que tende a colaborar com a federal de São Carlos (UFSCar), no interior paulista. Outro grupo de parceiros é formado pelas federais do Rio de Janeiro (UFRJ), de Minas Gerais (UFMG) e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). No Nordeste, há colaborações frequentes entre as fe-derais do Ceará (UFCE) e de Pernam-buco (UFPE). Samile Vanz adverte que é preciso avançar em séries de dados mais extensas para tirar conclusões mais aprofundadas. Ela está engajada nessa tarefa. Seguirá analisando os da-dos sobre a colaboração na pesquisa brasileira em anos mais recentes. n

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34 n março DE 2010 n PESQUISA FAPESP 169

Em dezembro, o Centro Nacional para Recursos de Pes-quisa (National Center for Research Resources, NCRR), parte dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), sediado em Bethesda, cidade vizinha a Washington, capital dos Estados Unidos, comunicou que sete grupos de univer-sidades dos Estados Unidos receberão US$ 171 milhões nos próximos cinco anos para levar adiante seus projetos

de pesquisa. Seria algo corriqueiro, não fosse pelas pretensões e dificuldades envolvidas: essas instituições terão de fazer com que achados científicos se convertam em novos medicamentos, diagnósticos ou serviços de uso amplo. A dificuldade será mobi-lizar pesquisadores acadêmicos, médicos e outros profissionais da saúde, empresas e comunidades de usuários, que terão de trabalhar simultaneamente em torno de objetivos comuns.

Esses centros de pesquisa médica, sediados nos estados de Nova York, Illinois, Arkansas, Texas, Carolina do Sul e Flórida, são os mais novos integrantes do programa Clinical and Trans-lational Science Awards (CTSA), que reúne atualmente 11 mil pessoas – especialistas de instituições acadêmicas, hospitais, as-sociações profissionais, empresários e organizações comunitárias locais – em 46 centros de pesquisas médicas em 26 dos 50 estados norte-americanos. O CTSA representa um dos esforços mais re-centes dos NIH para promover a chamada pesquisa translacional, definida como o trabalho integrado de todos os interessados – dos inventores aos usuários finais – na passagem, ou translação, de descobertas científicas ao mercado consumidor.

Um dos resultados desse programa iniciado em 2006 é um dispositivo de liberação pressurizada de medicamentos dire-tamente do nariz para o cérebro, evitando os efeitos colaterais causados pelas altas concentrações de drogas administradas

integração>

Obra coletiva

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PESQUISA FAPESP 169 n março DE 2010 n 35

Pesquisadores, médicos, empresários e usuários se unem para acelerar aplicações de pesquisa médica

oralmente. Os pós-graduandos que cria-ram o dispositivo no Centro de Análise de Gene e Sequenciamento de DNA da Universidade de Washington ganharam US$ 50 mil de um fundo de inovação da universidade, licenciaram a tecnologia e abriram uma empresa para desenvolver o aplicador nasal de remédios. Outros resultados são mais sutis, como a redução do tempo de aprovação das propostas de testes clínicos de novos medicamentos de seis meses para 45 ou 30 dias, “desde que todos trabalhem juntos desde o início”, comenta Heng Xie, supervisor médico do NCRR. “O desafio mais difícil é en-corajar os cientistas a colaborarem em vez de competirem entre si”, disse An-thony Hayward, diretor da divisão para recursos de pesquisa clínica do NCRR. E como fazer os cientistas colaborarem? “Oferecendo financiamentos elevados, de US$ 4 milhões, às vezes US$ 10 milhões por ano, mostrando que os cientistas po-dem ir mais longe se trabalharem juntos e apoiando os objetivos deles.”

Definida como a construção conjunta de soluções para problemas que afligem grupos diferentes de pessoas, a pesquisa médica translacional implica o desenvol-vimento coletivo, não só a transferência,

de tecnologias que facilitem o tratamen-to ou a prevenção de doen ças comuns ou raras. Quanto mais di versificado for o grupo de participantes, melhor, porque os problemas podem ser antecipados e resolvidos conjuntamente, antes de se agravarem. A participação de líderes co-munitários e profissionais de saúde de hospitais locais, a que se ligam os grupos acadêmicos, tem sido valorizada como forma de identificar de que cuidados médicos as pessoas necessitam e de le-var os avanços das pesquisas de modo mais rápido. “Mais que dizer ‘queremos algo de você’, temos de perguntar ‘o que podemos fazer por você?’”, reconheceu Steven Reis, professor de medicina da Universidade de Pittsburg, em uma edi-ção recente da revista NCRR Reporter. Para levar adiante um levantamento sobre doenças cardíacas, ele procurou um diretor da Liga Urbana da Grande Pittsburg, uma organização não gover-namental que atende os moradores da região. Decidiram começar com exames médicos simples, de sangue e pressão ar-terial, que era o que os moradores mais queriam. Esse contato ajudou Reis a atrair os participantes de que precisava para seu estudo.

Carlos Fioravanti, de Bethesda

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36 n março DE 2010 n PESQUISA FAPESP 169

O s coordenadores do CTSA incen-tivam a visibilidade dos pesquisa-dores e dos trabalhos de que par-

ticipam. “Está vendo a videocâmera no computador do doutor Hayward?”, pergunta Xie, olhando para trás, em um dos momentos da entrevista em que se baseou esta reportagem. “Ele a usa bastante para se conectar com as pes-soas”, diz. “Se as pessoas realmente que-rem trabalhar juntas, a distância não é um grande problema.” Outra forma de vencer as barreiras institucionais, uma das metas do CTSA, é o Building Connections, uma das partes do site do CTSA (www.ctsaweb.org) que promove a interação entre os grupos de pesquisa, escolas de negócios, empresas, comu-nidades e o público em geral.

Outra peculiaridade do CTSA é que os coordenadores dos projetos de pes-quisas podem receber financiamentos, simultaneamente, de empresas farma-cêuticas. “Tem havido uma enorme separação entre empresas e centros médicos acadêmicos, mas eles têm de trabalhar mais próximos, por causa das exigências das agências reguladoras, cada vez mais complicadas”, observa Hayward, diretor da divisão para recur-sos de pesquisa clínica do NCRR. Outra justificativa para essas parcerias são os custos de desenvolvimento de novos

medicamentos ou produtos médicos, que têm aumentado e, segundo ele, “os centros acadêmicos não têm condições de bancar”. Os encontros com empre-sários, tanto quanto com os represen-tantes de comunidades, são constan-tes. O mais recente, em fevereiro, foi o CTSA Industry Forum, planejado para facilitar as colaborações entre governo, empresas, universidades e organizações não governamentais para acelerar a descoberta e desenvolvimento de me-dicamentos, dispositivos e diagnósticos médicos e para explorar novas oportu-nidades de parcerias. “Temos interfa-ces, obviamente evitando conflitos de interesses entre academia, governo e indústria”, diz Hayward. “As empresas querem produtos bem-sucedidos, mas não vamos descuidar da necessidade de os medicamentos serem seguros, nem queremos que o governo favoreça uma ou outra empresa. Mantemos a inde-pendência acadêmica. Os acordos esta-belecem padrões éticos elevados.”

O desejo de transformar grandes achados laboratoriais em produtos comerciais mobiliza pesquisadores também no Brasil e inspira cursos co-mo o A.C. Camargo Global Meeting of Translational Science, de 19 e 30 de abril, em São Paulo, sob a coordena-ção de Ricardo Brentani e Emmanuel

Dias. Esper Cavalheiro, professor de neurologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), rememora: “A separação entre o básico e o clínico já me incomodava muito quando instituí-mos a pós-graduação em neurologia da Unifesp, reservada aos médicos com título de especialista em neurologia”. Transformando a angústia em ação, no final dos anos 1980 ele conseguiu da Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (Ca-pes) a permissão para o curso de pós aceitar também quem não era médi-co – e receberia o título de doutor em neurociência para diferenciar dos estu-dantes médicos, que seriam doutores em neurologia. “Muitos nos seguiram e hoje a impossibilidade de agregar profissionais de outras áreas já não é um impedimento na pós-graduação nacional.”

S egundo ele, seu grupo de pesquisa, embora sem usar o termo “transla-cional”, sempre procurou ver como

o conhecimento que obtinha nos expe-rimentos com animais poderia ajudar a melhorar o tratamento da epilepsia em seres humanos. “É um típico caso de ca-minho de mão dupla. Além de discutir-mos tudo em conjunto, os clínicos que olham os pacientes mais de perto tra-

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akiko Yabuuchi trabalha com células-tronco na Faculdade de Medicina de Harvard

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zem novas perguntas”, ele diz. “E fomos mais longe ao criarmos já na década de 1980 a Associação Brasileira de Epilep-sia, para as pessoas com epilepsia, seus familiares e profissionais interessados, e em reuniões mensais transferimos para a sociedade os avanços na área que po-dem lhe interessar diretamente.” Poucos anos atrás, quando o grupo imaginou o Instituto Nacional de Neurociência Translacional, que ele coordena desde o início, “todo o grupo de pesquisadores envolvidos já estava, de uma forma ou de outra, trabalhando com esse aspecto translacional em suas pesquisas”.

“Ciência e tecnologia sempre anda-ram juntas, mas não realmente integra-das”, lembra ele. “Assim como em áreas do conhecimento, as ciências básicas da área biológica, por vários fatores históricos, nunca tiveram muita preo-cupação com a utilização prática dos re-sultados de seu trabalho.” Termos como “interdisciplinar” ou “multidisciplinar” tentaram aproximar os dois universos ao longo dos anos 1980 e 90. “Mas tam-

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novas doenças, de cientistas humanos e sociais”, comenta Cavalheiro.

Ele conta que participou de algu-mas reuniões de planejamento de um dos programas de pesquisa translacio-nal dos NIH. “Lá, com mais dinheiro, o projeto era muito claro e se dirigia a todos os grupos acadêmicos em saúde, com ou sem interação com empresas. Foi até criado um braço lateral dos NIH só para cuidar do programa. Tem um gerenciamento muito adequado, de forma que podemos acompanhar as conquistas de maneira muito cla-ra.” Por aqui, segundo ele, predomina a pesquisa inter ou multidisciplinar, em que cada pesquisador tem sua própria ideia e bate à porta de outro pesquisador para pedir ajuda. “Não adianta chamar o outro para ajudar em seu problema”, alerta Cavalheiro, que propõe uma visão convergente, em que todos participantes adotem a mesma pergunta (ver “A reconstrução do homem”, Pesquisa FAPESP nº 136). “O problema tem de ser de todos.” n

bém já faz tempo que não adianta só boa vontade, nem termos novos. A pró-pria política de estímulo às pesquisas não ajudava muito. A busca pura de aplicação para os resultados da ciência não dava muito ibope acadêmico. Era preciso ser mais diferenciado, buscar o conhecimento e a verdade, esse era o verdadeiro papel do acadêmico.”

A seu ver, as Iniciativas Nacionais de Inovação, das quais seu instituto faz parte, promove a integração de

especialistas de áreas diferentes para que, conjuntamente, produzam e apli-quem novos conhecimentos, gerando benefícios sociais e econômicos, além de acadêmicos. “Tínhamos de ir além da associação entre áreas básicas e clí-nicas da saúde, pois novos equipamen-tos médicos demandam engenheiros e cientistas de software; para novos me-dicamentos, precisamos de químicos e físicos; para estudos populacionais de saúde, de matemáticos e estatísticos; para os impactos sociais das chamadas

Frank McCormack, da Universidade de Cincinatti, participa de um projeto colaborativo para facilitar o tratamento de doenças pulmonares raras

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Algas amigas da luz: sem perder energia

> LABORATÓRIO MUNDO

Enquanto os físicos lutam parafazer computadores quânticos fun-cionarem em temperaturas muitobaixas, outros pesquisadores mos-tram que algas marinhas e bacté-rias fazem cálculos quânticos atemperaturas normais há bilhõesde anos (New Scientist). As evi-dências vêm de um estudo sobrealgas marinhas que exploram pro-cessos quânticos de transferênciade energia na fotossíntese semqualquer perda. A fotossíntesecomeça quando estruturas chama-das antenas capturam fótons. Naalga Chroomonas CCMP270 essasantenas têm uma estrutura comoito moléculas de pigmentos, cadauma delas capaz de absorver luzde diferentes partes do espectro.Daí a energia dos fótons viaja paraa célula onde é usada para fazercombustível químico. Segundo afísica clássica, haveria perdas nesse trajeto, mas não foi o queuma equipe da Universidade de Toronto, Canadá, descreveuna Nature. Agora a esperança é converter esses achadosem formas de aumentar a eficiência energética em célulassolares. Sem falar, claro, nos computadores quânticos.

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> Fuligem derreteneve do Himalaia

causa do acúmulo de gasescomo dióxido de carbono,mas também por causado excesso de fuligem quevem da Índia e da China,concluiu uma equipe do

As geleiras da cordilheirado Himalaia podem estardesaparecendo não só por

~_ .•.....•Himalaia: ecos da fumaça dos fogões da índia e da China

38 • MARÇO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 169

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> Variação genéticado envelhecimento

Laboratório NacionalLawrence Berkeley, EstadosUnidos. As partículasaerossóis contribuem com90% das mudanças no geloe na neve do Himalaia;desse total, 'Os resíduos daqueima de carbono, usadocomo combustível na formade carvão, por exemplo,respondem por 30%(Atmospheric Chemistryand Physics). Essasconclusões apontam paraum modo simples de detero derretimento das geleiras:como o dióxido de carbonopermanece inerte naatmosfera por 100 anose os resíduos de carbonopor apenas algumassemanas, reduzir a queimade carvão e de biomassa emfornos de baixa eficiênciaenergética pode ter umefeito imediato, evitandoque a neve derreta.

Depois de analisaremmais de 500 mil variaçõesdo genoma humanopróximas ao gene chamadoTere, pesquisadores daUniversidade de Leicester edo King's College London,em colaboração com gruposda Holanda, apresentaramno início de fevereiro,pela primeira vez, variantesgenéticas associadas aosmecanismos biológicosde envelhecimento quefavorecem o surgimento dedoenças degenerativas emseres humanos. De acordocom esse trabalho, detalhadona Nature Genetics, pessoascom uma dessas variaçõesgenéticas têm as pontas doscromossomos, ou telômeros,mais curtas, indicação de quetêm mais chance de adquirirdoenças cardiovascularescom a passagem dos anos."Algumas pessoas sãogeneticamente programadaspara envelhecer maisrapidamente", disseTim Spector, do King'sCollege London e umdos coordenadores dessetrabalho, em um comunicadoà imprensa. O efeito é maisclaro em quem tem essavariação do gene Terc, quedetermina um encurtamentodo telômero equivalentea três ou quatro anos deenvelhecimento. Pessoasgeneticamente maissuscetíveis podem envelhecermais depressa que assubmetidas a fatores danososaos telômeros, comotabagismo e obesidade.

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> Matemáticoscontra o crime

Duas espécies de bor-boletas de espécies di-ferentes, a Heliconiusmelpomene e a Helico-nius erato, embora ge-neticamente distantesa ponto de não cruza-rem entre si, apre-sentam as mesmasmanchas vermelhase amarelas nas asasnegras. Como duas es-pécies geneticamentedistantes podem terevoluído do mesmomodo a ponto de umamimetizar a outra?Essa pergunta temintrigado muita gentee até mesmo CharlesDarwin, há muito tem-po. Agora uma equipeda Universidade deCambridge, Inglaterra,verificou que apenasum ou dois genes po-dem ser os responsá-

veis pelas manchas que afugentam pássaros por indicar queas borboletas contêm toxinas e provavelmente são de gostoruim. Os resultados, descritos em dois trabalhos publicadosna mesma edição de fevereiro da PLoS Genetics, confirmaramque os mesmos genes estavam envolvidos na constituiçãodas manchas, algo antes considerado improvável, e atestama flexibilidade dos artifícios usados ao longo da evolução emnome da sobrevivência.

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Ieffrey Brantingham não éum detetive. Nem policial.Com sua equipe daUniversidade da Califórnia,em Los Angeles, porém,tem calculado osmovimentos de criminosose vítimas do sul daCalifórnia que podemgerar oportunidades paraos crimes. As equaçõesque criaram estãoajudando a polícia, pormostrar como se formamos lugares mais propíciosa crimes - no fundo, ummecanismo matemáticosimilar ao que explica aformação e o espalhamentode moléculas (NewScientist,23 fevereiro). Essaabordagem, descritana revista PNAS, examinadois tipos desses lugares -ou hotspots. O primeiro,chamado supercrítico,emerge quando os picosde criminalidade atingemcerto limite e criamuma onda local maisintensa de criminalidade.O outro, subcrítico,ocorre quando um fatorespecífico, como umdistribuidor de drogas,intensifica os crimes.Um policiamento maisrigoroso pode eliminaros pontos subcríticos,mas apenas deslocaros supercríticos.

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Heliconius melpomene: mimetismo perfeito

> Proteína podedeter malária

osCientistas da Universidadede Washington emSt. Louis, Estados Unidos,identificaram uma proteínaproduzida pelo protozoáriocausador da malária quese mostrou essencial paraa conquista das célulasvermelh~s humanas e,eles acreditam, poderáse constituir em um novoalvo terapêutico, desdeque possa ser bloqueada."O parasita da malária

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ascontrola e remodelaas células vermelhas dosangue, secretando centenasde proteínas depois que seinstala lá dentro", disse DanGoldberd, chefe da equipeda universidade que liderou

esse trabalho, em umcomunicado da agênciaEurekalert, a respeitodo estudo publicado emfevereiro na revista Nature."Mas sem essa proteína,a plasmepsina V, as outrasproteínas do parasita nãopodem ser produzidas eassim o processo infecciosopara." Em testes in vitro,os parasitas em que essaproteína foi desativadaforam incapazes deproduzir as proteínasque lhes permitiriamse apossar do controledas células vermelhasdo sangue humano.

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Isto não é arte, mas uma forma de reduzir a criminalidade

PESQUISA fAPESP 169 • MARÇO DE 2010 • 39

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> LABORATÓRIO BRASIL

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o câncer de mama, o que maiscausa mortes entre mulheres,tem vencido batalhas contra aciência. Para reverter essa ten-dência, uma equipe coordenadapela bioquímica Giseli Klassen,da Universidade Federal do Pa-raná, busca caracterizar geneti-camente tumores de brasileiras.O grupo, que inclui também pes-quisadores do Instituto Ludwiqde Pesquisa sobre o Câncer e daUniversidade Northwestern, nosEstados Unidos, mostrou que aregulação da atividade de certosgenes está associada à tendênciade tumores causarem metástasee se tornarem letais (BMC Can-

cer). Trata-se de padrões de meti-lação, etiquetas moleculares quefuncionam como interruptoresdos genes. O trabalho analisou

linhagens celulares do banco de células do Instituto Ludwig e amostras congeladas de 69tumores de pacientes do Hospital Nossa Senhora das Graças, em Curitiba, e indica hipermeti-lação em 14,5% e 54%, respectivamente, de duas regiões ligadas ao funcionamento do geneCXCL12,e do gene ESR1em 41% dos tumores analisados. Além disso, os padrões de metilaçãodesses dois genes estão associados, o que aumenta seu potencial para diagnóstico antes que ossintomas apareçam. Por revelarem mecanismos moleculares dos tumores, os achados podemajudar também na prevenção e no tratamento do câncer de mama no Brasil.

> Obesidadede risco

Uma fita métrica em voltada barriga está longe deser a única maneira de medira obesidade. Pelo menos otipo de obesidade que põe avida em risco por acidentescardiovasculares, comomostra um trabalhodo Instituto do Coração(InCor) da Faculdade deMedicina da Universidadede São Paulo (Atherosclerosis).A equipe usou tomografiacomputadorizada paradetectar calcificação e placasnas artérias - causadoras da

doença arterial coronariana- e medir a gordura em125 pacientes. O importantefoi distinguir a gorduraabdominal da visceral,que fica dentro do abdômene secreta substâncias queaumentam sua participaçãoem doenças associadas àobesidade como o diabetes -e a hipertensão. O estudoconfirmou que a gorduravisceral está fortementeassociada à doençacoronariana, e não detectourelação entre as medidastradicionais - que avaliama gordura como um todo- e depósitos nas artérias.

40 • MARÇO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 169

> Arquitetasda floresta

Uma fileira densa de saúvassobe e desce o tronco deuma árvore e forma umaestrada no chão até aentrada do formigueiro.Entre folhas, flores, pedaçosde frutos e sementes, as quevoltam para o ninho levamnas costas cargas muitasvezes bem maiores do que opróprio corpo e do dia paraa noite podem desnudaruma planta. Um estudocoordenado por Inara Leal,da Universidade Federalde Pernambuco, foi alémdas plantas saqueadas eanalisou o efeito das saúvasna estrutura da floresta(Oecologia). O grupoverificou que as saúvas estãoentre os poucos organismosbeneficiados quandoáreas de Mata Atlânticasão transformadas emfragmentos isolados.

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Nessas áreas, as formigasabrem grandes clareirassobre os ninhos, permitindoque o dobro da luz chegueao chão, se comparadoa áreas mais distantes deninhos. Ao longo de umano, a equipe percebeu quepoucas espécies de plantascaracterísticas de florestasmaduras conseguemgerminar e sobreviver commais luz. Longe da açãodevastadora das formigas, adensidade de plantas jovensé quase três vezes maior,com o dobro da riqueza emnúmero de espécies e commais espécies tolerantesà sombra. As saúvasimpedem a regeneraçãoe o amadurecimentoda floresta.

> Cidadesdo barulho

Motores que aceleram nasubida, buzinas, pessoasque conversam aos bradosem mesas de bar. As fontesde barulho são muitase intensas nas cidades, maso problema não recebe adevida atenção: segundoa Organização Mundial daSaúde, ruído em excessopode causar hipertensão,diabetes, alterações decomportamento edepressão. Como não seresolve um problema semconhecê-Io, os engenheirosambientais SamuelBarsanelli Costa e RobertoWagner Lourenço, daUniversidade EstadualPaulista (Unesp) emSorocaba, acabam de proporum método que analisaa distribuição no tempoe no espaço das mediçõesacústicas para mapearos níveis de ruído na zonacentral dessa cidade do

Usar bicicletas comomeio de transporte podeser uma excelente formade integrar uma rotinade exercício ao dia a dia,além de contribuir parareduzir a poluição do ar.Pode representar tam-bém um risco importanteà vida. Por isso, enquantoprefeituras implementammedidas para incentivar ouso de bicicletas, como osbicicletários em estaçõesde metrô paulistanas, éimportante pensar em co-mo aumentar a segurançados ciclistas no trânsito.Um estudo coordena-do pelo epidemiologistaGiancarlo Bacchieri, daUniversidade Federal dePelotas, no Rio Grande doSul, investigou o que estápor trás dos acidentes envolvendo ciclistas em Pelotas. Nessa cidade gaúcha de porte médio,todos os dias cerca de 18 mil pessoas vão trabalhar de bicicleta e, a cada ano, por volta deuma em cada 10 delas sofre um acidente. Os resultados, em processo de publicação na revis-ta Accident Ana/ysis and Prevention, mostram que educar o ciclista e equipar as bicicletascom itens de segurança pode não ser o melhor caminho. Melhorar as condições das ruas e asinalização, criar ciclovias e organizar o tráfego são medidas essenciais para que qualquercidade se torne mais adequada ao trânsito não motorizado.

interior de São Paulo(Environmental Monitoringand Assessment). Eles viramque só em quatro dos 32pontos analisados o barulhonão excedeu o permitidopela legislação brasileirae que caminhões, ônibus emotocicletas são os maioresvilões. Os pesquisadoresadvogam o uso do métodocomo ferramenta essencialno planejamento urbano.

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Sem motor: cuidado com o trânsito

> Dor sobcontrole

Thiago Cunha agoraelucidou os mecanismosbioquímicos que permitemà morfina ter tambémefeito em dores localizadas.Quando aciona receptoresem neurônios periféricosespecializados em detectardor, a morfina desencadeiauma cascata de sinalizaçãobioquímica que acaba porbloquear a sensibilizaçãodesses neurônios eaplacar dores causadaspor inflamação. No futuro,drogas que reproduzamesse mecanismo analgésicoda morfina podem vira ser um recurso importantepara aliviar os sintomasdolorosos de reaçõesinflamatórias, indica oartigo publicado na PNAS.

A morfina, derivada doópio, é o analgésico maisprescrito em casos de doresintensas ou crônicas, mastem má fama pelos efeitoscolaterais, inclusive porcausar dependência comuso desregrado. Há 30 anosSérgio Ferreira, daUniversidade de São Paulo(USP) em Ribeirão Preto,descobriu os efeitosanalgésicos periféricosda morfina, abrindo apossibilidade de eliminar osefeitos indesejados da droga.Com a colaboração deoutros pesquisadores daUSP e da UniversidadeFederal de Minas Gerais,

PESQUISA FAPESP 169 • MARÇO DE 2010 • 41

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PESQUISA FAPESP 169 n maRçO De 2010 n 43

Neurologia

Carlos Fioravanti

Esper Cavalheiro suava, fazendo ginástica à noite em uma academia, ao lado de um treinador que não pa-rava de perguntar sobre o funcionamento do cérebro, dos neurônios e das pesquisas que ele coordenava na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Dian-te da curiosidade sem fim, gentilmente Cavalheiro convidou: “Por que não vem fazer pós-graduação

comigo?”. Ricardo Arida, o perguntador, começou a pós nesse mesmo ano, 1992. De lá para cá, unindo sua formação em educação física com o que aprendeu no mestrado e no doutorado, ele fez ou acompanhou estudos em animais de laboratório e com seres humanos que agora permitem aos pesquisadores dessa área recomendar a prática de exercícios físicos regulares de média intensidade – como caminhar ou correr – para ajudar a conter a epilepsia, distúrbio neurológi-co caracterizado por intensas descargas elétricas no cérebro, com o qual quase 4 milhões de pessoas de todas as idades no Brasil, o equivalente a 2% da população, têm de conviver.

Os benefícios da atividade física podem ser ampliados por meio de uma segunda terapia complementar: o consumo de combinações de ácidos graxos poliinsaturados do tipo ôme-ga-3, encontrado em nozes e peixes e adotado como suple-mento alimentar para fortalecer o coração. Fúlvio Scorza, do grupo de Cavalheiro, em colaboração com colegas de outras universidades, tem mostrado que doses diárias de um a três gramas de ômega-3 podem proteger ou mesmo estimular a formação de neurônios do hipocampo, uma área do córtex cerebral associada ao aprendizado e à aquisição da memória, danificada em algumas formas de epilepsia. Em experimen-tos com animais e seres humanos, o ômega-3, tanto quanto os exercícios físicos, reduziu a intensidade e a frequência das crises epilépticas, as súbitas contrações musculares que representam a face mais visível da epilepsia.

Arida entrou nessa linha de trabalho em 1998. Foi quan-do, ainda no doutorado, ele verificou que ratos habituados a correr em uma esteira apresentavam 50% menos crises epilépticas induzidas, em comparação com os sedentários. Agora, como professor da Unifesp, ele orientou um estudo de Fabio Camilo com 17 pessoas com epilepsia e 21 saudá-

veis, publicado em dezembro de 2009 na revista Arquivos de Neuro psiquiatria, mostrando que mesmo exercícios físi-cos intensos podem ser benéficos, aju-dando a conter as crises. “A indicação de exercício físico para tratar epilepsia vai contra crenças antigas”, diz Cavalheiro, lembrando que as pessoas com epile-psia normalmente são aconselhadas a se manterem pouco ativas e reclusas, sob o risco de agravarem as crises.

A atividade física pode aplacar os efeitos sociais e psicológicos gerados pelas crises. Quem tem epilepsia ten-de a se isolar do convívio social, por temer que o surgimento de crises em público possa criar situações embara-çosas para quem não convive com esse problema. O isolamento, por sua vez, pode gerar depressão ou ansiedade. Há limites, porém, para a atividade física. “Quem tem epilepsia não vai fazer alpi-nismo, nem natação, porque uma crise poderia ser perigosa nessas situações”,

Prática de exercícios físicos e consumo de ômega-3 emergem como tratamentos complementares da epilepsia

Tremores sob Controle

>ciência

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44 n maRçO De 2010 n PESQUISA FAPESP 169

Há pelo menos cinco anos uma sé-rie de testes em pessoas tem mostrado que o ômega-3 pode reduzir os riscos de crises epilépticas e de morte súbita. Alguns trabalhos mostraram benefícios temporários, segundo Scorza, “talvez porque a dose era baixa”, de um gra-ma de ômega-3 por dia. Doses maiores têm levado a resultados mais claros e prolongados. Marly Albuquerque, da Universidade de Mogi das Cruzes (UMC), em conjunto com a equipe da Unifesp, coordenou um estudo em que nove pessoas com epilepsia nas quais os medicamentos habituais faziam pouco efeito tomaram uma dose de três gramas diárias de ômega-3 e mais a medicação antiepiléptica durante seis meses. Marly observou uma redução de 75% na frequência das crises – de diárias, passaram a semanais. “O que mais chamou a atenção foram os ga-nhos de qualidade de vida, com mais socialização”, afirmou.

Como já existe uma dezena de me-dicamentos eficazes contra epilepsia, aos quais se somam agora essas terapias complementares, o tratamento deixou de ser o mais difícil. “Por incrível que pareça, o mais difícil é diagnosticar a epilepsia e evitar que as pessoas tomem medicamentos errados por muitos anos”, diz Cavalheiro, coordenador- -geral da Lasse. A epilepsia pode esca-par mesmo de especialistas porque se apresenta de muitas formas diferen-tes na infância, na vida adulta ou na

alerta Arida, “mas pode participar de outras atividades esportivas e voltar a ter uma vida normal, mesmo que não possa parar com a medicação que evi-ta o surgimento das crises”. As pessoas com epilepsia talvez recebam bem essas possibilidades. Um levantamento que ele coordenou em 2003 mostrou que as pessoas com epilepsia acreditavam que a prática de esportes poderia favorecer o tratamento. Dos 100 entrevistados (58 homens e 42 mulheres), 51 já prati-cavam alguma atividade física, embora não regularmente, 85 não acreditavam que praticar esportes poderia precipitar as crises, 15 haviam sido proibidos pe-los médicos de fazer atividade física e 14 foram alertados por parentes e amigos para ficarem longe de pistas de corridas e quadras de esportes. “Vale a pena pla-nejar um programa de exercícios físicos específicos para pessoas com epilepsia”, propõe Arida.

Os movimentos que fazem suar re-gulam a produção de neurotransmis-sores – os mensageiros químicos entre os neurônios – e de hormônios, desse modo reduzindo as crises epilépticas, de acordo com um estudo de Arida e ou-tros pesquisadores da Unifesp, da Uni-versidade de São Paulo (USP) e da Uni-versidade de Mogi das Cruzes (UMC) publicado em novembro de 2009 na re-vista Epilepsy & Behavior. Segundo Ari-da, um experimento recém-concluído na Unifesp indicou que o exercício físico voluntário ou forçado – além do efeito mais conhecido, o estímulo à liberação de substâncias chamadas endorfinas, que causam uma sensação de bem-estar – dobrou a quantidade e a extensão dos braços dos neurônios do hipocampo de ratos, assim facilitando a comunicação entre os neurônios.

O ômega-3 parece proteger as células nervosas por pelo menos dois outros meios. O

primeiro é estimulando a produção de parvalbumina, uma proteína que age em conjunto com o neurotransmissor ácido gama-aminobutírico (Gaba), que inibe a atividade elétrica dos neurônios. O segundo é ligando-se com os íons (partículas atômicas eletricamente car-regadas) de cálcio. “Com a crise epilép-tica, a membrana dos neurônios se tor-na mais permeável e deixa entrar mais cálcio iônico, que, em excesso, pode ser

tóxico para as células”, comenta Scor-za, um dos organizadores da 4ª Escola Latino-Americana de Verão em Epi-lepsia (Lasse), que reuniu cerca de 100 especialistas de 1o a 10 de fevereiro em Guarulhos, na Grande São Paulo.

Equilibrando a atividade elétrica dos neurônios, o ômega-3 deve con-tribuir para reduzir também a morte súbita nas epilepsias. A equipe da Uni-fesp investiga há anos esse tipo de mor-te prematura, de duas a três vezes mais comum em pessoas com epilepsia do que em quem não tem epilepsia. Uma das explicações é que o desequilíbrio elétrico dos neurônios do cérebro pos-sa ampliar-se e desregular o funciona-mento do coração. Outra possibilidade, que Scorza, Cavalheiro e outros pesqui-sadores da Unifesp apresentaram em janeiro na Medical Hypotheses, é que a falta de vitamina D possa contribuir para as arritmias cardíacas, a epilepsia e a morte súbita. Nesse caso, a saída é simples: basta tomar mais sol, que in-tensifica a produção de vitamina D pelo organismo. A vitamina D, eles sugerem, pode funcionar também para regulari-zar a atividade elétrica dos neurônios.

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1. Efeito do exercício físico na plasticidade cerebral de ratos em desenvolvimento - nº 2004/10820-62. o papel do ômega-3 no modelo de epilepsia induzido pela pilocarpina - nº 2007/00763-3

modAlIdAdE

auxílio Regular a Projeto de Pesquisa

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1. RicaRdo MaRio aRida – Unifesp 2. Fúlvio alexandRe ScoRza – Unifesp

InvEStImEnto

1. R$ 91.813,39 (FaPeSP)2. R$ 48.103,59 (FaPeSP)

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PESQUISA FAPESP 169 n maRçO De 2010 n 45

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gravura a partir de um desenho de Paul richer,

de 1885

velhice. Em bebês e crianças, pode se expressar apenas por meio de piscadas fortes dos olhos ou contrações de um a dois segundos dos músculos de uma das mãos. “Muitas vezes os médicos não conseguem diagnosticar crises em bebês por falta de equipamento e de experiência”, disse Perrine Plouin, do Hospital Saint Vincent de Paul, de Paris, em uma das apresentações do Lasse. Só a partir dos 7 anos de idade é que as crianças apresentam crises epilépticas semelhantes às dos adul-tos, com movimentos involuntários, rápidos e arrítmicos de braços, pernas, pescoço e ombros.

P ara complicar, as crises podem resultar de estímulos variados. Em 16 de dezembro de 1997, ce-

nas de vermelho intenso e vibrante no desenho animado Pokémon dispararam crises epilépticas em 685 crianças no Japão. Plouin contou de uma menina de menos de 1 ano que tinha crises, ex-pressas apenas por movimentos irregu-lares dos olhos, ao entrar na banheira com água a uma temperatura próxima a 37º Celsius. Elza Yacubian, da Unifesp, descreveu outra forma rara de epilepsia, acionada pela leitura sob tensão, como a de textos em uma língua desconheci-da, e visível apenas pela contração dos músculos da mandíbula.

As crises são raras – e a epilepsia, mais difícil de detectar – entre idosos, que geralmente vivem sozinhos ou estão sozinhos quando a crise chega. Carlos Guerreiro, professor da Uni-versidade Estadual de Campinas (Uni-camp), contou que os médicos podem suspeitar de epilepsia em pessoas idosas a partir do que elas próprias relatam sobre o que sentiram antes das crises, como tontura, medo, dor muscular ou suor intenso, ou depois, como perda de memória, confusão mental e dores musculares. Outra complicação é que a epilepsia, entre idosos, pode coexistir com doenças cardiovasculares, doença renal crônica, diabetes ou demência,

e por vezes os medicamentos usados contra epilepsia podem reduzir o efeito, por exemplo, de anti-hipertensivos. Em razão do contínuo envelhecimento da população e da perspectiva de amplia-ção da expectativa de vida dos atuais 72,7 anos para mais de 80 em 2030, ele concluiu, “vamos ter cada vez mais epilepsia entre idosos”.

As origens da epilepsia também são variadas – defeitos em genes, cromosso-mos anormais, distúrbios metabólicos e tumores ou lesões no cérebro. “No sistema nervoso central há um jogo molecular complexo”, afirmou Marina Bentivoglio, da Universidade de Vero-na, Itália. Por causa da interação entre neurotransmissores, hormônios e pro-teínas que estimulam continuamente a proliferação, migração e diferenciação das células nervosas, “esse ambiente es-tá mudando o tempo todo”, disse ela.

Outra possibilidade: a epilepsia, a doença de Alzheimer, a esclerose múltipla e outros distúrbios neuroló-gicos podem resultar de inflamações nas células da glia, que envolvem os neurônios. Dez vezes mais numerosas

que os neurônios, as células da glia passaram décadas sob a ideia de que serviam apenas como sustentação e coesão dos tecidos do sistema nervoso central. Agora se mostram relevantes para a transmissão de estímulos elé-tricos, facilitando as conexões entre os neurônios e para o combate a infecções e lesões no sistema nervoso. Hoje está claro que lesões nas células da glia po-dem atrapalhar o funcionamento dos neurônios ou levá-los à morte. “As glias são as células do momento”, afirmou Scorza, diante de indicações de que o exercício físico e o ômega-3 parecem ser capazes de manter as células da glia funcionando harmoniosamente. n

> Artigos científicos

1. CAMILO, F. et al. Avaliação do esforço físico intenso em indivíduos com epilepsia do lobo temporal. Arquivos de Neuro­psiquiatria. 67(4), p.1.007-12. 2009.2. SCORZA, F. A. et al. Benefits of sunlight: vitamin D deficiency might increase the risk of sudden unexpected death in epilepsy. Medical Hypotheses. 74(1), p. 158-61. 2010.

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46 n março DE 2010 n PESQUISA FAPESP 169

Uma avó clássica, Dona Benta, e seu netinho: prazer de nutrir a prole

filhoO

olhar das mães é poderoso. Descobre segredos, des-cortina o futuro, fortalece, afugenta fantasmas. Nem sempre, porém, identifica quando os filhos estão um pouco acima do peso. Em um estudo feito em Vitória, capital do Espírito Santo, com 1.282 crianças de 7 a 10

anos, apenas 10% das respectivas mães reconheceram que os filhos com sobrepeso ou obesidade estavam realmente pesando acima do normal para a altura e a idade.

Em outro estudo, essa equipe da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) verificou que 14% desse mesmo gru-po de crianças apresentava pressão arterial acima do normal. “São dados preocupantes”, comenta Maria del Carmen Molina, professora da Ufes e coordenadora desses estudos. “Excesso de peso e hipertensão são dois fatores de risco para doenças cardiovasculares, a principal causa de morte na população brasileira.” Os pesquisadores esperavam que 20% das crianças estivessem com peso acima do recomendado (encontraram 23,3% com sobrepeso ou obesidade) e no máximo 10% com pressão arterial elevada.

Para avaliar esse risco futuro de enfarte ou de acidente vas-cular cerebral, os pesquisadores da Ufes não mediram apenas o peso, a altura e a pressão arterial de crianças de 7 a 10 anos de 29 escolas públicas e seis particulares de Vitória. Também avaliaram a alimentação, perguntando com que frequência con-sumiam frutas, sucos, legumes, leite, feijão, doces, salgadinhos, refrigerante, batata e maionese, e se tinham o hábito de fazer a primeira refeição do dia, o café da manhã. O que viram é que a garotada não está se alimentando tão bem quando as mães

mães nem sempre reconhecem quando suas crianças estão acima do peso

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imaginavam. Viram também que o lazer, principalmente o sedentário, é intenso, com pelo menos três horas em frente à televisão ou no video­game, raramente saindo para brincar de pega-pega, jogar bola ou andar de bicicleta.

Examinando essas quatro variá-veis (excesso de peso, hipertensão, ali-mentação de baixa qualidade e quatro horas ou mais de lazer sedentário diá-rio), os pesquisadores verificaram que 20% das crianças apresentavam três fatores de risco para doenças cardio-vasculares, 34% tinham dois fatores, 27% apenas um fator de risco e 12% não apresentavam nenhum fator de risco, de acordo com o trabalho da equipe da Ufes, em conjunto com a Universidade Autônoma de Madri, em fase de publicação.

O estado de saúde dos filhos pode refletir o das mães. Em um levanta-mento com 14.914 crianças brasilei-ras com menos de 10 anos publicado em 1996 na Revista de Saúde Pública, Elyne Engstrom, da Secretaria Esta-dual de Saúde do Rio de Janeiro, e

Luiz Anjos, da Escola Nacional de Saúde Pública,verificaram que crian-ças com sobrepeso tinham mães tam-bém com sobrepeso. Um estudo com 800 pais e mães de 439 estudantes realizado na Holanda chegou a resul-tados similares: 75% das mães e 77% dos pais de crianças com sobrepeso disseram que o filho ou filho estava com peso normal. Nessa pesquisa, publicada em janeiro na revista Acta Paediatrica, emergiu também uma relação direta entre o sobrepeso dos pais e o dos filhos.

Bebês prematuros - Agora o estudo em Vitória revela uma associação en-tre a escolaridade das mães e o risco de doença cardiovascular dos filhos: quanto mais anos de estudo das mães, melhor tende a ser a alimentação e portanto o peso, mais normal a pres-são arterial e mais diversificada as atividades físicas dos filhos. “Verifi-camos também que a hipertensão é mais comum em crianças prematu-ras, que nascem antes de 37 semanas”, disse Maria del Carmen. “O desenvol-

> Artigo científico

MOLINA, M.C. et al. Correspondência entre o estado nutricional de crianças e a percepção materna: um estudo populacio-nal. Cadernos de Saúde Pública. 25(10):2.285-90. Out. 2009.

vimento de doenças crônicas poderia ser uma das sequelas de nascer antes do tempo normal e com peso entre 700 gramas e 1 quilograma (kg), em vez de no mínimo 2,5 kg.”

Os resultados desses estudos não circularam apenas por meio de revistas científicas especializadas. “Mandamos carta para cada família informando que a criança tinha apre-sentado pressão arterial elevada e su-gerimos que procurassem um posto de saúde ou um médico para confir-mar o diagnóstico”, informou Maria del Carmen. “Comunicamos também à Secretaria de Saúde, cujos direto-res e técnicos começaram a perceber que a hipertensão, antes considerada doença de adulto, pode ser também um problema de crianças. A primeira providência foi comprar medidores de pressão adequados para crianças e enviar aos postos de saúde.”

A responsabilidade por essa situa-ção não é só da família – ou das mães. “Nas escolas que atendem a população de renda mais baixa”, observou Maria del Carmen, “mesmo com cardápio padronizado, as merendeiras colocam muito mais comida do que deveriam para as crianças, porque acham que precisam. Mesmo com cardápio pa-dronizado, o valor calórico das refei-ções oferecidas às crianças às vezes era o dobro do que deveria ser”. n

Carlos Fioravanti

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Sono alerta: Pleurodema diplolistris em seu esconderijo de estiagem

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PESQUISA FAPESP 169 n março de 2010 n 49

Zoologia

Na enxurrada seca sapos da caatinga têm adaptações fisiológicas para sobreviver aos meses sem chuva

do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) de Fisiologia Comparada, ambos com financiamento da FAPESP. “Na estivação, a inatividade acontece quando o ambiente não favorece”, explica Carvalho, “quando a temperatura está alta, o metabolismo dos animais cos­tuma ficar mais rápido, e não o contrário”. Em busca de reunir o conhecimento sobre aspectos diversos – como a atividade dos genes, os efeitos nos músculos e o que se vê no registro fóssil – em animais diferentes – de es­ponjas a mamíferos –, os dois pesquisadores editaram o livro Aestivation: molecular and physiological aspects, com autores de vários países, publicado este ano pela editora internacional Springer. “A síntese de cada capítulo pode nos ajudar a traçar quais são os mecanismos comuns a grupos diferentes”, diz Navas.

Mesmo com essa reunião de trabalhos, ainda não há um consenso que defina a estivação em termos ecológicos e fisiológicos. Talvez nunca haja, visto que cada organismo adota um conjunto próprio de soluções para as dificulda­des impostas pelo ambiente. O caso dos anfíbios, incluindo resultados da pesquisa paulista, está exposto no capítulo do livro escrito por Carvalho, Navas e Isabel Cristina Pe­reira, cujo mestrado foi orientado por ambos. Eles verifica­ram que Pleurodema não entra num estado de torpor tão pronunciado quanto espécies estudadas em outros países: esses sapos ficam enterrados na areia de olhos abertos e, quando encontrados, saem pulando de imediato. “É um estado de depressão fisiológica moderado”, define Car­valho. Além disso, o grupo liderado por Carlos Jared, do Instituto Butantan, já observara que esse anfíbio da Caa­tinga não forma casulos. Em um mês de preparação para

Maria Guimarães

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Quando a chuva desaba no sertão potiguar, a pai­sagem se modifica subitamente. De um instante a outro rios se formam, lagoas se enchem e do chão brotam centenas de sapos. É assim pró­ximo a Angicos, no centro do Rio Grande do Norte. Ali os sapos Pleurodema diplolistris pas­sam os 10 ou 11 meses anuais de seca enterrados

na areia, de onde os machos já emergem cantando em uníssono, como uma enorme sirene, e logo saltam para a lagoa mais próxima. Atraídas pela cantoria, as fêmeas escolhem seus pares e liberam dezenas de óvulos que, depois de fecundados, são envoltos num muco seme­lhante a clara de ovo que o macho bate em neve. Em um ou no máximo dois meses, quando as chuvas cessam e os rios desaparecem como por um passe de mágica, os sapinhos recém­nascidos precisam estar completamente formados e prontos para se enterrarem na areia. Entender como esses anfíbios resistem a tanto tempo sem água e sem alimento tem sido um dos enigmas explorados pelos fisiologistas Carlos Navas, da Universidade de São Paulo (USP), e José Eduardo Carvalho, do campus de Diadema da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Durante todo o período em que não chove os Pleu-rodema se mantêm enterrados e sem comer, em estiva­ção – o correspondente no verão à hibernação, em que animais passam o inverno inativos. Entender os processos fisiológicos que tornam esse feito possível é o ponto de encontro dos projetos coordenados pelos dois pesqui­sadores: o de Navas, que une fisiologia e conservação no contexto de mudanças do clima, e o de Carvalho, sobre fisiologia comparada de répteis e anfíbios, no âmbito

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50 n março de 2010 n PESQUISA FAPESP 169

a seca, o sapo australiano Neobatrachus aquilonius secreta 45 camadas de pele que formam um invólucro como uma massa mil­folhas; Scaphiopus couchii, de desertos norte­americanos, demora cerca de quatro horas para sair da dor­mência, quando perturbado.

Fisiologia - Durante a estiagem o es­tômago dos Pleurodema está vazio, o intestino atrofiado e massas de gordura formam 12% do peso. O ovário das fê­meas está cheio, pronto para liberar os óvulos assim que chova. Isabel levou alguns desses animais ao laborató­rio para mensurar o uso de oxigênio, medida que indica gasto de energia, e verificou que durante a estação seca o consumo em repouso cai pela metade, o que indica uma restrição das funções do organismo. “São como válvulas me­tabólicas que se fecham”, explica Navas. Mas, quando a pesquisadora forçava os sapos a saltarem, o consumo de oxigê­nio não variava conforme a umidade, deixando claro que eles rapidamente voltam a ligar todas as válvulas.

Para saber quais vias metabólicas se mantêm ativas e quais são desligadas, o grupo examinou a atividade de diver­sas enzimas essenciais no metabolismo.

Constataram uma queda na atividade das vias metabólicas dependentes de oxigênio – não porque o gás estivesse em falta, mas para poupar energia. Du­rante a seca, o metabolismo de fato fica reduzido no fígado e nos músculos das patas de trás. Uma baixa concentração de proteínas no coração sugere que esse órgão também fica menos ativo duran­te a estivação. As patas, ao contrário, mantêm teores proteicos normais. É o

que parece permitir aos sapos saírem pulando prontamente em qualquer momento de um período de inativi­dade que pode chegar a dois anos, en­quanto uma pessoa que passe um mês de cama fica com atrofia muscular e tem de reaprender o uso das pernas.

Carlos Jared e Marta Antoniazzi, do Instituto Butantan, também buscam acrescentar peças ao quebra­cabeça da Caatinga por meio de estudos de história natural e morfologia. Analisando a pele de Pleurodema ao microscópio eletrôni­co de varredura, eles estão vendo que a densidade de vasos sanguíneos na pele é maior durante a seca. Ainda falta ter­minar as análises para ter uma quantifi­cação completa, mas por enquanto eles acreditam que seja a forma de manter uma eficiência maior de trocas gasosas e absorção de água. “A pele desses sapos é mais espessa do que nas outras espécies”, explica Jared, “por isso deve ser necessá­ria essa maior vascularização”.

Entender a fisiologia e a morfologia desses animais requer ciência de ponta, mas de pouco adianta se não for feito o trabalho mais básico de observar como vivem os animais. Isabel, por exemplo, observou que ao fim de cada noite de namoro os sapos buscam comer e em

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1. Effects of global climate change of the brazilian fauna: a conservation physiology approach - nº 2008/57687-02. Instituto Nacional de Pesquisas em Fisiologia Comparada - nº 2008/57712-4

modAlIdAdE

1. projeto Temático – programa fapesp de pesquisa sobre mudanças climáticas Globais2. projeto Temático

Co or dE nA dorES

Carlos arturo Navas IaNNINI – IB/USP augusto shINya abe – unesp-rio claro

InvEStImEnto

1. r$ 1.007.071,662. r$ 200.000,00

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Rio subterrâneo: quando o leito seca, anfíbios buscam umidade enterrados na areia

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PESQUISA FAPESP 169 n março de 2010 n 51

seguida voltam a se enterrar na areia. “Eu seguia cada um deles noite adentro, para ver aonde iam”, conta. Mas não podia piscar: a pele manchada dos Pleurodema os torna quase invisíveis na areia e em coisa de 30 segundos eles desaparecem da superfície. No dia se­guinte voltam a sair do chão, até que as chuvas cessem.

Por enquanto, não se sabe onde esti­va a maior parte das cerca de 40 espécies de anfíbios que habitam a Caatinga e se lançam às centenas numa cantoria e reprodução desenfreadas nas lagoas recém­formadas. Jared e Marta têm tido um papel importante em reduzir esse desconhecimento: a cada ano eles exploram caatingas em vários estados do Nordeste para observar os animais e tentar desencavar onde se escondem. Foi ele quem encontrou onde os Pleurodema passam o verão e abriu caminho para outros estudos. “Demorei sete anos para descobrir, desde 1987, quando comecei a ir todos os anos à Caatinga”, relem­bra. “Sem o aporte dele ainda estaríamos procurando os sapos”, comenta Navas, que por isso dedicou a Jared o capítulo publicado no livro Aestivation.

Estratégias - Ano após ano, o pes­quisador do Butantan observou que à medida que a estiagem avança e o solo seca, os Pleurodema parecem se enter­rar mais e mais fundo, ficando sempre próximos a alguma umidade, até 1,80 metro de profundidade. Isabel mediu essas profundidades em diversos mo­mentos do ano e concorda que os sapos realmente fazem um percurso vertical em busca de zonas menos áridas. Ela mediu a umidade em diferentes pro­fundidades e viu que a 40 centímetros de profundidade a água se perde de­pressa, o que já não acontece quando se cava 80 centímetros. Viu também que a temperatura se mantém bastante estável, e os teores de oxigênio dentro da areia caem muito pouco – de 21% na superfície para 20,7% a 1,5 metro de profundidade. “É como duas pes­soas dormindo num quarto fechado”, compara Navas, “essa alteração não faz cócegas no anfíbio”.

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“Na Caatinga cada anfíbio adota uma estratégia para enfrentar as condições ambientais”, conta Jared, que, como integrante do INCT de Toxinologia, fi­nanciado pela FAPESP, busca a relação entre as toxinas dos anfíbios e o ambien­te da Caatinga. Os sapos Proceratophrys cristiceps têm pelo menos o dobro do tamanho dos Pleurodema e a pele qua­tro vezes mais fina, o que deve facilitar a absorção de água. Outra espécie, Rhinella granulosa, é ativa durante o dia e tolera temperaturas até 44oC, segundo artigo em parceria entre o grupo de Navas e o de Jared publicado em 2007 na Com-parative Biochemistry and Physiology, Part A. O grupo verificou que em sapos jovens, que são diurnos, a enzima citra­to sintase, importante no metabolismo aeróbio, se mantém estável mesmo em temperaturas muito mais altas do que os adultos, noturnos, toleram. Segundo Jared, essa espécie tem uma camada cal­cificada na pele, o que impede a perda de água. Além disso, alterações na pele conduzem o orvalho para uma região na virilha especializada na absorção. Junto com o cururu Rhinella jimi, esse anfíbio é o único alheio à estiagem da Caatinga.

A ausência de recursos mais espe­cializados, como casulos, pode refletir a história desse ambiente que se acredita

ter por volta de 10 mil anos. Muito jo­vem, em termos evolutivos. Antes disso, o sertão nordestino era um mosaico de matas diferentes, mais úmidas do que é hoje o ecossistema quase desértico e cheio de espinhos. “Talvez os anfíbios da Caatinga não tenham tido tempo de se especializar”, especula Navas.

É nessa capacidade de se adaptar às mudanças ambientais que o conhe­cimento da fisiologia da estivação se encaixa no projeto que o pesquisador da USP coordena dentro do Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais. “Os eventos extre­mos serão cada vez maiores, precisamos avaliar a capacidade que a fauna tem de lidar com os desafios fisiológicos que as mudanças impõem”, conta ele, que com isso pretende pôr a fisiologia a serviço da conservação no contexto das mudanças do clima. “Como fica se a seca ficar mais longa, se a chuva ficar mais concentrada? Os anfíbios terão tempo de se reproduzir?” n

abraçado à fêmea, macho bate muco e produz um ninho para os ovos

> Artigo científico

CARVAlhO, J. E. et al. Energy and water in aestivating amphibians. In: Aestivation. Car­valho, J. E. e Navas, C. A., eds. p. 141­169. 2010.

Page 52: Um telescópio brasileiro nos Andes

A tripla héliceEquipe de São Paulo identifica estrutura rara no material genético de moscas

O material genético de todos os seres vivos, diz a literatura sobre o assunto, é composto por duas fitas espiraladas uma em volta da outra. É a famosa dupla-hélice do DNA, o áci-do desoxirribonucleico, cuja

configuração foi apresentada ao públi-co em 1953 pelo físico Francis Crick e o biólogo James Watson. A descoberta lhes rendeu o Prêmio Nobel em 1962 e ficou cristalizada como retrato oficial do DNA. O que raramente se diz é que, antes do modelo de Watson e Crick, o químico Linus Pauling também tentara descrever como as moléculas, ou bases nitrogenadas, que formam o material genético – adenina, timina, citosina e guanina, mais conhecidas como A, C, T e G – se encaixam. A tripla hélice que ele propôs não se sustentava, mas em situações muito específicas as cadeias de DNA de fato parecem se associar aos trios. Entre os pesquisadores que inves-tigam essa conformação pouco ortodo-xa estão os geneticistas Eduardo Gorab e José Mariano Amabis, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP).

Gorab e Amabis mostraram que três fitas de bases nitrogenadas se espiralam juntas em algumas zonas do material genético das moscas Rhynchosciara americana e Drosophila melanogaster. Essa conformação pouco usual parece concentrar-se na heterocromatina, re-gião dos cromossomos onde a estrutura tripla pode contribuir para a compacta-ção do material genético e onde quase

Genética>

não há atividade gênica, corroboran-do a ideia de que a conformação tripla funciona como um interruptor que desliga os genes. O estudo brasileiro começou há cerca de 20 anos, mas só foi publicado em 2009, na Chromosome Research.

Embora ainda não seja possível enxergar os componentes do DNA, hoje técnicas moleculares cada vez mais avançadas permitem aos poucos destrinchar o seu funcionamento. Para Linus Pauling, nos anos 1950, os mode-los teóricos das bases adenina, timina, citosina e guanina eram como peças de um quebra-cabeça espalhadas sobre a mesa. Tratava-se de descobrir a melhor maneira de agregá-las. Já na época a versão de Pauling foi explicitamente refutada por Watson e Crick, e hoje fi-cou claro que ela viola certos princípios da química, mas a ideia de uma hélice tripla não foi de todo enterrada.

Olhar renovado - Um dos que conti-nuaram a investigar a possibilidade foi o bioquímico Bernard Stollar, da Uni-versidade Tufts em Boston, nos Estados Unidos. “Ele inaugurou uma nova fase no estudo de ácidos nucleicos [o DNA e o RNA]”, afirma Gorab. Stollar de-senvolveu anticorpos que se acoplam a algumas composições de tripla hélice, um sistema que funciona como uma fe-chadura onde se encaixa perfeitamente uma chave, conforme expôs em 1974 na Nature. Mas ele moldou a fechadura com uma chave específica em mente: uma cadeia de DNA na qual se entre-

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PESQUISA FAPESP 169 n março DE 2010 n 53

laçavam duas cadeias de RNA, todas em fita única.

Mariano Amabis investigou mais a fundo essa ferramenta molecular durante o ano sabático que passou no laboratório de Stollar no final dos anos 1980. Lá ele descobriu que o anticor-po desenhado pelo norte-americano também reconhecia hélices triplas feitas só de DNA, o que abriu as portas para novas investigações. O trabalho passou duas décadas escondido nos capricha-dos cadernos de Amabis, agora aposen-tado pela USP, mas ressurgiu em con-versas informais em torno de cafés ou aperitivos de fim de tarde. Gorab enfim conseguiu resgatar os cadernos de ano-tações e repetir os experimentos em seu laboratório paulistano, confirmando e ampliando os resultados. “A novidade não foi encontrar a tripla hélice, mas acrescentar uma nova ferramenta para estudar essa estrutura – os anticorpos de Stollar”, conta.

No genoma das drosófilas, a téc-nica produziu resultados diferentes dos obtidos pelo grupo canadense liderado por Jeremy Lee na Univer-sidade de Saskatchewan, por meio de um anticorpo diferente. É preciso investigar mais a fundo para determi-nar onde está a realidade. Gorab tam-bém acrescentou ao arsenal a mosca Rhynchosciara – personagem central dos primórdios da genética brasileira, pois nela o geneticista Crodowaldo Pa-van encontrou certos trechos em que o DNA se multiplicava de maneira ines-perada (ver Pesquisa FAPESP nº 168).

O genoma dessa mosca tem também regiões enriquecidas com longas suces-sões de AAAAA e de TTTTT. Foi dessa particularidade que Gorab tirou van-tagem, pois em laboratório sequências repetitivas de RNA (UUUUU) tendem a se acoplar a duplas hélices repetiti-vas, como mostra a fita vermelha na ilustração. Por isso, Gorab considera possível que o DNA dessas regiões re-petitivas em Rhynchosciara se dobre sobre si mesmo e a estrutura dupla na-turalmente se altere, formando uma tripla hélice que deixa de fora uma das cadeias do DNA (como na ilustração que abre esta reportagem).

Realidade - “Precisamos agora verificar em que situações essa estrutura tripla se forma, se ela existe na mosca viva ou se é uma consequência das manipulações em laboratório”, ressalva Gorab. É algo a se verificar, mas outros grupos já indi-caram que as triplas hélices não só exis-tem em animais vivos como têm função regulatória importante. Um desses gru-pos é o do norte-americano Thomas Cech, da Universidade do Colorado, ganhador do Prêmio Nobel de Química em 1989, que em 2008 publicou um artigo na Nature Structural & Molecular Biology sugerindo uma função da tripla hélice de RNA na ação da telomerase, enzima responsável pela regeneração do DNA dos telômeros, que formam as extremidades dos cromossomos.

De agora em diante o geneticista da USP não pretende deixar as triplas hélices esquecidas no fundo de algum tubo de ensaio. Os próximos passos incluem usar o genoma já bem conhe-cido das drosófilas para saber quais são as sequências que propiciam a sua formação. As triplas hélices também prometem contribuir para terapias gê-nicas, em que se poderia sintetizar fitas únicas complementares a genes que se deseja inativar e inseri-las, formando regiões triplas. n

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Manchas rosa: triplas hélices produzidas em cromossomos de Rhynchosciara

Aspectos moleculares da heterocromatina em espécies da família Sciaridae (Diptera: Nematocera) - nº 2008/50653-2

mOdAlIdAdE

auxílio regular a Projeto de Pesquisa

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Eduardo Gorab – IB/USP

InvEStImEntO

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> Artigo científico

GORAB, E. et al. Potential sites of triple-helical nucleic acid formation in chromoso-mes of Rhynchosciara (Diptera: Sciaridae) and Drosophila melanogaster. Chromosome Research. v. 17. p. 821-32. Agosto 2009.

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54 n março DE 2010 n PESQUISA FAPESP 169

GeoloGia

O cerro do Jarau, uma cadeia de morros com cerca de 200 metros de altura, destaca-se entre as pequenas colinas dos Pampas no município de Quaraí, oeste do Rio Grande do Sul, onde o Brasil faz fron-

teira com o Uruguai. A origem desses morros, que vistos do céu se enfileiram em forma de semicírculo, sempre intri-gou os gaúchos e até mesmo originou lendas sobre a formação do povo sul- -rio-grandense. Agora o mistério so-bre o surgimento do cerro parece estar chegando ao fim. Um estudo condu-zido pelos geólogos Alvaro Crósta e Fernanda Lourenço, do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), encontrou provas de que essas elevações se for-maram em consequência do impacto de um meteorito que caiu na região milhões de anos atrás, abrindo uma grande cratera.

Quem não tem o olhar treinado dos especialistas dificilmente enxer-garia ali uma cratera. Na verdade, o que se vê não é o buraco cavado pela

Salvador Nogueira

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Dois anos atrás Crósta e Fernanda, então sua aluna no curso de geologia da Unicamp, fizeram uma expedição ao Jarau à procura de sinais do impacto do meteorito. Durante dez dias eles su-biram e desceram os morros coletando amostras de rochas que levaram para Campinas. A análise das rochas ao mi-croscópio permitiu confirmar que elas só podem ter se formado a temperatu-ras e pressões altíssimas como as gera-das pela queda de um corpo celeste.

O resultado a que a equipe da Uni-camp chegou corrobora a hipótese

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violência do choque, mas suas bordas, que se elevaram como as ondas forma-das pela queda de uma pedra em uma piscina. E nem as bordas se encontram tão bem preservadas como já foram um dia. Ao longo de milhões de anos o vento, a chuva e a movimentação da superfície do planeta corroeram as bordas do Jarau deixando os morros com os 200 metros atuais. Rochas for-mando um anel de 3,5 quilômetros de diâmetro marcam a região mais cen-tral da cratera, onde possivelmente ocorreu o choque.

Mistérios do Jarau

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PESQUISA FAPESP 169 n março DE 2010 n 55

Queda de meteorito formou cadeia de morros no oeste do rio Grande do sul

proposta cerca de 20 anos antes por uma dupla de pesquisadores da Uni-versidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). No final dos anos 1980 os geólogos Nelson Amoretti Lisboa, da UFRGS, e Marisa Terezinha Garcia de Oliveira Schuck, que então trabalha-va na mesma universidade, analisaram imagens de satélite e o relevo (geomor-fologia) da região e propuseram que o cerro do Jarau teria se formado pelo impacto de um meteorito. “Levanta-mos a lebre”, conta Lisboa. “Mas não tínhamos os recursos técnicos para examinar os minerais.”

Avaliando a estrutura das rochas no próprio cerro e a composição mineral delas, Crósta e Fernanda encontraram duas indicações do choque do corpo celeste. A primeira foi a localização no Jarau das chamadas brechas de impac-to, rochas formadas de fragmentos de outras rochas. “As brechas podem ter origens distintas, por exemplo vulcâni-cas”, explica Crósta. “Mas as que encon-tramos no Jarau têm as características das formadas por impacto de meteo-rito”, conta o geólogo da Unicamp, que

já ajudou a identificar outras crateras de impacto existentes no país.

A segunda e mais conclusiva evi-dência veio do exame das rochas em laboratório. Ao microscópio, Crósta e Fernanda viram que os grãos de quartzo das rochas sofreram um fenômeno co-nhecido como fraturamento planar. Es-ses sinais aparecem como traços parale-los de material vitrificado, diferentes da estrutura natural dos cristais de quartzo. “Essa é uma evidência irrefutável, uni-camente gerada pela deformação por impacto”, afirma Crósta.

O geólogo da Unicamp explica que esses grãos se formam em níveis de pressão muito superiores aos en-contrados na crosta terrestre. Somente em regiões mais profundas do planeta, como o manto, que vai de 30 quilôme-tros a 2,9 mil quilômetros abaixo da superfície, a temperatura de milhares de graus Celsius e a pressão centenas de milhares de vezes superiores à da atmosfera permitem a formação de estruturas equivalentes às encontra-das em crateras de impacto. Mas as ro-chas do Jarau tinham características de

Sentinela dos Pampas: cerro foi posto de observação na Revolução Farroupilha

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56 n março DE 2010 n PESQUISA FAPESP 169

Jarau, visto do espaço: imagem de satélite mostra a cadeia de morros ao redor da cratera

rochas de superfície, e não de manto. Segundo Crósta, somente a energia liberada no choque de um corpo co-mo um meteo rito produz a pressão e a temperatura necessárias para causar esse tipo de deformação no quartzo na superfície do planeta.

Os resultados de Crósta e Fernanda tornam o cerro do Jarau a sexta cratera de impacto – ou astroblema, expressão grega para “cicatriz deixada por um as-tro” – identificada no Brasil (ver o mapa na página ao lado). O número é peque-no, mas tende a aumentar com o tempo. Não que outros meteoritos devam cair nos próximos anos sobre o país. O que deve aumentar é o conhecimento sobre os que atingiram o Brasil no passado distante. Os geólogos acreditam que o número de astroblemas conhecidos no hemisfério Sul do planeta seja pequeno porque faltam levantamentos geológi-cos abrangentes.

As conclusões do grupo da Uni-camp devem ser publicadas em breve no livro Large meteorite impacts IV, editado pela Sociedade Geológica da América. Mas esse não será o único li-vro a falar do cerro do Jarau. No início do século XX o escritor gaúcho João Simões Lopes Neto imortalizou a re-gião no livro Lendas do Sul, de 1913.

No texto “A Salamanca do Jarau”, Lopes Neto conta uma história muito antiga, de quando os árabes foram expulsos da Espanha. Entre aqueles que se re-fugiaram no sul do Brasil, teria vindo uma linda princesa moura que, após um pacto com Anhangá-pitã (o demô-nio dos índios), se transformou numa salamandra com cabeça de pedra – a Teiniaguá – e se escondeu no cerro do Jarau. A essa princesa mitológica, que voltou a ser mulher graças ao amor de um sacristão, atribui-se a origem dos traços mestiços do povo gaúcho.

Lenda e guerra - Essa lenda se mis-turou à história nacional na Revolu-ção Farroupilha, em meados do sé-culo XIX, quando rebeldes gaúchos confrontaram as forças do Império. Os farrapos usaram o cerro do Jarau, situado na propriedade do general far-roupilha Bento Manuel Ribeiro, como posto de observação privilegiado nos Pampas. O local, que ficou conheci-do como sentinela do Jarau, não foi palco de conflitos, mas ajudou a criar uma continuação para a velha lenda de Teiniaguá. Dizem por lá que Ben-to Ribeiro teria feito um pacto com a criatura do Jarau para se proteger dos perigos do conflito.

A confirmação da origem das mon-tanhas do Jarau é apenas o início de muito trabalho. Nos próximos anos os geólogos pretendem determinar, por exemplo, as dimensões reais da cratera e do astro que a originou. “Estimamos que a cratera original tivesse aproxi-madamente 13 quilômetros de diâme-tro, mas é difícil saber com precisão porque a borda está completamente erodida”, diz Crósta.

Essa é uma informação fundamen-tal para calcular com precisão o tama-nho do meteorito que caiu na região. Os pesquisadores da Unicamp supõem que fosse uma rocha com 600 a 700 metros de diâmetro. Mas o próprio Crósta alerta: “Essa é uma estimativa feita em cima de outra estimativa”.

Outra questão que está entre as prioridades do geólogo da Unicamp é descobrir quando ocorreu o tal im-pacto, uma pergunta nada simples de responder. Para determinar a idade da cratera, será preciso encontrar amos-tras de rocha que tenham se fundido exatamente no momento do impacto e medir a proporção de isótopos do ele-mento químico argônio que apresen-tam. O problema é que as rochas fun-didas no momento do impacto podem ser muito similares às que compõem

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PESQUISA FAPESP 169 n março DE 2010 n 57

SErrA dA CAngALhA cratera com 12 quilôme-tros de diâmetro e idade calculada entre 200 mi-lhões e 240 milhões de anos fica no Tocantins

a maior parte do terreno no cerro do Jarau – basicamente basalto, rocha ígnea formada a altas temperaturas, como as do interior de vulcões. Encontrá-la se-rá como achar agulha em palheiro. “A amostra que procuramos pode ter até milímetros de comprimento e temos de achá-la numa área com diâmetro de 13 quilômetros [equivalente ao de um município como Americana, no interior de São Paulo]”, afirma o pesquisador.

Enquanto não se encontram essas rochas, o que se tem é mais uma vez uma estimativa. “Temos uma idade máxima que é a das rochas mais novas [basaltos] afetadas pelo impacto, que têm algo como 135 milhões de anos”, diz Crósta. Como as bordas da cra-tera foram bastante desgastadas pela

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> Capítulo de livro

1. CRÓSTA, A. P. et al. Cerro do Jarau, Rio Grande do Sul: a possible new impact structure in southern Brazil. In: Large meteorite impacts IV. The Geological Society of America.

erosão, imagina-se que não seja mui-to nova e tenha de algumas dezenas a uma centena de milhões de anos.

Essa datação é importante porque pode revelar outra história oculta nos registros geológicos. Um impacto des-sa escala pode ter afetado fortemente a vida na região sul do continente sul- -americano, causando extinções locais consideráveis. “Não seria comparável com o evento que aconteceu há 65 mi-lhões de anos [e produziu a cratera de Chichxulub, localizada sob o mar, no golfo do México], quando foram ex-tintos os grandes répteis e mais de 60% da vida na Terra, mas teria um impacto regional considerável”, afirma Crósta.

Os grandes morros do Jarau podem ainda revelar mais do que o passado

da Terra. O choque de meteoritos em rochas basálticas possivelmente causa transformações específicas, que permiti-riam diferenciar a evolução delas das de outros tipos de rocha – e até compreen-der detalhes de como se formaram ou-tros planetas rochosos, como Marte e Vênus, onde há muito basalto. É prová-vel que nos próximos anos as histórias do Jarau voltem a ganhar vida. Dessa vez, pelas mãos dos pesquisadores. n

Ponto de impactoapenas seis das 170 crateras criadas pela queda de meteoritos no planeta estão no brasil

domo dE VArgEãolocalizada no oeste de Santa Catarina, cratera com 12 quilô-metros de diâmetro tem idade estimada em até 120 milhões de anos

CErro do JArAUcom diâmetro aproxi-mado de 13 quilôme-tros, cratera no oeste do Rio Grande do Sul ainda não tem idade conhecida

domo dE ArAgUAInhAna divisa entre Mato Grosso e Goiás, cra-tera de 246 milhões de anos é a maior do país, com 40 quilôme-tros de diâmetro

VIStA ALEgrEFormada há no má-ximo 120 milhões de anos, cratera no sul do Paraná tem 9,5 quilô-metros de diâmetro

rIAChão com idade desconhecida, cratera situada no Mara-nhão é a menor do país: tem apenas 4,5 quilôme-tros de diâmetro

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58 n março DE 2010 n PESQUISA FAPESP 169

A união das velhas anãs

Depois de apontar seus mais modernos instrumentos de observação para uma região do Universo não muito longe, onde vaga um grupo de quatro antigas galáxias anãs, e realizar medições em diferentes comprimentos de onda para tentar descobrir a idade das estrelas desse belo sistema, tão pequeno que caberia dentro da Via Láctea, uma equipe internacional de asfrofísicos percebeu que tinha de-tectado algo inesperado. Os cientistas tinham deparado com um

evento que deve ter sido comum nos primórdios do Universo, alguns bilhões de anos atrás, quando grandes galáxias foram tomando corpo a partir da fusão de galáxias menores, mas que, agora, se encontrava literalmente fora de seu contexto habitual. A análise de uma série de imagens obtidas pelo Hubble e outros telescópios espaciais confirma a ideia defendida já há al-guns anos pela astrofísica Claudia Mendes de Oliveira, da Universidade de São Paulo (USP), de que o quarteto de galáxias anãs, conhecido como Hick-son Compact Group 31 (HCG 31), está se fundindo a 166 milhões de anos- -luz, uma distância relativamente modesta da Terra (um ano-luz equivale à distância percorrida pela luz no vácuo em um ano).

A união das velhas galáxias, que deve dar origem a uma única grande galáxia elíptica, começou há apenas 10 milhões de anos, algo como ontem na escala de tempo cósmico. Esse é talvez o dado mais eloquente do quão extem-porâneo parece ser o fenômeno, relatado em detalhes num artigo publicado por pesquisadores canadenses, norte-americanos e a astrofísica brasileira na revista científica The Astronomical Journal de fevereiro. “Acreditamos que essas galáxias anãs estão se unindo pela primeira vez”, afirma Claudia. “Esse ti po de fusão hoje deve ser muito raro.” Numa alusão a feitos da paleontolo gia, o time internacional de astrofísicos comparou a descoberta do processo de fusão de galáxias num canto próximo do Universo ao resgate de um fóssil de di nossauro no quintal de casa.

Na imagem ao lado, uma composição feita a partir de observações do Hubble e de outros satélites, como o Spitzer, o objeto brilhante e distorcido que se vê a meia altura à esquerda representa, na verdade, duas galáxias anãs se fundindo. Desse encontrão de matéria nascem novas estrelas, quentes e massivas, que emitem radiação ultravioleta, aquecem as nuvens de gás em sua volta e as fazem brilhar. O espetáculo lembra uma queima de fogos de artifício no espaço. Ainda à esquerda, mas acima dessas duas galáxias, há uma terceira, ligada às demais por uma ponte de aglomerados de estrelas. Seu formato lembra os contornos de um charuto. Por fim, no canto direito inferior, aparece a quarta galáxia do grupo compacto, conectada às demais por um cinturão de estrelas. O objeto extremamente brilhante bem no centro da imagem é uma estrela que está num plano anterior em relação ao HCG 31 e não tem nenhuma ligação com o grupo de galáxias. “Ainda há muito gás no sistema e a fusão das galáxias deve se prolongar

Marcos Pivetta

HCG 31: quatro antigas galáxias anãs

estão se unindo e

vão formar uma única

grande galáxia elíptica

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PESQUISA FAPESP 169 n março DE 2010 n 59

Estudo com participação de brasileira flagra o início do processo de fusão de um grupo de pequenas galáxias

No sistema, a distância de uma galáxia a outra é da ordem de 75 mil anos-luz, três quartos do diâmetro da Via Láctea. Os cientistas especulam que a união das galáxias demorou quase 10 bilhões de anos para ter início porque o HCG 31 está numa área do Universo com pou-ca densidade de matéria. É como se estivesse numa espécie de zona rural do Cosmo, distante dos centros mais movimentados. Ali a força da gravidade não é tão intensa.

O nome de Claudia de Mendes de Oliveira na lista dos autores do artigo no Astronomical Journal é um reco-nhecimento aos seus trabalhos sobre grupos compactos de galáxias, um dos temas em que se especializou. Foram os estrangeiros que a procuraram para participar do estudo, cuja redação final cita outros oito artigos científicos da lavra da astrofísica da USP, em geral em parceria com colegas brasileiros. “Em 2004 publicamos um artigo mostrando que as galáxias do HCG 31 estavam se fundindo”, conta Claudia. Em 1992, ela terminou o doutorado no Canadá sob orientação de Paul Hickson, da Uni- N

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por um bilhão de anos”, comenta Clau-dia. O pequeno quarteto de galáxias, apesar de menor do que a Via Láctea, possui uma quantidade de hidrogênio, a matéria-prima das estrelas, cinco vezes maior do que a da nossa galáxia.

A idade das estrelas do sistema HCG 31 é a principal evidência de que esse processo de fusão de matéria é recente. As mais velhas se formaram há cerca de 10 bilhões de anos e são um indí-cio de que a aglomeração é realmente muito antiga. Mas as mais novas, repre-sentadas por alguns conjuntos de 100 mil estrelas de brilho intenso, têm no máximo 10 milhões de anos. “Sabemos que esse sistema está por aí há algum tempo”, diz a astrônoma Sarah Galla-gher, da University of Western Ontario (Canadá), uma das autoras do estudo. “A maioria das outras galáxias anãs in-teragiu bilhões de anos atrás, mas essas estão apenas começando a se unir.” Es-tudos anteriores indicam que, atraídas pela força da gravidade, as galáxias do quarteto estão em rota de colisão a uma velocidade de 60 quilômetros por segundo, um ritmo extremante lento.

versidade da Colúmbia Britânica, jus-tamente o astrofísico que 10 anos antes identificara pela primeira vez esse tipo de sistema. Nos cantos do Cosmo em que há aglomerações de umas poucas galáxias, todas próximas umas das ou-tras, interagindo gravitacionalmente, os cientistas dizem que ali existe um grupo compacto de galáxias. Esses sis-temas são encarados como laboratórios para o estudo da evolução das galáxias. Neles podem ocorrer surtos de forma-ção estelar, atividade nuclear, emissões de rádio e de raios X e, claro, fusão de galáxias. Mais de uma centena de gru-pos compactos foram descobertos nas últimas décadas. Alguns sistemas, como o Quinteto de Stephan, rendem lindas imagens. No momento, a astrofísica da USP se dedica a mapear e classificar 25 grupos compactos de galáxias. n

> artigo científico

GALLAGHEr, S. C. et al. Hierarchical struc-ture formation and modes of star formation in Hickson Compact Group 31. The Astro­nomical Journal. v. 139, p. 545-56. 2010.

Page 60: Um telescópio brasileiro nos Andes

Todas as questõesda prova de químicado vestibular daUnicamp em 2010foram baseadasnas reportagensdesta revista

"As questões dessa provaexploram matérias daRevista Pesquisa FAPESP,uma publicação mensal dis-ponível gratuitamente narede mundial. Essa é umaimportante fonte de infor-mação para a sociedade emgeral e particularmente útilpara quem quer aprender eensinar em todas as áreasdo conhecimento."

Page 61: Um telescópio brasileiro nos Andes

PESQUISA FAPESP 169 n março DE 2010 n 61

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Adiat. Alit augiatie dignim ipsusci tis nim dolent at. Wiscidunt ero odit, consequam venis do od tie

aprisionados, quarks e glúons passam a se movimentar livremente em uma nu-vem de partículas que os físicos chamam de plasma, o quarto estado da matéria (os outros três são o sólido, o líquido e o gasoso). Quando duas nuvens viajan-do em sentido contrário se encontram, quarks e glúons chocam-se e se aniqui-lam, para em seguida se regenerarem.

Como fênix - Nesse processo de morte e renascimento subatômico, porém, o número de partículas elementares ani-quiladas nem sempre é igual ao das cria-das no momento seguinte. Muitas vezes a colisão de um quark com um glúon (ou de um quark com outro quark ou um glúon com outro glúon) faz surgir três partículas elementares, e não duas. À medida que as partículas elementa-res recém-nascidas se afastam depois do choque, o plasma esfria e os quarks e os glúons livres voltam a se unir, formando partículas maiores como os prótons e os nêutrons. Como os equipamentos não detectam quarks nem glúons, o que os físicos veem são sinais indiretos do que aconteceu no interior do plasma.

Nos experimentos do Colisor Relati-vístico de Íons Pesados (Rhic), o acelera-dor de partículas do Laboratório Nacio-nal Brookhaven, nos Estados Unidos, os físicos costumavam observar resultados diferentes dos esperados. Quando lança-vam núcleos pesados, como os de ouro, uns contra os outros, detectavam sinais

A trombada entre núcleos atô-micos do elemento químico ouro acontece a 99,995% da velocidade da luz, com vio-lência suficiente para produ-zir temperaturas centenas de milhares de vezes mais altas

que as da camada externa do Sol em uma região do espaço muito menor que a ponta de uma agulha. É uma das situações mais extremas que os físicos conseguem criar em laboratório, seme-lhante à que deve ter existido frações de segundo após o Big Bang, a explosão que originou o Universo 13,7 bilhões de anos atrás. Embora sejam capazes de reproduzir condições tão energéticas, os físicos não compreendem muito bem por que as partículas que resultam dessa colisão se espalham do modo registrado por seus equipamentos. Ou melhor, não compreendiam. Na edição de 25 de ja-neiro da Physical Review Letters um arti-go assinado por um grupo internacional do qual participou um pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro, começou a desfazer o mistério.

Impulsionadas a velocidades próxi-mas à da luz, as 79 partículas de carga positiva (prótons) e as 79 partículas neutras (nêutrons) do núcleo do ouro alcançam um nível de energia tão ele-vado que as faz se desmancharem em partículas ainda menores e mais ele-mentares: os quarks e os glúons. Antes

Equipe internacional explica comportamento de partículas em experimento que reproduz os momentos iniciais do Universo

FísicA>

Nos primeirosinstantes

de que três partículas elementares ha-viam sido geradas no interior do plasma com frequência maior do que predizia a teoria – e do que observavam nas co-lisões de núcleos de hidrogênio, mais leves, formados por um único próton.

Em parceria com físicos do México e dos Estados Unidos, Javier Magnin, do CBPF, analisou esses resultados e chegou a uma explicação bastante plau-sível. “A chance de gerar duas ou três partículas elementares é a mesma tanto no choque de núcleos leves como pesa-dos”, diz Magnin. “Nas colisões de ouro encontramos com mais frequência si-nais da produção de três partículas por uma questão de geometria”, explica.

O motivo é mais simples do que se poderia imaginar e está ligado ao trajeto que as partículas elementares percorrem no interior do plasma. Nos eventos em que três partículas elemen-tares são geradas, uma delas sempre percorre uma distância menor do que o caminho atravessado por aquelas sur-gidas nos choques que originam duas partículas até escapar do plasma e gerar uma partícula detectável.

Esse tipo de experimento, segundo os físicos, pode ajudar a compreender o que aconteceu logo após o Big Bang, quando um plasma ultraquente e denso de quarks e glúons ocupava todo o Universo. “Ainda não sabemos, por exemplo, como o plas-ma evolui e se transforma em um gás de partículas”, comenta Magnin. n

No detector: partículas deixam

rastros após colisão

Page 62: Um telescópio brasileiro nos Andes

SeiBiblioteca deRevistas Científicasdisponível na internetwww.scielo.org

Notícias

• Saúde

Aids em idososUm dos fenômenos mais atuais da Aids é o surgimento

de uma nova população vulnerável: os idosos. Um dosfatores responsáveis por esse aumento é o desenvolvimentoda terapia antirretroviral combinada (Tarv), que tem pro-porcionado uma melhor qualidade e expectativa de vidado portador de HIY. Entretanto, a Tarv está associada aefeitos adversos como dislipidemia, diabete melito e re-sistência à insulina, os quais se constituem como fatoresde risco para doença cardiovascular. Com o impacto daTarv no metabolismo glicídico elipídico, surgiram muitos estu-dos associando a infecção peloHIV e a doença cardiovascu-lar, assim como os seus fatoresde risco e a utilização da Tarv,porém poucos deles tratam dacardiotoxicidade desta terapiaem idosos. O artigo "Alteraçõesmetabólicas, terapia antirretro-viral e doença cardiovascularem idosos portadores de HIV",de Andréa Sebben Kramer eWaldomiro Carlos Manfroi, daUniversidade Federal do Rio Grande do Sul, Alexandre Ra-mos Lazzarotto, do Hospital das Clínicas de Porto Alegre,e Eduardo Sprinz, do Centro Universitário Feevale, temo objetivo de revisar as principais alterações metabólicascausadas pelo uso da terapia antirretroviral e o seu im-pacto no aumento do risco de doenças cardiovascularesnos idosos portadores de HIV.

ARQUIVOS BRASILEIROS DE CARDIOLOGIA - VOL.93 - NO5-SÃo PAULO- NOV.2009

• Biologia

Cicatrização de feridas em ratosA cicatrização é um processo complexo que envolve even-

tos celulares e bioquímicos. Vários medicamentos têm sidoempregados na tentativa de abreviar a cicatrização e evitardanos estéticos. O objetivo do artigo "Ácido ascórbico nacicatrização de feridas cutâneas em ratos" foi verificar oefeito tópico do ácido ascórbico no processo de cicatrização

62 • MARÇO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 169

de feridas cutâneas de ratos por meio da verificação donúmero de macrófagos, neovasos e fibroblastos presentesno período experimental, além de analisar a espessura e aorganização das fibras colágenas no tecido lesado. Foramutilizados Rattus norvegicus, machos, nos quais se abriuuma incisão transversal na pele da região dorso-cervicalde 15 milímetros de comprimento, após anestesia. Osanimais foram divididos em dois grupos: o de controle -feridas higienizadas diariamente com água e sabão - e ogrupo tratado - feridas higienizadas e tratadas com cremede ácido ascórbico (10%). O ácido ascórbico atuou emtodas as etapas da cicatrização, diminuindo o número demacrófagos, aumentando a proliferação dos fibroblastose neovasos e favorecendo a deposição de fibras colágenasmais espessas e organizadas nas feridas e mostrou ter efeitoanti-inflamatório e cicatrizante. O trabalho é de autoriade J.A.D. Garcia, e.e. Lima, A.P.e. Pereira, J.R.E Silva, L.S.Oliveira, M.e.e. Resck, M.T.e.P. Bernardes, EM.P. Olímpio,A.M.M. Santos, da Universidade José do Rosário Vellano(Unifenas), de Alfenas (MG), e.o. Grechi, da EE IudithyVianna, e E.K. Incerpi da Universidade Vale do Rio Verde(Unincor), de Três Corações (MG).

BRAZILIAN JOURNAL OF BIOLOGY - VOL.69 - N° 4-SÃo CARLOS- NOV.2009

• Economia

Hipótese da estagnaçãoO trabalho "O debate do desenvolvimento na tradição

heterodoxa brasileira",de Carlos Pinkusfeld Bastos, daFaculdade de Economia da Universidade Federal Flumi-nense, e Iúlia Galarza d'Avila, do Banco Regional de De-senvolvimento do Extremo Sul, tem como objetivo resgataro debate sobre desenvolvimento econômico dentro datradição heterodoxa brasileira. São examinadas as teoriasoriginais da acumulação cepalina e a forma como essasteorias foram depois utilizadas pelo economista CelsoFurtado para avançar em suas hipóteses de estagnaçãoe mais especificamente em sua teoria do subdesenvol-vimento. Os autores apresentam algumas críticas sobrea hipótese da estagnação, tendo como base o trabalhode Maria da Conceição Tavares e José Serra, mostrandocomo a tradição heterodoxa brasileira passou a incorpo-rar o princípio da demanda efetiva em seus modelos decrescimento. Segundo os pesquisadores Bastos e Iúlia, essamudança teórica é o fundamento da chamada Escola da

Page 63: Um telescópio brasileiro nos Andes

Unicamp. Eles utilizam a discussão de ambas as abordagenspara avançar na análise da interação entre distribuição derenda e desenvolvimento segundo diferentes abordagensde acumulação: a leitura clássica e a abordagem da de-manda efetiva.

REVISTA DE ECONOMIA CONTEMPORÂNEA - VOL. 13 - NO2-

RIO DE JANEIRO - MAIO/ AGO. 2009

• História

América portuguesa e o impérioo artigo "O nascimento da América portuguesa no con-

texto imperial lusitano: considerações teóricas a partir dasdiferenças entre a historiografia recente e o ensino de histó-ria': de Lucília Siqueira, da Pontifícia Universidade Católicade São Paulo (PUC-SP), estrutura-se sobre a comparaçãoentre o que é trazido pela produção historiográfica recentee o que os livros didáticos e o ensino de história do Brasiloferecem acerca do início de nosso período colonial. Ostemas tratados são a formação da monarquia e do Esta-do em Portugal, os antecedentes e as causas da expansãomarítima, o significado da viagem de Cabral e, por fim, adinâmica imperial lusitana até a metade do século XVI. Osfenômenos e processos históricos discutidos servem comoindício de uma concepção histórica que é pano de fundona maneira de tratar a história do Brasil na sala de aula ede estruturar os livros didáticos.

HISTÓRIA - VOL. 28 - NO 1 - FRANCA - 2009

• Entomologia

Armadilha para formigaO conhecimento atual sobre a mirmecofauna (relativo às

formigas) tropical baseia-se principalmente em amostragensrealizadas no sub-bosque ou no solo. No estudo "Arma-dilhas de dossel: uma técnica para amostrar formigas noestrato vertical de florestas", de Luiz G. R. Oliveira-Santos,da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, RafaelD. Loyola, da Universidade Federal de Goiás, e André B.Vargas, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, édescrita uma armadilha de baixo custo e de fácil montageme instalação para amostrar formigas no estrato vertical deflorestas. São ainda apresentadas evidências empíricas dautilidade e eficiência da armadilha, fornecendo um exemplode resultados obtidos com a sua utilização em manchas defloresta localizadas na planície pantaneira.

NEOTROPICAL ENTOMOLOGY - VOL. 38 - NO 5 - LONDRI-

NA - SET.!OUT. 2009

• Educação médica

Ajuda ao estudante de medicinaO perfil do estudante de medicina que procura ajuda

psicológica é um tema de estudos de extrema relevânciapara os serviços desse tipo e para aqueles que se dedicamao ensino e formação de médicos. O objetivo do ensaio "Oestudante de medicina e a procura de ajuda': de OrlandoLúcio Neves de Marco, da Universidade de São Paulo, écontribuir para se conhecer como essa ajuda é oferecida,para aperfeiçoá-Ia, pois conseguir obter ajuda psicológicadurante a formação médica tem implicações, significados eresultados importantes para a saúde mental do médico, deacordo com o autor. A contribuição se estende a conhecer operfil do aluno que procura ajuda psicológica, suas dificul-dades mais frequentes e o modo como a ajuda é oferecidano Grupo de Assistência Psicológica ao Aluno da Faculdadede Medicina da USP (Grapal). A discussão tem como basea teoria psicanalítica, para relacionar as características davida emocional do estudante com a ajuda que é prestada.Conclui-se que é necessário um suporte para o estudantevencer dificuldades, evitando o adoecer.

REVISTA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MÉDICA - VOL. 33 -

NO 3 - RIO DE JANEIRO - JUL.!SET. 2009

• Sociologia

o fim da sociedadePartindo da constatação de que a pesquisa sociológi-

ca não corresponde mais à sua definição clássica e que,consequentemente, chegou o momento de a comunidadeacadêmica superar a contradição entre a sociologia pro-fissional e a sociologia crítica, Alan Touraine, da École desHautes Études en Sciences Sociales, Paris, discute algunspontos centrais da proposta do norte-americano MichaelBurawóyacerca da sociologia pública. Por meio do recursoa experiências provenientes da vida intelectual europeia,norte-americana e latino-americana, Touraine esforça-se,no artigo "A sociologia pública e o fim da sociedade", emrelacionar a sociologia pública ao processo político maisgeral de reconhecimento dos direitos dos atores sociais,capaz de organizar o campo no interior do qual uma "so-ciologia geral dos atores" possa florescer e se desenvolver.O autor constata que existem tempos em que a demandapor teorização é mais urgente; e outras épocas em que acrítica social tem prioridade. Ele conclui que, se a comuni-dade sociológica ainda afirma a necessidade de identificaros principais problemas sociais contemporâneos, então acombinação da sociologia pública com a sociologia pro-fissional se faz mais necessária.

CADERNOS CRH - VOL. 22 - NO 56 - SALVADOR - MAIO/

AGO.2009

> O link para a íntegra dos artigos citados nestas páginas estão dispo'níveis no site de Pesquisa FAPESP, www.revistapesquisa.fapesp.br

PESQUISA FAPESP 169 • MARÇO DE 2010 • 63

Page 64: Um telescópio brasileiro nos Andes

> LINHA DE PRODUÇÃO MUNDO

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Um microrganismo alterado geneticamente porpesquisadores da Universidade da Califórnia, emBerkeley, e do Joint Bioenergy Institute (JBEI)do Departamento de Energia dos Estados Unidosmostrou-se capaz de produzir um avançado bio-combustível diretamente de biomassa vegetal semnecessidade de nenhum tipo de tratamento ou modi-ficação química. O micróbio em questão foi uma cepada bactéria Escherichia coli, uma das mais comunse mais antigas do planeta. Os cientistas america-nos conseguiram incorporar no código genético dasbactérias genes que Ihes permitem sintetizar enzi-mas que processam a celulose transformando-a emaçúcares e depois em combustível. O biocombustívelsemelhante aos produzidos com petróleo é excre-tado pelas bactérias, migrando para a superfíciedo recipiente onde ocorre o processo, sem que sejapreciso recorrer à destilação ou a qualquer outromeio de purificação - o que constitui uma grandevantagem tecnológica e pode significar redução decustos quando o processo passar para escala industrial. Por esse método é possívelproduzir vários tipos de combustíveis como componentes da gasolina de aviação e dodiesel, mas ainda é impossível fabricar gasolina automotiva. Os resultados da pesquisaforam publicados na edição de 28 de janeiro da revista Nature.

> Na beirada transição

Atualmente todos osaparelhos eletrônicosdependem da capacidadeda mudança de fluxos deeletricidade nos materiaissemicondutores, comouma chave de ligar edesligar, para que os elétronspossam ou não trafegar.Mas no futuro o que seprevê é a viabilidade dosdispositivos com tecnologiaspintrônica que vaiexigir o domínio tantodo magnetismo dossemicondutores como do

Padrões de elétrons,em vermelho, laranjae amarelo, sobrematerial semicondutor

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controle preciso do spin(giro em inglês) dos elétrons,permitindo uma maiorcapacidade de fluxo deinformações. Para issoserá necessário encontrarum melhor caminho entrea transição de metaise semicondutores. Essapossibilidade tornou-semais realizável com umadescoberta de pesquisadoresda Universidade dePrinceton, nos EstadosUnidos. Eles observarampela primeira vez elétronsem um materialsemicondutor à beira datransição metal-isolante.Os elétrons formaramcomplexos padrões,semelhantes a turbulentosfluidos. Isso confirmapredições de que ossemicondutores podem sertransformados em ímãs. Essacaracterística pode levar àprodução de computadoresde menor porte e consumoreduzido de energia.

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> Roupasinteligentes

Já pensou em vestir umacamisa ou um vestidocapaz de gerar energiapara carregar seu aparelhode MP3? É isso queengenheiros daUniversidade da Califórnia,em Berkeley, nos EstadosUnidos, conseguiraminventar. Eles criaramnanogeradores capazesde produzir energia a partirde esforços mecânicos.Em seguida, inseriram essesdispositivos na base dasfibras do tecido, fazendoo movimento da roupagerar eletricidade. Essesnanogeradores são 100vezes mais finos do que umfio de cabelo e possuemum décimo da largura dasfibras têxteis convencionais.As nanofibras usadasna pesquisa são feitas defluoreto de polivinilidenoorgânico (PVDF), ummaterial cristalino comexcelente resistênciaquímica. Além de seremflexíveis, são relativamentefáceis e baratos de fabricar.Outro avanço na áreade dispositivos capazes degerar energia a partirdo movimento do corpohumano vem da

A japonesa Mitsubishi Electric anun-ciou ter obtido alguns avanços relativosa equipamentos para geração de ener-gia solar. Duas das células fotovoltaicasde silício pollcristallno (as mais usadasatualmente) que fabrica bateram recor-des mundiais de eficiência de conversãofotoelétrica - a capacidade de transfor-mar a luz do Sol em eletricidade -, comíndices de 18,1%e 19,3%, respectivamen-te. As marcas foram confirmadas peloNationallnstitute of Advanced IndustrialScience and Technology (Aist), do Japão,e os avanços serão incorporados às célu-las comerciais fabricadas pela empresa.Os engenheiros da Mitsubishi tambémconseguiram elevado índice de eficiên-cia energética, da ordem de 14, 8%, emum tipo de célula solar de 5 milímetrosquadrados de área, feita de filme ultrafi-no de silício. Essas células usam apenas

1% da quantidade de silício necessária para a fabricação decélulas fotovoltaicas convencionais de silício cristalino. Essasinovações envolvem 118pedidos de patentes japonesas e 16internacionais. O último avanço da empresa, ainda em estágioexperimental, foi uma nova tecnologia para inversores solares,um dispositivo fundamental nesses sistemas, que permite ageração de energia com alta eficiência mesmo quando ospainéis estiverem sombreados ou escondidos por poeira.

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Célula solar: busca por melhor rendimento

Universidade de Princeton,nos Estados Unidos.Pesquisadores da instituiçãocriaram nanofitas deborracha flexíveis capazesde converter a energiamecânica gerada pelomovimento da respiraçãoou pelo caminhar emeletricidade, que poderiaser usada para abastecertelefones celulares,marca-passos e outrosaparelhos eletrônicosportáteis. Eles usaramnanofitas detitanato-zirconato dechumbo (PZT) comsilicone. A vantagem do

dispositivo é suabiocompatibilidade, oque permite ser implantadono corpo e alimentardispositivo; médicos.

> Luz visívelpurifica água

Métodos de purificação deágua que utilizam luz já sãoconhecidos e empregadoscomercialmente há algumtempo. Eles se baseiam nouso da radiação ultravioleta(UV). Ocorre que apenas5% da luz solar correspondeaos raios U'V, Para otimizare tornar mais eficienteo uso da luz, o ideal é queas ondas na região do visívelpudessem ser usadas napurificação. E foi isso quepesquisadores do Shenyang

National Laboratory forMateriais Science, da China,e da Universidade deIllinois, nos Estados Unidos,fizeram. Eles criaram umfoto catalizador que usa luzvisível para matar bactérias.O primeiro passo foidesenvolver uma gradede fibras de óxido de titânioimpregnadas comnitrogênio. Quando osfótons atingem a gradeuma carga positiva é geradarompendo as moléculasde água e produzindo umasubstância que mata asbactérias. O foto catalizadorcontinua em ação mesmodurante a noite e torna-semais eficiente quandonanopartículas de ummetal chamado paládio sãoadicionadas ao processo.(SciDev.Net).

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> LINHA DE PRODUÇÃO BRASIL

o gosto de projetare montar aviões já éuma tradição brasi-leira que vem desdeSantos-Dumont. Omais recente exemploé um protótipo que foiprojetado e construí-do por professores ealunos do Centro deEstudos Aeronáuticos(CEA) da Universida-de Federal de MinasGerais (UFMG). É umavião para apresenta-ções e competiçõesacrobáticas capaz defazer piruetas e voosrasantes. Recebeu aidentificação CEA-309 e o nome Mehari,que vem de um dro-medário veloz e resis-tente do deserto do

Saara, na África. Em período de testes nas cidades mineiras de Belo Horizonte e ConselheiroLafaiete desde outubro de 2009, o avião está sendo preparado para voar na chamada classeilimitada, especializada em manobras radicais e que atinge a velocidade de 430 quilômetrospor hora. Possui 5,80 metros de comprimento e 6,10 metros entre as pontas das asas. Segundoo coordenador do projeto, professor Paulo Iscold, o avião foi desenvolvido para competiçõesinternacionais. O financiamento é do piloto Marcos Geraldi, comandante de um grupo de acro-bacias aéreas chamado Tuareg, sediado na capital mineira. O projeto e a construção demoraramseis anos e vários alunos da Faculdade de Engenharia Mecânica participaram dos projetos comdesenhos, cálculos e na montagem da estrutura do avião.

_________ --== -.aAvião construído na UFMG para competições internacionais

> Abacaxifantástico

Um abacaxi sem espinhosna folha e resistente àfusariose, principal doençadessa cultura no Brasil, é aprincipal característica deuma nova variedade(ou cultivar) desenvolvidapelo Instituto Agronômico(IAC) em Campinas.Chamado de IAC-Fantástico,o projeto de pesquisa danova variedade de abacaxifoi coordenado pelospesquisadores AdemarSpironello e Walter JoséSiqueira. Inicialmente,até 2012, estarão disponíveispara agricultores mudasproduzidas com culturasde tecido da planta emlaboratório. A partirde 2013 será a vez de mudasnaturais para plantio.

> Publicaçãoaeroespacial

JATM:foco natecnologiaespacial

A revista [ournal ofAerospace Technology andManagement (JATM)publicada pelo Instituto deAeronáutica e Espaço (IAE),de São José dos Campos,no interior de São Paulo,chegou ao segundo número.Ela foi criada em 2009 paraa publicação de resultadosde trabalhos de pesquisascientíficas e tecnológicas

relativas ao setor aeroespacialbrasileiro, inclusive nosaspectos da gestão doconhecimento tecnológico

66 • MARÇO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 169

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e sistemas de softwareespecializados. Publicadaa cada seis meses, a JATMtem como editor chefeo engenheiro de materiaisFrancisco Cristóvão Lourençode Melo, pesquisadordo IAE e professor doInstituto Tecnológicode Aeronáutica (ITA).Os temas variam do estudode materiais a sistemas depropulsão e orientaçãode foguetes e experimentosem túnel de vento.

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> Segundo emtransgênicos

As sementes transgênicas desoja, milho e algodão estãoconquistando os agricultoresbrasileiros. O paíscontabilizou um crescimentonesse tipo de cultura de35,4% entre 2008 e 2009_Assim, o Brasil passa aArgentina em cultivos deorganismos geneticamentemodificados e fica atrásapenas dos Estados Unidos,A campeã de produçãoé a soja transgênica, presenteem 16,2 milhõesde hectares num total de21,4 milhões de hectaresde plantas transgênicascultivadas no ano passadono país, Os dados foramcomputados pelo ServiçoInternacional para aAquisição de AplicaçõesAgrobiotecnológicas(ISAAA, na sigla em inglês),entidade mantida porempresas e fundações ligadasà agricultura. No casobrasileiro, os agricultoresprocuraram o semeio deplantas transgênicas queevitam a aplicação deinseticidas convencionais esão resistentes a alguns tiposde herbicidas, Segundo aentidade, o impacto dessescultivos representou entre1996 e 2008 um ganhode US$ 51,9 bilhões emtodo o mundo, gerado coma redução dos custos erendimento da produção.

por um tipo de cerrado.Muitos desses cavalos seperderam e se tornaramselvagens, ao se alimentare reproduzir por contaprópria, o que resultou emuma linhagem altamenterústica e adaptada aoambiente. Chamado decavalo lavradeiro, esseanimal é hoje objeto deamplos estudos da EmpresaBrasileira de PesquisaAgropecuária (Embrapa).O lavradeiro faz parte doprograma de conservaçãode animais da unidadeEmbrapa Recursos Genéticose Biotecnologia, sediadaem Brasília, e da EmbrapaRoraima. Existem cerca de200 animais, muitos emestado selvagem, Por meiode coleta no campo ecolaboração de criadoresparticulares, a empresacontabiliza mais de50 animais em núcleosde conservação, sendo omaior com 43 animais nomunicípio de Amajari, a170 quilômetros da capital,Boa Vista. Os pesquisadoresestão fazendo a caracterizaçãoe a preservação davariabilidade genética dessesanimais, resultado de muitosanos d~ seleção naturaLO conhecimento desses

genes poderá colaborar emfuturos programas demelhoramento genético deoutras raças de cavalos. Umdos fatores que intrigam ospesquisadores é o desempenhofísico do lavradeiro, capaz de

percorrer grandes distânciasem velocidades de até60 quilômetros por horae se alimentando apenasde um capim de baixaqualidade nutricionalchamado de fura-bucho.

A utilização de tinturas e óleos essenciais extraídos de plan-tas pode se tornar um medicamento contra as doenças daspróprias plantas. Avanços nesse sentido foram realizadospelo grupo do professor Antônio Carlos Maringoni, do De-partamento de Produção Vegetal da Faculdade de CiênciasAgrárias (FCA) da Universidade Estadual Paulista (Unesp), nacidade de Botucatu. Testes com tintura da Lippia alba, umadas plantas conhecidas como erva-cidreira, apontaram dimi-nuição do crestamento bacteriano, doença do feijão-vagem

(Phaseolus vulgaris), causadapela bactéria Xanthomonasaxonopodis, que traz severosdanos a essa cultura. Esse tra-balho realizado pela pesqui-sadora Sandra Cristina Vigoganhou o prêmio de melhorartigo científico publicadono periódico Summa Phyto-pathologica em 2009. Sandradiz que as plantas não pos-suem sistema imunológico,mas podem produzir compos-tos secundários que auxiliamna sua defesa quando em con-tato com alguns microrganis-mos ou substância química.. I ) Experimento na Unesp: feijão-vagem protegido

> Cavalo deRoraima

Há mais de 200 anos,cavalos de origem europeiaforam levados para a regiãodo Lavrado, no estado deRoraima, no extremo nortedo país, área caracterizada

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PESQUISA FAPESP 169 • MARÇO DE 2010 • 67

Page 68: Um telescópio brasileiro nos Andes

tecnologia>

Após a hidrólise, açúcar do bagaço está pronto para

fermentação

Page 69: Um telescópio brasileiro nos Andes

No processo desenvolvido pelo grupo de pesquisa de Rubens Maciel, que conta com a participação da professora Aline Carvalho da Costa e da doutoranda Sarita Cândida Rabelo, ambas da FEQ-Unicamp, a separação dos componentes é feita com um produto químico chamado peróxido de hidrogênio, que em solução aquosa é mais conhecido como água oxi-genada, a temperatura ambiente. “O peróxido de hidrogênio é colocado em contato com o bagaço, que não precisa passar por nenhuma etapa prévia de tratamento antes de ser utilizado”, diz o pesqui-sador. O produto consegue atacar a estrutura vegetal de tal maneira que libera na forma líquida a celu-lose, a hemicelulose e ainda dissolve a lignina, que posteriormente é recuperada para outros usos, que incluem desde a fabricação de produtos químicos até a geração de energia por meio da queima em caldeiras. A celulose é um polissacarídeo formado por monômeros de glicose, estruturas com seis áto-mos de carbono, ligados entre si. Quando passa pelo processo de hidrólise, libera esses monômeros, que podem ser fermentados facilmente pelas leveduras. A hemicelulose tem na sua estrutura monômeros de pentoses que são açúcares de cinco carbonos. Esses açúcares são mais difíceis de ser convertidos em eta-nol com os microrganismos atualmente disponíveis para a fermentação. Já a lignina é uma macromolé-cula orgânica complexa que une as fibras celulósicas, aumentando a rigidez da parede vegetal.

“A vantagem do processo que desenvolvemos é que ele é feito a temperatura ambiente, com um tem-po muito rápido de operação, que gira em torno de uma hora”, diz Maciel. Além disso, ele não gera resí-duos poluentes ao ambiente. “É um processo de baixo custo devido à rapidez com que o peróxido desmonta a estrutura lignocelulósica, sem nenhum gasto ener-gético.” O pré-tratamento é uma operação auxiliar para desmontar a estrutura vegetal e, com isso, deixar o material celulósico disponível para ser hidrolisado por microrganismos capazes de extrair a glicose da

A fermentação do caldo da cana-de-açúcar é ainda hoje a melhor via para obtenção de álcool combustível, produto que pode ter a oferta ampliada mesmo sem o aumento da área de plantio. Um desafio que precisa ser vencido pelo Brasil para o país atender à crescente demanda externa de etanol, pos-

sibilidade aberta de maneira mais efetiva com um estudo anunciado no início de fevereiro pela Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (EPA, na sigla em inglês), mostrando o etanol de cana-de- -açúcar como um biocombustível avançado, capaz de reduzir as emissões de gases nocivos do efeito estufa em até 61% se comparado à gasolina.Uma solução é aproveitar o açúcar contido no bagaço e na palha da cana (folhas da planta deixadas no cam-po na colheita), além do existente no caldo usado na produção atual, para fabricar o chamado etanol celulósico. O grande obstáculo tecnológico a ser ven-cido é que o açúcar da celulose do bagaço, e de outras biomassas, está organizado em grandes estruturas chamadas polissacarídeos, que as leveduras não con-seguem fermentar diretamente para converter em etanol. Para facilitar a etapa de conversão química da celulose em glicose, chamada de hidrólise, dois grupos de pesquisa brasileiros, um coordenado pelos professores Rubens Maciel Filho e Aline Carvalho Costa, da Faculdade de Engenharia Química (FEQ) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e outro pelo professor Adilson Roberto Gonçalves, da Escola de Engenharia de Lorena (EEL) da Univer-sidade de São Paulo (USP), em colaboração com a Universidade Federal de Pernambuco (Ufpe), desen-volveram diferentes processos de pré-tratamento da biomassa – um a temperatura ambiente e outro com tratamento térmico a vapor – para separar os três componentes que formam as paredes celulares das plantas – celulose, hemicelulose e lignina – que se encontram interligados e contribuem para a textura rígida dos vegetais.

PESQUISA FAPESP 169 n março DE 2010 n 69

EngEnhAriA QuímicA

Rota enzimática Novos processos de pré-tratamento do bagaço da cana facilitam a produção de etanol de segunda geração

Dinorah Ereno | fotos Eduardo Cesar

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celulose para produção de etanol. “É muito importante deixar o material ce-lulósico preparado para na fase de hidró-lise precisar da menor quantidade possí-vel de enzimas, para que os custos dessa etapa sejam reduzidos e o processo possa ser comercialmente aceito”, diz Maciel. As enzimas são proteínas produzidas por fungos, bactérias e plantas capazes de produzir reações químicas específicas, sem sofrer alteração em sua composição. Uma das mais usadas atualmente para produção de etanol – escolhida para tes-tar o processo de pré-tratamento pela sua eficiência – é a fabricada pela empre-sa Novozymes, multinacional dinamar-quesa que produz enzimas industriais usadas em detergentes, biocombustíveis, fabricação de alimentos, entre outros produtos. A produção de enzimas para fabricação de etanol também faz parte de uma das linhas de pesquisa conduzidas na Faculdade de Engenharia Química da universidade. O objetivo é conseguir uma enzima do próprio bagaço, para eliminar a etapa de purificação, que en-carece o produto final.

“Nosso processo permite obtenção de etanol da biomassa com baixa carga

enzimática, o que diminui considera-velmente os custos de produção”, diz Maciel. Por todas as inovações, como matéria-prima barata para desconstru-ção do arcabouço vegetal, o processo resultou em um depósito de patente no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) pela Agência de Ino-vação (Inova) da Unicamp. “O avanço do nosso processo de pré-tratamento é o uso do peróxido de hidrogênio, além das condições operacionais, como tem-peratura e tempo de operação, que es-tão protegidas pela patente”, diz. Com o processo, que até a fase atual se mostrou bastante viável para ser utilizado em grande escala, o grupo conseguiu dei-xar disponível todo o açúcar existente no bagaço para fermentação. “Sem os processos de pré-tratamento, apenas 9% do açúcar contido no bagaço é transformado em etanol.”

Escala semi-industrial - Por enquanto os testes foram feitos em escala de la-boratório. “Mas como se trata de um processo que utiliza um reator, que é um tanque agitado, que já conhecemos muito bem de outros processos reali-zados dentro de indústrias químicas, petroquímicas e de biotecnologia, não vemos problemas em passar para uma escala maior.” Uma das próximas etapas será testar o processo na planta piloto em escala semi-industrial. Ela já está em

construção nas instalações do Centro de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE), vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, em Campinas, no interior paulista. As mesmas instalações serão usadas pelo grupo de pesquisa coordenado pelo professor Adilson Roberto Gonçalves, líder de pesquisa do grupo de Conversão de Biomassa Vegetal da Escola de Engenharia de Lorena (EEL), da USP, para testar em grande escala o processo desenvolvido para extrair etanol da celulose, baseado em um tratamento térmico a vapor que rompe a estrutura rígida da biomassa e deixa os polissacarídeos disponíveis para as leveduras.

O bagaço colocado dentro de um reator fechado é impregnado com vapor d’água, em temperaturas que variam de 170 a 190 graus Celsius, durante se-te minutos. Esse sistema tem em uma das saídas uma válvula de abertura, que ao ser aberta rapidamente resulta em uma descompressão súbita, processo chamado de explosão a vapor. O pro-cesso é usado por uma usina da região de Ribeirão Preto, no interior paulista, para fazer ração para gado a partir do bagaço de cana. “A desestruturação do bagaço, nesse caso, é feita para auxiliar a digestão do animal”, diz Gonçalves. Mas não havia ainda sido utilizado para produção de etanol. A professora Ana Maria Souto Maior, da Universidade

Processo de hidrólise enzimática (acima) e bagaço de cana no reator

70 n março DE 2010 n PESQUISA FAPESP 169

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Federal de Pernambuco, colabora no projeto testando algumas condições do processo adaptado para o etanol em um reator utilizado para pesquisas do projeto Bioetanol, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Fi-nanciadora de Estudos e Projetos (Fi-nep). Uma das alunas de doutorado de Gonçalves, Priscila Maziero, fará estágio na Universidade de Lund, na Suécia, pa-ra estudar processos de hidrólise para resíduos agrícolas. Recentemente, ela passou duas semanas na Ufpe acom-panhando os testes.

O que sobra do pré-tratamento tér-mico é uma mistura sólida, a lignoce-lulose composta por celulose e lignina, com líquido (solução aquosa de compo-nentes da hemicelulose). Em seguida, a lignocelulose é submetida a uma etapa

Etanol produzido por hidrólise enzimática (abaixo) e bagaço de cana tratado

de extração química para remover a lignina, restando somente a celulose. Estudos feitos pelo grupo com uso de microscopia eletrônica e de refração de luz realizado no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), em Cam-pinas, com a colaboração do professor Igor Polikarpov, do Instituto de Física da USP, em São Carlos, mostraram – ainda dependente de análises finais – que a hidrólise direta do material lignocelu-lósico compromete o trabalho das enzi-mas. “Decidimos então incorporar uma etapa de deslignificação alcalina, que re-sulta na remoção da lignina, semelhante à utilizada nos processos para obtenção de polpa celulósica para fabricação de papel”, diz Gonçalves. Para isso é usada uma base, que em laboratório consiste no uso do hidróxido de sódio, mas na indústria pode ser substituído por cal ou óxido de sódio, dependendo dos cus-tos. “Mas a nossa condição de desligni-ficação alcalina é suave, com soluções contendo cerca de 1% de hidróxido de sódio, enquanto no processo de polpa-ção celulósica as cargas chegam a 20%”, relata Gonçalves, que contou com a co-laboração do professor George Jackson

Rocha, também da EEL. Com a remoção da lignina, a celulose está pronta para ser submetida à hidrólise enzimática. As enzimas utilizadas por eles também são da Novozymes. “A origem da celulose a ser degradada não faz muita diferença para o resultado final, mas a enzima usada sim”, diz o pesquisador.

O foco inicial de ambos os projetos foi o bagaço proveniente da moagem da cana. Embora uma parte seja queimada atualmente dentro das usinas, os cálculos apontam que ainda há um excedente de 30% dessa biomassa. Mas nada impede que os dois processos de pré-tratamento sejam utilizados também para processa-mento de palha da cana deixada no solo durante a colheita. “A tendência com a proibição da queima é que a palha tam-bém seja adicionada ao bagaço e essa bio-massa seja usada para complementar a produção de combustíveis líquidos”, diz Maciel. Por enquanto, não há ainda um esquema para recolhimento da palha no campo. Uma parte é jogada picada como cobertura na terra e a outra não tem ser-ventia. “Há um desafio tecnológico a ser vencido para que a palha não fique apo-drecendo no campo”, diz Gonçalves. n

PESQUISA FAPESP 169 n março DE 2010 n 71

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72 n março DE 2010 n PESQUISA FAPESP 169

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urbulências e redemoinhos estão associados a problemas em viagens de avião, em mar agitado e até em furacões e ci-clones. Além disso, eles trazem prejuízos também ao bom es-coamento de combustíveis em

tubulações. Para levar petróleo, gasolina e etanol, ou mesmo água, de um lado para outro dentro de tubos é preciso enfrentar um ambiente turbulento e repleto de redemoinhos que diminuem a vazão e exigem equipamentos potentes para impulsioná-los. Há muitos anos es-se fenômeno intrínseco a qualquer tipo de líquido é estudado e a solução para facilitar o bombeamento de petróleo por longas distâncias foi dissolver pequenas quantidades de certos polímeros nesse combustível. Os polímeros funcionam como redutores de atrito hidrodinâmi-co, um procedimento já utilizado, por exemplo, no estado norte-americano do Alasca em petrodutos com extensão de 1.287 quilômetros.

Faltava uma solução para o etanol, o álcool combustível que ganha maior im-portância no mercado brasileiro e tam-bém para a exportação, exigindo cada vez mais o transporte em alcooldutos. “A adoção de um redutor de atrito pode aumentar a vazão de etanol, numa tu-bulação, em 20% ou mais, que implica a economia proporcional em energia elétrica para fazer funcionar as bombas que impulsionam o líquido”, diz o pro-fessor Edvaldo Sabadini, do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ele estudou o fenômeno e encontrou um polímero eficaz para transporte de etanol, tendo inclusive depositado uma patente no Instituto Nacional de Propriedade In-dustrial (INPI) por meio da Agência de Inovação (Inova) da universidade.

“O redutor de atrito atenua a turbu-lência e elimina os vórtices muito pe-quenos que se formam quando o líqui-do ganha velocidade”, diz Sabadini. Os vórtices são movimentos muito rápidos que parecem se torcer neles mesmos e possuem direção e formação caótica, caracterizando o regime de turbulência. “Esses redemoinhos microscópicos fa-zem frear o líquido em todas as direções. Os polímeros adicionados ao etanol in-teragem com esses vórtices, absorvendo suas energias e evitando suas propaga-ções.” O poli (óxido de etileno) foi o

polímero utilizado no experimento, mas os pesquisadores estudam outros mais baratos e comerciais porque esse é usado principamente em laborató-rios. “É preciso uma quantidade muito pequena de polímero, da ordem de 30 partes por milhão (ppm), que equivale a adicionar 30 gramas do polímero em 1 tonelada de etanol. Uma quantidade maior não traz benefício adicional. O polímero precisa ser formado por super- macromoléculas com altíssima massa molecular e com características de ser flexível e muito solúvel no líquido que se quer usar”, diz Sabadini.

Polímero misturado ao etanol faz o biocombustível percorreralcoolduto com maior velocidade

Marcos de Oliveira

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PESQUISA FAPESP 169 n março DE 2010 n 73

maiores.” O experimento foi realizado com uma câmera filmadora ultrarrá-pida, capaz de capturar mais de 18 mil fotos por segundo adquirida por meio de um projeto de auxílio regular da FA-PESP. “Medimos os milissegundos de cada imagem.” O experimento é feito com água porque o etanol tem tensão superficial pequena, o que dificulta a observação do splash.

O efeito do polímero no etanol foi comprovado pelos pesquisadores por meio de um reômetro, aparelho consti-tuído por uma espécie de copo cilíndri-co contendo o líquido a ser estudado, e

também de um cilindro, com diâmetro menor no interior, para rodar em dife-rentes velocidades. O líquido preenche o espaço entre os dois cilindros. No caso do etanol, foi medido o esforço com o cilindro girando a 1.200 rotações por minuto. Foi então medido na mesma rotação o esforço do álcool com o poli (óxido de etileno) dissolvido que apre-sentou 15% de redução de atrito. De certa forma, o aparelho simula a tur-bulência gerada nos alcooldutos. Assim, segundo Sabadini, bombear grandes quantidades de etanol com aditivo em tubulações pode representar uma boa economia. Sabadini também estuda, em colaboração com o Centro de Estudos de Petróleo da Unicamp, o uso de redu-tores de atrito para diesel e petróleo, que no Brasil é muito pouco usado.

A história dos redutores de atrito em líquidos começou em 1948 com o químico B. A. Toms, da Universida-de de Birmingham, na Inglaterra. Ele demonstrou que uma solução diluída de poli (metil metacrilato) misturada a monoclorobenzeno oferece menor resistência ao fluxo que o solvente pu-ro. Uma das imagens marcantes desses redutores é uma fotografia do final dos anos de 1960 que registra uma demons-tração dos bombeiros de Nova York, nos Estados Unidos. Eles usaram uma mesma bomba para impulsionar água em uma das mangueiras e água conten-do algumas poucas quantidades de poli (óxido de etileno) na outra. O jato com o aditivo foi lançado a uma distância 80% maior. Agora é a vez do etanol. n

> Artigos científicos

1. ROCHA, N. O.; CARvAlHO, C. H.; SABADINI, E. New experimental technique to measure the efficiency of drag reducer additives for oil samples. Energy & Fuels. v. 23, p. 4.529-32. 2009.2. SABADINI, E.; AlkSCHBIRS M.I.; Drag reduction in aqueous poly (ethylene oxide) solutions based on drop impact images. Journal of Physical Chemistry B. v. 108, p. 1.183-88. 2004.

Filme mostra diferenças em experimento com água pura, na outra página, e com polímero

Redução de atrito hidrodinâmico a partir de imagens de impacto de gotas - nº 05/00873-8

modAlIdAdE

auxílio regular a Projeto de Pesquisa

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Edvaldo Sabadini – unicamp

InvEStImEnto

r$ 36.677,24 e uS$ 60.372,00 (FaPESP)

O PrOjetO>

Os pesquisadores entendem que a atenuação dos vórtices acontece pelo movimento de esticar e encolher das moléculas do polímero. Pelo menos essa é a explicação até agora aceita porque os estudos sobre a natureza da turbulência ainda são inconclusivos. “Ela ainda é um dos grandes desafios da física”, diz Saba-dini. Para exemplificar essa questão ele lembra do físico alemão Werner Heisen-berg, Prêmio Nobel de Física de 1932, que teria dito (não está escrito) que, se encontrasse Deus, faria duas perguntas: por que a relatividade é tão estranha? E como explicar a turbulência? Ele teria concluído que Deus saberia a primeira resposta, mas não a segunda.

Efeito gota - Para estudar e tentar avançar no conhecimento da interação do polímero em meio à turbulência e escolher uma substância que atue como redutor de atrito hidrodinâmico para o etanol, os pesquisadores se valeram de um experimento que usa o efeito de gotas caindo sobre um líquido. Após o impacto, ocorre a formação do splash, que dura cerca de 0,1 segundo. No iní-cio, forma-se uma espécie de coroa e logo em seguida um jato é impelido no sentido perpendicular à superfície do líquido. O grupo observou que o splash possui estruturas diferentes, se a água está pura ou com polímero. Com o aditivo, a água forma um jato muito maior. “O impacto da gota gera turbulência e o redutor de atrito per-mite que o líquido deslize com maior facilidade e com menor dissipação de energia, impelindo o jato em alturas

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NANOTECNOLOGIA

Novas aplicações para os nanodispositivos de carbono são geradas em Ribeirão Preto

A nanotecnologia já se tornou um campo extenso de estu-dos em todo o mundo e os nanotubos de carbono são os grandes expoentes dessa área. Os segmentos da engenharia eletrônica e da química in-

dustrial são os que mais prometem no uso desses dispositivos, como demons-tra o trabalho de um grupo de pesqui-sadores do Departamento de Química da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da Universi-dade de São Paulo (USP). Eles desen-volveram nanomateriais para compor baterias de íons de lítio mais eficientes e utilizadas em carros elétricos, sofis-ticados filtros com capacidade de re-ter gases tóxicos e compostos voláteis nocivos à saúde, além de sensores para detecção de glicose no sangue. O ma-terial criado pelos pesquisadores em escala nanométrica – um nanômetro equivale a um milímetro dividido por 1 milhão – é um compósito formado por nanotubos de carbono, uma espé-cie de folha de átomos de carbono en-rolada como um tubo, crescidos sobre feltro também de carbono, substrato maior, na escala de micrômetros, dis-ponível comercialmente e fabricado a partir de polímeros comerciais, como poliacrilonitrila e poliamida.

O nanomaterial deverá ser produ-zido ainda este ano em escala pós-labo-ratorial em uma planta-piloto que está em construção na universidade. Além de abrir possibilidade de novas aplica-ções tecnológicas, o trabalho conduzi-do pelo físico e professor da USP José

Yuri Vasconcelos

Maurício Rosolen, em parceria com a química Elaine Yoshiko Matsubara, deu origem a dois pedidos de patentes no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) e a uma dezena de artigos científicos publicados em revis-tas científicas internacionais. O desen-volvimento de compósitos – produto caracterizado por ser formado por dois ou mais tipos de materiais – no âmbito da nanotecnologia normalmente tem os nanotubos como um dos compo-nentes. Os pesquisadores de Ribeirão Preto usaram esses dispositivos cresci-dos sobre um feltro especial, substrato

condutor eletrônico similar aos feltros tradicionais, só que feito de carbono, e não de algodão ou fibras sintéticas. Essa foi a saída encontrada pelos pes-quisadores para vencer as limitações e as dificuldades hoje existentes quando se pensa em empregar nanotubos de carbono em grande escala industrial.

O problema no uso de nanotubos, segundo Rosolen, é a dificuldade em manusear esses produtos, normalmen-te apresentados na forma de pó, com outros materiais e controlar a com-pactação ou aglomeração, que ocorre de forma aleatória. “Os nanotubos de carbono interagem entre si, formando feixes e aglomerados que são dotados de propriedades distintas das originais. Essa situação pode levar a problemas em reproduzir dispositivos e materiais no âmbito industrial cujas proprieda-des são dependentes da aglomeração ou dispersão dos nanotubos, como em capacitores, sensores, filtros, eletrodos e baterias”, diz Rosolen.

Ao incorporar os nanotubos num substrato como os feltros de carbo-no, os pesquisadores conseguiram fazer uma montagem em geometrias preestabelecidas, evitando os proble-mas encontrados no material particula-do. Além disso, dispositivos micromé-tricos são mais facilmente manipuláveis e mais simples de serem misturados a outros materiais. “Criamos um novo material, mas mantivemos todo o po-tencial dos nanotubos de carbono”, diz o físico da USP. O compósito tem o formato de uma manta ou tecido com esses dispositivos impregnados na

>

1. Nanotecnologia de carbono aplicada ao desenvolvimento de sensores, células fotovoltaicas, pseudocapacitores e compósitos poliméricos - nº 04/07085-22. Compósito de nanotubos de carbono e feltro de carbono - nº 06/06129-1

modalidade

1. Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa2. Programa de Apoio à Propriedade Intelectual

Co­or­de­na­dor

1 e 2. José Maurício rosolen – USP

investimento

1. R$ 174.124,21 e US$ 18.558,95 (FAPESP)2. R$ 6.000,00 (FAPESP)

Os PrOjetOs>

74 n mARço DE 2010 n PesQUisa­FaPesP 169

Nanotubos na vida real

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sibilidades para fabricação de grandes baterias de íons de lítio, mais leves do que as atuais, para equipar veículos elé-tricos. “Como nosso compósito é um bom condutor eletrônico, os fabrican-tes de baterias não precisariam utilizar grandes quantidades de folhas e ma-lhas de alumínio, que deixam o produto pesado”, explica. Ao reduzir o peso do dispositivo, seria possível também fabri-car carros elétricos com baterias mais duráveis para uma autonomia maior. “Algumas grandes empresas já demons-traram interesse tanto pela tecnologia de produção de baterias como em produzir filtros com o nosso material. Estamos em conversação”, conta Rosolen.

Outra aplicação promissora do com-pósito de nanotubos de carbono seria a fabricação de sensores amperométri-cos. Estudos feitos em conjunto com a professora Susana Inês Cordoba Torresi, do Instituto de Química da USP de São

Paulo, demonstraram que o compósi-to permite a produção de biossenso-res muito sensíveis capazes de detectar glicose em meio que contenha sódio e potássio, como o sangue humano. “O dispositivo apresentou uma sensibilida-de muito alta, com grande rapidez de resposta, dentro de uma faixa de con-centração mais ampla do que os sensores convencionais”, diz Rosolen. n

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Feltro condutor elétrico,

à esquerda, e exemplos de

nanotubos e compósito de carbono

superfície. Essa característica diminui o risco de inalação de nanotubos pelos pesquisadores e trabalhadores que os manuseiam na forma de pó.

Uma das aplicações mais avançadas para o novo material é o uso na fabri-cação de filtros e máscaras de interesse industrial. No primeiro caso, o compó-sito pode ser utilizado na fabricação de filtros para ar-condicionado de veículos automotivos, além de reter gases tó-xicos jogados no ar pelo escapamento dos carros. “Os filtros hoje existentes no mercado impedem que os motoristas aspirem o material particulado exalado pelos automóveis, mas não retêm uma série de gases tóxicos de dimensões mo-leculares”, diz Rosolen.

Filtro­de­cigarro­- O nanomaterial também poderia ser empregado na fabricação de máscaras para proteção individual capazes de barrar solventes orgânicos tóxicos liberados em deter-minados processos industriais. Nessa mesma linha, pode ser útil como filtro de nicotina em cigarros. A primeira patente obtida pelo pesquisador está relacionada ao desenvolvimento de fil-tros para compostos orgânicos voláteis e para nicotina, enquanto a segunda diz respeito à produção de compósitos de carbono e nanotubos de carbono com superfície hidrofílica (interage com a água), que se dispersam bem em meio aquoso. Assim, poderiam ser destina-dos, entre outras coisas, à fabricação de pigmentos para tintas à base de água.

O nanomaterial criado nos labora-tórios da USP também abre boas pos-

> Artigos científicos

1. ROSOlEN, J.M.; POá, C.H.PATRICk; TRONTO, S.; MARCHESIN, M.S.; SIlvA, S.R.P. Electron field emission of carbon nanotubes on carbon felt. Chemical Physics Letters. v. 424, p.151-55. 2006. 2. ROSOlEN, J.M.; MATSUbARA, E.Y.; MARCHESIN, M.S.; lAlA, S.M.; MONTORO, l.A.; TRONTO, S. Carbon nanotube/felt composite electrodes without polymer binders. Journal of Power Sources. v. 162, p. 620-28. 2006.

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76 n março DE 2010 n PESQUISA FAPESP 169

ÓPTICA>

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PESQUISA FAPESP 169 n março DE 2010 n 77

Pesquisador publica artigo em importante periódico internacional sobre a nova geração de fibras ópticas

Em meados da década de 1990, pes-quisadores da Universidade de Bath, na Inglaterra, conseguiram criar e revelaram ao mundo um novo tipo de fibra óptica, batizada por eles de fibra de cristal fotônico (ou PCF, do inglês Photonic Crystal Fiber).

Essa inovação, segundo seus inventores, apresentaria diversas vantagens e teria pro-priedades bem mais interessantes do que as fibras ópticas convencionais, filamentos feitos de sílica ou material polimérico da espessura de um fio de cabelo, capazes de transmitir em alta velocidade dados em for-ma de luz. Decorridos quase 15 anos dessa descoberta, as PCFs já são usadas em várias aplicações – de amplificadores de sinal em redes de transmissão de dados a tomógrafos ópticos computadorizados, passando por dispositivos a laser, sensores ultrassensíveis e fontes de luz –, mas não substituíram por completo as fibras tradicionais. Em janeiro deste ano, o engenheiro eletricista Arismar Cerqueira Sodré Júnior, professor da Fa-culdade de Tecnologia (FT) da Universi-dade Estadual de Campinas (Unicamp), no campus da cidade de Limeira, publicou um artigo, intitulado “Recent progress and no-vel applications of photonic crystal fibers”, na revista Report on Progress in Physics, em que discorre sobre as aplicações e o estado da arte dessa nova tecnologia.

Logo no início do texto, Cerqueira, de 31 anos, reproduz uma indagação do físico irlandês Philip Russell, da Universidade de Erlangen-Nuremberg, na Alemanha, inven-tor dessa nova classe de fibras ópticas: as fibras de cristal fotônico poderiam marcar U

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o início de uma nova era nas comunica-ções ópticas? E, na conclusão do artigo de 21 páginas, Cerqueira deixa no ar mais um questionamento provocativo: a tecnologia PCF pode tornar obsoletas as fibras ópticas convencionais? O estudo foi escrito a partir de um convite dos editores da publicação, considerada uma das três mais prestigiadas na área de fotônica do mundo, com fator de impacto 12,09 – esse fator está relacio-nado ao número de vezes que os artigos divulgados por ela são citados por outros autores em seus trabalhos. De acordo com os editores da Report on Progress in Physics, a versão eletrônica do paper – tecnicamen-te uma revisão, porque não apresenta ne-nhuma nova descoberta, mas revisa tudo o que existe sobre o tema em questão –, teve mais de 250 downloads nos 11 primeiros dias após sua publicação, em 21 de janeiro, meta atingida por apenas 10% de todos os artigos divulgados em periódicos publicados pelo Institute of Physics (IOP, na sigla em inglês), da Inglaterra.

As PCFs suscitam muitas perguntas, mas já apresentam muitas respostas. Para entender melhor as perspectivas futuras desse novo tipo de fibra é fundamental entender como elas funcionam, quais são suas potencialidades, em que aparelhos são utilizadas e como se diferenciam da tecnologia tradicional. Muito mais eficientes do que os fios de cobre, as fi-bras ópticas convencionais são feitas de uma camada externa e um núcleo, geralmente confeccionados de sílica. Seu princípio de funcionamento é simples: um feixe de la-ser é lançado numa extremidade da fibra e, de acordo com as características ópticas do

As fibras de cristal fotônico representam um novo momento na era das comunicações ópticas

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material, percorre a fibra por meio de su-cessivas reflexões. A capacidade de confi-nar a luz e fazê-la viajar em seu interior se dá em função de o núcleo possuir um índice de refração superior ao da camada externa. Para conseguir esse índice num nível mais elevado, a sílica interna é en-riquecida – ou dopada – com átomos de outro material, como o germânio. Uma das diferenças entre as fibras de cristal fotônico e as convencionais é que as primeiras não necessariamente preci-sam conter elementos dopantes em seu núcleo. A diferença de refração entre o revestimento externo e o núcleo da fibra é dada pela existência de um conjunto regular de pequenos orifícios na forma de túneis correndo paralelo ao eixo da fibra e por todo seu comprimento. Esses buracos possuem diâmetro da ordem de um micrômetro, o equivalente a um milímetro dividido por mil vezes.

Outra particularidade das fibras de cristal fotônico, que já são fabricadas por grandes companhias como Alca-tel-Lucent, da França, Sumitomo, do Japão, Corning, dos Estados Unidos, e Draka, da Holanda, é que elas podem ter geometrias variadas e são produzi-das com diversos materiais, entre eles sílica pura ou dopada, polímeros, lí-quidos, metais, outros tipos de vidro e até mesmo ar e gases. A possibilidade de variar geometrias e matéria-prima é vantajosa porque permite ao fabricante

projetar sua microestrutura de manei-ra que a fibra apresente propriedades definidas conforme a necessidade de cada caso. Com isso, é possível fazer o guiamento da luz por meio de diferen-tes mecanismos de propagação em uma variedade grande de comprimentos de onda. “As PCFs atendem às exigências do mercado global, que demanda dis-positivos de pequenas dimensões, baixo peso e reduzido consumo de energia. Ela permite um melhor aproveitamen-to da luz e isso aumenta o desempenho de dispositivos ópticos e a precisão de aparelhos como sensores de tempera-tura e pressão, biossensores, detectores de campo elétrico e sensores de gases, entre outros”, afirma Cerqueira.

Milhares de fibras - Para o pesquisa-dor, a invenção da tecnologia PCF e sua chegada ao mercado representam, sim, um novo momento na era das comuni-cações ópticas, mas ele não acredita que ela tornará as fibras ópticas tradicionais obsoletas. “Atualmente existem centenas de milhares de quilômetros de fibras instaladas no mundo, atravessando continentes, o fundo do mar, e com larga aplicação nas telecomunicações. Seria inviável substituir todos esses cabos ópticos por PCFs. As novas fibras repre-sentam uma tecnologia complementar e podem ser utilizadas para aplicações em campos tão diversos como medici-

na, sensoriamento, telecomunicações e metrologia, entre outros”, diz.

Em seu artigo, Cerqueira discorre sobre os novos tipos de fibras de cristal fotônico, entre elas as PCFs híbridas que ele ajudou a inventar durante seu dou-torado na Scuola Superiore Sant’Anna, na Itália, com um período de estudos na Universidade de Bath, onde se integrou ao grupo do professor Jonathan Knight, responsável pela produção da primei-ra PCF no mundo. As fibras híbridas aliam as características de guiamento de luz dos dois tipos de PCF até então existentes. Na primeira categoria de PCF, o guiamento é obtido de forma similar à tecnologia tradicional, pela reflexão interna da luz no núcleo da fi-bra, enquanto no segundo grupo a luz é orientada por um novo efeito, chamado photonic bandgaps, e trafega por janelas específicas de frequência estabelecidas já no projeto da fibra. A PCF híbrida, segundo o professor da Unicamp, foi o primeiro guia de onda óptica a via-bilizar o guiamento da luz pelos dois mecanismos de propagação simultanea-mente. Uma das áreas mais promissoras para uso das PCFs, de acordo com o pesquisador, é o desenvolvimento dos chamados dispositivos ópticos não li-neares, usados nas telecomunicações e produzidos com algumas dezenas de metros de fibras ópticas. Nesse campo, diz ele, já existem equipamentos sendo

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Várias formas de fibras de cristal fotônico em imagens captadas por microscópio eletrônico de varredura. A primeira acima é híbrida, com dois tipos de guiamento de luz laser

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vendidos no mercado, como fontes de supercontínuo, um efeito caracterizado pela geração de uma luz laser muito forte e de comprimento de onda extenso. “O supercontínuo é usado em tomógrafos computadorizados, equipamentos para caracterização de fibras e dispositivos ópticos, além de sistemas de múltiplos comprimentos de onda para aparelhos de comunicação chamados de DWDM (Dense Wavelength Division Multiple-xing ou multiplexagem por divisão de comprimento de onda densa), presentes em todos os sistemas de telecomuni-cações”, diz. As empresas Fianium, da Inglaterra, e RPMC Lasers, dos Estados Unidos, são duas das principais fabri-cantes de fontes de supercontínuo com fibras de cristal fotônico.

Outro uso possível para essa tecno-logia é o desenvolvimento dos chamados pentes de frequência, que são fontes de múltiplos comprimentos de ondas com variadas aplicações. Eles podem ser usa-dos como medidores de frequência, para geração de pulsos ultracurtos e em apa-relhos de metrologia e espectroscopia óptica de alta resolução. Por enquanto, nenhum desses usos existe comercial-mente. As PCFs também podem ser usa-das como guiamento de luz em regiões do infravermelho próximo e distante e em sensores para detectar vazamento de gases em processos industriais e em atentados terroristas. “Nessa região, as fibras tradicionais não funcionam por-que têm uma perda óptica proibitiva. A luz não trafega nem mesmo ao longo de um metro com a tecnologia tradicio-nal, enquanto com a PCF pode ‘viajar’ por dezenas de metros”, afirma o pes-quisador da Unicamp. A empresa NKT Photonics, da Dinamarca, comercializa produtos baseados na tecnologia PCF para a região do infravermelho.

> Artigos científicos

1. CERQUEIRA S. JR., A. Recent progress and novel applications of photonic crystal fibers. Reports on Progress in Physics. v. 73. 2010. On-line.2. CERQUEIRA S. JR., A.; CORDEIRO, C.M.B.; BIANCALANA, F.; ROBERTS, P. J.; HERNANDEZ-FIGUEROA, H. E.; BRITO CRUZ, C. H. Nonlinear interaction between two different photonic bandgaps of a hybrid photonic crystal fiber. Optics Letters. v. 33, p. 2.080-82. 2008.3. CERQUEIRA S. JR., A; LUAN, F.; CORDEIRO, C. M. B.; GEORGE, A. K.; KNIGHT, J. C.. Hybrid photonic crystal fiber. Optics Express. v. 14, p. 926-31. 2006.

As PCFs também são capazes de guiar a luz na região de frequência ele-tromagnética de terahertz (THz), fai-xa igualmente proibitiva para as fibras tradicionais. Para Cerqueira, a propa-gação da luz nessa faixa representa uma tecnologia-chave para resolver garga-los existentes de transmissão de dados entre a microeletrônica e as comuni-cações ópticas. “Hoje a capacidade de transmissão de dados dos sistemas óp-ticos pode ser considerada infinita, ou, pelo menos, algumas ordens de gran-deza superior às demandas de tráfego dos sistemas de comunicações. Mas, devido à limitação dos componentes eletrônicos, a banda de transmissão é subutilizada. Com o guiamento da luz em THz, o limite de transmissão de dados pode aumentar algumas dezenas de terabytes por segundo, o que traria uma melhora no desempenho dos sis-temas de comunicação do mundo em até mil vezes.”

Contribuição brasileira - O Brasil pode ser considerado um dos centros avança-dos em pesquisa sobre PCFs. Trabalhos relevantes realizados pelo professor Cerqueira e outros pesquisadores vêm sendo realizados no Instituto de Física Gleb Wataghin da Unicamp, que há mais de 30 anos realiza pesquisas na área de fibras ópticas e integra o Cen-tro de Pesquisa em Óptica e Fotônica (CePOF) de Campinas, um dos Cen-tros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) da FAPESP. Além do CePOF, a Unicamp participa de outro grande projeto que tem as PCFs como uma de suas linhas de pesquisa: o Fotonicom, um dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs) apoiados pela Fundação e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

(CNPq). Uma das inovações surgidas na Unicamp foi uma fibra de cristal fotônico com eletrodos (fios de cobre) integrados a ela. Com esse diferencial, é possível aplicar voltagem à fibra ou fazer passar corrente elétrica por ela simultaneamente ao guiamento de luz. Dessa forma, o feixe luminoso pode ser modulado com a corrente elétrica, abrindo novas possibilidades para usar a fibra em sensores para detecção de gases e moduladores ópticos utilizados em redes de transmissão de dados. Também vale destacar os experimentos realizados no Laboratório de Fenômenos Ultrarrápidos, coordenado pelo professor Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP. Artigo publicado por Cerqueira e Brito na revista Optics Letters, em 2008, demonstra o desenvol-vimento de um conversor de frequência para transferência de energia entre bandgaps fotônicos. Mais experimentos realizados na Unicamp com fibras PCFs podem ser lidos nas edições 106 e 147 de Pesquisa FAPESP.

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Demonstração de fibras de cristal fotônico híbridas: sem filtro, à esquerda, com filtro azul e laranja. Múltiplos comprimentos de ondas eletromagnéticas

Yuri Vasconcelos

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EngEnharia ElEtrônica

\\aparelho destinado a deficientes visuais identifica e comunica nomes de cores e dinheiro

Um pequeno aparelho com 12 centímetros (cm) de comprimento por 6,5 cm de largura e 5 cm de altura, pesando não mais do que 100 gramas, poderá ser uma alternativa para melhorar a quali-dade de vida dos cerca de 5 milhões de brasileiros com deficiências visuais mais complicadas como a cegueira. Trata-se de um identificador de cores e

notas de dinheiro, capaz de emitir o nome de 40 tonalidades diferentes por meio de gravações e de cédulas de real em circulação. Batizado de Auire, que significa algo como “oi” ou “olá” na língua dos índios javaés, que vivem no estado de Tocantins, o equipamento foi desenvolvido pelos jovens engenheiros de computação Fernando de Oliveira Gil e Nathalia Sautchuk Patrício, alunos de mestrado na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP). O projeto deles é finalista da competição internacional Un-reasonable Finalists Marketplace, organizada pelo Institu-to Unreasonable para premiar projetos sociais de grande impacto em todo o mundo. Essa instituição é liderada por quatro jovens empresários, ex-alunos da Universidade do Colorado, na cidade de Boulder, nos Estados Unidos, que trabalham com empreendedorismo social em projetos que possam receber apoio de capital de risco, ser sustentáveis e ter boas perspectivas de mercado.

O Auire é uma pequena caixa que possui no seu interior um circuito eletrônico, dois diodos, mais conhecidos pela sigla LED (Light Emitting Diode), que emitem luz branca, além de três sensores, um para cada uma das três cores bá-sicas (vermelha, verde e azul), formadoras das outras cores. Em funcionamento, a luz é dirigida à superfície que se quer identificar e capta pelos sensores a reflexão. O software cal-cula a proporção de cada uma das cores primárias, identi-ficando a cor resultante. A lista é de 40 cores gravadas e o aparelho “fala” o nome de cada uma dessas cores que mais se aproximam da cor real da superfície analisada.

“No caso do dinheiro, como as notas do Brasil são de cores diferentes, se o Auire lê uma cor vermelha específica, ele identifica uma nota de R$ 10. O rosa, R$ 5 e assim por diante”, explica Gil. “Por terem cores muito semelhantes,

Evanildo da Silveira

ainda não conseguimos diferenciar com segurança as notas de R$ 2 e R$ 100. Para isso, serão necessários alguns ajustes. Por enquanto, o protótipo precisa ser conectado a um com-putador, que processa os dados por meio de um software. “Depois vamos introduzir o software no aparelho e torná-lo autônomo”, diz Gil.

A história da criação do Auire começou em 2006, dentro da disciplina do segundo ano da graduação “Práticas de Eletricidade e Eletrônica II”, relacionada ao programa Poli Cidadã, que tem como objetivo motivar alunos e professores a desenvolverem projetos de engenharia, visando à inclusão social. “A então coordenadora da disciplina, a professora Denise Consonni, propôs temas que podiam ser trabalhados, alguns de cunho social e outros não”, explica Nathalia. “Para realizar o trabalho tivemos que formar equipes e escolher um dos temas. Eu montei um grupo com outros três colegas e os convenci a fazer o identificador de cores para deficientes visuais, que era um dos temas propostos do Poli Cidadã daquele ano.” A sugestão partiu da Fundação Dorina Nowill para Cegos, que se dedica à inclusão social de pessoas com deficiência visual.

Blog social - “Na época, os outros alunos do grupo não quiseram dar prosseguimento ao trabalho”, conta Nathalia. “Fiquei com o protótipo e a ideia de um dia levá-lo adian-te.” A oportunidade surgiu em novembro do ano passado, quando Fernando, que é amigo de Nathalia, leu uma notícia em um blog especializado em empreendedorismo social. “Ele propôs nos inscrevermos no concurso do Unreasonable Institute e eu aceitei”, lembra Nathalia. A inscrição foi feita na primeira quinzena de dezembro.

Os projetos precisam ter o formato de empresas, e não de entidades sem fins lucrativos. Na primeira fase da competição, os participantes tiveram de elaborar um plano de negócios que apresentasse uma ideia capaz de atingir 1 milhão de pes-soas e dentro de um ano fosse autossustentável, além de po der ser estendida para outros países num prazo de três anos. “Apresentamos um plano de negócios para abrir uma em-presa e produzir o identificador com baixo custo”, conta Gil.

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A luz que fala

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“Nossa meta é produzir o aparelho por um custo unitário entre R$ 100,00 e R$ 200,00. Já existem equipamentos semelhantes no mercado, mas que são vendidos aqui no Brasil por cerca de R$ 1.200,00.”

Para chegar entre os finalistas do concurso, o plano de Nathalia e Gil en-frentou outros 284 competidores. De-pois de entrevistas telefônicas, restaram 34 finalistas, de 19 países. Agora, nessa última etapa, os competidores não de-penderão apenas de si mesmos. Serão escolhidos os 25 primeiros projetos que conseguirem arrecadar US$ 6.500 em doações até o dia 15 de março. Mas não adianta o pai de um participante ou um mecenas querer doar todo o valor ou grande parte dele. Cada doação não pode ultrapassar US$ 10. Os brasileiros concorrem com projetos de várias partes do mundo. Entre eles um dos que mais chamam a atenção é o Global Cycle So-lutions, desenvolvido na Tanzânia. Trata- -se de debulhadores e moedores de milho acoplados a uma bicicleta, que fica sus-pensa em anteparos. Ao ser pedalada, a roda gira e movimenta os equipamentos, aumentando a produtividade do traba-lho que antes era feito manualmente. Os que conseguirem cumprir a meta de arrecadação vão utilizar o dinheiro para custear 10 semanas de treinamento na sede do Unreasonable Institute em Boul-der, com profissionais e especialistas na área de negócios. Passado o período de treinamento, os projetos serão expostos a investidores sociais num evento orga-nizado pelo instituto. nm

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identificador de cores e dinheiro vai participar de competição internacional de tecnologias sociais

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literatura

Elizabeth Bishop escreveu e rejeitou obra sobre Brasil

Épreciso uma alma de poeta para começar um livro sobre o Brasil con-tando o caso de um bebê recém-nascido raptado da maternidade, capaz de deixar de lado, no imaginário popular, a inflação, o terrível custo de vida, as trocas de poder no governo e talvez mesmo os resultados do futebol, tudo em nome da saga de Conceiçãozinha, como a nenê ficou conhecida. A partir da história prosaica, que, por sinal, termina bem, a autora fala sobre a família brasileira, a devoção nacional às crianças, as massas pobres, a bananeira, corrupção, história, cultura, paulistas e cariocas, diminutivos, emoções do país etc. enfim, fala do Brasil, ou

melhor, do Brazil, título original do livro encomendado à poeta Elizabeth Bishop (1911-1979) para a editora Time-Life para uma coleção de obras sobre países do mundo. “Brazil, de 1962, por suas características e pelos percalços enfrentados na publicação, merece uma atenção especial. Estão em jogo aspectos importantes: as intenções dos editores norte-americanos em plena Guerra Fria na produção de uma série chamada Países do Mundo; o convite à poeta premiada para que escreva um livro semijornalístico sobre o Brasil; e confronto entre editores e autora, que resultou na publicação afinal renegada por Bishop. A própria existência de Brazil nos leva a discutir a possibilidade de se captar a totalidade de um país numa obra com esse caráter”, explica Armando Olivetti Ferreira, autor do doutorado Recortes na paisagem: uma leitura de Brazil e outros textos de Elizabeth Bishop, recentemente defendida na Universidade de São Paulo, orientada por Ivone Daré Rabello, e que inclui outros textos em prosa da poeta sobre o Brasil, como Uma viagem pelo Amazonas, apresen-tado no fim deste artigo, inédito em inglês e português.

O Brasil foi um bálsamo na biografia da poeta americana, nascida em Worcester, Massachusetts, tendo perdido o pai aos 8 meses e vendo a mãe enlouquecer quando tinha apenas 5 anos. A partir da juventude tornou-se poeta e alcoólatra. Em 1951, já tendo publicado um livro de poemas de certo sucesso aos 35 anos, resolveu fa-zer uma viagem de circum-navegação pela América do Sul, parando no Brasil e indo para o Rio de Janeiro, onde reencontrou a socialite Lota Macedo Soares, de família da elite carioca, capaz de dirigir um Jaguar, usar calça jeans e ter aulas com Portinari. Quando Elizabeth teve uma reação alérgica ao dar duas mordidas num

Não tão longe de Nova York

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Carlos Haag

>humanidades

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caju, tratou da americana e declarou-se a ela, que se mudou para o Brasil, aqui vivendo por 15 anos no seu primeiro lar. “O melhor de sua produção se deu nos anos de reclusão com Lota Soares, na Casa da Samambaia, em Petrópo-lis. Ali produziu Poems, que lhe valeu o prêmio Pulitzer e o reconhecimento internacional. No Brasil, Bishop livrou--se de um passado negativo: era alcoó-latra e tinha problemas com a falta de uma família”, explica Nadia Nogueira, da Universidade do Estado da Bahia, autora de Invenções de si em histórias de amor: Lota e Bishop. Mas o Brasil, antes de chegar ao Brazil, foi muito mais. “A poesia inicial de Bishop tem influências do alto modernismo anglo-americano, o que implica um rígido controle formal e um distanciamento do sujeito lírico. A permanência no Brasil lhe deu abertu-ra para explorar temas mais subjetivos, como os ligados à memória da infância, passada na Nova Escócia, que ela asso-ciava à rusticidade da Casa da Samam-baia. Mais tarde ela descobriu a poesia de Carlos Drummond de Andrade, so-bretudo os poemas sobre a infância em Itabira, que ela traduziu. Nessa poesia ela encontrou o tom de que precisava para tratar temas subjetivos, doloridos mesmo. A poesia dela, no Brasil, torna--se mais pessoal, mas mantendo sempre um alto grau de elaboração artística”, explica Regina Przybycien, da Univer-sidade Federal do Paraná e autora da primeira tese brasileira sobre Elizabeth Bishop, Feijão-preto e diamantes.

Um percurso cronológico de lei-tura do Brasil, antes de Brazil, nos textos em prosa de Bishop

começa necessariamente com o esbo-ço “Suicide of a moderate dictator”, de 1954, um breve texto de duas páginas, abandonado, como a contrapartida, em verso, em que a poeta descreve o enterro de Vargas a partir de um cine-jornal, comentando o comportamen-to do filho do presidente, visto como “personagem de desenho animado”, e da multidão. Em 1958, escreveria outro texto focalizando o país: “Uma nova capital, Aldoux Huxley e alguns índios”. Esse texto foi feito logo após a viagem empreendida com um grupo que incluía o autor inglês e que teve por destino Brasília, ainda em construção, e uma aldeia indígena em Mato Gros-

so, se destacando dos demais inéditos por ter sido retrabalhado e finalizado pela autora para ser apresentado para a revista The New Yorker, que não o quis publicar. “Lota e seu círculo eram totalmente contrários à construção da nova capital e Bishop compartilhava dessa opinião”, conta Ferreira. “Nesse artigo ela ressalta os contrastes: de um lado a cidade futurista de formas fan-tásticas e de outro a cidade livre dos candangos, desordenada e caótica: dois Brasis. Bishop gostou das formas arqui-tetônicas, mas as achou pouco práticas: salientou o desconforto interior e a falta de integração da cidade com seus ha-bitantes”, completa Regina. Em 1960, veio ainda “A trip on the Amazon”, um inédito que descreve a viagem de avião do Rio a Manaus. “Pouco depois desse périplo começaria a nascer o mais longo texto de Bishop relacionado ao Brasil. A oportunidade para usar o conheci-mento que vinha acumulando surgiu no início da década de 1960, quando

um convite dos editores da revista Life veio somar-se ao seu desejo de escrever um livro sobre o país”, explica Ferrei-ra. “Tenho muito material e acho que eu e Lota vamos nos divertir bastante, incluindo no texto as nossas piadas pre-feridas, as pessoas de que mais gosta-mos etc.”, escreveu Bishop em carta ao amigo Robert Lowell, em 1961, afir-mando considerar a tarefa “puramente comercial e uma espécie de penitência pelos meus anos de vagabundagem”, completando, entre parênteses: “Pro-vavelmente ninguém nunca vai ler o texto mesmo!”. Comentário curioso para uma escritora tão zelosa de cada vírgula de seu trabalho.

“Ela parece alheia às motivações que poderiam estar levando a Life a incluir um livro sobre o Brasil em sua coleção sobre Países do Mundo naquele momento, ou mesmo pouco consciente dos interesses ideológicos envolvidos nesse projeto editorial”, observa Fer-reira. “Não gosto da revista e não gosto deles. São pessoas iguais a esses vende-dores que ficam pressionando a gente. Mas quero ganhar dinheiro e a esta altura sei muita coisa sobre o Brasil, querendo ou não”, escreveu Bishop em carta à tia. “Ela que passava mais de 10 anos burilando um poema até encon-trar o tom exato, a palavra adequada, não admitia escrever um livro superfi-cial sobre o Brasil. É provável que tam-bém receasse ser julgada mercenária pelo público que admirava sua poesia, ou pior, que concluísse que seu talento poético se esgotara (um pesadelo que a perseguira durante toda a vida) e, por causa disso, aceitara escrever literatura menor”, analisa Regina. Escreveu o livro na segunda metade de 1961 e partiu para o que chamou de campo de bata-lha, a sede da Time-Life, para a revisão. Lá chegando, percebeu que os editores haviam alterado o texto. “Segundo ela, os revisores modificaram o seu estilo para colocá-lo na linha da empresa. Re-chearam com ‘mas’, ‘porém’, ‘entretanto’, ‘quase’, ‘provavelmente’, entre outros enxertos. As fotos também a decepcio-naram. Lamentava a ausência de fotos da natureza e ficou indignada porque, na página 89, a foto que supostamente retratava uma cena do Carnaval cario-ca era, na verdade, uma cena do filme Orfeu de carnaval. Também, segundo ela, haviam mudado títulos dos capí-

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comercial

e uma

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pelos meus

anos de

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tulos, entre outras coisas. Em resumo, os editores mutilaram bastante o tex-to”, conta Regina. “Entretanto, ainda há bastante de Bishop no livro. Na his-tória do sequestro da menininha, por exemplo. Um poema seu, inacabado, sobre os pobres do Rio começa com a imagem de uma menina recém-nascida encontrada no lixão. Portanto, meninas desamparadas são um tema recorrente. Basta lembrar que ela própria foi uma menina desamparada que perdeu o pai cedo e viu a mãe enlouquecer aos 5 anos”, nota a pesquisadora.

O momento em que Bishop es-creve Brazil é extremamente problemático em sua vida. De-

pois dos primeiros oito anos brasileiros desfrutados num sítio nos arredores de Petrópolis numa santa paz ao lado de Lota, a amiga é convidada por Carlos Lacerda, em final de 1960, após ser elei-to governador do recém-criado estado da Guanabara, para coordenar a imple-

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E mentação do que se tornaria o Parque do Flamengo. “Encerrava-se o período de conforto e as duas praticamente se transferem para o Rio, onde Lota passa a trabalhar nas obras do Aterro quase 12 horas diárias, destruindo a antiga e con-frontando as duas obras com a realida-de política do país”, avalia Ferreira. Foi nesse clima que veio o convite para fazer Brazil. “E, em 1961, quando Bishop, teve seu nome e trabalho associados à revista Life, o convite para a elaboração do livro partiu dos editores americanos, mas a escritora estava ávida por contribuir, de alguma maneira, para o governo do presidente Kennedy, o qual logo anun-ciava o desejo de uma relação produtiva com os artistas”, explica o pesquisador. “Todos parecem estar encontrando a sua verdadeira vocação nestes dias”, es-creveu a poeta. A começar por Lota, que trabalhava sem remuneração para La-cerda e a lista de Bishop incluía mesmo uma amiga que acabara de adotar uma garotinha brasileira. Na mesma época,

a escritora perguntara ao amigo Lowell se ele poderia mencionar “a alguém da Casa Branca” que ela “gostaria de fazer algo por seu país no Brasil”. “Em junho surgiu o convite da Time Inc. para que escrevesse o livro sobre o Brasil para sua série relacionada aos países do mundo e a resposta positiva foi imediata”, obser-va Ferreira. Ainda assim, os problemas entre ela e os editores também surgi-ram logo. “Eles me pedem um esquema de trabalho. Eles são inacreditáveis. A coisa tem mais a ver com a fabricação de chantilly a partir de subprodutos de uma fábrica de plásticos do que com li-teratura ou mesmo com jornalismo.” “O interesse de Elizabeth em flora e fauna contrapunha-se ao dos editores, voltado para pessoas e política, especificamente as circunstâncias relacionadas ao po-tencial do país para a democracia ao estilo norte-americano”, nota o pesqui-sador. “Minha impressão é que Bishop entendia pouco da emaranhada política brasileira e pouco se interessava pela

Vista do Parque do Flamengo: “rival” para quem perdeu lota no tempo de Brazil

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política em geral. Acho que ela repetia o que ouvia dos amigos. Não deixa de ser um paradoxo dela se mostrar uma liberal defensora dos direitos humanos nos EUA e uma conservadora antico-munista no Brasil”, avalia Regina.

M as, lembra a pesquisadora, o verdadeiro Brasil, mesmo em Brazil, estava no humor e

na arte do povo. Assim, após abarcar quatro séculos de história nomeando pouco mais de seis personagens polí-ticas (dom João VI, dom Pedro I e dom Pedro II, Getúlio Vargas, Juscelino Ku-bitschek e Jânio Quadros. Merece des-taque a ausência de Santos Dumont, cuja primazia aérea sempre foi motivo de ironia por parte da poe ta america-na), Elizabeth parte para a cultura bra-sileira. “Ela desdenhava a chamada alta cultura e dizia, por exemplo, que a li-teratura modernista brasileira era uma imitação dos modelos europeus, que os poetas brasileiros, uma vez famosos, eram mimados e achavam que não pre-cisavam exercer um rigor crítico sobre sua produção (disse isso sobre Manuel Bandeira). Das artes brasileiras, a que realmente admirava era a arquitetura”, explica Regina. “Ela amava a cultura popular e manifestava um sentimento de perda em relação às modificações que a modernidade ia trazendo para o modo de vida das cidadezinhas do interior e para o Carnaval. Adorava co-lecionar livretos de literatura de cordel, letras de samba antigos e até frases de para-choque de caminhão. Admirava o humor dos brasileiros pobres, sem-pre prontos a fazer piadas até de suas próprias desgraças. Seu olhar era o de uma viajante-etnógrafa. Buscava uma alteridade que, para ela, estava associa-da a um certo primitivismo romântico, a um modo de vida que ela dizia já ter desaparecido na América do Norte”, acredita a pesquisadora.

Apesar disso, a autora insistiu em renegar o livro. Em 1965, os editores propuseram que revisasse o texto, mas ela recusou. O livro foi republicado em 1970 com alterações substanciais em três capítulos e substituições de várias fotos, mas a poeta não teve participa-ção alguma, embora seu nome ainda constasse dos créditos. Apenas em 1984, após sua morte, surgiria nos EUA uma edição radicalmente nova de Bra-

zil, já sem o nome de Elizabeth Bishop. E, em 2008, o primeiro capítulo do li-vro, “Um povo caloroso e sensato”, foi incluído na coletânea Elizabeth Bishop: poems, prose and letters, reproduzindo fielmente o texto publicado em 1962, embora este tenha sido renegado pela autora. Por anos ela alimentaria o pro-jeto de escrever um segundo livro pa-ra substituir o renegado Brazil. “Estou planejando escrever um livro de prosa cujo título provisório é Feijões-pretos e diamantes. Deve ser uma combinação de livro de viagens, uma memória e um livro de fotos. Gostaria de fazer o Bra-sil parecer menos remoto e menos um objeto de fantasia pitoresca. Ele não é realmente tão distante de Nova York”, escreveu. Por que então a rejeição tão forte a Brazil?

“Acho que foi baseada em três fa-tores: a qualidade do texto, motiva-ção sempre assumida pela autora; a instabilidade emocional de Bishop,

sempre insegura à espera de críticas, numa atitude exacerbada nessa época em que Lota deixava de desempenhar o papel protetor e, em certo sentido, maternal, materializado em presença e apoio ininterruptos; o fato de que os editores da Time-Life não eram uma empresa jornalística qualquer, mas um dos mais importantes porta-vozes da ideologia norte-americana ao longo do século XX, especialmente durante a Guerra Fria”, explica Ferreira. Sobre este ponto, continua o pesquisador, é possível que a poeta tenha sido ingê-nua, que se tenha conscientizado da situação apenas no confronto com os editores em torno do seu escrito. “Suas críticas, porém, não questionam a ideo-logia da Time-Life, embora apontem a ignorância dos editores e a intenção de apresentar as ideias preconcebidas que eles têm de um país sem nenhuma interferência.” A ingenuidade também faz parte da alma do poeta? n

Orlando Villas-Boas em fotos de Brazil

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Uma viagem pelo Amazonas [1960]

Desde o aeroporto até Manaus – com Isaac. Manoel e eu não fazíamos ideia de sua importância e cometemos gafes horríveis. Primeiro eu dei um grito diante da beleza das favelas. – A estrada atravessa várias pontes sobre vales profundos. Esses regos estão repletos de barcos usados como moradia – naquela hora quase todos encalhados na lama, em todas as posições. Tetos em folhas de palmeira, alguns num trabalho muito bonito, ou em zinco – alguns com portas quadradas, como a arca de Noé – e centenas deles tristemente encalhados na lama e no capim alto. – Estava começando a escurecer – o sol estava se pondo – e desses vales de barcos encalhados vinha fumaça – Fumaça cor-de-rosa, desses longos e profundos vales cheios de barcos encalhados – barcos ofegantes – leve fumaça azulada – talvez todos estivessem cozinhando o jantar – A luz no oeste era cor-de-rosa claro, como melão; o ar, cheio de fortes e agudos cantos de sapos – um tipo de sapo diferente daquele de Petrópolis – o sr. Sabbá perguntou a Rosinha se ela gostaria de ver a refinaria – e eu comecei a compreender quem ele era quando Rosinha respondeu, com falso entusiasmo, que adoraria.

O menino correu pelo cais e escalou o paredão, arrastando--se, segurando em plantas e pedras. Ele parecia prestes a cair e ser engolido a cada segundo. O capitão apareceu sobre nossas cabeças, na escada, de pijama branco, e atirou na margem o que parecia ser um envelope grosso – por que ele não o entregou ao menino é um mistério. O menino agora parecia ter uma lanterna, e arrastou-se perigosamente ao longo do topo do paredão, escorregando e caindo e olhando para o envelope – como num estranho jogo – os moradores silenciosos e sonolentos, observando conosco o rio que corria de maneira furiosa e para trás, mesmo – Afinal ele o pegou. – O capitão gritou: ‘Leve para o Correio’, e o menino correu para a escuridão. Cinco minutos depois ele apareceu de volta – sob o paredão, sobre o pequeno cais, que foi retirado assim que ele passou – a corda foi solta de seu amarradouro doméstico e começamos a nos afastar – e isso foi tudo o que vimos de Uricurituba –

* originais em Vassar College, Special Collections; Box ”prose unpublished”,

Folder 55.4, 9p. Datilografado; sem data (1960); título ms: “on the Lauro Sodré”.

Tradução de armando olivetti Ferreira.

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ciência política

Depu

taDo

profissional

ao contrário do mito,

parlamentares entram no

congresso com experiência

Joselia Aguiar

Na grande imprensa costuma-se afirmar que o Parlamento brasileiro é prejudicado pela presen-ça de forasteiros, gente com pouca ou nenhuma experiên cia na política: cantores, pastores, atores, apresentadores de TV, jogadores de futebol, ca-pazes de ganhar votos para depois “desaparecer”. Ainda segundo esse consenso, há outros tantos

políticos novatos que são eleitos e depois usam a cadeira do Legislativo como trampolim, pois preferem cargos em municípios e estados, e logo que podem deixam a Casa quando surge uma oportunidade. Ao cruzar, porém, dados referentes à circulação na Câmara dos Deputados entre 1946 e 2007, a cientista política Mayla Di Martino encontrou re-sultados bastante diferentes: no Brasil predomina o político profissional, e o que parece um entra e sai é, ao contrário, parte de uma estratégia de longo prazo para justamente se manter na carreira, como ela analisa em A política como pro-fissão, sua tese de doutorado em ciência política defendida recentemente na Universidade de São Paulo orientada por Fernando Limongi.

“Para ocupar uma cadeira no Legislativo nacional é pre-ciso ter entrado no jogo da política e ter tido algum sucesso nele. É preciso se tornar um profissional, ter vencido eleições ou ter assumido cargos políticos indicados”, afirma a pes-quisadora. Nos últimos 15 anos, segundo ela, os chamados novatos que entraram na Câmara dos Deputados venceram, em média, anteriormente pelo menos duas eleições para outros cargos políticos e 80% deles tiveram algum tipo de experiência política prévia.

À primeira vista, no entanto, há dados que parecem su-gerir que o senso comum está certo. Como explicar por que apenas a metade dos deputados, em média, se reelege? A com-paração com os Estados Unidos aumenta o contraste: lá são reeleitos 90% dos deputados. No Brasil, também é elevado o número de deputados que interrompem o mandato antes de sua conclusão. A maioria se licencia para ocupar uma vaga de ministro de Estado ou de secretário em governos estaduais. Há um percentual que abandona os dois últimos anos da legislatura: em média, desde 1986, 17% de todos os deputados que chegaram ao Parlamento disputaram uma eleição para prefeito enquanto estavam na cadeira de depu-tado. Para um parlamentar americano, é impensável trocar uma cadeira em Washington por uma de prefeito.

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congresso nacional, em Brasília

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tamento parlamentar na França, aliado à profissionalização dos parlamentares, levou a essa situação conhecida como cumul des mandats, acúmulo de man-datos. “Por ser um político profissional, o deputado francês precisa acumular recursos políticos que o mantenham progredindo na carreira: a oportuni-dade de acumular um cargo de prefeito com o cargo de deputado nacional traz oportunidades óbvias em termos de con-tato com as bases, influência perante o partido e recursos para serem usados na campanha de reeleição ao Parlamento ou na disputa por outros cargos na esfera nacional”, acrescenta a pesquisadora.

Na França como no Brasil, portanto, a procura da parte dos deputados fede-rais por cargos no âmbito local e regio-nal não implica a falta de importância da carreira parlamentar na esfera nacio-nal. Trata-se de uma estratégia de parte dos deputados eleitos de dirimir riscos de derrota eleitoral em eleições futuras, em sistemas políticos multipartidários e marcados por uma alta volatilidade elei-toral. “A minha tese tenta desmistificar esse caráter excepcional que procuram atribuir ao Brasil, mostrando que os ca-minhos que levam ao Parlamento, por aqui, como em outros países desenvol-vidos, são bastante parecidos.”

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emA aparente “desistência” do deputado

brasileiro, no entanto, tem explicação de longo prazo, diz Mayla Di Martino, exigências da complexa vida política bra-sileira. “O sentido da carreira política no Brasil não é ilógico, não está situado de ponta cabeça, como fazem crer alguns estudiosos. Se o deputado abandona a cadeira em Brasília, é porque os cami-nhos que ele tem de trilhar para conti-nuar crescendo na vida pública são tor-tuosos. Muitas vezes é preciso voltar para uma função regional como meio para prosseguir na carreira política nacional. Isso tem a ver com a estrutura do recru-tamento político para o Parlamento, que, desde sempre, foi muito regionalizado, ou seja, muito dependente dos interesses e das eleições locais”, explica.

Quanto à presença de forasteiros, es-ta pode até ser alardeada e muito notada, mas não é o padrão. Há, é claro, lugar para os fenômenos midiáticos, como apresentador de TV, locutor de rádio, cantor e até jogador de futebol, porém eles são minoria, concorda David Fleis-cher, Ph.D. em ciência política e profes-sor da Universidade de Brasília (UnB). O comum é o perfil de deputados que representam um reduto, uma microrre-gião, diz. “É o caso de um prefeito que vira deputado e, não raras vezes, volta a ser prefeito também”, afirma. De modo similar, o Senado recebe ex-governadores que, mais tarde, podem voltar a governar estados. Portanto, estar fortalecido em cidades e estados é fator decisivo – nem que seja elegendo alguém de confiança para os principais cargos locais.

Fabiano Santos, Ph.D. em ciência polí-tica e professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), constata que as novas pesquisas sobre o Legislativo têm de fato revelado que este tem muito mais força do que parece. “E estamos mudando para um Congresso mais profissional, dotado de assessoria extremamente bem qualificada, que tem por base de recrutamento o mérito”, ava-lia. Argelina Cheibub Figueiredo, Ph.D. em ciência política e também professora do Iuperj, lamenta que o senso comum ainda prevaleça. “Apesar de ser crescente o número de pesquisas sobre o Legislativo brasileiro, ainda prevalece, especialmente na imprensa, a visão caricata que dele se tem e as interpretações baseadas em fatos excepcionais, e não nos processos mais regulares.” Ela lembra que o Parlamento

Bastidores do congresso: política complexa do vai e vem

brasileiro já deu várias provas de matu-ridade. “Nós esquecemos que, apesar de todas as medidas restritivas tomadas pelo regime militar durante seus 20 anos de vigência, o Legislativo brasileiro funcio-nou, com a interrupção de menos de um ano em 1969, desde 1946. E durante todo esse período ele teve papel significativo no processo político, mesmo durante a ditadura, quando, restrito na sua atuação essencialmente política, se preparou de modo técnico e organizacional.”

Circulação - Se na comparação com os Estados Unidos há grandes diferenças na circulação parlamentar, a observação do que ocorre na França levou Mayla Di Martino a encontrar aproximações. Principalmente no que se refere ao “vai e vem” da carreira parlamentar, que caracteriza o Brasil. Também naquele país, no ano de 2006, por exemplo, 89% dos deputados nacionais acumulavam o mandato na Assembleia Nacional com um cargo eletivo regional ou local. “Co-mo no Brasil, os deputados franceses também precisam manter esse elo com a política local se quiserem se manter progredindo no mercado político”, ex-plica a cientista política.

Especialistas franceses dizem que o padrão muito regionalizado de recru-

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Em seu banco de dados há a trajetó-ria individual de 4 mil deputados fede-rais, desde 1946 até 2007 – da primeira função pública até a saída definitiva da Câmara Federal –, incluindo todas as eleições disputadas e licenças ocorridas durante a vida parlamentar. Para com-preender esses números, usou uma me-todologia de análise mais ampla do que a empregada em pesquisas anteriores. “Foi possível demonstrar que, apesar do aumento do número de interrupções na carreira parlamentar, para ocupar mi-nistérios ou secretarias, ou para entrar na disputa por prefeituras, o tempo to-tal de permanência dos deputados tem aumentado”, afirma.

Prós e contras - A restrição do acesso à própria carreira política é a consequên cia imediata de tal profissionalização, cons-tata Mayla Di Martino. Em lugares onde a política é dominada por profissionais, a entrada de pessoas de fora do jogo é muito restrita, e os participantes tendem a criar instrumentos para permanecer com o controle. Basta lembrar que os le-gisladores votam sobre inúmeros aspec-tos que dizem respeito à sua carreira, no interior ou no exterior do Parlamento, como, por exemplo, as regras eleitorais. “Mas é assim mesmo que tem funciona-do nos países desenvolvidos, seja sob o parlamentarismo ou sob o presidencia-lismo. Esse também tem sido o caso do Brasil”, diz a pesquisadora.

Como efeito negativo da profissiona-lização, entendida com restrição da cir-culação nas elites políticas, constrói-se, assim, uma barreira que distancia cada vez mais os eleitos daqueles que os ele-geram. Resguardados em suas posições, os parlamentares não se sentem tão obri-gados a responder às demandas dos seus eleitorados. Os escândalos, assim, podem se tornar comuns e alcançam até mesmo instituições prestigiosas como o Parla-mento britânico, que, em 2009, teve seus representantes flagrados usando verbas de gabinete em benefício próprio.

A capacidade organizacional dos Parlamentos é a consequência positiva da profissionalização, explica. “Estudos sobre o Congresso norte-americano in-dicam que parlamentares mais adapta-dos e experientes têm maior capacidade de aprovar leis”, explica a pesquisadora. Também naquele país existe uma car-reira interna no Legislativo Federal, o

que torna a vida parlamentar um obje-tivo em si mesma – alguns legisladores podem angariar votos, ou posições de poder junto ao seu partido, por meio de seu trabalho nas comissões parla-mentares, uma vez que muitas dessas posições internas do Congresso têm prestígio e visibilidade nacional. “Isso faz com que o Congresso dos Estados Unidos seja muito ativo e autônomo perante o Executivo”, acrescenta.

Ainda não está respondido, porém, segundo ela, se a profissionalização da política parlamentar é capaz de ense-jar a configuração dos Parlamentos nos moldes dos Estados Unidos, com esse modelo de carreira política inter-na. “Muitos especialistas gostariam de ver funcionando no Brasil um modelo parecido com o norte-americano, na esperança de que o Legislativo brasi-leiro seja menos dependente da agenda política ditada pelo Executivo.”

O desprestígio do Parlamento bra-sileiro, para David Fleischer, da UnB, está ligado não somente à sequência de escândalos que constantemente o para-lisa como também ao poder reduzido que tem em relação ao Executivo. “O presidente aqui tem poderes imperiais, o que tira a autonomia das duas Casas.

Pode, por exemplo, fazer mudanças no Orçamento a qualquer hora e fazer nomeações sem precisar da aprovação. Nos EUA não é assim”, pondera. Não é à toa que em pesquisas de opinião pública o Congresso brasileiro apareça como a instituição de menos confiabilidade, lembra o professor da UnB.

Fabiano Santos, do Iuperj, diz que é preciso avançar na capacidade de iniciar agendas próprias, independentemen-te do Executivo, em especial nas áreas econômica, financeira e administrati-va. “Na América Latina estamos bem à frente, não só em termos de institucio-nalização de procedimentos, capacidade de armazenar e distribuir informações sobre a atividade parlamentar, como também em dados para processar de-cisões. Em relação aos EUA e demais países desenvolvidos, nos saímos bem em certos aspectos e não tão bem em outros”, compara.

A responsabilidade dos partidos na política nacional é um dos pontos que merecem ser explorados em futuras pesquisas e debates. “É muito fácil ex-pulsar o membro de um partido diante de denúncias da corrupção, e é muito difundida a tese de que, no Brasil, o partido político tem pouca influência sobre o resultado das eleições e que a vitória se deve mesmo ao carisma ou ao currículo de cada candidato, ou seja, a tese do personalismo político”, afirma Mayla Di Martino.

Desse modo, o paradigma da profis-sionalização permite enxergar a situa-ção por outro prisma, acrescenta: para permanecer no jogo, os candidatos de-pendem do partido político: precisam ganhar indicações para cargos eletivos ou cargos de confiança; precisam de abrigo nos tempos de infortúnio eleito-ral – quando perdem as eleições, afinal, a maioria dos políticos teve que inter-romper ou deixar em segundo plano a sua profissão original. “É preciso uma mudança de paradigma na maneira co-mo se analisam os partidos políticos no Brasil: a partir do momento em que os próprios analistas políticos passarem a acreditar que eles realmente influen-ciam a vida política brasileira, quem sabe consigam fazer a população aten-tar para o fato de que, no momento da eleição, é importante punir o partido pelo erro de seus candidatos”, afirma a pesquisadora da USP. n

Onde a política é dominada por profissionais a entrada de pessoas de fora é restrita

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escritor americano F. Scott Fitzgerald não tinha dú-vidas em afirmar que nós, os pobres mortais, éramos diferentes dos ricos, porque, afinal de contas, eles ti-nham mais dinheiro do que nós. Mas será que apenas o dinheiro basta para explicar tudo? Os indicadores

de desigualdade e da renda têm mostrado que essa diferença entre ricos e pobres no Brasil vem caindo, mas será que apenas eles bas-tam para nos dar um painel preciso do que é a segregação social nacional? “A renda é uma dimensão muito relevante para a análise da pobreza e da desigualdade e não é à toa que as comparações internacionais focam esta dimensão. Entretanto, nosso esforço no Centro de Estudos da Metrópole (CEM) tem se orientado a examinar a pobreza e a desigualdade em suas múltiplas facetas, porque a situação de pobreza de um indivíduo é resultado da com-binação de diferentes aspectos, além da renda. Estes são: seu acesso ao mercado formal de trabalho, aos serviços públicos e a vínculos sociais e associativos. A situação de desproteção de um indivíduo é resultado dessas múltiplas dimensões”, explica a diretora do CEM, a cientista política Marta Arretche.

Assim, continua a pesquisadora, embora seja importante que nos pautemos por trabalhos recentes que mostram que a distri-buição recente tenha melhorado como forma de entender o que acontece no país, não se pode deixar de levar em conta outras facetas da pobreza e desigualdade que têm igualmente um grande impacto no bem-estar das pessoas, e os estudos do CEM se preo-cupam exatamente em ampliar essa visão.

Daí o seminário internacional Metrópole e Desigualdades que acontece entre os dias 24 e 26 deste mês, mais uma etapa no processo de internacionalização desse Cepid (Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão) da FAPESP, que também é um INCT (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia). O seminário discutirá justamente esses três eixos de pesquisa e as peculiaridades do processo brasileiro de desenvolvimento recente.

“Nossas pesquisas partem do pressuposto teórico de que o tra-balho, os serviços sociais e a sociabilidade são mecanismos decisivos para a superação de atenuação das situações de pobreza. Você pode ter dois indivíduos com a mesma renda nominal, mas, se um deles tem acesso a habitação subvencionada pelo Estado, saúde etc. e o outro não tem, um é mais pobre e segregado do que o outro. É preciso analisar sempre além da renda e é isso que o seminário propõe. Isso, aliás, está em sintonia com os estudos internacionais mais recentes”,

Sociologia

Seminário discute dilemas da segregação social brasileira

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Mar de desigualdade:

prédio no Morumbi e favela em

Paraisópolis

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Desigualdadesem igual

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analisa Marta. “A pobreza até pode estar sendo atenuada, mas por outro lado a desigualdade pode estar sendo reproduzida.”

O primeiro eixo do seminário tratará do acesso ao mercado de trabalho e se inicia com uma leitura inusitadamente “otimista” do estado atual da metrópole paulistana. “Os fluxos migratórios mudaram de sinal já nos anos 1990, quando passaram a apresentar sinais líquidos negativos após décadas de crescimento acelerado, uma tendência que se explica tanto por fatores locais, como a perda de dinamismo do mercado de trabalho de menor qualificação e o alto custo da moradia, quanto por fatores externos como o surgi-mento de novos polos de desenvolvimento em outras regiões do país”, explica o sociólogo Álvaro Comin, do CEM.

Ou seja, São Paulo, ao contrário do que se dizia, parou de crescer e de receber migrantes, com mais gente saindo que entrando, em especial a força de trabalho de menor qualificação. “Está havendo uma redução na participação relativa da parcela mais pobre e menos escolarizada da população.” Mais: segundo o pesquisador, entre 2003 e 2007 o crescimento do emprego formal foi da ordem de 4,15% ao ano e pela primeira vez em duas décadas o número de pessoas com carteira assinada supera os 50%.

“A cidade está ganhando em serviços mais sofisticados e a de-manda de mão de obra foi em força de trabalho dita mais elitizada, o que sugere que será uma metrópole com perfil mais ‘classe mé-

dia’”, explica Comin. Ao mesmo tempo, acompanhando essa evolução, cresce também o nível de escolaridade. “Os indivíduos formalmente empregados têm muito mais chances de se manter atualizados em suas áreas de atuação, reduzindo os riscos de desemprego e aumentando suas oportunidades de progressão profissional.” Até aí tudo parece indicar um mundo ideal. Mas é nesse ponto que surge a inflexão da desigualdade com o aparecimento de um novo padrão de segregação: os mais pobres que não se encaixam nessa nova estrutura, mas ainda dependem da cidade para sobreviver (empregadas domésticas e outros tipos de emprega-do), são obrigados a morar cada vez mais longe, porque a cidade não os comporta, seja pelo preço da moradia, seja pelo novo perfil exigido.

“É um ciclo complexo: a cidade fe-chou suas portas para um determinado

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perverso dessa ‘elitização’ da cidade. Um auxiliar de escritório precisa apresentar diploma universitário, sabe-se lá de que faculdade, mas precisa. A pergunta que fica é: qual é a recompensa de se ter es-tudado para acabar fazendo telemarke-ting e ganhar tão pouco? Confirmando o que já está na nossa cultura de que o estudo não leva a nada.” “Tudo o que parece bom da imagem de São Paulo parece, na verdade, trazer um quê de ruim”, nota Comin.

Um outro eixo da desigualdade estu-dado pelo CEM está nas chamadas redes de sociabilidade. “A pobreza tem uma dimensão territorial: pessoas pobres podem estar segregadas espacialmente, mas podem estar unidas espacialmente, combatendo exatamente esse efeito da segregação. A questão da desigualdade de acesso a políticas de sociabilidade faz indivíduos terem condições e futuros diferentes”, explica o sociólogo Eduardo Marques, do CEM.

A partir de mapas que mostram as redes de sociabilidade de indivíduos, Marques mostrou que essas relações com vizinhos, familiares, amigos, co-legas etc. importam muito, acima de escolaridade e outros fatores, se o indi-víduo está ou não empregado, a quali-dade do emprego e a sua renda. A partir desses dados, o pesquisador formulou propostas para o Estado que poderiam aproveitar essa relação inevitável entre indivíduos e suas relações interpessoais, uma forma eficiente de auxiliar na hora de tentar encontrar emprego.

Afinal, uma pesquisa de Nadya Guimarães feita junto a desempre-gados que procuravam trabalho em agências públicas e privadas revelou que 80% dos entrevistados consegui-ram ocupação por meio de sua rede de amigos em outra ocasião em detri-mento das agências (o que, é claro, não os impede de tentar os organismos co-mo reforço). “Isso revela que pessoas

Reflexos: trabalho, redes sociais e serviços públicos para explicar a segregação

tipo de trabalhador, que se vê obrigado a morar em municípios próximos ou regiões próximas, expulso da metrópo-le. Agora problemas como transporte, enchentes etc. viram questões imensas. O que havia para ‘comemorar’ num primeiro momento é motivo de grande preocupação quando se pensa melhor”, observa o pesquisador. Afinal, as ques-tões ganham esfera metropolitana, já que as mazelas englobam áreas mais distantes e com certeza mais pobres e com menores condições de resolu-ção do que uma metrópole como São Paulo, pondera Comin. “Além disso, você só trabalha com duas esferas: o Estado de São Paulo e as prefeituras, que não colaboram entre si, basta lem-brar da guerra fiscal e das questões dos partidos políticos.”

Até mesmo o perfil industrial de São Paulo está alterado, embora o es-tado continue a concentrar os mesmos 50% da produção industrial em sua área. “As indústrias tradicionais que usavam trabalhadores comuns estão indo para o interior e a cidade está com a indústria que usa mais tecno-logia. A economia da cidade está mais intensiva em capital e menos intensiva em força de trabalho.”

Expulsão - “No geral, a pobreza está sendo convidada a se retirar da cida-de e estamos exportando problemas como favela, miséria, falta de saúde, entre outros. Ao mesmo tempo, os ‘ex-pulsos’ estão sendo impedidos de usar sistemas de serviços públicos de outros lugares, porque pedem a eles compro-vantes de trabalho e residência. Daqui a 20 anos, quando olharmos São Pau-lo, pode-se até pensar que tudo está bem, mas os problemas vão estar na nossa frente, logo adiante do rio, nas cidades em torno, com a diferença de que essas cidades têm pouca chance, como nós, de fazer política e mudan-ças”, avisa Comin.

As pesquisas de Nadya Guimarães, do CEM, mostram outra realidade cruel. “Agora se pede diploma de segundo grau ou universitário para qualquer função. Um gari da prefeitura, por exemplo, precisa apresentar diploma de segundo grau, tamanha a distorção. É um efeito

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com amigos têm muito mais chances de ter um emprego e, assim, ampliar a renda e, logo, diminuir a desigualda-de, por meio de suas relações pessoais, mostrando que essas redes de relações são mais efetivas do que as políticas públicas”, analisa Marta.

“O combate à pobreza não pode de forma alguma prescindir das políticas sociais tradicionais, assim como de polí-ticas macroeconômicas que promovam empregos de boa qualidade e em gran-de quantidade. Mas dado que algumas redes apresentam padrões importantes de penetração no tecido relacional das comunidades, a sua integração às polí-ticas do Estado pode ajudar a lhes dar maior resolubilidade, tanto fazendo as políticas chegarem aos seus usuários de forma mais precisa quanto ajudando a customizá-las, inclusive em termos de linguagem, mediando culturalmente as relações entre o Estado e as comu-nidades”, observa Marques.

“No caso específico do emprego, o desenvolvimento de agências de empre-go que disponibilizem informação inte-grada sobre trabalho, mas se localizem de forma radicalmente descentralizada nas comunidades, poderia auxiliar na redução do efeito do mecanismo da localização inicial do migrante e de entrada de jovens no mercado de traba-lho, distribuindo mais equitativamente acessos a informações e estruturas re-lacionais pouco locais.”

Favor - Se o emprego ainda depende daquela informação amiga de um ami-go, a boa notícia está no terceiro eixo de pesquisas do seminário sobre os ser-viços públicos. “Se você pegar alguém numa situação bem difícil: ele está de-sempregado numa metrópole. Como estará a vida dele? Apesar de todas as dificuldades, hoje os filhos dele podem continuar na escola e ele continuará contando com os serviços de saúde. Tudo isso sem precisar de favores ou benesses de nenhum político”, conta Marta Arretche. “A situação dele numa metrópole, com certeza, é bem melhor do que se não estivesse nela.”

Segundo a pesquisadora, as regiões metropolitanas não são os piores lu-gares do Brasil. “Classifiquei todas as cidades nacionais segundo essa pers-pectiva ampliada da pobreza que ca-racteriza os estudos do CEM: renda, saúde, educação e habitação. Todas foram classificadas segundo um índi-ce que varia de 1 a 6, no qual 1 indica as cidades com melhor situação e 6 as cidades com a pior situação de renda e social. A grande maioria das cidades das regiões metropolitanas está entre 1 e 2, ou seja, entre aquelas com os melhores indicadores”, explica.

Para ela, os principais problemas pa-recem ser as condições de mobilidade urbana, isto é, infraestrutura urbana e transporte. Outro dado positivo levanta-do por Nadya Guimarães é que 98% das pessoas nas grandes metrópoles (Rio, Salvador, Belo Horizonte, São Paulo) têm acesso aos serviços públicos dire-tamente, o que indica a quase extinção do clientelismo nesse campo. Estudos comparados indicam que a desigualdade de acesso a serviços públicos no mundo

vem caindo, ao passo que a desigualdade de renda vem aumentando.

“Nessa perspectiva, o Brasil parece estar seguindo uma trajetória particular, pois a democracia brasileira tem conse-guido produzir redução da desigualdade de renda combinada à redução da desi-gualdade de acesso a serviços públicos”, pondera a diretora do CEM. A desigual-dade também pede uma reflexão políti-ca, e não apenas econômica.

“A expectativa da maior parte dos cientistas sociais no início da década de 1990 era de que o Estado brasileiro seria incapaz de atender às demandas da dívida social herdada do regime militar. A ampliação da participação política combinada à incapacidade do Estado para atender às demandas por integração social constituiriam uma sé-ria ameaça à democracia”, diz Marta. “Essas expectativas se mostraram in-fundadas, pois a democracia brasileira tem revelado paulatina capacidade de incorporação social, ou seja, o Brasil está seguindo a trajetória clássica das democracias modernas nas quais a par-ticipação política cria oportunidades e incentivos institucionais para uma pro-gressiva integração social das massas.”

Foram as instituições políticas bra-sileiras que permitiram a incorporação do eleitorado e a entrada das demandas. “Inclusive das camadas mais baixas. Os governos que se seguiram à ditadura le-varam cada vez mais adiante na agenda da redemocratização o resgate da dívi-da social deixada pela ditadura. Não há dúvida de que a concentração de renda e o acesso limitado das camadas mais baixas da sociedade tiveram origem na configuração de forças políticas e nas políticas públicas priorizadas pelos governos de plantão”, afirma a cientista política Argelina Figueiredo. “Desde a redemocratização nos anos 1980 es-se quadro social começou a mudar e vem mudando com intensidade cada vez maior. A dimensão dessa mudança mostraria que ela foi significativa se compararmos com o timing de pro-cessos de mudança social equivalentes nos países hoje com democracia con-siderada ‘consolidada’.” n

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resenha

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O slogan “a emissora de elite”, que nota-bilizou a Rádio Gazeta, não se referia a uma elite econômica, mas cultural,

transmitindo programas de auditório gra-tuitos e acessíveis. Como num conto de fada ou num sonho de ficção científica, no período de 1943 a 1960 a Rádio Gazeta dispôs de orquestra sinfônica, coral, con-junto de jazz, pianistas e cantores de nível internacional. Foi marcante a liderança de Cásper Líbero na direção da emissora.

Por ocasião da inauguração, em 1943, as transmissões ainda eram realizadas no estúdio da Rádio Educadora, a primeira emissora de rádio regular de São Paulo, fundada em 1923. Essa rádio pioneira tinha ainda um caráter amadorístico e muito de sua história me foi narrada por minha mãe, Sonia Rosenberg, que lá teve seu primeiro trabalho, como secretária da diretoria, após se formar no Mackenzie.

Referindo-se aos pilares da Rádio Ga-zeta, Guerrini analisa o papel de Souza Li-ma, “o príncipe dos pianistas brasileiros”, da programadora Vera Janacopulos e do maestro Armando Belardi. Souza Lima, discípulo de Chiaffarelli, teve a oportuni-dade de permanecer por 11 anos na Euro-pa, estudando no Conservatório de Paris com Marguerite Long. Conviveu com grandes músicos, como Darius Milhaud, Jacques Ibert, Maurice Ravel e Nadia Bou-langer. Sob a regência de Souza Lima, a Orquestra Sinfônica da Rádio Gazeta apresentou solistas como Yara Bernette, Adolfo Tabacow e Eunice de Conte, entre tantos outros intérpretes.

Um dos programas emblemáticos da Rádio Gazeta, Música dos mestres, era apresentado de segunda a sábado, das 13 às 14 horas. Com programação de Vera Janacopulos, seu prefixo ficou gravado na memória dos ouvintes fiéis – Ária da corda sol, de Bach.

Vera Janacopulos (1896-1955) nasceu em Petrópolis e viajou com a família para

a França com 4 anos. Além de interpretar autores france-ses, aperfeiçoou-se em música alemã com Lili Lehmann e radicou-se em São Paulo em 1940, atuando na Rádio Gazeta durante oito anos. Apresentou-se no Brasil e no exterior, convivendo com grandes compositores e interpretando suas obras (Stravinsky, Prokofiev, De Falla, Fauré, Milhaud). As mais ilustres discípulas de Vera Janacopulos em São Paulo foram Magdalena Lébeis e Celina Sampaio. Desta última recebi os ensinamentos da escola de Vera Janacopulos, que buscava o aperfeiçoamento da dicção. Esses “segredos” da arte do canto me foram transmitidos por Celina Sampaio (1909-1974), assistente de Vera Janacopulos, que se apresen-tava na Gazeta, sob a regência de Armando Belardi.

O maestro, nascido em São Paulo, em 1900, substituiu Souza Lima no cargo de diretor artístico da Gazeta, onde se destacou em três programas: Cortina lírica, Grande soirée de gala e Teatro de opereta. Belardi diplomou-se na Itália e contrastava com as figuras de Souza Lima e Vera Janacopu-los. Enquanto esses tinham uma formação mais requintada, Belardi manifestava um gosto musical mais restrito e con-servador, atuando na Gazeta até 1960.

Em entrevista para O Estado Belardi nos deu a sua versão sobre a decadência do gênero lírico: “Quando o elenco de uma ópera vinha de navio, treinava em conjunto durante a viagem. Com o advento do avião, cada cantor chegava de um lugar diferente e todos se encontravam na véspera, com pouco tempo de entrosamento nos ensaios.

A elite no ar transcreve depoimentos de Nilceia Baron-celli, Rosinha Spiewak Brener, Eduardo Escalante, Mário Fanucchi, Walter Lourenção, Júlio Medaglia, Niza de Castro Tank, Gilberto Tinetti, entre muitos outros. São numerosos os artistas de renome internacional que participaram da Rádio Gazeta, como Villa-Lobos, Eleazar de Carvalho, Jac-ques Klein, Sebastian Benda, Fritz Yank, Anna Stella Schic, Agnes Ayres. Aliás, o livro ficaria mais completo com um índice onomástico.

A obra revela a formação sólida de Irineu Guerrini Jr. em áreas teóricas e práticas. Doutor pela USP, professor universitário, autor de vários livros, foi produtor, diretor e apresentador da BBC, em Londres.

A emissora de eliteEstudo conta a história da rádio Gazeta e seus programas

Léa Vinocur Freitag é professora titular pela Escola de Co-municações e Artes (USP), doutora em ciências sociais (USP), realizou gravações de canto para a Rádio USP e Rádio Cultura. Participou de júris na Rádio France.

Léa Vinocur Freitag

A elite no ar - Óperas, concertos e sinfonias na Rádio Gazeta de São Paulo (1943-1960)

Irineu Guerrini Jr.

Editora Terceira margem e FaPESP, 2009

208 páginas r$ 38,00

Page 97: Um telescópio brasileiro nos Andes

livros

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PESQUISA FAPESP 169 n março DE 2010 n 97

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A antropóloga Claudia Barcellos mergulha na experiência pessoal de estudantes brasi-leiros que foram estudar no exterior, des-cobrindo em suas emoções e vivências co-tidianas pistas para o estudo da identidade nacional. Movendo-se entre o discurso dos entrevistados e os clássicos do pensamento nacional, a autora se debruça sobre a rede de significados, símbolos e estereótipos do que é ser brasileiro, oferecendo um interessante olhar sobre o tema.

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Imagens do sagradoFernando de Tacca Editora Unicamp/Imprensa Oficial 200 páginas, R$ 40,00

O livro trata do embate midiático de ima-gens do candomblé publicadas nas revistas O Cruzeiro e Paris Match em 1951. Fernando de Tacca analisa o fato midiático em relação à documentação fotográfica do ritual.

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