Über die zukunft unserer bildungsanstalten

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Über die Zukunft unserer Bildungsanstalten, F. Nietzsche (Vorträge, 16. Januar, 6. und 27. Februar, 5. und 23. März 1872) HISTÓRIA E ESTABELECIMENTO DO TEXTO A forma e o contexto nos quais as conferências Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino foram efetivamente pronunciadas determinaram, em grande medida, a história da elaboração e a reórica de seu texto, servindo de referência concreta – talvez a única – da recepção das propostas pedagógicas de Nietzsche por um público, e, mais fundamentalmente, do modo como elas procuraram esse público. Compreender o evento social sob cuja forma elas se deram é extremamente importante se quisermos revelar certas dimensões ideológicas do texto que, de outro modo, permaneceriam insuspeitas. É significativo, portanto, que elas tenham sido pronunciadas como um ciclo de conferências públicas organizadas pela 'Freiwilligen Akademischen Gesellschaft' [Sociedade Acadêmica Voluntária] entre janeiro e março de 1872. 1 Essa sociedade era a instituição a que pertenciam os eruditos e admnistradores da cidade de Basiléia, e se constituía, ao mesmo tempo, como centro de debate cultural e como conselho administrativo dedicado a implementar resoluções burocráticas referentes à distribuição do curriculo, das vagas e outros problemas da universidade e do Pädagogium. 2 Ela era a instituição responsável pela criação do programa conhecido como “Aula des 1 16 de janeiro, 6 e 27 Fevereiro, 5 e 23 de Março. 2 Cf. JANZ, C. P., Friedrich Nietzsche – Biographie, Bd. II, p. 283. Essa sociedade é que concedeu a Nietzsche parte dos fundos que formaram sua aposentadoria a partir de 1879 (Cf. SCHLECHTA, K., Chronik in WdB III, 1370).

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Über Die Zukunft Unserer Bildungsanstalten

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Page 1: Über Die Zukunft Unserer Bildungsanstalten

Über die Zukunft unserer Bildungsanstalten, F. Nietzsche(Vorträge, 16. Januar, 6. und 27. Februar, 5. und 23. März 1872)

HISTÓRIA E ESTABELECIMENTO DO TEXTO

A forma e o contexto nos quais as conferências Sobre o futuro de nossos

estabelecimentos de ensino foram efetivamente pronunciadas determinaram, em grande medida,

a história da elaboração e a reórica de seu texto, servindo de referência concreta – talvez a única

– da recepção das propostas pedagógicas de Nietzsche por um público, e, mais

fundamentalmente, do modo como elas procuraram esse público. Compreender o evento social

sob cuja forma elas se deram é extremamente importante se quisermos revelar certas dimensões

ideológicas do texto que, de outro modo, permaneceriam insuspeitas. É significativo, portanto,

que elas tenham sido pronunciadas como um ciclo de conferências públicas organizadas pela

'Freiwilligen Akademischen Gesellschaft' [Sociedade Acadêmica Voluntária] entre janeiro e

março de 1872.1 Essa sociedade era a instituição a que pertenciam os eruditos e admnistradores

da cidade de Basiléia, e se constituía, ao mesmo tempo, como centro de debate cultural e como

conselho administrativo dedicado a implementar resoluções burocráticas referentes à distribuição

do curriculo, das vagas e outros problemas da universidade e do Pädagogium.2 Ela era a

instituição responsável pela criação do programa conhecido como “Aula des Museums” do

Museum der Kulturen – fundado como museu etnográfico em 1849 – onde um professor

preparava uma leitua de caráter mais geral e a dirigia a um público cujo acesso à universidade,

por diversos motivos, havia se tornado mais difícil.

Foi exatamente esse o programa no qual Nietzsche leu suas conferências. Na verdade, a

palestra pública como tipo de evento social havia sido implemenatda desde o final do século

XVIII, como parte do esforço das reformas da Aufklärung e neo-humanista em reaproximar o

erudito especializado da sociedade como um todo, legitimando sua função social ao estreitar esse

elo. Essa reaproximação resultava também em um critério de proficiência profissional: o sucesso

dessa exposição pública, muitas vezes, colaborava para o desenvolvimento da carreira acadêmica

dos professores universitários. A “aula do Museu” funcionava, assim, duplamente. Em primeiro

lugar, ela era o acontecimento que servia de ligação entre a ‘consciência popular

1 16 de janeiro, 6 e 27 Fevereiro, 5 e 23 de Março.2 Cf. JANZ, C. P., Friedrich Nietzsche – Biographie, Bd. II, p. 283. Essa sociedade é que concedeu a Nietzsche parte dos fundos que formaram sua aposentadoria a partir de 1879 (Cf. SCHLECHTA, K., Chronik in WdB III, 1370).

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[Volksbewusstsein]”3 e a république des lettres: ao conceber o museu como espaço privilegiado,

geograficamente fora do perímetro restrito da universidade, onde esse contato deveria se realizar,

ela transformava a vida acadêmica em algo palatável ao gosto popular e obedecia aos

pressupostos da reforma humboldtiana do ensino que pretendiam apresentar a pesquisa científica

especializada como uma experiência de vida. Eventos como esse não estavam à margem da

prática de ensino do século XIX; especialmente na Alemanha eles formavam “um novo tipo de

autoridade intelectual – derivada da experiência e não da educação formal”.4 Em segundo lugar,

ela servia para o Kulturkreis especializado como uma espécie de índice de sua aceitação social e

filosófica, e abria as portas para uma carreira mais amplamente reconhecida. Jakob Burckhardt,

por exemplo, parece ter se beneficiado profundamente da repercussão das leituras que havia feito

no mesmo programa um pouco antes de Nietzsche.5 Para esse último, no entanto, as teses pouco

acadêmicas de O nascimento da tragédia, publicado mais ou menos no mesmo período das

conferências, podem ter gerado uma resistência maior no meio científico, ainda que, entre a elite

aristocrática de Basiléia, ele tenha sido recebido, ao menos durante suas leituras, com inesperada

atenção e celebração.6

Curt Paul Janz caracteriza a aula no museu como um “evento científico-popular”,7 de

acordo com um modelo representado exemplarmente pelos ciclos de palestras de Fichte em Jena

3 Idem, p. 283.4 PENNY, G. H., “The Civic Uses of Science: Ethnology and Civil Society in Imperial Germany” in Osiris, 2nd Series, Vol. 17, Science and Civil Society (2002), p. 228. Quanto ao caráter esclarecido ou neo-humanista do ciclo de conferências como evento social, é possível se remeter à sua própria estrutura, que nada tinha de casual.. A distribuição cíclica das conferências, se deve sobretudo ao que Riedl chama de “princípio de pensamento compreendido processualmente” (RIEDL, P. Ph., Öffentliche Rede in der Zeitenwende, p. 215), próprio da perspectiva cosmopolita da filosofia da Aufklärung do final do século XVIII. A idéia de uma série de palestras correlacionadas ilustravam o modelo dinâmico a que deveria se submeter uma Bildung geral, afim de que o “processo de formação de opinião coletiva [kolletiven Meinungsbildungsprozess]” pudesse ter lugar. (RIEDL, P. Ph., op. cit., p. 216). A organização do evento como “uma série de palestras correlacionadas” é a forma dada para a própria “tarefa [Aufgabe]” da conferência púnlica (PAULSEN, F., Die deutschen Universitäten und das Universitätsstudium, Berlin: Asher & Co., 1902, p. 240).5 JANZ, C. P, op. cit., Bd. II, p. 447.6 Por ocasião das conferências, Nietzsche recebeu alguns convites para eventos sociais em cículos mais conservadores. (Cf. JANZ, op. cit., Bd. II, p. 450). Nietzsche divulgou amplamente em sua correspondência mais íntima o sucesso que vinha experimentando. Se acreditarmos na carta que Nietzsche envia a seu editor Fritzsch em 22 de março de 1872, seu público havia chegado ao número de 300 ouvintes. (KSB III, 300), e suas palestras teriam sido recebidas com “extraordinário sucesso” (KSB III, 277 e 308 – carta de 24 de janeiro e 15 de abril de 1872 à irmã) , com “comoção e ardor, sobretudo entre os estudantes universitários”. (KSB III, 323 – carta de 12 de maio de 1872 a Rhode). Esse testemunho parece ser confirmado pelo de Jacob Burkhardt, que assistiu as conferências, e escreveu nesse período a Arnold von Salis, confirmando o grande o interesse do público, embora pareça considerar as observações de Nietzsche ali um pouco grandiloqüentes. (Cf. Janz, op. cit., Bd. II, p. 447).7 Idem, p. 444.

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nos primeiros anos do século XIX.8 Essa dupla determinação do conteúdo a ser pronunciado, um

tanto paradoxalmente, servia de limite entre o público erudito e o não-erudito e diferenciava a

aula pública da aula na universidade – divisão que esteve definida e consolidada não apenas na

teoria pedagógica, mas no imaginário social de todo o século XIX. Friedrich Paulsen, professor

de filosofia contemporâneo e compatriota de Nietzsche, elaborou uma história e uma teoria da

educação de viés schopenhaueriano que obtiveram grande repercussão no final do século XIX e

início do XX, e que descreviam a conferência pública como o modelo geral mais propício a

fomentar a educação na sociedade. Com isso Paulsen, tanto quanto os reformadores neo-

humanistas e, mesmo por uma ideologia diferente, tanto quanto Nietzsche, não quis dizer que o

modelo científico especializado fosse inútil ou ilegítimo. A distinção entre aula particular, dentro

dos limites da universidade – a Privatvorlesung – e aula pública – a öffentliche Vorlesung –

deveria servir de garantia para a autonomia do nível de especialização próprio do círculo

universitário: “a conferência não pode e não deve ter a tarefa de entregar aos ouvintes o conteúdo

completo da ciência, de lhe trazer a quantidade de fatos e problemas, de opiniões e querelas, da

história e literatura dessa ciência. Isso é a tarefa de um manual [Handbuch] sistemático”. 9 Mas,

como Nietzsche, sua visão pedagógica ia ao encontro de uma experiência subjetiva e vitalista da

Bildung, que deveria servir como matriz para toda e qualquer proposta pedagógica: a vantagem

da Vorlesung é a vantagem da experiência sobre o cânone, do ouvir e ver sobre o escrever e ler.

Ela consiste efetivamente no fato de que uma pessoa transmite o conhecimento – enquanto o

livro é “uma coisa morta que não pode produzir nenhuma fé”, o conferencista, enquanto

“personalidade real”, é capaz de fazer surgir essa fé, desde que ele seja cuidadoso e permita que

a própria ciência “viva nele”.10 O modo como Nietzsche enxergava, ao menos em linhas gerais, a

prática pedagógica não era, portanto, absolutamente estranho ao corpo acadêmico, desde que

circunscrito em seu limite preciso – o que a compreensão especializada da idéia de Vorlesung

pública apenas parece confirmar.

É preciso relativizar, portanto, o que chamamos aqui de proposta de reforma no texto de

Nietzsche. Não apenas o confronto com o público especializado, mas também com a sociedade

em geral indicam sob que condições ela pôde ser formulada, e porque, embora as teses das

8 RIEDL, P. Ph., op. cit., p. 241.9 PAULSEN, F., op. cit., p. 241. Paulsen definia a conferência pública, por oposição à privada como o evento que se dedicava “a examinar ,durante uma pequena hora de estudo, um objeto de interesse geral para um círculo maior de ouvintes, que não encontra freqüentemente acesso à universidade.” (Idem, p. 237).10 Idem, p. 242.

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conferências de fato tocassem, de forma mais concreta, no problema da cultura e da formação

cultural, elas pareciam mais inofensivas e tiveram menor repercussão que a idéia estetizada de

cultura de O nascimento da tragédia. É verdade que, ao ocupar o púlpito diante de uma

audiência não-especializado, o papel do professor tradicionalmente foi o de incentivar ou criticar

certas tendências políticas – como foi o caso de Fichte, em Jena – tema que se referia

diretamente as preocupações cotidianas da sociedade em geral.11 Mas no caso de Nietzsche isso

parece ter sido um pouco diferente, principalmente porque a Suíça, nesse período imediatamente

após a guerra de unificação, procurou se definir como um lugar menos disposto a agitações

políticas, preocupado em manter sua neutralidade. O caráter panfletário de suas palestras

pedagógicas teve como limite essa resistência ideológica, que determinou não apenas

negativamente, mas, também, positivamente seu conteúdo e que lhe assegurou uma recepção

sem grandes polêmicas. Precisamente isso foi o que permitiu ao texto ser compreendido em seu

lugar próprio: não no parlamento nacional, mas em um Kulturkreis não completamente

acadêmico. O confronto com a realidade social de Basiléia nos indica como corrigir sua

tonalidade contra a super-interpretação de suas intenções. A política de Nietzsche vinculada à

sua proposta de reforma cultural era, essencialmente, moral e idealista: seu interesse, nesse

aspecto próximo do de Kant, estava no revolução interna dos homens, no Schwärmerei, na

destruição de seus edifícios psicológicos e não concretos. Muito menos que a polêmica,

Nietzsche procurou, incessantemente, o lugar onde pudesse iniciar um diálogo, e, mais ainda,

enquanto esteve ocupado com suas propostas de reforma pedagógica, dedicou-se a procurar um

público que estivesse disposto a se constituir como um novo público, a ser educado enquanto

alemão, a partir do wagnerianiasmo e da filosofia de Schopenhauer. É somente nesse sentido que

se pode falar de uma política de Nietzsche, e mesmo sua particpação no processo de construção

do teatro de Bayreuth, nunca ultrapassou os limites da propaganda ideológica. Seu ativismo

pedagógico – diferentemente do de Hegel, por exemplo, que havia efetivamente exercido o cargo

de reitor da Universidade de Berlim em 1831 – era um ativismo orientado segundo a figura do

professor clássico, inspirado, sobretudo, em Goethe, e, sob esse aspecto, não em Wagner. Assim,

embora as propostas desenvolvidas nas conferências tivessem como objeto a cultura alemã, o

clima ideal em que elas deveriam ser discutidas, ao que parece, foi encontrado no círculo restrito

da sociedade suíça. A hesitação de Nietzsche em fazer o texto alcançar um público maior, que

11 RIEDL, P. Ph., op. cit., p. 230.

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adiou indefinidamente sua publicação, estava diretamente relacionada com a perda dessa garantia

de neutralidade política, impossível em outro lugar.

Essa contextualização, contudo, não pode diminuir a importância desse texto, sobretudo por seus impasses externos, pelo que ele não é. Nietzsche entendeu que ele deveria ser uma das realizações práticas de sua perspectiva sobre o “ser alemão [deutsche Wesen]”12 e que sua publicação deveria revelar, nitida e exemplarmente suas intenções em relação a esse ponto.13 Era como texto a ser lido por um público muito mais amplo que o de Basiléia e que o do círculo de eruditos da universidade que ele deveria promover essa revelação, mas ele nunca chegou a ser definitivamente redigido sob essa forma. A história do estabelecimento do texto – não o das conferências como chegaram até nós, mas o que elas apenas anunciam – assinalam como o deslocamento de suas idéias pedagógicas para fora do púlpito do Museum der Kulturen exigiu um esforço que nunca foi levado a termo.

Nietzsche parece ter se ocupado das conferências incessantemente, com maior ou menor dedicação, praticamente durante todo o ano de 1872 e suas atitudes e expectativas em relação a elas encontram-se exaustivamente narradas em sua correspondência. Na verdade, seu trabalho – ao menos no que se refere à sua concepção – em torno das Bildungsvorträge já havia começado em novembro de 1871,14 em meio a muitos deveres profissionais em Basiléia e visitas a Wagner e Cosima em Tribschen. Inicialmente, o plano para o ciclo de conferência deveria conter seis delas, e é sob essa forma que Nietzsche propõe sua publicação a seu editor, o mesmo de O nascimento da tragédia e março.15 Os impasses, contudo, começam a ameaçar esse projeto logo depois de sua quinta leitura pública. De fato, já em abril, Nietzsche confessa que a indiferença hostil do público especializado contra O nascimento da trgédia e contra a conferência inaugural Homer und die klassische Philologie o havia levado a considerar o adiamento da conclusão do texto.16 Mas sua correspondência de todo o segundo semestre daquele ano revela que ele continuava avidamente trabalhando nessa redação, e mesmo que essa era sua principal atividade e seu “tema principal [Hauptthema]”.17 É possível que essa ocupação tardia, no entanto, já não pretendesse nem a leitura pública das palestras conclusivas, plano jamais retomado, nem a publicação do material que Nietzsche já havia escrito, mas, antes, fosse o trabalho de releitura e modificação desses escritos. Isso porque, em novembro, Nietzsche envia a Mawilda von Meysenbug as cinco conferências, notando que: “agora me parece impossível deixar publicar algo assim, que não avança suficientemente em profundiddade e é adornado com uma farce <em francês, no texto> cuja invenção é tão pobre”18. Ainda assim, Nietzsche se alegra com a leitura que o texto encontra na Itália, mais especificamente em Florença, onde havia chegado por intermédio de Mawilda von Meysenbug, e onde algumas idéias de reforma pedagógica estavam

12 KSB III, 282 – carta de 30 de janeiro de 1871a Ritschl. 13Cf. KSB III, 304 – carta de 6 de abril de 1872 a Ritschl.14 Cf. KSB III, 244 – carta de 18 de novembro de 1871 à irmã.15 Cf. KSB III, 300 – carta de 22 de março de 1872 a seu editor. Ainda no final de julho de 1872, Nietzsche pensa em pronunciar a sexta conferência no começo do inverno, cogitando a possibilidade, inclusive, de incluir uma sétima mais adiante (Cf. KSB IV, 35 – carta de 25 de julho de 1872 a Rhode). Mas, como confessa a Wagner, essa tarefa começa a lhe parecer difícil, ainda que a dificuldade sirva para demonstrar sua “boa intenção” em tratar do tema (KSB IV, 39 – carta de 25 de julho a Richard Wagner).16 cf. KSB III, 313-314 – carta de 30 de abril de 1872 a Rhode17 KSB IV, 56 – carta de 1º de outubro de 1872 à mãe.18 KSB IV, 83 – carta de 7 de novembro de 1872.

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sendo fomentadas – e o fato de que o texto estava nessa altura sendo traduzido na Itália lhe desperta alguma expectativa.19

Essa expectativa logo é dissipada. Menos de um mês depois, o destino das conferências parece determinado por uma outra reflexão pedagógica, adiada para mais tarde, e que não poderá mais comporta um exercício como o que elas haviam iniciado – é a primeira declaração de abandono:

“A senhora leu agora as conferências e ficou espantada sobre como a história é abandonada abruptamente, logo depois de um prelúdio tão demorado, e tantas grandes negações e tanta prolixidade, que resultaram em uma sede sempre mais forte por pensamentos e propostas [Vorschlägen] realmente novos. Fica-se com a garganta seca com essa leitura e não se tem nada para beber! Na verdade o que se deu é que o que eu havia pensado para a última conferência – uma cena de iluminação noturna muito extravagante e colorida – não convinha ao meu público de Basiléia, e foi certamente muito bom que a palavra tenha ficado presa em minha boca. De resto, estou bem ansioso por uma continução, mas como adiei um pouco toda a reflexão sobre esse domínio [Gebiet], talvez por um triênio – o que é fácil para mim na minha idade – e assim a última conferência não será nunca retomada”.20

E também à mesma correspondente, em fevereiro do ano seguinte, Nietzsche reafirma a necessidade de repensar seu conceito de cultura de forma mais completa e profunda:

“Estou surpreso e contente, adorada senhora, que minhas conferências tenham encontrado tanto sua atenção e sua aprovação; mas a senhora deve acreditar em mim, em minha honestidade, que posso melhorar tudo em dois anos, e vou melhorar. Por enquanto essas conferências têm para mim um significado exortativo: elas me lembram de um encargo ou de uma tarefa [sie mahnen mich an ein Schuld, oder an eine Aufgabe] que me cabe, sobretudo agora que o mestre, solene e publicamente, a colocou sobre meus ombros.21 Mas isso não é tarefa para gente tão jovem como eu, deve-se admitir que eu devo, se não crescer [wachsen], ao menos envelhecer um pouco mais ou ter mais idade. Acredite que essas confer6encias são primitivas [primtiv] e, assim, algo improvisadas. Não as considero muito, especialmente no que diz respeito à sua roupagem [Einkleidung]. Frtizsch estava disposto a publicá-las, mas eu jurei não deixar aparecer nenhum livro do qual eu não tivesse uma consciência [Gewissen] tão pura quanto a de um serafim. Não é esse o caso dessas conferências, elas devem e podem ser melhores (...)”.22

19 KSB IV, 97-98 – carta de 7 de dezembro de 1872 a Rhode. Mais tarde, a própria senhora Meysenbug começará assumirá a tarefa de traduzir o texto para o italiano afim de que ele seja publicado em um jornal em Florença, o que nunca aconteceu (cf. KSB IV, 120 – carta de 31 de janeiro de 1873 a Rhode).20 KSB IV, 104 – carta de 20 de dezembro de 1872 a Mawilda von Meysenbug.21 Trata-se da carta aberta de Wagner em defesa de O nascimento da tragédia, publicada em novembro de 1872 na Musikalisches Wochenblatt, onde a pergunta “Wie steht es um unsere deutschen Bildungsanstalten?” é deixada para ser respondida por Nietzsche, resposta que não deve ser dada apressadamente, ao contrário, deve “ser a tarefa de toda uma vida [Aufgabe eines ganzen Lebens]. Cf. WAGNER, R., Sämtliche Schriften und Dichtungen, neunter Band, p. 301.22 KSB IV, 127-128. Apesar disso, uma carta a von Gersdorff afirma a intenção de Nietzsche, ainda em abril de 1873, de concluir uma sexta conferência, embora possivelmente não para ser publicada (cf. KSB IV, 139).

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É possível que Nietzsche, desde o primeiro esboço do texto, estivesse atento para a provável dificuldade de uma recepção ideologicamente mais engajada, tal como havia sido desejada. O relativo sucesso das conferências como evento não esconde seu grande fracasso como proposta. Um fragmento do outono de 1872 considera que o fato de ter deixado o livro fora do alcance de um público maior pode ter sido favorável àqueles poucos, os “de tipo ainda a ser descrito [zu beschreibenden Art]” (KSA VII, 254) a quem Nietzsche permitiu o acesso ao texto a partir de cópias privadas. Esse texto, que circulou apenas entre os amigos mais íntimos, encontraria seu destino sob duas formas: a primeira é a reelaboração de sua introdução como o capítulo “Gedanken über die Zukunft unserer Bildungsanstalten”, o segundo dos cinco prefácios de Fünf Vorreden zu fünf ungeschriebenen Büchern que Nietzsche havia escrito para Cosima Wagner por ocasião do Natal de 1872.23. A seunga delas foi a inclusão de algumas breves passagens, ligeiramente modificadas, na primeira e na terceira parte das Considerações Extemporâneas, publicadas, respectivamente, em 1873 e 1874, o que nos permite ler esses últimos textos como as duas primeiras tentativas de repensar o problema da Bildung e da Kultur após as conferências. A diferença de forma e conteúdo entre eles demonstra até que ponto essa reformulação resultou no progressivo afastamento de suas idéias iniciais.24

Talvez seja preciso acrescentar ao problema da recepção do texto um outro motivo, de ordem mais diretamente filosófica, embora talvez derivado dele: a preocupação de Nietzsche com a formulação de uma base epistemológica capaz de sustentar sua filosofia da cultura. A preparação do curso de retórica, através da discussão da natureza da linguagem que ela derivaria, como retomaremos adiante, marcaria o ponto mais alto dessa formulação e levaria Nietzsche a reformular boa parte de suas teses, condenando o projeto de publicação das conferências a uma reavaliação mais ampla, que nunca chegou, de fato, a ser executada. Sob esse aspecto, o texto de Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino tal como foi pensado por Nietzsche como obra, nunca existiu. Em relação a ele – e ao projeto de reforma da Bildung que ele pretenderia promover – só nos restam os vestígios de sua impossibilidade. Cada uma das teses desenvolvidas no interior das conferências tal como as lemos hoje está circunscrita por essa negação, e, ao nos voltarmos para elas, estaremos sempre ocupando a posição impossível do público que Nietzsche nunca teve diante de si. O esforço conceitual de qualquer análise dificilmente consiguirá esconder essa pretensão fundamental – o ponto cego e impenetrável das conferências.

Em dezembro escreve os »Fünf Vorreden zu fünf ungeschriebenen Büchern« e oferece a Cosima como presente de Natal

Colli e Montinari (Nachwort, KSA I, 914-915): “o intérprete dos gregos cede lugar ao moralista”.; p. 915: o filósofo da conferência é desenhado de acordo com o “modelo [Vorbil] de Schopenhauer”; a companhia de um cachorro reproduz o apego que este último reconhecidamente tinha a esses animais, e sua caracterização como “resmungão, colérico,

23 O texto era uma nova redação do prefácio que Nietzsche havia escrito para as conferências quando pensava em publicá-las. (cf. KSB IV, 108 – carta a Rhode de 4 de janeiro de 1873), mais curta, mas bastante parecida com a versão original.24 A passagem da primeira conferência em KSA I, 667, por exemplo, é repetida quase literalmente no sexto capítulo de Schopenhauer como educador, em KSA I, 387.

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íntegro, ávido” retoma a imagem que textos como Parerga e Paralipomena deixaram como legado no imaginário alemão da época.

As datas e lugares dadas na primeira conferência são ficcionais, embora aproximadas. Janz identifica que uma viagem do tipo narrada no texto de fato aconteceu, mas não em Bonn e nem no outono, mas em Saale, perto de Naumburg, no meio do verão, em julho de 1860. (JANZ, Bd. II, 446). Em geral, o texto é muito pouco verdadeiro se comparado à biografia de Nietzsche, mas revelam o horizonte ideológico e ssua figuras e mitos de forma muito precisa. [Em carta a Mawilda von Meysenbug Nietzsche confessa exatamente essa ficcionalização e seu propósito: “Toda a cena do Reno, assim como tudo que é aparentemente biográfico é completamente mentiroso [erlogen]. Evitei entreter, ou não entreter, os habitantes de Basiléia com os fatos verdadeiros de minha vida (...)”. [KSB IV, 104 – carta de 2º de dezembro de 1872].

Nietzsche entendeu que essas conferências eram uma das conseqüências práticas de sua perspectiva sobre o “ser alemão [deutsche Wesen]” (KSB III, 282 – carta a Ritschl de 30 de janeiro de 1871) e que a publicação do texto, como ele promete a Ritschl, revelará com clareza suas intenções (KSB III, 304 – carta de 6 de abril de 1872 a Ritschl).

Nietzsche parece ter se ocupado das conferências incessantemente, com maior ou menor dedicação, praticamente durante todo o ano de 1872, mas a história de sua redação e de sua planejada publicação é atravessada por uma série de impasses que parecem demonstrar quais eram os limites da proposta pedagógica elaborada ali diante de seu público e, mais profundamente, como essa proposta apresenta e atualiza uma concepção ideológica que, logo em seguida, começa a ser confrontada com uma nova perspectiva, a da decepção gradual com a idéia de reforma da cultura e da sociedade em geral. – nesse sentido, o destino das conferências na filosofia de Nietzsche não poderá evitar a prova de viabilização que que elas deverão enfrentar em seguida, e pela qual, fatalmente, anunciariam sua deficiência idealista. Na verdade, seu trabalho em torno das Bildungsvorträge já havia começado em novembro de 1871 (cf. KSB III, 244 – carta de 18 de novembro de 1871 à irmã), em meio a muitos deveres profissionais em Basiléia e visitas a Wagner e Cosima em Tribschen. Sua leitura pública tem lugar entre janeiro e março do ano seguinte. Inicialmente, o plano para o ciclo de conferência deveria conter seis delas, e ainda no final de julho de 1872 Nietzsche pensa em pronunciar a última delas no começo do inverno, pensando, inclusive em incluir uma sétima. (KSB IV, 35 – carta de 25 de julho de 1872 a Rhode), mas, como confessa a Wagner, essa tarefa começa a lhe parecer difícil, ainda que revele uma “boa intenção”(KSB IV, 39 – carta de 25 de julho a Richard Wagner). É possível explicar a hesitação da publicação dos textos pela reticência do círculo erudito em relação ao trabalho de Nietzsche nesse instante. De fato, já em abril, a indiferença hostil do público especializado contra O nascimento da trgédia e contra a conferência inaugural Homer und die klassische Philologie havia levado Nietzsche a repensar e adiar a circulação mais ampla do texto. (cf. KSB III, 313-314 – carta de 30 de abril de 1872 a Rhode)., mas sua correspondência de agosto de 1872 revela que ele continuava trabalhando nessas conferências conclusivas nesse período, e já em Outubro, ele afirma que essa é sua principal ocupação, seu “tema central [Hauptthema]” (KSB IV, 56). É possível que essa ocupação tardia, no entanto, já não pretendesse nem a leitura pública das palestras conclusivas, plano jamais retomado, nem a publicação do material que Nietzsche já havia escrito, mas, antes, fosse o trabalho de releitura e modificação

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desses escritos. Isso porque, em novembro, Nietzsche envia a Mawilda von Meysenbug as cinco conferências, notando que: “agora me parece impossível deixar publicar algo assim, que não avança suficientemente em profundiddade e é adornado com uma farce <em francês, no texto> cuja invenção é tão pobre”. (KSB IV, 83). Ainda assim, Nietzsche se alegra com a leitura que o texto encontra na Itália, mais especificamente em Florença, onde havia chegado por intermédio de Mawilda von Meysenbug, e onde algumas idéias de reforma pedagógica estavam sendo fomentadas – Nietzsche inclusive afirma que o texto estava nessa altura sendo traduzido para o francês para uso dos italianos. (KSB IV, 97-98 – carta de 7 de dezembro de 1872 a Rhode. Mais tarde, a própria senhora Meysenbug começará a traduzir o texto para o italiano afim de que ele seja publicado em um jornal em Florença, o que nunca aconteceu (cf. KSB IV, 120 – carta de 31 de janeiro de 1873 a Rhode) ). Menos de um mês depois, o destino das conferências parece determinado por uma outra reflexão pedagógica, adiada para mais tarde, e que não poderá mais comporta um exercício como o que elas haviam iniciado – é a primeira declaração de abandono:

“A senhora leu agora as conferências e ficou espantada sobre como a história é abandonada abruptamente, logo depois de um prelúdio tão demorado, e tantas grandes negações e tanta prolixidade, que resultaram em uma sede sempre mais forte por pensamentos e propostas [Vorschlägen] realmente novos. Fica-se com a garganta seca com essa leitura e não se tem nada para beber! Na verdade o que se deu é que o que eu havia pensado para a última conferência – uma cena de iluminação noturna muito extravagante e colorida – não convinha ao meu público de Basiléia, e foi certamente muito bom que a palavra tenha ficado presa em minha boca. De resto, estou bem ansioso por uma continução, mas como adiei um pouco toda a reflexão sobre esse domínio [Gebiet], talvez por um triênio – o que é fácil para mim na minha idade – e assim a última conferência não será nunca retomada”. (KSB IV, 104 – carta de 20 de dezembro de 1872 a Mawilda von Meysenbug).

E também à mesma correspondente, em fevereiro do ano seguinte, Nietzsche reafirma a necessidade de repensar seu conceito de cultura de forma mais completa e profunda:

“Estou surpreso e contente, adorada senhora, que minhas conferências tenham encontrado tanto sua atenção e sua aprovação; mas a senhora deve acreditar em mim, em minha honestidade, que posso melhorar tudo em dois anos, e vou melhorar. Por enquanto essas conferências têm para mim um significado exortativo: elas me lembram de um encargo ou de uma tarefa [sie mahnen mich an ein Schuld, oder an eine Aufgabe] que me cabe, sobretudo agora que o mestre, solene e publicamente, a colocou sobre meus ombros. [ Trata-se da carta aberta de Wagner em defesa de O nascimento da tragédia, publicada em novembro de 1872 na Musikalisches Wochenblatt, onde a pergunta “Wie steht es um unsere deutschen Bildungsanstalten?” é deixada para ser respondida por Nietzsche, resposta que não deve ser dada apressadamente, ao contrário, deve “ser a tarefa de toda uma vida [Aufgabe eines ganzen Lebens]. Cf. WAGNER, R., Sämtliche Schriften und Dichtungen, neunter Band, p. 301]. Mas isso não é tarefa para gente tão jovem como eu, deve-se admitir que eu devo, se não crescer [wachsen], ao menos envelhecer um pouco mais ou ter mais idade. Acredite que essas confer6encias são primitivas [primtiv] e, assim, algo improvisadas. Não as considero muito, especialmente no que diz respeito à sua roupagem [Einkleidung]. Frtizsch estava disposto a publicá-las, mas eu jurei não deixar aparecer nenhum livro do qual eu não tivesse uma consciência [Gewissen] tão pura quanto a de um serafim. Não é esse o caso dessas conferências, elas devem e podem ser melhores (...)” KSB IV, 127-128.

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Apesar disso, uma carta a von Gersdorff afirma a intenção de Nietzsche, ainda em abril de 1873, de concluir uma sexta conferência, embora possivelmente não para ser publicada (cf. KSB IV, 139).

É possível que Nietzsche, desde o primeiro esboço do texto, estivesse atento para a provável dificuldade de uma recepção mais engajada, tal como havia sido desejada. O relativo sucesso das conferências como evento não esconde seu grande fracasso como proposta, especialmente a partir do momento em que seu nome se associara ao livro sobre a tragédia e sua seriedade acadêmica sofrera as conseqüências de seu ativismo wagneriano em uma sociedade liberal, ma non troppo. Um fragmento do outono de 1872 considera que o fato de ter deixado o livro fora do alcance de um público maior pode ter sido favorável àqueles poucos, os “de tipo ainda a ser descrito [zu beschreibenden Art]” (KSA VII, 254) a quem Nietzsche permitiu o acesso ao texto a partir de cópias privadas. Entre as idéias pedagógicas de Nietzsche e a visão de mundo de seus ouvintes, a distância torna-se cada vez maior e mais destrutiva, distância de que ele se ressentirá por toda sua vida, e que acabará interpretando como signo de sua extemporaneidade cada vez mais incontornável. Aos poucos, essa resitência levará sua filosofia a se posicionar contra o público em geral. Mas talvez seja preciso acrescentar ao problema da recepção do texto um outro motivo, de ordem mais diretamente filosófica, embora talvez derivado dele: a preocupação de Nietzsche com a formulação de uma base epistemológica capaz de sustentar sua filosofia da cultura. A preparação do curso de retórica, através da discussão da natureza da linguagem que ela derivaria, como retomaremos adiante, marcaria o ponto mais alto dessa formulação e levaria Nietzsche a reformular boa parte de suas teses, condenando o projeto de publicação das conferências a uma reavaliação mais ampla, que nunca chegou, de fato, a ser executada.

Apesar de planejada, a publicação das conferências jamais chegou a acontecer. Ao invés da publicação do texto, o que viria a público, embora apenas entre os amigos mais íntimos seria o texto “Gedanken über die Zukunft unserer Bildungsanstalten”, o segundo dos cinco prefácios de Fünf Vorreden zu fünf ungeschriebenen Büchern que Nietzsche havia escrito para Cosima Wagner por ocasião do Natal de 1872. O texto era uma nova redação do prefácio que Nietzsche havia escrito para as conferências quando pensava em publicá-las. (cf. KSB IV, 108 – carta a Rhode de 4 de janeiro de 1873), mais curta, mas bastante parecida com a versão original. Outro destino desse trabalho fora a inclusão de algumas breves passagens, ligeiramente modificadas, na primeira e na terceira parte das Considerações Extemporâneas, publicadas, respectivamente, em 1873 e 1874, o que nos permite ler esses últimos textos como as duas primeiras tentativas de repensar o problema da Bildung e da Kultur após as conferências. A diferença de forma e conteúdo entre eles demonstra até que ponto essa reformulação resultou no progressivo afastamento de suas idéias iniciais.25

O TÍTULO DAS CONFERÊNCIAS

25 A passagem da primeira conferência em KSA I, 667, por exemplo, é repetida quase literalmente no sexto capítulo de Schopenhauer como educador, em KSA I, 387.

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Apesar de aparentemente auto-esclarecedor, o título Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, que havia sido atribuído logo no início de seu trabalho preparatório, pode levar a alguns mal-entendidos devido ao caráter muito geral e sumário de seus termos, como afirma Nietzsche logo no início do texto (KSA I, 643). Diante disso, o verdadeiro objeto das conferências surge ele mesmo como uma interpretação de cada um desses termos. Esse esclarecimento é fornecido como prefácio afim de que a perspectiva que elas determinam revele sua singularidade como condição de sua leitura; elas pressupõem, portante, um primeiro e fundamental deslocamento heurístico. Esse dispositivo retórico é típico do romantismo e devedor de uma prática filológica que podia ser observada, por exemplo, em Homero e a filologia clássica, quando uma reavaliação do significado da filologia é operada através de uma reinterpretação do próprio conceito de filologia, ou antes, dos significados em jogo nas inúmeras apropriações da palavra philologie WdB III, 157. (verificar)

Em primeiro lugar, falar “sobre o futuro” não significa aqui fazer nenhum prognóstico – “profetizar”(KSA I, 644) – mas abrir um caminho, formular uma proposta. Zukunft, nesse contexto, é o tempo abstraído, livre da história e de suas determinações pragmáticas: oposto a ela, é o limite ideal efetivamente possível, a escatologia para as teses desenvolvidas no texto. Em relação a essas teses, e em um certo sentido, Zukunft é seu a priori romântico. Não se trata, portanto, de se aventurar em especulações sobre o futuro da humanidade, e isso porque tal tarefa só pode ser levada a cabo da perspectiva da espécie como um todo; ela desconsideraria, assim, a singularidade, a extemporaneidade do artista como representante desse a priori particular. Em uma nota escrita em caráter privado em 1871, Nietzsche recusa veementemente essa abordagem do termo Zukunft: “Luta contra a perspectiva [Ansicht] de que o fim [Zweck] da humanidade está no futuro [Zukunft]: algo como uma negação [Verneinung] en masse <em francês, no texto>. A humanidade não está em seus cumes por si só, os grandes santos e artistas são seu fim [Ziel], e, portanto, nem anteriores nem posteriores a nós”. (KSA VII, 161). O recurso de uma mise-en-abîme do tempo na retórica das conferências vai ao encontro dessa concepção, e aparece como a aproximação contínua em direção a esse Ideal originário, atemporal. Nenhum dos dados históricos ou geográficos, fictícios ou não, tem por função limitar esse movimento que multiplica incessantemente o referente cronológico: de início temos Nietzsche, o autor das conferências; sua narrativa, no entanto, remete à sua juventude, a um passado idilicamente descrito; no interior dessa narrativa, o personagem do velho filósofo emerge como representante de uma sabedoria imemorial e, ao mesmo tempo, tensiona duas concepções de mundo representativas de duas épocas (a sua e a dos jovens que o escutam); por fim, é o exemplo de sua própria juventude, da ideologia que se representava então no Gymnasium, que orienta um último recuo no tempo. O fato de que essas dimensões temporais convivem dialogicamente, que o testemunho de Nietzsche seja ao mesmo tempo o testemunho de sua juventude, o testemunho do filósofo em contraposição à sua juventude, e o testemunho da juventude do filósofo, torna impossível compreender historicamente o futuro. Assim, o termo deve ser interpretado como o contrário do que imediatamente sugere o título; seu índice, no âmbito das instituições, é retrospectivo, o futuro é – ou deve ser – um retorno à origem: as Bildungsschulen são mais verdadeiras quanto mais “nos conectam com o passado do povo” (KSA I, 645) e na medida em que são purgadas por um “renascimento [Neugeburt]”. (Idem)

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Em segundo lugar, o termo “nossos”, unsere, como aparece no título, é igualmente indireto. Ele não se refere a Basiléia, suas escolas e estabelecimentos educacionais. Há pouco mais de dois anos naquele meio, Nietzsche se considera inapto a examinar com alguma autoridade sua situação particular: “Freqüentemente pode parecer que muitas de minhas afirmações gerais se deixam exemplificar bastante em nossos estabelecimentos de educação [Erziehunganstalten] locais, e não sou eu que vou fazer essas exemplificações [Exemplifikationen], e tampouco gostaria de carregar a esponsabilidade por essas lições [Nutzanwendung]: ao menos enquanto me sinto tão estranho e inexperiente nesse solo, enquanto me sinto tão pouco firme acerca das condições locais para poder ajuizar corretamente uma configuração tão especial das circunstâncias pedagógicas, ou para poder assinalar propriamente com segurança seu futuro”. KSA I, 643.Mas essa confessa inaptidão talvez funcione como subterfúgio para o real interesse do texto. Não se trata de Basiléia, mas, menos ainda, das formas gerais que as instituições de ensino assumiram entre os diversos povos e suas culturas. A preocupação de Nietzsche é absolutamente explícita, embora o mesmo não se possa dizer de seu título: trata-se da cultura alemã e de nenhuma outra, de sua Bildung em relação aos meios práticos que ela dispõe – e mais especificamente: “O futuro dessas instituições alemãs deve nos ocupar, isto é, o futuro da Volkschule alemã, da Realschule alemã, do Gymnasium alemão, da universidade alemã” (KSA I, 644). Ao mesmo tempo, o que permite encontrar a singularidade do modelo pedagógico alemão é esse procedimento metodológico que o título não consegue comunicar: o isolamento completo de suas características, de sua tendência ideológica – que deverá ser corrigida pela verdadeira essência igualmente ideológica: “assim nos impedimos por enquanto de todas as comparações e todos os juízos de valor [Werthabschätzungen], como se nossas condições, em relação a outros povos cultos [Kulturvölker] fosse um paradigma geral e inultrapassável” (KSA I, 644).

Por fim, a própria definição de “estabelecmento de ensino” é fundamentalmente questionada pelo texto e não surge senão como seu objeto negativo – na verdade, pode-se dizer que todo ele tem a função de definir, ou, antes, redefinir a idéia de instituição pedagógica. Essa redefinição não encontra seu modelo na elaboração da idéia de universidade, tal como fomentada no começo do século XIX. Embora guarde muitas afinidades com as idéias gerais de Humboldt, por exemplo, as conferências seguem na direção oposta ao propósito dessas. Enquanto o texto humboldtiano mais fundamental para história da reforma universitária – Sobre a organização interna e externa dos estabelecimentos científicos superiores em Berlim [Über die innere und äussere Organisation der höheren wissenschaftlichen Anstalten in Berlin], de 1810 – propunha um estatuto que definia, sobretudo, essas Anstalten como organismo objetivo, Nietzsche se detem naquilo que Humboldt chama de “Bildung subjetiva” [HUMBOLDT, W. Von; “Über die innere und äussere Organisation der höheren wissenschaftlichen Anstalten in Berlin” in Schriften zur Politik und zum Bildungswesen, Werke in fünf Bänden Bd. IV, p. 255], na experiência individual de proceso de formação cultural. Uma vez que é essa experiência que deve servir como modelo e ponto de partida da reconstrução da própria Bildung, toda instituição de ensino deve encontrar sua medida fora dela mesma, e seu princípio de autonomia deve favorecer aquilo que nela é não-institucional, aquilo que é mais geral e que vai de encontro à formação de uma casta de eruditos ou cientistas organizada e irremediavelmente agregada a um estabelecimento. As Bildungsanstalten do título, portanto, na perspectiva de Nietzsche, não existem ainda: é exatamente isso que nos informa na quarta conferência o velho filósofo. ( KSA I,

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717). O fato de que toda a narrativa ao longo do texto tem como cenário a montanha – símbolo tão caro a Nietzsche durante toda sua obra – e o isolamento de uma floresta confirma qual tipo de experiência deve ser privilegiada no interior das instituições: fundamentalmente uma experiência anti-institucional. O conjunto das ações que têm lugar ao longo do texto – uma caminhada iluminada por tochas, exercícios de tiro, algazarra, luta, canto, a presença de uma estrela cadente – assinalam igualmente em que tipo de registro deve acontecer a discussão sobre Bildung: um registro ideal-mitológico, e não técnico-pragmático.

Essa direção estilística, como todo outro problema de estilo em Nietzsche, nos informa diretamente sobre o conteúdo positivo das teses que ela articula: nesse caso, a construção elíptica da retórica das conferências é a forma privilegiada de apresentação daquilo que pode ser considerado seu argumento mais geral, e por onde uma leitura crítica deve ter início – a idéia de uma pedagogia negativa.