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BALLESTEROS, Jesús. Pós-Modernidade: decadência ou resistência. 2ª Ed. Madri, Tecnos, 2000 Nem ao que muito colheu sobrou; nem ao que pouco colheu faltou.” 2 Cor. 8,15 “A concentração é o único bem, enquanto que a dissipação é o único mal.EMERSON. PRÓLOGO O presente ensaio está ordenado em torno de vários eixos centrais: A) A época histórica conhecida de modo praticamente unânime como “Tempos Modernos” havia se constituído a partir dos meados do século XV, sob a marca da primazia do “mercado”, mas havia mantido uma certa autonomia em relação à esfera política (na qual havia se desenvolvido a ideia dos direitos humanos) e à esfera cultural (que havia conduzido finalmente à tese da arte pela arte). A realidade da autonomia de cada uma dessas dimensões sociais vinha dada por sua diferente fundamentação epistemológica e antropológica e sua diferente organização. a) A modernização econômica perceberia o ser humano como um ser que troca mercadorias, preocupado somente com seu lucro individual, e potencializaria o visual, o quantitativo e o disjuntivo. Seu lema havia sido perfeitamente descrito por Guizot na França de Luís Felipe de Orleans: “Eriquecei!” O mercado seria a única instituição social que merecia ser defendida energicamente. b) A Modernidade política a partir do século XVIII iria encarar o homem fundamentalmente como citoyen, e suas armas fundamentais seriam a liberdade de opinião e o direito de crítica. Al limite, a Modernidade política, nas suas posturas mais radicais, pretenderia sujeitar a economia à opinião coletiva, fazendo-a mais tranparente e igualitária, o que equivaleria, em última análise, a acabar com o capitalismo. c) O Modernismo cultural, surgido no começo do século XIX, mostraria uma clara postura de hostilidade à Modernização, ao defender a supremacia das qualidades secundárias, da sensualismo 1 , e dos impulsos inconscientes, contra o predomínio da racionalidade geométrica. O lema de TeophileGauthier, l’artpourl’art , estava direcionado precisamente contra o slogan de Guizot, assim como a o que disse Oscar Wilde: “Cabe saber o preço de tudo, e não conhecer o valor de nada.” Essa hostilidade entre Modernização econômica e Modernismo cultural se faz patente na simultaneidade da defesa do progresso linear de Spencer, 1 Crianças, não pensem bobagem, tá? É da corrente sensualista da teoria estética que trata-se aqui. (N.T.)

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  • BALLESTEROS, Jess. Ps-Modernidade: decadncia ou resistncia. 2 Ed. Madri,

    Tecnos, 2000

    Nem ao que muito colheu sobrou;

    nem ao que pouco colheu faltou.

    2 Cor. 8,15

    A concentrao o nico bem,

    enquanto que a dissipao o nico mal.

    EMERSON.

    PRLOGO

    O presente ensaio est ordenado em torno de vrios eixos centrais:

    A) A poca histrica conhecida de modo praticamente unnime como Tempos

    Modernos havia se constitudo a partir dos meados do sculo XV, sob a marca da primazia do mercado, mas havia mantido uma certa autonomia em relao

    esfera poltica (na qual havia se desenvolvido a ideia dos direitos humanos) e esfera cultural (que havia conduzido finalmente tese da arte pela arte). A realidade da autonomia de cada uma dessas dimenses sociais vinha dada

    por sua diferente fundamentao epistemolgica e antropolgica e sua diferente organizao.

    a) A modernizao econmica perceberia o ser humano como um ser que

    troca mercadorias, preocupado somente com seu lucro individual, e

    potencializaria o visual, o quantitativo e o disjuntivo. Seu lema havia sido perfeitamente descrito por Guizot na Frana de Lus Felipe de Orleans:

    Eriquecei! O mercado seria a nica instituio social que merecia ser defendida energicamente.

    b) A Modernidade poltica a partir do sculo XVIII iria encarar o homem

    fundamentalmente como citoyen, e suas armas fundamentais seriam a liberdade de opinio e o direito de crtica. Al limite, a Modernidade poltica,

    nas suas posturas mais radicais, pretenderia sujeitar a economia opinio coletiva, fazendo-a mais tranparente e igualitria, o que equivaleria, em ltima anlise, a acabar com o capitalismo.

    c) O Modernismo cultural, surgido no comeo do sculo XIX, mostraria uma clara postura de hostilidade Modernizao, ao defender a supremacia das

    qualidades secundrias, da sensualismo 1 , e dos impulsos inconscientes, contra o predomnio da racionalidade geomtrica. O lema de TeophileGauthier, lartpourlart, estava direcionado precisamente contra o

    slogan de Guizot, assim como a o que disse Oscar Wilde: Cabe saber o preo de tudo, e no conhecer o valor de nada.

    Essa hostilidade entre Modernizao econmica e Modernismo cultural se faz patente na simultaneidade da defesa do progresso linear de Spencer,

    1 Crianas, no pensem bobagem, t? da corrente sensualista da teoria esttica que trata-se aqui. (N.T.)

  • representante por antonomsia do homo oeconomicus, enquanto que

    Baudelaire e Verlaine propagam o decadentismo da poca.

    B) Esta autonomia de esferas sociais est desaparecendo no presente, na medida em que a economia-mundo estende cada vez mais seu poder. A poltica abandona toda a pretenso de dominar a esfera mercantil, e vai recolhendo

    mimeticamente seus procedimentos, de tal forma que importa muito mais a marca (ou logotipo) que a ideologia. medida que a democracia se degenera em

    democrature 2 , avanam os estudos da anlise econmica do direito e da poltica. A cultura e a arte, por sua vez, esto se convertendo em mais um objeto de

    consumo, em algo fragmentado e prazeroso que se justape ao analtico e tedioso, prprio do tempo da produo.

    C) O avano do economicismo como interpretao hegemnica da realidade

    humana e social surge acompanhado no plano da realidade ftica da degradao

    do meio ambiente, da pobreza nos terceiro e quarto mundo 3, do aumento do risco de uma guerra nuclear e da generalizao da anomia e da alienao.

    O xito do capitalismo no mundo o mais contribuiu para arruinar a tese do progresso necessrio como postulado fundamental da Filosofia da Histria. O que fracassou, ou est fracassando no capitalismo , precisamente, seu

    clamoroso xito, o que foi muito bem compreendido por Wallerstein4.

    D) Todavia, o fracasso da ideologia do progresso inevitvel, eixo da Modernizao tecnocrtica, afrontado hoje em dia de um modo bem diverso e ambguo. o que quer sublinhar a presena no ttulo tanto do decadente quanto

    do resistente. Efetivamente, o que o prprio sistema hegemnico da economia-mundo se

    empenha em apresentar como nica forma de ps-modernidade, o ps-estruturalismo francs e o significativamente chamado pensierodebole5, no outra coisa que simples decadentismo, abandono da racionalidade, da

    comunicao, e ainda da mesma ideia de homem. E) Frente evidncia do fracasso da ideia de progresso como necessidade

    histrica, existe, no obstante, outra postura bem distinta daquela do decadentismo. A que se empenha em resistir contra a injustia, desumanidade e cretinice crescente de nosso mundo coloca como metas fundamentais a luta em

    favor da paz e contra os blocos militares, a defesa da frugalidade ecolgica

    2 No podia deixar essa de fora: segundo a Wikipedia, atribui-se essa expresso ao cantor de reggae

    Alpha Blondy, da Costa do Marfim, que inventou a palavra "democrature" (a qual se pode traduzir como

    "democradura", combinao de democracia e ditadura) para qualificar alguns governos africanos lol.

    (brilhante N. do T., que, por um acaso, sou eu). 3 Como diria o Juarez Freitas, est defasado. Tambm, n? Foi escrito em 1989. (N. do T.) 4 Immanuel Maurice Wallerstein (1930) um socilogo norte-americano, mais conhecido pela sua

    contribuio fundadora para a teoria do sistema-mundo. Seus comentrios bimensais sobre questes

    globais so distribudos pela Agence Global para publicaes como Le Monde Diplomatique e The

    Nation. (N. do T.) 5 Tambm pensei WTF? Significa, sugestivamente, pensamento dbil, termo cunhado pelo italiano Gianni Vatt imo, que o prprio define assim: Frente a uma lgica frrea e un voca, necessidade de dar

    liv re opo interpretao; frente a uma polt ica monoltica e vertical do partido, necessidade de apoiar

    os movimentos sociais transversais; frente soberba da vanguarda artstica, recuperao de uma arte

    popular e p lural; frente a uma Europa etnocntrica, uma viso mundial das alturas.. Enfim, como d iria o

    Guto, que hocuspocus mgico esse? (N. do T.).

  • contra o esbanjamento consumista e da solidariedade ecumnica contra a

    indiferena individualista. Nessa ps-modernidade como resistncia segue-se acreditando na razo, no

    progresso e na democracia. Uma razo integral e ampliada que se apoia no interdisciplinar e trata de satisfazer as necessidades humanas fundamentais, do biolgico ao simblico, como j cedo observou Capograssi. Um progresso como

    fruto do esforo da liberdade humana, que parte da convico de que os grandes problemas do nosso tempo no so tcnicos, mas ticos, e competem ao homo

    qua homo6 . Uma democracia que, longe do etnocentrismo e do relativismo, busca antes de tudo o respeito ao inalienvel pessoa tanto frente ao Estado como frente ao mercado.

    ***

    Agradeo aos meus companheiros do Departamento de Filosofia do Direito,

    Moral e Poltica BLABLABLA, a diligncia com que supriu minhas deficincias no uso do ordenador7.

    Valencia, junho de 1988

    PRIMEIRA PARTE

    DA MODERNIZAO TECNOCRTICA

    1. ASPECTOS EPISTEMOLGICOS: O VISUAL, O QUANTITATIVO, O

    EXATO, O DISJUNTIVO

    Desde a apario do termo, o moderno tem estado intimamente unido exigncia de exatido, de medida rigorosa. Essa exigncia vai acompanhar a Modernidade ao longo dos sculos, constituindo-se na chave do seu horizonte

    epistemolgico. Efetivamente, a expresso moderno aparece pela primeira vez como destavaPanofsky 8 - na obra do grande pintor e historiador da arte,

    Giorgio Vasari (1511-1574) para designar a nova maneira de pintar, representada paradigmaticamente por Len Battista Alberti (1404-1472) e por Leonardo da Vinci (1452-1519), caracterizada por sua cientificidade, frente

    maniera ntica dos clssicos, e vecchia dos bizantinos. A Modernidade surge na Florena dos Mdicis com o descobrimento de

    Brunelleschi, por volta de 1420, da perspectiva, chamada por ele costruzione legitima. A Modernidade aparece ali onde a exigncia de exatido, presente no mundo da arte, vai ser imediatamente copiada pelo mundo cientfico e vai se

    oferecer em seguida como paradigma de toda forma de conhecimento. A geometrizao (euclidizao) da arte que se introduz com a perspectiva ter

    profundas consequncias no mbito do pensamento geral, tratando de desvalorizar progressivamente o oral em favor do visual, o qualitativo em favor do quantitativo, o analgico em favor do disjuntivo. A cada um destes processos

    corresponde uma figura destacada: respectivamente, Leonardo, Galileu e Descartes. o que veremos continuao. Previamente, analisaremos o que a

    6 Uma expresso pouco comum at que quer dizer o homem como/enquanto homem, sabem? Um negcio meio Alcebades. 7 Mais umas vez, encarecidamente, no pensem bobagens. 8 Erwin PANOFSKY. El significado em ls artes visuales.

  • perspectiva implica no tanto para a Histria da Arte9, mas para a histria do

    pensamento e da concepo do mundo. Como escreve Panofsky, tanto em seu livro sobre a perspectiva como no seu

    livro sobre o Renascimento, a dimenso da perspectiva implica na crena em um espao infinito e homognea ao mesmo tempo. A infinidade escreve Panofsky no segundo dos livros citados est implcita no fato de que qualquer

    conjunto de linhas paralelas, independentemente de sua localizao ou direo, converge para um ponto de fuga. Se tratava do novo conce ito de espao que

    havia sido introduzido por Nicols de Cusa e que ser desenvolvido por Descartes. A exigncia da perspectiva, ou, o que a mesma coisa, a exigncia de

    exatido, tendia a desvalorizar a dimenso qualitativa dos objetos, seu valor simblico, em favor da exclusiva considerao da distncia. Como observou

    muito agudamente Mumford em seu excelente livro Tcnica y civilizacin: O espao de hierarquia de valores foi substitudo pelo sistema de magnitudes [...] A dimenso no significa j importncia divina ou humana, mas distncia. Essa

    depreciao do siblico e do qualitativo o que explica que possa aparecer em primeiro plano um grupo no quadro de VelzquezA rendio de Breda10, algo

    impensvel no mundo pr-moderno. A esta desvalorizao do qualitativo espacial se une a reduo do temporal ao instantneo, devido coincidncia entre exatido e instantaneidade. Como

    assinala Ortega 11 , Velzquez resolve fixar despoticamente o ponto de vista. Todo o quadro nascer de um s ato de viso e as coisas havero de esforar-se

    para chegar como possam ao raio de viso. Essa instantaneidade o resultado da radical ciso entre sujeito e objeto, que produz igualmente a perda do contato direto com a coisa. Essa desvalorizao do objeto est igualmente patente na

    obra de Velzquez, como bem destacou Maravall no seu livro sobre Velzquez y La Modernidad, construdo a partir da intuio de Ortega h pouco assinalada.

    A perspectiva nica estava baseada na reduo euclidiana da geometria,

    fundamento da modernidade ocidental. No , por isso, estranho que as

    perspectivas mltiplas voltem a pintura com a apario das novas geometrias

    no euclidianas no fim do sculo passado. Mas vamos nos deter agora em

    continuar expondo as consequncias da exigncia da exatido no pensar

    moderno. Isso comporta, em primeiro lugar, o deslocamento do oral para o

    visual.

    Tal deslocamento encontra lugar privilegiado no pensamento de Leonardo da

    Vinci (1452-1519), o mais genial dos artistas em diferentes dimenses do

    desenho: pintura, escultura e arquitetura. O olho descreve no Aforismo 326

    9 O que no descaracteriza o fato de este ser um curso fabuloso, bem mais srio que o direito. 10http://www.casacinepoa.com.br/sites/default/files/images/721px-e_overgave_van_breda_Velazquez.jpg

    11 Jos ORTEGA Y GASSET. Sobre El punto de vista em las artes (que, entre ns, s a gente sabe que

    a vista de um ponto, porque, n, s o professor Cezar que d essa aula)Maalz :P. De modo semelhante a

    Ortega se expressa M. HEIDEGER em seu importante ensaio A poca da imagem do mundo: Ser

    moderno equivale a ver o mundo como imagem, o que equivalente apario do homem como

    subjectum dentro do existente e ser subjectum significa tanto quanto ser capaz de deobjetivizar, isto , de visualizar objetivamente, de quantificar com exatido, de calcular, j que a liberdade moderna da

    subjetividade serve integralmente objetividade que lhe inerente.

  • o mais digno dos sentidos, por ser aquele que capta com mais exatido os

    objetos, enquanto o ouvido muito inferior, por sua maior impreciso. Leonardo

    entra na velha questo introduzida por Simnides de Ceos e Horcio sobre a

    hierarquia entre poesia e pintura, ressaltando monotonamente a superioridade da

    segunda sobre a primeira, porque somente a pintura cincia. A poesia fugaz

    como so as sensaes auditivas, enquanto no o seriam para ele as sensaes

    visuais.

    Essa hegemonia das artes do desenho, que se encarregaria de unificar o mesmo

    inventor da palavra moderno, Vasari, como aponta Kristeller, seria a

    responsvel pelo desencanto do mundo, que acompanha a modernidade desde as

    suas origens (se for compreendida em suas razes mais profundas) e que s

    aparece em seu ocaso(se resta esta penetrao radical). De fato, o sagrado em

    sua revelao est associado ao sentido da audio, j que Deus nunca pode ser

    visto, mas, sim, ouvido. A racionalizao da viso como forma exclusiva de

    conhecimento conduz profanao do real: tudo pode ser visto e, portanto, nada

    sagrado, com dir acertadamente Weber em seu WissenschaftalsBeruf : Tudo

    pode ser dominado com o clculo e com a previso. Desde a primazia da viso,

    se perde a conexo profunda silncio-canto-encanto-adorao-mistrio.

    Um passo a mais neste processo de modernizao se deu na obra de Galileu

    (1564-1642), no qual h uma transio do qualitativo para o quantitativo, o que

    acelera a homogeneizao da realidade. Tal como ressalta em sua obra II

    saggiatore, necessrio estabelecer uma separao radical entre a realidade

    objetiva, suscetvel de ser conhecida com exatido como os nmeros, as figuras,

    a magnitude, a posio e o movimento, e aquilo que s se pode conhecer

    subjetiva e aproximadamente: os sons, os sabores, os odores. Insistindo na tese

    de Leonardo, ele enfatiza que a audio, o tato e o paladar no podem

    proporcionar conhecimentos rigorosos, mas apenas conhecimentos confusos e

    ambguos, que no podem ser considerados como cientficos.

    Em seu breve e excelente artigo Do mundo da impreciso ao horizonte da

    exatido, o grande historiador da cincia, Alexandre Koyr chamou a ateno

    sobre a importncia que nesse processo representam os descobrimentos tcnicos,

    tais como a descoberta dos relgios mecnicos, que possibilitam a medio exata

    do tempo; a inveno do telescpio, assim como o uso difundido dos nmeros

    arbicos e da lgebra, devido a impossibilidade de se realizar clculos exatos por

    meio dos nmeros romanos em funo de sua complexidade.

    Todo esse processo de modernizao culminar, sem dvida, na obra do

    filsofo francs, Ren Descartes (1596-1650), que sistematiza e explicita toda a

    evoluo anterior. Sua ideia clara e distinta no outra coisa que a dimenso

    da exatido que vinha sendo buscada desde a Florena dos Mdicis. Nele

    aparece a noo do subjetctum com sua pretenso de certeza e vontade de

    domnio, mas, indissoluvelmente unido a ele, em sua dilacerao interna. De

  • fato, a exigncia de exatido conduz to somente aceitao dos conceitos

    unvocos e eliminao dos analgicos. De tal forma que o mesmo sujeito

    aparece fundamentalmente dividido em dois, como res extensa, submetida ao

    espao e a geometria, e como res cogitans, ou autoconscincia fora do espao e

    do tempo. Eu sou uma coisa que pensa ou uma substncia, cuja essncia o

    pensar e no possui extenso. Tenho um corpo que uma coisa extensa que no

    pensa. Assim, a minha alma completamente distinta do meu corpo e pode

    existir sem ele. A realidade mais imediata e ntima, a unidade psicossomtica

    da pessoa humana, um impasse insupervel na obra de Descartes, a partir do

    pensar disjuntivo e exato, que nega a analogia. Descartes, de fato, viu-se

    obrigado a resolv- la, bem recorrendo a explicao sobrenatural segundo a qual

    a alma e corpo seriam como dois relgios que seriam manipulados

    simultaneamente por Deus; mesmo que, todavia, contradiga o resto de sua

    filosofia, aconselhando, concretamente a princesa Elisabeth de Bohme, em sua

    carta de 28 de junho de 1643, dedicar a maior parte do tempo a conversar e

    descansar, pois o pensamento seria capaz to somente de advertir a oposio

    alma-corpo, mas de forma alguma sua relao.

    O pensar unvoco (no ambguo) e a excluso da analogia sero responsveis

    a partir de ento e, ao longo do sculo, por cises insuperveis para os homens e

    o mundo. De fato, a rejeio da analogia entis e o puro pensar em termos de

    identidade oposio que conduzir historicamente bem a negao da entidade

    do homem diante Deus (Nominalismo, Lutero), bem como a negao de Deus

    diante da realidade humana (Marx, Nietzsche, atesmo postulatrio) e assim

    sucessivamente com as falsas separaes entre o indivduo e a sociedade, origem

    do deslocamento, individualismo ou coletivismo; entre o dever ou a felicidade,

    que divide puritanos e hedonistas...

    Este deslocamento do mundo, do pensar em termos de identidade-oposio e

    no em termos de diferena-complementariedade, precisamente o que no

    plano epistemolgico demonstra na obsolescncia da Modernidade. De fato, tal

    abordagem est superada desde que Niels Bohr acabou com o dilema, motivo de

    embate entre os fsicos modernos, sobre a compreenso da luz como onda ou

    corpsculo. Mas falaremos dele na quarta parte deste livro. Trataremos agora de

    analisar as consequncias da viso moderna do mundo baseada na exclusividade

    do exato e na negao da analogia.

    2. A IDEOLOGIA DO CRESCIMENTO INDEFINIDO: CREMATSTICA E

    MEGA-MQUINA

    A transio do oral para o visual, do qualitativo para o quantitativo e do

    analgico ao disjuntivo conduz a desvalorizao dos aspectos relacionados a

    cultura e a poltica em favor dos aspectos estritamente econmicos, que passam

  • a ser considerados como base da civilizao. o que pode ser mostrado ao se

    analisar a inverso que dentro da modernidade foi feita nas relaes humanas tal

    como haviam sido estudadas por Aristteles na tica a Nicmaco e na Poltica.

    Nossa inteno no propor nenhum retorno a Aristteles, mas mostrar o

    empobrecimento das relaes humanas decorrente da Modernidade econmica.

    [El trnsito de lo oral a lo visual, de lo cualitativo a lo cuantitativo y de lo

    analgico a lo disyuntivo conduce a la devaluacin de los aspectos relacionados

    con la cultura y la poltica en favor de los estrictamente econmicos, que pasan

    a ser considerados como la base de la civilizacin. Es lo que puede ser mostrado

    analizando la inversin que dentro de la Modernidad se ha predicado de las

    relaciones humanas tal como haban sido estudiadas por Aristteles en la Etica a

    Nicmaco y la Poltica. Nuestra intencin no es proponer ningn retorno a

    Aristteles, sino sealar el empobrecimiento de la tipologa de las relaciones

    humanas que va a implicar la Modernidad econmico.]

    Aristteles hierarquizava as necessidades humanas segundo sua importncia e

    durao, e disso surgiu a distino entre a poltica e a economia. A primeira se

    relacionada com as necessidades mais elevadas, as que tratam do bom viver e

    que afetam a necessidade que o homem tem de reconhecimento, de imortalidade,

    de permanecer na memria. Tais necessidades s so alcanadas com o exerccio

    da palavra, j que o homem o nico animal que pode disfrutar dela.

    [Aristteles jerarquizaba las necesidades humanas, segn su importancia y

    duracin, dando origen a la distincin entre poltica y economa. La primera

    haca referencia a las necesidades ms elevadas, las que se relacionan con el

    buen vivir y que afectan a la necesidad que el hombre tiene de

    reconocimiento, de inmortalidad, de permanencia en el recuerdo. Tales

    necesidades suelen alcanzarse con el ejercicio de la palabra, ya que el hombre es

    el nico animal que puede disfrutar de ella.]

    A economia, cuja raiz etimolgica Aristteles enfatiza, faz referncia ao

    nomos do oiks, do lar, e tem por objeto prioritrio as relaes entre pessoa e

    coisa em prol das relaes entre os homens. Tambm aqui o que conta a

    satisfao de necessidades humanas bsicas, de carter estritamente biolgico e

    efmero (de todos os dias) como o alimento, ou algo mais cultural e estvel,

    como o vestido e a moradia. A atividade bsica que caracteriza a economia a

    utilizao ou o uso (criar), e o que Aristteles pondera nesses efeitos

    essencialmente a administrao, a governao; por isso que o econmico aparece

    aqui to claramente unido ao ecolgico, ao reto uso das coisas para a satisfao

    das necessidades. De igual modo, a economia assim entendida aparece como

    pressuposto para a poltica. Sem um mnimo de bens, impossvel a prtica da

    virtude. Sem recursos no mbito da alimentao, das vestimentas, da habitao,

    no cabe pensar em reconhecimento, em ficar na memria, seno por vias no

    adequadas.

  • [La economa, cuya raz etimolgica Aristteles subraya, hace referencia al

    nmos del oiks, del hogar, y tiene por objeto prioritario no tanto las relaciones

    entre los hombres, cuanto las relaciones entre persona y cosa. Tambin aqu lo

    que cuenta es la satisfaccin de las necesidades humanas bsicas, en este caso,

    de ndole ms estrictamente biolgica y efmera (de todos los das), como el

    alimento, o algo ms cultural y estable, como el vestido y la vivienda. La

    actividad bsica que caracteriza la economa es la utilizacin o el uso (crea), y lo

    que Aristteles pondera en estos efectos es esencialmente el cuidado, la buena

    administracin; de ah que lo econmico aparezca aqu tan claramente unido a lo

    ecolgico, al recto uso de las cosas para la satisfaccin de las necesidades. De

    igual modo, la economa as entedidaaprece como presupuesto para la poltica.

    Sin un mnimo de bienes es imposible la prctica de la virtud. Sin recursos en el

    mbito de la alimentacin, el vestido y la vivienda, no cabe pensar en el

    reconocimiento, en la aspiracin al recuerdo, sino por vas no adecuadas.]

    Totalmente distinta da poltica e da economia a atividade crematstica(que

    advm das idias de khrma e atos - busca incessante da produo e do

    aambarcamento das riquezas por prazer), que tem por objeto a aquisio e

    possvel acumulao de bens atravs do comrcio. Diferentemente do que

    ocorria no caso anterior, o conceito fundamental no o valor de uso, o que a

    coisa vale em si para satisfazer as necessidades do homem, mas o valor de troca,

    o poder de compra que uma coisa possui para se adquirir outras. Aristteles

    distingue a crematstica de varejo, que pode ser justificada para se buscar os

    bens necessrios sobrevivncia e a crematstica de atacado, que aparece

    quando a pretenso de incremento de bens e dinheiro maior do que a

    necessria para a satisfao das necessidades bsicas.

    [Totalmente distinta de la poltica y la economa es la actividad crematstica,

    que tien por objeto de la adquisicin y posible acumulacin de bienes a travs

    del comercio. A diferencia de lo que ocurra en el caso anterior, el concepto

    fundamental no es el valor de uso, lo que la cosa vale en s para satisfacer

    necesidades del hombre, sino el valor de cambio, el poder de comprar que una

    cosa posee para adquirir otras. Aristteltes distingue entre la crematstica al por

    menor, que puede resultar justificada para hacer frente a los bienes necesarios

    para la supervivencia, y la crematstica al por mayor, que aparece cuando la

    pretensin de incremento de bienes y dinero se ha desbocado respecto a las

    necesidades bsicas.]

    A crematstica assim concebida deixaria a porta aberta a hybris, ao conceder

    mais importncia ao valor de troca (nico valor que tem o dinheiro) sobre o

    valor de uso. Estaramos ante uma autntica perverso. Tal perverso chegaria

    ao mximo quando o dinheiro, j supervalorizado, deixasse de ser um meio de

    troca para se converter em um criador de mais dinheiro (da o nome romano de

    pecnia). Para Aristteles, isso uma dupla desnaturalizao: De todas as

    classes de comrcio, este o mais artificial.

  • [La crematstrica as concebida dejara la puerta abierta a la hybres, al

    conceder ms importancia al valor de cambio (nico que tiene el dinero) sobre el

    valor de uso. Estaramos ante una autntica perversin. Tal perversin llegara al

    mximo cuando el dinero, ya supervalorado, deje de ser un mero medio de

    cambio para convertirse en creador de ms dinero (de ah el nombre romano de

    pecunia). Tal es la funcin del prstamo usuario, que constituye para Aristteles

    una doble desnaturalizacin: De todas las clases de trfico es ste el ms

    antinatural.]

    A alterao introduzida na modernidade no pode ser mais radical. Com toda

    a razo, foi designada por Karl Polanyi como a grande transformao. A mesma

    esta relacionada com a hegemonia que o mercado adquire como instituio

    central da sociedade. O mercado surgiu como atividade marginal de pobres e

    vagabundos nas periferias das cidades, foris burgos (fauborg), desde o sculo

    XI, mas as normas que o regiam eram externas ao prprio mercado, baseadas na

    tica, especialmente na teoria do preo justo. A grande transformao s surge

    no sculo XVI com a total independncia do mundo do mercado face a dimenso

    tico-social. Este seria o resultado da utilizao de novas ferramentas jurdicas,

    como a letra de cambio, que apareceu para evitar sanes cannicas contra os

    crimes de usura.

    [El cambio que introduce en este punto la Modernidad no puede ser ms

    radical. Con toda razn ha podido ser designado precisamente por Karl

    PolanyiThe Great Transformation. Tal transformacin va unida a la hegemona

    que el mercado adquiere como institucin central de la sociedad. El mercado

    haba ido surgiendo como actividad marginal de pobres y vagabundos en las

    afueras de las ciudades, foris burgos (faubourg) desde el siglo XI, pero las

    normas que lo regan seguan siendo externas al mercado mismo, basadas en la

    tica, especialmente la teora del precio justo. La gran transformacin slo se

    produce en el siglo XVI con la total independencia del mundo de mercado

    respecto al horizonte tico-social. Ello sera el resultado de la utilizacin de

    nuevas herramientas jurdicas, como la letra de cambio, aparecida para eludir las

    penas cannicas contra los delitos de usura.]

    Esta independncia do mercado em relao tica constitui precisamente o

    fundamento da moderna ciencia da economa poltica, nome redescoberto por

    Antoine de Montchrtien no sculo XVII, pero de utilizao inadequada, j que,

    de fato, a nova ciencia no otra coisa que teora do comercio e do dinheiro,

    simples crematstica. Seu mtodo ser o aritmtico, tal qual designa o ttulo da

    importante obra de Sir William Patty (1623-1687), PoliticalArithmetic: somente

    conta o que visual e quantitativo, o que se pode medir e contar; o resto

    repudiado.

    Essequantitativismo implica importantes consequnciasnaviso do homem e

    nasrelaescom a natureza.

  • Este cuantitativismo implica importantes consecuencias en la visin del

    hombre y en las relaciones con la naturaleza.

    a) A negao de diferenas e hierarquias entre as necesidades

    humanasconduz confuso entre verdadeiranecessidade e desjo

    desmedido. Ele origina a apario do homo oeconomicus. O que conta

    o enriquecimento indefinido dos individuos, abstratamente considerados,

    j que dele ser gerado o bem-estar geral, graas famosa

    moinvisvel, da qualfalaramsemcessar os economistas burgueses

    desde Adam Smith (1723-1790), que no outracoisa que a utilizao

    ideolgica e profana da ideia de Providnciacrist, a fim de desarraigar o

    sentimento de compaixo frente miseria circundante. Ao faltar a

    hierarquia entre as necesidades humanas, e aono valorar mais que o

    visvel, a acumulao se converte no instrumento para lutar contra a

    norte, para alcanarumaimpossvel e pattica imortalidade: O homem

    moderno no pode suportar a igualdade econmica porque

    notemfnatranscendncia de si prprio, nos smbolos da imortalidade

    espiritual; somente o valor fsico visvel pode lheoferecer a libertao da

    morte 12 . Maisclaramente ainda a acumulaoaparecia como remdio

    para o reconhecimento. Como advertiu irnicamente Quevedo, poderoso

    cavaleiro don Dinheiro.

    A mesma ideia do homo oeconomicus impede toda a possibilidade de

    justia distributiva, j que o ritmo da produo que garante a adequada

    organizao da sociedade. Assim se explica o desejo de eliminar os bens

    comunais de uso pblico, a propriedade comum, j que s avalivel

    economicamente o que entra no trifico do mercado. O uso no tem

    valor, s a troca. Da o desejo de privatizar os bens, e faz-los

    disponveis, quando o privado teria originariamente um sentido restritivo

    a respeito do comunal.

    b) Pelo que se refere relao com a natureza, h de se dizer que a

    opinio geral dos economistas modernos tem sido a despreocupao ecolgica, devido crena no carter ilimitado dos recursos naturais,

    enquanto submetidos ao trabalho humano. Desde esta perspectiva, a noo clssica do cuidado cede ante a explorao pura e simples. Ainda em Petty e nos fisiocratas se reconhece a importncia da terra ao afirmar-

    se que o trabalho o pai do valor, e que a me a terra. Entretanto, a partir de Smith e Ricardo, a fonte da riqueza passa a situar-se

    exclusivamente no trabalho humano, o que conduz desvalorizao do cuidado, como a boa administrao e conservao dos recursos. Como assinala com preciso Otto Brunner, a economia moderna no tem nada

    que ver com o cuidado da clssica.

    12Ernest BECKER, La lucha contra el mal, FCE, Mxico, 1975, p. 145.

  • Esta crena no carter ilimitado dos recursos naturais justificava a ideia de crescimento indefinido, crescimento que pode ser considerado a mesma chave da modernizao, como observou Peter Berguer. Se partia

    da tese da no degradao da energia, tese defendida por von Mayer, porm desmentida categoricamente ao fim do sculo XIX por Carnot e Clausius, com sua formulao da lei da entropia. Existia a hiptese do

    limite do crescimento econmico, o estado estacionrio, j desde Smith, porm como algo demasiado distante passa a ser inquietante.

    A carncia de conscincia do qualitativo, pela ateno nica ao quantitativo, definitivamente impedia se descobrir a diferena entre recursos renovveis e no-renovveis, dado que s importava seu valor

    monetrio. Se a renda per capita, expoente do crescimento no plano individual, no levava em conta a realidade efetiva da distribuio dos bens, o Produto Nacional Bruto, por sua vez, estava calculado sem

    atender ao custo ecolgico, em muitos casos, irreversvel, que o crescimento daquele havia comportado.

    A desconsiderao da ideia moderna de crescimento pela pessoa e pela natureza fez com que se tenha chegado recentemente a contrap- lo ao desenvolvimento, falando-se com razo de crescimento sem desenvolvimento (Celso Furtado).

    Como foi dito, esta desconsiderao pela ecologia tem sido notada comumente por economistas burgueses e marxistas. Assim, de

    fato, para Marx a natureza no seria outra coisa alm da matria-prima. Igualmente aos individualistas, tudo fica confinado ao incremento da produo, neste caso planificada e no mercantil. Por isso, ainda que no

    incorra na bruta confuso burguesa de valor com o valor de troca (sua obra O Capital uma alegao contra ele), no por isso

    mesmoeconomicista, j que no conhece o valor do oiks, de cuidado, e ainda menos o valor da poltica. Muito mais lcido que os economistas modernos no seu conjunto

    se mostrava o chefe ndio Twamish-SuquamishSeatle em sua carta de 1854 ao presidente Franklin Pierce ao advertir como o crescimento

    econmico, tal como era entendido pelo homem branco, no era outra coisa que a desertificao em aumento. No parece que exagerara.

    c) A ideologia do crescimento exige, por sua vez, um modo de organizao social, que segue tomando a exatido como modelo. O lema

    do organizador moderno que a sociedade funcione com a preciso de um relgio. Da que, como escreveu Schumacher, "o ideal da Modernizao industrial seria eliminar o vivo, incluindo o humano, e

    transferir o processo produtivo para as mquinas, j que estas podem trabalhar com mais preciso e se pode program-las inteiramente, o que

    no se pode fazer com o homem." Porm, enquanto se tiver que seguir contando com o trabalho humano, este deve estar o mais regulamentado possvel. Da a agudez de Chesterton de que "o planejador moderno s se

    ocupa do trabalhador como dos relgios: quando param". Bem entendido que a preocupaose limita ao desemprego voluntrio ou a greve, e no

    ao desemprego forado ou desocupao, j que este visto cada vez mais

  • como uma exigncia do mesmo sistema para evitar

    maioresdisfuncionalidades. A exatido, condio do crescimento, gera, junto concentrao

    do capital, a dilacerao do homem. Ele pode ser observado especialmente em dois mbitos: no de ruptura do equilbrio entre cincia e arte, entre trabalho e cio, assim como entre produo e consumo. A

    respeito do primeiro ponto resulta exemplar, junto obra de Adam Smith, a leitura da obra de Claude Henri de Sait-Simon (1760-1825),

    prottipo de organizador tecnocrtico. Em seus diferentes escritos, e especialmente em Sistema industrial, Saint-Simon contrape o trabalho til de cientistas, engenheiros, banqueiros e industririos, que

    incrementam a riqueza, servindo diretamente para a satisfao dos interesses econmicos, e o trabalho intil de zanges como filsofos,

    telogos ou juristas, que est somente orientado por sentimentos e que se limita a reproduzir a riqueza, sem increment- la. Assim, enquanto que os primeiros servem a algo claro e preciso, os outros se perdem em

    vacuidades. Saint-Simon prope conceder o poder aos engenheiros e banqueiros, para que lutem pela erradicao de toda atividade intil,

    impondo a obrigatoriedade do trabalho produtivo. Seu mandado ser benfico porque seus interesses coincidem com os interesses gerais. O que se trata que com seu estmulo faam da sociedade uma autntica

    megamquina dedicada produo. Ele supor o incremento da diviso do trabalho, prescrita desde Snith e o incremento do calendrio dos

    trabalhadores, de um modo realmente sensvel. Como recorda Mumford, at o sculo XVI, mais da metade dos dias do ano eram de festa.

    A outra dilacerao se produzir entre o modelo do produtor e o modelo

    do consumidor. Ele j fora intudo por De Jouvenel e desenvolvido por

    Alvin Tffler. A mesma pessoa que como produtor era instruda pela

    famlia,pela escola e pelo chefe a renunciar gratificao, a ser

    disciplinada, controlada, moderada, obediente, a ser membro de uma

    equipe, era igualmente ensinada, como consumidor, a buscar a

    gratificao imediata, a prescindir da disciplina, a perseguir seu prazer

    individual, em resumo, a ser uma classe totalmente diferente de pessoa".

    3. A IDEOLOGIA DO PROGRESSO LINEAR: GEOMETRIA E

    ETNOCENTRISMO

    Ao referir-se ideia de progresso para a Modernizao, h de se advertir que o especfico desta com relao quela em seu carter pretendidamente linear, irreversvel e necessrio. O pensamento cristo havia defendida ideia de

    progresso. Assim, Toms de Aquino ao advertir que " natural para a razo avanar gradualmentedo imperfeito para o perfeito". Porm havia concebido

    sempre o progresso como reversvel, dependendo do exerccio da liberdade humana. (Neste mesmo sentido falar depois Vico sobre a possibilidade dos corsi e recorsi na histria.)

    A ideologia do progresso cientfico assim entendido como linear e

    irreversvel a varivel poltico-cultural da ideologia de crescimento indefinido,

  • da qual basicamente depende. certo que nesta aparece em primeiro plano a

    relao homem-natureza, enquanto que na ideia de progresso, a relao com o tempo e o outro o mais importante. precisamente a consequncia desta

    dependncia com respeito noo de crescimento econmico peloque se justifica incluir seu estudo nesta seo dedicada Modernizao econmica.

    A chave da Modernidade a certeza de que o futuro ser melhor que o passado e que o presente, a certeza de que o futuro mais ou menos longnquo

    coincide com a plenitude. Como escreveu recentemente I. Sotelo: "O futuro a categoria fundamental que introduz a Modernidade: tudo o que est por vir se considera melhor do que o j acontecido, suporto que se deduz da ideia de

    progresso. Com esta certeza, o fututo, que tudo, pouco importa; seja qual for, sempre ser melhor que o presente. O progressista vive aberto ao futuro, sem

    preocupar-se realmente com ele." Com a ideia de progresso necessrio no se trivializa somente a dimenso

    do futuro, mas tambm a realidade da violncia, ao mesmo tempo em que se homogeiniza a sociedade. A trivialidade - ou, o que ainda pior, a justificao -

    da violncia se desprende do carter necessriodo progresso histrico. Se tudo que ocorre na histria tem uma justificao, tambm a violncia a tem. Vejamos mais cuidadosamente.

    Esta viso da Histria como progresso necessrio, reconhecendo sua

    continuidade com a tradio que remonta a Joaqun de Fiore, atravessa ao longo da Idade Moderna duas diferentes fases:

    a) A da Ilustrao e do Idealismo alemo, em que se toma como base do progresso humano a realidade histrica da Revoluo Francesa e a generalizao

    entusiasta da conscincia do citoyen, que se concretiza na exigncia da liberdade de opinio.

    b) A do positivismo de Saint-Simon e Comte, assim como da Era Vitoriana, singularmente Herbert Spencer (1820-1903), em que o que mitificado a

    Revoluo Industrial e, definitivamente, a bourgeois. Dentro desde momento seria de se incluir tambm autores como S. Maine o Tnnies.

    Em ambos os casos, a inevitabilidade do progresso histrico conduz ao desvanecimento da distino entre o bem e o mal como qualidades da ao

    humana. O que conta o resultado do processo. O mal, enquanto necessrio historicamente, se converte em bem. o papel da "astcia da razo", secularizao da ideia de Providncia, na que se desvirtua totalmente seu

    sentido. Ao negar-se o mistrio do mal, e crer-se em uma situao privilegiada de conhecimento da realidade (a histria como espetculo ntegro, como

    analisado por Griewank e Arendt), a violncia e a guerra no podem ser julgadas, como adverte Bobbio, uma vez que so sim mal justificadas.

    Junto justificao da violncia, a filosofia progressista da histria, com exceo de Kant, est embasada no etnocentrismo, ao afirmar que a

    racionalidade atua em cada momento atravs de determinados sujeitos, sem que estes estejam conscientes da misso que realizam. Estes sujeitos podem ser a

  • nao, como em Hegel, a classe em Marx e nos burgueses, a raa em Gobineau...

    Porm, em qualquer caso, o protagonismo pertence sempre ao mundo ocidental, o "nico civilizado". O que conduz inevitavelmente marginalizao e

    explorao do resto do mundo, que ter seu pice na Conferncia de Berlin, de 1885, em que se levou a cabo a diviso do "magnfico pastel africano", para usar os "jocosos" termos de Leopoldo II da Blgica.

    Apesar desta importante coincidncia, as diferenas entre os autores so notrias. A justificao da violncia em Hegel completa: s ela permite o

    acesso ao reconhecimento entre indivduos e entre Estados. Enquanto que, por outro lado, para Kant a violncia tender a desaparecer na fase da histria em que se alcance o imprio universal do direito e a discusso pblica. Igualmente

    em Spencer a justificao da violncia seria conjuntural, j que cessaria com a generalizao dos ideais burgueses.

    A mentalidade imperialista encontra pleno apoio na filosofia de Hegel (1770-1831), uma vez que a liberdade era possvel somente na Europa. A frica no possui interesse histrico, j que seus membros vivem na barbrie e de

    modo selvagem, sem fornecer nenhum ingrediente para a civilizao. Por isso que, segundo ele, os africanos saram ganhando ao converterem-se em escravos

    dos europeus, j que para eles nem a vida nem o homem possuem algum valor. J a sia, estaria demasiadamente fechada em si mesma, favorecendo o seu despotismo. A Amrica mostraria sua inferioridade tanto em seus homens como

    em seus animais. Em Hegel, a defesa do imperialismo, como chave do progresso, vem

    unida ao feito de que s um povo o portador do esprito universal em cada poca da histrica, porque o esprito dos restantes povos carece de direitos frente a ele. Este domnio de uma nao sobre as demais guarda grande relao com o

    valor militar, pois o fundamento do mundo moderno tem proporcionado ao valor militar seu aspecto mais elevado, Na medida em que sua expresso aparece j

    enquanto membro de uma totalidade contra outra totalidade, e , portanto, o valor militar o fundamento mesmo do reconhecimento jurdico da hegemonia: As guerras constituem o instante, que atravs do reconhecimento proporciona

    um sentido para a histria. A viso civilizadora da guerra servia a Hegel para justificar a poltica

    anexionista de Frederico II da Prssia com respeito aSilesia ou Polnia: Quanto a totalidade, a saber, o Estado, foi convertido em potncia (ou superpotncia) e se projeta para o exterior, a guerra interna se transforma em guerra de conquista.

    Hoje em dia, a defesa de tal carter civilizador da guerra tem feito arruinar a mesma ideia de progresso, tal como reconhece Bobbio, com a apario das

    armas nucleares, que podem levar a destruio total do planeta. A ideia hegeliana de progresso, condizente com a sacralizao do

    presente, tem se demonstrado falsa. Igualmente se tem arrumado outras formas

    de conceber o progresso. Assim, em sentido aparentemente inverso ao hegeliano, imaginava Herbert Spencer ao assinalar como lei necessria do mesmo o passo

    do militar ao burgus, como consequncia do desenvolvimento industrial. A base do progresso estaria aqui intimamente ligada a Revoluo Industrial e equivaleria ao passo do homogneo ao heterogneo.

    O progressismo de Spencer era to falso como o lema do premier vitorianoDisraeli (1804-87): paz e abundncia, com o povo morrendo de fome e

    o mundo em armas. Em efeito, a pretendida heterogeneidade burguesa no foi mais que uma eliminao do sagrado, facilidade para o negcio dos ricos, e

  • enterro dos pobres, assim como a exaltao do imperialismo ingls na frica:

    rightorwrong, my country. A poca progressista a poca do imperialismo. De outro lado, o pretendido pacifismo burgus no passa de uma

    transferncia do militarismo da metrpole s colnias, tal como havia observado H. Arendt: o Industrialismo, longe de produzir a reduo do Estado e da guerra, conduzir, poucos anos aps a morte de Spencer e do final da Era Vitoriana,

    maior guerra jamais vivida na histria. Em ltima anlise, em Spencer, da mesma forma que em Darwin, o

    progresso humano confiado sobrevivncia dos mais aptos. E mais, Darwin no far nenhum reparo ao referir-se s raas inferiores para descrever aquelas raas em que falta o esprito de competncia e dominam as qualidades femininas

    de intuio e cooperao. Pelo que chegar a dizer que seria prefervel descender de um pequeno e heroico macaco que das raas inferiores. Este modo

    concreto de levantar as relaes com os outros implica um retrocesso a respeito da abordagem religiosa dos sculos precedentes. Como tem demonstrado Toynbee em Estudio de la historia, no h maior grau de desumanidade do que

    considerar os outros como raas inferiores, j que assim negam irreversivelmente a condio humana das outras raas. Isto no ocorria nas

    consideraes anteriores de outros povos, como os pagos, os brbaros ou mesmo nativos, j que cabia certa redeno ou converso atravs da f, a cultura ou o desenvolvimento econmico. [ou j que a cultura e o desenvolvimento

    econmico dependiam de certa redeno ou converso atravs da f]. Estes tipos de pensamentos o que condicionar a justificativa para o

    trfico de negros, feito intimamente ligado a modernizao. Comea de fato em 1517, a petio do frei Bartolomeu de las Casas, para evitar os abusos impostos aos ndios da Espanhola (Haiti), e desaparece em 1880, cinco anos antes da

    vergonhosa Conferncia de Berlim. Portanto, pode dizer-se sem exagero algum que a frica foi o continente majoritariamente sacrificado pela Modernidade

    europeia. Por este motivo compreende-se a sua atual diviso territorial, que est baseada na mais estrita razo geomtrica, recorrendo rgua e ao compasso e esquecendo o respeito mais elementar referente a geografia e a cultura dos

    diferentes pases. A poltica colonial, dir Jules Ferry, em 1882, filha da prtica industrial. Ele pretender justificar-se recorrendo a argumentos, como

    os esboados por Hegel, de constituir vantagens colnia, uma vez que a mesma era muito atrasada. Assim, escreve Paul Leroy Beaulieu em seu livro La colonizacin de lospueblos modernos: O dever dos povos modernos no

    abandonar a metade do mundo a homens ignorantes e impotentes. Tal dever se consolida na exigncia de ensinar a diviso social do trabalho, e o emprego de

    capitais, abrindo passo no s s mercadorias da metrpole, mas tambm a seus capitais e a suas poupanas, a seus engenheiros e a seus capatazes. A forma mais valiosa do progressismo sem dvida a que representa

    Kant (1724-1804), ao condenar explicitamente o colonialismo e os exrcitos permanentes. Infelizmente, seu pacifismo, excessivamente confiado ao poder da

    instituio, quebrou da mesma forma. Seu entusiasmo pelo triunfo do direito se refletir historicamente na Sociedade das Naes. O fracasso desta, ao no poder impedir o excesso de violncia desencadeado por Hitler carrega consigo o

    fracasso da ideia de progresso irreversvel, que Kant acreditou intuir da ideia de cidado (citoyen). A paz possvel com o esforo individual e coletivo pela

    mesma, acompanhado da conscincia da falsidade da dialtica. Disso falaremos

  • no captulo 9. necessrio agora que analisemos a realidade da marginalizao

    como exemplo eloquente da quimera da modernizao.

    4. MARGINALIZAO CARENCIAL E MARGINALIZAO ANMICA

    Dois pontos centrais da Modernizao, como estamos vendo, so o

    individualismo e o quantitativismo. Ambas as questes impedem que se lute adequadamente contra a realidade da marginalizao, apesar das afirmaes a favor da

    igualdade na participao, que no passam do plano meramente terico. A realidade da marginalizao um caso muito complexo que pode delimitar-se pela falta de reconhecimento dos direitos bsicos de determinados grupos sociais, que

    caem, portanto, em estados de carncia de diversos tipos. Embora Goffmann no o utilize como definio, seria muito adequado considerar o marginalizado como aquele

    que, estando presente, tratado como ausente. O que caracteriza melhor a realidade da marginalizao a excluso da comunicao social e a participao poltica, consequncia do papel ou status em que se encontra. O marginalizado um ser que no

    consegue ter reconhecidos plenamente seus direitos fundamentais e, portanto, satisfeitas suas necessidades bsicas, que aqueles (os direitos) salvaguardam (protegem). Em

    algumas ocasies, se trata de falta de reconhecimento dos direitos civis ou de participao poltica: o que poderia classificar como represso ou violncia poltica. Em outros casos, sero os direitos ao alimento, roupa e moradia que no sero

    satisfeitos: seria o caso da explorao econmica, ou da misria. A distino mais fundamental a realizar entre os diferentes tipos de

    marginalizao, e que se demonstra imprescindvel para no se perder em um tema to delicado, a que pode se estabelecer entre heteromarginalizao, ou marginalizao propriamente dita, e automarginalizao. No primeiro caso, a marginalizao se produz

    sem que se observe nenhum tipo de ao por parte do marginalizado que justifique de alguma maneira a marginalizao por parte dos outros. Trataria-se, portanto, de

    marginaes sem nenhum tipo de responsabilidade por parte dos marginalizados. Este seria o caso das crianas, dos ancios, dos enfermos, das minorias tnicas ou dos carentes de recursos econmicos. Todos eles constituem a marginalizao propriamente

    dita, a heteromarginalizao. Frente a eles se situaria a realidade daqueles que praticam atos antissociais, atos que poderiam ao menos explicar suas marginalizaes perante os

    outros: Neste quadro se encaixariam os delinquentes em suas diferentes formas. A dificuldade fundamental em que se encontra o modelo modernizador para lutar contra a marginalizao procede da impossibilidade de aceitar, desde suas

    primeiras suposies, a distino que acabamos de realizar. Por conseguinte, o individualismo moderno no pode distinguir entre heteromarginalizao e

    automarginalizao: devido ao imperativo do xito e a licitude da indiferena em relao para com o outro, o nico responsvel da marginalizao em todos os casos, sem exceo, seria sempre o prprio marginalizado.

    Desde nossa discrepncia com a moral hegemnica, podemos classificar os supostos de heteromarginalizao, de acordo com as variantes do individualismo,

    segundo o esquema seguinte: ATITUDEMARGINALIZANTE SUJEITO MARGINALIZADO

    a) Homo ethnocentricus Minorias tnicas

    b) Homo oeconomicus Carentes de recursos c) Homo labilis Incapazes de cuidarem de si mesmos

  • a) A primeira hiptese de heteromarginalizao seria o das minorias tnicas

    tanto no interior de cada Estado como no mbito das relaes internacionais. O responsvel fundamental de tal tipo de marginalizao o que poderamos

    denominar de homo ethnocentricus. Neste caso, a indiferena que se encontra na origem de todas as formas de marginalizao pode chegar a degenerar inclusivea hostilidade e a rejeio violenta. Em sua gnese psicolgica, poderia se ver aqui

    um trao permanente do inconsciente humano, a xenofoia, o que Freud designou como o medo ao estranho, ao desconhecido. Porm na Modernizao, esta

    caracterstica arcaica e arqueolgica racionalizada, substituindo o medo aos outrospelo desprezo para com aqueles que no seguem thebestoneway, os terceiro-mundistas, expresso que hoje em dia apresenta em muitos casos traos

    parecidos aos do racismo. No se trata, portanto, de um tipo de marginalizao com razes somente inconscientes, mas sim uma marginalizao que tem sido

    alimentada com o clculo e o desejo de domnio sobre os pior situados no Terceiro e Quarto Mundos. Como tem advertido Wallerstein, o racismo modernizador algo distinto xenofobia: Se tem afirmado que aqueles que

    esto econmica e politicamente oprimidos so culturalmente inferiores. b) A segunda hiptese de heteromarginalizao, muito ligada a anterior, seria a

    dos carentes de recursos mnimos de carter econmico, indispensveis para alcanar um nvel digno de pessoa humana. Tambm aqui a Modernizao, apesar de suas declaraes em favor da igualdade, se encontra com uma

    dificuldade de fundo para conseguir desestruturar este tipo de marginalizao: a realidade do homo oeconomicus, isto , a concepo da vida humana como algo

    que tem sentido apenas como projeto para a realizao individual do lucro crematstico. Como escreveu muito oportunamente Pguy:Hoje s se fala de igualdade. Mas vivemos na mais monstruosa desigualdade econmica que nunca

    foi vista na histria do mundo.

    Esta contradio do mundo moderno se deve a sua incapacidade de distino entre duas realidades de aparncias similares, embora com verdades extremamente dspares, como a pobreza e a misria. Esta distino tem sido

    elaborada com incomparvel vigor pelo prprio Pguy em sua obra De Jean Coste. A pobreza, casadacom a paupertas de Horacio, seria o estado em que ele

    se disporiado necessrio para viver, sem luxos, mas com decncia. uma espcie de purgatrio, que leva ao homem compreender seus limites e se abrir ao amor e ateno pelos demais. A misria, casada

    A misria, relacionada com a egestas de Horcio, , no entanto, um

    verdadeiro inferno, no qual se vive verdadeiro desespero pelo amanh, e do qual

    urgente livrar o homem.

    A modernizao no pode compreender tal distino, devido ao seu

    carter qualitativo, baseado no critrio da suficincia na satisfao das

    necessidades. S pode distinguir entre o ter muito, a riqueza, como modelo a

    seguir, e o ter pouco, a pobreza, como modelo a evitar. Esta desdiferenciao

    entre pobreza e misria impede lutar contra as razes da principal marginalizao

    econmica atual: o desemprego, j que se ope a ver tal problema como

    resultado da falta de solidariedade e da injusta distribuio tanto das rendas

    como do tempo de trabalho. Deste modo as novas tecnologias servem para

    aumentar a riqueza dos titulares das empresas competitivas, ao mesmo tempo

  • que aumentam a misria daqueles que no podem contribuir mais que com o

    trabalho do corpo, que desprezado como desnecessrio.

    c-) O terceiro suposto de heteromarginalizao afeta as pessoas que no

    podem cuidar de si mesmas, como as crianas, os idosos e os doentes. Tambm

    aqui os princpios da modernizao se encontram com dificuldades conceituais e

    prticas para lutar contra a mesma.

    A dificuldade conceitual procederia do prprio economicismo, to logo

    tende a reduzir a dimenso deficiente ao mbito dos recursos econmicos. Para

    compreender tal tipo de marginalizao indispensvel superar estes esquemas

    economicistas e recuperar o conceito integral de indigncia, que se encontra na

    obra de Juan Luis Vives: Todo aquele que necessita da ajuda do outro

    merecedor de misericrdia, que em grego se diz esmolas, a qual no consiste s

    em distribuir dinheiro, como o povo pensa, mas em qualquer atitude que tenha

    por fim socorrer a misria humana.

    A dificuldade prtica de lutar contra a mesma tem sua origem na

    desvalorizao, que de acordo com a prioridade moderna de consideraes

    financeiras, se tem produzido da dimenso do cuidado. Isso est intimamente

    ligado com o que tem sido chamado de sexismo: a desconsiderao das tarefas

    historicamente atribudas mulher. Tais tarefas esto diretamente relacionadas

    com a configurao e proteo do humano em suas dimenses de maior

    indigncia, e portanto seriam de importncia radical, porm por sua falta de

    valor de troca haveriam sido consideradas inferiores. No capitalismo histrico

    escreve Wallerstein- tem havido uma constante desvalorizao do trabalho das

    mulheres e uma paralela nfase no trabalho do homem adulto, devido ao fato de

    estar retribudo com um salrio. O trabalho da mulher em casa deixa de ser

    considerado corretamente tal, razo pela qual tem sido qualificado ironicamente

    como trabalho fantasma.

    Na desvalorizao do cuidado e, por consequncia, na proliferao deste

    tipo de marginalizao influencia principalmente a concepo do homem como

    homo habilis: a tendncia a no ver na vida outra coisa alm de uma ocasio de

    prazer imediato, fugindo, portanto, como meio de autonegao, entrega o u

    sacrifcio por outro. Este hedonismo, junto com a mentalidade crematstica (arte

    de produzir riqueza), favoreceria, no melhor dos casos, a burocratizao de tal

    cuidado, fechando-os em guetos mais ou menos confortveis, que deixam fora

    da visibilidade social a radical indigncia da condio humana em suas situaes

    limite.

    A heteromarginalizao descrita agora basicamente carncia de

    recursos, de cuidado e de reconhecimento de pessoas que no tm realizado

    nenhum tipo de ao anti social. Diferente o pressuposto do que poderamos

    chamar auto marginalizao. Nela, o elemento fundamental passa a ser a

  • realidade da anarquia, a falta do projeto ou do sentido da existncia, que no

    pior dos casos pode chegar at a violncia.

    O conceito de anarquia, que se reduz obra do grande socilogo francs

    Emile Durkheim (1858-1917), est conectado desde suas origens com a

    desmoralizao produzida como efeito secundrio pela industrializao. J em

    sua obra de 1893, Da diviso social do trabalho, denuncia a ausncia de critrios

    morais para fazer frente nova situao criada, na qua l o econmico parece

    ocupar o centro da sociedade.

    Porm sem dvida tem sido a investigao do socilogo norte-americano

    Robert King Merton a que melhor tem esclarecido e desenvolvido as virtudes

    implcitas na noo de anarquia. Esta aparece como resultado do desequilbrio

    entre os objetivos prescritos socialmente e os meios institucionais habilitados

    para a realizao daqueles. Segundo Merton, a sociedade moderna, com sua

    tica do xito crematstico, gera anarquia de forma abundante, j que os meios

    institucionais reconhecidos no so adequados nem suficientes para que todos os

    membros da sociedade alcancem os direitos prescritos socialmente.

    R. K. Merton apresente em sua obra uma tipologia quntupla das relaes

    entre objetivos ou fins culturalmente relevantes e prticas ou meios

    institucionalizados que manifesta a extenso deste fenmeno da marginalizao

    anrquica. Os dois primeiros tipos de relao tm menor interesse para ns, j

    que implicam sempre a aceitao das prticas ou meios institucionalizados, com

    maior confiana no alcance dos objetivos sociais (suposto da integrao ou

    conformidade) ou com um maior ceticismo a tal efeito (suposto do ritualismo).

    Os dois supostos que aqui nos interessam especialmente so os do

    retraimento ou inibio, o que agora chamaramos passadismo, em que se

    produz uma rejeio tanto dos objetivos sociais como dos meios institucionais, o

    que conduz a um estado de apatia ou passividade; assim como o de aceitao dos

    projetos sociais, com rejeio dos meios institucionais, o que leva diretamente

    para a delinqncia, como modo mais eficaz e rpido de obter o enriquecimento.

    Um e outro suposto constituram os casos tpicos do que temos chamado auto

    marginalizao e se encontrariam, por outro lado, muito diretamente

    conectados entre si, dado que a inibio ou retraimento no ignore alguns

    ingredientes, como as drogas, que s podem conseguir-se em tais estgios

    recorrendo delinquncia.

    O quinto membro da tipologia de Merton, o rebelde, seria aquele que no

    se limita a repudiar os objetivos sociais e as prticas institucionais existentes,

    seno que prope objetivos e meios alternativos. Este tipo de comportamento

    no mereceria para ns o nome de marginal, nem hetero nem auto marginal,

    seno que representaria o prottipo do que temos chamado ps modernidade

    como resistncia da que falaremos na 4 parte deste livro.

  • Porm continuando com os supostos corretamente tais de auto

    marginalizao, mesmo j fora das contribuies de Merton, parece certo que

    sua proliferao em nosso tempo denota uma autntica crise de civilizao, tal

    como advertiu entre outros Toynbee, ao analisar a figura do deracinou

    proletariado interior, como sintoma de descomposio e decandncia de uma

    civilizao.

    As caractersticas da personalidade auto marginalizada, tais como o

    desenraizamento, a ausncia de sentido de projeto e de comunidade e a

    momentaneidade, com a excluso de todo tipo de relao duradoura e estvel

    com os demais, se dariam conjuntamente nas reas geogrficas e humanos que

    tem sido chamadassub culturas da misria, como no que poderia chamar-se

    sub cultura de opulncia. Naturalmente, este nvel de decaimento ou

    decadncia moral apresenta em ambos os casos um grau de responsabilidade

    bem distintos. No primeiro caso, a auto marginalizao a consequncia final de

    uma grande seria de heteromarginalizaes e carncias de todo tipo, e portanto

    em sua gestao a sociedade em seu conjunto a principal e, em ocasies

    extremas, talvez nica culpvel. No segundo caso, quando o desenraizemento e a

    momentaneidade surgem sem carncias e heteromarginalizaes, o responsvel

    principal naturalmente o indivduo e ao extremo pode ser considerado o nico

    responsvel.

    Em qualquer caso, o que parece claro que a marginalizao, tanto em

    seu aspecto deficiente como anrquico, no pode ser considerada como algo

    especfico do modo capitalista de produo, seno que acompanha

    modernizao, tanto no Oeste como no Leste. Sobre a marginalizao neste

    segundo mundo podem servir de testemunhas, entre tantos outros, os j clssicos

    Voslensky, ou Volkoff. Por outro lado, a prpria obra de Marx apresente

    tambm srias limitaes para combater o problema da marginalizao, como

    tende hoje a reconhecer-se desde posies no partidrias de defender o

    capitalismo, como O. Lewis:Nos escritos de Marx e Engels sobre o

    Lumpenproletariat se desumaniza esta gente, pois os veem somente atravs do

    ponto de vista de suas potencialidades polticas.

    4. OS DIREITOS HUMANOS COMO DIREITOS SUBJETIVOS

    A conquista fundamental dos tempos modernos se encontra sem dvida

    no mbito do Direito e consiste no reconhecimento da existncia de uma esfera

    reservado ao indivduo na que no cabe interferncia alguma por parte da

    autoridade ou das outras pessoas, sem consentimento do indivduo. justamente

    o que se conhece, desde a famosa conferncia de 1819 do doutrinrio francs

    Benjamim Constant (1767-1830), como liberdade dos modernos, em oposio

    liberdade dos antigos, cuja caracterstica fundamental seria a participao

    poltica.

  • O ncleo de tal liberdade dos modernos havia sido previamente

    anunciado por Kant, em seu panfleto em torno do tema: isto pode ser

    verdadeiro em teoria, porm no na prtica, de 1793, nestas condies:

    ningum pode obrigar-me a ser feliz a seu modo (tal como ele se imagina o

    bem-estar de outros homens), seno que lcito a cada um buscar sua felicidade

    pelo caminho que melhor lhe parea, sempre e quando no cause prejuzo

    liberdade dos demais para buscar um fim semelhante, liberdade pode coexistir

    com a liberdade de todos segundo uma possvel lei universal. Tal princpio

    implicava a eliminao do governo paternalista (imperiumpaternale), no que os

    assuntos como crianas menores de idade, incapazes de distinguir o que lhes

    verdadeiramente benfico ou prejudicial se veem obrigados a comportar-se

    aguardando do julgamento do chefe de Estado de como devem ser felizes e

    esperando simplesmente de sua bondade que este tambm queira que o sejam.

    Deste ncleo, derivariam com toda sua justificao direitos tais como o

    da liberdade de pensamento, inviolabilidade de domiclio ou correspondncia,

    isto , o que tem sido chamado de direito privacidade, discrio, o direito a

    no ser visto e a usar com carter exclusivo determinados bens; assim como a

    liberdade de expresso de pensamento, a liberdade de imprensa cujo carter

    inalienvel destaca o prprio Kant, em clara oposio a Hobbes -, assim como a

    liberdade de movimento dentro e fora do prprio Estado.

    Este mbito de liberdade tem sido designado por I. Berlin, em um escrito

    muito difundido, como liberdade negativa, enquanto sua caracterstica

    fundamental resultaria na excluso de toda interferncia alheia. Parece que seria

    melhor qualifica- la como liberdade reservada ou exclusiva, porque pode

    implicar uma importante atividade por parte do sujeito da mesma.

    A limitao ideolgica da liberdade dos modernos est ligada

    elevao da propriedade privada, como capacidade de disposio exclusiva e

    ilimitada dos objetos de fundamento e modelo dos direitos humanos. Isso gera

    diferentes consequncias, algumas das quais seguem subsistindo hoje, como

    veremos.

    a) No que se refere tipologia dos direitos: igualao de projetos e recursos,

    o que implica a dificuldade de reconhecimento da justia distributiva.

    b) No que se refere ao sujeito de direito, igualao entre o possuidor de bens

    e o menor de idade.

    c) No que se refere aos escritos dos direitos, seu carter fundamentalmente

    alienvel (apesar das proclamaes retricas de forma contrria) e

    antiecolgico.

    A viso dos direitos humanos como direitos de propriedade aparece pela

    primeira vez de forma clara neste pargrafo de Tratado do Governo Civil de

    Locke (1632-1704): Todo homem tem a propriedade como sua prpria pessoa.

  • Nada fora dele tem direito algum sobre ela. O trabalho de seu corpo e a obra de

    suas mos so propriamente seus.

    Locke no apenas v a totalidade dos direitos como propriedade, mas

    eleva a obra das mos sobre o trabalho do corpo. Aquela superior a este(o

    homo fabersuperior ao animal laborans) porque no primeiro caso se cria algo

    novo e diferente devido s necessidades humanas cotidianas, que pode

    conservar-se e converter-se em dinheiro, sendo assim a base da acumulao. O

    trabalho do corpo se limita a satisfazer necessidades humanas bsicas sem deixar

    algo, de forma que o titular, o animal laborans, limita-se a sobreviver, mas no

    capaz de criar, dado que se v obrigado a viver no instante. Pelo contrrio, o

    titular da obra, o homo faber, ao ser capaz de acumular, seria capaz tambm de

    projetar e pensar, e por isso deve serum cidado com plenitude de direitos civis e

    polticos.

    A capacidade de possuir e trocar bens aparece, para Smith como a

    caracterstica distintiva do homem frente ao animal. O que leva a ver a

    propriedade do trabalho e a habilidade das mos como o mais sagrado e

    inviolvel dos direitos. A liberdade de troca e livre disposio resultaria na

    mais sublime manifestao da razo humana, aspecto queimplicariauma

    rupturada modernidadeem comparao aoutras pocas.

    A) A primeira conseqnciada elevaoda propriedadepara modelo de direitos

    humanos era, como dizamos, a igualao entre os diferentes tipos de

    direitos. Isso aparececlaramente naenumerao de liberdades dos

    modernos, realizada por Benjamin Constant em sua famosa conferncia:

    1. O direito de no estar sujeitoapenas s leis, no poder der detido,

    nem preso, nem morto, nem maltratado de maneira alguma por

    efeito da vontade arbitrria de um ou muitos indivduos.

    2. O direito de dizer sua opinio.

    3. O direito de escolher sua indstria, dirigi- la, dispor de sua

    propriedade e ainda abusar dela, se quiser.

    4. O direito de ir e vir a qualquer lugar sem necessidade de permisso,

    nem de prestar contas a ningum quanto a seus motivos.

    5. O direito de reunir-se com outros indivduos, seja para falar sobre

    seus interesses, seja para preencher seus dias ou horas da maneira

    como preferir.

    6. O direito de participar da administrao do governo e da nomeao

    de alguns ou de todos os funcionrios, por representao, por

    pedidos ou por consultas que a autoridade esteja mais ou menos

    obrigada a levar em considerao.

    De fato, os pargrafos 1, 2, 4, 5 e 6 referem-se dimenso dos projetos e

    mostra de forma inquestionvel o reconhecimento da liberdade sem

  • interferncia. O pargrafo 3 refere-se a recursos, e deveria ter outro

    significado bem diferente. Igualar o direito de liberdade de opinio ou de

    inviolabilidade de domiclio com o abuso da propriedade totalmente

    inadequado. Tal confuso estaria na origem do neoliberalismo atual, que

    tem como inteno elevar a propriedade ao mbito da privacy e de

    representar a fiscalizao do emprego de recursos como intromisso

    paternalista na intimidade...do bolso. Paradigma dessa postura a obra de

    Nozick, que considera os impostos como confisco e ataque aos direitos

    naturais.

    B) A segunda consequncia da elevao da propriedade a direito modelo

    consiste na igualao dos no proprietrios aos menores de idade.

    Tal igualao se encontra no pensamento do idelogo da primeira fase da

    Revoluo Francesa, Sieys, ao estabe lecer a distino entre cidados

    ativos, que dispem de rendas e que merecem votar, e cidados

    passivos, que no dispem de rendas e no merecem votar; mas

    especialmenteKantque,nas pegadas deSieys, se torna objeto de uma

    discusso mais longa.

    Em diferentes passagens de sua obra, Kant desenvolve como princpios da

    organizao jurdica e poltica os dois primeiros elementos do trptico

    revolucionrio: a liberdade e a igualdade, mas no menciona para nada

    afraternidade, j que, segundo seu comentarista e continuador Ebbinghaus,

    levaria socializao dos bens produtivos e a substitui pela autonomia da

    vontade, a que se refere nestes termos:

    a nica qualidade exigida para o direito ao voto, excetuando a qualidade

    natural (no ser criana ou mulher) esta: que se seja seu prprio senhor

    (sui iuris) e que tenha alguma propriedade que o mantenha, dizer, que

    nas coisas em que se precisa ganhar a vida pelos outros, faa pela venda do

    que seu (iusdisponendi de re sua). De acordo com tal princpio, e em

    fidelidade com o que dizia Locke, o homo faber conserva sua

    personalidade civil porque vende algo que est fora dele, mas no assim o

    faz o animal laborans, o arrendatrio de servios, porque vende seu

    prprio tempo. Ele evidencia os limites do inalienvel e a concepo

    moderna de direitos humanos, do que depois nos ocuparemos. Assim,

    deixou sem personalidade jurdica plena as mulheres, as crianas e os

    funcionrios.

    As mulheres e os funcionrios tero posteriormente personalidade civil e

    poltica, com o reconhecimento do sufrgio universal, porm, sem superar

    sua marginalizao e/ou explorao. Pior ser, ainda, a situao das

    crianas, dos idosos e dos enfermos. O princpio kantiano da autonomia

    da vontade como fundamento da dignidade humana segue deixando sem

  • proteo jurdica os no autnomos, os incapazes de escolha, com a

    admissibilidade crescente do aborto, eutansia e infanticdio.

    C) A elevao da propriedade a modelo dos direitos humanos se ope

    frontalmente ao carter inalienvel dos mesmos, proclamado tanto pelos

    autores modernos como pelas diferentes declaraes de direitos, desde a

    Declarao de Independncia de 1776 ou a Declaration de droits de

    Ihommeetlecitoyen, considerada por Hauriou como o Evangelho da

    Modernidade

    Tentou-se resolver tal contradio com a seguinte trplice:

    1. A distino entre a vida e o tempo da vida

    2. A distino entre a condio do sui iuris e a do sui dominus.

    3. A distino entre as responsabilidades consigo mesmo e com

    as coisas, variante do acima.

    Na primeira das trs distines insiste especialmente Locke, quem

    refora o carter inalienvel do direito vida mesmo pelo titular da

    mesma, excluindo o suicdio -e o direito s manifestaes desta mesma

    vida, como o tempo vital, que seria, em vez, alienvel sem mais

    problemas. Com isso Locke pretende deixar bem claro a legitimidade da

    condio do animal laborans, que deve vender seu tempo de trabalho

    para poder subsistir. Mas essa distino, aparentemente to fina e sutil, foi

    derrubada por um grande estudioso e crtico de Locke, Macpherson, com

    estas palavras: Locke no se deu conta de que a alienao do trabalho

    pelo salrio de mera subsistncia na realidade uma mera alienao da

    vida e da liberdade.

    No mais satisfatria a argumentao a favor da distino entre a

    condio de sui iuris e a de sui dominus, ainda que sejam mais satisfatrios

    os resultados. De fato, o que se trata agora de conseguir a declarao da

    legitimidade do suicdio, projeto sem dvida muito positivo, mas que

    dificilmente pode ser defendido desde a admisso do princpio dado

    como inquestionvel, tanto por Locke como por Kant da autonomia da

    vontade e especialmente do aforismo volenti non fit injuria.

    Por outro lado, a argumentao kantiana a favor de tal diferena

    levanta, por sua vez, dificuldades adicionais de outra ordem, procedentes

    de sua nula preocupao ecolgica. De fato, Kant distingue entre o

    domnio das coisas, respeito s quais no existe nenhum dever (gegen die

    mankeineVerbinchkeithat), domnio que constitui ao homem em sui iuris,

    e o domnio que existe sobre si mesmo, do que no pode dispor livremente

    porque se sua pessoa responsvel frente a toda a humanidade. Essa

    disponibilidade ilimitada e incondicionada dos recursos outros dos

  • aspectos impossveis de assumir hoje, do pensar moderno e, neste caso,

    concretamente kantiano.

    A elevao da propriedade a prottipo dos direitos humanos, conceito-

    chave ilustrado dos direitos, concerte-se em doutrina comum dos juristas,

    atravs da elaborao da noo de direito subjetivo por parte dos escritores

    da Escola Histrica e a Pandectstica.

    Savigny (1779-1861) e Windscheid (1817-1892) so os dois autores

    principais a esse respeito, suas formulaes vo servir de fonte de

    inspirao dos Cdigos civis da poca. Um e outro se encontram

    notavelmente influenciados pelo dominiocentrismo kantiano. Para o

    primeiro dos dois, responsvel pela sistematizao dos estudos jurdicos,

    que chega ainda aos nossos dias, a noo de direito subjetivo, entendida

    como poder de disposio e alienao, a noo central do sistema

    jurdico. Entre os direitos subjetivos destaca por sua importncia o direito

    de propriedade como senhorio ilimitado e exclusivo de uma pessoa sobre

    uma coisa. Isso tem como efeito a possibilidade de riqueza e de pobreza,

    uma e outra sem limites. Do mesmo modo que em Kant, o direito por

    antonomsia o direito privado, emque regem o exercciodo valor de

    troca, enquanto que o direito pblico tem somente um valor secundrio e

    derivado, protetor do anterior.

    Ao dar nfase na assimilao entre direito e poder de disposio, tanto

    Savigny como Windscheid no podem perceber a importncia dos direitos

    da personalidade, comeando pelo direito vida, j que proclamar um

    direito equivale para isso a proclamar basicamente seu poder de disposio

    ilimitada e isso no pode ser feito sem incluir imediatamente o direito ao

    suicdio.

    Por outro lado, ao destacar a vontade como fonte e origem dos direitos,

    a aproximao desses autores, similarmente a Kant, excluem da condio

    de sujeitos de direito aqueles que no esto em condies de exercer por si

    mesmo seus direitos.

    A identificao dos direitos humanos com os direitos de propriedade ou

    de livre disposio e alienao em terminologia tcnico-jurdica, direitos

    subjetivos - justifica, ou ao menos explica, a parte da crtica que lhes foi

    dirigida desde abordagens no individualistas.

    Tal seria a abordagem de Marx em A questo judia ou de Comte em

    O catecismo positivista. Para aquele, os direitos humanos seriam o puro

    reflexo da sociedade burguesa e se apoiariam na separao do indivduo

    em relao coletividade. Para este, seriam uma mostra de

    irresponsabilidade, j que o nico direito que cabe admitir o direito de

    cumprir com o dever.

  • Na mesma confuso entre direitos humanos e direitos subjetivos, o de

    livre disposio e alienao construiria a crtica de autores mais recentes, e

    inspirados ideologicamente no aristotelismo, como Villey ou MacIntyre,

    que veem nos direitos humanos o risco de opo de pressupostos morais

    opostos e a permisso da eutansia e do aborto.

    Por isso que, como teremos ocasio de ver no ltimo captulo deste

    livro, os autores mais lcidos trataram de remediar as limitaes do pensar

    moderno, negando que a propriedade (ou poder de disposio) seja o

    prottipo dos direitos, mas longe de negar a existncia dos direitos

    humanos, como fizeram os autores antes citados, afirmaram-nos com base

    na fraternidade e na solidariedade, que servem de complemento

    liberdade, dimenso enfatizada pelos modernos no ponto da questo dos

    direitos.

    O condicionamento individualista e economicista das chamadas

    liberdades dos modernos no pode, contudo, fazer esquecer seu valor

    irreversvel e perene no que se refere defesa da privacy e da liberdade de

    pensamento.

    H outro ponto tambm, ao qual no temos feito ainda referncia, que

    constitui igualmente uma contribuio de singular importncia para a

    histria dos direitos humanos e que se encontra dentro do mais estrito

    esprito da modernidade. Trata-se da dimenso da proteo jurisdicional

    dos direitos, isto , seu conceito de reivindicaes verdadeiras.

    No por acaso que os direitos proclamados com maior rigor desde as

    primeiras constituies sejam aqueles que protegem jurisdicionalmente a

    liberdade, a inocncia e o direito a ser ouvido.

    Esta lucidez dos modernos na proteo jurisdicional dos direitos estaria,

    em ltima anlise, relacionada com sua conscincia da limitao e

    separao de poderes, mas isso nos leva para o campo da Modernidade

    poltica.