tzvetan todorov - as estruturas narrativas (pdf)(rev)
Embed Size (px)
TRANSCRIPT
-
As Estruturas Narrativas
http://groups.google.com/group/digitalsource
-
Coleo Debates Dirigida por J. Guinsburg Equipe de realizao Traduo: Leila Perrone-Moiss: Produo: Ricardo W. Neves e Raquel Fernandes Abranches.
-
tzvetan todorov tzvetan todorov tzvetan todorov tzvetan todorov
AS ESTRUTURAS AS ESTRUTURAS AS ESTRUTURAS AS ESTRUTURAS
NARRATIVAS NARRATIVAS NARRATIVAS NARRATIVAS
-
Titulo original em Francs: Pour une Theorie du Recit Copyright Tzvetan Todorov
Dados internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Todorov, Tzvetan a, 1 939-. s estruturas narrativas / Tzvetan Todorov [traduo
Leyla Perrone-Moiss]. So Paulo: Perspectiva, 2006. (Debates; 14 / dirigida por J. Guinsburg)
Ttulo original: Pour une Theorie du Recit 3 reimpr. da 4. cd. de 2003. Bibliografia. ISBN 85-273-0386-8
1. Anlise do discurso narrativo 2. Estruturalismo (Anlise
literria) 3. Narrativa (Retrica) 4. Semitica e literatura 5. Teoria literria I. Guinsburg, J. II. Ttulo. III. Srie.
04-3142 CDD-801.95
ndices para catlogo sistemtico: 1. Narrativa : Anlise estrutural : Teoria literria 801.95 2. Narrativa : Crtica estrutural : Teoria literria 801.95
4 edio 3 reimpresso Direitos em lngua portuguesa reservados EDITORA PERSPECTIVA S.A. Av. Brigadeiro Lus Antnio. 3025 01401-000 So Paulo SP Brasil 53 Telefax: (0--11) 3885-8388 www.editoraperspectiva.com.br 2006
-
NDICE
Apresentao .......................................... 9
Prefcio ................................................ 17
I. PRELIMINARES
1. A Herana Metodolgica do Formalismo ....... 27
2. Linguagem e Literatura ........................ 53
3. Potica e Critica .............................. 65
4. Anlise Estrutural da Narrativa .................. 79
[Pgina 7]
-
II. ANLISES
1. Tipologia do Romance Policial .................. 93
2. A Narrativa Primordial ........................ 105
3. Os Homens-Narrativas ........................ 119
4. A Gramtica da Narrativa ........................ 135
5. A Narrativa Fantstica ........................ 147
6. A Demanda da Narrativa ........................ 167
7. Os Fantasmas de Henry James .................. 191
[Pgina 8]
-
APRESENTAO
A utilizao da anlise estrutural vem-se difundindo cada vez mais nas cincias humanas. Nos estudos literrios, esse mtodo tem conhecido alguns percalos. Tendo despontado nos trabalhos dos formalistas russos, por volta de 1920, no conheceu porm a mesma evoluo do estruturalismo lingstico. Enquanto os lingistas continuaram a desenvolver e a precisar o mtodo estrutural promovendo a lingstica a cincia-piloto entre as demais cincias humanas, os trabalhos pioneiros dos formalistas caram, por certo tempo, em relativo esquecimento. [Pgina 9]
-
Somente uns trinta anos mais tarde esses trabalhos tiveram eco e continuao no Ocidente. O encontro de dois grandes pensadores, Roman Jakobson e Lvi-Strauss teve como resultado a ecloso do estruturalismo francs. A anlise por ambos empreendida, em 1962, do poema Les Chats de Baudelaire, deslocou para a Frana o centro das pesquisas estruturais em literatura. A partir de ento, um grupo cada vez mais numeroso de crticos franceses vem trabalhando nesse sentido. Entre eles, destaca-se o nome de Roland Barthes, cujo livro Critique et Vrit marcou o ponto culminante da polmica entre a crtica tradicional e a nouvelle critique. O que caracteriza o trabalho do grupo estruturalista francs a abertura e a receptividade para o que se tem feito no mesmo sentido em outros pases, a assimilao e reelaborao de idias vindas do Leste (formalismo russo, Crculo Lingstico do Praga) como do Oeste (pesquisas semiticas norte-americanas, new criticism, lingstica transformacional).
O mtodo estruturalista tem sofrido inmeras contestaes. A primeira objeo que a ele se fez, e a mais comum ainda agora, a que diz respeito ao formalismo. Ora, embora o grupo russo ficasse conhecido como formalista e suas anlises procedessem do exterior para o interior da obra em termos saussurianos, do significante para o significado seus componentes jamais admitiram a separao de forma e contedo. Forma e contedo so inseparveis. Onde est o contedo seno na forma? Ser possvel uma forma verbal sem contedo? A nica separao que se pode fazer operacional. E no se trata ento de uma separao entre forma e contedo, mas de uma distino metodolgica entre material e procedimento.
Outra acusao freqentemente feita contra o estruturalismo a de imobilismo. semelhana do que se faz nas outras reas, o estruturalista literrio procura extrair da obra particular as estruturas gerais de um gnero, de um movimento ou de uma literatura nacional; visa, portanto, ao estabelecimento de modelos. Ora, o conceito de modelo, fundamental para o estruturalismo, tem sido atacado como um conceito a-histrico, imobilista. Entretanto, devemos precisar que no ao modelo em si que visa a anlise estrutural. O modelo, assim como as distines acima
-
citadas, [Pgina 10] uma abstrao com fins aplicativos. Procura-se, por exemplo, estabelecer o prottipo de determinado tipo de narrativa no para alcanar este prottipo ele mesmo, mas para aplic-lo a obras particulares. Cria-se pois um movimento circular: das obras particulares extrai-se o modelo, que ser em seguida aplicado a obras particulares. Realizando esse circuito, elucidam-se a natureza e as caractersticas do fenmeno literrio.
Aquilo que fica para fora do molde o especfico, o original, o elemento gerador de transformaes ulteriores. Cada grande obra literria supera o modelo anterior de seu gnero e estabelece outro, luz do qual sero examinadas as obras seguintes; e assim por diante. O modelo, portanto, nunca definitivo. Os modelos da cincia tambm tm variado atravs dos tempos, sem que isso tenha impedido seu avano (muito pelo contrrio). O modelo ideal aquele que tenha algumas traves mestras, mas oferea ao mesmo tempo certa flexibilidade, para poder variar no momento da aplicao e ser capaz de revelar tanto o repetido quanto o novo.
Outra crtica dirigida ao estruturalismo literrio diz respeito sua pretenso de lanar as bases de uma cincia da literatura. Poder a anlise literria atingir a objetividade e o rigor de uma verdadeira cincia? O que no pode ser negado que a anlise estrutural possibilita uma objetividade e um rigor muito maiores do que os que se podiam atingir com os mtodos empricos da crtica tradicional. Partindo da forma e do arranjo dos signos, para avanar pouco a pouco em direo de sua significao, comeando da descrio dos fenmenos para empreender em seguida sua interpretao (assim como, na lingstica moderna, avana-se da fontica em direo semntica), os resultados a que chega a anlise estrutural, embora de incio menos espetaculares, oferecem uma segurana e uma preciso raramente alcanadas em crtica literria. Ao atingir o plano da significao, o crtico j ter desvendado uma srie de estruturas formais em que se apoiaro suas interpretaes, evitando que elas se diluam no impressionismo e no subjetivismo.
Estes so alguns dos problemas que tem atrado a ateno de Tzvetan Todorov. Todorov representa um elo vivo entre o formalismo russo e o estruturalismo [Pgina 11] francs. Nascido
-
na Bulgria em 1939, teve uma formao lingstica e literria aberta para as idias eslavas. Radicando-se na Frana em 1964, a primeira tarefa que empreendeu foi a traduo dos textos fundamentais dos formalistas russos para o francs: Thorie de la littrature. Textes des formalistes russes (Seuil, 1965). Sendo esses textos at ento raros ou inacessveis, por permanecerem numa lngua pouco conhecida no Ocidente, a traduo de Todorov preenchia uma lacuna e abria caminhos novos para os estudos literrios franceses.
Mas Todorov no se contentou com a divulgao das idias formalistas. O grupo russo se dissolvera em 1930, sem ter chegado a elaborar uma teoria coerente e comum. Muitos de seus estudos permaneceram em estgio embrionrio ou no chegaram a desfazer suas contradies. Alm disso, nas ltimas dcadas, a lingstica conheceu enorme desenvolvimento e chegou a resultados que os estudos literrios no podem ignorar, principalmente se se levar em conta que os dois tipos de estudo tem por objeto os signos verbais. O que pretende Todorov levar adiante certas reflexes formalistas e atualiz-las luz da lingstica contempornea.
O interesse desse trabalho duplo. Por um lado, o estudo dos signos literrios pode constituir uma contribuio aos estudos lingsticos, pelas diferenas que pode estabelecer entre o discurso e a lngua, o discurso particular e o discurso corrente. Por outro lado, essa pesquisa constitui um passo importante em direo semiologia, a cincia geral dos signos.
A ateno de Todorov, ao contrrio da do mestre Jakobson, volta-se para a narrativa mais do que para a poesia. Todorov pretende colaborar para o fundamento de uma gramtica da narrativa, gramtica no no sentido normativo, mas no sentido do conhecimento e classificao das estruturas narrativas. Descobrir as estruturas que existem subjacentes a toda narrativa, estabelecer um repertrio de intrigas, de funes, de vises, eis alguns de seus objetivos, na esteira de Propp, Chklvski, Eichenbaum.
Em busca dessas estruturas gerais, Todorov dedicou-se anlise de obras particulares. Seu livro Litt- [Pgina 12] rature et signification (Larousse, 1967) o resultado da anlise estrutural de Les liaisons dangereuses de Laclos, apresentada como tese
-
universitria sob a direo de Barthes. Um objetivo mais vasto foi por ele perseguido no estudo Potique, includo no volume Quest-ce que le structuralisme? (Seuil, 1968): Enquanto a lingstica a cincia da lngua, a potica pretende tornar-se a cincia do discurso; o objeto da potica a literaridade; seu mtodo, as leis que governam o prprio discurso.
O desgnio de Todorov portanto ambicioso, mas ele o persegue com extrema modstia. No prefcio a esta coletnea, ver-se- que ele qualifica sua tarefa corno um trabalho de esclarecimento, mais prximo da tcnica do que da cincia. Enquanto outros se lanam mesma empresa inebriando-se com uma terminologia desnecessariamente rebuscada, cultivando os paradoxos e os mots desprit, Todorov parece imune ao micrbio do esnobismo; prossegue passo a passo, mas de modo coerente, em direo a objetivos precisos. Por isso mesmo, dentre os que procuram elaborar um mtodo para a anlise estrutural da narrativa, seus estudos so dos mais teis, pela lgica interna de seu raciocnio e pela clareza didtica da exposio.
A obra que ora vem a pblico uma coletnea de trabalhos nunca antes apresentados em forma de livro, mas publicados em diferentes revistas europias, algumas de difcil acesso para ns. A primeira parte trata de questes epistemolgicas e metodolgicas; a segunda rene alguns exemplos de aplicao do mtodo estrutural anlise da narrativa. Embora escritos em perodos diferentes, no decorrer dos ltimos cinco anos, os artigos esto ligados por grande coerncia interna. Como ele prprio explica, no prefcio que se ler a seguir, seu trabalho gira em torno de algumas constantes, relacionadas com alguns problemas essenciais da literatura: linguagem e literatura, potica e crtica, semelhana e diferena, literatura e real.
No me cabe discutir aqui esses problemas, que constituem o cerne do presente volume. Mas posso, talvez, avanar algumas consideraes.
A distino realizada por Todorov entre potica e crtica tem a importncia de definir dois enfoques da obra literria, que embora afins e complementares no [Pgina 13] so idnticos. Enquanto a potica visa literaridade e se encaminha para a teoria da literatura, a crtica visa ao conhecimento da obra
-
particular. Sendo o estruturalismo uma procura do geral no particular, a expresso crtico estruturalista j em si uma contradio. Poder-se- usar um mtodo que se quer rigoroso e cientfico e, ao mesmo tempo, buscar o particular, o nico?
Esse problema se liga intimamente ao da dupla semelhana-diferena. Talvez esteja a o ponto crucial das reflexes de Todorov como de todo o estruturalismo. Do ponto de vista filosfico, todo o problema do sujeito e do individualismo que a se coloca. Do ngulo metodolgico, a questo que se pe a dos modelos, e da possibilidade de, atravs deles, apreender a dar conta da originalidade de cada obra. Ao longo da maioria das paginas que se seguem, veremos Todorov a braos com essa questo. As obras que mais se aproximam do modelo so as menores (assim a literatura policial, objeto de um captulo) enquanto as maiores, por exemplo, as novelas de Henry James aqui estudadas, escapam sempre classificao absoluta.
A utilidade do modelo no pode ser negada. O que preciso evitar que ele se torne obsessivo para quem o usa, e que se procure encaixar a obra no modelo de qualquer maneira, ou que se acabe tendo o modelo como critrio de julgamento esttico, como acontecia no classicismo. Todorov est bem atento a esses perigos, e embora o problema no esteja resolvido, para ele como para todo o estruturalismo, suas reflexes constituem importante contribuio para a sua solvncia.
A questo das relaes da literatura com o real leva Todorov a estudar a narrativa fantstica. Se o mundo da narrativa o da fico, que tem suas regras prprias, diferentes das do mundo real, de certa forma estranho que se considerem algumas narrativas como fantsticas. Fantstica, toda fico o em certa medida. exatamente o estabelecimento dessa medida que atrai a ateno de Todorov.
J tempo de passar a palavra ao Autor. Esta obra ser certamente de grande utilidade para os nossos estudiosos de literatura, pois constitui em a divulgao, em portugus, das idias formalistas e estruturalistas, atra- [Pgina 14] vs de um herdeiro das primeiras e participante das segundas. No se trata de uma teoria da narrativa, mas de um passo importante nessa direo. A anlise estrutural, em literatura, est em seus
-
primrdios. Se por um lado isso acarreta certas contradies metodolgicas e terminolgicas entre os autores (e por vezes entre fases do mesmo autor), oferece, em compensao, o grande atrativo da descoberta e do debate vivo.
LEYLA PERRONE-MOISS [Pgina 15]
-
[Pgina 16 (em branco)]
PREFCIO
Prefaciar minha prpria coletnea de artigos uma tarefa que me obriga a adotar uma atitude toda particular: os textos que a compem foram escritos durante cinco anos (1964-1969) e, com exceo dos ltimos, no vivem mais para mim: j que todo novo texto mata o precedente, este prefcio mesmo torna caduco o escrito que o precede no tempo. No quero pois escrever este prlogo na contigidade dos textos que compem a coletnea, posso apenas tom-los como objeto de um novo estudo; e para tanto, preciso que eu me torne meu prprio leitor, como se fosse algum outro que tivesse escrito em meu lugar. [Pgina 17]
-
Os textos aqui reunidos do uma imagem fiel de minha atividade durante esses cinco anos (ou daquilo que julgo ser sua melhor parte): no s porque eles so seu resultado tangvel, mas tambm porque vrios dentre eles representam ( maneira dos embaixadores) os trabalhos que realizei em outras partes. Assim, o primeiro artigo, A herana metodolgica do formalismo, data do perodo em que eu traduzia os formalistas russos: atividade cujo resultado foi a coletnea Thorie de la littrature, Textes des formalistes russes (Seuil, 1965). Agrada-me ver esse texto encabeando a lista, no por suas qualidades intrnsecas, mas porque ele simboliza minha dvida para com o formalismo. Os formalistas continuam sendo minha fonte de inspirao mais direta e ainda os considero como a corrente mais notvel de crtica literria que tenhamos conhecido.
Linguagem e literatura igualmente um embaixador: representa no plano metodolgico meu livro Littrature et signification (Larousse, 1967), que era consagrado anlise de uma nica obra, Les liaisons dangereuses de Laclos. Da mesma forma, A anlise estrutural da narrativa retoma, em resumo, os temas de minha contribuio ao volume coletivo Quest-ce que le structuralisme? (Seuil, 1968), tratando da potica estrutural. Enfim, dois outros textos, A gramtica da narrativa e A narrativa fantstica ligam-se a livros que vm luz ao mesmo tempo que a presente coletnea: Grammaire du Decameron (Mouton) e Introduction la littrature fantastique (Seuil).
Devo entretanto dissipar, desde o incio, a idia de uma diversidade dos textos aqui reunidos, da variedade das questes tratadas: no nada disso. Ao me ler, tenho ao contrrio a impresso (que outro leitor pode no partilhar) de que se trata constantemente da mesma coisa at a monotonia. Irei mais longe: impensvel, para mim, corrigir esses artigos, salvo no plano do estilo, para os reunir numa coletnea, pois tal correo implica a supresso da prpria coletnea: cada um deles, a meu ver, uma nova verso do (ou dos) precedente(s). Contrariamente ao que se poderia pensar, levantar uma questo no significa que se poder responder a ela. Ao invs de passar a outro pro- [Pgina 18] blema, volta-se, como o assassino ao lugar do crime, sempre ao ponto de partida.
-
No me entretanto fcil nomear essas constantes e sobretudo faz-las aceitar pelo leitor: aqui que sinto de maneira particularmente aguda que meu estatuto, neste momento, no diferente do de outro leitor qualquer. S posso portanto avanar hipteses.
Uma primeira constante seria a atrao que exerce sobre mim a teoria literria, em oposio crtica, no sentido clssico. Mesmo se meus textos so, cada vez com maior freqncia, anlise de obras particulares, e no pura teoria, meu objetivo continua sendo sempre no o conhecimento de tal romance ou de tal novela, mas o esclarecimento de um problema geral da literatura ou mesmo dos estudos literrios. O estatuto dessa teoria literria no me , entretanto, perfeitamente claro. Falei de uma oposio entre crtica e potica (ligando meus estudos ao segundo tipo de atividade), anloga que existe entre a interpretao e a cincia; mas inscrever a potica no quadro das cincias humanas no explica grande coisa, no estado atual de nossos conhecimentos epistemolgicos sobre as cincias humanas. Por outro lado, no reivindico para meus estudos nenhum valor literrio; sendo o francs, para mim, uma lngua estrangeira, os problemas da escritura (da minha) ficam fora de meu campo de viso. Enfim, no considero meus textos como ligados ao discurso filosfico; no s porque no tm valor filosfico particular, mas tambm porque sua inteno outra.
Tocado, influenciado, modificado por esses trs tipos de discurso cientfico, literrio, filosfico meu texto no me parece pertencer a nenhum deles. No poderia trazer, como elemento positivo para a soluo do problema, seno uma comparao: essa atividade me parece ter algo a ver com a tcnica, procura preencher uma funo, digamos de esclarecimento. Mais do que de fazer obra de cincia, de literatura, de filosofia, tenho a impresso de dirigir um raio de luz, fraco e fugidio verdade, sobre esse objeto, a literatura. Em meio a um desinteresse, para mim incompreensvel, pela exata natureza do fato literrio, tento mostrar como funciona tal ou tal parte do meca- [Pgina 19] nismo. Essas exposies so sempre parciais: mas preciso que se comece um dia...
-
Ligar meus textos teoria mais do que crtica ou descrio levanta tambm outro problema: o do lugar e do papel da obra literria particular. Recusar a crtica biogrfica, sociolgica ou filosfica tem sido freqentemente feito em nome de uma proteo da obra: essas crticas externas violam a autonomia da obra individual. Ao mesmo tempo que endosso a recusa da crtica externa, no me proponho proteger ou salvar a unicidade do texto literrio (o texto intitulado Potica e crtica ajudou-me a precisar este ponto). A crtica que me foi dirigida com maior freqncia (por parte dos crticos benevolentes) precisamente: no se deve ignorar a especificidade da obra individual. Por minha natureza, tenho tendncia a dar razo ao adversrio, mas isto me muito difcil no que concerne a este ponto particular. A especificidade da obra (a obra como pura diferena) parece-me ser um mito: mito cuja falta de fundamento aparece tanto no texto literrio quanto no texto crtico.
Pois, por um lado, a obra literria no jamais original, ela participa de uma rede de relaes entre ela mesma e as outras obras do mesmo autor, da mesma poca, do mesmo gnero. Se se d palavra gnero um sentido generalizado, poder-se-ia dizer que a obra no existe nunca fora do gnero: quer seja um gnero pessoal (constitudo por todas as obras do escritor) ou temporal (pelas obras de um perodo) ou tradicional (como a comdia, a tragdia etc.). Em cada um desses casos, pode-se provar a realidade formal do gnero.
Por outro lado, mesmo se a especificidade existisse, o texto crtico no saberia diz-la. O ltimo estudo dessa coletnea, Os fantasmas de Henry James, em parte consagrado a esse problema, e tento a demonstrar que a natureza abstrata, essencialista, genrica da linguagem nos obriga a tratar dos gneros, no de obras particulares. A nica maneira de preservar a especificidade seria guardar silncio: mas viu-se que mesmo esta especificidade j falseada.
A linguagem exerce sobre mim uma verdadeira fascinao, e sua problemtica intervm em vrios nveis (sem levar em conta alguns estudos mais prpria- [Pgina 20] mente lingsticos ou, se se quiser, retricos que lhe consagrei e que no esto includos aqui). Primeiramente, a lingstica representou para
-
mim o papel de um intermedirio til com relao epistemologia. Por outro lado, a obra literria no existe fora de sua literalidade verbal, e esta pode ter um papel predominante, mesmo no nvel das estruturas narrativas, como tentei mostrar com Aurlia, em A narrativa fantstica. Em terceiro lugar, a obra literria prope sempre de modo mais ou menos explcito urna concepo da linguagem e da palavra; a linguagem uma das constantes temticas da obra literria, como assinalo com relao Odissia, As Mil e Uma Noites ou A Demanda do Graal (analisei nesse sentido textos de Laclos e de Constant, igualmente; esses estudos no esto includos aqui).
Enfim, a linguagem intervm tambm a ttulo de modelo. Mais precisamente, a teoria literria deve inscrever-se no quadro da semitica, a cincia geral dos signos. Sendo a literatura ela mesma um sistema de signos, descobriremos no discurso literrio numerosos traos comuns a todas as linguagens. Explorei essa aproximao em Linguagem e literatura e A gramtica da narrativa.
Uma dupla de categorias que, em mim, vem da lingstica mas a extravasa por sua generalidade, parece tornar-se o horizonte para o qual se orienta o conjunto desses estudos. Chegamos assim narrativa que permanecia curiosamente ausente deste prefcio embora figure no ttulo do livro. Essa dupla ser chamada, por enquanto, de diferena e repetio (ou semelhana), sem nada presumir da sorte ulterior desses termos. Ser talvez buscar longe demais o ponto de partida, querer instaurar essas duas noes na base de todas as outras. No me fao, no momento, nenhuma pergunta relativa a seu estatuto antropolgico ou epistemolgico. Mas no cesso de as encontrar em domnios aparentemente isolados da anlise literria.
Primeiramente, no domnio da temporalidade, e mesmo de modo mais geral, no da organizao sintagmtica da narrativa. A narrativa se constitui na tenso de duas foras. Uma a mudana, o inexorvel curso dos acontecimentos, a interminvel narrativa da vida (a histria), onde cada instante se apresenta pela pri-[Pgina 21] meira e ltima vez. o caos que a segunda fora tenta organizar; ela procura dar-lhe um sentido, introduzir uma ordem. Essa ordem se traduz pela repetio (ou pela semelhana)
-
dos acontecimentos: o momento presente no original, mas repete ou anuncia instantes passados e futuros. A narrativa nunca obedece a uma ou a outra fora, mas se constitui na tenso das duas, como tentei mostrar em Tipologia do romance policial, A narrativa primordial e A demanda da narrativa.
Uma oposio anloga pode ser observada no plano temtico (grande parte de meu livro Introduction la littrature fantastique consagrada a essa questo; ela simplesmente evocada em Os fantasmas de Henry James). Os temas da literatura podem ser organizados em duas grandes redes, cujos elementos so, em princpio, incompatveis. Poder-se-ia definir a primeira como aquela em que predomina a problemtica do homem colocado diante do mundo ou, em termos freudianos, o do sistema percepo-conscincia. Pertence segunda o tema das relaes inter-humanas, o que nos remete ao sistema dos impulsos inconscientes. Que me perdoem essa esquematizao extrema, da qual necessito para o presente raciocnio.
A oposio das redes temticas e a dos tipos de temporalidade so redutveis uma outra (ou dupla diferena-repetio). Empiricamente, so os mesmos textos que nos permitem observar a temporalidade do tipo eterna volta e os temas de percepo-conscincia. Assim, A Demanda do Graal onde 1) todas as peripcias da narrativa so anunciadas de antemo, a noo de acontecimento original profundamente contestada, e 2) o tema fundamental o lugar do homem no mundo, sua busca de Deus. O mesmo acontece mas de maneira bem diferente nas novelas de Henry James, onde o texto se organiza em torno de acontecimentos sucessivos, provenientes de uma ou de vrias pessoas, de um mesmo acontecimento (portanto temporalidade tipo eterna volta) e onde o tema principal o da percepo, da busca humana do mundo (tratei desse assunto numa introduo s novelas de James, no includa aqui). A temtica do desejo, em compensao, proibida num como noutro texto, em- [Pgina 22] quanto ela predomina nas narrativas onde a temporalidade do tipo presente perptuo.
Essa uma hiptese por enquanto bastante grosseira e contra a qual no ser difcil encontrar exemplos; basta citar, entre os textos de que trato no presente livro, a Odissia. Creio,
-
entretanto, que uma elaborao futura da teoria permitir superar as contradies, que se tornaro ento um ponto de partida para a descoberta de novos aspectos, de novas leis do discurso literrio. Essa tenso entre a diferena e a semelhana poder talvez dar conta das intuies que estavam na base da antiga oposio entre prosa e poesia oposio superada, mas cuja existncia merece explicao.
...Volto ao ponto de partida: a atitude de leitor, que resolvi adotar, no me , percebo agora, de modo algum desconhecida. Minhas constantes, o que ainda conserva um valor para mim neste livro, ainda mais: O que constitui minha imagem tal qual a vejo eu mesmo so precisamente as passagens que escrevi como se eu j fosse um leitor, um outro. Onde eu escrevia no para mim mas para outrem, no para me exprimir, mas para fazer (falar) o texto. S se escreve lendo...: paradoxo cuja digna contrapartida reside no prprio ato da escritura, que parece ter sido inventado para dar um exemplo perfeito da noo de impossibilidade. Pois a escritura no conhece um antes, ela no a expresso de um pensamento prvio; mas ento, que que se escreve?
O mistrio nas letras tem isto de atraente: torna-se mais espesso medida que se tenta dissip-lo.
TZVETAN TODOROV
[Pgina 23]
-
[Pgina 24 (em branco)]
-
I
PRELIMINARES [Pgina 25]
-
[Pgina 26 (em branco)]
-
1. A HERANA METODOLGICA DO FORMALISMO
O mtodo estrutural, desenvolvido primeiramente em Lingstica, encontra partidrios cada vez mais numerosos em todas as cincias humanas, inclusive no estudo da literatura. Essa evoluo parece tanto mais justificada quanto, entre as relaes da lngua com as diferentes formas de expresso, as que a unem literatura so profundas e numerosas. No alis a primeira vez que se opera essa aproximao. A origem do Crculo Lingstico de Praga, uma das primeiras escolas de lingstica estrutural, no outra seno uma corrente de estudos literrios que se desenvolveu na Rssia du- [Pgina 27] rante os anos 1915-1930,
-
e que conhecida sob o nome de formalismo russo. A relao entre um e outro incontestvel: estabeleceu-se tanto por intermdio daqueles que participaram dos dois grupos, simultnea ou sucessivamente (R. Jakobson, B. Tomachvski, P. Bogatiriv), quanto pelas publicaes dos formalistas, que o Crculo de Praga no ignorou. Seria exagerado afirmar que o estruturalismo lingstico tomou suas idias emprestadas ao formalismo, pois os campos de estudo e os objetivos das duas escolas no so os mesmos; encontram-se, entretanto, nos estruturalistas, marcas de uma influncia formalista, tanto nos princpios gerais quanto em certas tcnicas de anlise. Eis por que natural e necessrio lembrar hoje, quando o interesse pelo estudo estrutural da literatura renasce, as principais aquisies metodolgicas devidas aos formalistas, e compar-las com as da lingstica contempornea.
As idias dos formalistas, modificadas e enriquecidas pelo trabalho dos lingistas de Praga, so muito mais conhecidas hoje que seus nomes e seus escritos; h dez anos, quase tinham cado no esquecimento. O leitor ignorou esses textos escritos em russo, cujas edies originais so alis difceis de encontrar hoje. A situao modificou-se sensivelmente com a publicao do livro de V. Erlich, Russian Formalism (1955), a nica monografia no-russa consagrada ao assunto. Essa obra continua indispensvel como fonte de informao; tem o mrito de levantar e analisar um grande nmero de textos, publicados frequentemente em revistas ou coletneas esquecidas e dificilmente encontrveis na hora atual. Entretanto, no explica com clareza suficiente suas implicaes metodolgicas, e isto por uma razo do prprio formalismo: essa escola nunca elaborou uma teoria que pudesse ser admitida de modo geral. O grande mrito dos estudos formalistas a profundidade e a finura de suas anlises concretas, mas suas concluses tericas so muitas vezes mal fundadas e contraditrias. Os prprios formalistas sempre tiveram conscincia dessa lacuna: no cessam de repetir que sua doutrina est em constante elaborao. Assim, para levar adiante uma discusso terica, Erlich frequentemente obrigado a recorrer s declaraes paradoxais de Chklvski, que refletem a primeira fase [Pgina 28] do formalismo, ao invs de realar certas tendncias
-
ento secundrias, mas mais prximas dos mtodos seguidos, desde ento, pelos lingistas e antroplogos. As idias que no so mais discutveis so levadas em conta, ao passo que as sugestes concernentes aos pontos mais complexos da teoria passam muitas vezes despercebidas. Enfim, mesmo a melhor apresentao necessariamente uma simplificao e um empobrecimento, e no poderia substituir os prprios textos. Eis por que a traduo inglesa de um livro da poca, A morfologia do conto popular de Propp (1928a), suscitou grande interesse. Entretanto, essa obra representa uma das tendncias extremistas do formalismo, e no a corrente geral; precisamente por essa razo, a justa crtica que lhe fez Lvi-Strauss no tanto a crtica do formalismo em geral, quanto a que um formalista mesmo poderia dirigir ao livro de Propp. Tendo ficado essa traduo como nica no gnero, com alegria que recebemos a reedio de certos textos russos, empreendida por Mouton na srie Slavistic Printings and Reprintings (n. XXVI, B. Eichenbaum, Skvoz literatru; XXXIV, V. Jirmnski, Voprssi terii literatri; XLVII, J. Tinianov, Problema stikhotvrnovo iazik; XLVIII, Rsskaia proza). A escolha dos editores entretanto difcil de explicar: tirante o de Tinianov, os outros livros esto longe de constituir os melhores estudos formalistas.
Erlich atribui importncia exagerada s razes polticas na dissoluo do grupo formalista. A crise do movimento comea de fato antes de sua condenao oficial e se deve a fatores internos. Os escritos dos formalistas, tanto os do ltimo perodo do grupo (1927-1930) quanto alguns livros recentes onde eles retomaram suas melhores idias, sem trazer nada de novo teoria literria (cf. o livro de Chklvski, 1959), provam-no suficientemente. A falta de rigor cientfico conduziu o movimento a um impasse. O defeito sobretudo sensvel nos trechos em que os formalistas recorrem a noes lingsticas ou semiolgicas. verdade que elas no possuam ainda a preciso e a generalidade que hoje tm. Mas, para ns, esta uma razo suple- ____________________
Nota de rodap (1) Indiquemos igualmente a coleo Michigan Slavic Materials, sobretudo os n.s. 2 (Readings in Russian Poetics), 3 (N. S. Trubetzkoy, Three
-
Philological Studies), 5 (O. M. Brik, Two Essays on Poetic Language). (N. do A.) [Pgina 29] mentar pala confrontar a doutrina formalista com os mtodos e noes lingsticas atuais. Poderemos assim distinguir o que resta de til para a anlise estrutural da literatura. Tentaremos aqui faz-lo, sem pretender exaurir o assunto.
Antes de encetar esse confronto, importante precisar alguns princpios de base da doutrina formalista. Fala-se mais freqentemente de mtodo formal, mas a expresso imprecisa e pode-se contestar a escolha tanto do substantivo quanto do adjetivo, O mtodo, longe de ser nico, engloba um conjunto de processos e tcnicas que servem descrio da obra literria, mas tambm a investigaes cientficas muito diversas. No essencial, diremos simplesmente que preciso considerar antes de tudo a obra mesma, o texto literrio, como um sistema imanente; est claro que este apenas um ponto de partida e no a exposio detalhada de um mtodo. Quanto ao termo formal, trata-se mais de uma etiqueta que se tornou cmoda do que de uma denominao precisa, e os prprios formalistas o evitam. A forma, para eles, recobre todos os aspectos, todas as partes da obra, mas ela existe somente como relao dos elementos entre si, dos elementos com a obra inteira, da obra com a literatura nacional etc., isto , como um conjunto de funes. O estudo propriamente literrio, que chamamos hoje de estrutural, caracteriza-se pelo ponto de vista escolhido pelo observador e no pelo seu objeto que, de outro ponto de vista, poderia prestar-se a uma anlise psicolgica, psicanaltica, lingstica etc. A frmula de Jakobson (1921): o objeto da cincia literria no a literatura mas a literatrnost, isto , o que faz de determinada obra uma obra literria, deve ser interpretada ao nvel da investigao e no do objeto.
Todo estudo, desde que se queira cientfico, tropea em problemas de terminologia. Entretanto, a maior parte dos pesquisadores recusam aos estudos literrios o direito a uma terminologia bem definida e precisa, sob pretexto de que a visada dos fenmenos literrios muda segundo as pocas e os pases. O fato de que forma e funo, essas duas faces do signo, possam
-
variar independentemente uma da outra, impede toda classificao absoluta. Toda classificao esttica deve manter uma dessas faces idntica, sejam quais [Pgina 30] forem as variaes da outra. Segue-se que: a) cada termo deve ser definido com relao aos outros e no com relao aos fenmenos (obras literrias) que ele designa; b) todo sistema de termos vale por um corte sincrnico determinado, cujos limites, postulados, so arbitrrios. J. Tinianov coloca o problema em seu prefcio coletnea A prosa russa (1926) e o ilustra pela classificao dos gneros em seus artigos O fato literrio e Da evoluo literria (Tinianov, 1929). Segundo seus prprios termos, o estudo dos gneros isolados impossvel fora do sistema no qual e com o qual eles esto em correlao (p. 38). As definies estticas dos gneros, que empregamos correntemente, s levam em conta o significante. Um romance contemporneo, por exemplo, deveria ser aproximado, do ponto de vista de sua funo, da antiga poesia pica; mas ns o associamos ao romance grego em razo de sua forma prosaica comum. O que foi o trao distintivo do poema no sculo XVIII deixou de o ser no XIX. Do mesmo modo, sendo a funo da literatura correlata das outras sries culturais da mesma poca, o mesmo fenmeno pode ser fato literrio ou extraliterrio (Rsskaia proza, p. 10).
O objetivo da pesquisa a descrio do funcionamento do sistema literrio, a anlise de seus elementos constitutivos e a evidenciao de suas leis, ou, num sentido mais estreito, a descrio cientfica de um texto literrio e, a partir da, o estabelecimento de relaes entre seus elementos. A principal dificuldade vem do carter heterogneo e estratificado da obra literria. Para descrever exaustivamente um poema, devemos colocar-nos sucessivamente em diferentes nveis fnico, fonolgico, mtrico, entonacional, morfolgico, sinttico, lxico, simblico... e levar em conta suas relaes de interdependncia. Por outro lado, o cdigo literrio, ao inverso do cdigo lingstico, no tem carter estritamente constrangedor e somos obrigados a deduzi-lo de cada texto particular, ou pelo menos a corrigir cada vez a formulao anterior. pois necessrio operar um certo nmero de transformaes para obter o modelo, e somente este se prestar a uma anlise estrutural. Entretanto, em
-
oposio ao estudo mitolgico ou onrico, nossa ateno deve voltar-se para o carter dessas operaes, tanto, seno mais, quanto [Pgina 31] para seus resultados, j que nossas regras de decodificao so anlogas s regras de codificao de que se serviu o autor. Se assim no fosse, correramos o risco de reduzir ao mesmo modelo obras inteiramente diferentes e de faz-las perder todo carter especfico.
O exame crtico dos mtodos empregados exige a explicitao de algumas proposies fundamentais, subentendidas nos trabalhos formalistas. Estas so admitidas a priori, e sua discusso no do domnio dos estudos literrios.
A literatura um sistema de signos, um cdigo, anlogo aos outros sistemas significativos, tais como a lngua articulada, as artes, as mitologias, as representaes onricas etc. Por outro lado, e nisso ela se distingue das outras artes, constri-se com a ajuda de uma estrutura, isto , a lngua; pois um sistema significativo em segundo grau, por outras palavras, um sistema conotativo. Ao mesmo tempo a lngua, que serve de matria formao das unidades do sistema literrio, e que pertence, pois, segundo a terminologia hjelmsleviana, ao plano da expresso, no perde sua significao prpria, seu contedo. preciso, alm disso, levar em conta as diferentes funes possveis de uma mensagem, e no reduzir seu sentido a suas funes referencial e emotiva. A noo de funo potica, ou esttica, que diz respeito prpria mensagem, introduzida por Iakubnski, desenvolvida por Jakobson (1921, 1923) e Mukarovsky, e integrada no sistema nocional da lingstica por Jakobson (1963), intervm tanto no sistema da literatura quanto no da lngua, e cria um equilbrio complexo de funes. Notemos que os dois sistemas, freqentemente anlogos, no so entretanto idnticos; alm disso, a literatura utiliza cdigos sociais cuja anlise no compete a um estudo literrio.
Todo elemento presente numa obra traz uma significao que pode ser interpretada segundo o cdigo literrio. Para Chklvski, a obra inteiramente construda. Toda a sua matria organizada (1926, p. 99). A organizao intrnseca ao sistema literrio e no diz respeito ao referente. Assim, Eichenbaum escreve: Nenhuma frase da obra literria pode ser, em si, uma
-
expresso direta dos sentimentos pessoais do autor, ela sempre construo e jogo... (p. 161). Portanto preciso igualmente levar em conta as dife- [Pgina 32] rentes funes da mensagem, pois a organizao pode manifestar-se em vrios planos diferentes. Essa observao permite distinguir nitidamente literatura de folclore; o folclore admite uma independncia muito maior dos elementos.
O carter sistemtico das relaes entre os elementos decorre da prpria essncia da linguagem. Essas relaes constituem o objeto da investigao literria propriamente dita. Tinianov (1929) assim formulou essas idias, fundamentais em lingstica estrutural: A obra representa um sistema de fatores correlativos. A correlao de cada fator com os outros e sua funo com respeito ao sistema (p. 49). A existncia do sistema no resulta de uma cooperao igualitria de todos os elementos, supe a predominncia de um grupo de elementos e a deformao dos outros (p. 41). Uma observao de Eichenbaum fornece um exemplo disso: quando as descries so substitudas pelas intervenes do autor, principalmente o dilogo que torna manifestos o argumento e o estilo (p. 192). Isolar um elemento no decorrer da anlise no mais que um processo de trabalho: sua significao se encontra em suas relaes com os outros.
A desigualdade dos elementos constitutivos impe uma outra regra: um elemento no se liga diretamente com qualquer outro, a relao se estabelece em funo de uma hierarquia de planos (ou estratos) e de nveis (ou fileiras), segundo o eixo das substituies e o eixo dos encadeamentos. Como notou Tinianov (1929), o elemento entra simultneamente em relao: com a srie de elementos semelhantes de outras obras-sistemas e mesmo de outras sries, e com os outros elementos do mesmo sistema (funo autnoma e funo sinttica) (p. 33). Os diferentes nveis so definidos pelas dimenses de suas partes. O problema da menor unidade significativa ser discutido mais alm; quanto maior, , no quadro dos estudos literrios, toda a literatura. O nmero desses nveis teoricamente ilimitado, mas na prtica consideram-se trs: o dos elementos constitutivos, o da obra, o de uma literatura nacional. Isso no impede que, em certos casos, se ponha no primeiro plano um nvel intermedirio, por exemplo,
-
um ciclo de poemas, ou as obras de um g- [Pgina 33] nero ou de um perodo determinado. A distino de diferentes planos exige maior rigor lgico e essa nossa primeira tarefa. O trabalho dos formalistas visou essencialmente anlise de poemas, onde eles distinguiram os planos fnico e fonolgico, mtrico, entonacional e prosdico, morfolgico e sinttico etc. Para sua classificao, a distino hjelmsleviana entre forma e substncia pode ser muito til. Chklvski mostrou, a propsito de textos em prosa, que essa distino vlida igualmente no plano da narrativa, onde os processos de composio podem ser separados do contedo episdico, evidente que a ordem de sucesso dos nveis e dos planos, no texto, no deve obrigatoriamente coincidir com a da anlise; eis por que esta ataca freqentemente a obra por inteiro: ali que as relaes estruturais se manifestam de forma mais ntida.
Examinemos primeiramente alguns mtodos, j sugeridos pelos trabalhos dos formalistas, mas desde ento largamente aperfeioados pelos lingistas. Por exemplo, a anlise em traos distintivos, que aparece de modo bem claro na fontica, nos primeiros escritos dos formalistas, os de Iakubnski e Brik. Mais tarde, alguns formalistas participam dos esforos dos estruturalistas de Praga, tendo em vista definir a noo de fonema, de trao distintivo, de trao redundante etc. (ver, entre outros, os estudos de Bernstein). A importncia dessas noes para a anlise literria foi indicada por Brik, a propsito da descrio de um poema, onde a distribuio dos fonemas e dos traos distintivos serviria a formar ou a reforar sua estrutura. Brik define a dupla de repetio mais simples como aquela na qual no se distingue o carter palatalizado ou no-palatalizado das consoantes, mas onde as surdas e as sonoras so representadas como sons diferentes (p. 60).
A validade desse tipo de anlise confirmada tanto por seu xito na fonologia atual quanto por seu fundamento terico, que reside nos princpios acima mencionados: a definio relacional a nica vlida, pois as noes no se definem com relao a uma matria que lhes estranha. Como notou Tinianov, a funo de cada obra est na sua correlao com as outras... Ela um signo diferencial (Rsskaia proza, p. 9). Mas a aplicao desse mtodo
-
pode ser con- [Pgina 34] sidervelmente alargada, se nos fundamentarmos na hiptese da analogia profunda entre as faces do signo. assim que o mesmo Tinianov (1924) tenta analisar a significao de uma palavra, do mesmo modo que se analisa sua face significante (A noo de trao fundamental em semntica anloga noo de fonema em fontica, p. 134), decompondo-a em elementos constitutivos: No se deve partir da palavra como de um elemento indivisvel da arte literria, trat-la como o tijolo com o qual se constri o edifcio. Ela indivisvel em elementos verbais muito menores (p. 35). Essa analogia no foi, na poca, desenvolvida e matizada, em razo da definio psicolgica do fonema ento predominante. Mas hoje esse princpio cada vez mais aplicado nos estudos de semntica estrutural.
Enfim, pode-se tentar aplicar esse mtodo anlise das unidades significativas do sistema literrio, isto , ao contedo do sistema conotativo, O primeiro passo nesse caminho consistiria em estudar as personagens de uma narrativa e suas relaes. As numerosas indicaes dos autores, ou mesmo um olhar superficial sobre qualquer narrativa, mostram que tal personagem se ope a tal outra. Entretanto, uma oposio imediata das personagens simplificaria essas relaes, sem nos aproximar de nosso objetivo. Seria melhor decompor cada imagem em traos distintivos e coloc-los em reao de oposio ou de identidade com os traos distintivos das outras personagens da mesma narrativa. Obter-se-ia assim um nmero reduzido de eixos de oposio, cujas diversas combinaes reagrupariam esses traos em feixes representativos das personagens. O mesmo procedimento definiria o campo semntico caracterstico da obra em questo. No princpio, a denominao desses eixos dependeria essencialmente da intuio pessoal do investigador, mas o confronto de vrias anlises anlogas permitiria estabelecer quadros mais ou menos objetivos para um autor, ou mesmo para um perodo determinado de uma literatura nacional,
Esse mesmo princpio engendra um outro processo, de larga aplicao em lingstica descritiva: a definio de um elemento pelas possibilidades de sua distribuio. Tomachvski (1929) utilizou esse processo para carac- [Pgina 35] terizar os diferentes
-
tipos de esquema mtrico, e v nele uma definio por substituio: preciso chamar de iambo de quadro medidas toda combinao que pode substituir, num poema, qualquer verso imbico de quatro medidas (p. 46). O mesmo processo foi utilizado por Propp (1928a) numa anlise semntica do enunciado.
O mtodo de anlise em constituintes imediatos se encontra igualmente em lingstica descritiva. Foi aplicado muitas vezes pelos formalistas. Tomachvski (1925) o discute a propsito da noo de tema. A obra inteira pode ter seu tema e ao mesmo tempo cada parte da obra possui o seu... Com a ajuda dessa decomposio da obra em unidades temticas, chegamos s partes indecomponveis, s menores partculas do material temtico... O tema de cada unidade indecomponvel da obra se chama motivo. No fundo, cada orao possui seu prprio motivo (p. 137). Se a utilidade de tal princpio parece evidente, sua aplicao concreta coloca problemas. Primeiramente, preciso abster-se de identificar motivo e orao, pois as duas categorias pertencem a sries nocionais diferentes. A semntica contempornea evita a dificuldade introduzindo duas noes distintas: lexema (ou morfema) e sema. Como notou justamente Propp (1928a), uma frase pode conter mais de um motivo (seu exemplo contm quatro); igualmente fcil encontrar exemplos do caso inverso. Propp mesmo manifesta uma atitude mais prudente e mais nuanada. Cada motivo comporta vrias funes. Estas existem ao nvel constitutivo e sua significao no imediata na obra; seu sentido depende mais de sua possibilidade de ser integrado no nvel superior: A funo representa o ato de uma personagem, definido do ponto de vista de sua importncia para o desenrolar da ao (pp. 30-31). A exigncia de significao funcional importante aqui tambm, pois os mesmos atos tm, muitas vezes, um papel diferente em narrativas diferentes. Para Propp, essas funes so constantes, em nmero limitado (trinta e duas para os contos fantsticos russos) e podem ser definidas a priori. Sem discutir aqui a validade para sua anlise do material folclrico, podemos dizer que uma definio a priori no se revela til anlise literria. Parece que para esta, como para [Pgina 36] a lingstica, o xito dessa decomposio depende da ordem
-
admitida no procedimento. Mas sua formalizao coloca, para a anlise literria, problemas ainda mais complexos, porque a correspondncia entre significante e significado mais difcil de seguir do que em lingstica. As dimenses verbais de um motivo no definem o nvel no qual ele se liga a outros motivos assim que um captulo pode ser constitudo tanto por vrias pginas como por uma s frase. Por conseguinte, a delimitao de nveis semnticos, onde aparecem as significaes dos motivos, constitui a premissa indispensvel a essa anlise. Est claro, por outro lado, que essa unidade mnima pode ser analisada em seus constituintes, mas estes no pertencem mais ao cdigo conotativo: a dupla articulao se manifesta, aqui, como em lingstica.
A diversidade do material pode ser consideravelmente reduzida, graas a uma operao de transformao. Propp introduz essa noo de transformao, procedendo comparao das classes paradigmticas. Uma vez decompostos os contos, em partes e funes, torna-se claro que as partes que tm o mesmo papel sinttico podem ser consideradas como derivadas de um mesmo prottipo, por intermdio de uma regra de transformao aplicada forma primria. Essa comparao paradigmtica (ou por rubricas verticais) mostra que sua funo comum permite aproximar formas em aparncia muito diferentes. Essas formaes so consideradas freqentemente como um novo assunto, se bem que deduzidas das antigas, por uma certa transformao... Agrupando o material de cada rubrica, podemos definir todas as maneiras, ou melhor, todos os tipos de transformao... Os elementos atributivos, assim como as funes, so submetidos s leis de transformao (1928a, p. 28). Assim, Propp supe que se pode remontar ao conto primrio, do qual saram os outros.
Duas observaes preliminares se impem. Aplicando literatura as tcnicas de Propp, preciso levar em conta as diferenas entre criao folclrica e cria- ____________________
(nota de rodap) (2) o que prope, por exemplo, Ch. Hockett: preciso admitir que um romance inteiro possui uma espcie de estrutura determinada de constituintes imediatos; esses constituintes imediatos consistem, por sua vez, em
-
constituintes menores e assim por diante, at chegarmos aos morfemas individuais (p.
557). (N. do A.) [Pgina 37] o individual (cf. a esse respeito o artigo de Bogatiriv e R. Jakobson). A especificidade do material literrio exige que a ateno se volte para as regras de transformao e para a ordem de sua aplicao, mais do que para o resultado obtido. Por outro lado, em anlise literria, a procura de um esquema gentico primrio no se justifica. A forma mais simples, tanto no eixo dos encadeamentos como no das substituies, fornece comparao a medida que permite descrever o carter da transformao.
Propp explicitou essa idia e props uma classificao das transformaes num artigo intitulado As transformaes dos contos fantsticos (1928b). As transformaes dividem-se em trs grandes grupos: mudanas, substituies e assimilaes, sendo estas definidas como uma substituio completa de uma forma por outra, de tal sorte que se produz uma fuso das duas formas em uma nica (p. 84). Para agrupar essas transformaes no interior de cada um dos grandes tipos, Propp procede de duas maneiras diferentes:
No primeiro grupo segue certas figuras retricas e enumera as seguintes mudanas:
1) Reduo 2) Amplificao 3) Corrupo 4) Inverso (substituio pelo inverso) 5) Intensificao 6) Enfraquecimento. Os dois ltimos modos de mudana concernem sobretudo s
aes. Nos dois outros, a origem do elemento novo fornece o
critrio de classificao. Assim, as assimilaes podem ser: 15) Internas (ao conto) 16) Derivadas da vida (conto + realidade) 17) Confessionais (seguem as modificaes da religio)
-
18) Devidas a supersties 19) Literrias 20) Arcaicas.
[Pgina 38]
O nmero total das transformaes limitado por Propp em vinte. Elas so aplicveis a todos os nveis da narrativa. O que concerne aos elementos particulares do conto concerne aos contos em geral. Um elemento acrescentado produz uma amplificao, no caso inverso uma reduo etc. (p. 85).
Assim, o problema da transformao, crucial tanto para a lingstica contempornea quanto para os outros ramos da antropologia social, coloca-se igualmente na anlise literria; a analogia permanece evidentemente incompleta. Como a tentativa de Propp no foi seguida de outros ensaios do mesmo gnero, discutir sobre as regras de transformao, sua definio, seu nmero, sua utilidade no possvel; parece, entretanto, que um agrupamento em figuras retricas, cuja definio deveria ser retomada de um ponto de vista lgico, daria os melhores resultados.
O problema da classificao tipolgica das obras literrias suscita, por sua vez, dificuldades que reencontramos alis em lingstica. Uma anlise elementar de vrias obras literrias revela imediatamente um grande nmero de semelhanas e de traos comuns. Foi uma verificao anloga que deu nascimento ao estudo cientfico das lnguas; ela tambm que se encontra na origem do estudo formal da literatura, como testemunham os trabalhos de A. N. Vesselvski, eminente predecessor dos formalistas. Do mesmo modo, na Alemanha, a tipologia de Wlflin em histria da arte deu a idia de uma tipologia das formas literrias (cf., por exemplo, os trabalhos de O. Walzel, F. Strich, Th. Spoerri). Mas o valor e o alcance da descoberta no foram percebidos. Os formalistas abordam esse problema a partir de dois princpios diferentes, que no fcil coordenar. Por um lado, eles reencontram os mesmos elementos, os mesmos processos ao longo da histria literria universal, e vem nessa recorrncia uma confirmao de sua tese, segundo a qual a literatura uma pura forma, no tem nenhuma (ou quase
-
nenhuma) relao com a realidade extraliterria, e pode pois ser considerada como uma srie que tira suas formas de si mesma. Por outro lado, os formalistas sabem que a significao de cada forma funcional, que uma mesma forma pode ter diversas funes, as nicas que importam para a compreenso [Pgina 39] da obra, e que, por conseguinte, discernir a semelhana entre as formas, longe de fazer progredir o conhecimento da obra literria, seria mesmo intil. A inexistncia desses dois princpios nos formalistas se deve, por um lado, ausncia de uma terminologia nica e precisa, por outro, ao fato de eles no serem utilizados simultneamente pelos mesmos autores: o primeiro princpio desenvolvido e defendido sobretudo por Chklvski, enquanto o segundo fundado nos trabalhos de Tinianov e de Vinogradov. Esses se preocupam muito mais com descobrir a motivao, a justificao interna de tal elemento numa obra, do que com notar sua recorrncia em outra parte. Assim, Tinianov escreve: Recuso categoricamente o mtodo de comparao por citaes, que nos faz acreditar em uma tradio passando de um escritor a outro. Segundo esse mtodo, os termos constitutivos so abstratos de suas funes, e finalmente confrontam-se unidades incomensurveis. A coincidncia, as convergncias existem sem dvida em literatura, mas elas concernem s funes dos elementos, s relaes funcionais de um elemento determinado (Rsskaia proza, pp. 10-11). evidente, com efeito, que as semelhanas estruturais devem ser procuradas no nvel das funes; entretanto, em literatura, a ligao entre forma e funo no ocasional, nem arbitrria, j que a forma igualmente significativa num outro sistema, o da lngua. Por conseguinte, o estudo das formas permite penetrar nas relaes funcionais.
Ao mesmo tempo, o estudo das obras isoladas, consideradas como sistemas fechados, no suficiente. As mudanas que o cdigo literrio sofre, de uma obra para outra, no significam que todo texto literrio tenha seu cdigo prprio. preciso evitar duas posies extremas: acreditar que existe um cdigo comum a toda literatura, afirmar que cada obra engendra um cdigo diferente. A descrio exaustiva de um fenmeno, sem recorrer ao sistema geral que o integra, impossvel. A lingstica contempornea sabe bem disso: to contraditrio descrever sistemas isolados
-
sem fazer sua taxinomia quanto construir uma taxinomia na ausncia de descries de fenmenos particulares: as duas tarefas implicam-se mutuamente (Jakobson, 1963, p. 70). Somente a incluso do sis- [Pgina 40] tema das relaes internas que caracterizam uma obra no sistema mais geral, do gnero ou da poca, no quadro de uma literatura nacional, permite estabelecer os diferentes nveis de abstrao desse cdigo (os diferentes nveis de forma e substncia segundo a terminologia hjelmsleviana). Muitas vezes, seu deciframento depende diretamente de fatores externos: assim, as novelas sem concluso de Maupassant s tomam sentido no quadro da literatura da poca (cf. Chklvski, 1929, p. 72). Tal confronto permite igualmente descrever melhor o funcionamento do cdigo em suas diferentes manifestaes. Mesmo assim, a descrio precisa de uma obra particular uma premissa indispensvel. Como notou Vinogradov: Conhecer o estilo individual do escritor, independentemente de toda tradio, isoladamente, e na sua totalidade, enquanto sistema de meios lingsticos, cuja organizao esttica preciso definir deve preceder toda procura histrica (e comparativa) (1923, p. 286).
A experincia das classificaes tentadas em lingstica e em histria literria leva a colocar alguns princpios de base. Primeiramente, a classificao deve ser tipolgica e no gentica, as semelhanas estruturais no devem ser procuradas na influncia direta de uma obra sobre outra. Esse princpio, diga-se de passagem, foi discutido por Vinogradov em seu artigo Sobre os ciclos literrios (1929). preciso, em seguida, levar em conta o carter estratificado da obra literria. O principal defeito das tipologias propostas em histria literria, sob a influncia da histria da arte, que, apesar de construdas a partir de um nico e mesmo plano, so aplicadas a obras e at mesmo a perodos inteiros. Ao contrrio, a tipologia lingstica confronta os sistemas fonolgico, morfolgico ou sinttico, sem que as diferentes abordagens coincidam necessariamente. A classificao deve pois seguir a estratificao do sistema em planos e no em nveis (obras). Enfim, a estrutura pode estar manifesta tanto nas relaes entre as personagens, quanto nos diferentes estilos de
-
narrativa, ou no ritmo... assim que em O Capote de Ggol, a oposio realizada pe- ____________________
Nota de rodap (3) As excees aparentes, como a de Petersen, que prope dez oposies binrias sobre sete estratos sobrepostos, perdem seu valor por causa do carter mentalista dessas oposies por exemplo, objetivo-subjetivo, claro-
nebuloso, plstico-musical etc. (N. do A.) [Pgina 41] lo jogo de dois pontos de vista diferentes, adotados sucessivamente pelo autor, e que se refletem nas diferenas lxicas, sintticas etc. (Eichenbaum, pp. 149-165). O estado atual dos estudos lingsticos sobre a classificao (cf. o artigo de Benveniste, A classificao das lnguas) traz um grande nmero de sugestes acerca desse procedimento de comparao e de generalizao.
Consideremos agora a tipologia das formas narrativas simples, tal como foi esboada por Chklvski (1929) e, em parte, por Eichenbaum. Essas formas esto representadas sobretudo na novela4; o romance apenas se distingue por sua maior complexidade. Entretanto, as dimenses do romance (seu aspecto sintagmtico) esto em relao com os processos que ele utiliza (seu aspecto paradigmtico). Eichenbaum observa que o desenrolar do romance e o da novela seguem leis diferentes. O fim do romance um ponto de enfraquecimento e no de reforo; o ponto culminante do movimento fundamental deve estar em algum lugar antes do fim... Eis por que natural que os fins inesperados sejam fenmeno muito raro no romance... enquanto a novela tende precisamente para um inesperado mximo, que concentra em torno de si tudo o que o precede. O romance exige certa queda depois do ponto culminante, enquanto, na novela, mais natural que se pare, uma vez atingido o ponto culminante (pp. 171-172). Essas consideraes s concernem, evidentemente, trama5, a seqncia episdica tal qual ela apresentada na obra. Chklvski supe que toda trama corresponde a certas condies gerais, fora das quais uma narrativa no tem trama propriamente dita. Uma ima- ____________________
-
Nota de rodap (4) Existe certa flutuao no emprego da palavra novela, em portugus. No presente texto se separa de um lado o romance, de outro a novela. A novela, em termos quantitativos, seria uma narrativa curta (que pode ter, como se ver em seguida, uma forma aberta ou fechada). Por outro lado a palavra conto, quando utilizada pelos formalistas (Propp) ou Todorov, designa em geral o conto popular, folclrico. (N. da T.)
Nota de rodap (5) Os formalistas distinguiam a fbula (em francs jable) da trama (em francs sujet). A fbula designa a matria bsica da estria, a soma de eventos narrados numa obra de fico, ou seja, o material para a construo da narrativa. Coversamente, trama (em ingls plot) designa a estria tal como contada ou o modo como os eventos esto ligados uns aos outros. A fim de se transformar em parte da estrutura esttica, a matria bruta da fbula tem de ser elaborada em trama (V. Erlich, p. 209). A palavra sujet poderia ser tambm traduzida por enredo ou intriga.
Preferi a palavra trama, que conota a idia de elaborao. (N. da T.) [Pgina 42] gem um paralelo, at mesmo uma simples descrio do acontecimento no do ainda a impresso de uma novela (p. 68). Se no h desenlace, no temos a sensao de uma trama (p. 71). Para construir uma trama, preciso que o final apresente os mesmos termos do comeo, se bem que numa relao modificada. Todas essas anlises, que visam descobrir a relao estrutural, dizem respeito unicamente, no o esqueamos, ao modelo construdo e no narrativa como tal.
As observaes de Chklvski sobre as diferentes maneiras de construir a trama de uma novela levam a distinguir duas formas que, de fato, coexistem na maior parte das narrativas: a construo em patamares e a construo em crculo. A construo em patamares uma forma aberta (A1 + A2 + A3 + ... An) onde os termos enumerados apresentam sempre um trao comum; assim, as empresas anlogas de trs irmos nos contos, ou a sucesso de aventuras de uma mesma personagem. A construo em crculo uma forma fechada (A1R1A2) ... (A1R2A2)
6, que repousa sobre uma oposio. Por exemplo: a narrativa comea por uma predio, que no fim se realiza, apesar dos esforos das personagens. Ou ento: o pai aspira ao amor de sua filha, mas s o percebe no final da narrativa. Essas duas formas se encaixam uma na outra segundo vrias combinaes: geralmente, a novela inteira apresenta uma forma fechada, de onde a sensao de acabamento que ela suscita nos leitores. A forma aberta se realiza segundo dois tipos principais, um dos quais se encontra em estado puro nas novelas e romances de mistrio (Dickens), nos romances policiais. O outro
-
consiste no desenvolvimento de um paralelismo como, por exemplo, em Tolsti. A narrativa de mistrio e a narrativa de desenvolvimentos paralelos so, em certo sentido, opostas, embora possam coexistir na mesma obra. A primeira desmascara as semelhanas ilusrias, mostra a diferena entre dois fenmenos aparentemente semelhantes. A segunda, ao contrrio, descobre a semelhana entre dois fenmenos diferentes e, primeira vista, independentes. Essa esquematizao empobrece, sem dvida, as finas observaes de Chklvski, que nunca teve a preocupao nem de sistemati- ____________________
Nota de rodap (6) A1, A2 ... designam as unidades paradigmticas, R1 R1 ... as
relaes entre elas. (N. do A.) [Pgina 43] zar, nem de evitar as contradies. O material que ele rene para apoiar suas teses considervel, colhido tanto na literatura clssica quanto na literatura moderna: entretanto, o nvel de abstrao tal que difcil ficar convencido. Tal trabalho deveria ser empreendido, pelo menos no comeo, nos limites de uma nica literatura nacional e de determinado perodo. Ainda aqui o campo de investigao permanece virgem.
Um problema que sempre preocupou os tericos da literatura o das relaes entre a realidade literria e a realidade qual se refere a literatura. Os formalistas fizeram um esforo considervel para o elucidar. Esse problema, que se coloca em todos os domnios do conhecimento, fundamental para o estudo semiolgico, porque pe em primeiro plano as questes de sentido. Lembremos sua formulao em lingstica, onde constitui o prprio objeto da semntica. Segundo a definio de Peirce, o sentido de um smbolo sua traduo em outros smbolos. Essa traduo pode operar-se em trs nveis diferentes. Pode permanecer intralingual, quando o sentido de um termo formulado com a ajuda de outros termos da mesma lngua; nesse caso, preciso estudar o eixo das substituies de uma lngua (cf. a esse respeito as reflexes de Jakobson, 1963, pp. 41-42, 78-79). Ela pode ser interlingual; Hjelmslev d exemplos disso quando compara os termos que designam os sistemas de parentesco ou de
-
cores nas diferentes lnguas. Enfim, ela pode ser inter-semitica, quando a operao lingstica comparada operao realizada por um dos outros sistemas de signos (no sentido largo do termo). A descrio semntica deve pois consistir, antes de tudo, em aproximar a lngua das outras instituies sociais, e garantir o contato entre a lingstica e os outros ramos da antropologia social (Hjelmslev, p. 109). Nenhum desses trs nveis faz intervirem as coisas designadas. Para tomar um exemplo, a significao lingstica da palavra amarelo no estabelecida com referncia aos objetos amarelos, mas por oposio s palavras vermelho, verde, branco etc., no sistema lingstico portugus; ou ento com referncia s palavras jaune, yellow, gelb etc., ou ento com referncia escala dos comprimentos de ondas da luz, [Pgina 44] estabelecida pela fsica e que representa, tambm, um sistema de signos convencionais.
A sintaxe, segundo a definio dos lgicos, deveria tratar das relaes entre os signos. Na realidade, ela limitou seu domnio ao eixo sintagmtico (eixo dos encadeamentos) da lngua. A semntica estuda as relaes entre a lngua e os sistemas de signos no-lingsticos. O estudo da paradigmtica, ou do eixo das substituies, foi negligenciado. Por outro lado, a existncia de signos cuja principal funo sinttica vem obscurecer o problema. Na lngua articulada, eles servem unicamente para estabelecer relaes entre outros signos, por exemplo, certas preposies, os pronomes possessivos, relativos, a cpula7. Evidentemente, eles existem tambm em literatura; asseguram o acordo, a ligao, entre os diferentes episdios ou fragmentos. Essa distino de ordem lgica no deve ser confundida com a distino lingstica entre significao gramatical e significao lxica, entre forma e substncia do contedo, embora coincidam freqentemente. Na lngua, por exemplo, a flexo de nmero depende muitas vezes da significao gramatical, mas sua funo semntica. Assim, em literatura, os signos de funo sinttica no dependem necessariamente das regras de composio, que correspondem gramtica ( forma do contedo) de uma lngua articulada. A exposio de uma narrativa
-
no se encontra forosamente no comeo, nem o desenlace no fim.
As diferenas entre relaes e funes so bastante complexas. Os formalistas observam-nas sobretudo nas transies, onde seu papel aparece mais claramente. Para eles, um dos fatores principais da evoluo literria reside no fato de certos processos ou certas situaes aparecerem automaticamente e perderem ento seu papel semntico para representar apenas um papel de ligao. Numa substituio fenmeno freqente no folclore o novo signo pode representar o mesmo papel sinttico, sem ter mais a menor relao com a verossimilhana da narrativa; assim se explica a presena, nas canes populares, por exemplo, de certos elementos cujo sentido inexplicvel. Inversamente, os elementos de funo dominante semntica
____________________
Nota de rodap (7) Seguimos a distino formulada por E. Benveniste em seu
curso no Collge de France, 1963-1964. (N. do A.) [Pgina 45] podem ser modificados sem que mudem os signos sintticos da narrativa. Skaftimov, que se preocupou com esse problema em seu estudo sobre as bilinas (canes picas russas), d exemplos convincentes: Mesmo nos pontos onde, em razo das mudanas sobrevindas nas outras partes da cano pica, o disfarce no absolutamente necessrio e at contradiz a situao criada, ele conservado apesar de todos os inconvenientes e absurdos que engendra (p. 77).
O problema que reteve, acima de tudo, a ateno dos formalistas concerne relao entre os constrangimentos impostos narrativa por suas necessidades internas (paradigmticas) e os que decorrem do acordo exigido com aquilo que os outros sistemas de signos nos revelam sobre o mesmo assunto. A presena de tal ou tal elemento na obra se justifica pelo que eles chamam sua motivao. Tomachvski (1925) distingue trs tipos de motivao: composicional, que corresponde aos signos essencialmente sintticos; realista, que diz respeito s relaes com as outras linguagens; esttica, enfim, que torna manifesto o fato de pertencerem todos os elementos ao mesmo
-
sistema paradigmtico. As duas primeiras motivaes so geralmente incompatveis, enquanto a terceira concerne a todos os signos da obra. A relao entre as duas ltimas ainda mais interessante, porque suas exigncias no esto no mesmo nvel e no se contradizem. Skaftimov prope que se caracterize esse fenmeno da seguinte maneira: Mesmo no caso de uma orientao direta em direo realidade, o domnio da realidade encarada, mesmo quando se limita a um s fato, possui uma moldura e um ncleo do qual ele recebe sua organizao... A realidade efetiva dada em suas grandes linhas, o acontecimento se inscreve unicamente na trama do esboo principal e somente na medida em que ele necessrio reproduo da situao psicolgica fundamental. Embora a realidade efetiva seja retransmitida com uma aproximao sumria, ela que representa o objeto imediato e direto do interesse esttico, isto , da expresso, da reproduo e da interpretao; e a conscincia do cantor lhe subordinada. As substituies concretas, no campo da narrativa, no lhe so indiferentes, pois elas so regidas no somente pela expressividade emotiva geral, mas tambm pelas [Pgina 46] urgncias do objeto da cano, isto , por critrios de reproduo e semelhana (p. 101). Tomachvski v as relaes entre as duas motivaes numa perspectiva estatstica, e nisso ele est prximo da teoria da informao. Ns exigimos de cada obra uma iluso elementar... Nesse sentido, cada motivo deve ser introduzido como um motivo provvel para aquela situao. Mas j que as leis de composio do enredo nada tem a ver com a probabilidade, cada introduo de motivos um compromisso entre essa probabilidade objetiva e a tradio literria (1925, p. 149).
Os formalistas procuraram essencialmente analisar a motivao esttica, sem ignorar entretanto a motivao realista. O estudo da primeira mais justificado por no termos geralmente nenhum meio de estabelecer a segunda. Nosso procedimento habitual, que restabelece a realidade a partir da obra e tenta uma explicao da obra pela realidade restituda, constitui, com efeito, um crculo vicioso. A viso literria pode, verdade, comparar-se s vezes a outras vises fornecidas quer pelo prprio autor, quer por outros documentos concernentes mesma poca e
-
s mesmas personagens, quando se trata de personagens histricas. o caso das canes picas russas, que refletem uma realidade histrica conhecida alhures; as personagens so freqentemente prncipes ou senhores russos. Estudando essas relaes, Skaftimov escreve: O fim trgico da cano pica sem dvida sugerido por sua fonte histrica ou legendria, mas a motivao da desgraa de Sukhomanti... no se justifica por nenhuma realidade histrica. E tambm nenhuma tendncia moral est em jogo. Resta unicamente a orientao esttica, s ela d sentido origem desse quadro e o justifica (p. 108). Comparando as diferentes personagens das canes e as personagens reais, Skaftimov chega seguinte concluso: O grau de realismo dos diferentes elementos da cano pica varia segundo sua importncia na organizao geral do conjunto... A relao entre as personagens da cano pica e seus prottipos histricos determinada por sua funo na concepo geral da narrativa (p. 127).
Enquanto os lingistas utilizam cada vez mais os processos matemticos, preciso lembrar que os formalistas foram os primeiros a tentar faz-lo: Toma- [Pgina 47] chvski aplicou a teoria das cadeias de Markov ao estudo da prosdia. Esse esforo merece nossa ateno agora que as matemticas qualitativas conhecem larga extenso em lingstica. Tomachvski deixou no s um estudo precioso sobre o ritmo de Pchkin, como soube ver tambm que o ponto de vista quantitativo no devia ser abandonado, quando a natureza dos fatos o justifica, principalmente quando ela depende de leis estatsticas. Respondendo s mltiplas objees suscitadas por seu estudo, Tomachvski escreve (1929): No se deve proibir cincia a utilizao de um mtodo, qualquer que seja... O nmero, a forma, a curva so smbolos do pensamento tanto quanto as palavras e so compreensveis unicamente por aqueles que dominam esse sistema de smbolos... O nmero no decide nada, no interpreta, apenas uma maneira de estabelecer e de descrever os fatos. Se se tem abusado dos nmeros e grficos, o mtodo no se tornou por isso vicioso: o culpado aquele que abusa, no o objeto do abuso (pp. 275-276). Os abusos so bem mais freqentes que as tentativas bem sucedidas, e Tomachvski no cessa de nos
-
prevenir contra o perigo das simplificaes prematuras: Os clculos tm freqentemente por objetivo estabelecer um coeficiente suscetvel de autorizar imediatamente um julgamento sobre a qualidade do fato submetido prova... Todos esses coeficientes so dos mais nefastos por causa de uma estatstica filolgica... No se deve esquecer que, mesmo no caso de um clculo correto, o nmero obtido caracteriza unicamente a freqncia de aparecimento de um fenmeno, mas no nos esclarece de modo algum sobre sua qualidade (pp. 35-36).
Tomachvski aplica os processos estatsticos ao estudo do verso de Pchkin. Como ele prprio disse, toda estatstica deve ser precedida de um estudo, que procura a diferenciao real dos fenmenos (p. 36). Essa pesquisa o leva a distinguir, para abordar o estudo do metro, trs diferentes nveis; por um lado, um esquema de carter obrigatrio, mas que no determina as qualidades do verso, por exemplo, o verso imbico de cinco medidas; por outro lado o uso, isto , o verso particular. Entre os dois se situa o impulso rtmico, ou norma (o modelo de execuo, na terminologia de Jakobson, 1963, p. 232). Essa norma pode [Pgina 48] ser estabelecida por uma obra ou por um autor, sendo o mtodo estatstico aplicado ao conjunto escolhido. Assim, o ltimo tempo forte em Pchkin leva acento em 100% dos casos, o primeiro em 85%, o penltimo em 40% etc.
Vemos, ainda uma vez, as noes da anlise literria aproximarem-se das da lingstica. Lembremos com efeito que para Hjelmslev, que estabelece uma distino entre uso, norma e esquema na linguagem, a norma apenas uma abstrao tirada do uso por um artifcio de mtodo. No mximo pode Constituir um corolrio conveniente para se poderem colocar as bases da descrio do uso (p. 80). O estudo da norma se reduz, para Tomachvski, observao das variantes tpicas nos limites das obras unidas pela identidade de forma rtmica (por exemplo: o troqueu de Pchkin em seus contos dos anos 30); ao estabelecimento do grau de freqncia observao dos desvios do tipo; observao do sistema de organizao dos diferentes aspectos sonoros do fenmeno estudado (os pretensos traos secundrios do verso)8; definio das funes construtivas desses desvios (as figuras rtmicas) e interpretao das
-
observaes (p. 58). Esse vasto programa ilustrado por anlises exaustivas do iambo de quatro e cinco medidas em Pchkin, confrontado ao mesmo tempo com as normas de outros poetas e de outras obras do mesmo autor.
Esse mtodo aplica-se melhor ainda nos domnios onde o quadro obrigatrio no definido com preciso. o caso do verso livre, e sobretudo da prosa, onde nenhum esquema existe. Assim, para o verso livre, que construdo como uma violao da tradio, intil procurar uma lei rigorosa que no admita excees. S se deve procurar a norma mdia, e estudar a amplitude dos desvios com relao a ela (p. 61). Da mesma forma, para a prosa, a forma mdia e a amplitude das oscilaes so os nicos objetos de investigao... O ritmo da prosa deve, por princpio, ser estudado com a ajuda de um mtodo estatstico (p. 275).
A concluso que no se deve aplicar esses mtodos nem ao estudo de um exemplo particular, isto , interpretao de uma obra, nem ao estudo das ____________________
Nota de rodap (8) Tais como a sonoridade, o lxico, a sintaxe etc. (N. do A.) [Pgina 49] leis e das regularidades que regem as grandes unidades do sistema literrio. Podemos deduzir da que a distribuio das unidades literrias (do sistema conotativo) no segue nenhuma lei estatstica, mas que a distribuio dos elementos lingsticos (do sistema denotativo) no interior dessas unidades, obedece a uma norma de probabilidade. Assim se justificariam os numerosos e brilhantes estudos estilsticos dos formalistas (por exemplo, Skaftimov, Vinogradov, 1929) que observam o acmulo de certas formas sintticas ou de diferentes estratos do lxico em torno de unidades paradigmticas (por exemplo, as personagens) OU sintagmticas (os episdios) do sistema literrio. evidente que se trata aqui de norma e no de regra obrigatria. As relaes dessas grandes unidades permanecem puramente qualitativas, e so geradora de uma estrutura cujo estudo inacessvel por mtodos estatsticos, o que explica o relativo xito desses mtodos, quando
-
aplicados ao estudo do estilo, isto , distribuio de formas lingsticas numa obra. O defeito fundamental desses estudos ignorar a existncia de dois sistemas diferentes de significao (denotativo e conotativo) e tentar a interpretao da obra diretamente a partir do sistema lingstico.
Essa concluso poderia, sem dvida, ser estendida a sistemas literrios de maiores dimenses. A evoluo formal de uma literatura nacional, por exemplo, obedece a leis no-mecnicas. Ela passa, segundo Tinianov (1929), pelas seguintes etapas: 1) o princpio de construo automatizada evoca dialeticamente o princpio de construo oposto; 2) este encontra sua aplicao na forma mais fcil; 3) ele se estende maior parte dos fenmenos; 4) ele se automatiza e evoca por sua vez princpios de construo opostos (p. 17). Essas etapas nunca podero ser delimitadas e definidas seno em termos de acmulo estatstico, o que corresponde s exigncias gerais da epistemologia, a qual nos ensina que s os estados temporrios dos fenmenos obedecem s leis probabilistas. Dessa maneira ser fundada, melhor do que foi at agora, a aplicao de certos processos matemticos aos estudos literrios. [Pgina 50] (Obras citadas)9
BENVENISTE (E.), 1954: La classification des langues,
Conferences de lInstitut de Linguistique de lUniversit de Paris, XI (1952-1953), Paris.
BERNSTEIN (S.), 1927: Stikh i deklamtzia (Verso e declama- o), Rsskaia retch, Nvaia siria, I, Leningrado. BOGATIRIV (P.) e JAKOBSON (R.), 1929: Die Folklore als
cine besondere Form des Schaffens, Donum Natalicium Schrijnen, Chartres.
BRIK (O.), 1919: Zukove povtri (As repeties sonoras), Potika, Sbrniki po terii poettcheskovo iazik, Petro-grado.
CHKLVSKI (V.), 1926: Trtia fbrika (A terceira fbrica), Moscou. 1929: O terii przi (Sobre a teoria da prosa),
-
Moscou, 1 edio 1925). 1959: Khudjestvennaia proza (A prosa literria), Moscou.
EICHENBAUM (B.), 1927: Literatura. Teria, krtika, polmika (Literatura. Teoria, crtica, polmica), Leningrado.
ERLICH (V.), 1955: Russian Formalism, History-Doctrine, s Gravenhage
HJELMSLEV (L.), 1959: Essais linguistiques, Copenhague. HOCKET (Ch.), 1958: A Course in Modern Linguistics, New
York. IAKUBNSKI (L.), 1916: O zvukakh stikhotvrnovo iazik
(Sobre os sons da lngua potica), Sbrniki po terii poettcheskovo iazik, I, Petrogrado.
JAKOBSON (R.), 1921: Novichaia rsskaia pozia (A poesia russa moderna), Praga.
1923: O Tchechskom stikh (Sobre O verso tcheco), Berlim. 1963: Essais de linguistique gnrale, Paris.
LEVI-STRUASS (Cl.), 1960: La structure et la forme, Cahiers de lI.S.E.A, 99.
MUKAROVSKY (J.), 1938: La dnomination potique et la fonction sthtique de la langue, Actes du quatrime con-grs international des linguistes, copenhague
PETERSEN (J.), 1939: Die Wissenschaft von der Dichtung, Bd. I, Berlim.
PROPP (V.), 1928a: Morfo1guia skzki (A morfologia do con- to), Leningrado (= Morphology of the Folktale, Bloo-mington, 1958). 1929b: Transformtzii volchbnikh skazok (Trans-formaes do conto fantstico), potika. Vrmennik otdela slovsnikh iskusstv, IV, Leningrado.
Rsskaia proza, 1926 (A prosa russa), Leningrado. ____________________
Nota de rodap (9) O leitor poder encontrar a maior paste dos textos citados na coletnea Thorie de la littrature. Textes des formalist russes (Seuil. 1965) (N. do A.) [Pgina 51]
-
SKAFTIMOV (A.), 1924: Potika i gunezis bilin (Potica
e gnese das canes picas russas), Moscou-Saratov. TINIANOV (I.), 1924: Problema stikhotvrnovo iazik (O
problema da lngua potica), Leningrado. 1929: Arkhasti i novtori (Arcaizantes e inovadores), Leningrado.
TOMACHVSKI (B.), 1925: Teria literatri (Teoria da literatura), Leningrado.
VINOGRADOV (V.), 1923: O zadtchakh stilstiki (Sobre os problemas estilsticos), Rsskaia retch, I, Petrogrado. 1929: Evolitzia rsskovo naturalisma (Evoluo do naturalismo russo), Leningrado.
[Pgina 52]
-
2. LINGUAGEM E LITERATURA
Meu propsito pode ser resumido por esta frase de Valry, frase que tentarei ao mesmo tempo explicitar e ilustrar: A Literatura , e no pode ser outra coisa, seno uma espcie de extenso e de aplicao de certas propriedades da Linguagem.
O que que nos permite afirmar a existncia dessa ligao? O prprio fato de ser a obra literria uma obra de arte verbal levou, desde h muito, os pesquisadores, a falar do grande papel da linguagem numa obra literria; uma disciplina inteira, a estilstica, criou-se nos confins dos estudos literrios e da lingstica; mltiplas teses foram escritas sobre a ln- [Pgina 53] gua de tal ou tal escritor. A linguagem a definida como a matria do poeta ou da obra.
Essa aproximao, por demais evidente, est longe de esgotar a multiplicidade das relaes entre a linguagem e a literatura. No se trata da linguagem enquanto matria, na frase de Valry, mas enquanto modelo. A linguagem preenche essa funo em muitos casos exteriores literatura. O homem se constituiu a partir da linguagem os filsofos de nosso sculo no-lo tm repetido com freqncia e seu modelo pode ser reencontrado em toda atividade social. Ou, para retomar as palavras de Benveniste, a configurao da linguagem determina todos os sistemas semiticos. Sendo a arte um desses sistemas semiticos, podemos estar certos de nela descobrir a marca das formas abstratas da linguagem.
A literatura goza, como se v, de um estatuto particularmente privilegiado no seio das atividades semiticas. Ela tem a linguagem ao mesmo tempo como ponto de partida e como ponto de chegada; ela lhe fornece tanto sua configurao abstrata quanto sua matria perceptvel, ao mesmo tempo mediadora e mediatizada. A literatura se revela portanto no s como o primeiro campo que se pode estudar a partir da linguagem, mas tambm como o primeiro cujo conhecimento
-
possa lanar uma nova luz sobre as propriedades da prpria linguagem.
Essa posio particular da literatura determina nossa relao com a lingstica. E evidente que, tratando da linguagem, no temos o direito de ignorar o saber acumulado por essa cincia, assim como tambm por qualquer outra investigao sobre a linguagem. Entretanto, como toda cincia, a lingstica procede freqentemente por reduo e por simplificao de seu objeto, a fim de o manejar mais facilmente. Ela afasta ou ignora provisoriamente certos traos da linguagem, a fim de estabelecer a homogeneidade dos outros e deixar transparecer sua lgica. Procedimento sem dvida justificado na evoluo interna dessa cincia, mas do qual devem desconfiar aqueles que extrapolam seus resultados e seus mtodos: os traos menosprezados so talvez precisamente aqueles que tm a maior importncia num outro sistema semitico. A unidade das cincias humanas reside menos nos mtodos [Pgina 54] elaborados na lingstica e utilizados alhures, que nesse objeto comum a todas elas: a linguagem. A imagem que dela temos hoje, e que derivada de certos estudos dos lingistas, enriquecer-se- com os ensinamentos tirados das outras cincias.
Se se adotar essa perspectiva, torna-se evidente que todo conhecimento da literatura seguir uma via paralela do conhecimento da linguagem; mais ainda, essas duas vias tendero a confundir-se. Um campo imenso se abre investigao; somente uma parte relativamente reduzida foi explorada at agora, nos trabalhos cujo brilhante pioneiro Roman Jakobson. Esses estudos se realizaram na poesia e se esforaram por demonstrar a existncia de uma estrutura formada pela distribuio dos elementos lingsticos no interior do poema. Proponho-me indicar aqui, ao tratar agora da prosa literria, alguns pontos em que a aproximao entre linguagem e literatura parece particularmente fcil. No preciso dizer que, em razo do estado atual de nossos conhecimentos nesse domnio, limitar-me-ei a consideraes de ordem geral, sem ter a menor pretenso de esgotar o assunto.
A bem dizer, os estudos sobre a prosa j tentaram certa vez operar essa aproximao e dela tirar proveito. Os formalistas
-
russos, que foram pioneiros em mais de um campo, j tinham procurado explorar essa analogia. Situavam-na, mais precisamente, entre os processos de estilo e os processos de organizao da narrativa; um dos primeiros artigos de Chklvski chamava-se mesmo: A relao entre os processos de composio e os processos estilsticos gerais. Esse autor a notava que a construo em patamares pertence mesma srie que as repeties de sons, a tautologia, o paralelismo tautolgico, as repeties (Thorie de la literture, Paris, Ed. du Seuil, 1965, p. 48). Os trs golpes desferidos por Rolando sobre a pedra eram para ele da mesma natureza que as repeties ternrias lexicais na poesia folclrica.
No quero fazer aqui um estudo histrico e contentar-me-ei com lembrar brevemente alguns outros resultados dos estudos dos formalistas, dando-lhes a forma que nos pode ser til aqui. Em seus estudos sobre a tipologia da narrativa, Chklvski chegara a distinguir dois grandes tipos de combinao entre as his- [Pgina 55] trias: havia, de um lado, uma forma aberta, onde se podia sempre acrescentar novas peripcias, no fim, por exemplo, as aventuras de um heri qualquer, como Rocambole; de outro lado, uma forma fechada, que comeava e terminava pelo mesmo motivo, enquanto no interior nos eram contadas outras histrias, por exemplo, a histria de dipo: no comeo uma predio, no fim sua realizao, entre as duas, as tentativas de evit-lo. Chklvski no percebera porm que essas duas formas representam a projeo rigorosa de duas figuras sintticas fundamentais, servindo combinao de duas oraes entre si, a coordenao e a subordinao. Notemos que, em lingstica, chama-se hoje essa segunda operao por um nome tomado antiga potica: encaixe.
Na passagem acima citada, falava-se de paralelismo; esse processo apenas um dos que Chklvski revelou. Analisando Guerra e Paz, ele revela, por exemplo, a anttese formada por duplas de personagens: 1. Napoleo Kutuzov; 2. Pierre Bezukhov Andr Bolkonski e ao mesmo tempo Nicolau Rostv, que serve de eixo de referncia a um e a outro (ibid., p. 187) Encontra-se igualmente a gradao: vrios membros de uma famlia apresentam os mesmos traos de carter, mas em graus
-
diferentes. Assim, em Ana Karenina, Stiva se situa num patamar inferior ao de sua irm (ibid., p. 188).
Mas o paralelismo, a anttese, a gradao, a repetio so figuras retricas. Podemos assim formular a tese subjacente s observaes de Chklvski: existem figuras da narrativa que so projees das figuras retricas. A partir dessa suposio, poderamos verificar quais so as formas tomadas por outras figuras de retrica, menos comuns, no nvel da narrativa.
Tomemos, por exemplo, a associao, figura que se relaciona com o emprego de uma pessoa inadequada ao verbo. Eis um exemplo lingstico: esta frase que um professor poderia dirigir a seus alunos: Que temos para hoje?. Todos se lembram, por certo, da demonstrao sobre os empregos dessa figura em literatura, dada por Michel Butor a propsito de Descartes. Todos se lembram tambm do emprego que ele mesmo faz desse processo em seu livro La Modification. [Pgina 56]
Eis outra figura que poderamos considerar como uma definio do romance policial, se no a tomssemos de emprstimo retrica de Fontanier, escrita no comeo do sculo dezenove. a sustentao, que consiste em manter o leitor ou o ouvinte em suspense, e a surpreend-lo em seguida por algo que ele estava longe de esperar. A figura pode, pois,