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ZVETAN TODOROV

Goya à sombra das LuzesTraduçãoJoana Angélica d’Avila Melo

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Para Pierre

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umário

oya pensador entrada no mundoma teoria da artedoença e suas consequências

ura e recaída: a duquesa de Albaáscaras, caricaturas e bruxasinterpretação dosCaprichosrnar visível o invisívelinvasão napoleônicaestragos da guerra

omicídios, estupros, salteadores, soldadosdesastres da paz

peranças e alertas

dois regimes de pinturagunda doença, Pinturas Negras, Loucurasma nova partidaherança de Goya

derno de fotostas

bliografiaéditos das imagensdice das obras de Goya

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GOYA À SOMBRA DAS

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Fig. 1. Pobre e nua vai a f ilosofia.

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bversões não podem originar-se unicamente na imaginação de alguns indivíduos, mes são dotados de uma sensibilidade artística excepcional. Embora não sejam a c

ecânica das mutações que toda a vida social sofre na mesma época, essas subversõssonância com elas. A revolução pictórica que se manifesta através da obra de Goya

m movimento que inclui o fortalecimento do espírito iluminista, a progressiva secuíses europeus, a Revolução Francesa e a crescente popularidade dos valores deerais. Essa solidariedade não tem nada de fortuito: a pintura nunca foi simples

vertimento, elemento decorativo arbitrário. A imagem é pensamento, tanto quanto aprime por palavras; ela é, sempre, reflexão sobre o mundo e os homens. Quer saiba

m grande artista é um pensador de primordial importância.Mas de que pensamento se trata? Aqui, convém distinguir entre várias posições dentropaço comum. Numa de suas extremidades, encontram-se as reflexões formuladastratos por um teórico que analisa um aspecto da existência humana: as paixões oudivíduo ou a sociedade, a moral ou a política. Seguramente, Goya jamais praticou ne

cursos. Em outro extremo, lidamos com aquilo que a imagem revela, mas que a expo consegue apreender, aquelas sensações que dispensam palavras e que entram emssas pulsões primárias: a de permanecer vivo, de absorver e transformar o alimentotemer pela própria sobrevivência — tudo aquilo que Yves Bonnefoy denomina, num

oya, o “pensamento figural”. Talvez existam poetas capazes de produzir um equivalenssa apreensão elementar do mundo, que às vezes encontra uma encarnação na pinturamim, sei que sou incapaz de rivalizar com Goya nesse sentido. Para conhecer essansamento dele, é preferível, em vez de ler os comentários do crítico, observar asntor — ou, à falta destas, suas reproduções.Contudo, entre esses dois extremos, o discurso teórico e a sensação pré-verbal da vium vasto território que se comunica com os dois sem se reduzir a nenhum deles. Tr

gar intermediário, que engloba os discursos, as imagens, mas também o ambiente histqual foram escritos os textos, pintados os quadros, desenhadas as figuras. É a exi

ritório que nos permite dizer, para evocar apenas um exemplo, que a pintura europeiaz um novo pensamento, o da descoberta e da valorização do indivíduo humano, que

eratura e a filosofia ignoram — ao passo que o descobrirão e o celebrarão, por suazentos anos mais tarde. Portanto, é possível introduzir-se nesse pensamento tantoanto pela imagem, mas também — ou talvez fosse melhor dizer: sobretudo —cadeamento de atos desejados ou suportados que formam aquilo que denominamos uesse espaço de mediação entre diferentes percepções e interpretações do mundo, ensamento não teorizado, que constitui o quadro do presente estudo. A vida e a obnvém dizer, inserem-se nele sem opor nenhuma resistência.Se adotarmos tal perspectiva, logo nos daremos conta de que Goya não apenas sofre

espírito das Luzes, mas é também, uma das maiores figuras intelectuais da época, im

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se pensamento e simultaneamente capaz de transcendê-lo. Ora, o pensamento ilresenta um interesse apenas acadêmico: ele forma o alicerce sobre o qual estão conss sociedades contemporâneas, especialmente a nossa. Por conseguinte, conhecê-lo mnsequências diretas para nossas interrogações sobre nós mesmos, sobre nossos valundo no qual desejamos viver. Assim, meu interesse por Goya não está ligado unicamearte ou da cultura, mas também participa de uma necessidade de compreender melhor

meus contemporâneos. A obra dele contém uma lição de sabedoria que se dirige a nós

O pensamento de Goya se expressa sobretudo através das imagens que ele produziuavuras, desenhos: quase 2 mil trabalhos! Além disso, temos a sorte de dispor de oupressão praticada por ele, verbal e já não visual. Talvez por causa de sua difmunicar-se oralmente, em consequência da surdez que o afetou em 1792, Goya ddícios escritos de sua reflexão. Para começar, ele é o autor de duas verdadeiraletâneas de gravuras dosCaprichos (1798) e dos Desastres da guerra (c. 1820), a prblicada em vida, a segunda apenas depois de sua morte, mas ambas compostas idado. Tanto a ordem na qual se sucedem as imagens quanto as legendas de que totadas permitem ver ali a expressão direta — e quão preciosa — do pensamento deso, o pintor deu títulos ou legendas a muitos de seus desenhos, assim como às

avuras, o que permite orientar a interpretação desses trabalhos. Embora não tenha se tratasse diretamente de questões filosóficas, políticas ou artísticas, Goya deixou umtextos: cartas pessoais, um relatório dirigido à Academia de Pintura, um anúncio ds Caprichos, requerimentos e missivas oficiais, conceitos transcritos pelos conte

omparado a outros pintores do passado, um Rembrandt, um Watteau, dos quais só

gumas cartas de duvidosa autenticidade e, de qualquer modo, pouco reveladoras,mem que se expressou muito bem no seu idioma nacional, a língua espanhola, e nãguagem universal das imagens. Por fim, dispomos de numerosas informações sobrentos decisivos para a forma de sua existência, uma forma, por sua vez, rica de sentidNem por isso eu me proponho a contar a vida de Goya nos mínimos detalhes, ealisar o conjunto de sua produção pictórica. Deixarei de lado grande parte de sua obrpintura religiosa, as naturezas-mortas, as tauromaquias. O objeto de minha annsamento de Goya, tal como se revela tanto através de suas imagens quanto de seus estros atos de sua vida, em relação a estas duas questões centrais: o sentido de suctórica e a subversão que ele traz às concepções iluministas. Para interpretar seu penvado a narrar alguns fatos bem conhecidos de sua biografia e de sua carreira; evidentee beneficiei dos trabalhos de outros historiadores e críticos. Sem dirigir-me unipecialistas na obra de Goya, eu quis apresentar (ou recordar) ao meu leitor o cormações que o ajudarão a compreender as surpreendentes inovações desse pintor ex

s referências das citações encontram-se nas Notas e na Bibliografia, no final deste volume. As obras de Goya são

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número no catálogo de Gassier e Wilson (abreviado paraGW).

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entrada no mundo

Nascido em 1746 numa família modesta de Saragoça, bem cedo Goya se orienta paquirein loco os primeiros rudimentos do ofício. Mas, para ter êxito nessa área, é prea Madri, onde podem ser obtidas encomendas bem remuneradas. Ali ele partici

ncursos, de início em 1763, depois em 1766, sem obter nenhum sucesso. Decide enmo diferente. Para começar, deve completar sua educação de pintor iniciada em Saranhar um pouco mais de prestígio; então parte, às próprias custas, para a Itália — o que

do um empreendimento fácil. Essa viagem, mal conhecida por falta de documenovavelmente entre 1769 e 1771. Goya se demora especialmente em Roma, onde admínio do seu ofício, ao mesmo tempo que obtém alguns elementos de prestígio.A segunda providência que ele toma para garantir o próprio sucesso é de natureza muvolta à Espanha, casa-se em 1773 com Josefa Bayeu, irmã de um dos pintores bem

omento, Francisco Bayeu. Nenhum testemunho permite ver nessa união uma história dova que Goya tenha jamais pintado um retrato da esposa, e um único pequeno deseGW

eserva os traços dela; nas cartas, ele só fala de Josefa de passagem, essencialmente nus numerosos partos (somente um dos filhos do casal sobreviverá). A impaciêncegar, que ele expressa nessa ocasião, parece ter como único motivo o desejo de deais depressa possível. No entanto, Josefa não devia ser desprovida de inteligênciarta, Goya cita uma de suas tiradas: “A casa é a sepultura das mulheres” (a Martín Zosto de 1780).1 Em compensação, o casamento lhe abre muitas portas. Ele se torna meyeu, e até chega a morar, a partir de 1774, na casa do cunhado em Madri; e o próprifavorito de Anton Raphael Mengs, o artista considerado então o maior pintor da meiros quadros e afrescos de Goya se referem a temas religiosos, pois são encomen

reja. Falta-lhes originalidade, mas já está claro que o jovem pintor não é atraídooclássico então em voga, justamente o de Mengs e de Bayeu.O fato de pertencer ao clã Bayeu rapidamente lhe vale as primeiras encomendalácio. São “cartões” (isto é, quadros-modelo) para as tapeçarias régias destinadas à ncipe herdeiro, o futuro CarlosIV, e de sua esposa Maria Luísa. Os temas são escolhanciadores, pelo casal principesco e por seus conselheiros. Por essa época difunde-se

rticularmente nos círculos aristocráticos ou próximos da corte, uma moda que lorizar os trabalhos e as festividades populares, as diversões ou simplesmente os mo

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s jovens de condição modesta, osmajos e asmajas. Em suma, é o equivalente espanhol dlantes que Watteau introduziu na pintura europeia no início do séculoXVIII. Goya, ele mundo de um ambiente popular, domina rapidamente o estilo desses quadros e torna-se

upo de pintores que os executam. Ele realizará 63 cartões (dos quais subsistenquenta), ao longo de três períodos distintos: 1775-80, 1786-8 (interrompido pela rlosIII) e 1791-2 (interrompido pela doença de Goya). Seu sucesso deve ter-lhe asse

rta liberdade na escolha dos temas.No primeiro ciclo são representadas festas, cenas da vida cotidiana ou cenas de caçntém também algumas imagens de assunto mais grave, por exemplo, uma série consadicional das quatro estações, que ele trata com muita atenção aos detalhes eservação. É o caso deO inverno (GW 265): uma família camponesa caminha com dificuve, acompanhada de seu cão, de seu jumento e de seu porco — este último, já abatiddorso do jumento. Esse quadro não remete, como preferiria a tradição, a um ciclo

rte é a presença dessa cena: sente-se a fadiga dos caminhantes, o vento glacial, o

esar de alguns raios de sol. Outras imagens evocam a vida das pessoas simples, splicação idílica ou alegórica; por exemplo,Os pobres na fonte (GW 267). Um cartão cdreiro ferido (GW 266, il. 1) até surpreende nesse contexto: a cena, que se desenrola nbana de uma construção, no meio dos andaimes, não tem nada de divertido nem de insvia feito inicialmente uma versão leve, e até humorística, da mesma cena, mostrandO pedbado (GW 260); entre as duas versões, a composição se manteve idêntica, somente a exstos mudou. O incidente inicial se presta ao riso, mais do que à compaixão. JáO pedreiro feais grave, e nós nos perguntamos o que ele vem fazer nas paredes de um palácio rembém as liberdades tomadas por Goya em sua maneira de tratar o fundo por trás dose os rodeia de grandes massas de cor, que parecem justificadas unicamente pelas ernas do quadro.A encomenda do terceiro ciclo refere-se a temas “rústicos e cômicos”; nele, Goya moanças, caso deOs pequenos gigantes (GW 304), ou de adultos, como emO fantoche (GW 301neco lançado no ar por várias jovens, quadros de ressonâncias mais dramáticas. Nmeiros cartões, em 1777-8, Goya estuda a obra de Velázquez, da qual produz cópias

e ele escolhe como modelo privilegiado. Tal escolha de predecessor influencia suntar, que se opõe, e disso ele tem consciência, ao cânone contemporâneo: “O eeferencialmente neoclássico [arquitectonico]”, escreve ao seu amigo Zapater (6 de 87). Por isso, seus quadros são às vezes criticados por serem, segundo a fraseinturas inacabadas”.As primeiras encomendas régias favorecem grandemente sua carreira. Seu contato i

CarlosIII data de 1779; ele postula então o cargo — vantajoso, porque lucrativo —nto ao rei. Obtém uma primeira integração em 1786 (pintor do rei), uma promoção em

câmara do rei) e uma última consagração em 1799 (primeiro pintor de câmara do rei

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las correspondendo um aumento de salário. Paralelamente, torna-se membro da Antura de San Fernando em 1780, seu subdiretor em 1785, seu diretor em 1795. Taratos de membros da família real, tais como o do irmão do rei, Luís de Bourbon, o duturo CarlosIV, e o da esposa deste.O conde de Floridablanca (GW 203, il. 2), que ele executa em 1783, ilustra involuntarrigos de sua situação: demonstra demais seus esforços para lisonjear o primeiro-oca (equivalente a primeiro-ministro). Goya se representa no interior do quadro no

rtesão obsequioso, a ponto de fazer pensar nas miniaturas medievais em que se vntor oferecer, dobrando os joelhos, sua obra ao cliente. É verdade que Goya está mm a perspectiva de pintar esse grande homem, o primeiro personagem realmente impocomenda seu retrato. “Ele quer que eu lhe faça o retrato. Isso pode me render muito.se senhor!”, escreve a Zapater (22 de janeiro de 1783).Será por tal razão que o retrato nos deixa uma impressão de inabilidade? Floridabão um pincenê, prova de que acaba de examinar o quadro que o pintor lhe apompanhado de um arquiteto, ou engenheiro, que lhe mostra os planos de construçãomo se pode ver pelas folhas pousadas ao seu lado; aos seus pés repousa uma obra sima dele, o retrato do rei CarlosIII está vigilante. Goya quer nos mostrar que o ministro

m todas essas matérias, o que não o impede de ser um servidor devotado. Ele mesmo mo servidor do servidor, ainda mais submisso: estamos diante de uma verdadeira ctoridade! O pintor quer significar tantas coisas que o quadro se torna ilegível. O ralisado numa postura rígida, o pintor — que, no entanto, supostamente estaria maisé estranhamente pequeno; sua humildade é excessiva. Aliás, na vida real, Florid

anifesta nenhum entusiasmo diante desse retrato aplicado demais: “Não há senão silênais silêncio em meus assuntos [com ele], ainda mais silêncio do que antes do retratoya a Zapater (7 de janeiro de 1784).Outro quadro que ilustra o conformismo social de Goya é o que ele envia à Academissão, um Cristo crucificado perfeitamente conforme ao gosto reinante (GW 176), revelandobilidade, mas não uma inspiração original. Convém dizer que sua manobra é bem ctém a aprovação dos acadêmicos. Pouco a pouco, torna-se também um dos retreciados pela alta sociedade madrilenha. Desse modo, faz o percurso de um jovem

mbicioso e oportunista, obcecado pelo sucesso, bem decidido a ter êxito e, portanto, anheiro e mais honrarias, sejam quais forem os meios; e chega lá.Para o conhecimento desse período da vida de Goya, dispomos de um documentortas que ele dirige ao seu melhor amigo de infância, que permaneceu em Saragoça: Mimagem que resulta dessa correspondência é bem diferente daquela que se podecumentos oficiais ou das obras do pintor; não que seja necessariamente mais verdadetras, mas traz uma luz complementar. Nessa troca de cartas entre amigos, fala-se mu

pintura. No início, Goya nos aparece como um homem de gostos simples e pop

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azeres principais são a boa comida, em particular o chocolate (“tens de me enviaixa de chocolate” [1780]), a tourada e, sobretudo, a caça: “Caça e chocolate cozidosa mistura” (20 de outubro de 1781). “Para mim, verdadeiramente, não há coisa que mque a caça” (6 de outubro de 1781).

Também se encontram nessas cartas algumas alusões às prostitutas; mas a afeição qur seu amigo parece prevalecer, e de longe, sobre o interesse que ele dedica às mulhenso nos pequenos momentos de conversa que nos esperam, chupo meus dedos de tan

4 de maio de 1780). “Tu e eu somos um só e calaremos o que houver a calar” (6 d81); a fusão entre os dois amigos é ilustrada pela assinatura que Goya apõe no fina

Martín e Paco” (isto é, Francisco), como se o texto emanasse tanto do autor quanto dovezes a própria fronteira entre amizade e amor desaparece. “Partir contigo me encan

e agradas tanto e és a tal ponto de minha raça, não seria possível encontrar outro comreditar, a vida para mim seria estar ao teu lado […] seria verdadeiramente a maior undo” [20 de outubro de 1781]. “Sou apaixonado por este zangão, mais do que ele meta). “Tenho cada vez mais vontade de te ver e de viver contigo” [13 de novembro declarações se sucedem pelo menos até 1793. “Prefiro as conversas contigo a todos grias do ninho matrimonial” [dezembro de 1790].A partir do momento em que é recebido na corte, Goya sente muito orgulho em c

migo todas as gratificações que recebe. Quando tem oportunidade de apresentar pelaus quadros à família real, fica extremamente sensibilizado. “Beijei-lhes a mão, nãera uma tal felicidade, não podia desejar mais. […] Que grandeza, meu Deus, nem euras merecíamos tanto!” (9 de janeiro de 1779). O encontro com o irmão do re

rticularmente. “Fiquei um mês inteiro, sem interrupção, com Suas Altezas, são uns aembro de 1783). As atenções que ele recebe, alguns anos mais tarde, do favorito danuel Godoy, não são menos apreciadas. Em uma palavra, “os reis são loucos pelo teoutubro de 1799). Uma parte desse prazer resulta de essas honrarias serem acomários e recompensas, dos quais Goya dá conta fielmente a Zapater (as consideraçõeupam boa parte da correspondência). “Meu querido Martín, aí está, eu sou pintor dl reales por ano” (7 de julho de 1786). Com frequência, ele pede conselhos a Zapater.e tens talento, tanto tino para as coisas, diz-me onde ficariam melhor meus 100 mrealenco, em valor real, ou nas corporações?” (23 de maio de 1789). Bem integrado

mbiente, Goya adota certas maneiras dele, de modo que acrescenta um “de” ao sobrencartas ao amigo como “teu Francisco de Goya”.Ocorre que essa elite espanhola na qual ele se introduziu é adepta das grandes ideiae provêm de toda a Europa e penetram no país a partir do vizinho do Norte, ntaminação se produz lentamente, mas com firmeza, ao longo de todo o séculoXVIII. Pode-

m primeiro sinal importante disso nos ensaios de Feyjoo, monge beneditino e

niversidade de Oviedo, os quais foram reunidos numa série de volumes sob o título coT

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tico universal (publicados a partir de 1726). Feyjoo critica o estado de atraso intelecserva em seu país e apresenta ao público uma síntese do pensamento racionalista. Se

escartes, Newton e sobretudo Francis Bacon; seu ideal é o conhecimento científielas religiosas. Esse abalo da autoridade tradicional pela escolha da crítica livre ande sucesso popular. Progressivamente, multiplicam-se os estudos sobre as ciêncistinados ao grande público, assim como as traduções e adaptações dos escritos de MJean-Jacques Rousseau, de Adam Smith e de Condillac, de Beccaria e de Filangieri.

O pensamento iluminista que se difunde com sucesso pelo continente europeu nãterminado filósofo ou erudito específico, mas uma síntese anônima, obra de alguns vtalento. Seu ponto de partida é a crítica à autoridade mantida pela tradição, sob t

rmas. Para dar legitimidade a uma afirmação, já não basta lembrar sua antiguidanformidade a um texto considerado sagrado, como a Bíblia. Em seu lugar coloca-sre busca da verdade por meio de observações imparciais do mundo e de raciocírtanto, os partidários das Luzes denunciam os preconceitos, as superstições, a i

vocam a razão e a ciência. Todos os domínios da vida pública, administração, econovem ser geridos de acordo com princípios racionais. Ao mesmo tempo, esses partie a ação da Igreja se limite unicamente à esfera espiritual e não interfira no podmbém se permitem criticar o clero, cujos representantes nem sempre estão à altura de dirigem habitualmente aos outros fiéis. De maneira mais difusa, defendem-se erdade individual, de igual dignidade de todos, e procura-se um fundamento puramra todos os valores.Os monarcas espanhóis adotam o modelo do despotismo esclarecido. CarlosIII (1759-

arlosIV (1789-1808) conscientizaram-se da necessidade de modernizar o país onômico e administrativo, assim como no jurídico e no cultural. Querem proganização racional do Estado, favorecer as práticas e o pensamento científicos. Tamoteger a população contra a exploração impiedosa à qual os potentados locais mediar o estado de miséria em que ela está mergulhada (na Espanha, a expectativa debres situa-se nessa época entre 27 e 32 anos). De igual modo, sem jamais pôr em dúvtólica (CarlosIII é um homem particularmente piedoso), gostariam de modificar o equder espiritual e poder temporal, e portanto livrar-se da tutela papal, submetendotado: é um movimento regalista, paralelo ao galicanismo francês. Por essa razãoados ao papa, serão expulsos em 1767. A Inquisição, igualmente próxima dofraquecida mas não desmantelada, e suas intervenções prosseguirão.Os assuntos de Estado foram confiados a um grupo de aristocratas e intelectuais abeministas; em espanhol, são chamados osilustrados, os “esclarecidos”. Em parte, é o meiro-ministro Floridablanca, no poder desde 1777; mas também e sobretudo dosculo que o rodeia, administradores, economistas, historiadores ou literatos, entre os

encionar Jovellanos, Cabarrús, Meléndez Valdés; eles pertencem à mesma geraçã

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dem parecer bastante tímidos ao lado dos enciclopedistas franceses; no entanto, fazento novo sobre as terras da Espanha. Ao redor, de maneira ainda mais difusa, gravais amplo de indivíduos “esclarecidos”, livres dos preconceitos comuns, e às vezepírito libertino. Contudo, em seu conjunto, esses personagens, que numericamente só uma pequena minoria, assumem uma atitude crítica em relação ao povo; tentam desperroximá-lo do ideal deles. Querem arrancá-lo à influência dos vigários retrógrados quguia e que são responsáveis por sua ignorância, por sua rudeza, pelas superstiç

antém.Assiste-se portanto a um conflito latente, que ganhará amplitude durante os anos segum lado, a elite esclarecida, que deseja promover a razão e as ideias liberais, e,

presentantes de uma corrente oposta, descartada pela política régia e que, por simetrianominar “obscurantista”. Estes últimos defendem a supremacia do papa, o papquisição, a propriedade da Igreja e das ordens monásticas, o interesse dos grandes prras. No plano ideológico, poderíamos dizer que a separação entre os poderes teológs primeiros, opõe-se à confusão entre tais poderes, nos segundos, assim como o renservadorismo. O prêmio do conflito é o povo: cada corrente gostaria de atraí-lo parrdade que o próprio projeto do despotismo esclarecido é minado por uma contradus promotores querem que os habitantes do país se comportem como indivíduos livresejam considerados dotados da mesma dignidade que eles próprios, mas ao mesmservam o direito de outorgar essa liberdade e esses direitos aos outros quando bem esejam conduzir a população à autonomia e para isso a conservam em submissãoualdade como ideal, mas não aceitam renunciar a nenhum de seus privilégios. Gos

mancipar da tutela da Igreja, mas não se dispõem a defender a liberdade de consciêncitre exigências contraditórias, são levados a construir compromissos laboriosos.A simpatia pelas Luzes, nas esferas dirigentes do país, irá perpetuar-se, é verdade qriáveis, com fluxo e refluxo, até a invasão napoleônica de 1808, e isso apesar do plos eventos que se desenrolam na vizinha França: a Revolução de 1789, o regicídio ensequência de um desses refluxos, em 1790, alguns “esclarecidos” sofrem represáliançado na prisão, Jovellanos e Ceán Bermúdez são banidos da capital. Outro recuerais se produzirá nos primeiros anos do séculoXIX.Por suas origens, Goya pertence ao povo, mas, graças ao convívio que seu estatuundano lhe impõe, integrou-se à elite esclarecida. Ao tornar-se cortesão e acadêmluência dos membros de seu círculo, figuras políticas ou culturais favoráveis às ideia

queles já mencionados, acrescentam-se alguns outros, como Moratín ou Iriarte. Tanhecimento com abastados colecionadores de convicções liberais, tais como o duquOsuna, de quem se tornará próximo. O fato de pertencer a um novo ambiente vai transtos e seus hábitos. “Tenho a impressão de nascer para outro mundo”, escreve ele a Z

osto de 1781). Nem sempre, contudo, isso o satisfaz, como comprova outra carta:

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Já não vou aos lugares onde se podem ouvir as seguidilhas [danças populares], pois cismei de satisfazer certo capcerta dignidade, a qual, segundo ouvi de ti, um homem deve ter; com tudo isso, compreenderás que não estou muitoVisivelmente, sob a influência da corte e dos “esclarecidos”, ele deve renunciar aos prazeres simples de que tanto g

Nessa época, a hierarquia dos valores de Goya comporta vários graus. As honrarias arcas de reconhecimento, as gratificações pecuniárias são bem-vindas. Mas ele gosta alegrias simples da vida material e da amizade são superiores a tudo isso. “Quero farada, e que vá à merda aquele que leva em conta o mundo e as fortunas da coraramente que os ambiciosos não vivem, que nada sabem do lugar onde vivem” (20 d81). Tal é sua posição de princípio: “Para os quatro dias que temos a viver sobre estgundo o próprio gosto é verdadeiramente um dever” (25 de abril de 1787). “Não nome afora o de agradar aos meus amigos” [1787]. Contudo, ele é obrigado a recesar dessas declarações, continua levando uma vida de cortesão, embora esta nãenamente:

Tenho tantas coisas a fazer que não há espaço para nada, mas estou farto de ser infeliz, queria muito estar contigprazer que temos de estar juntos, e nada, nem os aplausos nem todas as satisfações com o rei, o príncipe, me impede preocupações (16 de dezembro de 1786).

Na realidade, ao lado desses dois rivais, o reconhecimento público e as alegrias rgiu uma terceira ocupação, cuja importância não para de crescer ao longo dos anntura. Embora seja apresentada como uma obrigação, é ela que doravante ocupa o to

Goya. “Nada poderia te dar uma ideia de tudo o que me cai em cima, eu vivo sempr3 de junho de 1787). “Não terei nem sono nem repouso enquanto não tiver concluídonão chamo isto de viver, esta vida que tenho” (31 de maio de 1788). No entanto, é a vcolheu levar, mesmo quando o grande rei, agora seu amigo, lhe diz que ele não devnto… Sua vocação de pintor o mantém, sobretudo a partir do momento em que ele temser “o melhor que existe aqui” (13 de junho de 1787).Agora pertencente ao meio dos “esclarecidos”, nem por isso Goya procura ilustraeias através da pintura. Embora trate os temas de suas encomendas com frescor e origóprios temas permanecem puramente convencionais, correspondem a um gosto pates aristocráticas, e não a um apego qualquer aos valores liberais. Ele parece haverjetivo, o êxito social, e, embora seja melhor do que seus colegas, nada indica ainda ndouros, revolucionará a pintura europeia, ao mesmo tempo que o pensamento daso, será preciso que sobrevenha um choque para o qual Goya não estava nem um pouc

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Uma teoria da arte

Esses mesmos convívios e obrigações incitam Goya a completar sua educação intele aprende o idioma francês (irá esquecê-lo totalmente mais tarde). Também lê e reflcio, como comprova o relatório que dirige à Academia em outubro de 1792, em resquisa sobre os métodos de ensino das artes visuais. Enquanto seus colegas dão respcnicas e se limitam a indicações práticas sobre as salas onde as pessoas estudam, ais conveniente, os pintores que é preciso imitar ou a organização dos ateliês, Goyante dos colegas um verdadeiro manifesto. Afirma que esse ensino deve ser tão poucanto possível; que é preciso esquecer as regras e imitar a natureza, em vez dos ant

Não há regras em pintura, e a opressão, ou a obrigação servil de fazer estudar a mesmguir o mesmo caminho, é um grande obstáculo para os jovens que escolhem essa are se aproxima do divino mais do que qualquer outra, por representar [ significar ] tudo o queou.” A pluralidade dos caminhos que permitem aproximar-se do objetivo é colocasim como a necessidade de dar a cada indivíduo o direito de escolher o dele.

Para isso, o estudo é necessário, mas depende do conhecimento do mundo, e não tigos: “Que escândalo, ouvir depreciarem a natureza em comparação com as estátuastificação dessa escolha encontra-se no fato de que, dessa maneira, o pintor observeus, criador como ele, em vez de imitar as de um intermediário: “Por mais excelenofessor copiado pelo artista, pode este último fazer outra coisa, além de proclamar: do, uma é a obra de Deus, e a outra, de nossas mãos miseráveis?”. Goya tambdiretamente, uma defesa de sua maneira de pintar: “Mesmo aqueles que estão mais avminho não podem senão dar poucas regras das profundas operações do entendimentra isso, nem explicar por que, às vezes, têm mais êxito numa obra executada com mque em outra mais esmerada”. Fica, assim, defendido o caráter “inacabado” de suas

rtos connaisseurs criticam. Os resultados desse ensino liberal são imprevisíveis, eciso agir como Annibale Carracci com seus discípulos, “deixando cada um seguir a u próprio espírito, sem forçar nenhum deles a seguir o estilo [do mestre], seu mértanto, prega a liberdade dos alunos. O objetivo da pintura, contudo, continua senaturas divinas, “ter êxito na imitação da verdade” ou da natureza.

Na contramão das práticas correntes, os artistas, para aprender a manejar a perspvem ser rebaixados pelo poder ou pelo conhecimento de outras ciências”, como a

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es serão julgadas segundo seus próprios méritos, as habilidades que elas exigualmente próprias. Para adquiri-las, bastará “ter em grande estima os verdadeiros artirso ao engenho dos estudantes que desejam conhecê-los, sem opressão nem iétodos”. E o relatório se conclui com uma nota grave: “Toda a minha vida foi cançar o fruto daquilo que exprimo aqui”.Destaquemos três ideias-força formuladas nesse escrito. Para começar, Goya rejeitaitação-cópia, já seriamente abalado desde algum tempo antes, e vai ao encontro dos

m vez de buscar a semelhança exata entre suas obras e as criaturas naturais, querem impremo, Deus; eles já não devem aspirar à semelhança das formas, mas à analogia dooduzem. Nem por isso Goya renuncia à concepção da pintura como conhecimento dosiste ele, trata-se de um conhecimento específico, irredutível àquele que as ciêncianalmente, todos os artistas, e não só os gênios excepcionais, têm o direito de se lgras comuns: a descoberta da verdade, à qual o pintor aspira, passa pela adequerioridade do indivíduo e os meios acionados, e não pela submissão às tradições

gras ensinadas nas academias.Essas três ideias mantêm relações diferentes com as doutrinas do passado. A primeogressivamente à consciência dos artistas e dos connaisseurs desde a época da Rcontrou um novo impulso, no início do séculoXVIII, na filosofia de Leibniz, que introduziu“mundos possíveis”, paralelos ao mundo existente mas diferentes dele. O objetivo dmitar a natureza visível, as formas materiais que ele percebe ao seu redor, mas oação em si. O artista cria um microcosmo análogo ao cosmo, mas que fica separadoo que, dizia Leon Battista Alberti, teórico das artes que viveu no séculoXV, “pintanculpindo seres vivos, ele se distingue como outro deus entre os mortais”. Os similam ao Criador.A segunda ideia, a da arte como conhecimento, embora não seja ignorada pelos poca, não participa da corrente principal da estética no séculoXVIII, pela qual as pesseocupam sobretudo em pregar a autonomia da arte e erigir a beleza como princípio era. Goya se mantém inteiramente estranho a essas preocupações, tanto em seu manifesras que produzirá ao longo das décadas seguintes. Nele, não encontramos cuidad

ético nem aspiração específica ao belo: antes de tudo, Goya busca apreender a verdanto aquele que o rodeia quanto o de sua mente. Mas, ao mesmo tempo, tem consciêncinhecimento é sui generis e não se confunde com o dos cientistas, é um “conhecimederia ele dizer com Alexander Baumgarten, o inventor, em meados do séculoXVIII, do stética”; tal conhecimento privilegia o particular em detrimento da abstração, comocio desse mesmo século o filósofo e historiador italiano Giambattista Vico.Se a primeira grande ideia do relatório de Goya está de acordo com o espírito dgunda é ligeiramente anacrônica (mas está presente nas mentes mais sagazes do Il

ceira é francamente revolucionária e anuncia as mutações artísticas vindouras: “não

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ntura”, “é preciso deixar que cada um siga a inclinação de seu espírito”, “dar ligenho dos estudantes”! Sem fazer alarde, Goya formula com firmeza um princípio quu redor ousa proclamar em voz alta. Para isso, foi preciso que se suavizasse o contrcial sobre as escolhas do indivíduo, uma luta travada desde a Renascença, mas que

ma nova intensidade. Está aberto o caminho para a emancipação do indivíduo perantsua arte. Essa declaração audaciosa em favor da liberdade de criação anuncia a plu

eais artísticos, que se produzirá nos séculosXIX e XX. A posição de Goya, no entanto,

trema do que a de seus sucessores. O “nada de regras” concerne à maneira de pinjetivo da pintura, que é sempre o de revelar o mundo. E a recusa a impor o mesmo mo significa que “os estudantes” não têm nada a aprender — do contrário, Goya nãbalho de refletir sobre o ensino desse ofício. Enquanto reina ao seu redor uma visãocelência em pintura, ele defende não a complacência e o arbítrio generalizados, mas unta às qualidades de cada um.Depois desse texto, Goya não produzirá nenhum outro destinado a expor suas ideias ntura. Contudo, em seus últimos anos de vida, em Bordeaux, ele fará amizade com umntonio Brugada, com quem compartilhará suas reflexões. Brugada, que acompanhará lho até o seu último alento, conservou algumas dessas ideias e as confiou ao primeiroya, Laurent Matheron, que observa em seu livro: “Devemos à extrema cortesia doeciosas informações sobre a vida de Goya”. Brugada indica que, em Bordeaux, Goyava de pintura e quase nunca respondia quando era conduzido a esse terreno”. Tana ainda mais plausível a veracidade das opiniões preservadas — pois, felizmenuve exceções a essa regra. Transcrevo aqui duas afirmações atribuídas a Goya.

Em suas raras conversas sobre pintura, Goya, ao falar de seus antigos tempos, gostava de zombar dos acadêmiccomo estes ensinavam o desenho: “Sempre linhas”, dizia, “jamais corpos. Mas, afinal, onde eles encontram essas liQuanto a mim, eu só vejo nela corpos iluminados e corpos que não o são, planos que avançam e planos que recuamMeu olho jamais percebe nem lineamentos, nem detalhes. Eu não conto os pelos da barba do homem que passa, e aroupa tampouco retêm meu olhar. Meu pincel não deve ver nele mais do que eu. Na contramão da natureza, esses vão dos detalhes ao conjunto, e seus detalhes são quase sempre fictícios ou mentirosos. Eles confundem seus jovenos traçar, com seus lápis mais apontados, e isso durante anos, olhos em amêndoa, bocas em arco ou em coraçinvertido, cabeças em oval. Ah! que afinal lhes deem a natureza: ela é o único mestre do desenho!”.

Assim como negava o desenho, ou melhor, a linha, Goya negava totalmente a cor, e no entanto era colorista. Apnegações sobre um argumento único: “Na natureza”, dizia, “a cor não existe, tampouco a linha; só existem o sol e ame um pedaço de carvão, e eu vos farei um quadro: toda a pintura está nos sacrifícios e nos partis pris!”.

Tais afirmações, portanto, dão prosseguimento ao intercâmbio empreendido por Golegas acadêmicos sobre o ensino da pintura. Ele parte, aqui, de um princípio: o pinostrar o mundo tal como é, mas sua visão pessoal desse mundo. Charles Yriarte, um dógrafos de Goya, que leu o livro de Matheron, assim resume essa ideia: “Ele desen

e não aquilo que existe”. Portanto, nem linhas nem cores, mas luzes e sombras; nad

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sim massas em movimento, “tais como vos aparecem à distância, a não ser que serescenta Matheron (ainda parafraseando Brugada?). Os “sacrifícios” e os “ partis pris” snsformações trazidas ao mundo objetivo pela percepção subjetiva; afirmar que toda so introduz uma revolução coperniciana.Yriarte relata outra frase, sem esclarecer sua fonte: “Abrindo o mais amplo espaço àe um quadro cujo efeito é certo é um quadro acabado”.1 A experiência do pintor, e não o mconstitui o objeto de seu quadro; a experiência do espectador, e não as qualidades

adro, é o que garante a qualidade deste. Nem por isso são experiências estritamenteoya sabe que seus interlocutores podem aderir à sua própria visão, assim comomerosos espectadores confirmem os efeitos de seus quadros. A verdade à qual a pintundividual, mas sim compartilhável por todos.

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doença e suas consequências

Após o debate, na Academia, sobre o ensino da pintura, Goya parte para a Andaluzissa viagem é desconhecido. Em todo caso, é provável que o pintor não pretendessmpo por lá, pois não havia comunicado essa ausência aos seus superiores, dos qualicitado uma autorização; será obrigado a cuidar disso mais tarde. Também devia ter o falar da viagem com sua família; nenhum membro desta irá visitá-lo a seguir. Seria u

morosa ou passional? Ou de engajamento político, já que seu amigo Ceán Bermúdez, e, está exilado em Sevilha, justamente a cidade aonde ele se dirige? Não se sabe; ovável que se trate de uma simples excursão a fim de ver quadros. É lá que, em novem é atingido por uma grave enfermidade, sobre a qual nos informam primeiro as c

migos, e em seguida as suas próprias (a partir de janeiro de 1793). A prostração vilha, de onde em seguida é preciso levá-lo a Cádiz, para a casa de seu amigo Sebase permanece ali por vários meses, ao menos até abril; somente em julho de 1793 rea pista em Madri.

Os sintomas descritos da doença não permitem deduzir a sua natureza. Numa caneiro de 1793, Goya se diz “de cama há dois meses, com dolorosas cólicas”. Passis meses, e em 19 de março de 1793 Martínez o descreve como ainda acamado essimo estado”. Dez dias depois, lê-se uma descrição um pouco mais precisa: “Osbeça e a surdez não diminuíram”, mas os outros sintomas recuam, agora ele recupentidos, enxerga e já não perde o equilíbrio, pode subir e descer escadas. O próprio Gbsequentes, informa em carta a Zapater sentir-se “tão mal que me pergunto se minhbre meus ombros, não tenho vontade de comer, não tenho vontade de nada” [1793]. um ano, ele ainda evoca a tristeza que o assalta e se descreve assim: “Às vezes estou e nem eu mesmo posso suportar, em outros momentos me sinto mais calmo” (23 de a

á também uma alusão enigmática numa carta de Zapater a Francisco Bayeu: “Foi sua pe o levou a isso” (30 de março de 1793). Esses sintomas se manterão até o fim de surmanecerá surdo: irá expressar-se pela linguagem dos sinais e escrevendo. Pequrante sua estada em casa de Martínez, ele pode contemplar a rica coleção de quadre seu amigo reuniu; nela descobre várias imagens que não conhecia, tais como a

ranesi e as caricaturas de Hogarth.Essa doença, qualquer que tenha sido sua natureza, provoca em Goya uma grande

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rdez é para ele uma enfermidade menos dramática do que para esse contemporânessoas gostam de compará-lo, Beethoven; no entanto, o efeito é igualmente decisditiva na qual ele está mergulhado vai obrigá-lo a abrir mais os olhos. Sua maneira dmbém de se conduzir, torna-se diferente. A perda de contato com o mundo epossibilidade de comunicar-se oralmente, que reforçam sua solidão, aguçam seu sentmesmo tempo incitam-no a focalizar-se antes de tudo em seu interior, a explorar

aginação. Ele renuncia ao cargo na Academia e se retira progressivamente da videscente atenção que dá aos próprios sonhos e fantasias pode ser explicada pelas mem dúvida, as premissas do novo Goya estavam presentes no antigo; mas é esse acente que lhe permite realizar o programa anunciado em seu manifesto: liberado dactóricas de seu tempo, ele poderá ir bem mais longe em sua busca da verdade. Porospectivamente que aquilo que fez a desgraça de Goya produziu a felicidade dopectadores de suas imagens, pois é a partir desse momento que o ambicioso pintor na um gênio.

Na nota biográfica que redigiu pouco após a morte do pai, Javier Goya assim transe devia ser uma afirmação ouvida com frequência: “Ele havia observado comlázquez e Rembrandt, e não estudou nem observou outra coisa afora a natureza, mas aa mestra a situação devida à perda do sentido da audição com a idade de 43 [na os”.1 Nessa frase encontram-se tanto um eco do relatório de Goya sobre o ensino da p

m testemunho de reconhecimento para com os pintores dos quais ele sempre se sentiu pbretudo, descobre-se nela uma espantosa valorização da doença: ao mesmo tempo quorte da audição, levou também ao segundo nascimento do pintor. Ela é até mesmomo a principal responsável por sua nova pintura, aquela que o tornará diferente ntores que o precederam. Convém notar também que essa subversão interionologicamente com um episódio inaudito, que por sua vez abala todas as sociedades ropeu: é no mês de janeiro de 1793 que o rei da França LuísXVI, primo do rei da Espilhotinado, o que revela a insuspeitada fragilidade de uma ordem social que pareciópria natureza do universo. Os dois eventos, um puramente privado, o outro ocorrilco do mundo, contaminando-se um ao outro, devem ter participado simulta

nsformação mental que Goya experimentou.Sua primeira reação à nova situação se produz em sua prática de pintor. Em 4 de jane envia onze pequenos quadros a Bernardo de Iriarte, amigo “esclarecido” e um dos cademia de San Fernando. Os quadros são acompanhados de uma carta que explica a les pela doença que o pintor acaba de sofrer:

Para ocupar minha imaginação mortificada pela consideração dos meus males, e para compensar em parte as graneles me ocasionaram, comecei a pintar um conjunto de quadros de gabinete nos quais consegui fazer observaçõenão têm lugar nas obras por encomenda, em que o capricho e a invenção não podem permitir-se livre curso.

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oya acrescenta que sua remessa é uma maneira de tornar públicos os quadros, de “snsura dos doutos”; e, portanto, de indicar ao mesmo tempo que eles estão prontos (nãboços) e merecem ser vistos pelos conhecedores.A carta mistura, como ocorre frequentemente em Goya, preocupações materiais (“candes despesas”) e exigências espirituais. Por causa da doença e da nova enfermidatra coisa que não quadros de encomenda, pela primeira vez é impelido uniccessidade interior, pela carência de expressão; a mudança é tão importante que deve m todas as letras. Havia sido preparada nas cartas de Goya anteriores à doença, só qais vagos. “Prefiro fazer ainda outra coisa que será mais do meu gosto”, escrevia a Zde janeiro de 1778, antes de ser um pouco mais preciso, dez anos mais tarde: “No te

stasse, eu poderia fazer coisas do meu gosto, perspectiva que mais acaricio no mundo1788).As palavras de sua nova carta à Academia são escolhidas com cuidado. “De gabineui, de pequeno formato; “imaginação” deve ser entendida no sentido de mente, e não e só pensa em sua doença). Mais importante: através dessas imagens livremente eso produzidas sob encomenda, Goya faz “observações” daquilo que existe fora delmpo, essas obras cedem espaço ao “capricho”, aqui no sentido de fantasia e de linvenção”. Encontra-se, portanto, uma articulação original entre o observado e o inveal e o imaginário: enquanto os outros pintores escolheram praticar ou um ou o outroer manter simultaneamente os dois, enriquecendo cada um pelo outro. Através dabilidade de expressão, afirma-se algo de novo: o imaginário não se opõe ao rntrário, permite revelá-lo. Uma segunda carta a Iriarte, alguns dias mais tarde, descre

m dos quadros,O pátio dos loucos (GW 330). Na mesma época, uma carta a Zapater dizisa: “Escolhi a liberdade e trabalho para conservá-la” [1793]; alguns anos antes, ergia de seu amigo, Goya já se situava assim em relação a ele: “Tens tudo na mangvenção em pintura” [fevereiro de 1784].Os quadros acompanhados pela carta têm, assim, um valor de manifesto: comprovamdesgosto no qual a nova enfermidade deve tê-lo mergulhado, Goya não perdeu sua

ntar. Ao mesmo tempo, revelam ao mundo a mutação que ele sofreu em consequêncrtanto, têm uma importância excepcional. A Academia acolhe os quadros enviados ccomo “diferentes cenas de divertimentos nacionais”, sem dúvida por causa das

uromaquia que figuram no conjunto. Mais tarde, Goya retoma os quadros e os lecionador. Essas obras são identificadas hoje como uma série de quinze pequenos ze enviados à Academia e outros quatro de mesmo estilo) pintados sobre folha de 7-330 eGW 929). Todas representam cenas realistas, e não seres de fantasia, o que torGoya um pouco mais enigmáticas. Dividem-se tematicamente em dois grupos:

uromaquias, e as outras sete correspondem a assuntos variados.

As cenas de tauromaquia, sobre as quais também é possível pensar que precedem

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ença, representam os diferentes momentos de umacorrida, desde a escolha dos touros (GW

a evacuação do animal morto (GW 324). Recordemos que, na época, a tauromaquia é deipendiada pelos amigos “esclarecidos” de Goya, o qual, por sua vez, jamais renuncis seus gostos “plebeus”. Portanto, autoriza-se por sua doença a mostrá-los aqui, comixado de preocupar-se com a impressão que iria causar. Pode-se observar, aliás, qura tapeçarias contêm numerosas cenas da vida cotidiana das pessoas comuns opulares, mas nenhuma tauromaquia. Nos oito quadros, três retratam a morte, a do picaGW

do touro (GW 323 e 324), e cinco mostram arenas semelhantes às de Sevilha, ondcontrava pouco tempo antes de adoecer (as outras três devem remeter a lembngínquas; tem-se a impressão de estar numa aldeia). Todos ilustram a notável períciapresentação de corpos em movimento.Entre os outros sete quadros figuram, de saída, duas cenas de teatro popular, qualmente corresponder à designação “divertimentos nacionais”. SãoO vendedor de marW 326) eOs cômicos ambulantes (GW 325). O primeiro, raramente exposto (e cuja autenntestada), representa, de frente, um grupo de crianças cativadas por marionetes e qrsonagem central, o vendedor, que usa uma capa escura e um chapelão. Este últimstas, e sua silhueta esconde o que ele mostra ao seu público. As crianças olham amo nós olhamos as crianças: para nós, o que constitui o espetáculo são os espectadoles está um adulto que parece totalmente estranho à cena: sentado, numa postura disteolhar das crianças e do vendedor, dirigindo-o para um objeto externo ao quadro. A imis adultos introduz certo mistério na cena: um nos é escondido, a presença do outro é

rostos das crianças não estão propriamente pintados, são simplesmente indicado

sencialmente ao seu olhar cativo (“toda a pintura está nos sacrifícios”). O local ondeena, ao ar livre, é bastante indeterminado: compõe-se de massas de cor às quais faltaO segundo quadro (il. 3) comporta uma inscrição, “aleg. men.”, abreviação paenandrea”: é uma frase dacommedia dell’arte, que gosta de invocar o dramaturgo grego Mescolha do ponto a partir do qual vemos a cena é singular, mostrando-nos os artistasblico que fica à direita deles, mas não aquela a sua frente. Esses espectadores sãoistentes do que as crianças no quadro precedente; seus rostos permanecem imprecidivíduos, mas sim os membros intercambiáveis de uma multidão, reduzidos a simpler; a multidão é, portanto, uma soma de indivíduos que apaga a singularidade deles e a

ma vontade e uma personalidade comuns. O desaparecimento dos traços dtencialmente ameaçador, essa multidão anônima — entidade que pela primeirapresentada dessa maneira na história da pintura — obedece às suas próprias pulsõescunstâncias, pode transformar-se em “populacho”, para retomarmos um termo de GoyA cena representada pelos atores mostra Polichinelo que leva consigo Colombina,rplexo de Pantaleão, o tapeado; ao mesmo tempo, Arlequim diverte o públ

alabarismos com dois copos cheios de vinho, enquanto um anão dança na parte

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rado, também segurando uma garrafa de vinho e um copo: a embriaguez anunciada dução da beldade. Pantaleão e Colombina estão em trajes burgueses, ao passo qrsonagens são simples saltimbancos. Arlequim e Polichinelo usam máscaras — signar sua identidade, mais do que escondê-la. Portanto, esse tipo de espetáculosprezado pelos “esclarecidos”, retém a atenção de Goya, como se o teatro pudesse dibre os comportamentos humanos mais diretamente do que os gestos observáveis na vpintor compartilha esse interesse pelo teatro com outros artistas do séculoXVIII: basta pen

atteau, em Magnasco, em Hogarth, e mais tarde em Füssli ou em Giandomenico Tiepoadro precedente, a paisagem é mostrada de maneira surpreendente: o céu é da mesmontanhas no horizonte, e estas mal se distinguem da cortina atrás dos artistas e do esal eles se encontram. As massas de cores se sobrepõem às formas.Três outros quadros já não têm nada de “divertimento nacional”, exceto se tompressão num sentido irônico: trata-se de cenas de violência. Um deles éO assalto à diliW 327, il. 4). Não é a primeira vez que Goya pinta situações desse gênero. Um qutidiana datado dos anos 1770, que não é um cartão de tapeçaria, já mostra Bandidos assa

ma diligência (GW 152). Dez anos mais tarde, em 1787, Goya pintou para o duque de Ogostos esclarecidos,O assalto à diligência (GW 251), de feitura bastante livre. Mas o tr

do ao mesmo assunto no novo quadro é diferente: em vez do ambiente bucólico — u idílico —, descobre-se um lugar sinistro, rochoso e desértico; as cores claras e vz a um magma lamacento, muito semelhante àquele que rodeava os artistas dacommedia deo quadro de 1787, viam-se cadáveres, mas pelo menos os bandidos escutavam as súpimas; estas estavam amarradas, e não mortas. Na nova imagem, assiste-se a u

minação dos importunos: os salteadores massacram com indiferença, olhando parenhum vestígio de uma visão romântica dos fora da lei: são assassinos sem piedade. Aostra aqui em estado puro, indiferente a qualquer norma social.A segunda cena se desenrola no cárcere ( Interior de prisão, GW 929, il. 5). Sob uma voóbada, iluminada a partir do fundo, jazem sete homens em andrajos. Todos estão guns mais cruelmente do que outros, pelas mãos, pelos pés, pelo pescoço. Suas postusespero: eles estão condenados a uma imobilidade da qual só poderão sair com a minosos, como, por exemplo, os bandidos do quadro precedente, agora aprisionados

caso, sua sorte não é menos cruel do que a de suas vítimas: a morte rápida de uns equnta dos outros, a violência impessoal da Justiça não é menos impiedosa do que aquels salteadores. Os corpos deles parecem bastante frágeis em contraste com a espessure os rodeiam. Mais ainda do que no quadro precedente, as formas se interpenetram, to contaminadas pelo tom cinzento do lugar.Por fim, a última cena,O pátio dos loucos (il. 6), situa-se num manicômio e é bem dgunda carta de Goya a Iriarte: “Representa um pátio de loucos no qual se veem dois

mpletamente nus, enquanto apanham do homem que os vigia, e outros [vestidos] com

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na à qual assisti em Saragoça)” (7 de janeiro de 1794). As posturas assumidas peloo teatrais que foi possível especular se não se tratava da cena de um espetáculo visto

o que parece pouco provável. Em contraposição, pode-se constatar que esseanicômio se assemelha de fato a uma cena de teatro, e a gesticulação dos loucos, assiretas exageradas, lembra a dos atores ou dançarinos profissionais, só que, aqui, nfundem com seus papéis. Como naquelas duas obras,O assalto à diligência e Interior de pmos impressionados pela quase monocromia do quadro: o solo, as paredes, os corpo

bertos parecem participar da mesma substância. A frase “eu assisti a essa cena”melhantes, que Goya empregará depois) não deve ser tomada muito ao pé da letra: elntor se inspirou em fatos cuja autenticidade ele garante, e não que os reproduz com exEssa é a primeira imagem de loucura em Goya, que mais tarde retomará com frequênzão e da desrazão, a tal ponto que, durante longos anos, será propagada uma lenda segóprio pintor teria conhecido a loucura. Nenhum fato de sua existência confirma pular. Os “esclarecidos” de seu tempo encaram a loucura como uma simples fcadência; na estética romântica, que começa a se afirmar já no início do séculoXIX, a loucurntrário, valorizada como a manifestação de um estado extremo da humanidade — rente próximo do gênio. A atitude de Goya, desde essa primeira imagem, é outraucura não tem ligação nem com o inumano nem com o demoníaco, não é uma simplem um descolamento heroico do indivíduo às regras sociais. Os loucos de Goya sãmpo bizarros e familiares; é que, longe de nos ser estranha, a loucura está em nós, andição humana permitem iluminar-lhe o centro. Pode-se também pensar que nfinamento, comum à prisão e ao manicômio, não veio do nada na mente de Goya,

scobrir o isolamento imposto pela surdez. Doravante, o louco e o prisioneiro são ele Os dois últimos quadros dessa série representam por sua vez cenas de violência,vem ao desencadeamento dos elementos naturais:O naufrágio (GW 328) eO incêndio (GW as imagens de grande força.O naufrágio mostra um grupo humano feito de mortos e deeio das ondas, alguns estendidos sobre rochedos; no centro, uma mulher ergue em vra o céu.O incêndio (il. 7) substitui o terror das águas pelo das chamas que parecem avgrupo de homens, mais numeroso e mais compacto do que o do Naufrágio; os corpos, stidos, são como que impelidos pelo sopro do fogo, alguns — doentes? feridos? mrregados pelos companheiros. Os rostos são pouco marcados, as roupas e os corpos confundem: os indivíduos não existem mais, tornaram-se simples ingredientes de

mana em ebulição. Aqui, saímos do campo da representação de um evento real, aindaquadro de Goya assume uma dimensão simbólica. A luz do fogo clareia, fugitivmanidade mergulhada nas trevas, carregada por um turbilhão. Esse incêndio não seomento preciso, num lugar específico: revela o estado do mundo inteiro, e ao mesmo tisa do interior de cada ser humano. As catástrofes naturais tornam-se o emblema de u

existência; o caos que elas provocam é tudo, menos eufórico.

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Esses dois quadros mostram uma extrema tribulação humana; contudo, não podem semelodramáticos nem de sentimentais: com um agudo senso do movimento, e tamb

ecisão um tanto fria, Goya se empenha em pintar a impotência das vítimas. Pode-se dtrês precedentes, esses quadros figuram entre as primeiras representações, na pintura

ma violência sobrevinda na existência ordinária e comum, capaz de atingir qualquer o é aliviada por nenhuma alusão mitológica, nenhum olhar satírico, nenhuma hielicidade que não deixa esperança — nem divina nem humana. É impossível descr

ogios ou reprimendas; mais do que referir-se a certezas morais, eles despertam angergulham na perplexidade. O destino, que infligiu a Goya a enfermidade da surdez,esmo tempo os olhos sobre um aspecto da vida: a impotência ante o desastre.A maneira como o pintor executa sua tarefa impressiona pela extrema liberdade. Todossa série tratam de temas marginais (tauromaquia ou teatro, violência ou loucura), qucontrar espaço nas encomendas oficiais; além disso, os sete últimos, em relação àoca, são “pinturas inacabadas”, realizadas com “menos cuidados”. Ao enviá-las oya significa que, apesar das aparências, elas estão de fato “acabadas”, pois consideito que produzem. Em seus predecessores, observavam-se tais exemplos unicamentee não se destinavam a ser mostrados ao público. Aqui, a perspectiva já não é rinstruída, a ordem do mundo é abalada. Os limites dos objetos se embaralham e nsição de um a outro, pois é assim que eles se oferecem ao olhar do pintor. erpenetração das sombras e das luzes que organiza os quadros. O traço que deveriajetos é descartado em proveito das massas de cores, e estas já não têm uma função d

ais do que refletir a realidade dos objetos, parecem expressar a atitude do pintor diant

e mostra e apresentar uma moldura apropriada à cena que ali se desenrola.Goya já não pinta o mundo tal como este existe em si mesmo, mas a visão que um ile: a percepção subjetiva tomou o lugar da objetividade impessoal, e, doravante, supira a reproduzir formas, mas sim a captar o clima de um lugar, de uma ação, de umas ideias, ele preferiu “seguir as inclinações de seu próprio espírito”, em vez de gras acadêmicas. Mas isso não significa em absoluto que ele ceda a uma complacêne dê prioridade ao seu ego: Goya está de todo voltado para o mundo, só que simple o conhecimento é forçosamente subjetivo. Mas a subjetividade de que ele dá proópria, o espectador é convidado a compartilhá-la, a fim de que ela venha a ser dividual não se opõe ao comum.Portanto, de vários pontos de vista, esse grupo de quadros datados de 1793 anunciam as tradições da pintura europeia, tais como foram estabelecidas quase quatrocentoprodução de quadros havia sido integrada em um sistema global que fixava o sentidles. Os gestos humanos, assim como os objetos pertencentes à natureza inanimada, p

gnificação convencional, que até se podia encontrar repertoriada nos tratados de ic

agens serviam para decorar as igrejas, os palácios ou, um pouco mais tarde, as res

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cionados ricos, e correspondiam às exigências dos que as encomendavam. Pois bem,dor dessa ordem que parecia destinada a durar eternamente, recuou, e os regimes p

vocavam são abalados: a cabeça do rei da França rolou sobre o cadafalso.No mesmo momento, Goya produz quadros que ninguém lhe encomendou, quadromilde indivíduo, decide pintar impelido unicamente pela necessidade interior. Aópria da pintura foi questionada ao mesmo tempo que a da ordem social, aqui e ali va exigência de igualdade.O pedreiro ferido (il. 1) já não correspondia a um có

erpretação bem estabelecido; agora, a própria ideia de um código se torna imadêmicos de San Fernando tentam agarrar-se a categorias antigas, como “dpanhóis”, mas o que têm de divertido as cenas de assassinato, de prisão, de loucura, dturais que afligem a população? Tais cenas já não correspondem a nenhum repertónvencionais. Goya as representa sem nos indicar qual é seu objetivo. Sentiu que elgo de essencial à condição humana; isso lhe bastou para que ele julgasse útil colocá-lhos.A pintura europeia dos séculos precedentes se submetia a uma dupla exigência: prodisabedoria e de moral, em consonância com o discurso da religião ou da filosofia,

mpo seduzir os espectadores pela beleza do quadro, pela harmonia das linhas e das mo a poesia, a pintura deve ao mesmo tempo instruir e agradar, numa proporção varépocas. O estilo neoclássico que domina o cenário pictórico no momento em que G

duziu a instrução a uma conformidade aos temas e aos gêneros canônicos, e a bnamentação harmoniosa. Goya, contudo, rejeita simultaneamente os dois caminhos. o transmitem nenhuma lição, nenhuma mensagem, são representações literais: eis c

la de prisão, um manicômio, um incêndio; mas tampouco revelam uma preocupação s olhos, com as formas agradáveis e a beleza do cenário. Goya está a mil léguas da brazer desinteressado”, identificado na mesma época por Kant como lei fundamental dNa pintura europeia dos séculos precedentes, a submissão ao bem e ao belo droximar-se da verdade: a do mundo visível, a do ser humano. Esse objetivo últimoe Goya conservará. Doravante ele é guiado por uma só necessidade, a de penetrar undo, de surpreender corajosamente, e impiedosamente se preciso, o seu ser. Tendorte e, portanto, defrontado sua própria finitude, ele agora escolhe, ao menos numara, ir diretamente ao essencial. Nem por isso renuncia a representar o mundo, ategorias familiares estejam embaralhadas. “A observação” concerne aos temas; “a aneira de figurá-los.

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ura e recaída: a duquesa de Alba

No decorrer do período 1794-5, Goya trava um conhecimento marcante, o da duquesba, uma das mulheres mais ricas e poderosas do reino, mas também uma das mastumes mais livres. A reputação de Goya como retratista explica o encontro; este, ai

ngular. Goya o descreve numa carta ao seu amigo Zapater: “Ela me procurou no meu alhe pintasse o rosto, e conseguiu; claro que isso me agrada mais do que pintar sobr

osto de 1794). Que cena extravagante! Somente uma pessoa desse nível social pods gestos: pedir ao pintor do rei que a maquile… Também se fala de um retrato (sem1, bastante oficial); no mesmo momento, em 1795, Goya pinta um retrato do duque (GW 350)em ela se casara aos treze anos de idade. Outro quadro, menor e bastante cômico, mna íntima, sacudindo sua camareira, que fica muito assustada (GW 352). A duquesa tem eos e Goya, 49.A continuação dos fatos sugere fortemente que a relação tomou um rumo erótico, emcumento o ateste formalmente (certos historiadores contestam a existência de qualq

lante entre os dois). Em maio de 1796, Goya está na Andaluzia para pintar imagens rmigos e admirar outras pinturas. Em 9 de junho, o duque morre de repente, aos qando se encontrava sozinho em sua propriedade de Sevilha. E, em julho do mesmssa uma temporada em Sanlúcar, outra propriedade do duque, ao mesmo tempo que ba. Consta que ela se ausenta dali no mês de setembro, mas retorna logo depois; qube-se apenas que, em dezembro e janeiro, ele está em Cádiz e, em 1o de abril, encontraadri. Terá permanecido em Sanlúcar em outubro-novembro de 1796? Voltou lá em fev1797? Em fevereiro desse mesmo ano, em Sanlúcar, a duquesa dita seu testament

neficiários figura o filho de Goya, Javier.O primeiro indício claro de que a relação se tornou mais íntima surge no álbum que preencher com desenhos no início do verão de 1796, dito álbum A. De fato, ao mporada, o artista inaugura uma prática à qual dará prosseguimento até sua morte, tride: desenha regularmente aquilo que vê ou aquilo em que pensa, constituindo assimdiário de bordo visual, destinado a ele mesmo ou a amigos próximos. As imagens de

veladoras, pois nelas descobrimos a duquesa na intimidade, penteando-se (GW 358), acarici

rotinha negra que ela adotara (GW 360) ou escrevendo (GW 374); tem-se a impressão de qde observá-la de perto na vida cotidiana. Os outros desenhos do mesmo álbum s

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rtemente ainda, uma atmosfera de intimidade e de sensualidade: neles vemos jovens nacompanhadas. A relação íntima entre o pintor e a duquesa não pode ter começado duque, deve tê-la precedido ao menos em alguns meses.

Uma fase ulterior da relação é sugerida por um retrato da duquesa pintado em 1797á vestida demaja e traz nos dedos dois anéis em que estão escritas as palavras “Goy

W 355). No chão, também se podem ler outras palavras, traçadas na areia: “Solo Golo (“somente”) foi recoberto numa data ulterior, e foi a restauração do quadro que o fepouco provável que esse quadro, que anuncia a proximidade entre o pintor e sua mculado em público. Sabe-se que a tela permaneceu no ateliê de Goya ao menos até 1rma, portanto, ele a pintou para si mesmo. O que também se observa nesse quadrome, e até autoritária, da duquesa, cuja mão aponta a inscrição no solo. Esse retrato é senos rígido do que o precedente.A imagem da duquesa também aparece nosCaprichos, que datam essencialmente de sim, oCapricho 19 (GW 489), no qual se mostram asmajas que depenaram seus

spirantes e se preparam para assá-los, representa também, nos ramos de uma árvore,e com os traços da duquesa, à qual se agarra um homem parecido com Goya; outra avjes militares, se aproxima. NoCapricho 61 (GW 573), intituladoVolaverunt , que signifiim) “alçaram voo”, “partiram para sempre”, a duquesa voa: agora tem asas de borbocabeça e também uma grande capa negra presa aos braços; um grupo de três asculinos está como que suspenso entre seus pés. A imagem aparece no meio de uprichos que mostram bruxas, e os comentários contemporâneos se referem ao mundoa interpretação não é evidente, mas em todo caso a duquesa parece levantar voo e desso que nos retratos mantinha os pés bem firmes no solo). Seria para dizer que ela ge, em companhia de outros homens?É o que sugere outra imagem contemporânea, sem dúvida excluída dosCaprichos portadora de uma alusão demasiado específica (GW 619, fig. 2). Seu desenho preparatório GW

z a seguinte legenda:Sonho. Da mentira e da inconstância. Essas imagens contam totória. Nelas se vê uma mulher dotada das mesmas asas de borboleta que noCapricho 61; pacom a duquesa, mas sua cabeça tem duas faces. Uma destas olha um homem com

oya, choroso, agarrado ao braço da mulher numa atitude de súplica, como se pedisnsolo; a outra está voltada para outro homem, novo pretendente, que se aproxima coloante dos lábios: pede silêncio, não convém trair o segredo! Uma segunda mulher, queserva, é igualmente dotada de dois rostos, participa da duplicidade de sua patroa. Páscara bloqueada entre duas bolsas, plantada diante desse grupo, exibe um sorrisoservando atentamente o confronto de uma serpente (enganadora) com duas rãs.Reencontra-se essa assimilação da mulher à serpente num desenho datado da mesm8) que pertence a uma série na qual o personagem humano está diante de um espelh

volve uma imagem que, em vez de assemelhar-se a ele, revela sua verdadeira natu

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zes encarnada por um animal. No mencionado desenho, uma mulher com o tipoantém-se então diante do espelho, e a imagem que ela vê é a da serpente.Se aceitamos buscar nessas imagens os vestígios de experiências vividas, podemos quência dos acontecimentos da seguinte maneira: após um primeiro período duranboçam movimentos de aproximação (em 1794-5), em 1796 instaura-se entre o home

ma intimidade que será rompida pela duquesa nos primeiros meses de 1797. Deve-sese “Solo Goya” como emanada da duquesa, que por esse gesto exige a submissão inc

ntor como preço de seu consentimento? Ou como o desejo formulado pelo pintor, quever que ela lhe escapa? A fase seguinte é a do ciúme e da separação: a duquesa se afando em direção a novas aventuras (“mentira e inconstância”).

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Fig. 2.Sonho. Da mentira e da inconstância.

Esse episódio biográfico não é anedótico; ele marca por sua vez a transformação inteidentemente, estamos aqui no terreno da hipótese, mas esta encontra apoio nos rasr Goya em suas imagens. Após o trauma da doença, que deve ter-lhe causado umavelhecimento, de isolamento e de inferioridade, o pintor não pôde evitar sentir-se revenção e pela benevolência a ele demonstradas pela mais bela e rica dama da Espanforia é de curta duração — o tempo do álbum A, com imagens que figuram entre as m

obra de Goya. Para a duquesa, a aventura com o pintor célebre (mas um tanto velhoma, surdo) parece não ter sido mais do que uma distração entre outras; alguns m

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áximo, um ano mais tarde, ela a interrompe tão subitamente quanto a iniciou. Após susa dama fulgurante, Goya parece afundar ainda mais no isolamento e na solidão. O reditado ser um remédio torna-se um agravamento da doença. Agora está velho (51 afraquecido; dissipa-se a ilusão de que ainda pode seduzir e participar da troca passso, da vida ativa. A doença, durante o outono de 1792, o tinha liberado definitinvenções impostas pela pintura contemporânea, quer na escolha dos temas, quer npresentar o mundo visível. A ruptura afetiva, na primavera de 1797, leva-o eferencialmente para seu universo interior: é este que, de agora em diante, ele buscaformas imaginárias afluem ao seu pincel, sem retenção.

A duquesa morre em 1802, aos quarenta anos (como o duque), de um mal misterioso;que foi envenenada. Goya lhe desenha um projeto de mausoléu (GW 759) — e guarda corato dela.

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Fig. 3.Caricatura alegre.

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Máscaras, caricaturas e bruxas

Pode-se observar a evolução de Goya no álbum de desenhos seguinte, dito álbum de onvém lembrar aqui que, desde 1796 e até sua morte, em 1828, Goya não se contentapintores antes dele, em praticar o desenho na intenção de preparar suas pinturas ou s

as sim compõe conjuntos coerentes, hoje chamados “álbuns”, nos quais os desenhos sna maioria, dotados de uma legenda — prática inovadora, na época. Ao todo co

buns, que os especialistas em Goya designam pelas letras do alfabeto, de A a H. Apóherdeiros do pintor desmontaram os álbuns para que cada folha pudesse ser vendidaizmente, os historiadores atuais conseguiram reconstituí-los.O álbum B segue imediatamente o álbum A, que contém os croquis da duquesa de Alesmos anos 1796-7. Na primeira metade (38 desenhos, dos 74 preservados), compõe-e registram observações do mundo exterior:majos e majas, patrões e servos, casais diver7 a 414). Não estamos longe da realidade representada pelos cartões de Goya anterstinados a servir de modelos às tapeçarias. As coisas mudam brutalmente no meio do

rresponde provavelmente à primavera de 1797: formas antes desconhecidas irromsões regozijantes passa-se às imagens satíricas. Esses desenhos anunciam e preparalume de gravuras que Goya publicará pouco depois, em janeiro de 1799: osCaprichos.meira vez também aparecem, ao lado das figuras desenhadas, legendas e títulos gmo Bruxas, Máscaras, Caricaturas, como se o pintor sentisse a necessidade de oerpretação da imagem mediante uma palavra.*

Cerca de metade dos desenhos que acompanham essa ruptura evoca sempre os mese os precedentes, mas parece que a atitude do artista ganhou mais importâncipresentação fiel da realidade. Reencontra-se, assim, o mundo dosmajos e dasmajas, os jogquetismo e de sedução. Contudo, a sensualidade é mostrada mais abertamente, e ao mdetalhes dos corpos e dos rostos são eliminados em proveito dos efeitos de luz e de

utros desenhos figuram personagens que assombram as margens da sociedade, pndidos. Causa ou efeito dessa mudança, a própria técnica de Goya evolui. Pode-ssenho B 85 (GW 443), que figura no meio da série consagrada às prostitutas e trazgenda: É verão, eles tomam a fresca e se catam pulgas. Em primeiro plano, duas jovens s

ão sentadas diante de uma janela aberta; atrás delas encontra-se um homem, eressado sobretudo nas partes dos corpos femininos onde as pulgas poderiam se

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stos são apenas esboçados; a atmosfera de conjunto é enfeitiçante e lembra fortecontramos em alguns desenhos de Rembrandt, pintor admirado por Goya.Vários outros desenhos mostram indivíduos com máscaras. Às vezes a ocasião é pr uma festa religiosa durante a qual as pessoas as usam, o Carnaval ou a Semanaanterá por muito tempo o gosto por essas mascaradas, que reencontraremos nos qdios. Outras vezes, a máscara assume uma função específica, a de revelar a identidarsonagem que a usa. Ela esconde o rosto, mas mostra a interioridade invisível. É o cmens disfarçados por cabeças de jumento que contemplam o peito de uma mulher GW 41quele que gostaria de fazer-se passar por um homem letrado (GW 432). Para Goya, a máscavelar a verdade, ao passo que o rosto é enganador. Aqui, estamos longe do mundnghi, o pintor veneziano contemporâneo, em que a meia-máscara negra dissimula

divíduo.É que o real não é o verdadeiro. Todo mundo constrói a própria identidade; no divíduo acaba por fabricar para si uma série de personagens, cujos papéis ele assum

cunstâncias. Mas, aos olhos de terceiros, nada assinala que se trata de fabrintraposição, se o indivíduo usar uma máscara, em vez de deixar-se enganar por seu dconsciente dele e não o esconde dos outros; se for bem escolhida, a máscara revelasso que o rosto a dissimulava. Ao impor tal máscara aos rostos que desenha, Goya exmpo o caráter construído de cada indivíduo e aquilo que seus atos públicobitualmente; substitui as poses inconscientes e dissimuladas por máscaras escolhidas se uso da máscara faz pensar no teatro; encenado, o vivido deixa de ser óbvio; tornad

e se problematiza. O homem se revela travestindo-se. Para tornar críveis os sempenha em cena, o ator deve abastecer-se em profundezas de sua mente de cuja ex mesmo suspeitava. O personagem que ele cria — uma máscara, se quisermos — afa

entidade habitual, e ao mesmo tempo lhe permite tornar-se mais verdadeiro. Assim, a mundo melhor do que o faz a existência ordinária; a máscara diz a verdade escondidaentirosa da face nua.As caricaturas, nesse sentido próximas das máscaras, tornam mais simples e amplificrosto para tornar visível aquilo que habitualmente se tenta esconder. A diferença e

side no fato de que as máscaras são atribuídas aos personagens representados, aoricatura provém do modo de representação. Goya, portanto, vai forçar o traço, elimintalhes inúteis e recorrendo à hipérbole, o que nos faz descobrir o avesso desses indiderrisórios, ingênuos ou pretensiosos. À diferença de outro artista que o precede de

ra ele conheceu, William Hogarth, o pintor inglês da primeira metade do século, aricaturas” não se opõem aos “caracteres”; o exagero é um caminho para a verdade dque uma expressão do julgamento feito pelo artista. É o caso do marido enganado pel8), do amante de música pretensioso (GW 425), das mulheres bêbadas (GW 427) ou do ch

e arranca dentes (GW 428). Ou ainda o dos monges, glutões e lúbricos, que se em

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idamente (emCaricatura alegre, GW 423, fig. 3), um dos quais, em primeiro plano, teme se transformou num pênis tão pesado que ele precisa de uma muleta para apoiá-lo.Podemos nos surpreender por encontrar a palavra “bruxas” em companhia dos outronéricos, “máscaras” e “caricaturas”, que se referem a um modo de existência, e não seres. Tal proximidade pode ser interpretada como o indício de que as bruxas que v

veriam ser tomadas ao pé da letra: por sua vez, elas não passam de representações cascaradas de seres comuns. Todas essas visões imaginárias permitem acessar a

entidade das pessoas, melhor do que o fazem as formas visíveis a olho nu. O mesmo srie já evocada de personagens diante de um espelho: a imagem refletida se repressiva do que o original (por exemplo, no desenho da mulher-serpente), o invisíeciso do que o visível. É também nesse sentido que poderíamos compreender uma fema de sua lavra, enviado ao amigo Zapater, Goya aplica, por brincadeira, a ele me

m pintor-diabo” (19 de novembro de 1788)… Em outra carta a Zapater, Goya indica àe, por trás das bruxas e dos outros demônios que ele representa, convém ver simços dos seres humanos: “Eu já não temo as bruxas, nem os duendes, nem os fantas

gantes fanfarrões, nem os poltrões, nem os larápios, nem qualquer tipo de ser, não tenguém, exceto os humanos” (fevereiro de 1784).Dois desenhos do álbum de Madri mostram bruxas. No momento em que os produz, Gpróximo do autor dramático Leandro de Moratín, homem “esclarecido”, apaixonadobruxas e da Inquisição, que proporcionou ao pintor as informações necessárias às sumeiro dos desenhos (GW 416, fig. 4) tem a legenda Bruxas prestes a voar ; ele será reteriormente emCapricho 70 (GW 591), denominado “Profissão de fé”.

Nele se vê uma aprendiz de feiticeira com uma máscara de raposa, termo que em gíostituta, carregada por um homem-bode (um demônio), e que fita um livro, sustentadr outros dois personagens caricaturais: estes são feiticeiros já qualificados que, vestientados sobre um altar, apresentam à nova candidata seu livro sagrado, uma espécie uxaria, no qual ela poderá aprender a lista dos seus deveres e sobre o qual deverá juobediência. Aos seus pés jaz uma caveira. Mas afinal trata-se, aqui, de bruxas imagsejos familiares a todos?Esta última hipótese se reforça quando observamos a segunda imagem de bruxas no m

W417, e mais ainda um desenho contemporâneo que lhe é aparentado, denominado Proclamaçuxas (GW 626, fig. 5). Nele se vê uma cabeça masculina gigantesca cuja boca abercrementos de outro personagem, um feiticeiro, o qual se apresta a soprar entre as nádança, transformando-a assim em instrumento de sopro; a gravura relacionada com epricho 69 (GW 589), contém igualmente uma cena de pedofilia. Em primeiro plano, uticeiro faz o mesmo, mas invertendo a direção de seu “instrumento”: ele sopra na bança, o ar sai entre as nádegas dela. A ideia das “crianças-fole” provém dos tratados

as aqui tornou-se o ponto de partida de uma imersão nas fantasias do pintor. O mundo

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o é senão um pretexto, e essa visão parece alimentar-se num imaginário pessoal, sses manuais. Nota-se ao mesmo tempo que a técnica do desenho se transformonaram-se contrastados, as linhas precisas são substituídas por aguadas.Pouco tempo depois, sem dúvida no início de 1798, as bruxas passam dos desenmbar das superstições do povo está em voga entre os “esclarecidos”; o duque e una, que participam disso, compram então de Goya seis quadros desse gênero, d

gistros como “cenas de bruxas para [sua] casa de campo”. Eles são entregues em ju

qui, o mundo da bruxaria encontra o modo de representação inaugurado pelos quadrosVárias telas pertencentes a esse grupo são inspiradas em peças de teatro contempresentação de um fato continua sendo mais confiável e mais expressiva do que o so deO convidado de pedra (GW 664) ou de A lâmpada monstruosa (GW 663, il. 8). Na pmoraO enfeitiçado à força, na qual se inspira este último quadro, o personagem prindre supersticioso que acredita ser objeto de um malefício e, para permanecer vivo, dchama de uma lâmpada do diabo — lâmpada “monstruosa”, como indicam as palam canto do quadro (“Lam. desco.”, porlámpara descomunal ). O padre ocupa o centro doá rodeado por suas visões de pesadelo: diante dele, o diabo chifrudo que segura a ltro lado, três jumentos-demônio que caminham sobre as patas traseiras. A cor inadro, ultrapassando os limites dos seres e dos objetos, como nas telas de 1793, potio dos loucos (il. 6); trata-se agora de um dégradé de vermelhos e marrons. Epresenta o pavor angustiado do personagem central; pouco importa saber se os seres

seu redor existem realmente ou se são apenas fruto de sua imaginação, o essencredita nisso — pois sua angústia, essa sim, é bem real.

Aquelarre (ouO sabá das bruxas, GW 660) representa o grande bode (ou o diabo) rodeaupo de feiticeiras que trouxeram crianças para sacrificar. Na época, tanto na Espantros lugares, a mortalidade infantil é muito elevada, o que incita a buscar uma razãodesgraça. Quem melhor do que o diabo e seus acólitos poderia ser o responsáv

mbém pensar que existe uma relação entre a frequente representação, na obra de Goyptadas e sacrificadas pelas bruxas e, em sua vida, a morte repetida de seus filhos rec

m número de seis pelo menos.Voo de bruxos (GW 659) mostra três feiticeiros (de novo, e, atravessando a noite negra, carregam pelos ares o corpo nu de uma vítima, plantan

m sua carne. Duas testemunhas assistem apavoradas à cena, mas esforçam-se por não vbre os olhos, a outra foge cobrindo a cabeça. Esses demônios atléticos parecem pais, não têm nada de fantasmático.

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Fig. 4. Bruxas prestes a voar .

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Fig. 5. Proclamação de bruxas.

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Em outros quadros bastante inquietantes, as imagens são menos convencionais, caso A cos bruxos (GW 662), no qual se veem quatro personagens meio humanos, meio animais,

m torno de sua comida, ou de Exorcismo (GW 661, il. 9). Neste último quadro, à direita, mem apavorado. A julgar pelo camisolão de dormir que constitui seu único trnhando — mas, evidentemente, não sabe disso. Embora esteja quase nu, encontra-sm lugar indeterminado, sob a luz esbranquiçada da lua. Uma espécie de bruxo ulher?), envolto num tecido amarelo, estende as mãos para ele, tentando agarrá-lo, o ror que vemos em seu olhar. Inclusive porque essa figura ameaçadora não está isolaarecem quatro de suas comparsas, vestidas de preto. Cada uma traz um instrumento suas ações mágicas: a primeira estende à frente um cesto cheio de criancinhas nuas,

rmulas em um manual de bruxaria, à luz de uma vela, a terceira enfia agulhas numa bos mãos, a quarta benze todo o ritual. Acima delas flutua um anjo-demônio que segurrias aves noturnas o acompanham.As cabeças monstruosas das bruxas que se veem nessa tela haviam aparecido pela prntura de Goya dez anos antes, em um quadro que mostraSão Francisco Borgia (esboçoGW

adroGW 243, mais convencional), já destinado, como os de bruxaria, ao duque de rtenciam a fantasmas agrupados em torno do leito de um homem moribundo e repenhum efeito aparente — pelo santo. Tais fantasmas, portanto, estavam presentes na mtes de sua doença; mas agora podem manifestar-se sem reservas. É como se a doençazes a dispensar não somente seus ouvidos, mas também seus olhos: doravante ele osi mesmo.Goya não é o primeiro artista, nem na Europa nem na Espanha, a representar seres

o existem na realidade. Desde a Idade Média, encontram-se na decoração das igrejasgem não está nem nos textos sagrados, nem na observação do mundo circundante, mimaginação dos escultores e dos pintores. Esses monstros, quimeras e híbridos,

mbinações inexistentes de elementos perfeitamente realistas, em geral têm uma funpresentam, por exemplo, os seres que povoam o inferno, cujos tormentos os humildvem temer; ao mesmo tempo, encarnam as fantasias ou as pulsões sádicas dos artist

ma matéria aos devaneios dos espectadores. Goya pode ter visto os quadros de Hieropintor do final do séculoXV, início do séculoXVI, já bem conhecido, e de quem hav

adros na Espanha — que mostram seres compósitos, com cabeça de homem e corpolagarto, ou de arbusto, ou mesmo de casa. As visões infernais de Bosch, que enc

rios de seus trípticos (O Juízo Final , O jardim das delícias, O carro de feno) ou nasTentaçõnto Antão, também representam numerosos personagens oriundos da imaginação do pinA comparação das imagens que se inscrevem nessa tradição com as visões de Gfinir melhor a originalidade destas últimas. Os monstros de Bosch, ao menos para o eculoXVIII, não habitam o mundo humano, mas outro universo, imaginário. A fabri

rece obedecer a operações racionais e controladas: assim, o pintor representa à beir

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ma casa cujo andar superior se transformou numa cabeça masculina. Com isso, as imapanto ou curiosidade, mais do que inquietação. As de Goya são de natureza muito aioria das vezes, apresentam seres que habitam nossa realidade, mas cujos traços são nto de se tornarem apavorantes. Longe de provir de outro mundo governado por leis o nossos próximos — e até uma outra versão de nós mesmos. Para retomar uma fraseosch introduz os homens em seu universo infernal, Goya introduz o infernal no univerAliás, nunca estamos seguros da existência deles no mundo exterior: A lâmpada monstru

resenta — talvez? — como o fruto da imaginação supersticiosa e febril do padr Exorgere — mas sem o afirmar claramente — que esses monstros provêm de um pesadeloormecido. Somos levados a hesitar entre uma explicação que não transgride as leis

m sonho, uma fantasia — e outra que recorre ao sobrenatural — são monstros, demrresponde bem ao nascimento, nesses mesmos anos do final do séculoXVIII, anos de rápido pensamento racional, de uma literatura que faz viver o fantástico e não mais omaravilh

mbaralhamento da fronteira entre real e irreal em vez da instalação tranquila no irreantos de fadas e das lendas. Os personagens noturnos de Goya inquietam precisameno muito diferentes de nós.Um dos autores de narrativas fantásticas merece ser lembrado neste contexto, emmerosas ressonâncias que se podem destacar entre seu destino ou sua obra e as imagata-se do conde polonês Jan Potocki, nascido em 1761, grande viajante, político, liglota. Viveu, entre outros lugares, na Alemanha, onde conheceu Herder e Goethe,de fez amizade com Cazotte, autor de uma narrativa fantástica, e com Germaine de s círculos enciclopedistas. Em março de 1791, Potocki chega à Espanha em co

mbaixador da Polônia. Em Madri, frequenta os ambientes da corte (teria encontrado Gnhecimento com o embaixador do Marrocos, o qual lhe transmite, ao que parece, “lsabor oriental”. Em 1794, empreende a redação, em francês, de um grande roman

anuscrito encontrado em Saragoça, que ele abandona alguns anos mais tarde. Em oma, primeiro em 1804 e por fim em 1810. A versão final é terminada em 1815. Apois, Potocki se suicida de maneira particularmente teatral: ele lima a bola de prata

m açucareiro, até obter o tamanho desejado, e a introduz no cano de sua pistola. Não densagem para explicar seu gesto, mas, ao lado do cadáver, encontra-se uma folha nalgumas caricaturas fantásticas”.O romance narra as aventuras espanholas, e em parte “orientais”, do jovem militar ólogo conta a descoberta do manuscrito, durante o cerco de Saragoça pelo Exército noya visita a cidade nesse momento). Todo o início do livro pode ser lido como a evoundo que as imagens fantásticas de Goya ilustrariam. Durante suas peregrinaçõeorena, Alphonse é confrontado com todos os personagens que habitarão o universo d95 e 1815: contrabandistas, salteadores, ciganos, mas também padres, inquisidore

mbém se verá diante de prisioneiros, de cadáveres, de enforcados. Com frequência, s

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levam a suspeitar da presença de seres sobrenaturais: demônios, assombrações, vesmo o próprio diabo. Quando lemos que “o fantasma abriu uma boca tão grande receu partir-se em duas”, não acreditamos ver uma imagem de Goya? Outras vecontrados por Alphonse são jovens sedutoras, mas ele jamais tem certeza quanto las: “Eu já não sabia se estava com mulheres ou com insidiosos súcubos”. E não semadormecido entre os braços de duas beldades que lhe prodigalizam carícias, ele desp

m patíbulo, tendo nos braços dois cadáveres enforcados. Como o personagem de Exorcismo (

o sabe se sonha ou se realmente está lidando com seres sobrenaturais. Seriam, segunquisidor que o ameaça de torturas, “duas princesas de Túnis ou duas bruxas infamecráveis e demônios encarnados”?2

No final do livro, após incontáveis relatos picarescos intercalados, Alphonse — escobrirá que nenhuma força sobrenatural tinha intervindo: todos os acontecimenrrespondiam a provas às quais era submetido o herói, cuja coragem devia ser arições maravilhosas eram encenações, manipulações, simulações; o uso de sonífplicar os deslocamentos noturnos de Alphonse. Como Goya, Potocki é um partidáriorazão, mas, como ele, sabe que as fantasias humanas que se expressam através das

o bem reais; e que as fronteiras entre loucura e razão, entre aparência e realidade, sãoQuando penetram na França, em meados do séculoXIX, as imagens de Goya são descrservadores atentos, como Théophile Gautier (autor de narrativas fantásticas) ou Bauemplos do gênero fantástico. Este último assim descreve Goya: “O olhar que ele laisas é um tradutor naturalmente fantástico”, ou seja, trata-se realmente de um olhar socomo este existe, mas que ao mesmo tempo revela (que “traduz”) dimensões insus

ssa atmosfera fantástica que banha todos os seus temas” permite a Goya mostrar sso mundo moderno, “horrores da natureza e fisionomias estranhamente animacunstâncias”. Baudelaire insiste nessa proximidade entre os seres imaginários de Ge encontramos no mundo de todos os dias: “O grande mérito de Goya consisteonstruoso verossímil. Seus monstros nasceram viáveis, harmônicos. […] Todas essasas faces bestiais, essas caretas diabólicas são penetradas dehumanidade”. Baudelaire de em absoluto com o exotismo das imagens; elas não nos falam de um outro mun

presentam aquilo que o nosso esconde, por exemplo, “velhas sempiternas lavam e plas jovens “seja para o sabá, seja para a prostituição da noite, sabá da civilização!”.3 Os desas telas de Goya se prestam, portanto, a uma dupla leitura: seu objetivo declarado éperstições; sua mensagem indireta é a revelação de nossos terrores secretos, das visõofundezas de nossa mente. Numa época em que o Iluminismo parece ganhar novosda dia, a posição do pintor (como observa Werner Hofmann em um ensaio sobre Booa preferencialmente um personagem de Shakespeare, Lafeu,4 o qual se pergunta se não ados em nos extasiarmos diante do que nos aparece como o triunfo da razão, ao

tigas superstições, agora eliminadas, continham, sob uma forma disfarçada, reve

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ssas próprias profundezas inconscientes: “ Hence it is that we make trifles of terrors, enrselves into seeming knowledge, when we should submit ourselves to an unknown” (“e nos faz tratar como puerilidades nossos terrores, entrincheirando-nos num suposto nos submetermos a um medo desconhecido”). Goya, porém, sabe encontrar o sentiagens antigas.Tal é a segunda etapa na transformação de Goya entre 1792 e 1798, graças à qualrtões que mostravam as festividades populares se torna o autor dosCaprichos. A prim

nsequência de sua surdez, subverte sua maneira de pintar, introduzindo o olhar subjetjetivo; a segunda, possível consequência de sua desventura sentimental, anima-o a undo exterior e a explorar sua própria imaginação. Ao fazer isso, ele descobre quricaturas permitem visualizá-la melhor do que a representação fiel ao real poderircebe, ademais, que as superstições populares, aquelas que povoam o universo sombrações e demônios, dão forma a essas mesmas fantasias inconscientes. É nesse a exploração vai ao encontro das tentativas dos “esclarecidos” no sentido de scurantismo e, portanto, também as crenças nas bruxas. Nesse plano, o encontro repoal-entendido — mas é um mal-entendido fecundo, pois Goya se beneficiará das psclarecidos” sobre as superstições.A evolução interna de Goya poderia ser apresentada como uma ilustração eloquenteegel acreditava ser o sentido da história da arte ocidental. Desde o fim do períodoclássicra o filósofo alemão corresponde à escultura grega, os homens, explica ele em Estixam de confiar nas formas naturais que eles observam ao seu redor, e o espírito terior para recolher-se em si mesmo”. O artista já não busca reproduzir a beleza da n

m explora e exprime sua vida interior. “A alma não cessa de escavar em suas profuimas.” Essa etapa da arte, que Hegel chama deromântica, desemboca na arte moderna, au tempo — que é também o de Goya —, na qual já nenhuma constrição pesa sobrepresentar, nem sobre a maneira de representá-los, visto que agora tudo depende dssoal”.5 Hegel, que ministra seus cursos de estética a partir de 1818, ignora tudo dera um filósofo, tem notável conhecimento das grandes correntes da arte, o queentificar algumas tendências fundamentais. Quando Ortega y Gasset, mais de cem screve a evolução da pintura ocidental como um deslocamento da atenção, do mundontor-sujeito, não faz senão resumir uma das ideias centrais da Estética de Hegel. Goya, pz, parece ter concentrado em sua própria existência um movimento que, no dizer vou séculos.

oje essas legendas servem de títulos aos desenhos e, por essa razão, estão em itálico neste texto. Já as gravuras tmplo,Capricho 64) e uma legenda (“Boa viagem”), a qual, portanto, figura no texto entre aspas.

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interpretação dosCaprichos

Goya publica osCaprichos, seu primeiro grande conjunto de gravuras acompanhadas dtenta, ao todo), em fevereiro de 1799. Provavelmente, essas imagens foram gravadas meira metade de 1798, no momento em que são pintados os quadros de bruxaria.

ram preparadas por desenhos, os quais, por sua vez, são, em muitos casos, inspiradoscontramos no álbum de Madri (dito B). Num primeiro momento, o artista parece letânea intituladaSueños, sonhos ou devaneios, título que ele provavelmente toma de emstória da literatura. Quevedo, no séculoXVII, havia intitulado deSueños seus ensaios samo um meio de prevenir-se contra os golpes eventuais da censura, mas também de avrenos pouco explorados.Esses “sonhos” (foi possível recuperar 26 deles) trazem, nos desenhos de Goya,dem. A sequência deles obedece a agrupamentos temáticos fáceis de identificar: apaugural (que se tornará oCapricho 43), vêm nove representações de bruxos e bruxas, eze consagradas ao comércio do amor e, por fim, algumas caricaturas. Goya, porém, a

meiro projeto e, quando substitui o primeiro título pelo deCaprichos, também subverte aapresentação das gravuras. As diferentes séries anteriores não são conservadas coas sim entremeadas; a ordem final, contudo, não é nem um pouco arbitrária.O vocábuloCaprichos, entendido no sentido de liberdade em relação às formas vres, e portanto de direito à invenção, engloba todos os termos precedentes Máscricaturas, Sonhos. No passado, a palavra já fora utilizada nesse sentido. Giambattistão no auge de sua glória e trabalhando para a corte da Espanha, havia publicadituladasVari capricci e Scherzi di fantasia (um pouco mais tarde, seu filho Giandepolo, que retornara à Itália nesse meio-tempo, adquirirá um exemplar completo dosCaprichoya). Piranesi, cujas gravuras Goya conhecia, é o autor de uma coletânea intitulad Invepricci di carceri, que representa prisões — um assunto que Goya faz seu na mesmaculo precedente, em 1617, Jacques Callot havia publicado, sob o títuloCaprichos, um conjunquenta pequenas gravuras.No momento em que osCaprichos são postos à venda, em 6 de fevereiro de 1799, apúncio no jornal Diario de Madrid . É muito provável que tenha sido diretamente ins

oya e redigido por um de seus amigos “literatos”, como Moratín. Podemos, portantomo um terceiro texto “teórico” do pintor, após o relatório de outubro de 1792 e a car

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neiro de 1794. Várias ideias estão desenvolvidas ali.O anúncio afirma, de saída, que o objeto dessas imagens é constituído pelas “extrlos desacertos comuns em toda sociedade civil” e pelas “preocupações vulgares”elo costume, pela ignorância ou pelo interesse”, visto que o objetivo do autor é “a crí

dos vícios humanos”. Esclarece que os vícios em questão, e portanto os personagens ro correspondem a indivíduos, mas a tipos sociais, obtidos pela confrontação prévodelos. Nesse sentido, não são imagens copiadas do mundo real, mas invenções; aliássim que procede a pintura em geral. O pintor sempre mistura a invenção à observaçãoe merece “o título de inventor, e não o de copista servil”. Portanto, reencontra-se aquminista, tal como o professam os amigos “esclarecidos” de Goya (combater osperstições); o artista se mantém fiel a ele, apesar dos inquietantes rumores que chegabre os transtornos ocorridos na França (o Terror, o regicídio), apresentados pelos zes como consequência inelutável delas. Reconhece-se igualmente a concepção d

oya invocava em seu relatório à Academia: o pintor não imita as criaturas, mas o

úncio está de acordo com as ideias de seu tempo, afirmando que o pintor busca repnstrução mental, e não aquilo que vê com os próprios olhos. E Goya se submete efsa exigência, eliminando da coleção definitiva as gravuras cujos modelos podiam seraso, como vimos, da duquesa de Alba), exceto uma: seu autorretrato no início do voluContudo, a esse conjunto de ideias gerais, o anúncio dá uma inflexão original. O objeo é conformar-se a uma beleza ideal, como quer a estética neoclássica (encarnada, r Mengs), mas sim atingir a verdade oculta dos seres que ele representa. A própria oeal e real é abolida. Goya não se preocupa com o belo, o que ele quer transformar ão se trata apenas de decidir representar tipos em vez de indivíduos; mais importaostrar o invisível em vez do visível, e nisso, esclarece o anúncio sem falsa modéstia, ico, pois “o autor não seguiu o exemplo de outro”. A mudança é significativa: presentados nesta obra são, na maior parte, imaginários [ideales]”, portanto o pintor “afaeiramente” da natureza visível e fixou para si outro objetivo: tentar “expor à vistudes que até agora só existiram na mente humana, obscurecida e confundida pela ustración] ou acalorada pelo desencadeamento das paixões”.1

Tal declaração é de fato revolucionária: doravante, o pintor visará a representar o io o visível. O descarte do visível assume aqui um sentido muito diferente daquelentro da tradição teológica cristã. Na Imitação de Cristo, Tomás de Kempis aconselhmens: “Aplicai-vos em desapegar vosso coração do amor às coisas visíveis, peiramente às invisíveis”.2 O monge do séculoXV queria que os homens deixassem detureza e suas obras a fim de contemplar unicamente a graça, que se desligassem do muixo a fim de se voltarem para o reino do céu. Goya, em contraposição, quer arrastra o mundo do visível, dar forma às fantasias que habitam o espírito humano. Tais fan

o só das superstições do povo simples e dos vigários retrógrados, mas também

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manas; ora, estas últimas são compartilhadas por todos e constituem uma parte inmem: ninguém pode pretender que o avanço das Luzes o tenha libertado de todas aaginário não é o contrário do real, é até mesmo o melhor caminho para alcançá-lo.De saída, portanto, Goya tem perfeita consciência de uma certa dualidade dosCaprichospresentam simultaneamente uma sátira deliberada dos comportamentos ridículos de suergulho no inconsciente — do autor, mas também de seus espectadores. Esse termo mado no sentido freudiano, corriqueiro em nossos dias, mas naquele, mais geral, que

oca em outras línguas. Uma famosa carta de Schiller a Goethe, datada de 27 de maiste em que o verdadeiro artista sempre deve partir de um impulso inconsciente, mesde o submeta a um trabalho consciente: “O poeta toma seu único ponto de partida no

…]. A poesia, se não me engano, consiste precisamente em saber exprimir e comconsciente […]. O inconsciente, unido à coisa refletida, constitui o artista poéticposta, Goethe vai no mesmo sentido: “Creio que tudo o que o gênio faz enquanto gên

consciência”.3 É impossível reduzir osCaprichos, como faz hoje a interpretação correntmples crítica das superstições e das taras sociais, conduzida segundo o prsclarecidos”. Os dois elementos, crítica lúcida dos costumes e revelação dos abismofundo de cada um, interpenetram-se a cada instante: as bruxas ou os diversos seres

o mostrados de maneira realista, enquanto os indivíduos humanos se transformam em fO Capricho mais célebre é provavelmente aquele que traz atualmente o número 43. A

ma legenda, traçada pelo próprio Goya dentro da imagem (o que ele não faz em nenhume diz: “O sonho [ sueño] da razão produz monstros” (GW 536). Em espanhol, o termo sueño p

m sentido duplo, o de “sono” e o de “sonho”, o que autoriza uma dupla interpretação d

significa “sono”, entende-se por aí que, quando a razão adormece, os monstros notucabeça, e portanto é preferível que ela desperte para expulsá-los. Os monstros sãzão, permanecemos dentro de um projeto educativo. Mas, se a palavra significa “sonhópria razão que, quando funciona em regime noturno, produz monstros. Aqui, a condersonagens é muito menos nítida: a razão fabrica ideias claras mas também pesadelosopõe a ampliar o campo do conhecimento mostrando-nos o conteúdo deles. A razão eno, está envolvida no sonho. E o sentido que a palavra assumiu nos desenhos precedeituladosSueños é de fato sonho, e não sono.Os objetivos iluministas são mantidos, mas a concepção antropológica na qual eles senos em sua versão popular, foi abandonada: a eliminação das paixões e de suaconcebível, subentende Goya, é melhor tentar conhecê-las. O projeto já não éperstições e as fantasias, mas compreendê-las e, consequentemente, domesticá-las; nsegue, essas visões, longe de causar medo, fazem rir. Encontra-se uma confirmlexão dada ao programa inicial em certos comentários contemporâneos, que se sup

digidos por pessoas próximas do pintor, as quais teriam transcrito suas explicações

ses comentários aosCaprichos são designados pelo local onde foram conservados

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manuscrito do Prado” e o “manuscrito da Biblioteca Nacional de Madri”. No manuscse este comentário: “A imaginação [ fantasia] abandonada pela razão produz mpossíveis; unida a ela, é a mãe das artes e a origem de suas maravilhas”.O título de outro desenho preparatório,GW 623, que na gravura correspondente (Capricho 51) será fortemente transformado, sugere uma interpretação semelhante: é A enfermidade dam dúvida tal estado é deplorável, mas está ligado a um dos registros da atividade rzão enferma ainda é uma razão. Os filósofos racionalistas fustigados pelo per

akespeare, assim como os devotos do irracional que se multiplicarão nas décadacontram-se do mesmo lado: escolhem um dos termos em detrimento do outro. laborarem razão e imaginação, reflexão e inconsciente, para ele nem um pouco incoecisamente essa combinação que define a especificidade do conhecimento ao qnduzem, diferente daquele das ciências. Sob esse ponto de vista, osCaprichos trazeriquecimento decisivo à doutrina iluminista — sem com isso renegá-la.A gravura mostra um homem adormecido sobre sua escrivaninha, cercado por avorcegos e mochos, assim como por um gato enorme, na época símbolos familiares da enorância, ou mesmo do próprio diabo. Aliás, encontram-se as mesmas encarnaçõegativas no esboço contemporâneo de uma alegoria à qual se dá o título de A Verdade, o Temstória (GW 696), na qual os dignos personagens que figuram nessas abstrações são a

ma revoada de mochos e morcegos, mas ao mesmo tempo protegidos por uma abundz. Na gravura, os animais noturnos são acompanhados de um lince, animal famoso pela visão: a cegueira e a visão aguda coexistem sempre.Essa gravura havia sido preparada por dois desenhos. Um deles traz o títuloSonho 1 (GW 5

e indica que ele deveria ficar no início da série dosSonhos. O lince já se encontra lá, masma das quais é imensa e apavorante, são bem diferentes; todo o canto superior esqu

á vazio. O texto da legenda também é diferente. Sob a mesa na qual o homem sedioma universal. Desenhado e gravado por F. de Goya em 1797”. Mais embaixo, foratexto continua: “O autor sonhando [ou dormindo]. Seu único desígnio [ yntento] é banir nenças comuns [bulgaridades] e perpetuar com esta obra de caprichos o sólido testerdade”.De certo ponto de vista, essas frases de 1797 preparam o anúncio publicado em 17s Luzes está claramente afirmado nelas, a razão e a verdade acossam as superstiç

mbora tomem o caminho específico das artes, o dos “caprichos e invenções”; os dois lidários. O comentário da Biblioteca Nacional explica: “Quando os homens não ouvzão, tudo se torna visão”. O “idioma universal” pode ser o das imagens: Goya mbém aqueles que não sabem ler. Está especificado, enfim, que o homem adormecidntor, o próprio Goya; quanto ao termo sueño, este mantém sua ambiguidade.

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Fig. 6.O sonho da razão.

Esse desenho é, por sua vez, precedido por outro,GW 538 (fig. 6). Aqui, o homem adormacado por outros seres. As aves noturnas e o lince já estão presentes, mas com ecisão. Acima deles, veem-se os cascos de um jumento e, ao lado deste, um cão; ma

m rosto repetido muitas vezes, que não é outro senão o do próprio Goya: certas imagen

lmo, outras o representam fazendo caretas. Essas cabeças ocupam, em particular, a pquerda da folha, precisamente aquela que o desenho seguinte deixará vazia. Ess

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meiro da série, sugere que os “monstros” de que fala a legenda da gravura não sente do autor como têm a forma de seus diferentes gestos e poses. As vítimas de fantasces atribuídas às nossas paixões, não são os outros, pessoas incultas, mas o próplvez) seus espectadores; ademais, esses fantasmas têm um rosto familiar: o de cadda separação estanque é abolida entre nós, os “esclarecidos”, e o mundo das tre

gime diurno da consciência e aquele, noturno, das paixões inconscientes. Mas Ghado que essa imagem era clara demais, que ela fornecia uma explicação excessivamsCaprichos; na versão seguinte do desenho e na gravura, ele deixa um grande vazio narecia seu próprio rosto angustiado.Comparemos esses desenhos (e essa gravura) de Goya a um célebre desenho de Mbitualmente designado por um termo semelhante,O sonho (fig. 7), que data aproximadam33.

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Fig. 7. Michelangelo,O sonho.

O homem, nu e parecido com o Adão do Juízo Final , está sentado sobre uma caixa queáscaras com caretas, e se apoia sobre um globo que figura a Terra. Está rodeado por oas, nas quais foi possível reconhecer seis dos sete pecados capitais (falta o Orgulho, foutros), todos dotados de uma aparência fantasmática. O homem, que não está ador

u olhar para uma figura que o sobrevoa e que lhe insufla o espírito, com o auxílio derpretação corrente vê nessa figura alada uma encarnação da Glória: aspirar a ela pe

distância os pecados ameaçadores e afastar as máscaras, símbolo das ilusões enganosEssa lição, mais próxima do espírito antigo do que do cristianismo, distingue-se por

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quela que Goya sugere. Para começar, é significativo que Michelangelo represente ral, o homem universal, cuja nudez o extrai de toda situação particular e o torna insso que Goya se mostra pessoalmente em sua singularidade. O indivíduo perteomento da história, a um lugar único, substituiu a abstração alegórica, ao mesmo tempbjetiva se introduziu no mundo objetivo. Esse personagem central é ameaçado, norças do mal existentes fora dele, os pecados; no espanhol, por quimeras nascidas dente: o perigo já não vem do exterior, mas de dentro. Em Goya, à diferença de M

nhuma ajuda pode vir do céu: acima do homem adormecido, só existem seus fantasmmáscaras, rejeitadas e descartadas no desenho antigo, já não são separadas do rost

nteira nítida: é à sua própria figura que Goya dá o aspecto de uma máscara, e é justame permite ver-se melhor e portanto aproximar-se da verdade da condição humana. Esenhos escancara-se um vazio: aquele que separa o mundo antigo da modernidade.Goya não manterá esseSonho na abertura da obra, mas colocará a gravura correspondensta, atribuindo-lhe o número 43. Com isso, a interpretação de conjunto se vê modificasérie, vem agora outro autorretrato de Goya (Capricho I , GW 451), que, em vez de ser dor visões noturnas, permanece senhor de si e do mundo circundante; usa chapéu e tra

nça um olhar frio sobre o que o rodeia. O comentário da Biblioteca de Madri assimVerdadeiro autorretrato, de mau humor e com expressão satírica”. Esse personagaramente do lado da razão e das Luzes: através dele, Goya afirma sua distância em re representa em seu trabalho. O centro de gravidade da coletânea foi deslocadoíricas de intenção social foram multiplicadas. OCapricho 43 vem na sequência unciando as representações de bruxas e outros seres fantasmáticos na segunda metade

Portanto, essas duas gravuras, osCaprichos 1 e 43, ilustram as duas interpretações erentes que o autor dá para suas imagens: o pintor trajado com apuro simboliza o reie permite fustigar as taras da sociedade; o pintor adormecido, invadido por suas viscarna a impotência em controlar o que provém de sua própria mente. Aquele queagina as visões é o sonhador doCapricho 43; aquele que as organiza e comenta para opúblico, dom Francisco Goya doCapricho 1. Nenhum dos dois pode dispensar o

prichos são o resultado da colaboração entre eles.Outras legendas de desenhos e textos de acompanhamento contêm igualmente inderpretação da série. OCapricho 6 (GW 461) traz como legenda: “Ninguém se con

anuscrito do Prado acrescenta: “O mundo é uma mascarada: rostos, trajes, vozes, tudos querem aparentar o que não são, todos se enganam reciprocamente e ninguém m-se a impressão de ler La Rochefoucauld ou outros autores jansenistas do séculoXVII. Mrdade, a mensagem de Goya é um pouco diferente: os rostos que cada um fabrica paraque são enganosos; as máscaras com as quais Goya vai recobri-los, transformando omentos ou em macacos, revelam, ao contrário, a verdadeira natureza deles. O

fermidade da razão, já evocado, comporta esta legenda inacabada: “Pesadelo no q

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dia nem acordar nem me livrar da nobreza na qual…”. A primeira pessoa do singuui, é reveladora: de fato, é de seus próprios sonhos que Goya nos fala; mas nem por

m relato direto, que seria caótico demais: seu desenho é a reconstrução desses sonhosmem acordado.O últimoCapricho, o de número 80 (GW 613), recebe este comentário no manuscrito

Assim que começa a clarear, cada um foge para seu lado, bruxas, duendes, visões e fasa gente só se deixa ver à noite e no escuro. Ninguém conseguiu saber onde eles se e

condem durante o dia”. Mas aqui Goya banca o modesto; na verdade ele conhece a rigma: eles se escondem no âmago de cada um de nós, são nossos próprios demônioruturado por categorias cuja oposição é clara: saúde/doença, razão/loucura

zes/trevas. Ora, por suas imagens, Goya se empenha em demonstrar a interpenseparabilidade das duas: a fronteira que as divide é permeável. Razão e dracterísticas humanas ao mesmo título. As superstições das pessoas simples e ignreditam em bruxas e em fantasmas, podem também povoar os sonhos das pessoas “mo Goya e seus amigos. O sobrenatural já não habita os campos ou as florestas, masssa mente, e portanto é perfeitamente explicável. Assim é que Goya abandonnquilizador onde se mantêm os “esclarecidos”, e que lhes permite criticar os outrosado dos homens comuns, cuja mente é invadida por essas imagens inquietantes.A desordem, o caos, o Carnaval oferecem uma imagem visível daquilo que forma uma carta a Zapater, datada de 1785, encontramos um exemplo — raro — dos meandmaginação de Goya pode conduzi-lo. No meio de frases perfeitamente anódinas, lê-se

Ah, como era bom teu cantinho com chocolate e roscas, mas sem liberdade, porque é cheio de variados insinstrumentos mortais, ganchos e navalhas, com os quais, uma vez por descuido, outra por invenção, arrancaram de pedaço de carne e alguns cabelos do crânio, e eles não somente arranham e brigam mas também mordem e perfuram; e além disso servem de alimento a outros bichos mais gordos e bem piores (19 de fevereiro de 1785).

Não temos a impressão de haver mergulhado repentinamente num quadro de Bosch onós, num relato de Kafka? Por essas frases, Goya talvez se refira aos incômo

ovocam as pessoas com as quais ele tem de conviver na corte, primeiro os outros

ticos, os “conhecedores” (“variados insetos”), em seguida os cortesãos, nobres bichos mais gordos”), uns tão ignorantes e invejosos quanto os outros; mas o queima de tudo é a força de evocação dessas frases, a comprovar que Goya sabe exprimiuilo que habitualmente ele confia às suas imagens.Não se pode afirmar que Goya tenha desejado facilitar a interpretação dosCaprichos. Em

desenhos preparatórios comportam legendas mais explícitas do que aquelasradoxais, que acompanham as gravuras; tem-se a impressão de que ele escolheu del

mbaralhar o sentido de sua mensagem, torná-la mais ambígua do que ela era na origemm exemplo analisado por outros comentaristas. A primeira versão doCapricho 13 é o dese

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ocado (GW 423, fig. 3), intituladoCaricatura alegre, e que representa um grupo de mendo gulosamente, um dos quais tem um pênis gigante no lugar do nariz. A segunsenho, preparada com vistas à gravura (GW 477), suprime o nariz e traz uma legenda queais claramente a intenção satírica: “Sonho. De certos homens que nos comiam”. A refeui metafórica, a alusão sexual desapareceu, foi substituída por uma referência ao corealidade, esses monges que declaram consumir o corpo e o sangue de Cristo durant

gordam explorando a população que eles alegam servir; como prova, um criado lh

ma bandeja uma cabeça humana pronta para o consumo. Por fim, a gravura (GW 476) retomgunda versão da imagem (GW 477), mas inclui a legenda “Estão quentes”, o que evoca sociações sexuais, ainda que estas tenham deixado a representação; aliás, o ntemporâneo do Prado só fala de alimento. Resultado: a gravura tornou-se enigmáte nos desenhos o sentido era transparente.Em outros casos, reencontra-se a mesma operação de embaralhamento. Se levarmdas as indicações textuais da época — o anúncio de venda, as legendas que acomavura, os desenhos preparatórios com suas próprias legendas, os comentários inspiraranscritos nos manuscritos do Prado e da Biblioteca Nacional —, a leitura de cadativamente fácil. Mas, evidentemente, não é esse o caso para o espectador e leitor

oya preferiu deixar na ambiguidade e na indecisão, talvez para incitá-lo a buscar o s pesmo — e, portanto, tambémem si mesmo.

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Fig. 8. “Aonde vai a mamãe?”,Capricho 65.

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ornar visível o invisível

No plano temático, costuma-se dividir osCaprichos em três grandes grupos. O primeiro agens cuja intenção de sátira social é clara, que visam a vícios ou maus hábitos e ata

putações, a hipocrisia generalizada, as trapaças, a ignorância, a estupidez do clero, arca de 25 gravuras. O segundo narra a comédia sexual, as relações, geralmente intereulheres e homens, nas quais os gestos convencionais mal escondem o apetite sexuauezas — os homens são alternativamente ingênuos e cobiçosos, as mulheres frerfidas (a ideia de “mentira e inconstância” não está longe): cerca de 23 gravuras ssa linha. Por fim, o terceiro grupo é aquele que se refere às superstições, às bntasmas: 26 gravuras. Permanecem externas a esses conjuntos as duas gravuras que do, de número 1 e 43, e algumas imagens alegóricas que não se referem especificamesses temas. As imagens de cada grupo às vezes se sucedem, mas em geral estão entreova do fato de que Goya não desejava facilitar a sua interpretação.Os três conjuntos estão de acordo com o programa “esclarecido” dos amigos de

nsiste em combater a falta de educação, as superstições das massas, o conservadorisabusos da Inquisição, o parasitismo dos aristocratas, opondo-lhes ideias consideramigos como importadas da França. Por exemplo, a legenda doCapricho 2 (“Elas pronun

m e estendem a mão ao primeiro que se apresenta”,GW 454) é tirada de um poema de Jovdardos disparados por Goya são distribuídos equitativamente: os pobres não são mericos, nem as mulheres do que os homens (o manuscrito do Prado comenta oCapricho 6 : “homens são perversos, as mulheres o são igualmente”). As pessoas comuns não valemuelas que as oprimem; oCapricho 24 (GW 499) mostra a multidão regozijando-se aoulher condenada pela Inquisição: os risos são esgares, os rostos caricaturais, o povo jpulacho. A legenda confirma o julgamento desencantado do pintor: “Não houve remo ministra lições, ele formula constatações. Não se coloca numa perspectiva davuras não parecem dizer tanto “não convém agir assim” quanto “eis como se cmens e as mulheres”.Nenhuma categoria humana é reservada sistematicamente à figuração das forças dquência Goya escolhe como alvo os monges, mostrados como preguiçosos, hipócrit

as em outras ocasiões representa-os de maneira benévola. E não confunde anticlerísmo, fiel, nisso, à tradição central do Iluminismo: ele zomba dos representantes da

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quisição, não ataca a fé. Como outros “esclarecidos”, critica a intromissão do clerofano, deseja a separação entre a Igreja e o Estado (o que os filósofos denominaológico-político”), mas não hesita em executar pinturas sobre temas religiosos, e algagens de Cristo ou dos apóstolos revelam uma emoção autêntica. O que sabemos dessoais não permite concluir por uma rejeição radical à religião cristã.À diferença dos “esclarecidos”, porém, Goya não aborda a contrapartida po

mpreendimento crítico. Ele é — e será de agora em diante — muito mais sensível aoixões subterrâneas do que às virtudes e à propensão para a felicidade; as calamidascitam sua curiosidade mais do que sua inspiração educadora. Desde a doença, e maisptura com a duquesa de Alba, suas imagens apresentam uma visão crítica da humanidmanos que ele decide mostrar são ou bestas (isto é, ignorantes, ingênuos, créduloobiçosos, brutais, cruéis), ou feios — e às vezes as três coisas ao mesmo tempo! Evidceções: mesmo na parte não oficial de sua obra, encontram-se desenhos que represenaternais (comoGW 1251) ou paternais (por exemplo,GW 1252) idílicas; porém, são mais ra

No entanto, a postura de Goya não se confunde com a dos satiristas antigos, que nãm da miséria humana, nem com a dos niilistas modernos, os quais ensinam aos seue a vida é desprovida de todo sentido e valor. As obras de Goya produzem umerente: para começar, qualquer tom professoral ou sentencioso está excluído; aléagens, mesmo as mais negativas, não dão a impressão de que o objeto das

dicalmente diferente do pintor: a familiaridade das invectivas dele ou de suas descriproximidade dos dois. Deveríamos deduzir daí que o artista, e não somente seus quasantropo e um melancólico? Os outros documentos de que dispomos não confirmam

oya se revela um amigo fiel, um pai (e, mais tarde, um avô) que zela ferozmente pelosus próximos, um homem que não parece haver perdido uma certa alegria de viver. Tadique grande estima à humanidade, mas preza sempre as pessoas que o rodeiam, comsorvendo seus rancores, tivesse livrado sua vida cotidiana deles.Algumas dessas representações são realistas, outras contêm visões fantásticas, mpende do assunto delas. Goya pode levar a deformação de um personagem até à cae nisso esteja envolvido nenhum elemento sobrenatural. A caricatura, como vimos,

arências para melhor mostrar o que elas escondem. Como pinta o ser interior, mais de se oferece ao olhar, Goya pode tomar todo tipo de liberdade com as formas vemplo, noCapricho 2, que mostra as núpcias de um velho com uma bela jovemcialmente escandaloso desse casamento é indicado pela cabeça monstruosa das pesso

jumentos e os macacos, em outras gravuras, referem-se a atitudes humanas cosfarce as revela abertamente.A intenção satírica está presente ao longo de toda a coletânea, mas não lhe esgota ouras assustadoras do bicho-papão (Capricho 3, GW 455), dos monges (Capricho 13, GW 476

omos (Capricho 49, GW 549), do alfaiate (Capricho 52, GW 555), da ave noturna(Capricho 7

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2) ou dos fantasmas (Capricho 80) vêm das profundezas da própria mente. Imagenpricho 62 (GW 575), com a legenda “Quem diria?”, não podem ser explicadas pelmbater as superstições; trata-se antes de uma visão de pesadelo pessoal, como sentincontram-se nosCaprichos, escrevia ele, “todas as libertinagens do sonho, todas as hipucinação”): duas bruxas nuas lutam ao mesmo tempo em que afundam num abismo,cho flutua acima delas e outro tenta agarrá-las a fim de puxá-las para baixo. Baudesa imagem: “Toda a hediondez, todas as imundícies morais, todos os vícios que a m

de conceber estão escritos nessas duas faces, as quais, segundo um hábito freocedimento inexplicável do artista, ficam a meio caminho entre o homem e a besta”.1

Ou ainda oCapricho 65 (GW 581, fig. 8), legendado “Aonde vai a mamãe?”: como tira social essa aglutinação incrível de corpos nus em torno de uma personagem femompanhados de um gato satânico que traz uma sombrinha e de uma ave cuja cabeça sexo do personagem que tem os pés no chão? No entanto, essa mãe de fantasmas, caaturas de pesadelo, tem o corpo de uma mulher comum e vive bem perto da plácimos ao seu lado. À noite, mesmo as mães mais calmas são carregadas pelos consciente! A imagem mais noturna de todas é oCapricho 64 (GW 579, fig. 9), “Boa viagemcorpos e de rostos indistintos, assim comentados no manuscrito do Prado: “Aonde vaernal, gritando pelos ares em meio às trevas da noite?”. Durante o dia seria possíve

ossegue o texto, mas não no escuro, pois, “como é noite, ninguém a vê”. Esses curidão não podem ser expulsos do espírito, que é sua morada permanente.Às vezes considera-se que as cenas de bruxaria e de fantasmas, tanto nosCaprichos quanto adros adquiridos pelo duque de Osuna, têm a função de dissimular os elementos de

ja presença explícita poderia ser prejudicial a Goya. Mas tal suposição não é muito r duas razões. Primeiro, a crítica dos vícios públicos ou do atraso do país, enraizado

nas desigualdades sociais, não revelaria nenhuma coragem cívica por parte de Goya: mbém a do casal régio, do favorito deste, Godoy, e de seus conselheiros “esclarecfensores de uma certa versão do Iluminismo. Inversamente, podemos nos pergunagens de crítica social não estão aí sobretudo para dissimular — aos olhos das elitepaís, mas às vezes também aos do próprio Goya — as descobertas que ele acaba

ação às profundezas da mente humana, a dele mesmo e a dos outros, um pouco comos tempos passados que, no dizer de Leo Strauss, sabiam praticar uma arte de escixava a salvo das perseguições. A representação dos bruxos e bruxas não serve stigar as superstições: ela permite revelar os desejos inconscientes, evocar o peso dabre os comportamentos corriqueiros. A razão não reina como senhora na casa da mendem é contaminada pelo caos.

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Fig. 9. “Boa viagem”,Capricho 64.

Tal descoberta é muito mais subversiva do que a sátira de superfície, pois abalandamentos da ordem estabelecida, quer seja esta moral, política ou religiosa. rmutariam então seus lugares, as visões noturnas tornando-se o objetivo, talvez consciente, do empreendimento. Foi-se o tempo em que Goya sofria passivamente a us amigos “esclarecidos”, tempo que Ortega y Gasset imaginava assim: “Ele os oculto, de espírito lento, não compreende muito bem o que ouve…”.2 Doravante, Goya já

mente filósofo por contaminação e impregnação; ele o é pela transformação à qunsamento das Luzes e que seus amigos filósofos não têm em vista. Estes último

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aginado que as Luzes resultariam na Revolução; mas Goya sabe que elas tamsembocar no Terror.O que é novo não é somente o sentido daquilo que é mostrado; a própria maneirbverte os hábitos. Essas imagens que já não pretendem mostrar o visível renunciam taregras de construção do espaço. As distâncias são abolidas, as referências desaparec

embaixo se confundem, os personagens se transformam em cosmonautas que flutualos ares. A renúncia à representação do visível torna-se assim uma renúncia parcianvenções sociais. Como, doravante, o que é mostrado é o interior da mente, já não

ma lei geral: começa o reinado do indivíduo, e os indivíduos são múltiplos e difereno é de espantar a violência das reações que osCaprichos suscitaram, como a de Ruskinmoso crítico de arte de seu tempo, o qual, no fim do séculoXIX, se vangloria de ter qussoalmente um exemplar completo da coletânea de gravuras, a fim de proteger a humnomínia moral e estética! A arte clássica queria servir à beleza e imitar a naturezanunciar ao primeiro objetivo, Goya agora abandona o segundo: já não é necessárpresente as formas visíveis, ela pode consagrar-se àquilo que “só existe na mente”.Contudo, nem toda linguagem comum desaparece dessas imagens. Nelas, o artista ses princípios da pintura figurativa que aspira a revelar a verdade do mundo, animado omplesmente, como se propõe a mostrar o invisível, ele não pode mais apoiar-se num para isso deve recorrer a uma interpretação pessoal. Avisão subjetiva substitui avista comdos. Com isso, Goya amplia ainda mais a brecha aberta por ele na tradição pictóriminado a representação na Europa durante os séculos precedentes e que refletia a féum mundo estável, fiador do consenso social. A Revolução Francesa liberou forças

e Goya, por suas imagens, é o primeiro a revelar. Mas essa interpretação do mundma linguagem de formas reconhecíveis por todos. O sentido dos objetos representadovezes mais difícil de identificar do que o era o das imagens convencionais, mas nãom arbitrário. Em outras palavras: suas imagens cessam de ser umarepresentação do mundm por isso deixam de fornecer uma figuração dele.Cem anos após a morte de Goya, uma russa exilada na França, Marina Tsvetáieva, a própria arte — que é a poesia, e não a pintura; no entanto, as palavras que ela escrevê-la são bem aplicáveis à arte visual tal como a compreendia o pintor espaista, escreve Tsvetáieva, o visível é um adversário: é preciso saber ir além das coisao se contentar com o que se oferece espontaneamente aos sentidos. Mas o único meiose adversário é perscrutá-lo com todas as forças, a fim de conhecê-lo melhor. “Trabara servir o invisível — eis o que é a vida do poeta. […] E é preciso levar ao extreterior para tornar visível o invisível.” Conhecer o interior do ser humano não significe se está renunciando a observar as formas sensíveis. “O visível é o cimento, as peais se apoiam as coisas.”3 Contudo, é igualmente obrigatório lembrar-se de que ele é m

m. O exterior não é o contrário do interior; longe de dissimulá-lo sempre, pode cond

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as desde que se saiba interpretá-lo.A coletânea de gravuras não terá sucesso comercial, e Goya a retira de venda algude; somente 27 exemplares foram comprados… A mensagem de Goya é complexa dempreendida e para agradar ao grande público. Que contraste com as gravuras de Hoessíveis a todos, que em meados do século conheceram tão grande sucesso! Em cria impróprio evocar aqui um efeito de censura: as imagens satíricas são bem convennante. Aliás, é pouco depois da publicação do volume dosCaprichos, em 1799, que Goya

promoção suprema que o faz primeiro pintor de câmara do rei. E quando, em 1803, atriz de suas gravuras ao rei, é menos para fugir à ira da Inquisição do que para obt

ma pensão anual para seu filho.A partir dosCaprichos e até o fim da vida, trinta anos mais tarde, Goya levará, o qande novidade, uma vida dupla. Numa parte de sua existência, aquela que se desenroblico, ele permanece submisso às regras sociais do seu tempo e frequenta a corte réuela que está encerrada em seu mundo particular, dá livre curso à imaginação, a qual minhos nunca explorados. Essa ruptura interior irá levá-lo a produzir duas séries de

m conformidade com a tradição, outras nascidas de suas buscas pessoais, umas “diurnoturnas”.Na parte pública de sua vida, ele continua a prática oficial de pintor da corte e dandes deste mundo, executando diversas encomendas. Assim, pinta o retrato de váriopalácio, além de um grande retrato coletivo da família do rei e da rainha (em 1800GW

antém boas relações com Godoy, de quem executa um retrato lisonjeiro, mostrando-oefe militar (GW 796). Outros retratos, menos ou mais inspirados, mostram os memb

ciedade madrilenha. No entanto, mesmo nesses trabalhos de encomenda, é impossívele seu olhar se mantém impiedoso: ele não sacrifica o verdadeiro ao belo. Já os moar satisfeitos por ver seus traços fielmente reproduzidos, sem se preocuparem com a les a um ideal.Ao mesmo tempo, Goya continua pintando imagens religiosas. Artista de renomrmitir-se inovações estilísticas que antes não lhe eram perdoadas. É o caso de sua degreja San Antonio de la Florida, em Madri (GW 717-35), notável êxito pictórico, que roconvenções das imagens piedosas: os personagens pintados não são muito diferentes e virão observá-los; Goya realmente não faz diferença entre os habitantes desses do

ndário e o cotidiano. Ele também decora a catedral de Toledo; suas pinturas se degrampo, mas delas subsiste um esboço, A detenção de Cristo (GW 737), de feitura particulre, na qual a cor substitui o desenho. No mesmo momento, pinta um certo número deríamos considerar como pertencentes à pintura “de gênero”, representando o mugumas delas se inscrevem em projetos sistemáticos, como os quatro medalhões alegónta no fim do século para Manuel Godoy (hoje subsistem três, entre os quaisO comércio, GW 6

Goya continua a circular no ambiente dos “esclarecidos” e também pinta a maior p

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migos, em particular um belo retrato melancólico de Jovellanos (GW 675). A proximidade enm mais de uma razão: esse grupo se interessa diretamente pela pintura; por exemplonunciou um “Elogio das belas-artes”, assim como outro “À glória das artes”, sempminista. As ideias de Jovellanos sobre o assunto não deixam Goya indiferente: seu e não basta pintar o que se vê, também é preciso pensar aquilo que se pinta. Ao m

mita-se a uma concepção utilitária da arte. Goya, por sua vez, constatará que a obnsamento não lhe bastam, e acrescentará a essa dupla um terceiro cúmplice: a

culdade particularmente útil aos pintores. Para ele, a arte não pode servir simplesmenpovo, pois tem por vocação penetrar os mistérios do mundo.

Uma tela célebre dessa época é La maja desnuda (GW 743). Pensa-se hoje que ela foi pintgabinete secreto de Godoy: esse dirigente do país, de gostos libertinos, colecionaulheres nuas. Convém dizer que a vizinhança não tem nada de desonroso: Goya deveVênus ao espelho de Velázquez, um presente da duquesa de Alba a Godoy, de quem elacom umaVênus adormecida de Ticiano… Mas Goya não pinta uma Vênus, nem seqoucher algumas décadas antes, uma “odalisca”; ele mostra uma mulher de sua épocaspida, que fita o espectador diretamente nos olhos. O caráter cru da cena pode surpreássicos participavam de um elogio à criação, de um hino à beleza; Goya despoja suda significação sublime e produz, mais uma vez, uma imagem literal: uma mulher coe posa encarando o pintor (e o espectador). Esse quadro foi pintado antes de 1800ais tarde, Goya executará, no mesmo formato, uma Maja vestida (GW 744), que talvez servisconder, em certas circunstâncias, a imagem indecente.Esses quadros, alguns de estilo bastante convencional, outros mais livres (quando são

migos ou a colecionadores entendidos), pertencem todos a uma das vidas de Goya coquadros que não correspondem a encomendas e que, na verdade, permaneceram no amenos até 1812, como comprova o inventário elaborado nessa data, resultam de outtre eles encontra-se uma série de variações sobre os temas já explorados nosCaprichoemplo, pessoas do povo entregues à bebida (Os bêbados, GW 871), ou ainda as prostitutapõem na sacada e atrás das quais ficam ora seus rufiões (GW 960), ora a velha proxeneta cCelestina (GW 958). Outro quadro combina a visão do comércio sexual com a conta

sível pelo invisível: As velhas (ouO tempo, GW 961), duas figuras femininas grotescços faciais se congelaram em máscara. Essas anciãs continuam preocupadas coarência, sem perceber que estão sentadas à frente de um personagem alegórico, smpo, ou a Morte, armado de uma vassoura que lhe permitirá fazer com que as vaidasapareçam. O rosto da personagem principal, assim como o sentido da cena, lembrampricho 55, legendado com “Até a morte” (GW 561); mas o próprio quadro faz pensar nasapricho e invenção”, pintadas em 1793 ou em 1798: mesmos contrastes de luz, mess cores.

Ao lado desses quadros, encontramos alguns outros que podem ser interpretados com

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névola do mundo do trabalho, tema recorrente na obra de Goya: temos uma Aguadeira (GW 96m Amolador (GW 964), os quais, à diferença dos frades preguiçosos, se consagram a ul à comunidade. Na linhagem do Pedreiro ferido (il. 1), mas despojados de qualquer harentemente esses personagens merecem respeito — o que seria ainda mais claropõe, os quadros atuais que trazem esses títulos fossem a redução de pinturas nsivelmente maior. Por fim, no mesmo inventário, figura um grupo de naturezas-morpreendentes, que por sua vez rompem com as tradições do gênero (GW 903-

3). Esses pedaços de carne ou de peixe, essas aves depenadas não aspiram necorativa nem ao sentido habitualmente atribuído às vaidades: esses pedaços de ntentam-se em demonstrar sua presença.Podemos nos perguntar a qual espectador ideal Goya destinava esses quadros e a quposição. A pintura de gênero, as paisagens, as naturezas-mortas de que os Países Baixnado pátria nos séculosXVII e XVIII ficavam nas paredes das casas burguesas mais astadas. Esses quadros se relacionavam com uma concepção coerente do mundo dem social. As cenas da vida cotidiana repousavam sobre julgamentos compartilhad

m relação às virtudes e aos vícios, quer fossem elogios ou críticas; as imagens animada participavam de uma visão harmoniosa do cosmo ou de uma sabedoria comssagem do tempo e à fragilidade de todas as coisas. Ora, é difícil imaginar os quadrGoya não só nos palácios régios como até mesmo nos salões de aficionados esclarOsuna. Já que esses quadros não deixaram o ateliê do pintor, deve-se concluir que er necessidade interior, e não para atender a uma encomenda. Quando, ulteriormenteham um comprador, e se não se trata de um simples investimento comercial, pode-

oya encontrou mentes próximas da sua, aficionados que apreciam a busca incessante al ele está envolvido. A abundância de pequenos formatos entre essas pinturas pessogabinete”) não é casual: eles comprovam uma procura inicialmente pessoal — e, pão ao alcance de pessoas comuns.Hoje esses quadros decoram habitualmente os museus, onde se expõem a outro tendido. O museu transforma todo objeto pendurado em suas paredes, até mesmoO mictóuchamp, em peça de contemplação estética. Ele arranca as obras à sua interação ccundante e faz delas encarnações da arte pura. Mas Goya não aspira a produzir beloz disso, transmite o testemunho atento de suas visões.A partir dessa época, é sobretudo nos desenhos que Goya dará livre curso àquilo quente. Essa abundante produção visual não se destina a ser vista por terceiros, a nãcepcional, e nela o pintor se mostra inteiramente livre de toda consideração de confogostos da época. Contudo, ao reunir tais desenhos em álbum, numa ordem bem refleibui o estatuto de obras a pleno título. Os dois primeiros álbuns, designados pelas les quais já vimos alguns exemplos, datam dos últimos anos do séculoXVIII. Os dois últimos,

mpõem-se de desenhos realizados em Bordeaux, onde Goya se instalará de 1824 até

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omo os próprios desenhos não são datados, há menos certeza em relação à cronologbuns restantes (C, D, E e F), mas hoje em dia concorda-se em pensar que o álbum C é les e corresponde aos anos 1808-14, ao passo que os outros três seriam posterioresdependência.Esse álbum C (o mais volumoso, com 133 desenhos) se apresenta, ainda maisecedentes, como o diário de bordo do pintor, que nele anota regularmente aquilo qdor, mas também aquilo que imagina e de que se lembra, acrescentando-lhe um brev

ás, as fronteiras entre essas diferentes fontes das imagens — observação, imaginaçãonão são impermeáveis. Ali encontramos os agentes da vida cotidiana, atentamente ob

oya: mendigos, passeadores e patinadores, caçadores, artistas e dançarinos de rua. Vuram cenas galantes, destacando a ternura, como em C 84 (GW 1320). Outros representamuações geralmente percebidas como louváveis: o amor materno ou paterno, a intimidalicação no trabalho, os gestos de caridade — como o de uma mulher dando de beber

67,GW 1304). Na maioria das vezes, porém, Goya se deixa levar por seu pendsenhando personagens disformes e grotescos, situações em que os homens parecostrando impiedosamente bêbados, monges, camponeses crédulos.Os atos de violência ocupam sempre um grande espaço em sua obra: ele não se costrar as manifestações dessa tendência humana, obrigando-nos a nos interrogarmos sla, como ele mesmo devia fazer. Algumas formas da violência são codificadas: posão, a tortura legal, a brutalidade dos policiais ou ainda os duelos. Outras são cunstâncias, como as mortes em consequência da fome generalizada ou os feridos de

nda decorrem dos costumes próprios dos “selvagens”. Não menos impressionantes sã

e mostram uma violência desprovida de qualquer outra razão além das irresistíundas do interior do indivíduo. É o caso dos atos de pilhagem ou das brigas entre dem acabar em homicídio ou, mais cruelmente ainda, numa tortura destinada a matamo no desenho C 32 (GW 1270), legendadoQue vingança horrível!

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Fig. 10.Visão burlesca. A mesma noite 4.

Outras imagens resultam claramente da invenção, ou da visão “noturna”, caso da es39-47,GW 1277-85) que contém nove “visões burlescas”, oriundas, com toda a evid

sadelo. Por exemplo, C 42 (GW 1280, fig. 10), quarta visão da mesma noite, em que utado de uma cabeça gigantesca (ou de uma máscara) esboça um passo de dança.Impossível saber se o espanto maior nos vem dos seres estranhos que povoam os sonda habilidade com que ele consegue restituí-los; no mínimo, essas imagens comprov

m a qual o pintor perscruta seus pesadelos, as visões que o invadem depois que a razbruxas também reaparecem, especialmente no desenho (C 70,GW 1307) que as mostra e

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ntando levantar uma pesada tampa. A legenda anuncia: Elas não dizem nada, ou talvez Nzem elas, como mais tarde em Desastres 69. Aqui, impressiona-nos sobretudo a estranha s corpos voadores. Desde a época dosCaprichos, Goya associa regularmente as bruxasg. 8 e 9); nele, o ato de voar está igualmente ligado a temas eróticos. Um desenho coW 641) mostra uma jovem inteiramente nua que voa cavalgando o grande bode, istoabo, enquanto outros dois habitantes desse mundo noturno se mantêm entre as patas deulher não exprime nenhum pavor.A separação entre as duas séries de imagens, uma reservada à circulação pública, vado, é nítida. Ela não se explica, como alguém já afirmou, pela passagem de um Govo, aldeão confuso, a um Goya citadino e cortesão, amigo dos nobres e dos intelectuaassemelha àquilo que conhecemos da vida dos pintores anteriores, mesmo daqueles

boços de estilo mais livre que o dos quadros acabados: para eles, tratava-se de inção preparatória, que nosso gosto contemporâneo valoriza e dota de uma existêncas que, para os próprios artistas, não tinham esse estatuto. Já Goya, que agora leva umatica simultaneamente duas maneiras independentes de pintar cujas inspirações stintas.Não se conhece nenhum exemplo equivalente entre os pintores do passado, e tampistas posteriores: nenhum outro artista seguiu a tal ponto duas linhas de produçãoparadas, uma oficial, outra confidencial. Na Rússia soviética, onde o poder bolchev

ma censura ainda mais invasora do que a da Inquisição, certos pintores conhecerablica e privada uma clivagem comparável; mas aqueles cujo trabalho inicial não costo oficial eram bem depressa levados a escolher entre o conformismo e a clandestin

egavam a praticar os dois. Em Goya, as razões da dualidade parecem ser ao mesmdem pública e privada.Outro paralelo poderia ser estabelecido com os escritores que publicam obras ao m

m que redigem um diário íntimo, o qual revela novas facetas de sua pessoa. Muito temário é editado — e o leitor dispõe então de duas versões bem dessemelhantes do mes

primeiros exemplos desse tipo datam, aliás, da época de Goya: tal prática pressupõeum respeito pela vida interior do indivíduo que não eram encontrados antes. U

onstant, por exemplo, escreve durante anos um diário íntimo, que ele não destina evulgação — mas que o leitor de hoje pode preferir aos textos que ele entregou ao pquência, as imagens que Goya reserva para si mesmo assumem uma função parecisto de desdobramento é muito mais violento por se tratar de imagens e não de texto em Goya, a parte secreta da obra ser imponente, quantitativa e qualitativamente:enas de desenhos, que na época não são normalmente destinados ao público, mas tamaté pinturas.O artista pode então virar as costas à sociedade, mantendo-se ao mesmo tempo artista

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invasão napoleônica

O choque psicológico sofrido por Goya nos últimos anos do séculoXVIII, em consequênciaença de 1792-3 e da aventura interrompida com a duquesa de Alba em 1796-7, utação em sua visão do mundo, assim como em sua maneira de representá-lo. Ao mentor extrai conclusões radicais do transtorno provocado pelos acontecimentos políticncipalmente pela Revolução Francesa: estando abalados os próprios fundamentcial, as normas da representação vacilam, por sua vez, e abre-se o caminho paradividual. A comunicação com os outros não precisa ser imediata, a imagem se tornra Goya, um meio de expressão pessoal; doravante o artista pode pintar e desenhar mmesmo os resultados de seu trabalho.Os primeiros anos do séculoXIX vão imprimir à sua visão de mundo uma nova transformnão concerne à mente humana nem aos caminhos da pintura, mas à ação social emens. É provocada pelos eventos políticos sobrevindos em seu país. Na Europa dilerras desencadeadas por Napoleão, na qual todos são instados a tomar partido pró ou

ste último caso, a favor da Inglaterra), a situação da Espanha não é fácil. Às ideias rencesas já presentes na península Ibérica, Napoleão acrescentou o poderio milgimentos: as primeiras inquietavam, os segundos apavoravam. A situação interna do ptável: o governo mais ou menos liberal de Manuel Godoy descontenta a facbscurantista”, que se sente desprovida de seus poderes e se agarra à sua identidadesclarecidos” são descritos por ela como ateus), tradicional (o governo acaba de proiual antigo) e moral (Godoy é acusado de ser amante da rainha, o que provavelmente peranças dessa franja conservadora da população se dirigem ao herdeiro do tronnhecido por essas opiniões tradicionalistas. Este último, para livrar-se de Godoy, recNapoleão, sem perceber que desse modo introduz o lobo no aprisco. Imediatamenroveita para enviar seu exército à Espanha; seu objetivo último é ocupar Portugaor-se eficazmente aos ingleses.Num primeiro momento, o grupo conservador acolhe os soldados franceses com breditando que eles reforçarão Fernando e o ajudarão a livrar-se de Godoy. A agitaçassas e em março de 1808, em Aranjuez, produz-se uma sublevação contra o govern

surdina pelo príncipe herdeiro: a multidão ocupa o palácio de Godoy e o prende. Nplosiva, e para salvar a vida de seu ministro, CarlosIV abdica em favor do filho — o qu

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amado FernandoVII, entra triunfalmente em Madri. Sua posição, contudo, é paradoxau trono a uma revolta popular que lembra a Tomada da Bastilha, em 1789, e sua pas francesas de Murat! Essa situação confusa não satisfaz inteiramente Napoleão, oabril de 1808, convoca todos os dirigentes espanhóis a Bayonne: Fernando, seu pai

ãe, Maria Luísa, o protegido do casal real, Godoy, e outros membros da família. Nriga Fernando a devolver a coroa a CarlosIV, que abdica de novo, desta vez em favor doóprio imperador, José Bonaparte! A multidão de Madri, mais ou menos a par dessas mmpressão de que estão lhe tirando seu favorito e se revolta, em 2 de maio de 1808. Mpressão, o sangue corre. Ao longo do verão, após diversas peripécias, José é entronizEspanha, Fernando é exilado na França e seus parentes, na Itália. Agora o Exército

rviço de José, e não mais de Fernando. Tal situação se manterá, no essencial, até 1813José, por sua vez, adota uma política inspirada nos princípios “esclarecidos” que harlosIII, CarlosIV e seus ministros sucessivos, Aranda, Jovellanos e mesmo Manuel Gorias medidas com as quais seus predecessores seguramente haviam sonhado, mas que

omover: suprime a Inquisição, extingue os direitos feudais e as alfândegas inmerosos conventos. O Estado se apodera de dois terços dos bens da Igreja e ministração — o que significa também que recolhe mais rigorosamente os impostompromete a promulgar uma Constituição que limitaria seus poderes; discute-se a moibição da tauromaquia.Vários “esclarecidos” se reconhecem nesse programa e, por convicção ou por stam-se a serviço do governo: é o caso, entre as boas relações de Goya, de Cabareléndez Valdés, Moratín (mas não Jovellanos, que apoia o campo oposto); a famíliambém faz parte do grupo. Eles não acreditam ter-se tornado colaboradores do invasors ideais que sempre defenderam. Os opositores designarão esse grupo como o dosafrancessinuando que tal é a verdadeira identidade dosilustrados (esclarecidos): essa assimilaçrmite apresentar seus inimigos ideológicos como estranhos ao autêntico espírito esdivíduos comprometidos na colaboração com o ocupante. Tal propaganda, ao apreseerais como exteriores à tradição espanhola, será de grande eficácia.Na realidade, a situação é mais complexa, pois à primeira oposição, entre “obsc

sclarecidos”, acrescenta-se uma segunda, que divide o ambiente dos “esclarecidos” enimigos da ocupação francesa. Os “obscurantistas” se recusam a ver e a reconhecnflito, cuja existência enfraquece sua argumentação: se o aceitassem, seriam obrigadmesmo tempo, que as ideias das Luzes não são apenas uma importação francesa,

mensão universal e portanto não são menos “espanholas” do que as deles. Preferem aistência ao ocupante como uma nova cruzada, conduzida pelos representantes da

quisição, que visa a defender a identidade tradicional do país, católica e espanhola, ases estrangeiros descrentes. Na prática, os liberais patriotas, que combatem a ocupa

m renegar os princípios iluministas, são mais numerosos do que aqueles que aceita

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b as ordens do ocupante. Eles se agrupam em algumas províncias espanholas quupadas; em 1812, formam em Cádiz uma assembleia que adota uma Constituiçãeral: pretendem impô-la depois de expulsos os franceses. É verdade que o teor dóximo das reformas promovidas pelo detestado soberano francês…A Guerra de Independência é conduzida contra um inimigo que uns apresentam comos ideias liberais e “esclarecidas”, e outros como aquele que utiliza tais ideias para mlítica cuja verdadeira inspiração é nacionalista e imperial. Portanto, essa gue

rangeiro invasor dissimula um conflito hispano-hispânico de natureza ideológica, panhóis católicos e tradicionalistas aos espanhóis partidários das ideias iluministas, euito mais tarde, a intensidade de uma verdadeira guerra civil.Se tivéssemos de achar uma comparação com eventos mais recentes, esta seria comtre, de um lado, as forças ocidentais que ocupam o Afeganistão, munidas do projepulação desse país a democracia e os direitos humanos, e que se apoiam, localmentedivíduos “esclarecidos”, assim como sobre os que esperam aproveitar a oportunida

ma carreira rápida; e, de outro, os chefes de guerra afegãos e os talibãs, clero rógrado, que se veem desprovidos de seu poder e que, para ter êxito no combate, apntimentos patrióticos da população. Esta, que aspira sobretudo à paz e à prospncipal vítima dos confrontos sangrentos entre os diferentes pretendentes ao pod

esença de forças militares estrangeiras compromete os ideais que elas supostamente pm vez de torná-los mais eficazes. Reencontra-se aí um esquema característico da

loniais do séculoXIX: utilizados como pretexto ou desculpa para a ocupação de terras evalores das Luzes e da civilização europeia se veem desconsiderados, percebidos a

muflagem de uma política conduzida unicamente no interesse dos colonizadores.A esperança dos franceses de serem acolhidos com flores e festejados como saparece; começa então a longa Guerra de Independência. A forma que o combate asExército francês invoca um espírito revelado pelas guerras revolucionárias, o de umcular que legitima sua violência pela promessa de uma salvação temporal para todo

ma “cruzada de liberdade universal”, segundo a frase de um de seus promotores. Parjetivo tão sublime, todos os meios são permitidos e, em vez dos conflitos convencionecedente, vem uma guerra total que atinge a população civil tanto quanto os soldados.sistentes, por sua vez, sabem que suas forças militares não são suficientes para gimentos de Napoleão. Mas eles têm outras vantagens: conhecem bem o terreno e benmpatia da população. Então inventam uma nova maneira de lutar, na qual oportunação, substitui a batalha: é a pequena guerra, a guerilla, que desconcerta o Exército bituado a confrontações mais francas. No início do séculoXIX, portanto, a Espanha se reno onde se manifestam várias inovações que serão familiares às gerações seguinteército moderno, o de Napoleão, enfrenta a primeira resistência armada organizada

ão é de espantar que, no mesmo momento, apareça o primeiro grande pintor da modern

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A guerrilha prosseguirá ao longo de toda a ocupação, de 1808 a 1813. Numerosasnunciam a selvageria francesa. Em 1809, a junta de Valência assim descreve osomportaram-se pior do que os hotentotes. Profanaram nossos templos, insultaram noupraram nossas mulheres”.1 Isso merece reparação! Um observador inglês relata haveerrilheiro espanhol mostrar sua coleção de orelhas e dedos humanos, “arrancados aonceses que ele mesmo havia matado na batalha”.A violência aumenta regularmente, de uma e de outra parte: cada agressão de um presálias, seguidas de um ataque ainda mais feroz, que supostamente vingará a ofens

m crescendo sem fim. À guerra total conduzida pelos franceses responde uma violênclado espanhol. Um chefe de destacamento relata: “Eu sempre mantinha numerosos prnimigo enforcava ou fuzilava um dos meus oficiais, como represália eu submetia quciais à mesma sorte; para um soldado morto, eu sacrificava vinte”.2 São esses, segundo a f

ermaine Tillion, os “inimigos complementares”, visto que cada um alimenta a intratro. Uns matam e torturam em nome da liberdade e da igualdade, os outros em nome panha; uns esquecem os direitos humanos, os outros a caridade cristã: todos têm ceito, todos massacram impiedosamente os inimigos. Contemporâneo exato de G

749-1832) reagirá assim a uma situação análoga, a ocupação da Alemanha poleônicas e a encarniçada resistência da população:

Maldito seja aquele que, irrefletido,Com uma coragem demasiado temerária,Faz hoje, enquanto alemão,O que o franco da Córsega fez ontem.3

Em 1811-2, aos outros desastres trazidos pela guerra acrescenta-se em Madri a fome,imativas provocou 20 mil mortes.Ao longo de todo esse período, Goya continua como pintor de câmara do rei, aslácio. Convém distinguir aqui seu comportamento público, fácil de reconstituircumentos, e seus sentimentos e pensamentos, que podemos apenas adivinhar. No qumeiro, o pintor está submetido às obrigações inerentes ao seu cargo. Assim que Fern

, Goya deve pintar-lhe o retrato, o que faz em março-abril de 1808, aparentementetusiasmo de ambos os lados. Durante o verão, José substituiu Fernando, mas foi obrase imediatamente, antes de voltar a Madri em novembro. Nesse ínterim, o general qfesa de Saragoça contra as tropas francesas pediu a Goya que retornasse à sua regier e examinar as ruínas da cidade, com o objetivo de pintar as glórias de seus habitz a viagem em outubro-novembro desse ano e, portanto, vê de perto os horrores dzembro de 1808, está de novo em Madri, onde é obrigado, assim como todos os outmília, a jurar “amor e fidelidade” ao rei José.Em 1809, ele aceita uma encomenda da municipalidade de Madri, concluída pou

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adro se chama hoje Alegoria da cidade de Madri (GW 874). A história dessa tela, dealmente convencional, é instrutiva. No meio das figuras alegóricas encontra-se um mntinha, num primeiro momento, o retrato de José Bonaparte. Quando este último dade, em 1812, Goya apaga o retrato e escreve no lugar a palavra “Constitución”. Fsé retorna antes do fim do ano, e Goya realiza rapidamente um novo retrato do sobee é definitivamente expulso, a palavra “Constitución” reaparece. Pouco depois Fervamente rei, mas não gosta da ideia de uma constituição: o termo é então apagado m

bstituído pelo retrato do novo soberano… Em meados do séculoXIX, bem depois da moya, recobre-se este último retrato para escrever no lugar a frase “El libro de la Cinta anos mais tarde, contudo, sobrevém uma última transformação: em lembrança dntra os franceses, escreve-se no medalhão “Dos de mayo”, termos que ainda hoje pod

quadro. Finalmente se encontrou uma recordação heroica na qual todos —nservadores — podem se reconhecer!Na mesma época, Goya também pinta o retrato dos diferentes personagens cessivamente a ribalta da cena política, tanto dignitários franceses quanto insurretosimo da série é o general inglês Wellington… Tais são as servidões do palácio!O primeiro biógrafo de Goya, Matheron, que via no pintor um representante do Iluminaterialista e republicano, exprime sobre isso uma crítica: “Esse furioso liberaconsequência inexplicável, serviu com igual zelo a todos os reis de seu país”.4 Mas sertude realmente incompreensível e condenável? Deve-se exigir de um artista do nívelcomporte como bom cidadão, e até como fervoroso militante de um programa erença do político, que em princípio visa melhorar a condição de seus compatriota

zão, privilegia a ação pública, o artista — pintor, escritor — vive simultaneamemporalidades distintas, o presente e uma espécie de eternidade. De um lado, ele émo os outros, cujos atos serão julgados segundo as leis e as normas de sua época; má envolvido numa busca por uma verdade intemporal cujos resultados já não se destimpatriotas, mas à humanidade. O que é bom para um político não basta ao artista,

mbição mais alta. Goya pode admirar a ação cívica de Jovellanos, mas não pode cona. Um deve julgar os homens, favorecer os bons e repelir aqueles que considera m

mbora não possa renunciar às suas tendências e aos seus julgamentos, deve copresentar tanto as forças do bem quanto as do mal. A intransigência do cidadãobalho do artista.Ora, para conduzir essa busca da verdade, o artista precisa livrar-se das preocupbrevivência cotidiana. Duas soluções se oferecem a ele: dispor de um protetor rico locar suas obras em venda livre. Não é garantido que essa última solução, que será pépoca moderna, sobretudo para os escritores mas também para os pintores, contribua

tonomia e a liberdade da busca que eles desenvolvem. Viver com a obrigação d

blico — o que significa também a de levar em conta a opinião comum de seu tempo

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ereótipos vigentes entre os críticos, esses legisladores do gosto — pode desviaradora de maneira mais profunda e mais danosa do que o faria a dependência de ubretudo se este for tolerante e de espírito amplo. A posição de pintor do rei assegurdependência econômica; suas obrigações perante a corte não o impedem absolutamene, explorar caminhos desconhecidos. A prova é que justamente ele, o artista oficial,tro pintor politicamente irrepreensível, é quem desencadeia a revolução pictórica msses dois últimos séculos na Europa, e ao mesmo tempo transforma o pensamento das

De qualquer modo, não podemos nos impedir de notar este paradoxo: o pintor que,alquer outro, anuncia o advento da modernidade, subverte as hierarquias existentes relações da arte com a autoridade, é também aquele que, ao longo de todos os s

aturidade, será sustentado pelos reis do país, inclusive por um soberano tão retrógradomo FernandoVII. Nesse sentido, poderíamos dizer que o comportamento de Goya está scrição feita por Montaigne de sua própria conduta pública: “Minha razão não está mrvar-se e dobrar-se, mas meus joelhos sim”.5 Quanto à razão e aos sentimentos de Goyabe?Em 1805, seu filho se casa, e nessa ocasião o pintor trava conhecimento com uma jovocadia, então com dezessete anos, parenta de sua nora. Dois anos depois, Leocadiamerciante rico, Isidoro Weiss, com quem terá dois filhos; mas parece que em dadoou uma ligação entre ela e o pintor. Em setembro de 1811, declara-se a ruptura entreeiss; no ano seguinte, o marido presta queixa contra a esposa por infidelidade (mas nasa queixa se refira a Goya). Em 1812, morre Josefa, mulher do pintor; em 1813 (o12), Goya tenta deixar Madri, talvez em companhia de Leocadia, mas é cham

rigações, por ordem do ministro da Polícia, e retorna prontamente à capital. Em 1814uz uma filha, María Rosario, de quem Goya se ocupará ativamente em seus últimosois Leocadia e María Rosario o acompanham no exílio em Bordeaux). Após a morte dum inventário dos bens do casal (possível indicação de que o filho do pintor, Ja

arecimento de uma candidata à partilha da futura herança). Esse inventário mostra qumem rico, proprietário de várias casas, de joias e de importantes somas em dinheiroar de seus quadros — que valem muito.No plano dos sentimentos políticos, Goya só pode estar dividido, diante de uzoavelmente complexa. De saída, seu patriotismo espontâneo, mas também seus gosela tourada, pelo teatro popular, pelas festas) o levariam a aproximar-se do povoanto este último é a principal vítima da guerra sempre mais violenta. Por outro ladopintor da corte obriga-o a mostrar-se fiel aos detentores do poder, quaisquer que

us amigos “esclarecidos”, enfim, encontram-se dos dois lados no conflito em cursora compreende claramente é que não pode satisfazer a todos os partidos ao mesmo ttão adotar uma posição mais reservada, e também mais complexa. Percebe que

ofessadas não garantem a virtude dos atos. Os grandes princípios “esclarecidos” pod

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stificativa para uma ocupação estrangeira e para uma obrigação de colaboração. Se sm defender as ideias liberais, ele poderia ser confundido com os inimigos de seu povmitasse unicamente à defesa da Espanha contra os franceses, ficaria ao lado do clero

Inquisição, da qual zombou a vida toda!E m Herman e Doroteia, sua “epopeia burguesa” publicada em 1798, Goethe rntimentos ambivalentes dos povos vizinhos à França diante da Revolução Franstornos que ela acarretava. No início, a população vibra ao evocar este novo ide

ualdade, fraternidade; entusiasma-se pela defesa dos direitos humanos. Impossível nãoração bater mais forte

Quando se ouviu falar de direitos comuns a todos os homens,Da liberdade que exalta e da louvável igualdade!

Pouco depois, contudo, surgem as nuvens no horizonte. O Exército francês penezendo, no início — à Alemanha e à Espanha —, uma mensagem amigável. Mas, desleidade de resistência, desencadeia-se a luta pelo poder, o sangue corre, a violência s

Só então experimentamos o destino trágico da guerra.6

Malraux usa uma comparação eloquente para descrever os Desastres da guerra, novo conjuavuras criado por Goya: é como “o álbum de um comunista após a ocupação de spas russas”.7 Pior: doravante Goya sabe que as ideias iluministas podem também

stificar invasão, repressão, massacres; elas não bastam para impedir a violênciantrário — é em seu nome que as tropas de Napoleão a praticam. O remédio conciais, no qual ele havia acreditado, revela-se ineficaz, e até provoca danos suplemmente o sono da razão gera monstros, seu estado de vigília faz o mesmo. É de espantando-se tornado mais cético, Goya se abstenha de manifestar sua adesão a qualquer ideEle não satisfará o pedido de seus concidadãos de Saragoça, não pintará, nessa épocs habitantes”. Produzirá numerosas imagens da guerra, mas, como regra geral, estas nheroico. Em sua maioria, elas não defendem nem glorificam nenhum partido, con

ostrar a violência e seus terríveis efeitos; não defendem nenhuma causa, e sim tsespero — e a compaixão. Diante do espetáculo da guerra, Goya jamais cederá a etizante, assim como não sentirá admiração pelo campeão da época, o imperador NapEm relação a este último, ele não compartilhará os sentimentos de Goethe. O pnheceu o imperador em Erfurt, em 1808, no exato momento em que ocorria o cerciás, foi para pedir a neutralidade dos russos durante sua campanha na Espanha que Ncontrar em Erfurt o imperador russo AlexandreI: os dois soberanos, numa prefiguração rmano-soviético de 1939-41, entram em acordo para repartir suas esferas de influênno mundo, em detrimento do inimigo inglês. Goethe conservou uma lembrança emoc

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trevista e uma admiração por Napoleão: não tanto pelo que este fez quanto por seu magir. Em suma, é o julgamento de um artista sobre outro. “Sempre iluminado, seoluto, e dotado a cada momento da energia suficiente para desencadear de imediato avia reconhecido como vantajoso e necessário”, dirá Goethe ao seu secretário Eckermaarço de 1828. E acrescenta: “Napoleão foi um dos homens mais produtivos que já exeu amigo, não se é produtivo somente ao escrever poemas ou peças de teatro, existe odutividade das ações”.8

Nem em 1808, nem em 1828 Goya será tentado a fazer um julgamento estético sobrenduzir a guerra ou de vencer as batalhas. Ele jamais separará seu julgamento ssastrosos de uma ação e a repulsa que lhe inspiram os meios utilizados para alcançgará os políticos como se estes fossem artistas. Os ideólogos justificam os meios atrblimes: claro, matar e torturar é deplorável, mas pelo menos terão sido instauradvagem a democracia e os direitos humanos! Os estetas estão prontos a admirar a bele

esmo quando este é posto a serviço de um objetivo desolador: assim foi que, muito Nero diante de Roma em chamas e de Napoleão evocando os incêndios de Moscou, nistro do Armamento de Hitler, não pôde impedir-se de admirar o belo espetáculo

cendiárias caindo sobre a cidade onde ele se encontrava, Berlim.A Goya, o “destino trágico da guerra” inspirará unicamente um sentimento: o horror.

Fig. 11. “Enterrá-los e calar-se”, Desastres 18.

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Os estragos da guerra

A principal reação artística de Goya ao conflito bélico será constituída pela série itulada Desastres da guerra e pelos desenhos a ela relacionados, assim como por algunDesastres são em número de oitenta na primeira edição (póstuma) da série, publicad

e fato, por razões que veremos adiante, e contrariamente aosCaprichos, Goya jamais publicgunda coletânea de gravuras. Mas organizou um volume de provas, confiado (ou ofer

migo Ceán Bermúdez, que comporta 85 imagens. Como no caso dosCaprichos, todas trazemgenda, em geral lacônica: esta, em vez de explicar a imagem, incita a generalizar-lhe ooblematizá-la, ou então formula um comentário irônico.Tematicamente, as gravuras se distribuem em três grupos: as violências bélicas pas; os efeitos da fome em Madri; e um terceiro conjunto que parece visar às reaçõesós a Restauração de 1814 (as quais, por enquanto, deixaremos de lado). Cronologicaavuras, as primeiras depois dosCaprichos, pertencem igualmente a três momentos. Onjunto foi constituído a partir de 1810 (em todo caso, é essa a data mais antiga que

gundo é posterior a 1812 (contém tanto imagens da fome quanto da guerra) e finalmenovém dos anos 1815 a 1819, talvez até 1823. No início do volume, Goya coloca o satais consequências da guerra sangrenta na Espanha contra Bonaparte e outropressionantes [enfáticos]” (o título Desastres da guerra será escolhido pelos editores). pricho estabelece de saída a continuidade com as gravuras dos anos 1797-8, afirmanparte da imaginação ao lado daquela da observação; quanto aenfáticos, acredita-se que ess

retórica significa mais ou menos “alegóricos” e se refere às gravuras pertencenteupo cronológico.A ordem na qual se sucedem as gravuras não é absolutamente indiferente. Assim cprichos, Goya hesitou e experimentou, como testemunham os números gravados nas eo correspondem à sucessão finalmente adotada. As imagens do início e do fim contbre a maneira de interpretar o conjunto. Voltaremos mais adiante àquelas que terminaação temática com o período da Restauração; observemos antes a gravura agoracio, embora pertença ao grupo mais tardio. Desastres 1 (GW 993) mostra um homem ajoaços abertos, olhar acabrunhado dirigido para o alto, no meio de um cenário indete

nistro, no qual flutuam alguns espectros humanos. A legenda diz: “Tristes pressentimi acontecer”. Essa imagem, portanto, encontra-se no lugar que era ocupado pelo ret

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sCaprichos, tanto o do homem seguro de si, na versão definitiva, quanto o daquele isadelos, na versão inicial. É legítimo pensar que esse homem sofredor e suplicanteertura dos Desastres, é ainda uma imagem — simbólica, dessa vez — do pintor, e que oya que experimenta esses penosos pressentimentos, ele que, assumindo igualmenteisto no jardim de Getsêmani, esperava não ter de beber daquele cálice.Haveria aí um segundo indício sugestivo de que, após aquele fornecido pelo termo “agens seguintes, longe de ser um simples registro daquilo que o pintor viu durante os guerra, prolongam a exploração de seu mundo interior, povoado de demônios. Se ders indícios, Goya havia, ao menos parcialmente, imaginado esses “desastres” antecio da guerra: já fazia anos que representava os horrores humanos. Seus pesadelosoféticos, o mundo se tornou tão negro quanto eles. Os estragos da guerra, agora mntinuidade ao mundo dos bruxos, que ele tinha começado a representar dez anos ante, nessa época, não precisa mais pintar demônios: já que o real ultrapassou sua imagcessário nos mostrar o que lhe vai no íntimo. Convocar o diabo para que, se os

mportam de maneira diabólica? A loucura do mundo foi ao encontro dos dsenfreados do pintor; ambos formam agora um todo.Chega-se à mesma conclusão examinando as gravuras em si: não é concebível que Ger que seja, aliás) tenha sido testemunha ocular de todas essas sevícias, desse pavoros violências bélicas. Provavelmente, ele viu um certo número delas. Durante suragoça, em 1808, assim como mais tarde, por ocasião de sua escapada de Madri em 1

e deve ter observado os resultados dos combates encarniçados entre soldados e in11-2, não pôde evitar ver os cadáveres que se espalhavam pelas ruas de suansequência da fome geral. Por duas vezes, Goya anota abaixo da gravura “eu vi iesmo nesses casos, a composição esmerada e equilibrada da gravura nos faz duvida a transcrição direta de suas impressões: a verdade que ele invoca é a da arte, e nãreal. Então, esses poucos massacres observados despertaram suas visões ant

aginação, nutrida além disso pelos relatos que não podiam deixar de circular, mversificou as cenas vistas, originando assim os Desastres.É preciso renunciar a ver em Goya um precursor do repórter ou do fotógrafo de g

oca, assim como no momento da Restauração, o pintor se contenta em explorar sua mm dúvida, alimentou-se de suas experiências vividas, mas não só delas. Igualmente lembranças antigas, as narrativas dos contemporâneos, a leitura de obras históricas, atros pintores do passado, às quais se acrescentam, claro, as fantasias pessoais. avuras e desenhos de Goya revelam aquilo que ele pensou e imaginou, e não o que vo, o pintor não se dirige apenas ao presente: suas lembranças e suas invenções são

dotadas de sentido, e é por isso que nos falam com tanta força hoje. A verdade do artisnalista. Como precedentemente, se ele usa frases como “eu vi isto” (caso dos Desastres 44

menos para pretender uma precisão fotográfica do que para atestar a realidad

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presentadas — e essas duas gravuras não representam as cenas mais chocantes.Existe outra lenda tenaz a respeito dos Desastres, dificilmente defensável se olharmos o ssas imagens. Segundo ela, tais gravuras seriam a expressão do espírito patriótiostrando os espanhóis como vítimas inocentes ou como heróis valorosos, e os ocupamo carrascos bárbaros. Essa opinião, evidentemente, não é compartilhada por todrrari, por exemplo, escreve: “Os que não se resignam a ser vítimas se tornam rrascos, sempre que podem:resistentes, cujas reações os levam às piores crueldades. […

cepcional dos Desastres vem precisamente de que essa série gravada não foi feita partriotismo”.1 É verdade que as vítimas espanholas são mais numerosas (as armas dos f

ais aperfeiçoadas), mas violência e absurdo se distribuem equitativamente de um ladoObservemos a demonstração dessa tese por Goya. Para que não haja equívoco, ele icio do conjunto, imediatamente após a gravura sobre os “pressentimentos”, outr

ostram, a primeira ( Desastres 2, GW 995, fig. 12), soldados franceses executando panhóis, e a segunda ( Desastres 3, GW 996, fig. 13), combatentes espanhóis massacrandomachadadas. Se ainda tivéssemos dúvidas sobre o sentido dessa justaposição, sipadas pela leitura das legendas, que põem os pingos nos is. A primeira diz “Com ou

segunda, simplesmente “A mesma coisa” — embora o primeiro massacre seja “impgundo, “patriótico”… Assim, a série de gravuras estabelece de saída a equivalência prrascos e vítimas. Ela também lembra o papel marginal das justificações fornecidasolência é desencadeada por forças que escapam a essa mesma razão.Outros grupos de gravuras ilustram a mesma proximidade entre os atores. Desastres 32 (GW ostra o laborioso enforcamento de um “inimigo” por três soldados franceses: a árvo

á pendurado é muito baixa, seus pés se arrastam no solo, e então os soldados se emmpurrá-lo e puxá-lo até que ele expire. A legenda diz simplesmente: “Por quê?”. Essa pera resposta. Na guerra, o horror não tem explicações. Cento e trinta anos mais tardcutaria da boca de um guardaSS esta lei que descrevia o regime de Auschwitz: “Aqui r quê”; na guerra de Goya, também não. Três imagens adiante, em Desastres 35 (GW 1050),

m grupo de espanhóis garroteados; foram executados pelos franceses ou por outros eteriam considerado traidores? Em todo caso, a cruz lhes foi colocada na fronte e nasdessa vez, em nome de Deus), a lista de seus crimes pende do pescoço deles, e

ecução é conforme ao costume espanhol. Agora a legenda diz, sem ponto de interrogansegue saber por quê” — aparentemente, para o pintor, o pretexto invocado na conde

papel oficial não é suficiente. Logo depois, em Desastres 36 (GW 1051), vê-se de nopanhol enforcado; a legenda emenda, como se se tratasse dos mesmos atores: “Aquesastres 16 (GW 1017), por sua vez, mostra os insurretos espanhóis despindo os soldade eles acabam de matar; a legenda explica sobriamente: “Eles se aproveitam”.

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Fig. 12. “Com ou sem razão”, Desastres 2.

Vimos que, no plano ideológico, a oposição entre as duas forças presentes era irfensores das Luzes enfrentavam os servos de Deus, os partidários dos ideais utinguiam claramente dos tradicionalistas. Mas Goya não se contenta em registrar

antidos por uns e por outros; também observa as práticas deles. Ora, desse último ponmelhanças vencem as diferenças: nos combates, os uniformes desaparecem, os nam intercambiáveis, os partidos se confundem; mesmas atrocidades, mesmo absurdo

Fig. 13. “A mesma coisa”, Desastres 3.

Para ilustrar as intenções patrióticas de Goya, cita-se habitualmente a gravura Desastres 00), que mostra uma mulher manejando um canhão. Acreditou-se que esse era um faavura seria inspirada na jovem Augustina de Aragón, que, durante o cerco de Sanceses, se distinguira armando o canhão. Contudo, pode-se observar, de saída, qu

ica imagem (de um total de 85) que se conseguiu vincular a um fato específico dpanhola. Além disso, convém lembrar o contexto no qual ela aparece no interior rdade, tal gravura é a última de uma série de quatro, todas as quais mostram o compoulheres durante a guerra. A primeira, Desastres 4 (GW 997), que representa mulheres ajudmens, tem uma legenda puramente descritiva: “As mulheres dão coragem”. A seguinte DesasW 998), já comporta um texto bem mais ambíguo: “E são feras”, o que dificilmente po

m simples elogio, até porque a imagem é a de um massacre impiedoso. Dessa vez,rticipam ativamente do combate. Uma delas se apresta a esmagar o crânio de um som uma pedra enorme; uma segunda, que, no entanto, segura com uma das mãos seu b

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fia com a outra mão uma lança no ventre de um segundo soldado. Os inimigos, porrmanecem passivos: um terceiro soldado atira à queima-roupa nas mulheres. Pode-se a legenda de Desastres 6 (GW 999), “Bem feito para ti”, a qual mostra o cadáver de uncês, não pode ser tomada ao pé da letra: são as mulheres combatentes que falam

oya.Essa interpretação é reforçada por outro par de gravuras, Desastres 28 (GW 1040) e DesastrW 1042), que mostram dois momentos de uma mesma cena. Na primeira, os insurret

ão massacrando outro espanhol caído no chão: é de novo um traidor, um colaancesado. Um dos carrascos enfia sua arma no ânus dele. A legenda diz “Popula

aramente pejorativo para designar a face sombria do povo. Tal distinção não é supas facetas de uma mesma entidade são as que nós distinguimos ao opor os regimes s regimes populistas. Os primeiros veem no povo a fonte de todo poder e o beneficiáa ação; os segundos se deixam guiar pelas paixões dominantes do momento. Uns ageinteresse geral, ainda que este seja impopular, os outros adulam o gosto da multidão.Na gravura seguinte, arrasta-se o corpo inanimado cujos pés estão atados por uma cocontinua a espancá-lo, dando assim novas provas de patriotismo. O sentido é claro: á concluído, agora a procissão triunfal pode começar. A legenda, “Ele merecia”, é manica — e ao mesmo tempo bastante próxima do “Bem feito para ti” de Desastres 6 . Podrtanto, perguntar-nos se a legenda da gravura “patriótica” da mulher com o canhão, Desaste diz “Que coragem!”, não deve por sua vez ser entendida ironicamente: o tirosparado por essa mulher, embora defenda os “nossos” contra os “outros”, os “bon

maus”, provocará, como qualquer explosão, morte e desolação. Goya não se empenha

tos heroicos dos combatentes, mas as “consequências fatais da guerra”.Aliás, é o que mostram as gravuras imediatamente seguintes: assim que se constrativa da bravura militar das mulheres, encadeiam-se imagens que as representam

ais familiar, o das vítimas de estupros ( Desastres 9, 10, 11, 13, 19; GW 1005, 1006, 100722). A legenda de Desastres 10 (fig. 14), “Também não”, remete à precedente, “Elas nãoimagem mostra um embaralhamento extraordinário de corpos, no qual já não se rtence este ou aquele membro — a transgressão das regras morais parece redobrntornos dos corpos. No entanto, a significação global da cena não deixa nenhuma dúalmente de estupros e de morte. Para quem vive no séculoXXI, tais cenas evocam os reupros coletivos e de massacres ocorridos na Iugoslávia ou no Congo; elas também

as isso não é um consolo — que essa forma de violência não é uma invenção recenteo é reservada aos povos exóticos. A guerra acarreta matanças, atrocidades, fome.A tonalidade que domina toda essa parte dos Desastres é a de um grito de indignação asencadeamento da violência. Somente as seis primeiras gravuras ( Desastres 2 a 7 ) mombates; na sequência da coletânea, Goya se empenha em representar vítimas —

portam, e não aqueles que agem. Pelo menos metade das gravuras lhes é consagrada

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upros ou da fome ( Desastres 48 a 64), de torturas ou de execuções, civis fugindo à viombates ( Desastres 41 a 45) ou entregando-se à pilhagem: os vivos despem ou desortos, abastecendo-se assim sem grande custo ( Desastres 16 , 24, 25; GW 1017, 1033, 1035).Goya mostra cadáveres em abundância. O amontoamento de corpos nus e mortos evoagens dos campos de concentração (Zoran Mušic,̌ saído de Dachau, dizia encontrar som

oya uma imagem do que ele mesmo tinha vivido). Desastres 18 (GW 1020, fig. 11), umavuras mais antigas, nos coloca diante de uma simples pilha de cadáveres, contempl

temunhas, seres humanos normais e portanto desesperados, um dos quais poderia servador acabrunhado; o odor pestilencial dos corpos em decomposição invadeesastres 60 (GW 1094), gravura relativa ao período da fome, é muito semelhante: ntasmática está de pé, desorientada, no meio dos cadáveres; a legenda é “Não há quemutra gravura, Desastres 12 (GW 1009), mostra um homem vomitando diante da massa utilados, em putrefação; a legenda formula um epitáfio desesperado: “Foi para istsceram”. A legenda de Desastres 18 diz simplesmente “Enterrá-los e calar-se”,

mplicidade é eloquente: diante das vítimas, os discursos estão fora de lugar. Que vocando as causas justas ou a necessidade de vingar a afronta sofrida, poderiam catombe?

Fig. 14. “Também não”, Desastres 10.

Às vítimas diretas da guerra acrescentam-se, no seio da população civil, as da fomlo cerco de Madri, acompanhada de suas próprias consequências — a redução à meupros, as mortes em massa. Uma das imagens mais comoventes mostra apenas um c

uma jovem carregada por três homens ( Desastres 50, GW 1074, fig. 15) e seguida a poucor uma garotinha que tenta enxugar as lágrimas: é o desespero em estado puro, subais pela grisalha uniforme que recobre a gravura.Outras imagens dos Desastres mostram (e esse é o tema mais frequente na coletâneaecução individual ou coletiva pelos meios mais variados, nos quais a imaginação hur-se livre curso; ou ainda o encarniçamento sobre os cadáveres inimigos. Desastres 33 (GW presenta dois soldados franceses partindo com serra um homem nu. Desastres 39 (GW 1nicamente intitulado “Que façanha! Com mortos!”, apresenta vários cadáveres daços, como num balcão de açougue. Pensa-se hoje que esses cadáveres pertencem

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ecutados como “traidores” por outros espanhóis, pois um bom número desses casos dquartejamento era descrito na imprensa contemporânea que Goya podia ler. Diz o tntença pronunciada contra dois “traidores” por um “tribunal popular” em Tarragona, e1809: “Que sejam condenados ao enforcamento e seus cadáveres, depois de arra

capitados e sua mão direita cortada, e que suas cabeças e mãos sejam colocadas dade, para serem vistas por todos, a fim de servir de exemplo aos outros celerados m contraposição, em Desastres 37 (GW 1052), o homem nu, empalado vivo, é de fato v

ldados napoleônicos que vemos atrás dele. Desnudadas, as vítimas já não pertencempo, as justificativas dadas para os massacres se evaporam. Todas essas cenas ppostas sob o signo da legenda que acompanha Desastres 26 (GW 1037), e que veremos re

m outro lugar: “Não se consegue olhar”; no entanto, é precisamente o que Goya nos obr

Fig. 15. “Mãe infeliz!”, Desastres 50.

Marina Tsvetáieva descreverá em termos semelhantes as vítimas da terrível guerra 19, oporá na Rússia os “vermelhos” aos “brancos”:

Ele era branco — está vermelho:O sangue o empurpurou.Ele era vermelho — está branco:A morte o branqueou.3

Um dos elementos mais chocantes dessas imagens reside não na violência dos adiferença, e até na calma, com a qual seus autores continuam a comportar-se. Desastres 36 (fiexemplar nesse sentido: o que nos impressiona não é tanto o enforcado do primeiro ptros executados que vemos atrás dele, mas a postura descontraída, tranquila, pa

editativa, do soldado francês que supervisionou tal execução. Ao espectador de hoje, mosas fotografias saídas da prisão de Abu Ghraib no Iraque: mais ainda do que o

montoados, torturados com eletricidade ou trêmulos de medo diante de cães, o que crriso nos lábios daqueles rapazes e moças americanos, bem alimentados e saudáveis,

turar os prisioneiros não apresentava aparentemente problema algum. A gravura degenda “Aqui tampouco”, que remete àquela da gravura anterior, a qual diz, retornando

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presente, “Não se consegue saber por quê”.Longe de encarnar o páthos patriótico, Goya se dedica a mostrar que a guerra é umrapassa qualquer “fim”. No ponto de partida, aqueles que a desencadeiam têm indu

zões de agir que lhes parecem legítimas, objetivos que eles consideram necessário alperiência mesma da guerra é tão intensa que faz esquecer tudo o que não é ela, arrasbilhão as decisões anteriores tanto quanto as justificações dadas em nome dos efeitoe importa num ato de guerra é que se faz a guerra, e não a razão pela qual ela é nefício que se espera dela. A violência dos atos neutraliza a ideologia em cujo noalizados.

Fig. 16. “Aqui tampouco”, Desastres 36 .

As imagens de Goya são de uma brutalidade extrema. Os poucos paralelos que nos rmitem sobretudo apreender melhor a originalidade delas. As misérias e os infortúnios da

Jacques Callot, que datam de 1633, registram numerosos massacres cometidos duras Trinta Anos , mas não possuem nem a ambição nem a força das imagens de Goya: essavuras desprovidas de julgamento moral dão uma visão distante dos atos executamos colocados diante de nenhum detalhe, nenhum rosto, nenhum sentimento. As andes viagens, gravadas por Théodore de Bry e seus colaboradores e publicadas a pséculoXVI, representam com frequência as atrocidades cometidas pelos colonizadore

rante a conquista da América; trata-se, contudo, de violências infligidas aos “selvagemo no caso de Goya — a compatriotas.Também nos vêm à mente as imagens que ilustram a vida dos mártires cristãos ou las, os corpos mutilados e desmembrados eram representados segundo um contextotológico. Os Desastres da guerra revelam uma grande familiaridade com essa tradição stã. Mas, em um caso, o sofrimento das vítimas supostamente ilustra a força da andeza de Deus, ao passo que, em outro, ele é vão, inteiramente desprovido de justifsastres não remetem a uma ordem superior, mas à sua ausência; não se aparentam corificadores (supondo-se que estes existam), mas a massacres que atraem outros merra e a corrente de atrocidades que a acompanha já não podem ser úteis a nenhum o

mplesmente revelam a violência de que os homens (e às vezes as mulheres) são

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perda das referências materiais é como que a consequência do desaparecimento de tooral. As imagens que Goya desenhou e gravou constituem uma série sem precedenttalhe daquilo que é mostrado como pela qualidade do traço.Alguns desenhos contemporâneos reforçam essa impressão. Um deles deve ter sido rstas a Desastres 21, “Será a mesma coisa”, mas a gravura final é bastante diferente. NW 1028, fig. 18), ao qual a aguada de sépia dá uma força expressiva imediata, somos m uma luta em que mortos e vivos se assemelham, em que é impossível saber a

rtence cada combatente. Os gestos deles falam, o rosto dele está mudo; o céu é nanca. Ou aindaGW 1148, outra sépia negra, em que a luta está mais avançada: um dos cencontra no chão, sua angústia se condensa no gesto da mão esquerda e na expressãtro se apresta a massacrá-lo — mas, quem sabe, sucumbirá antes, sob os golpes de

acante? Mais uma vez, os meios utilizados servem admiravelmente ao objetivo pressão de rapidez do toque reproduz a precipitação dos combates; a interpenetraçãoogo entre preto e branco permitem fixar para sempre o caos e a violência da guerra.

Fig. 17. “Os estragos da guerra”, Desastres 30.

Por que Goya produziu os Desastres da guerra? Tem-se a impressão de que a resposrgunta é simples: porque não podia agir de outro modo. O fato de ter vivido e obperiência fez dele uma testemunha preciosa. Um pouco como os sobreviventes doncentração, que na volta se sentem encarregados de uma missão — contar o que te

ra que a humanidade saiba aquilo de que é capaz —, ele sentiu a necessidade de soltição. É sua maneira de solidarizar-se com todas as vítimas, e também de mostrar qurigados a matar como resposta às matanças. Goya renunciará a publicar essas imago prejudica sua decisão de gravá-las e preservá-las. Ele sem dúvida acredita que, cea elas chegarão aos seus destinatários (isso se produziria 35 anos após sua morte). Conçada ao mar, contendo uma mensagem preciosa, seu relato sobre a guerra acabouaia, onde foi encontrado e decifrado pelos novos habitantes.

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Fig. 18.Será a mesma coisa.

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Homicídios, estupros, salteadores, soldados

O inventário dos bens que Goya possui no momento da morte de sua mulher, em 181ma ideia aproximada dos quadros que ele havia pintado nos anos anteriores. Entre esmero parece ter relação com os acontecimentos em curso (os que trazem no catálog

W 914 a 946); alguns formam no inventário um grupo designado como “Doze horroreas não conhecemos a data de sua execução e é possível que vários deles sejam anteriongrenta” que começou em 1808. Goya pode se inspirar naquilo que observa ou naquilar, mas também no que ele denomina seus “tristes pressentimentos”, suas apreensõonsequências fatais” de uma natureza humana violenta. Seus quadros, como vimolexo direto dos eventos em curso, mas o resultado das meditações que estes lhe susciAlguns deles permaneceram no ateliê do pintor, outros foram vendidos a aficionadoram pintados por iniciativa própria e não são produto de uma encomenda; pertencessoal, privada, íntima desse pintor duplo que Goya se tornou. Como nas gravuras, ez de combatentes heroicos, as vítimas impotentes da violência generalizada, quer es

o a face da guerra. Desde 1793, Goya procura revelar a verdade do mundompenhando-se na representação dos seres que lhe povoam as margens: criminosos, pucos (ils. 4, 5 e 6). Reconhecem-se os prisioneiros em vários desses novos quadrospresenta um pequeno grupo de pessoas prostradas atrás de um homem imobilizado (GW 933)

uma mulher que espera em sua cela o momento de ser executada (GW 915). Encontra-sóbada semelhante à das prisões, iluminada por uma janela ao fundo, num quadro cujoo identificados como pestíferos, encerrados em um asilo (GW 919, il. 10). Lê-se o desespas posturas, tanto quanto na dos detidos: eles jamais deixarão esses lugares. Aqui, omisturam aos cadáveres.Algumas outras cenas remetem ainda mais diretamente aos temas dos Desastres. A guerrao se limitou a causar vítimas entre os combatentes; teve como efeito a suspensão dcial, a abolição das regras da vida comum: a força bruta substituiu a lei. Mas já fapanha é presa dos bandos que escapam a qualquer controle (ainda estamos noanuscrito encontrado em Saragoça). Goya deixou várias séries de pequenas pinturas qdiferentes fases dos confrontos violentos que se seguem. Uma delas parte de um inci

oca (em 1806), teve muita repercussão: um bandido é desarmado e detido por suigioso; seis quadros (GW 864 a 869) reconstituem o fato à maneira de uma história em q

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utra série, de três quadros, que pode ser anterior, conta o infortúnio de um grupo rado por salteadores, tema já abordado várias vezes por Goya, como emO assalto à dili. 4). Dessa vez a agressão é particularmente brutal, e suas consequências são cruamenprimeiro quadro da série (GW 918, il. 11) representa a execução dos homens: um delesão, implorante; o outro, com os olhos vendados, reza. Os salteadores não parecem necados por essas súplicas, e tampouco pela intervenção de uma mulher que tenta comas falarão nos próximos instantes.A cena seguinte (GW 916, il. 12) situa-se no interior de uma espécie de gruta, provável ndidos. Tendo sido eliminados os homens, agora é a vez de as mulheres sofrerem ss salteadores está estuprando uma delas, inteiramente nua; outro tira as últimas roupaulher. Um terceiro bandido espia, aguardando sua vez. A mulher que ocupa o centro duada diante do espectador, e portanto este é arrastado para dentro do quadro como umr fim, o terceiro quadro (GW 917, il. 13) mostra o último ato desse encadeamento sinistndidos, debruçado sobre a mulher que ele acaba de estuprar, termina de apunhalá-la,

escorre. Esse tríptico é memorável não só pela precisão na expressividade dos colência dos atos representados, mas também pelos fragmentos do cenário natural uam, evocando o caos que precede ou rodeia toda ordem, talvez até o interior do co

cores escuras predominam, com raros toques claros: uma roupa, os restos de umngue que brilha. Em vez da visão panorâmica que tínhamos no precedenteO assalto à diligpomos aqui de três grandes planos, o que aumenta ainda o impacto emocional das imOutros dois quadros (cuja autenticidade é frequentemente contestada) representamelhantes, sem que possamos saber a ordem na qual devem ser vistos. Duas mulheresolentadas e arrastadas por homens armados, enquanto uma criança, em prantos, tenta

ma delas (GW 931). Outra criança procura impedir os homens de estuprar sua mãeminua no chão; cadáveres femininos nus estão pendurados pelos pés nas árvounciando a sorte que espera a próxima vítima (GW 930, il. 14). Tais cenas ecoam certas gmo Desastres 11. Goya não assistiu a esses atos de banditismo nem a essesovavelmente jamais penetrou nas prisões e nos calabouços. Ele soube da existência dpartir daí, sua imaginação se encarregou de fornecer os contornos exatos das imagens.

As cenas de guerra, portanto, não destoam nesse conjunto.O frade enforcado (GW

932) matro personagens: um soldado está desprendendo o cadáver rígido de um frade, dorrem gritando.Cena de guerra (GW 948), que faz parte de um conjunto de quadros que stos em Buenos Aires e cuja autoria às vezes é posta em dúvida, é um dos raros agem de batalha. Os dois grupos de combatentes encontram-se tão próximos um do ozis não podem errar o alvo. Duas fileiras de atiradores se defrontam, como numa imadireita, os atiradores estão alinhados, semelhantes aos soldados no quadroTrês de maio dW 984), só que à esquerda, em vez das vítimas impotentes, veem-se outros solda

upos, irmãos inimigos, fazem fogo no mesmo momento. Diante dessas duas fileiras de

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gumas pessoas que não participam do combate, mas estão sujeitas a ele. Uma mplamente os braços, lembrando a vítima com os braços em cruz noTrês de maio, mas aqu

ança se agarra à sua saia. Aos seus pés, uma segunda mulher está caída, morta. Umoelha, as mãos postas num gesto de prece; diante dela, um homem igualmente de jolpes de um soldado. Uma figura misteriosa se mantém atrás dos combatentes virstas, braços erguidos para o ar, como asas. Desprovida de cores, com contornos iura parece encarnar um ser sobrenatural, um espírito que, desesperado, desvia

assacre que se desenrola a dois passos dele.Outra cena (GW 921, il. 15) mostra um acampamento militar: os atacantes (bandidos?)

m grupo de soldados; no chão os cadáveres se misturam aos corpos dos feridos, um hopira está sendo carregado; uma mulher que devia estar na companhia dos soldadoscalça, carregando nos braços um bebê que chora. Encontram-se nesse quadro elemetras gravuras dos Desastres da guerra: à direita a fileira de fuzis, os quais vão atirar aomento, como em Desastres 26 ; o fogo do qual os civis fogem, socorrendo-se uns aos ou

mDesastres 41; ou esses outros habitantes das aldeias que escapam às pressas, com, tama mãe e seu filho em primeiro plano ( Desastres 44). O rosto da mulher no quadro,duzido a poucos traços simples, é um dos mais inesquecíveis que Goya pintou: trstaram. Os traços do pavor se fixam para sempre em nossa memória, um pouco comrto de nós, na célebre fotografia de Nick Ut que mostra uma criança vietnamita de nogindo de sua aldeia bombardeada com napalm. Os historiadores de hoje ideotagonistas desses quadros ora como salteadores, ora como soldados; de maneira evo faz muita diferença entre bandidos profissionais e militares errantes pelo país: são

odo homens armados que impõem sem cerimônia sua vontade aos outros; por toda pales são civis, mulheres, crianças. Convém notar que nas cenas de estupro, assim comagens, Goya não representa os órgãos genitais do homem (ou da mulher): o que intere

ais do que a anatomia.Uma série de quatro quadros, igualmente datada da primeira década do séculoXIX, mostrrma totalmente diversa de violências, as dos “selvagens” da América. Goya talvmbrado de certos relatos de massacres cometidos no continente americano pelos ína época passam por antropófagos), o que lhe permite introduzir o motivo do canibalirdade, não precisa disso: a selvageria se desencadeia então na Espanha e, ademais, ee ela pode se esconder dentro de cada um de nós. É sem dúvida o que indicam os trasses selvagens nus que vemos decapitando uma mulher, igualmente nua (GW 924); despedgremente dois homens mortos, um dos quais está enforcado e o outro, jogado no chãoGW 92

nda brandindo a cabeça e a mão que um homem acaba de decepar, enquanto vársistem calmamente à cena (GW 923, il. 16). Como não pensar nas gravuras dos Desastreostravam corpus nus, partidos em pedaços, por exemplo, em Desastres 39? A posição das

homem, no último quadro, lembra também a postura das bruxas (emCapricho 65, fig. 8):

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mo os outros gestos desses canibais exóticos, ela é fruto da imaginação de Goya, mservação. Tais cenas — de banditismo, de guerra ou de canibalismo — não têm nada

oya não busca estigmatizar este ou aquele comportamento deplorável, ora entre os “setre os “civilizados”. Através das diferentes formas que ela assume, ele mostra a vioópria de todas as comunidades humanas e que, para revelar-se, só espera as cequadas.Goya não se contenta em figurar cenas de violência extrema; por sua vez, ele vio

adros as convenções pictóricas. Suas pinceladas são vivas e ultrapassam os contornoa paleta é muito limitada, tendente à monocromia, uma mistura lamacenta de amarerde-escuro, inundada de negro. Passa-se, sem transição, do solo aos amontoamentos dassas de árvores ao céu. Na verdade, este não é bem um céu. O que emerge da obsensos rochedos, árvores fantásticas, terrenos vagos: não se consegue reconhecisagem familiar, a natureza, aqui, não passa de um prolongamento afetivo da violêno é menos deprimente do que as salas abobadadas das prisões e dos hospitais. Asldados-bandidos às vezes são realistas, outras vezes suas silhuetas se tornam fluidsemelham a fantasmas; podemos captar suas expressões, mas os rostos não são indie novo, a abolição das leis morais parece ter acarretado a perturbação das leis físicasUm quadro mais enigmático, do mesmo período, cuja atribuição a Goya é hojepresenta a guerra de maneira alegórica: trata-se deO gigante (ouO colosso, GW 946). Emmos dispersarem-se homens e mulheres, vacas e cavalos, aparentemente apavoradose surge acima deles. Mas esse gigante é símbolo de quê? Não pode ser do povo ese os personagens do quadro, aterrorizados por essa visão, tentam fugir. Nem de N

ldados franceses mostrados por Goya em outros trabalhos não têm nada de sobrenatutes o próprio espírito da guerra, que habita tanto o ocupante estrangeiro quanto panhóis, um Marte sedento de sangue, parente do Saturno que devora seus filhos? ntor que era próximo dele) não deixou nenhuma chave para a decifração desse avura (GW 985) mostra um colosso semelhante, sentado sob uma lua crescente. Aindaais pacífico, nem por isso ele é muito tranquilizador: nada de bom pode vir desse sesmesurada, que permite visualizar a violência dissimulada no coração dos homens.O conjunto dessas imagens — quadros, gravuras, desenhos — que representam oserra rompe novamente com a imagem convencional que se faz do pensamento ilprichos transformam a visão corrente do homem, revelando suas fantasias e seu

ostrando que seu ser não é dominado exclusivamente pela razão e pela vontade. Aerra vão mais longe: elas nos fazem ver que, em certas circunstâncias, os pacíficos h

dades e dos campos podem se transformar em assassinos e torturadores. Não devemoe os pensadores mais lúcidos do Iluminismo não tinham suspeitado dissontrariamente ao que uma lenda tenaz sustenta, sabe que a maldade é própria dos home

m sociedade (e não existem outros), que eles são geralmente animados por uma “negr

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prejudicarem mutuamente”.1

Em todo caso, está claro que as coisas mudaram desde a época em que Goya, excomendas régias para as tapeçarias, pintava um povo imaginário, composto de camdadãos jubilosos, alternando trabalhos realizados na alegria e festas tranquilas; ele agpovo tem também outra face, a do populacho disposto a torturar seus inimigos, a lspedaçar-lhes os cadáveres. Os olhos do pintor se abriram, já não unicamente parconscientes dos homens, mas também para os atos de que eles são capazes. Contudo,

m Sade, cujos escritos fazem com deleite o inventário detalhado dos sofrimentos qubem infligir-se mutuamente, Goya não sente com isso nenhum júbilo: contenta-se emlmente os abismos humanos que vislumbrou, e, se existe um sentimento que estes privinha-se que é sobretudo o desalento.Goya não esquece que as piores maldades são realizadas em nome de valores elevas ideias liberais ou da pátria e da identidade tradicional, ou da Santa Madre Igreja elos discursos, os magníficos programas jamais constituem uma garantia contra a vstruição, pois os meios acionados para concretizá-los aniquilam os objetivos inirteza sincera e apaixonada de estar a serviço do Bem e de contribuir para a fmanidade fornece aos seus detentores uma desculpa excelente (e geral) para justifusos futuros. O que importam alguns “danos colaterais” diante da salvação trazida a mo Erasmo havia constatado cerca de trezentos anos antes, a adesão a um objetisejável permite esquecer que os meios empregados para alcançá-lo nos afastam dele lando do papa e dos príncipes da Igreja, que se consideravam servidores zelososasmo constatava: “Hoje, como se Cristo tivesse desaparecido […], eles defendem

pada. Embora a guerra seja […] tão pestilencial que traz consigo a total corrupção do injusta que nunca é mais bem conduzida do que pelos piores bandidos, tão compatível com Cristo, eles abandonam todo o resto para ocupar-se unicamente dela”2

Goya pinta os resultados calamitosos desses nobres projetos — trazer as Luzedependência, servir a Deus — e constata: a tentação do bem é mais perigosa do que aporque se aspira à liberdade — a do espírito ou a do país — que se deixará de infligiparticipar dos crimes. É justamente por isso que Goya assimila, em suas imagens, osla liberdade ou pelo bem aos salteadores de estradas e aos canibais. Desse povamente, sua lucidez assume para nós um aspecto profético.

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Fig. 19. Foi porque ela era liberal?.

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Os desastres da paz

Em junho de 1813, as tropas conduzidas por Wellington obtêm a vitória sobre as de eses mais tarde, Fernando volta à Espanha para retomar o trono que ele havia ocupad

m 1808. Nesse ínterim, Madri mergulha numa atmosfera patriótica. Goya se apressa a estígio. Em fevereiro de 1814, dirige à Regência que detém provisoriamente querimento no qual, diz o relatório que o resume,

manifesta seu desejo ardente de perpetuar por meio do pincel as ações ou as cenas mais notáveis e mais heroicas insurreição contra o tirano da Europa; e, chamando a atenção sobre o estado de penúria absoluta em que se enimpossibilidade em que está, por tal razão, de assumir as despesas de um trabalho tão interessante, ele pede ao Teslhe ofereça uma certa assistência para realizá-lo.

omo frequentemente ocorre, Goya visa a um objetivo duplo. Por um lado, quer manças; na verdade, ao falar de “penúria absoluta”, exagera muito suas carências: o 12 prova o contrário; mas convém dizer que Goya sempre cuidou ativa e eficazm

ndimentos. Por outro lado, quer ganhar uma reputação de patriota infalível, talvez rque não o foi; pede, portanto, para exercer um papel que lhe é estranho, o de cantos heroicos de seus compatriotas. Aqui, quem se exprime já não é o autor dos Desastrerra, mas seu duplo, aquele que julga (como Montaigne) que não há mal nenhum emelhos” diante do poder absoluto.Sua demanda será atendida, e ele pintará dois quadros relativos à insurreição, Dois de m08 (GW 982) eTrês de maio de 1808. Para falar a verdade, esses quadros não são nformes ao espírito heroico quanto a proposta de Goya fazia imaginar. O primeiro m

mples de Madri atacando os mamelucos, mercenários de Napoleão: estes, montavalos, tentam se defender, lê-se o medo em seu olhar. O rosto dos atacantes espanhóisntrário, uma resolução irrevogável: para vencer, é preciso matar. À diferença das cebatalha, estamos mergulhados aqui em plena luta corporal e temos dificuldade de co

em pertence tal parte de tal corpo, mas essa indistinção traduz bem a confusão do próas duas obras, Goya não hesita em exagerar as proporções dos corpos, em colocá-lospossíveis, a fim de reforçar-lhes a expressividade.

O segundo quadro,Três de maio de 1808, muito célebre, tendo-se tornado uma es

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mblema nacional espanhol, mostra uma execução: aqui, as simpatias do pintoraramente às vítimas, bem diferenciadas de seus executores; a composição fazzilamento num acampamento militar (il. 15), mas também em várias gravuras dos Desastresfileira de fuzis à direita e as vítimas à esquerda (como em Desastres 2, fig. 12). Aqsassinos são franceses, e não espanhóis. Os fuzilados pelos franceses no quadroTrês deiam sido aqueles que matavam os soldados de Napoleão, no Dois de maio? Vistos de cosldados não têm rosto nem individualidade; estão ali, organizados em linha, somente

fuzis, e abrirão fogo no instante seguinte. Diante deles, a vítima central se destaca granca e à calça amarela: como sugerem seus braços abertos e os estigmas em suas mem é um duplo do Cristo crucificado. De fato, a propaganda católica da épocaapoleão como um anticristo. Fiel ao pensamento que suas gravuras expressavamrpetua a gloriosa insurreição por um ato que ilustre a força dela, mas pela imsassínio coletivo. A assimilação da vítima a Cristo é impressionante; convém dizer qadros de Goya consagrados à história de Jesus, vemos o Filho de Deus reduzido ànado pura vítima expiatória: é o que se dá no jardim de Getsêmani (GW 1640) ou no moma prisão (GW 737). Contudo, a semelhança do insurreto espanhol com Cristo não chegagerir que ele será salvo no reino de Deus.Se os gestos do cidadão Goya ao longo desse período não estão acima de qualqueo o impediu em absoluto de pintar, noTrês de maio, uma obra-prima que hoje fala a todordade sobre esses fatos e os sentimentos que eles suscitam.Fernando retorna a Madri em maio de 1814 e toma rapidamente algumas decisões que espírito ele pretende reinar: revoga a Constituição adotada em 1812 pelos liberai

gido da ocupação francesa e restabelece a Inquisição; o clero recupera todas as suas pma parte da população aplaude essa volta aos velhos hábitos; os liberais partem para enos 12 mil famílias, entre as quais boa parte dos parentes da nora de Goya. missões de expurgo, diante das quais cada um deve provar que se manteve patriotada a ocupação francesa. Goya encontra testemunhas complacentes, as quais certifimpre se manteve fiel ao monarca espanhol e que, por essa razão, foi obrigado a venuas piedosas mentiras). No mesmo momento, a Inquisição se apodera dos quadros ebinete privado de Godoy e exige que Goya se explique sobre sua Maja desnuda; mas, comações nas altas-rodas, o autor consegue abafar o caso. Ele conserva, assim, sua posicorte e o salário que a acompanha.Se os joelhos se dobram, o espírito se mantém de pé. Durante esses mesmos

mpreende dois ciclos de desenhos que representam sua reação, não mais aos “desastreas àquilo que poderíamos chamar de “desastres da paz”: não as violências que se ds campos de batalha, mas as que se manifestam no próprio seio da sociedade espanhoirania exercida pela Igreja católica e pela Inquisição sobre a sociedade civil, as pers

ngem todos os que haviam escolhido o partido contrário, e abrange a tortura, as ex

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sses ciclos, desenhado ao longo dos anos 1810-3, figurará no álbum C: são as páginr Goya de 85 a 109 (GW 1321 a 1345), 25 desenhos conservados, ao todo. O outrosenhado e gravado nos anos 1816-20 e formará a última parte da coletânea Desastres da gravuras 65 a 78). Todas as imagens que compõem esses dois ciclos comportam uma vo, Goya cuidará atentamente da ordem na qual elas se seguem, deslocando-as váriasO ciclo que encontramos no álbum C começa por um ataque contra o poder religpecificamente, contra a Inquisição. Suas vítimas aparecem cobertas dos atributos d

ma túnica de papel, sobre a qual estão descritos os “crimes” que provocaram a conapéu cônico, oucoroza, que os torna reconhecíveis de longe. As legendas desses desenhrazões alegadas para os julgamentos: porque ele nasceu em outro lugar, porque c

oibidos, porque é judeu, porque amou uma jumenta… Uma imagem alude à condenaçm dois desses desenhos, Goya indica que assistiu ao evento representado: uma bruxausada de ter fabricado ratos (C 87,GW 1323), e um mendigo aleijado (C 90,GW 1326).A presença desse tipo de menção aqui (“Eu a vi em Saragoça”, “Eu o conheci”), aszes, nos Desastres (“Eu vi isto”), alimentou a ideia de um Goya jornalista, circulando ndáveres e das execuções públicas com o caderno nas mãos, captando suas impressõesdemos nos perguntar se, ao contrário, a raridade de tais comentários não indica que aicas imagens correspondentes a uma cena à qual Goya esteve presente, e que cepcional é que justifica a menção. Recordemos que a maioria dessas imagens nãentos contemporâneos ocorridos na pátria do pintor, mas o mal que o homem pode faza época de Goya, mesmo nos piores momentos de reação, a Inquisição já não temontar tais processos e muito menos de praticar a tortura; ela se limita a condenar

igmatizar os indivíduos que considera perigosos. Ao que parece, os detalhes relativquisitoriais devem mais aos estudos consagrados à história da Inquisição por um aman Antonio Llorente, do que a uma prática contemporânea qualquer (um pouco comoMoratín haviam inspirado suas imagens de bruxos). A Inquisição é utilizada por Goemblema intemporal, o de um controle das mentes acompanhado da capacidad

vícias aos corpos. Por isso é que nossa incerteza quanto às datas dos desenhos — eldo produzidos antes, no decorrer ou depois da guerra de 1808-13 — não tnsequências: Goya se preocupa com esses temas ao longo de todas essas décadas.As menções de autenticação dos eventos representados são reveladoras de outra mas aparecem à margem de desenhos destinados a não ser vistos por ninguém, afontor. Então, a quem se dirigem essas legendas, considerando que, de sua parte, Goym que viu aquela mulher e conheceu aquele homem? Sem dúvida, não ao público coas àquele que Adam Smith, em meados do séculoXVIII, denominava “o suposto espparcial e bem informado”,1 que habita o espírito de toda pessoa de boa vontade. Ao mee aos destinatários reais, que às vezes estão totalmente ausentes, toda mensagem se d

essa abstração indispensável. Goya não a menciona nunca, e no entanto sente-se que

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ma peça indispensável de seu universo interior: do contrário, como poderia ementando a parte secreta de sua obra, aquela que os contemporâneos não conheceidado que Goya dedica à preservação dessa parte é como um ato de fé na humanidatudo o que ele sabe de suas crueldades.O conjunto seguinte mostra prisioneiros. O assunto atrai Goya desde a época dosCaprichosse meio-tempo adquiriu nova atualidade. Os desenhos representam prisioneiroulheres, de pé, sentados ou deitados, atados pelo pescoço, pelas mãos ou pelos p

zinhos, como em C 103 (GW 1339). A janela é gradeada, a porta está obstruída; compreeegenda diga: É melhor morrer . Certas legendas indicam a causa do aprisionamento. Uá presa por pesadas correntes a um poste; a legenda pergunta: Foi porque ela era liberal? (

W 1334, fig. 19); portanto, as mulheres, emancipadas, envolvem-se com política. Outrndo de uma cela escura, foi lançada ao chão pelos torturadores. Seu crime? Por casar-seem ela quis (C 93,GW 1329). Claro, os pretextos da punição deviam ser formuladoalmente diferente: porque ela ameaça a ordem pública, porque transgride abelecidas… Um desenho audacioso mostra um rapaz envolto numa coberta, no fude está atado à parede; uma jarra de água constitui o único mobiliário. Sabemos poeso: Por não ter escrito para os imbecis (C 96,GW 1332). Seu crime, portanto, é pueológico, seus escritos se dirigiam preferencialmente aos liberais, e não aos reacionseu exemplo, fica clara a conivência dos poderes religioso (aquele que condena) e

e aprisiona). A Inquisição não dispõe de tribunais, não controla a polícia, não ergue feimar os heréticos, mas o aparelho inteiro da Justiça fica sob seu controle, e é elcarceramentos, torturas, execuções.

Tem-se vontade de dizer que a prisão é desumana, e no entanto foram os homens que que continuam a servir-se dela. Eles até inventaram coisa pior: a tortura. Sua estigmotivo que aparece com frequência nos textos dos “esclarecidos”, os quais conhecem Dos des penas de Beccaria; Jovellanos até escreveu uma comédia sobre o tema do crime e

m Goya, passa-se sem transição do enclausuramento à tortura, os prisioneiros são acosições tão incômodas que já não há espaço para dúvida: o objetivo da prisão não é linquir, mas fazê-los sofrer. Certas imagens vão mais longe e ilustram a engenhosidadeando desejam infligir dores a outros homens. O desenho C 101 (GW 1337) traz como legenconsegue olhar ; ele mostra um homem esticado por duas cordas: uma, atada aos seus

gou-o de cabeça para baixo; a outra bloqueia suas mãos. Outra imagem do mesmo áW1344, fig. 20) ilustra torturas dignas de Abu Ghraib: uma roldana estica cordas atads artelhos do prisioneiro, enquanto outra corda, presa a outra roldana, está enroladau pescoço; o espectador se pergunta se ele morrerá de sufocação ou de uma rupturernos. Num álbum contemporâneo, dito F, realizado inteiramente em sépia, vê-se

quintada: o torturador faz girar uma roldana, o torturado está preso à outra ponta da c

ãos às costas. É o suplício da polé (F 56,GW 1477).

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Goya não devia conhecer os quadros de Alessandro Magnasco, o pintor genovês queetade do séculoXVIII, havia representado suplícios semelhantes, igualmente atribuídos àr outro lado, é pouco provável que tenha podido assistir a tais cenas. Seus desenhngir a precisão histórica na apresentação das técnicas, mas à verdade das experiênc

e novo pensa-se no Manuscrito encontrado em Saragoça, no qual um inquisidor ameaçarói do livro, que se cala obstinadamente:

Não dizes nada? […] Vamos te maltratar um pouco. Estás vendo estas duas pranchas: nelas poremos tuas pernas com uma corda. Em seguida, vamos pôr entre tuas pernas as cunhas que vês aqui e as enfiaremos a marteladas. Dincharão, em seguida o sangue jorrará dos teus artelhos, e as unhas dos outros dedos cairão todas. Em seguida a prebentará e dela veremos sair uma gordura misturada com carnes esmagadas. […] Não respondes nada? E tudo isa questão ordinária…2

Essas torturas já não são praticadas na época dos nossos autores, mas o foram; e ade sempre recomeçar.

Os criminosos são, portanto, primeiro presos e depois torturados; por fim, são esastres ilustravam as múltiplas maneiras de matar em tempo de guerra; com o retorngozes já não enforcam, nem fuzilam, nem desventram, nem cortam em pedaços os inimcriminosos garroteando-os. Essa forma de execução, considerada na época a mais mchamara a atenção de Goya antes de 1792, como deixa claro sua primeira gravura copresenta um garroteado (GW 122); algumas gravuras nos Desastres (34 e 35, GW 1049 e ostram que essa maneira de matar também não era negligenciada em tempo de guerra.

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Fig. 20.Que crueldade!

Um desenho do álbum C que a ilustra (C 91,GW 1327, fig. 21), legendado como Muitos acasim, não nos poupa de nenhum detalhe: vê-se o condenado solidamente amarrado arrasco atrás dele apoiando todas as suas forças sobre o mecanismo do garrote, olmamente observam a execução de seu veredicto e, por fim, atrás desses personagenano, os numerosíssimos espectadores, transformados em multidão anônima que veio monstração pública da violência infligida a um corpo humano. “Não se consegue

oya, frase que ele emprega várias vezes, por exemplo também em Desastres 26 , a propósito decução; no entanto, por causa dele, nós não paramos de fazê-lo. Admiradores de s

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amos igualmente fascinados, mas as duas reações não se confundem: a multidãoovimento que resulta na execução, ela veio assistir à concretização do seu desejpectador das imagens é por sua vez atraído pelo espetáculo da violência, mas, con

ma representação, e não com o ato em si, ele pode mudar de lugar e descobrir, com evor, o que os homens são capazes de infligir a outros homens.Nas últimas gravuras dos Desastres, o alvo principal é o poder civil e religioso, do quora que forma uma só entidade teológico-política. O espírito das imagens é diferentenava na primeira parte da coletânea, e, da compaixão pelas vítimas, passa-se aqui àopressores. A ação desses detentores do poder mantém o povo — ou seria o popu

norância e na estupidez. Várias gravuras reatam com o espírito dosCaprichos, caricaturarças obscurantistas, cobrindo-as de máscaras grotescas ou transformando-as

meaçadores: morcego, gato, lobo, jumento, ave de rapina. As legendas não deixam dúverpretação que convém dar a essas imagens. “Contra o bem geral”, diz uma delas; a g

m homem com asas de morcego, escrevendo aplicadamente num grande caderno ( Desastres 716). “Farândola de charlatães”, anuncia outra, mostrando um dignitário da Igreja cujuma ave de rapina, rodeado por um jumento, um lobo, um papagaio e frades de traesastres 75, GW 1124). Ele parece rezar com devoção — mas a legenda nos alerta sa.As poucas imagens que representam cenas realistas vão no mesmo sentido. Os fiéante das relíquias ou das decorações de igreja arrancam de Goya esta exclamaçãvoção!” ( Desastres 66 e 67 , GW 1106 e 1108). As mulheres que figuram no centro de DesastrW 1104) são ameaçadas tanto pelos cães que as atacam quanto pelos soldados (?),

zer um inventário. Desastres 70 (GW 1114) mostra uma fila de homens — frades, padrergueses — semelhantes aos cegos de Bruegel, ligados entre si por uma corda e impede, que enveredam por uma brecha aberta no meio da paisagem desolada. Seria u

mpatizantes do regime precedente, amigos dos franceses ou das Luzes, agora levadsão longínqua? Ou, ao contrário, os adversários deles, que conduzem ao impasspanha, submetido aos seus novos senhores? A legenda se limita a nos alertar: “Nminho”. A salvação não pode vir de tais guias. Mas não convém acreditar que o povoais: ele se submete docilmente aos poderosos da vez. Em outra gravura, Desastres 74 (GW 1e traz a legenda “Este é o pior!”, o lobo adorado pela multidão escreve numa g

Mísera humanidade, a culpa é tua”, uma frase que Goya tomou emprestada, para a ocasti, mas da qual não se pode afirmar que ele a assuma: ele não é um simples misantro

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Fig. 21. Muitos acabaram assim.

No meio dessas imagens aparece também aquela que Goya destinava originariamentconjunto que mostra os efeitos da guerra e da fome: trata-se de Desastres 69 (GW 1112, figa presença atual entre as gravuras consagradas aos malefícios da paz amplia ainance. Essa gravura representa um morto acompanhado de máscaras fantasmáticas q

retas e também de uma balança da Justiça. Na mão esquerda, o morto segura uma cor

m a direita — apesar de seu estado de decomposição — ele conseguiu traçar sobre ulavranada, que Goya confirma na legenda: “Nada. Isto o dirá”.

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O primeiro biógrafo de Goya, Laurent Matheron, relata a respeito uma historieta qnha escutado de Antonio Brugada, e que nesse caso seria proveniente do próprio pinm prelado que viu essa gravura teria felicitado o autor por haver desenhado umavegoria sobre a precariedade da existência terrestre. E Goya teria retrucado: “Meu ezer que fez a grande viagem e que não encontrou nada lá!”.3 Nenhum consolo, nenhuma sá atenuar nossa reação diante da morte, a harmonia divina desapareceu sem deixarnrarias humanas não duram, a Justiça é impotente. Esse julgamento final não separa cadores, pois constata que após a morte não resta nada. A mensagem de além-túmuda revelado pelos horrores da guerra.No exemplar de provas dos Desastres entregue ao seu amigo Ceán Bermúdez, Goya infinal três imagens de prisioneiros, com legendas eloquentes, que destacam a violênc

ais do que a do crime que se pretende punir: A detenção é tão bárbara quanto o crime (GW 98ssível controlar um prisioneiro sem que seja necessário torturá-lo (GW 988) e por fimQue ecutem imediatamente, se ele for culpado! (GW 990).

Fig. 22. “Nada. Isto o dirá”, Desastres 69.

A inclusão dessas três imagens na coletânea dos Desastres, logo depois das catorzeticlericais, confirma a mudança de sentido de todo o conjunto. Os desenhos satíricoe encerram os Desastres já não denunciam a guerra, mas aquilo que se seguiu a ela, amens de Estado e do clero que governam a Espanha. Goya postula, assim, uma conti

mpo de guerra e tempo de paz; seu interesse se volta para as “consequências fatais

tre as quais as ações do poder estatal legalmente estabelecido. Depois que sertamente na vida pública de um país, a violência repercute por muito tempo e produenos ensurdecedoras do que a explosão inicial. A contrarrevolução não é menos sangrvolução, o contraterrorismo do que o terrorismo, a repressão não é menos cruel donido por ela. O poder mudou de mãos, mas a brutalidade dos atos se mantém: amens não parece depender das convicções que os animam, os dois partidos são deesmo furor. Todos invocam o bem e promovem o mal. A tortura e os assassínios nãomente pelas circunstâncias excepcionais da guerra, eles têm raízes mais profundas. sse conjunto de gravuras torna-se o lado sombrio da espécie humana, que engendra

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das as circunstâncias.Esses desenhos e gravuras que representam as diferentes formas de violência não iicamente pelo assunto; a arte de Goya atinge neles novos cumes. A economia e a poço são impressionantes. NosCaprichos e nos desenhos que os preparavam, Goya se prtalhes; na época dos Desastres, as cenas são simplificadas e os personagens, vistos cadperto; seus traços exprimem apenas um estado, uma atitude, um sentimento — mas c

mentada. Os próprios princípios da representação evoluíram. No passado, pintores e

mpartilhavam uma mesma concepção do espaço, que lhes permitia comunicar-se comesmo tempo, as fronteiras entre observação e invenção, entre real e imaginário, eramavuras dos Desastres e nos desenhos que lhes são contemporâneos, Goya ogressivamente toda preocupação desse tipo.Uma imagem como Desastres 68 (GW 1110, fig. 23), com a legenda “Que loucura!”,rmite saber se estamos na cabeça de Goya ou na Espanha entregue às forças obscuraeparatório (GW 1111) era muito mais simples. Mostrava o mesmo frade agachado, apafecando, enquanto um penico se encontrava à sua direita e outros frades o observexer. A “loucura” evocada não era mais do que a estupidez e a vulgaridade do fradstrava uma visão satírica do clero. Mas a gravura é diferente: ao lado do frade e dmos agora, de um lado, uma pilha de máscaras e, do outro, um conjunto de objetosrimônias religiosas — um manequim, quadros, uma muleta, roupas. Atrás dele, outrosma procissão de frades?) aparecem como fantasmas. Onde estamos, o que está aconto sujeito dessa loucura?

Fig. 23. “Que loucura!”, Desastres 68.

É dessa indecisão que vem a capacidade de tais imagens de nos interpelar, dois sde. Se elas fossem puramente satíricas, sua pertinência teria se dissolvido com o desseu objeto — no caso, o clero ignorante e hipócrita — e além disso seu valor moral

mpre fácil fustigar os outros, assumindo nós mesmos o papel do reparador de ualidade de Goya resulta de que — tenha ele sabido disso ou não — suas imagenesmo tempo as profundezas de sua própria mente; graças à veracidade delas, tornamonos interrogar sobre nós mesmos.

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Fig. 24.Tomara que dure a alegria.

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speranças e alertas

O regime que se instalou na Espanha a partir de 1814 é impiedoso, mas não chega a eoposição. A história desse país no início do séculoXIX pode ser descrita esquematicamenm conflito ininterrupto entre forças conservadoras, apoiadas pela Igreja católica e pelarças liberais, mais ou menos inspiradas nas ideias do Iluminismo. Estas últimas ocub CarlosIV e, de maneira muito diferente, sob José Bonaparte; também dominam putados patriotas que elaboram a Constituição de 1812. Contudo, eles serão comrnandoVII, retornado ao poder em 1814. Em sua ação, o novo rei encontra a aprovaçãdicionalistas, mas também a daquela parte da população que tem nostalgia do pode

ultidão comemora a volta de Fernando com manifestações de rua, durante as quais egrilhões, viva a opressão!”. Há também membros da elite intelectual que, em s

radar ao poder, aprovam todas as medidas retrógradas de Fernando. Uma frase do riversidade ficou nos anais: “Longe de nós a funesta mania de pensar”, declara ele aositar a instituição.1

A repressão é tão brutal que suscita uma forte reação. Em 1o de janeiro de 1820, um jovemfael del Riego, organiza um golpe de Estado liberal e toma o poder. Ele não destitas lhe pede que restabeleça a Constituição liberal de 1812. Fingindo aceitar, Fernamento à Lei Fundamental, mas, ao mesmo tempo, alerta os governos europeus sob

meaça que pode reanimar a chama da revolta em seus próprios países. Estes, membiança, encarregam a França, país vizinho (e cujo exército já conhece o terreno!), de dem na Espanha. Em 1823, como em 1808, os regimentos franceses invadem o passa vez, já não são as crias da Revolução que aparecem, mas os “cem mil filhos de

soldados franceses esmagam o movimento liberal com o mesmo entusiasmo quecorajá-lo, quinze anos antes. No fim do mês de agosto, a resistência espanhola est

hateaubriand, então ministro francês das Relações Exteriores, qualifica a operação dm novembro, Riego é enforcado. De novo, abate-se sobre os liberais a repressão, me antes, e a multidão aplaude; Chateaubriand exprime agora sua reprovação.Como esses eventos políticos lembram as esperanças suscitadas pela redação da Co12, à qual se segue a repressão desencadeada desde o retorno de Fernando, os ciclos

a vez, repetem o mesmo percurso, no álbum C e nos Desastres da guerra. Os desenhos do á11 a 131,GW 1346 a 1366) se referem provavelmente à época da Constituição de

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rmam duas sequências, C 111 a C 118 e C 119 a C 131, cada uma ilustrando ummpleto, desde as promessas de liberalização até o seu triunfo encarnado por uma figas que é por sua vez acompanhada de uma imagem que lembra a inquietante realidadquência começa imediatamente após os “desastres da paz” que acabamos de ver (aprturas, execuções): a partir de certo momento, Goya nos comunica uma esperança senhos 111 a 114 (GW 1346 a 1349) mostram prisioneiros semelhantes aos precedengendas são réplicas que o artista dirige a eles, anunciando o fim iminente de seus sofrapavores; Desperta, inocente; Estás no fim de tuas penas; Logo serás livre.Esses desenhos são seguidos por uma imagem que figura uma explosão de alegria: uapéu está ajoelhado em postura de oração; mas, em vez de baixar os braços potência, como na gravura introdutória dos Desastres (“Tristes pressentimentos…”)

vanta em êxtase, e seu rosto é iluminado por um sorriso triunfante. Ao seu lado, no cm tinteiro com penas e uma folha de papel: é um escritor preso por suas opiniões, réticas. A legenda nos dá a razão de sua alegria: Divina liberdade, exclama ele (C 115,GW 1

impressionante o contraste entre esses dois homens em oração, aquele invessentimentos, em Desastres 1, e, aqui, o escritor: o desespero histórico de um se opõntual do outro. Desta vez, as opiniões políticas de Goya não deixam dúvida.As imagens seguintes confirmam esse sentimento de triunfo, tendo igualmente um carádesenho C 117 (GW 1352) traz como legenda, escrita em maiúsculas e em latim: Lux ex tenez nasce das trevas, uma frase extraída dos Evangelhos (João 1,5). Nela vemos uma jopaço acima dos homens; nas mãos, segura um livro, sem dúvida a Constituição libra uma luz ofuscante, que forma um halo atrás de sua cabeça. Em suas representaçõ

oya nos tinha habituado a desconfiar das promessas luminosas: a ocupação da Espanhncesas podia ser descrita preferencialmente como “as trevas nascem das Luzes”… Vui ele está num humor mais otimista. O desenho seguinte desse álbum, C 118 (GW 1353), é anlo mesmo espírito. Não traz legenda, mas a imagem em si é eloquente. O círculo lumdesenho, contém no centro a balança da Justiça. Mais embaixo, veem-se dois gru

manos. À esquerda, uns dançam, manifestando sua alegria; à direita, os outros seavorados; um frade ensaia a fuga. A hora do julgamento — não final e divino,

nquistado e humano — parece haver soado.Nesse mesmo grupo, contudo, aparece outra imagem (C 116,GW 1351, fig. 24), que intvida nessa explosão de alegria. Vemos ali um grupo de homens sentados atrás dentando e bebendo à saúde dos dois personagens diante deles, vistos de costas por nntada à esquerda, toda vestida de branco, nos é familiar. Assemelha-se à Luz (em C 1eias de Liberdade (em C 115) e de Justiça (em C 118): o lugar desse desenho na ordcilita a interpretação da figura. O homem sentado à direita, longe de sua companheiranto ela é branca, deve designar outra abstração. Será o Estado, o poder, a monar

roduz a dúvida naquilo que parece uma cena de comemoração não são apenas o

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tância entre os dois membros da dupla, mas também as expressões dos felizes compbem à glória deles. Os rostos dessas pessoas não são muito tranquilizadores, lembramcaricaturas de Goya, essa maneira que os indivíduos têm de desumanizar-se quando t

m multidão. Hoje eles cantam a Liberdade e a Justiça, mas amanhã revelariam o mesmra celebrar o retorno à fé e à ordem. A legenda tampouco exprime uma confiançavento do bem:Tomara que dure a alegria. Esse voto se realizará?A segunda sequência (C 119 a C 131) começa por seis imagens que apresentam uma

s monges, cujo poder aumentou sensivelmente durante a guerra. Eles se pretendemeus; na realidade, recusando-se a trabalhar, vivem nas costas do povo e abusam da suam desenho impressionante mostra um prelado visto por trás, vestido numa capa genda pergunta:Quantas alnas? (C 125,GW 1360). Outro (C 123,GW 1358, fig. 25) moonge caricato e ao mesmo tempo reata com as visões de pesadelo de Goya, como suggenda:O que deseja este grande fantasma?. A fronteira entre mundo exterior e mundontinua porosa.Contudo, os seis desenhos seguintes dão a entender um timbre diferente. Devemos eforia de 1812, durante a qual os religiosos são convidados a largar a batina. Doravanigmatizá-los ou de ridicularizá-los, Goya parece vê-los com simpatia e nos mrsonagens em regozijo por reencontrarem a plenitude da vida terrena.Sem camisão elizes, proclama a legenda do primeiro desses desenhos (C 126,GW 1361), e os outros o con

ma freira despe o hábito, mantendo-se pensativa, um frade pendura o dele num gesto dos, sem protestar, aceitam abandonar o traje religioso. A franqueza sobrepuja a eitação da vida vence a submissão a um dogma obsoleto.

A essas doze imagens, Goya acrescenta uma 13a, que tem estatuto diferente. Morsonagem alegórico e apresenta-se como um comentário dos desenhos que a rodeiametamente a posição do autor. Nela se vê uma jovem toda vestida de branco, com u

uros. Na mão direita, ela traz um açoite com o qual fustiga os pássaros negros à sua fquerda, segura uma balança. A legenda diz Divina razão, título completado algum temde por Não poupes nenhum (C 122,GW 1357). O sentido parece claro: os pássaros negromembros das ordens monásticas, a mulher encarna a razão, a qual, por sua vez, co

stiça (a balança) quanto o poder do Estado (o açoite). Com isso, Goya formula um as parece crer na possibilidade de sua realização. Trata-se visivelmente, aqui, de uzão diferente daquele cujo resultado era o de produzir monstros.A coletânea dos Desastres da guerra termina igualmente com uma nota de eovavelmente, o que a suscita não são as expectativas geradas pela Constituição de 18

mbiente que precede ou acompanha o golpe de Estado liberal de 1820. No fim do cicatro gravuras exteriores ao assunto tratado anteriormente e que reatam com a veia allas formam uma sequência. A primeira, Desastres 79 (GW 1132), traz a legenda “A v

orreu”; mostra uma jovem morta, de seios nus, que no entanto é fonte de luz. Está rod

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veiros, visivelmente felizes, entre os quais figuram com destaque os representantesavura seguinte, Desastres 80 (GW 1134), mostra ainda a Verdade imóvel, mas a luz que emintensificou, os seres nefastos que a cercavam tiveram de recuar. Dessa vez, a essuscitará?”. A verdade ocuparia, no panteão de Goya, o lugar antes ocupado po

m, a terceira gravura, que é também a última imagem da coletânea ( Desastres 82, GW 1resenta mais uma vez a Verdade. Agora, a jovem de peito generoso está de pé, radios

ma cesta transbordante de frutas e de um cordeiro: é a era da abundância. Ela

versários e se dirige no momento a um velho camponês ao seu lado, talvez símbolo dulher lembra as encarnações dos outros valores celebrados por Goya, Razão e Luz,stiça. A legenda afirma: “Eis o Verdadeiro”. Um desenho (F 45,GW 1470) ilustra a uação.

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Fig. 25.O que deseja este grande fantasma?

Essa sequência de três imagens parece sugerir um certo otimismo da vontade em Gocumbiu sob os golpes da repressão, mas pode ressuscitar — ou melhor, continua vivistência da imagem é a prova da justeza de tal afirmação: a verdade vive, ao menos nrtos indivíduos como o pintor; e ele não está sozinho. Contudo, essa mensagem pediato temperada por outra imagem ainda, que vem se inserir no meio da sequência

esastres 81 (GW 1136, fig. 26), que representa uma espécie de animal gigantesco fartand

e parecem ser pedaços de cadáveres.Aliás, no meio da coleção inteira encontra-se uma variante da mesma cena ( Desastres 4

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56): uma pessoa tenta reter um animal semelhante, mas menor (é do tamanho de um sesso que o anterior pode abocanhar um corpo inteiro). “Algum partido ele tira”, diz a agem, pertencente à série tardia dosenfáticos, e que não representa propriamente um deerra, não foi posta por acaso nesse lugar emblemático: um pouco como oCapricho 43 situaeio da primeira coletânea, representa um comentário sobre as outras gravuras.O animal de Desastres 81, que se intercala nas gravuras de conclusão, tem claramente

mbólico, também sugerido pela legenda “Monstro cruel!”: ele encarna, à maneira dColoóprio espírito da guerra, ou mesmo, de modo mais geral, a brutalidade humana tal c

m detalhe ao longo de todas as gravuras precedentes. Goya não quer acalentar ilusõeseal é logo seguido por uma chamada ao real. Essa mensagem dupla já está presentee antecedem imediatamente as quatro imagens de conclusão. Desastres 77 (GW 1128)emplo, anuncia que a corda sobre a qual caminhava o poder da Igreja católica estmper-se. Devemos nos regozijar com isso? As faces da multidão que aguardontecimento não possuem, contudo, nada de tranquilizador.As imagens alegóricas pelas quais Goya evoca seus ideais não têm a força de seuavuras que representam as devastações da guerra e os desastres da paz. Aliás, é signintor recorra à alegoria para figurar o bem, embora fosse suficiente mostrar exemplmo se os artistas reagissem diante do espetáculo do mundo da mesma maneira comoante das representações dos vícios e das virtudes: umas são infinitamente mais chamoutras. A Verdade radiante e a Razão dominadora nos interessam menos do que

dáveres e os corpos supliciados.Essa assimetria, que caracteriza também a literatura, impressionou Balzac, o qua

rplexo, que a pintura do mal em seus romances interessava mais do que a do bem.ras subsistem por seus aspectos apaixonados. Ora, a paixão é o excesso, é o ocedimento antigo sempre consistiu em mostrar a ferida. […] O Paraíso quase não é lidoferno que se apoderou das imaginações, em todas as épocas.” E Balzac acrescentapressionado pelas perspectivas que abre: “Que lição! Não é terrível?”.2 A causa não serrdade, Razão, Liberdade e Justiça são abstrações que não podem jamais encarnar-seais uma vez, portanto, isso seria uma consequência das exigências de verdade, que Gisfazer melhor por meio de suas representações do mundo humano na realidade como quando nos mostra que as aspirações humanas mais nobres podem gerar desasícil de representar não é o bem, mas os ideais abstratos, que só se prestam a uma r

egórica.Seja como for, essas imagens de Goya são portadoras de uma mensagem claramente erir a um programa preciso, o pintor indica enfaticamente sua condenação scurantistas da Igreja e àqueles que as apoiam e se beneficiam delas, a saber, a corte. Ele nunca havia sido tão claro em seu apego às ideias liberais de seu tempo e a

minismo. Mas essa posição é complicada e enriquecida por sua aguda consciência da

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mem, de forças incontroláveis, de um caos interior irredutível. Neste, o amor cundado por uma inclinação pela crueldade, do mesmo modo como a razão não podus pesadelos e sua loucura. A veia satírica de Goya indica que ele não quer se resssas forças maléficas; mas nada mostra que acredite numa vitória definitiva sobre ela postura de modo geral não é nem otimista nem pessimista. Goya é um humanista dnsciência trágica da condição humana, mas que escolheu para si mesmo o caminho daCompreende-se bem, agora, por que ele já não podia sonhar com uma publicação d Des

o mesmo momento, colocava à venda uma série consagrada à tauromaquia, temática rigosa). Goya preferiu manter-se fiel à sua verdade íntima e ao seu desígnio profundar proveito da difusão das imagens de guerra, únicas aceitáveis para a opiniãoomento.Tal decisão tem consequências de longo alcance, pois modifica o próprio estatuto das produz. Doravante, seu objetivo não é mais agradar aos que lhe fazem encomendampradores, nem mesmo comunicar seus sentimentos; ele já não visa senão a compreenconhecer seus próprios pensamentos e reações diante dele, e a exteriorizá-los. Já eus desenhos, dos quais ele era o único destinatário, pois supostamente não seriam vinguém. É verdade que o desenho sempre foi considerado pelos pintores do passado upressão auxiliar, ou privada; contudo, ao constituir seus álbuns, verdadeiras obras,e lhes atribui um estatuto autônomo. Agora, essa mutação se estende às gravuras, cujaentanto, é permitir a circulação das imagens entre um público amplo. NosCaprichos,

mbém buscava mostrar suas obsessões secretas, mas essa finalidade ficava dissimulajetivo proclamado: fustigar as superstições populares ou os vícios humanos. Doravan

ocêntrica (no sentido literal) vem em primeiro plano: o Goya privado se apodera upado precedentemente pelo Goya público. Essa decisão capital — a saber, que a imra servir primeiro ao conhecimento do mundo e à expressão do indivíduo, mas não icomunicação social — permite-lhe eliminar as últimas concessões que ele podia famuns da prática pictórica, aquelas que deviam assegurar a boa recepção às suas imag

Fig. 26. “Monstro cruel!”, Desastres 81.

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Os dois regimes de pintura

A nova concepção de Goya sobre suas imagens não se limita unicamente às gravurasualmente por meio das pinturas. Até 1808, os quadros de encomenda constituem a grsuas obras (vimos como eram os que ele pintava sem solicitação). Durante os anos

comendas se reduzem, sem desaparecer inteiramente: Goya podia pintar alguns retguma alegoria. Após a partida dos franceses, executa vários quadros comemorativos14, a separação entre os dois registros de produção é ainda mais nítida. Sem muito ende às raras encomendas que recebe, uns vinte retratos, num estilo bastante convtros quadros são pintados essencialmente para ele mesmo, e de maneira totalmen

omparemos esses retratos contemporâneos, os oficiais, de FernandoVII (por exemplo,GW 15privado, dele mesmo, preservado na Academia de San Fernando (GW 1551): temos dificuldreditar que se trata do mesmo pintor. À pose rígida de um, aos traços bem desenhas detalhes dos trajes e das insígnias, opõe-se a visão inspirada de um homem simpleda pose, sofredor, dubitativo, que somente a iluminação do rosto arranca à escuridão

comum que Goya pinte quadros de encomenda aplicando as regras de sua arte pesssembleia da junta das Filipinas (GW 1534). Seus quadros “livres” podem eventualmentmiradores que compartilham seu gosto; mas não foram encomendados, é somente a clientes decidem se os quadros lhes convêm ou não.Por um lado, portanto, Goya é capaz de pintar retratos oficiais, quadros alegóricosigiosas; por outro, cria para si mesmo os horrores da guerra, no sentido amplo dessaerença visual mais impressionante entre as duas séries, constituídas a partir de 179ação entre figuras e cor. No primeiro conjunto de quadros, os objetos são claramente

as cores vêm preencher os contornos preexistentes. No segundo, é o toque de cor queesta já não tem existência autônoma. Como ele dizia a Brugada, não existem linhas

mpouco regras em pintura…). Goya pinta agora o mundo tal como o vê, e não tal comdependentemente dele: a ruptura que os impressionistas irão trazer já está presentempo, e paradoxalmente, essa submissão a uma visão pura abre caminho à figuraçãoa primeira série, cada objeto tem existência autônoma, e estabelece-se uma hierarqjeto e tal outro; na segunda, os objetos se interpenetram e formam um todo;

sapareceu. De um lado, os rostos mantêm seus contornos e se submetem à exigência dm o modelo; de outro, são reduzidos a algumas manchas que indicam, mais do que os

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olhos ou a boca, e a forma preexistente do objeto cede lugar à expressão de um sentma atitude. Os quadros dessa série, afirma Javier Goya na nota biográfica que conspecialmente os que ele guardava em seu ateliê, mostram que nada o detinha em pintnhecia a magia (o termo que sempre utilizava) da atmosfera de um quadro”.Os amigos de Goya gostariam de ajudá-lo no plano material, conseguindo-lhe novasas sabem agora que ele se tornou incontrolável. Uma carta de Ceán Bermúdez cormúdez proporcionou ao amigo uma encomenda para a catedral de Sevilha; mas, cstilidade do pintor à Igreja, teme o resultado e precisa vigiá-lo de perto. Em 27 de17, escreve a um amigo: “O senhor conhece Goya e compreende a dificuldade quflar nele ideias que lhe são tão manifestamente estranhas. Dei-lhe instruções esc

aneira de pintar o quadro e o fiz preparar três ou quatro esboços preliminares”. Cem êxito em sua aposta: o quadro em questão,Santa Justina e santa Rufina (GW 156rfeitamente “correto” — e bem diferente das imagens que o artista pinta fora comenda.

Encontra-se um exemplo contrário, o de quadros produzidos segundo seus próprerecidos só depois ao olhar dos admiradores, em A forja (GW 965), que ficou no ateliê do pós sua morte, passou a pertencer a seu filho. O mesmo ocorre com uma série de cinctornarão propriedade de um amigo de Goya, Manuel García de la Prada, rico homemfrancesado notório (mais tarde ele os oferecerá à Academia de San Fernando, onde rmanecem até hoje). Todos mostram cenas coletivas. A Procissão de flagelantes (GW presenta personagens nus até a cintura, mas cobertos de máscaras e de altos chapmelhantes aos usados pelas vítimas da Inquisição; participam de uma procissão religInquisição (GW 966) põe em primeiro plano vários acusados; ao redor, vê-se a multidã

A Corrida de touros (GW 969) mostra uma multidão cativada pelo espetáculo. A tourupação cuja marca está presente em todo o percurso de Goya: paixão pessoal inconf1792, pois esse tipo de espetáculo popular é considerado vulgar pelos “esclare

adros de 1793, na primeira série de temas livremente escolhidos; publicação dasunidas sob o títuloTauromaquia, em 1816; grupo de quadros de touradas pintados em ós sua chegada à França; litografias de 1825… Por que essa obstinação de Goya? N

ma simples fidelidade aos seus gostos de juventude. O encontro entre touro e toureiro s a encarnação de uma das grandes dimensões da existência: é o confronto entre oimal, entre a habilidade e a força bruta, entre a arte e a natureza. Ao mesmo tncentrado do destino humano, um momento de verdade: assim como no duelo, o riscsumido aqui, e ademais é transformado em espetáculo. A morte do touro, a morte do too se cansa de retornar a esse desnudamento da fragilidade de uma vida. O futebol, ess europeus hoje, possui um simbolismo ao mesmo tempo mais sublimado e menos ricCasa dos loucos (GW 968, il. 17) representa outra multidão, a dos internos de um mani

vestidos de trapos, eles estão imersos em seus delírios. Foram encerrados numa sala

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spital de pestíferos (il. 10) ou as prisões de Goya. Um se considera um touro, outro rabatana, um terceiro está paramentado com uma coroa de penas, enquanto um quartogura um fuzil invisível. Um quinto canta, um sexto nos abençoa. Num canto da sala, umoelhado diante do sexo de outro. Eles constituem, portanto, uma amostra bastante tudes bem representadas entre aqueles de mente saudável. Aqui, ainda mais do queadro consagrado à loucura (il. 6), lembram sobretudo atores de teatro, envolvidoriados; essa teatralização produz um efeito surpreendente de aproximação. No entant

o loucos! Mas nós somos assim tão diferentes deles, quando nos consagramos aos nosatitudes deles não evidenciam as nossas? As poses dos loucos não exerceriam o mes

máscaras, que escondem e revelam ao mesmo tempo?O último quadro da série que pertencerá a García de la Prada traz habitualmente o títuO ensardinha (GW 970, il. 18). Sua interpretação não é evidente. Dispõe-se para essa

senho preparatório (GW 971), que intriga sobretudo pelas mudanças que ela introduz. rece de fato relacionar-se a um momento preciso do calendário, o fim do Carnaval uaresma, a transição entre Terça-Feira Gorda e Quarta-Feira de Cinzas. Essa passagem das comemorações e dos excessos carnavalescos e o início das abstinências euaresma. No desenho, quem dança são os frades e as freiras, que agitam um estandarteortus: portanto, celebram o fim desse período bastante pagão que é o Carnaval e stumes mais piedosos. Mas o quadro final inverte sistematicamente os signopresentado pelo desenho. No lugar da palavramortus (ainda visível no quadro, nodiográfico), vem agora a imagem de uma máscara que exibe um amplo sorriso: é umao mais um enterro.

Tal subversão dos valores tradicionais combinaria melhor com o que sabemos dos sentor pela Igreja. Aliás, no inventário dos quadros encontrados no ateliê de Goya apósterro da sardinha parece ser designado por uma frase sem a menor ressonância religio Baáscaras. Mas, afinal, o Carnaval comporta de fato uma inversão de valores e pode-se historiadores, que a “sardinha” é aqui um eufemismo para o “porco”: portanto, o quefim das comilanças e a substituição destas pela dieta à base de peixe. Essa festerpretada como um ritual carnavalesco, que saúda com exuberância aquilo que dev

mentações.O quadro representa uma procissão regozijante, em cujo centro se encontram cincm máscaras: duas mulheres totalmente vestidas de branco, um homem de máscara grono meio um segundo, cujo rosto talvez não seja mascarado, mas simplesmente caricatointo personagem vestido de diabo chifrudo, com uma máscara de caveira. Duas oualmente fantasiadas, de aspecto assustador, se aproximam do grupo pela esquerda: nça, o outro é um urso mostrando os dentes (ou melhor, um homem vestido de urso). So tais brincadeiras e danças faziam parte das tradições carnavalescas antigas. Atrá

ultidão densa e agitada na qual se misturam máscaras assustadoras e rostos descobert

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guns espectadores, jovens ou adultos, muito menos numerosos do que os partpetáculo. Acima dessa multidão caótica, um céu não menos tumultuado.É pouco provável que Goya represente aqui uma cena de procissão real, pois tais ceam autorizadas em sua época; aliás, os comentadores contemporâneos do quaplicitamente que ele transformou a realidade pela imaginação. Em todo caso, esse regafasta bastante do espírito cristão. Também não é uma glorificação do povo: o

mergem dessa multidão em delírio não deixam de ser inquietantes; a violência poderi

qualquer momento.O mesmo se dá com os outros quadros dessa série: nenhum deles pode ser tompresentação fiel de um fato. As procissões de flagelantes estão proibidas há décadasnão move tais processos, a casa de loucos pintada por Goya é excessivamente rica eme o pintor mostra não são fatos, mas fantasias representadas segundo sua estética. Oo individualizados, ao passo que as mímicas e os gestos são eloquentes; as formas sndo que as rodeia se interpenetram. A vertigem da imaginação domina tudo. As visixaram não somente o espaço real, mas também toda referência da representação, uar essas imagens em nenhum lugar. Se Deus está morto, se os ideais da razão, dardade podem trair, então, realmente, “tudo é permitido”, inclusive no mundo da pinturQuanto aos desenhos, estes ficam todos reservados ao próprio Goya, e se multiplicaobabilidade, datam desses anos os três álbuns F, E e D. Certos desenhos mantêmtíricas ilustradas pelosCaprichos, caricaturam as badernas entre homens ou entre munda a punição corporal das crianças (por exemplo E 13,GW 1389). Mas, na maioria dos caostram os representantes do povo simples sem ridicularizá-los. É o caso dos velhos

e sonham em casar-se de novo, esquecendo o estado no qual se encontram, ou quemitir sua fraqueza e sua inabilidade, e a quem Goya prodigaliza conselhos amigáveis Não ento o cesto! (E 8,GW 1387). A impressão é de que, para compensar sua incapamunicar-se com pessoas de verdade, ele começou a apostrofar seus personagens… Goma motivos familiares aos quadros de gênero, os homens no trabalho, ou na caça, o

m duelos; ou ainda a mãe que cata piolhos no filho, a mulher caridosa que dá de bebe93,GW 1508), ou as mulheres — sensuais — que penduram a roupa lavada (E 37,GW 140). Os mendigos são igualmente representados sem ser caricaturados, comendo (Ek,GW 142ntando nas ruas (E 50,GW 1415). Também se veem famílias laboriosas, o pai cego que aços um bebê enquanto conserta seu sapato (Ed,GW 1421), um outro pai, encarapitado no l

m jumento, fitando amorosamente o filho (E 21,GW 1394), os camponeses carregados de fadirigem ao mercado, ladeando sua filha (F 17,GW 1445).

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Fig. 27.Trabalhos úteis.

Outro tipo de personagem retorna frequentemente nesses álbuns, o da jovem de melhante às figuras alegóricas que aparecem nos ciclos de Goya: a Verdade, a RazãoLiberdade. As legendas que as acompanham indicam tratar-se, também aqui, de enrtude. Uma mulher sentada se debruça sobre seu tricô, a legenda comenta:O trabalho scompensa (Ea,GW 1417). Outra se apoia no tronco de uma árvore, olhos fechados, numrece evocar uma escultura: é A resignação (E 33,GW 1402). Uma mulher elegante está se

mpo, diretamente no solo, com o olhar mergulhado num livro; o pintor lhe dá um con Pm (E 48,GW 1412). Ele se dirige da mesma maneira a esta outra jovem, figura sol

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isagem, absorta num devaneio que não deve ser jubiloso: Deixa tudo com a Provicomenda (E 40,GW 1409). A camponesa de E 28 (fig. 1) pertence à mesma série. Um Gpacificado parece haver traçado essas imagens. Encontra-se no rosto de algumas mul

violência masculina, ou dos poderes públicos, aquele ar de pureza e de inocênconnefoy considera possível unicamente “na medida em que a perseguição tivesse liv

fatalidade de ser o carrasco…”.1

Numerosos outros desenhos ilustram os temas habituais da corrente “noturna” da obrque não significa que eles tragam um julgamento sobre seu assunto. Assim, o interelos temas de bruxaria se mantém. Dois velhos bruxos (D 4,GW 1370, fig. 28) dançam flum espaço indeterminado: um deles toca castanholas, o outro se pendura no primeiro

mbos exprime uma espécie de júbilo; aliás, o desenho se chama Regozijo. O voo, o arrancamra e ao mesmo tempo às leis que regem o espaço humano parecem encarnar-se nouxas, assim como fazem as fantasias sexuais do pintor. Também reencontramos sumo nos desenhos que mostram feiticeiras roubando bebês recém-nascidos. Uma velmbra aquela que vemos em Exorcismo (il. 9), encheu seu alforje com criancinhas nuas, atstão (D 15,GW 1374); este, nos diz Goya, é oSonho de uma bruxa boa — boa sobretudo pesma.

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Fig. 28. Regozijo.

Os súcubos dão palmadas num homem indefeso — mas talvez se trate apenas de ursonagem (Da,GW 1378); eles revelam uma força extraordinária, caso dessa velha que

mbros dois homens nus, imbricados numa pose acrobática (D 20,GW 1376): Goya dá ao deulo Pesadelo. Outras vezes, esses demônios fêmeas parecem menos ameaçadores. O W 1393, fig. 29), outro Pesadelo, mostra uma bruxa de idade avançada cujos traços trro terror; ela é carregada, já não por um bode, mas por um touro voador. A atração d

o parece inclusive mais geral e ligada ao questionamento que ele faz da representaçãormas humanas mostradas em seus desenhos parecem ter deixado o espaço comum

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gar indeterminado. É o caso desses homens que esvoaçam alegremente (fig. 28): todmundo que conhecemos, aquele no qual a terra atrai para si as criaturas. Será que eno dos sonhos? Já não são retidos por nenhum obstáculo; Goya também não. Essa ação às regras da mecânica clássica torna-se ao mesmo tempo o emblema das lib

oya toma doravante com as leis tradicionais da representação.Certos desenhos reatam com a temática sexual explorada anteriormente, caso de F 7GW . 30), ao qual se dá hoje o título de Despertar ao ar livre.

Fig. 29. Pesadelo.

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Outros mostram duas mulheres ternamente enlaçadas (Eh,GW 1426), tema que reencontratras obras (por exemplo,GW 366,GW 383,GW 656 ouGW 1751; a homossexualidade maspresentada mais raramente); ou um homem exibindo seu sexo diante de uma jovem (EGW 1ais trágicas são as cenas que anunciam um estupro, como E 41 (GW 1410), que represeteador arrastando para uma gruta uma jovem à qual se agarra seu filho; a legenda d Deure de uma sorte tão penosa (já vimos esse tema tratado em pintura, ils. 12, 13 e 1ndido despiu sua vítima, que, ajoelhada, mãos atadas, espera com angústia o cumprrte (F 16,GW 1444). Ao lado, as badernas de mulheres, mais raras, parecem quase côF 74 (GW 1493), em que uma das combatentes dá uma pancada com seu sapato na ná

tra… Como as gravuras dos Desastres, os desenhos dessa época se caracterizam em gmplificação dos traços e pela omissão dos detalhes, o que torna tais figuras mais geraimpo mais expressivas.A prática do duplo regime durará trinta anos, desde os primeiros álbuns de desenhopintor. É um evento de primeiríssima ordem: embora exerça uma intensa ativida

cial e mundano, Goya alimenta ao mesmo tempo aquilo que Gassier denominará umbterrâneo, cheio do mistério tenebroso das profundezas”,2 feito com cerca de mil desenais de uma centena de gravuras e de bom número de quadros de cavalete, destinados

ateliê do pintor ou a circular somente entre os seus próximos. Portanto, mais da modução total não foi feita para o público de seu tempo, mas para ele mesmo e para seaginário, esse “espectador imparcial e bem informado”, que se situa fora do tempo.

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Fig. 30. Despertar ao ar livre.

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egunda doença, Pinturas Negras, Loucuras

Em fevereiro de 1819, Goya adquire nos arredores de Madri uma casa de campo qunhecida por um nome bem apropriado, aQuinta del Sordo, a Quinta do Surdo. Não se se ele deseja deixar a cidade onde mora há tanto tempo; uma hipótese provável — macumento vem apoiar — é a de que prefere manter-se afastado para não exibir aos olhrticularmente aos da Inquisição, sua vida em concubinato com Leocadia Weiss. Se

mpreende obras de reforma dessa casa durante o verão; mas, antes de poder habitá-vo gravemente. Assim como em 1792, não se conhece a natureza exata de sua doeormação sobre ela nos vem do comovente autorretrato que ele pintou em 1820, ompanhado por seu médico Arrieta (GW 1629, il. 19), que é ao mesmo tempo o destinadro. A legenda diz: “Goya agradecido ao seu amigo Arrieta, pelo cuidado e pela ateais lhe salvou a vida por ocasião da grave e perigosa doença da qual ele sofreu no f19, à idade de 73 anos”.O quadro mostra um Goya esgotado, e mesmo próximo da morte, cuja mão esq

nvulsivamente o lençol; ele se abandona entre os braços do médico, homem de olhareocupado, o qual lhe estende um copo que sem dúvida contém um medicamento. Alumbram-se imprecisamente três figuras bastante inquietantes, que às vezes são ident

m sacerdote e dois criados, mas que mais provavelmente são, considerando-se secertos, seres que só existem na mente febril do enfermo, os demônios que o acompanmpo e que espreitam seu desfalecimento, como faziam os fantasmas ao redor dontados trinta anos antes (GW 243), ou em torno do Goya autor de gravuras, como emCaprichem Desastres 1.No ano anterior, ele havia pintado um quadro que apresentava os últimos momentotro personagem (GW 1638), mas a cena era inteiramente diferente: mostrava José dmando a última comunhão. Goya, em situação semelhante, aparentemente só confia manos e naturais; escolhe o médico, em vez do sacerdote, e prefere o copo ao cáliclasanz morre, ao passo que Goya sobrevive… Seu autorretrato com Arrieta pertence to, uma imagem oferecida à igreja, representando a vítima de um acidente qualquer, um santo ou da Virgem, que a teria livrado dessa desgraça. Só que, aqui, quem apar

santo e traz a salvação é um personagem totalmente profano, o médico. Consequadro será destinado à casa deste, e não à igreja.

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Goya se viu à beira da morte, e foi o gesto de socorro de outro homem que o reconu quadro se torna um hino à compaixão, ao cuidado desinteressado por outrem. Eava inteiramente ausente de sua obra anterior, tanto dos Desastres da guerra quanto dos dee lhes são contemporâneos. O nome que ele empregava era “caridade”, virtumordial importância, que recomenda o amor universal pelo próximo. Mas, até enservara de fora esse gesto e o representara motivado pelo cuidado de transmitir uma s paixões humanas. Agora, ele era pessoalmente o objeto dessa virtude. As consolaçpromessas das Luzes, as paixões patrióticas revelaram-se todas decepcionantes; desconfrontado a um bem puro: portanto, tal coisa, embora seja raríssima, existe.

Como em 1792, a gravidade da doença transformará a atividade pictórica de Goya.os antes, a surdez resultante da enfermidade o fizera descobrir, ou ao menos valorizaerior. Agora, o sentimento de haver beirado a morte lhe dará uma liberdade nova, rcebesse que, nos poucos anos de vida que lhe restavam, já não precisava levar em cnvenção, conformar-se a nenhuma regra: pode e deve dar livre curso à busca da verda

mprometera.Mais ou menos no mesmo momento, Goya faz um de seus últimos quadros de temralelamente encomenda dos padres das Escuelas Pías de San Antón em Madri para qgrande painel consagrado ao patrono da comunidade, José de Calasanz, ele pinta — mr sua própria iniciativa — um quadrinho que oferecerá a esses mesmos padres (i

presenta esse episódio que o persegue há muito tempo, Cristo no jardim de Getsêmanim o seu destino trágico. Mas, enquanto o personagem colocado na mesma posição esastres parecia esperar que aquele cálice fosse afastado dele, aqui o Cristo, curvadas taças que o anjo lhe apresenta, abre os braços em cruz como para acolhê-los melscarnado, evanescente, fantasmático, figura ao mesmo tempo a aflição e a aceitação dO resultado dessas últimas transformações na mente de Goya serão as pinturassenhos de seus últimos anos, em particular aqueles chamados as Pinturas Negras.tas nas paredes da casa onde ele se instalou logo após sua doença, em 1819. A crtanto, é imediatamente contígua à experiência que o artista acaba de atravessar e sobtorretrato com Arrieta dá testemunho. Essa obra constitui, se não o prólogo, ao meno

nturas Negras. Ora, em aparência, nada poderia ser de espírito mais diferente. Uma be pela primeira vez na obra de Goya, uma encarnação da virtude suprema, a pura m outrem. As outras representam um desfile de demônios e monstros. Logo após termes da humanidade, o pintor se empenha em trazer à superfície os habitantes de seus vez convenha ignorar essa aparente contradição. Também é possível que o simples creno sólido da compaixão tenha dado a Goya a coragem de partir para essa viagemvia lhe permitir livrar-se de seus demônios colando-os nas paredes de sua casa.A criação das Pinturas Negras se desenvolve ao longo do intervalo liberal em que a E

tre 1820 e 1823 — entre o golpe de Estado de Riego e sua prisão. De fato, em setem

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rtanto logo após a vitória dos conservadores, Goya doa essa casa ao seu neto Maro mais habitá-la; passa os primeiros meses do ano de 1824 hospedado com um amigomento, decide deixar a Espanha e começa a organizar seu futuro exílio. As razões de podemos apenas supor, não parecem ser diretamente políticas. Goya não tem nenhublica nessa época, suas imagens subversivas não circulam e, aliás, ele tem amigos dos os campos políticos; contudo, está claro que suas simpatias se inclinam para o larelação ilegal com Leocadia já era uma razão para sair de Madri, nas novas circu

de ter motivado a partida da Espanha: Leocadia não esconde suas convicções libaramente deixar o país. Portanto, as Pinturas Negras foram criadas ao longo de arcado simultaneamente por uma nova liberdade interior, consecutiva à doença, e poreralização política.O primeiro traço característico das pinturas que decoram as paredes da Quintaamadas “negras” por causa da presença insistente dessa cor, é que elas não foram detas por outras pessoas além do próprio pintor e seus íntimos. Goya percorreu um losde a carta de 1794 a Iriarte, na qual anunciava que queria escapar à pintura feita soboduzir, de preferência, imagens que lhe eram impostas por um sentimento de necessiesmo assim, seus primeiros quadros livres, assim como outros que se seguiriaralelamente às encomendas oficiais, eram destinados a ser vistos por um públictrito: Goya os enviou à Academia junto com sua carta. A evolução atinge em seguis gravuras: enquanto osCaprichos são postos à venda, os Desastres da guerra, que custaoya muito trabalho e até mesmo despesas, não o serão nunca. Deles serão tiradas sries de provas, uma das quais será entregue a um amigo próximo. Assim, por seu e

avuras aproximam-se dos desenhos, atividade estritamente privada, tornando-se ppressão e de busca da verdade, em vez de servir para a comunicação imediata. Onturas destinadas a um ou a outro uso, público ou privado, divergem, como vimos, cadCom as Pinturas Negras, um novo passo é dado. Ao pintar imagens nas paredes de so sobre uma tela transportável, Goya marca sua renúncia a toda difusão dessas obpressionante constatar que não existe nenhuma menção a elas durante sua vida, rrespondência nem nos escritos de seus próximos: é como se não existissem. Ele asas o habitam, e não porque deseja agradar, ou espera ganhar dinheiro, ou — mais norque quer se dirigir aos seus contemporâneos e participar-lhes as revelações que as imagens são destinadas a ele mesmo. Para apreciar a singularidade dessa situaçãoe se trata de um dos mais importantes ciclos de quadros pintados por um artistaaginemos por um instante que, em vez de cobrir com seus afrescos as paredes de uticano, Michelangelo tivesse pintado as imagens da Sistina nas paredes de sua água-futes de deixá-la para sempre!Desde então, as coisas mudaram muito. As pinturas foram transpostas para tela e de

ado, o museu nacional da Espanha; tornaram-se objeto de admiração universal e

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mentários. Estes giram em torno de duas questões complementares: por que foram feentido delas?Para tentarmos identificar as razões que levaram Goya a cobrir de pinturas as parandes aposentos em sua casa, lembremos primeiro as circunstâncias de que temos conoquei a proximidade imediata do autorretrato com o doutor Arrieta, assim como a ausenção contemporânea a essas pinturas, por parte tanto do pintor quanto de seus próxis determos um pouco mais sobre a maneira como ele se separa delas, no fim de 182

bemos hoje, não tem nada de um artista puramente intuitivo, presa de pulsões irresimem de agir impensadamente e tampouco de deixar de refletir sobre sua criação. Nãoe essas imagens, pintadas sem dúvida durante boa parte dos anos 1821 e 1822, repre

m quantidade quanto em qualidade, o resultado ou mesmo o cume de toda uma vertentão produziu nada tão ambicioso nos anos precedentes, nem o fará nos que lhe restamo somente ele oferece sua casa ao neto (isso podia ser motivado por consimodidade) como também a abandona, aparentemente sem desgosto, em seguida srante suas breves visitas seguintes a Madri, não dá a ela nenhuma atenção especial. C

ausência, por parte dele, de qualquer interesse por suas próprias obras-primas?Certos espectadores um tanto ingênuos puderam se perguntar, ao ver as Pinturas Neo seriam a prova tangível da loucura do pintor. Mas, evidentemente, um louco não psas imagens, que não têm nada de arte bruta. Pode-se, em vez disso, sugerir que elas s

contrário. Havia décadas que Goya suspendera as barreiras que retinham seus consciência e os deixara invadir suas imagens. Ele havia compreendido: o que a perstições populares chamam de súcubos e de demônios são apenas desejos e puls

gústias profundamente enterrados em cada um de nós. Então ele os mostra, dando-las sem lhes dar livre curso, por medo de que o dominem. Será preciso que ele periência da doença quase mortal e da compaixão desinteressada por parte de seu amsinta enfim instalado sobre uma base suficientemente estável, a partir da qual podezer à luz suas fantasias.Werner Hofmann tem razão ao sugerir que, por suas Pinturas Negras mas também po

m sua obra as prepara, Goya se tornou seu próprio exorcista. No lugar do padre muuz, a proferir imprecações, vem o pintor armado unicamente com seus pincéis e lápiorcizar os outros, ele cura a si mesmo. O pintor “inventa e convoca os monstros e nsformando suas sombrias obsessões em imagens”; agora sabe que esses serrofundezas ocultas do psiquismo individual”.1 É justamente porque a criação das Pinturarticipa de um trabalho de autocura que Goya não busca em absoluto compartilhá-lam seus amigos: ele pinta essas imagens para livrar-se delas, e não para ser admiradoplique também a maneira um pouco negligente desse trabalho, comparado, por exeterro da sardinha (il. 18). E podemos nos perguntar se, longe de constituir para ele um

ego àquela casa, elas não se tornaram uma das causas de sua partida: uma vez que con

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us demônios, Goya não precisa mais olhá-los, e tampouco tem vontade disso. Mais ma nova vida em outro lugar.Tal interpretação permite apreender a coerência dos diferentes fatos que rodeiam anturas Negras. Mas o que elas nos dizem exatamente? Essa pergunta corre o risco de

ma resposta definitiva. E não se trata unicamente, aqui, da margem de incerteza, pregese: no caso presente, Goya não nos deixou nenhum indício, e não é certo que tssibilitar o processo de decifração. Vimos como ele se empenhava, desde osCapricho

mbaralhar as pistas; dali em diante, a impossibilidade de fixar o sentido tornouracterísticas de seu universo. Por outro lado, as pinturas foram deslocadas e restauram vigor. Não existe certeza absoluta sobre a localização original de todos os quabe-se que Goya atenta particularmente para a ordem na qual aparecem os elementos be-se também, pelas fotografias antigas (datadas dos anos 1860-80), que certos q

mputados de boa parte de sua superfície e que alguns detalhes considerados inopoagados. Segundo outras informações, uma escada, igualmente decorada, ligava os doa desapareceu. Por fim, é possível que o filho de Goya ou outros artistas tenhamnturas enquanto elas ainda estavam no local. Nada disso impede que alguns dadoabelecidos com certeza e facilitem a compreensão do conjunto.Se olharmos essas imagens no contexto das obras anteriores de Goya, e mais parquelas que não se destinavam a ser vistas por todos, o caráter enigmático delas se a93 — e mesmo desde 1788, ano em que ele pinta oSão Francisco Borgia —, sua obra é br quadros que mostram seres sobrenaturais, bruxas que festejam o sabá, loucootescos, violências físicas, multidões em transe. O choque produzido pelas Pinturas N

ncentração de suas características. Em vez de quadrinhos de gabinete, estamos lidantorze painéis de grande formato, pintados sem preocupação de perspectiva ou de ema central, aliás, não passava de um detalhe marginal entre outros. Eles transpõem puilo que os desenhos esboçavam, dizem claramente aquilo que antes era apenas sugviver a guerra, com seu cortejo de horrores, Goya se sentira encarregado de um

nsmitir ao resto da humanidade aquilo que havia aprendido: o resultado eram os Desastrerra e os quadros que os acompanhavam. Da mesma maneira, dez anos mais tarde, ele a obrigação de deixar uma marca dessa outra experiência apavorante, sua visitaerno, no meio dos demônios — isto é, ao interior dele mesmo, e já não ao mundo

nturas Negras são a narrativa dessa viagem ao fim da noite; pela segunda vez, a testemu dever.Não parece que esses quadros obedeçam a um projeto iconográfico sistemático, o qrresponderia às práticas habituais de Goya; tampouco é necessário procurar tradumentário de eventos políticos contemporâneos. Mais uma vez, o pintor representcorrentes de sua imaginação, mas acentuando-os e mergulhando em vários registro

de-se observar que, assim como em toda a parte “noturna” de sua obra, Goya rev

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ão desiludida da humanidade, quer nas cenas de multidão, quer nas figuras operstições correntes ou na evocação dos personagens mitológicos. Executadas perto rreira, as Pinturas Negras formam, desse ponto de vista, um polo oposto àquele pelo qciado sua atividade artística: os cartões que mostravam os jogos e os prazeres muns. Ao mesmo tempo, o fato de Goya ter passado vários anos ao lado dessas imageimpressão que ele extraía delas não era puramente trágica (o que ocorre muitapectadores de hoje). Pode-se supor que os seres grotescos que povoavam as parede

ziam-no rir, em vez de tremer de medo; que vê-los assim figurados lhe trazia um ale um acabrunhamento. A dimensão satírica e mesmo cômica das imagens devia apaais claramente do que a nós.Eis o que sabemos da disposição original dessas imagens e que é útil para interpravam em dois aposentos de dimensões idênticas, um em cima do outro. Na sala dos quadros. À direita da entrada: um ancião, acompanhado de outro personagem; à e

ulher apoiada numa espécie de rocha, e que foi identificada como Leocadia pelo pinmeiro observador da Quinta, o qual conhecia pessoalmente a companheira de Goya (GW 1622rede oposta, à esquerda, Saturno devorando um ser em miniatura; à direita, uma mulhconhece Judite, erguendo seu gládio sobre Holofernes (GW 1625). Entre essas paredesfrontam, dois grandes painéis de personagens múltiplos, descritos no inventário pósande bode (ouO sabá das bruxas, GW 1623) e A peregrinação a San Isidro (GW 1626). Cmbrar, porém, que nenhum desses títulos é atestado por Goya, e que não é possível entificações tradicionais, nem mesmo a de Saturno. Um sétimo painel, menor, represlhos (homens? mulheres?), ficava talvez nesse mesmo aposento, acima de uma porta, m

ssível que provenha da outra sala.Portanto, dispõe-se aqui de três pares de painéis. O primeiro reúne as imagens trada, uma das quais é Leocadia, provável habitante dessa morada. Do outro lado dgico encontrar uma representação do dono da casa, o próprio pintor; mas, em vez dis personagens (GW 1627, il. 21), muito diferentes entre si. O da direita, recuado, assetras cabeças grotescas de Goya e parece estar gritando alguma coisa no ouvido do pequerda, o qual, ao contrário, parece um ancião digno e plácido, que aperta entre angala comprida. O grito do primeiro não seria um indício da surdez do segundo? Tamnsar que o personagem da direita, de traços deformados, não é um ser humano como o

m demônio — aquele que, habitando a mente de Goya, lhe sopra suas visões negras. so, poderíamos ver no ancião uma representação alegórica do próprio Goya, nada carTal interpretação encontraria confirmação num desenho provavelmente posterior (G GW . 31), que representa um velho bastante parecido, agora apoiado em duas bengalas; senho anuncia:Continuo aprendendo. Voltaremos ao sentido dessa frase; o que importa

mprego da primeira pessoa do singular para uma imagem que não revela nenhuma sem

m o pintor. Sabe-se que Goya tem o hábito de figurar-se no início de seus ciclos: u

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ertura dosCaprichos, uma imagem puramente simbólica na dos Desastres, a de um hoelhado abrindo os braços num gesto crístico. É provável que ele tenha feito o mesms Pinturas Negras. Se tal suposição for correta, pode-se concluir que essas duas imaglado da porta, não fazem parte do universo que se desdobrará no restante desse espaçNo fundo do mesmo aposento encontram-se de novo um homem e uma mulher; mares humanos comuns, trata-se agora de dois personagens lendários, um tiradostamento, o outro da mitologia grega ou romana. As ações às quais eles se entregam n

acionar-se. Uma jovem (Judite) corta a cabeça de um homem (Holofernes), motivosenhara na época dosCaprichos (GW 636); quanto à imagem do homem, Cronos ou Satupresentado como gigante monstruoso, de idade incerta, ocupado em devorar um ser24, il. 22). À diferença do desenho que Goya havia consagrado ao mesmo tema 25 a5, fig. 32), no qual o titã engole vários homenzinhos, e contrariamente, também, a

ubens sobre esse tema, que Goya poderia ter visto em Madri, o ser que ele consome nãança nem um homem: tem o corpo de uma jovem. Aliás, essa associação de Saxualidade masculina é sugerida por outro fato: a antiga fotografia desse painel mrece, o personagem com o sexo em ereção; tal detalhe pode ter desaparecido simulado) no momento da transferência das pinturas murais para a tela. Lembremos tto grego (ou romano), embora não faça uma filha ser consumida pelo pai, tem fortexuais (e não somente associações com a melancolia ou a passagem do tempo): nomento, Cronos havia cortado o pênis de seu pai Urano; ele sofrerá a mesma sorte us, seu filho.Portanto, as duas imagens representam, uma e outra, o assassínio de um ser do sexo

erecem uma interpretação extrema das relações entre os dois sexos — mas que temtecedentes na obra do pintor, ao longo de todos os anos que separam as Pinturasprichos. Goya raramente figurou versões idílicas ou mesmo simplesmente pacíficas tre homens e mulheres. Desde antes de sua doença, ele oferece uma visão satírica do quadro de 1792 intituladoO casamento (GW 302), cartão para a série de tapeçarias “r

micas”; nele, os parceiros são particularmente desarmônicos. Frustradas as esperade ter alimentado na relação com a duquesa de Alba, Goya parece ter-se tornadosconfiado a esse respeito: nosCaprichos, ora são as mulheres que depenam os homens,e procuram se aproveitar delas; Goya não mostra neles nenhum amor feliz e sereno. Oparação — mas esta nem sempre parece possível, como testemunha oCapricho 75, no qem um homem e uma mulher presos um ao outro, capturados nas garras de uma avmônio). A legenda é um grito de desalento: “Não há ninguém que nos desate?”. Sepais difícil porque o divórcio não existe na Espanha…

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Fig. 31.Continuo aprendendo.

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Fig. 32.Saturno.

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Fig. 33. “Loucura desordenada”, Disparate 7 .

Numerosos desenhos mais tardios amplificam esse tema: a vida em casal é um jugo; ssse possível fugir dela! O Disparate 7 , “Loucura desordenada”, às vezes dito “Datrimonial” (GW 1581, fig. 33), mais ou menos contemporâneo das Pinturas Negras, fionstruoso, espécie de par siamês dotado de uma cabeça com duas faces, quatro brnas e ainda oito pés, dirigindo-se a um grupo de espectadores semelhantes às voam as paredes da Quinta del Sordo. Esse ser duplo não parece feliz!

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Fig. 34. Briga conjugal .

Com frequência, as relações entre os sexos são impregnadas de violência, segundo demerosos estupros que Goya mostra em seus quadros ou nos Desastres da guerra. Essa vioo parte unicamente dos salteadores ou dos soldados: ela impregna a vida dos casais. paz que espanca sua companheira com um bastão (B 34,GW 402): aparentemente, é apontânea de um homem cujo ciúme foi despertado! Outro desenho (F 18,GW 1446, fig. 34)

ma cena de violência conjugal: ao lado de uma cama desfeita, o homem agarrou a

belos e lhe dá golpes, enquanto ela tenta se defender; o urinol virado comprova a brstos. Embora a violência masculina ultrapasse de longe a das mulheres, esta ú

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existente, ainda que na mente de Goya esteja ligada a outras situações. Caso dessa mresta a massacrar um açougueiro adormecido com o próprio machado dele (F 87,GW 1503)…oderar-se de seus magros bens? Um desenho ligado ao álbum D (GW 1379, fig. 35) mostulher na atitude de Saturno: essa espécie de bruxa, mascarada por uma caveira, ancinha, é uma canibal, uma ogra: Mulher má, diz a legenda, em tom de lítotes. As imturno e de Judite podem ser interpretadas como o paroxismo dessa guerra dos sexovelam assim o que lhes é comum. Elas são simétricas às imagens da parede oposta, ualmente uma jovem e um ancião, mas em poses bem mais meditativas: de um olência, de outro, a paz.

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Fig. 35. Mulher má.

Os dois grandes painéis do mesmo aposento,O grande bode e A peregrinação a San Isidstante parecidos entre si: ambos mostram uma multidão em transe. O painel da direisunto já tratado em A pradaria de San Isidro (GW 272), tela que pertenceu ao duque dntudo, é total o contraste entre o ambiente alegre do antigo quadro e o delírio expressustador dos peregrinos nesse painel da Quinta del Sordo. O que fica em frente a ele,

trada, representa — também aqui, como num dos primeiros quadros “de bruxaquelarre) — o grande bode (o diabo) rodeado por seus adoradores. Contudo, aqui o

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uito diferente e lembra maisO enterro da sardinha (il. 18); as figuras não são desenhaparadas claramente umas das outras, os rostos se reduzem a ríctus grotescos. Além dide já não é o personagem central: é visto de costas e reduzido a uma silhueta sitquerdo — efeito ainda mais impressionante na origem, uma vez que esse painel se eita por um metro. Agora, o centro da atenção é a multidão embrutecida e grotesca, poucas bruxas quase elegantes do antigo quadro.Se compararmos essa imagem ao quadro pintado 25 anos antes, perceberemos queóprio lugar do sobrenatural mudou. Telas como Aquelarre ou como Exorcismo (il. arentavam com o gênero fantástico. O conteúdo da visão era representado com veras seu estatuto permanecia incerto: seria o efeito de um sonho, um acesso de lperstição popular? Subsistia a dúvida quanto à realidade do que era mostrado. Nadde ser dito deO grande bode nas paredes da Quinta del Sordo. A comparação das Pintum os quadros de bruxaria ou com osCaprichos permite calcular o caminho percorrido pnão restam vestígios do caráter lúdico ou satírico das antigas imagens; as figurasarto de século mais tarde devem ser tomadas ao pé da letra, como relato fiel daquilo

u. A nova imagem já não é fantástica, é fantasmática. Uma apresenta, em tom dubitativais; a outra, de maneira totalmente franca, as visões do pintor. Tais imagens habitamente; quanto a isso nenhuma hesitação é sugerida, nem mesmo permitida. Dessa mantecipa a evolução do fantástico no séculoXX, quando esse gênero deixará de opor oaginário para revelar a estranheza do próprio real. Goya já não pinta senão suas fantae estas conduzem à verdade do real.As duas imagens que se defrontam fornecem, portanto, uma representação ca

pulacho, crédulo e potencialmente violento. Aqui, o pretexto para a aglomeração é uigiosa católica, a peregrinação de San Isidro; lá, ao contrário, trata-se de um ritual p

abo em pessoa. As cabeças de fiéis são igualmente inquietantes nos dois cultos; Goyeferir uma crença à outra, nem alimentar ilusões sobre a inteligência e a lucidez dessaOs painéis do primeiro andar se referem, por sua vez, a temas familiares do univeas de maneira menos sistemática; são sensivelmente mais luminosos do que os do térre foram pintados primeiro. No fundo da sala encontram-se dois painéis que quase nturas de gênero, A masturbação (GW 1618) e A leitura (GW 1617), sobre os quais tambémnsar que ilustram, um, o embrutecimento do povo, e o outro, uma atividade recomsclarecidos”. São atividades cotidianas, reprováveis ou louváveis, mas o conteúdporta pouco, os detalhes materiais são eliminados em proveito dos gestos e das a

zinhos são outros dois quadros: um,O passeio do Santo Ofício (GW 1619), lembra as multidocissões do térreo; são, portanto, os rituais da Inquisição a serem assimilados àabólicas agora. O outro representa duas figuras perfeitamente simétricas, dois cametidos na terra até os joelhos, trocam bordoadas (GW 1616). Ele pode ser percebido co

agem das lutas fratricidas que balizam a história da humanidade, desde Caim e

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nfrontos entre conservadores e liberais na Espanha, lutas que se revelam trágicas rticipantes e ameaçam provocar sua destruição mútua — caso desses camponeses quer tragados pelo solo. Os dois quadros seguintes mostram personagens sobrenaturais As P

W 1615) à esquerda, Asmodeia (GW 1620) à direita — e lembram outras figuras imagoca dosCaprichos. Os dois velhos que comem gulosamente (GW 1627a) ficavam certamquerda da porta de entrada, completando o cruel inventário feito por Goya do mundocabeças deles são ainda mais grotescas do que as dasVelhas.

Bem se vê, por essa enumeração, que Goya extrai livremente seus motivos de traversas — mitologia antiga, personagens bíblicos, superstições populares, cenas de gz de colocar-se a serviço de uma delas; a unidade do conjunto provém do fato de peu universo pessoal. Para realizar seu desígnio, o pintor utiliza todas as possibilidadesrsonagens apavorantes são emanações de sua própria pessoa, e Goya sabe disso; ao mprojeção de tais personagens sobre as paredes da casa lhe permite tomar distância es.Nas Pinturas Negras, num gesto ao mesmo tempo de chamada e de expulsão, Goyala última vez essas forças, vindas de dentro, que ameaçam a humanidade. Em ummelhante, Romain Gary, no início de sua autobiografia Promessa ao amanhecer , convoca o qnomina “a coorte inimiga que se debruça sobre mim”, a série de demônios que nun

Há primeiro Totoche, o deus da estupidez […]. Há Merzavka, o deus das verdades abpécie de cossaco de pé sobre montes de cadáveres, com a chibata na mão […].oche, o deus da pequenez, dos preconceitos, do desprezo, do ódio… É um

ganizador de movimentos de massa, de guerras, de linchamentos, de perseguições […

uses, mais misteriosos e mais obscuros, mais insidiosos e mascarados, difíceis de ideortes são numerosas, e numerosos seus cúmplices entre nós…”2 Foram eles que Goya pinredes de sua casa e gravou em suas últimas placas de cobre.As Pinturas Negras representam a expressão pictórica adequada das revelações quezer sobre a violência que habita o mundo exterior, mas também sobre os demôtalaram em sua mente. Operam a síntese entre dois momentos precedentes em sua evvisões consignadas nosCaprichos vão ao encontro das constatações acabrunhadas ques Desastres da guerra. Ao mesmo tempo, a posição do pintor em relação às suas i

odifica: suas pinturas murais agora lhe permitem uma expulsão, a figuração assume uorcismo. Conscientizando-se de suas obsessões, exteriorizando-as numa obra, Goya plas, ou pelo menos domá-las; também pode permitir que o espectador realize esse mel mutação foi facilitada, pode-se supor, pelo encontro com a compaixão de que ele mo se, graças a essa descoberta, Goya tivesse conseguido destacar de si essas visõespossuíam demais e realizar aquele ideal do qual ele iria falar em seus últimos anoanos e as coisas “tais como te aparecem à distância, a não ser que sejas míope”…

O último painel, à direita da porta no primeiro andar, é o mais estranho e sem equival

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obra do pintor: éO cão (GW 1621, il. 23). Ele é tão singular que houve quem se pergo se tratava do fragmento de uma imagem maior, mas o exame minucioso do quadronhum outro traço. Não somente o cão está reduzido à cabeça, como também ocupnima da superfície, a qual está coberta de tinta, mas não representa nada. O cão olh

guma coisa, mas não podemos saber o quê, e essa impossibilidade de dar um sentina-se o símbolo de sua vacuidade. Toda ideia de espaço pictórico é abolida aqui,

da ideia de humanidade. É o ponto extremo atingido por Goya em sua exp

ssibilidades da pintura; é também a última imagem que se vê em sua casa (se postulaocadia é a primeira). Cerca de vinte anos mais tarde, Turner pinta por sua vez um litário, mas, apesar da ausência de qualquer objeto visível em torno do animal, mant

m espaço no qual este se encontra. Já Goya nos faz deixar o mundo familiar para mostrvazio.Do mesmo período que as Pinturas Negras datam provavelmente os Disparates, termo qupanhol, tem o sentido de extravagância, de incoerência, de loucura. A interpretaçãorie de gravuras é ainda mais difícil visto que a série é inacabada e a ordem das imarias não têm legenda. Mas, se nos basearmos na ordem observada nas outras sérpor que uma dessas gravuras (GW 1600, fig. 36) estava destinada a figurar no início. Ela

m homem idoso que se levanta a partir de um corpo adormecido: portanto, na condiçãaugural, este seria, mais uma vez, um retrato simbólico do autor, que, um pouco como

m outros desenhos, está simultaneamente presente no mundo real (deitado) e no sonho Ele está confrontado com suas visões, que serão detalhadas nos Disparates seguintes. Ador, distinguem-se alguns animais familiares: aves noturnas, tartarugas, um cão; no

rpia, meio mulher meio pássaro, e, em volta, as silhuetas de seres humanos cmeaçadores, os fantasmas habitantes do mundo noturno que Goya explora há décacontroláveis, violência, estupidez, ignorância. As outras 21 gravuras desenvoucinações de pesadelo: um imenso fantasma que semeia o medo; um gigante de Carnnçando, mas que também provoca pavor; corpos despedaçados e maltratados, seres s

ma multidão caótica.

Fig. 36. “Loucura fúnebre”, Disparate 18.

É como se Goya reatasse com o projeto dosSonhos, que havia precedido osCaprichos;

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Uma nova partida

Como pintor do rei, Goya, que faz muita questão de preservar sua renda, precistorização para todos os seus deslocamentos. Então, usa como pretexto a necessidadeação de águas” para cuidar da saúde e obtém os documentos necessários. Em junhoega à França, onde passará os últimos anos de vida. Dirige-se primeiro a Bordeauxtalados numerosos emigrados espanhóis e especialmente seu amigo Moratín, de quem

óximo. Logo após a chegada dele, Moratín envia a um amigo uma carta na qualmeiros passos de Goya em Bordeaux: aparentemente, o pintor dá provas de umrpreendente. Está, lê-se na carta, “surdo, velho, alquebrado e débil, não fala umncês, não tem doméstica (logo ele, que precisaria disso mais do que ninguém)”, e n

esmo tempo, mostra-se “muito feliz e muito desejoso de conhecer o mundo”. Seu apefísico: “durante dois dias, comeu conosco como um jovem estudante” (27 de junho dvo desejo de viver o impele de imediato à ação: poucos dias após sua chegada

mpreende nova viagem, dessa vez rumo a Paris, onde passará os meses de verão.

Na capital, reencontra outros amigos espanhóis; segundo os relatórios da polícia fus movimentos são acompanhados), “só sai para visitar os monumentos e passearblicos” (15 de julho de 1824). Isso nos vale uma série de desenhos nos quais ele servações, acompanhando-as de legendas como “Eu vi isso em Paris”. Tendo

ordeaux em outubro, instala-se numa casa confortável, onde Leocadia, vinda da mpanhia do filho mais novo e da filha, vai ao seu encontro. Goya retornará duas vra resolver seus assuntos financeiros, o que demonstra que ele pode circular livremen

m absoluto considerado pelas autoridades espanholas um exilado indesejável. Ainda tsaúde (Moratín relata que ele quase morreu em maio de 1825), mas sua fome

nhecer e de criar não diminui. Numa carta do fim desse mesmo ano, escreve: “Nãão, nem força, nem pena, nem tinteiro, tudo me falta, exceto a vontade” (20 de dezem

o ano anterior, havia declarado ao filho que se preparava para “viver como Ticianos” (24 de dezembro de 1824). Contudo, não se contenta com o que já fez. O mesm

m sua nota biográfica: “Ele duvidava de si mesmo e de suas próprias obras, e às vezesnseguia fazer alguma coisa, dizia: ‘Esqueci como pintar’”.

Além de suas técnicas já bem aperfeiçoadas, Goya desenvolvia outra, muito mais ine permite pintar miniaturas sobre marfim, das quais uma dezena sobreviveu até hoje

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oca seu amigo dos últimos anos, o jovem pintor Antonio Brugada: “Ele enegreciarfim e deixava cair nela uma gota d’água, que, ao se espalhar, removia uma parteçava claros caprichosos. Goya tirava partido desses sulcos e sempre obtinha dginal e de inesperado”.1 O desenho que Goya acrescenta a essas manchas caprichortanto, um papel auxiliar; o capricho já não é o do pintor, mas o dos instrumentos drve (outra inovação que anuncia o futuro). Essa maneira de submeter-se ao acaso nãoencontrar seus temas e seu estilo habituais, como testemunha, por exemplo, o Frade faland

ma velha (GW 1685), que parece ter saído das Pinturas Negras. Goya tem consginalidade de sua iniciativa. Escreve a um amigo: “No inverno passado, pintei sob

nho uma coleção de aproximadamente quarenta ensaios; é um novo tipo de miniaturates, pois é feita em pontilhado…” (20 de dezembro de 1825).No mesmo momento, lança-se ao aperfeiçoamento de uma nova forma de estampa, al experimentara, mas com menos sucesso, antes de instalar-se na Quinta del Sordogressos rápidos, como testemunham as imagens que realiza e das quais se orgulh

mpo, e talvez sob a influência de seu novo domínio da litografia, renova inteiramentus desenhos: em vez do nanquim e da sépia, utiliza pedra negra e lápis litográfico. ntura com espátula, em vez de utilizar pincéis. Um correspondente lhe pergunta ssível providenciar uma nova tiragem dosCaprichos: ele responde que já não tem as prrescenta uma razão suplementar à sua recusa: “Também não os copiarei, pois tenhelhores que poderão ser vendidas com mais proveito”.2 Ao longo de toda a vida, Goya seaixonado pelo domínio técnico de seu ofício.De maneira mais geral, ele aceita as mudanças que a passagem do tempo lhe impõaso que encontramos em seus desenhos, várias vezes, a imagem do ancião decansável, como em E 15 (GW 1390), desenho que o mostra, de cabelos brancos ebruçado sobre um livro; a legenda diz:Sabes muito e ainda aprendes. Ou no desementado (GW 1758, fig. 31) em que o ancião tenta caminhar, apoiado em duas benguncia:Continuo aprendendo. Sabe-se, pelas lembranças de Brugada, que Goya de fsim: é um autorretrato alegórico. “Que humilhação! Aos oitenta anos”, gritava, “ssear como a uma criança! Preciso aprender a caminhar!”3 O velho resmungão não sente

azer nessa aprendizagem, mas reconhece a necessidade dela.Sua atividade de pintor se mantém e continua de alto nível. Os quadros pintados ao limos anos, como não dependem de encomendas e não se destinam a circular pelo mpre são fáceis de datar. O mesmo Moratín descreve assim a atividade do pintor:ogante e pinta como um alucinado, sem jamais querer corrigir nada do que pintou” (225). Foram recenseados quinze retratos, essencialmente de amigos, e uma tauromadros desapareceram (um baile de máscaras) ou são de atribuição duvidosa. Em seus pintará também um quadro destinado a ficar célebre, A leiteira (GW 1667, il. 24), retrato

vem que revela um estilo novo. Por certas características, assemelha-se a Leocadia, a imag

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mpanheira de Goya que faz parte das Pinturas Negras: mesmo fundo indeterminado,erpenetração de cores, mesma atitude da personagem, em escuta pensativa; conturfil, a mulher de A leiteira é mais nova. É comovente pensar que esse quadro, talvez o oya terminou, não representa nenhum demônio, não revela nenhuma atração pelos ricatura nenhuma fraqueza da humanidade, mas sim comprova a benevolência do prsonagem, essa mulher ao mesmo tempo bela e reservada.A isso acrescentam-se os desenhos, esse diário de bordo mantido sem interrupção. A

ríodo, Goya preenche dois novos álbuns. O primeiro, dito G, comporta sessengendados; o segundo, dito H, traz 63, a maioria sem legenda. Assim como nos antericontra uma mistura de observações, de lembranças e de fantasias. Goya registra, por

ngulares meios de locomoção de que se servem certos habitantes das grandes cidadma charrete puxada por um cão, vista em Paris); ou ainda os artigos incomuns vendido

Bordeaux: uma cobra, um crocodilo! Ao lado dessas cenas captadas ao vivo arsonagens habituais da vida popular na Espanha ou dos rituais coletivos desse pantinuam voando pelos ares, assim como os frades ou um cão gigante (G 5,GW 1715), esimal adaptado tanto ao voo quanto à natação, levando um livro sobre o dorso; ouuros, flutuando num espaço impreciso, que aparecem num Disparate não numerado e intucura de bestas, oude touros, também chamado às vezesChuva de touros (GW 1604imais, portanto, também estão liberados das leis da gravidade.Goya mostra ainda suas visões de sonho ou de pesadelo, como emGrande disparate (G 18, fig. 38). Essa estranha cena inclui um homem que, com uma das mãos, retirou a pcom a outra, mete uma colherzinha em sua boca; um segundo homem derrama um lí

nil enfiado diretamente no tronco do primeiro; um terceiro se contenta em observar cna. Vários desenhos mostram o sonhador confrontado com os monstros noturnos; um 20) o representa duplicado: desperto, ele se vê de fora em seu sonho, no qual é atacaturnas maléficas.A vida conjugal continua inspirando desconfiança a Goya. Um desenho legendado c Mau (G 13,GW 1721) mostra um homem duplamente violento: montado nos ombros dee se deixa carregar por ela e, além disso, a chicoteia, furioso, como se ela fosse umaopõe uma solução irônica para os problemas dos casais. Representa um ser dotbeças, uma masculina e outra feminina, que sorriem amavelmente; a legenda diz:União natgura. Metade homem, metade mulher (G 15,GW 1723). Um outro desenho, ainda, poerpretado como uma alusão à situação pessoal de Goya (H 57,GW 1815). Nele vemos umminu, interrompido em seus movimentos por uma mulher mais jovem e mais forteantidos juntos por um homem-pássaro noturno, encarnação do diabo e, sem dúvida, dorne.O tema da violência continua ocupando um grande espaço. É impressionante constata

egado à França, Goya procurou representar a técnica de execução capital específica

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ilhotina. Eis então, após o garrote espanhol, a máquina francesa. Os dois desenhos qua parecem ter sido realizados a partir de observações pessoais. Um (G 49,GW 1754) moilhotina escancarada; ao lado está a futura vítima, cuja camisa foi baixada para que ponha melhor à lâmina. O carrasco segura firmemente o homem, a quem o padre aprolhar abatido do futuro decapitado fita esse objeto religioso, que supostamente

nsolo. O outro desenho (G 48,GW 1753), igualmente intituladoCastigo francês, representa guns minutos depois, e alguns segundos antes de a lâmina cair: o carrasco já agarrou

sbloqueará. O aparelho está agora parado sobre a cabeça do supliciado, de quem jais do que os cabelos. O traço de Goya é de grande precisão, tão sóbrio quanto asenho; consegue nos colocar em contato imediato com essa forma de barbárie densiste em matar homens alegando proteger seus semelhantes de outras matanças.

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Fig. 38.Grande disparate.

Nos desenhos de Goya, a violência dita legítima ladeia aquela que não o é, qrticulares, salteadores ou simples homens encolerizados. Veem-se as vítimas amarrutiladas, apunhaladas, fuziladas ou enforcadas. Os matadores se parecem fisicamentee a desgraça de umas é substituída, nos outros, pela expressão de triunfo (como em G GW de loucura (H 34,GW 1796). Um desenho perturbador (H 38,GW 1800, fig. 39), hoje in

tória fácil , mostra o combate mortal entre dois homens: um ganhou e se apresta a mata

ranheza resulta de que os dois homens se parecem como gêmeos: mesmas rourpulência, mesmo rosto, e até a identidade do sorriso satisfeito que ambos exibem

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mana seria sempre aquela dos inimigos complementares, dos irmãos intercambiáveis?Um tema que Goya jamais havia abordado tão de perto é o da loucura: uns bons quistram as diferentes manifestações dela. O olhar captado pelo pintor não é o de um ho

as expressa sentimentos comuns: ora raiva, ora resignação, às vezes até satisfação (oassemelham). Goya parece não fazer nenhum julgamento, contenta-se em mostrar: elessos irmãos. Um Louco furioso (G 33,GW 1738) está encerrado numa cela; passou a caaço e uma mão através das barras da janela, seu olhar se perde ao longe. Sua obilizada na grade, e assim ele está duplamente preso. O espectador se encontra nla; mas com o outro Louco furioso (G 40,GW 1745), impressionante imagem do desalenterior. O louco tem as mãos atadas às costas, sua cela lembra uma prisão. O de

quietante talvez seja aquele que é chamadoO idiota (H 60,GW 1822, fig. 40), visão derraucura humana. Nada prova que Goya tenha visitado um manicômio em Bordeaux; há manifestações da loucura são familiares à sua mente.

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Fig. 39.Vitória fácil.

Estaríamos errados se, dessas imagens apavorantes, deduzíssemos que Goya istência torturada, sem conseguir dominar seus fantasmas. Muito pelo contrário, a prepectros nos desenhos parece tê-lo livrado deles na vida cotidiana. Os testemunpomos sobre seus últimos anos vividos em Bordeaux, longe de sua terra, mostram-nlo seu ofício e afetuoso com seus próximos, tendo inclusive alcançado uma espécie e antes lhe faltava. Ele se apegou fortemente a Rosario, a filha de Leocadia, que tiando chegou a Bordeaux. Seja ou não o pai biológico de Rosario, Goya nutre porntimentos paternais; está convencido de que ela tem grande talento para a pintura e

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mpo ocupando-se de sua educação artística. Até declara a um amigo que ela represenômeno que pode existir no mundo, considerando-se sua idade” (28 de outubro deações com a mãe da criança são aparentemente menos tranquilas, mas prosseguem at

e lhe oferecerá A leiteira. Uma litografia de Bordeaux, A leitura (GW 1699), mostra, suocadia lendo para os dois filhos. A única carta de Goya dirigida à companheira reveternura que eles podiam viver juntos. “Acabo de ler tua carta magnífica e ela me dee, se eu te disser que me deixou bem melhor, não estou exagerando em absoluto.” E

ijos e mil coisas de teu afeiçoado Goya” (13 de agosto de 1827).4Goya também se preocupa com os membros de sua família legítima, cuidando de ndas confortáveis. Sente um vivo apego pelo neto Mariano — já amava muito o filhoa infância: “Tenho um filho de quatro anos que é o que se vê de mais bonito em Manto muito medo de que ele não consiga viver todo este tempo”, escrevia então a Zaio de 1789). Lega a Mariano sua casa com as Pinturas Negras e faz dele váternecidos. O rapaz, aos 22 anos, vai visitá-lo em Bordeaux em 1828; Goya fica tão co o enfraquece. Em carta ao filho, escreve: “Não posso te dizer mais nada, de tanto

e adoentou, e estou de cama”. Se Javier também puder vir, acrescenta, “minha fempleta” (início de abril de 1828). Essa será sua última carta: Javier irá, mas tarde depai vivo. Mariano chegou em 28 de março, Goya adoece em 2 de abril e morre em 128, aos 82 anos.

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Fig. 40.O idiota.

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Fig. 41. Fantasma dançando.

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Fig. 42.Velho no balanço.

Entre os últimos desenhos de Goya encontram-se vários que mostram personagensvos e jubilosos. Ele já não os ridiculariza, como em certos desenhos das décadas pade avançada tornou-o mais tolerante com a inabilidade dos velhos. É o caso dnverso que patina (H 28,GW 1790), um frade a flutuar nos ares (H 32,GW 1794), duas madres dançantes (H 35,GW 1797). Encontra-se até um fantasma dançando com castanh

W1818, fig. 41), que parece ter-se tornado um companheiro bem-intencionado, nemsustador. Um dos últimos desenhos de Goya pode ainda ser interpretado como um

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górico: é a imagem de um ancião num balanço, descalço, e soltando uma grande gargW 1816, fig. 42). Tendo cumprido seu destino, é na alegria que Goya se despede do s.

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herança de Goya

O acontecimento decisivo na evolução de Goya é a decisão de dividir em duas sueitar a cisão entre arte pública e arte privada — um desdobramento totalmente inédi

m um de seus caminhos, ele continua a pintar segundo o cânone admitido em sua snhar dinheiro graças às suas obras; em outro, prossegue uma busca sem a menor preoopinião pública. A razão inicial dessa partilha é a doença de 1792 e a surdez subsese encadeamento não era nem um pouco previsível: outro homem, outro pintor podermodo totalmente diferente. A enfermidade leva Goya a não mais se preocupar unicam

mandas que a sociedade lhe dirige, mas a expressar, nos anos de vida que lhensações, as visões e as emoções que lhe são próprias, a agir sob a pressão não das cternas, mas das necessidades internas.Ao longo dos anos, a essa razão inicial vêm acrescentar-se outras. Durante adependência e os anos de Restauração que se seguem, os gostos e as opiniões de Gmais daquilo que os poderes vigentes podem aceitar; seu desdobramento lhe permi

ma espécie de exílio interior. Em seguida, durante a última década de vida, após umae reforça sua resolução de não mais se consagrar senão ao essencial, ele mergulha aundo de suas fantasias que considera inútil propor imediatamente aos contemporâneostais explorações. Assim se constitui um conjunto único na história da pintura: único e obedece apenas às exigências do pintor, sem nenhum compromisso com o googressivamente, uma parte cada vez mais importante da obra de Goya se subtrai ablico: primeiro os desenhos (que ele produz em abundância e reúne em álbuns), eavuras e por fim as pinturas.Convém antes de mais nada medir a coragem dessa decisão (que Goya não tomou detro). É verdade que ele jamais compromete inteiramente seus interesses materiais. Nomeira enfermidade, já é um homem maduro que goza do reconhecimento de seus pare

de seus mecenas na corte da Espanha; como não tem nada de asceta nem de cantinuará, até o fim da vida, a garantir para si rendas regulares, fazendo o necessário interrompam seus emolumentos provenientes do palácio, executando — cada

quentemente, é verdade — as encomendas que recebe, retratos, quadros alegóricos

o entanto, o que ele sacrifica não é pouco; a prova disso é que não se conhece nemplo de tal gesto — nem antes nem depois dele. Lembremos apenas um episód

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esastres da guerra: Goya considera que haveria uma espécie de covardia, ou pelouficiente submissão à exigência de verdade e de sinceridade integrais, em mostrar u

avuras que refletem a guerra patriótica, omitindo as outras “consequências fatais” dolíticos, a saber, o desencadeamento das medidas repressivas; então, abandona a pletânea à qual consagrou anos de trabalho, e que sabe representar um dos cumes nuncia às satisfações de amor-próprio, sem falar dos benefícios materiais, que a dis gravuras poderia lhe trazer. Uma honestidade tão radical, uma tal bravura cepcionais.As obras pertencentes a essa vertente privada da atividade de Goya, àquilo que tambnominar o regime noturno de sua criação, são as únicas a ter sido objeto da presente

omo traduzir em palavras os avanços intelectuais que se encontram nelas? De sanstatar que elas concernem não a um, mas a vários domínios de reflexão e nos levaerentes.

O primeiro desses domínios é aquele mais diretamente ligado à sua maneira de pine, para Goya, a pintura é, fundamentalmente, criação de imagens fiéis do mundo (“repque Deus criou”, “ter êxito na imitação da verdade”), podemos dizer que se trata de ativa ao conhecimento e, ao mesmo tempo, à representação. Aqui, sua contribuiçãonto de partida no espírito das Luzes. Essa corrente de ideias subverteu a antiga hlores; exalta a liberdade individual e o julgamento racional em detrimento do respeito

m vez de se manterem submissos à sabedoria ancestral, às normas e convenções da e nasceram, os homens escolhem exercer seu espírito crítico, contestar as instituiçnformismo. Nós entramos, dizia Benjamin Constant no início do séculoXIX, na “épocdivíduos”.As consequências desse deslocamento são incontáveis e referem-se tanto à estruturatados quanto à prática das artes. A contestação das hierarquias, o direito à igualdaderante os cânones estabelecidos tornaram-se uma evidência para os europeus do sécXXI, quecemos a transformação que essas atitudes constituíam na época de Goya, qu

diam nascer de um grito de revolta. Até mesmo a decisão de adotar uma maneira pesslado daquela que corresponde às normas comuns, pressupõe uma revolução das e, portanto, escolhe seu modo de expressão, ao qual se manterá fiel, sem pedir letivo que legitime suas visões. A busca pessoal de verdade tem primazia sobre a cial. Goya atinge, assim, um grau suplementar na promoção do indivíduo que já conhecimento, ou nem mesmo a simples resposta dos outros.A partir do momento em que o indivíduo se apodera desse novo lugar, o sistema dal vivia a sociedade anterior fica privado de sua base. Provavelmente, Goya não se

eu, mas, além do fato de dirigir críticas acerbas aos representantes da Igreja, ele nu

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rspectiva de uma salvação concebida em termos cristãos, nem a de uma promessa dndo retornado do outro mundo para nos dizer o que encontrou lá, o cadáver gravado esastres 69 condensa sua mensagem numa palavra: “Nada” (fig. 22). Ao messapareceram as referências a uma ordem cósmica assegurada por Deus, a qual permitornar inteligíveis as experiências de cada um. Goya renunciou aos ciclos que ele merante seus primeiros anos, aquele das quatro estações ou das quatro grandes formal; não recorre a agrupamentos convencionais como as quatro partes da jornad

ementos, os cinco sentidos ou os sete pecados capitais. Os atos e os objetos deixaramuma rede de correspondências e de ritmos e, por conseguinte, perderam qualquerontaria para além deles mesmos. Doravante, devem ser percebidos em sua literalidade são, e não por aquilo que designam. A retirada de Deus provocou uma crise dfrimento experimentado já não é uma provação enviada por Deus, mas apenas ucândalo, um absurdo.A promoção do indivíduo transforma as maneiras de conhecer e, por conseguinte, de e por sua vez produz efeitos imediatos sobre a prática do pintor. Goya toma consco: esse conhecimento depende necessariamente de uma subjetividade; apreende-mpre refratado através de uma mente, a de um indivíduo. Desse ponto de vista, tamétrica e inversa àquela que, dois séculos antes, fizera a humanidade passar da visão ncepção heliocêntrica do mundo; desta vez, assiste-se à passagem do teocentrismjetividade do mundo e do seu conhecimento, ao antropocentrismo. Goya é maisntemporâneo de Kant: nesse sentido, é seu cúmplice. De fato, foi Kant que soube colosua atenção a finitude irredutível de todo conhecimento humano. A descoberta kan

m estabelecer que para nós, indivíduos pertencentes a um espaço e um tempo, e pitos, o mundo (em si) e sua representação (por nós, para nós) formam duas entidades pode conhecer a essência das coisas sem passar pela subjetividade; o acesso aos o

esmos nos é impedido. Nossa mente só conhece imagens das coisas, nunca as própriasHegel, no início do século seguinte, projetará essa descoberta na história da artrma, os homens aceitavam as formas do mundo como um dado objetivo; na época mve passar pelo filtro da subjetividade. Os filósofos precisam de espessos volumesas novas ideias. A Goya bastam algumas pinceladas que tocam uma tela, e está feitohas na natureza, nós só temos acesso aos objetos por meio de nossa percepçãicamente parcial, e devemos assumir nossos partis pris.Todos os pintores do passado, que representaram o mundo tal como pensavam que e

como o viam, participaram de uma petição de princípio que é também a dnocentristas: estabeleceram ingenuamente que sua visão não era uma visão entre outra

m si. É verdade que a introdução da perspectiva abalou essa ilusão. Contudo, esse recsubjetividade continuava limitado: a presença daquele que olha era admitida, e, aind

s objetos representados indicava que aquilo que víamos no quadro não era o objeto

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são subjetiva dele. A prudência desses pintores é compreensível: duvidar da possibinhecimento objetivo, feito fora de toda perspectiva, pertencente ao infinito, e não mitos que nós somos, descrer de um conhecimento absoluto e não apenas relativo, sig

nunciamos a pensar o universo numa relação necessária com Deus.De fato, a divindade é tida como depositária da onisciência; porém, ao contráriovolução humanista, o relativo é que permite fabricar o absoluto; o finito, imaginarbjetivo, postular o objetivo. Nesse sentido, quaisquer que tenham sido suas crenças

imas, Goya situa-se de saída num mundo sem Deus, pois visivelmente já não crê naacessar a identidade das coisas sem passar por uma percepção humana particu

ssibilidade da qual Deus, em sua onisciência, era o fiador. Se ele já não pinta senbjetiva do mundo, é porque já não pode repousar sobre essa certeza: agora, é coivesse ausente. Além disso, Goya não se preocupa mais com a perspectiva em seusesença subjetiva se faz sentir de maneira bem mais forte: ele renunciou a figurar cadaesmo, assim como a reproduzir as cores (a cor não existe, tanto quanto a linha!). A lugidia — determina tudo, e Goya pinta aquilo que vê, e não aquilo que existe. Não ézer isso, mas é com ele que esse movimento se torna irreversível.Não devemos nos equivocar quanto ao sentido desse reconhecimento do olhar subjGoya não contribui em absoluto para uma promoção do eu em detrimento do resto

ntor se representou várias vezes, mas seus autorretratos não sugerem uma complacênmblematicamente, em seu último autorretrato, ele está acompanhado por outro indiví

rieta (e por alguns fantasmas). Goya não substitui a realidade objetiva por mplesmente não conhece outro acesso, diverso do subjetivo, a essa realidade. De igu

ocura imprimir a todas as suas obras o mesmo estilo, para que o espectador se diga, las: “É seguramente um Goya!”. Tal reação seria um contrassenso. O pintor deseja deveja nelas nem uma aspiração à beleza, nem uma lição de moral, nem a expre

ngularidade; o que ele busca é nos revelar a identidade do mundo. Não é culpanstatamos de saída: “É um Goya” — nem nossa, aliás. É que, em sua busca da verdange que se viu totalmente só; portanto, nós o reconhecemos sem dificuldade.A impulsão dada por Goya à evolução da pintura consiste em legitimar as visões inundo e em permitir a interpenetração dos elementos objetivo e subjetivo no conhecimsa arte aspira. Mas a rejeição a toda regra geral, a toda exigência da tradição não é ale, pela renúncia à linguagem comum e à comunicação: esta é suspensa, e não rensagem é de origem individual, mas de intenção geral. Essa linguagem comum são asrcepção humana reconhece. Goya já não pretende que ela represente o mundo tal comerpretação singular desse mundo, inclusive em seus Disparates mais loucos, se expressaformas reconhecíveis por todos. Ele questiona as convenções da perspectiva,

nstrução do espaço, mas não cessa de praticar uma pintura figurativa. A obra de Go

mbrião de numerosíssimos desenvolvimentos que se produzirão na arte visual ao lo

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culos seguintes, mas se detém no limiar da abstração, mesmo em suas imagens mais lio das Pinturas Negras.Compartilhar uma linguagem comum, propor uma visão que pode se tornar coletiva é,rizonte derradeiro; nisso, ele se mantém estranho ao hiperindividualismo que se imp Para Goya, a subjetividade não existe em si mesma (como tampouco o mundo objetiomente a relação de um sujeito com um objeto que lhe é exterior e que existe indepsim, contrariamente a muitos artistas do séculoXX, ele sustentará sempre que suas visões,

ssoais e “deformadas” que sejam, são as visões de alguma coisa, e não as simples msua singularidade, as puras expressões de seu eu. O universo de Goya está longe dnado do arbítrio ou uma recusa total à comunicação. Aquilo a que ele renuncia é

ostrar imediatamente suas imagens aos contemporâneos para agir sobre suas mentes oua admiração. O que ele mantém é a necessidade de dirigir-se a uma comunidade hnda que ela só deva encarnar-se nas gerações futuras. Goya reúne, portanto, duas ce estamos habituados a pensar como incompatíveis: o reconhecimento de uma pdivíduos e da subjetividade da visão deles, por um lado, e, por outro, a busca de mpartilhável, a criação de formas visuais identificáveis por todos, a manutenção dmum.É essa ideia do conhecimento e da representação que permite inscrever Goya nminismo, ainda que ele se mantenha estranho às preocupações propriamente estéticaspensamento de seu tempo. Aestética das Luzes, de Shaftesbury a Kant, subtrai a artnções didáticas e a vê principalmente como uma encarnação do belo, que conntemplação e a um prazer desinteressados. A autonomia da arte passa ao primei

ética romântica, no início do séculoXIX, prosseguirá esse movimento e venerará a arte eigião; pregará, ao menos em seus manifestos, a arte pela arte. Mas essas ideias e eso estranhas a Goya, que, desse ponto de vista, é um artista anacrônico. Ele não tem ceróprio termo “arte” tenha um sentido pertinente para seu trabalho. O que Goya cria srtanto, figurações do mundo — tanto visível quanto invisível. Elas são diferentes as assumem uma função paralela — o que explica, entre outras coisas, a facilidade ces dá legendas. Suas imagens se submetem a uma exigência fundamental, a demonstram a emoção do pintor que as cria — emoção que o espectador é convidado a da ideia quanto à sua autonomia, ou ao prazer desinteressado que elas deveriam pr

m novo mal-entendido. Nós todos participamos disso, contudo, no momento em quesas obras e nos extasiamos diante de sua qualidade estética: “Como é bonito!”.Se as imagens de Goya nos tocam tanto hoje, se nelas encontramos o eco ou mesmoacontecimentos recentes, sobrevindos muito tempo após a morte do pintor, é porqu

m todas as suas forças, compreender os comportamentos, as atitudes, os gestospresentá-los da maneira mais verídica possível. A verdade à qual Goya aspira não é

e se oferecem ao seu olhar, ele não procura restituir exatamente os objetos que o

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rdade que ele busca é a das paixões, do amor, da violência, da guerra, da loucura: e, dispõe-se a romper com aquilo que os dados imediatos dos sentidos lhe mostra

agens, encontramos não tanto um relato factual sobre os eventos ocorridos na Espanha vida quanto uma reflexão antropológica. Ao representar os personagens mais teadores, soldados, canibais, alienados mentais, multidões em transe —, ele não buscles, o anedótico, mas as facetas desconhecidas do ser humano.Ao mesmo tempo que mostra as circunstâncias particulares dos confrontos de seu

nsegue apreender uma característica profunda das condutas humanas, o que permitações dos espectadores de hoje diante de suas imagens. Posso dar meu testemunho q

olhar seus quadros, suas gravuras, seus desenhos, sou tentado a ver neles uma repontecimentos de minha própria vida, Segunda Guerra Mundial, Guerra do Vietnãque, estupros no Congo! Estou longe de ser o único, como atestam numerosos trabre Goya. “Quem quer que tenha olhado, mesmo apressadamente, os jornais do últimnstatará que as notícias mais significativas tinham sido ilustradas por Goya há mais creveu Fred Licht em 1979.1 E eu acrescento um testemunho recente. Em abril de 2010, prisão La Santé, em Paris, toma como refém seu psiquiatra durante cinco horas, apera e se rende. Em seguida perguntam a esse médico, o doutor Cyrille Canetti, comoe aconteceu. Em vez de falar de sua experiência, Canetti evoca a do prisioneiro, e

oya que lhe vem de imediato aos lábios. A prisão lhe recorda uma das Pinturas Negrapresenta Saturno devorando sua cria. “É a sociedade eliminando seus excluídos”, diz

ma máquina de triturar o humano.”2

Quando se leem ou se escutam tais depoimentos, calcula-se toda a metamorfose q

freu de dois séculos para cá: à parte alguns grandes artistas nos quais podemos rerta forma, “os filhos de Goya”, a própria ideia de buscar na arte contemporânea umacifração de nosso mundo seria um tanto estapafúrdia. Hoje, as principais correntes ase não se preocupam em formular uma interpretação do real; e muito menos, talvez, provocar no espectador a emoção experimentada pelo artista: sentido e emoção são jetos fora de moda. O impressionismo já os havia substituído pela busca da simples sdemos culpar por essa evolução da arte os contemporâneos de Kant ou de Baudela

m que eles acreditavam tiveram uma posteridade na qual eles teriam dificuldade de so entanto, o fato aí está: as grandes correntes da arte contemporânea romperam com e eram as de Goya.É sobretudo a fotografia que assume, esporadicamente, o papel que a pintura exerciar isso que imagens de guerra no Vietnã ou no Iraque me vinham à mente enquanto rtas obras de Goya. Não que Goya se comporte, convém repetir, como repórtersturando-se aos combatentes, às vítimas ou aos internos dos manicômios; são ógrafos que conseguem dar um valor emblemático às suas imagens, captar o invisív

sível. São as fotos que, no melhor dos casos, se assemelham às gravuras de Goya, m

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ntrário. Seja como for, o cotejo só pode ser muito parcial: que foto seria suscetívturno?

O segundo domínio no qual avança a reflexão de Goya já não é o da percepção e da ras o do psiquismo humano. Suas ideias sobre esse assunto não correspondem à imstuma fazer do pensamento iluminista. Para ele, o homem não é um ser puramente

ntido de que seu comportamento seria sempre dirigido pela razão e pela coeriormente múltiplo, incoerente, disputado por pulsões e desejos contraditóriosedece às vezes à sua consciência, é certo; mais frequentemente, porém, segue forças e escapam ao seu controle. Muitas vezes essa vertente obscura da mente humana é nlos pensadores liberais e pelos “filósofos”. Goya descobre nela o gosto que o ser hrticularmente o gênero masculino, pela violência, a qual aflora nas circunstâncias mmo se não dependesse delas; e também a força das pulsões sexuais, que assumem iais diversas formas.Dissimuladas na vida cotidiana pública, tais manifestações das profundezas humanservar em situações mais marginais, como no teatro ou através das máscaras, do Catas exuberantes: esses exageros mostram um mundo mais verdadeiro do que aquelembém podemos observá-las através de diversos preconceitos e superstições, relativs demônios ou aos fantasmas, nos quais Goya não acredita, mas nos quais vê indíciovida interior. E também nos estados psíquicos que se produzem durante o “sono” orazão: sonhos e pesadelos, fantasias diurnas, delírios e loucura. Enfim, e pelos mes

êm a atenção de Goya os estados e momentos extremos: brutalidades de todo tipo, eerras, assassínios; eles também permitem observar e compreender melhor nossa sinmana. Todos esses aspectos estão abundantemente presentes na obra de Goya.Nem mesmo a razão está acima de qualquer suspeita. Não só porque, como vimos, ooucura são produzidos por ela, nascem de seus sonhos mais do que de sua ausência;rque a razão, por sua própria natureza, é um instrumento que permite encontrar justimais contestáveis ações. Nada pode desculpar o homicídio, o estupro, a torturagados em si mesmos. Mas, graças à razão, podemos vincular esses crimes a objetivos os cometemos para defender o verdadeiro Deus, para proteger a pátria, para levapovo, para libertar os oprimidos da Terra. A conexão entre essas entidades distant

zão pode estabelecer, permite desculpar o indesculpável. Goya sabe disso e no enmita à simples revelação dos perigos que a razão comporta. Ele alerta contra um dos as ao mesmo tempo a invoca: é ainda a “divina razão” que permite a liberação de cdos.A concepção do psiquismo humano ilustrada por Goya não corresponde à vulgata ra

zes, mas não chocaria seus representantes mais judiciosos, Hume, Rousseau ou Kant,

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tores um pouco mais periféricos, que na mesma época elaboram teorias artísticas oe bastante próxima, por suas preocupações, daquela de Goya. É o caso do romanglaterra, praticado por Ann Radcliffe ou M. G. Lewis, ou da narrativa fantástica namancistas como Cazotte ou Potocki. A mesma utilização de motivos sobrenaturais osseguirá entre os autores românticos europeus, ao longo de toda a primeira metade dm.A equivalência desses temas com as profundezas inconscientes do psiquismo humano

início do séculoXX, um dos dogmas da teoria psicanalítica. Sabe-se que Freud sepecificamente pelas imagens ou narrativas sobre demônios e fantasmas, desde a IdadculoXVIII; nelas, vê a expressão de desejos proibidos ou os sintomas da doença mentpantemos se as neuroses desses tempos longínquos se apresentam sob umamonológica”, escreve, ou ainda: “Para nós, os demônios são os desejos maus,correntes de impulsos repelidos, recalcados”.3 Ele consagra um estudo específico à “pmoníaca” de um pintor, cem anos anterior a Goya, que representa cenas nas quais os scontram o diabo… Goya não estaria em desacordo, mas sua interpretação do mundo

mais aberta do que a de Freud.Ao decidir representar os recônditos da alma humana, e não só os corpos visíveis, Gsso no caminho da subjetividade: como ninguém sabe exatamente a que se assemmônios interiores, a liberdade individual daquele que os mostra aumenta em propnhecimento do mundo é colorido de subjetividade (nós só conhecemos as percepçõeso as coisas em si). Mas, agora que o cognoscível se ampliou para aquilo que é invra nossa interioridade, podemos tornar visíveis as imagens que atravessam nossa me

as escapem ao controle da razão ou da opinião comum; pouco importa que provenhams fantasias, ou ainda que assumam formas sobrenaturais. Mais do que uma possibilida

ma necessidade: para melhor acessar a verdade dos seres, é preciso dispor-se a temunho dos sentidos, a aceitar transformar ou deformar aquilo que se vê, para reve

m sua busca de verdade, a observação deve aliar-se à invenção. Desse modo, Goya ande tradição da pintura europeia, aquela que dominou a história desta desde o início o fim do séculoXVIII, e que a coloca a serviço da representação do mundovisível . Ele amo tarefa — somente numa parte de sua obra, o que o leva a exercer doravante duralelas — pôr em imagens precisamente a parte invisível do mundo, aquela qaginação dos homens. Nem por isso renuncia à razão: aspira ao entrelaçamentortentes do espírito, e não à hegemonia exclusiva de uma ou de outra.

O conjunto desses avanços do pensamento se esboça desde a grande enfermidade de séculoXVIII, quando vêm à luz osCaprichos. Os anos seguintes, em particular os da G

dependência (1808-13), verão o aparecimento de um terceiro tema de meditação, liga

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ciedade, sobretudo em seus momentos críticos. Esse tema já não concerne ao conhpresentação, nem à psicologia do indivíduo; trata-se agora de uma verdadeira antropo

enxertar-se uma visão política e moral — expressa, como antes, não por palavras, madros, pelas gravuras dos Desastres, por várias séries de desenhos. Confrontado comntra um invasor estrangeiro, mas também entre compatriotas de convicções opostas, Gscoberta: embora seja apresentada como destinada a levar a um objetivo desejável —erdade —, a guerra logo atinge tal intensidade que os fins em cujo nome é conduz

eis, e até indiferentes. Quer as pessoas matem e torturem em nome de Deus, quermanos, da monarquia autoritária ou da democracia, o que importa é que matam e ngo do caminho, Goya evidenciou a violência de que os homens são capazes quandoma situação de exceção. Dessa violência, ele repertoria as formas sem estabelecer s salteadores ladeia a dos representantes da Justiça, a da paz não difere muito daquelO que Goya compreendeu ao mesmo tempo é que o valor dos ideais que as pessoas dejulga em nada os crimes que podem ser cometidos em nome deles. Ao longecedentes, na época dosCaprichos, Goya, em concordância com seus amigos lsclarecidos”, fustiga os preconceitos e as superstições da população, a ignorância eclero, a avidez e o parasitismo dos ricos. Através dessa crítica da ordem existente,

r contraste os valores trazidos pelas Luzes: liberdade individual, igual dignidade dorre que esses são também os ideais invocados pelo invasor francês, e a prática da ocuito preferível à do regime que ela pretende corrigir.Nem por isso Goya se torna um defensor da ordem antiga. Sua sensibilidade às trdeiam nunca o faz pender para o lado dos obscurantistas: ele se dirige a outra parte

nstata, com decepção, que as práticas não estão à altura das teorias; mais profundamee as duas ideologias, tradicional e moderna, que invocam a ordem divina ou a dovelam igualmente insatisfatórias. É significativo que, ao longo das últimas décadasativa, Goya multiplique as imagens de duelos nos quais os dois adversários são pmelhantes — por exemplo, a série de combates singulares no álbum F (GW 1438 a 1443uelo a bordoadas nas Pinturas Negras, ou aindaVitória fácil , o espantoso desenho de seubum, no qual os combatentes parecem gêmeos (H 38, fig. 39). Os inimigos formampelho, as causas pelas quais eles acreditam lutar não bastam para distingui-los.Essa nova contribuição de Goya ao pensamento de seu tempo não se aparenta nem cseus amigos liberais e “esclarecidos”, que combatem a ignorância e os preconceitos

m o dos pensadores mais profundos das Luzes, desiludidos quanto à possibilidafinitivamente a sociedade de seus males. Tais reflexões não contradizem o pensamenas não procedem dele, pois encontram seu ponto de partida nesta constatação amargarem os ideais professados, eles não impedem que as pessoas matem e torturem, os plores republicanos não são muito melhores do que os defensores fanáticos da

dições. Se quiséssemos procurar precursores de Goya nesse domínio, seria antes ent

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amaturgos e romancistas do passado, que foram sensíveis a essa dimensão trágicamana. No entanto, é de fato Goya que coloca esse tema no centro de sua atenção, e vanço do pensamento não podia se produzir mais cedo, pois corresponde àquele mommodernidade que se seguiu à Revolução Francesa, com as guerras napoleônicas con

etexto de combate pela liberdade e pela igualdade.Se Goya não teve muitos precursores nesse caminho, em contraposição conhecem-scessores dele, embora estes últimos nem sempre tenham consciência de tal filiação. N

as revelações são proféticas. As guerras fratricidas que ensanguentaram a Europa duimos séculos poderiam, no entanto, ter conduzido os autores dessas épocas a reconsamento que os Desastres da guerra exprimem. Em particular, depois da Segundundial e das revelações sobre as atrocidades cometidas nesse território, antigos tigos soldados quiseram por sua vez formular os princípios de um novo humanismo, us-Auschwitz e pós-Kolyma.“Eu temperei minha fé no inferno”, declara um personagem portador desse pensamenVstino, do escritor-soldado Vassili Grossman, romance que descreve a simetria dessortais que são a Alemanha nazista e a Rússia comunista. É o mesmo personagem que aomoção violenta do bem, tornado “um flagelo, um mal maior do que o mal”, ele que tnta senão com essas “pessoas simples que trazem no coração o amor por tudo o que é4É descobrindo as angústias da resistência clandestina e o envilecimento sofrido pelompos de concentração que, no outro lado da Europa, a etnóloga Germaine Tillrdadeiras “aulas humanistas”. Reconhecendo-se nos dois adversários envolvidos ngélia, ela compreende a natureza dos “inimigos complementares”, diante dos qu

aternalmente solidária e responsável por todos os culpados dos dois lados”. E, nclui que “as pátrias, os partidos, as causas sagradas não são eternos. O que é eterno

pobre carne sofredora da humanidade”.5

Como ninguém antes dele, Goya soube mostrar e analisar a natureza da violênontudo, não se deve concluir daí que para ele os homens não passam de crimes e vícioma vertente positiva do pensamento pictórico de Goya, que chamou menos a atenção gm por isso está menos presente ao longo de toda a sua obra, mesmo que deixemoagens alegóricas que também se encontram nela, as da Verdade e da Justiça, da Lizão. Essa alternativa à violência assume duas grandes formas. Numa série de im

ostra o crescimento do indivíduo na prática de seu ofício, seja o do camponês, seja oferreiro ou o da aguadeira. E a atitude do próprio Goya ante a profissão que exerce

nfirma isso: ele encontra sua dignidade no próprio trabalho. Uma vida consagrada àà representação do mundo merece respeito. Não podemos evitar nos impressiundância dessa criação que prossegue durante mais de sessenta anos e da qual nos chmil obras: pinturas murais, quadros, gravuras, litografias, desenhos… O desenho co

ontinuo aprendendo (fig. 31), realizado quando o pintor tem oitenta anos, assume aqu

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anifesto: esse autorretrato simbólico afirma a obstinação do criador, mas também sua fe ele escolheu e do qual nada pode desviá-lo.A outra fonte de alegria se encontra no simples fato da relação humana. Goya sabe (euitas vezes o vínculo entre indivíduos se torna o espaço onde se manifestam brutalidpocrisia; mas em nenhum caso pode-se deduzir de suas imagens que “o inferno são oe a interação com os outros deveria ser suspensa. Goya é um observador impiedomano, mas não um professor de desespero nem um niilista. Sabe captar as man

ciabilidade feliz em todos os domínios — como no amor, que o desenho C 84, intitula Nadporta, ilustra ao mostrar um casal trocando olhares ternos; ou no prazer sexual, eemplo, pelas poses langorosas do homem e da mulher em Despertar ao ar livre (fig. 30mbém em situações menos previsíveis, como a do feliz ancião num balanço, cujo ide deter (fig. 42).O pensamento antropológico que vemos em ação nas imagens de Goya serve de fuas opções em matéria de política e de moral. Como o ser humano é em si mesmoacerado entre aspirações contraditórias, nenhuma política dogmática pode lhe servequada. Os próprios fatos são sempre ambivalentes e as mudanças de perspectiva, frns se tornam maus e, inversamente, as vítimas de ontem são os carrascos de hoje. lores aos quais os homens aspiram são forçosamente incompatíveis entre si; e mesmoeais são traídos, quando se tenta impô-los pela força. Os projetos políticos ganham aoodestos e prudentes. Mais do que servir aos grandes ideais — pode-se pensar ao ver oya —, convém preocupar-se com os indivíduos, agora reconhecidos já não apenas cber de tais projetos, mas também como objetivo de toda ação. Ao longo de s

aturidade, o pintor decide viver no exílio — de início interior, em seguida exterior —aramente que ele prefere a liberdade individual ao conforto que se pode sentir aderinminante e majoritária. Seus favores, portanto, dirigem-se aos regimes políticos rmitem alcançar essa liberdade.Ao mesmo tempo, a relação de pessoa para pessoa se sobrepõe, em Goya, àqueldivíduo ao poder político. A amizade, o amor, a ajuda mútua, o cuidado com o outros quais ele nunca renunciará. Não é por acaso que mostra com grande simpatia as vítis forças naturais — doenças, incêndios, naufrágios — quanto as da avidez humana, estupidez, da violência. Entre elas figuram as mulheres estupradas por salteadoresvadas dos pais, os homens despedaçados por seus inimigos, os alvos da Inecutados, os torturados, os aprisionados: “por casar-se com quem ela quis”, “por nra os imbecis”, “foi porque ela era liberal?” (fig. 19). A reação que essas vítimas sal for a causa de seu sofrimento, é a compaixão. Esta última é exemplarmente encarnutor Arrieta (il. 19), mas o pintor também a propõe aos seus espectadores sob esta fompaixão sem sentimentalismo, a qual, por sua vez, só pode provir dos indivíduos. Po

me que lhe derem, amor de caridade, misericórdia, simpatia, pouco importa a moldur

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osófica que se invoque, essa “bondade sem pensamento”, como a denomina Grossmaesmo tempo impotente e invencível, é o que os seres humanos têm de mais precioso. Pcessos da razão, nada melhor do que o amor dedicado a um indivíduo...

Mais uma vez, assim como em sua concepção da pintura, Goya inova, mas semoldura da qual partiu. Seu pensamento encontra o ponto de partida no espírito das L

scobre ao seu redor; bem rapidamente, porém, ele lhe amplia os limites e descobregos. No fundo, pouco importa a etiqueta que lhe aplicarão, dentro ou fora das Luzesmundo da qual ele se impregnou, mas que não hesitou em transformar. Educado nozes, Goya soube explorar e revelar o que elas deixavam na sombra, as potências igem a conduta dos homens, não menos do que a vontade e a razão destes. Contudoda de um ideólogo, nem de um profeta. Não procura nos dar uma lição, e tampoucegador ou educador. Assim como o sábio, o artista só deve deixar-se guiar por uma ica, mas impiedosa: tender para o verdadeiro, tanto quanto isso lhe for humaname

oya não nos propõe remédios, limita-se a explorar a condição humana — o que já é suícil! Artista, não buscaimpor , contenta-se com propor . Seus valores permanecem famrdade, justiça, razão, liberdade. No entanto, ele sabe melhor do que seus contempomadilhas nos esperam nesse caminho. A “verdade viverá”, sim — mas desde que não“monstros cruéis”!

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Il. 1.O pedreiro ferido, 1786, MADRI, MUSEU DO PRADO, GW 266.

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Il. 2.O conde de Floridablanca, 1783, MADRI, BANCO DE ESPAÑA, GW 203

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Il. 3.Os cômicos ambulantes, 1793, MADRI, MUSEU DO PRADO, GW 325.

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Il. 4.O assalto à diligência, 1793, COLEÇÃO PARTICULAR (MADRI, BANCO INVERSIÓN-AGEPASSA), G

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Il. 5. Interior de prisão, 1793, BARNARD CASTLE, BOWES MUSEUM, GW 929.

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Il. 6.O pátio dos loucos, 1793, DALLAS, TEXAS, MEADOWS MUSEUM, GW 330.

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Il. 7.O incêndio, 1793, COLEÇÃO PARTICULAR (MADRI, BANCO INVERSIÓN-AGEPASSA), GW 3

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Il. 8. A lâmpada monstruosa, 1797-8, LONDRES, NATIONAL GALLERY, GW 663.

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Il. 9. Exorcismo, 1797-8, MADRI, MUSEU LÁZARO GALDIANO, GW 661.

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Il. 10. Hospital de pestíferos, 1800-10, COLEÇÃO PARTICULAR (MADRI, MARQUÊS DE LA ROMANA), G

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11. Bandidos fuzilando seus prisioneiros, 1800-10, COLEÇÃO PARTICULAR (MADRI, MARQUÊS DE LA ROM.

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12. Bandido despindo uma mulher , 1800-10, COLEÇÃO PARTICULAR (MADRI, MARQUÊS DE LA ROMANA

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13. Bandido assassinando uma mulher , 1800-10, COLEÇÃO PARTICULAR (MADRI, MARQUÊS DE LA ROM.

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Il. 14.Cena de rapto e assassinato, 1800-10, FRANKFURT, KUNST-INSTITUT, GW 930.

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15. Fuzilamento num acampamento militar , 1800-10, COLEÇÃO PARTICULAR (MADRI, MARQUÊS DE LA RO.

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Il. 16. Martírio, 1800-10, BESANÇON, MUSÉE DES BEAUX-ARTS, GW 923.

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Il. 17.Casa dos loucos, 1814-6, MADRI, ACADEMIA SAN FERNANDO, GW 968.

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Il. 18.O enterro da sardinha, 1814-6, MADRI, ACADEMIA SAN FERNANDO, GW 970.

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Il. 19. Autorretrato com Arrieta, 1820, MINNEAPOLIS, MINN., FINE ARTS MUSEUM, GW 1629.

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Il. 20.Cristo no jardim de Getsêmani, 1819, MADRI, ESCUELAS PÍAS, GW 1640.

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Il. 21.Velho e demônio, 1820-3, MADRI, MUSEU DO PRADO, GW 1627.

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Il. 22.Saturno, 1820-3, MADRI, MUSEU DO PRADO, GW 1624.

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Il. 23.O cão, 1820-3, MADRI, MUSEU DO PRADO, GW 1621.

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Il. 24. A leiteira, 1826-7, MADRI, MUSEU DO PRADO, GW 1667.

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otas

YA PENSADOR

Matheron, p. 9; Yriarte, .Ortega y Gasset, .

NTRADA NO MUNDO

odos os textos de Goya foram recolhidos em Diplomatorio. As cartas são identificadas pela data, que está entre colche

escida pelos editores.

A TEORIA DA ARTE

atheron, pp. 29-30, 59-60; Yriarte, p. 5.

OENÇA E SUAS CONSEQUÊNCIAS

eproduzido em Tomlinson, p. 307.

SCARAS, CARICATURAS E BRUXAS

alraux, p. 110.otocki, pp. 117, 72, 124.audelaire, pp. 567-70.

Hofmann, “Bosco y Goya”; Shakespeare, All’s well that ends well , II, 3.Hegel, pp. 9, 24, 149.

NTERPRETAÇÃO DOS CAPRICHOS

oya, Les Caprices, pp. 31-2.omás de Kempis, p. 42.orrespondance, t. II, pp. 401-3. Esse trecho é citado por Werner Hofmann em seu livro sobre Goya,To every story therether.

RNAR VISÍVEL O INVISÍVEL

audelaire, pp. 568-9.Ortega y Gasset, p. 281.

svetáieva, t.V, p. 284.

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NVASÃO NAPOLEÔNICA

arr, p. 107.Apud Hughes, pp. 263-4.Xénie apprivoisée, apud J. Le Rider, “Préface”. In: Goethe, Écrits autobiographiques, p. LXXII.Matheron, p. 83.Montaigne,III, 8.Goethe, Hermann et Dorothée, pp. 124, 127.Malraux, p. 110.Goethe,Conversations avec Eckermann, pp. 550-1.

ESTRAGOS DA GUERRA

afuente Ferrari,Goya, pp.XIV-XV.Apud Perez Sanchez, p. 201.

svetáieva, t.I, p. 576.

MICÍDIOS, ESTUPROS, SALTEADORES, SOLDADOS [pp. 144-53]

ousseau, p. 175.

rasmo, Éloge de la folie, LIX. In:Œuvres choisies, pp. 203-4.

DESASTRES DA PAZ

mith,III, 2, p. 130.otocki, pp. 124-5.

Matheron, p. 6.

ERANÇAS E ALERTAS

pud Hughes, p. 324.alzac, pp. 646-52.

DOIS REGIMES DE PINTURA

onnefoy, p. 70.Gassier, Les Dessins de Goya, t. II, p. 54.

UNDA DOENÇA, PINTURAS NEGRAS, LOUCURAS

ofmann,To every story there belongs another , pp. 133, 318.Gary, pp. 17-9.

A NOVA PARTIDA

Apud Matheron, p. 93.d., ibid.d., ibid., pp. 97-8.Carta publicada por E. Young.

ERANÇA DE GOYA

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cht, p. 105.e Monde, 14 de abril de 2010.reud, “Une névrose démoniaque auXVIIe siècle”. In: Essais de psychanalyse appliquée, pp. 211-2.

Grossman, pp. 346, 341, 344.illion, pp. 424, 210.

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réditos das imagens

AGENS DE MIOLO

títulos que não foram dados por Goya estão entre colchetes.igla G corresponde a “gravura”.

1: Pobre e nua vai a filosofia, E 28,GW 1398, New York, Collection Michael and Judy Steinhardt, New York/ G&K 2:Sonho. Da mentira e da inconstância, GW 619, G/ Photoaisa/ Keystone Brasil3:Caricatura alegre, B 63,GW 423, Madri, Museu do Prado/ Album/ Oronoz4: Bruxas prestes a voar , B 56,GW 416, New York, Ian Woodner Family Collection5: Proclamação de bruxas, GW 626, Madri, Nacional do Prado/ Album/ Oronoz6:O sonho da razão, GW 538, Madri, Museu do Prado / Album/ Oronoz7: Michelangelo,O sonho, Londres, The Courtauld Gallery/© Samuel Courtauld Trust/ The Bridgeman Art Library 8: “Aonde vai a mamãe?”,Capricho 65, GW 581, G 9: “Boa viagem”,Capricho 64, GW 579, G/ Album/ Oronoz10:Visão burlesca. A mesma noite 4, C 42,GW 1280, Museu do Prado/ Album/ Oronoz 11: “Enterrá-los e calar-se”, Desastres 18, GW 1020, G, Washington D.C., National Gallery of Art, Coleção Rosenw

Curadores 12: “Com ou sem razão”, Desastres 2, GW 995, G/ Album/ Oronoz 13: “A mesma coisa”, Desastres 3, GW 996, G, Madri, DR/ Museu do Prado 14: “Também não”, Desastres 10, GW 1006, G, Madri, DR/ Museu do Prado

15: “Mãe infeliz!”, Desastres 50, GW 1074, G/ Oronoz16: “Aqui tampouco”, Desastres 36 , GW 1051, G/ Album/ akg-images 17: “Os estragos da guerra”, Desastres 30, GW 1044, G18:Será a mesma coisa, GW 1028, Madri, Museu do Prado / Album/ akg-images19: Foi porque ela era liberal?, C 98,GW 1334, Madri, Museu do Prado/ Album/ Oronoz20:Que crueldade!, C 108,GW 1344, Madri, Museu do Prado/ Album/ Oronoz21: Muitos acabaram assim, C 91.GW 1327, Madri, Museu do Prado/ Album/ Oronoz 22: “Nada. Isto o dirá”, Desastres 69, GW 1112, G, Washington D.C., National Gallery of Art, Coleção Rosenwald,adores 23: “Que loucura!”, Desastres 68, GW 1110, G24:Tomara que dure a alegria, C 116,GW 1351, Madri, Museu do Prado/ Album/ Oronoz25:O que deseja este grande fantasma?, C 123,GW 1358, Madri, Museu do Prado 26: “Monstro cruel!”, Desastres 81, GW 1136, G27:Trabalhos úteis, E 37,GW 1406, coleção particular/ © Collection archivesGB28: Regozijo, D 4,GW 1370, Nova York, Hispanic Society/ © The Hispanic Society of America29: Pesadelo, E 20,GW 1393, Nova York, The Pierpont Morgan Library. Gift of Mr. & Mrs. Richard J. Bernhard,

rpoint Morgan Library/ Art Resource, NY30: [ Despertar ao ar livre], F 71,GW 1490, Nova York, The Metropolitan Museum of Art/ © The Metropolitan MuResource, NY31:Continuo aprendendo, G 54,GW 1758, Madri, Museu do Prado/ Album/ Oronoz32: [Saturno], GW 635, Madri, Museu do Prado/ © AISA/ The Bridgeman Art Library 33: [“Loucura desordenada”], Disparate 7 , GW 1581, G, Madri, Museu do Prado34: [ Briga conjugal ], F 18,GW 1446, Madri, Museu do Prado/ Album/ Oronoz35: Mulher má, Db,GW 1379, Paris, Museu do Louvre/ © Photo12.com/ Oronoz 36: [“Loucura fúnebre”], Disparate 18, GW 1600, G

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37: [O caminho do inferno], GW 1647, Madri, Biblioteca Nacional38:Grande disparate, G 9,GW 1718, Madri, Museu do Prado/ Album/ Oronoz39:Vitória fácil , H 38,GW 1800, Madri, Museu do Prado/ Album/ Oronoz40: [O idiota], H 60,GW 1822, São Petersburgo, Museu do Ermitage/ © Superstock Fineart / Other Images41: [ Fantasma dançando], H 61,GW 1818, Madri, Museu do Prado/ © Photo12.com/ Oronoz42: [Velho no balanço], H 58,GW 1816, Nova York, Hispanic Society/ © The Hispanic Society of America, Nova Yo

DERNO DE FOTOS

O pedreiro ferido/ © Photo12.com/ Oronoz2O conde de Floridablanca/ Album/ Joseph Martin/ Banco Urquijo, Madri3Os cômicos ambulantes/ Album/ akg-images4O assalto à diligência/ Album/ Oronoz5 Interior de prisão/ The Bridgeman Art Library6O pátio dos loucos/ Oronoz7O incêndio/ Album/ Oronoz8A lâmpada monstruosa/ National Gallery, Londres9Exorcismo/ Album/ Oronoz0 Hospital de pestíferos/ © Photo12.com/ Oronoz1 Bandidos fuzilando seus prisioneiros/ Album/ Oronoz2 Bandido despindo uma mulher / Album/ Oronoz

3 Bandido assassinando uma mulher / Album/ Oronoz4Cena de rapto e assassinato (detalhe)/ The Bridgeman Art Library5 Fuzilamento num acampamento militar / Album/ Oronoz6 Martírio/ Charles Choffet7Casa dos loucos/ Madri, Academia San Fernando8O enterro da sardinha/ Album/ Oronoz9 Autorretrato com Arrieta/ The Ethel Morrison Van Derlip Fund0Cristo no jardim de Getsêmani/ Album/ Oronoz1Velho e demônio/ Album/ Erich Lessing2Saturno/ Album/ Joseph Martin3O cão/ Madri, DR/ Museu do Prado

4 A leiteira/ Madri, DR/ Museu do Prado

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ndice das obras de Goya

O número que figura no início de cada item é o do catálogo Gassier-Wilson. Os títulos das gravuras e dos desenhoeção daqueles que figuram entre colchetes, ao passo que nenhum dos títulos dos quadros é de autoria de Goya. O n

mete à reprodução da imagem ao longo do texto.

NTRADA NO MUNDO, 1776-92

. [O garroteado] (1778-80): 163

. Bandidos assaltando uma diligência (1776-8): 44

.Cristo na cruz (1780): 21

.O conde de Floridablanca e Goya (1783):il. 2 , 20

.São Francisco Borgia e o moribundo impenitente (1788): 68, 197, 204

.São Francisco Borgia e o moribundo impenitente, esboço (1788): 68

.O assalto à diligência (1786-7): 45

.O pedreiro bêbado (1786): 19

.O inverno (1786-7): 19

.O pedreiro ferido (1786-7):il. 1 , 19, 50, 104

.Os pobres na fonte (1786-7): 19

. A pradaria de San Isidro (1788): 214

.O fantoche (1791-2): 20

.O casamento (1791-2): 207.Os pequenos gigantes (1791-2): 20

QUADROS DE 1793-4

. A escolha dos touros: 42

. A morte do picador : 42

. A morte do touro: 42, 185

.O touro removido pelas mulas: 42, 185

.Os cômicos ambulantes: il. 3 , 42-3

.O vendedor de marionetes: 42-3

.O assalto à diligência: il. 4 , 42, 46, 145-6

.O naufrágio: 42, 47

.O incêndio: il. 7 , 42, 47

.O pátio dos loucos: il. 6 , 41, 45, 65, 145, 185

M A FAMÍLIA DE ALBA

.O duque de Alba (1795): 52

. A duquesa de Alba (1795): 52

. A duquesa de Alba e sua camareira (1795): 52

. A duquesa de Alba (1797): 54, 55-7

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BUM A, 1796-7

. [ A duquesa de Alba recolhendo seus cabelos]: 53

. [ A duquesa de Alba com María de la Luz no colo]: 53

. [ Duas jovens nuas numa cama]: 194

. [ A duquesa de Alba escrevendo]: 53

. [ Duas mulheres enlaçando-se]: 194

BUM B, 1796-7

. [ Rapaz espancando…]: 212

. Máscaras cruéis: 61

. Bruxas prestes a voar : 63,66

. A mãe “Fole” atiça o fogo: 64

. Ela pede explicações ao marido: 62

.Caricatura alegre: 58 , 62, 90

.Cantam para aquele que a compôs: 62

. Embriagam-se: 62

.Cada palavra é uma mentira: 62

. Mascaradas de jumentos: 61

. É verão, eles tomam a fresca…: 60

PRICHOS, 1797-8

.Capricho 1: 87, 92

.Capricho 2: 93, 95

.Capricho 3: 95

.Capricho 6 : 87, 93

.Capricho 13: 90, 95

.Sonho 25, desenho paraCapricho 13: 90, 95

.Capricho 19: 54

.Capricho 24: 93

.Capricho 43: 76, 80, 87, 92, 178, 197

.Sonho 1, desenho paraCapricho 43: 82

. Desenho paraCapricho 43: 83 , 84, 219

.Capricho 49: 95

.Capricho 50: 81

.Capricho 52: 95

.Capricho 55: 103

.Capricho 61: 54-5

.Capricho 62: 95

.Capricho 64: 60, 96,97

.Capricho 65: 91 , 96, 108, 149

.Capricho 69: 64

.Capricho 70: 63

.Capricho 75: 95, 210

.Capricho 80: 88, 95

.Sonho. Da mentira e da inconstância: 55,56

. Desenho para 619: 55

ÉPOCA DOS CAPRICHOS, 1797-8

. A enfermidade da razão: 81, 88. Proclamação de bruxas: 64,67

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. [Saturno devorando suas crias]: 207,209

. [ Judite moderna]: 207

. [Voo de bruxas]: 108

. [ A mulher-serpente]: 55

. A conf iança: 194

ADROS DE BRUXARIA, 1797-8

.Voo de bruxos: 65

. Aquelarre (ouO sabá das bruxas): 65, 214

. Exorcismo: il. 9 , 68, 70, 72, 192, 214

. A cozinha dos bruxos: 68

. A lâmpada monstruosa (ouO enfeitiçado): il. 8 , 65, 70

.O convidado de pedra: 65

ADROS DOS ANOS 1798-1812

.Gaspar Melchior de Jovellanos (1798): 102

.O comércio (1797-1800): 102

. Esboço para A Verdade, o Tempo e a História (1797-1800): 82

-35. Afrescos deSan Antonio de la Florida (1798): 101. Esboço para A detenção de Cristo (1798): 101-2, 156. La maja desnuda (1798-1800): 102, 157. La maja vestida (1800-5): 103. Projeto de mausoléu para a duquesa de Alba (1802-3): 57. A família de Carlos IX (1800): 101. Manuel Godoy (1801): 101-9. A captura do bandido El Maragato (1806-7): 145.Os bêbados (1806-10): 103. Alegoria da cidade de Madri (1810): 118-13. Naturezas-mortas (1808-12): 104. Interior de prisão: 145. Bandido despindo uma mulher : il. 12 , 146. Bandido assassinando uma mulher : il. 13 , 146. Bandidos fuzilando seus prisioneiros: il. 11 , 146. Hospital de pestíferos: il. 10 , 145, 185. Fuzilamento num acampamento militar : il. 15 , 148, 155. Martírio I : 149. Martírio II : il. 16 , 149.Selvagens assassinando uma mulher : 149. Interior de prisão (data, na realidade, de 1793-4):il. 5 , 42, 45-6, 145.Cena de rapto e assassinato: il. 14 , 147

. Mulheres atacadas por soldados: 146-7.O frade enforcado: 147

.Cena de prisão: 145

.O colosso: 150, 178

.Cena de guerra: 147

. Maja e Celestina na sacada: 103

. Majas na sacada: 103

. As velhas, ou O tempo (1808-12): 103, 216

. A aguadeira (1808-12): 104

.O amolador (1808-12): 104

AGENS DO PERÍODO 1812-20

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. A forja (1812-6): 184

.Cena de Inquisição: 184

. Procissão de flagelantes: 184

.Casa dos loucos: il. 17 , 185

.Corrida de touros numa aldeia: 185

.O enterro da sardinha: il. 18 , 186, 203, 214

. Desenho preparatório paraO enterro da sardinha: 186

. Dois de maio de 1808 (1814): 155-6

.Três de maio de 1808 (1814): 147, 155-6

.O colosso (1810-8): 150

. A detenção é tão bárbara quanto o crime (1810-20): 166. É possível controlar um prisioneiro… (1810-20): 166

.Que não o executem imediatamente… (1810-20): 166

ASTRES DA GUERRA, 1810-20

. Desastres 1: 126-7, 173, 197

. Desastres 2: 129,130 , 134, 139, 155-6

. Desastres 3: 129,131

. Desastres 4: 132

. Desastres 5: 132

. Desastres 6 : 132-30. Desastres 7 : 131, 1335. Desastres 9: 1336. Desastres 10: 133,1357. Desastres 11: 133, 1479. Desastres 12: 1341. Desastres 13: 1337. Desastres 16 : 130,1340. Desastres 18: 124 , 1342. Desastres 19: 1338. Desenho para Desastres 21: 141,143

3. Desastres 24: 1345. Desastres 25: 1347. Desastres 26 : 137, 148, 1638. Desastres 27 : 1400. Desastres 28: 1322. Desastres 29: 1324. Desastres 30: 141,1427. Desastres 32: 1298. Desastres 33: 1359. Desastres 34: 1630. Desastres 35: 129, 163

1. Desastres 36 : 130, 137,1382. Desastres 37 : 1365. Desastres 39: 135, 1496. Desastres 40: 1788. Desastres 41: 134, 1480. Desastres 42: 1342. Desastres 43: 1344. Desastres 44: 128, 134, 1486. Desastres 45: 128, 1344. Desastres 50: 135,1364. Desastres 60: 1344. Desastres 65: 1646. Desastres 66 : 164

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8. Desastres 67 : 1640. Desastres 68: 168,1691. Desenho para Desastres 68: 1682. Desastres 69: 108, 166,167 , 2384. Desastres 70: 1646. Desastres 71: 1642. Desastres 74: 1644. Desastres 75: 1648. Desastres 77 : 1782. Desastres 79: 176

4. Desastres 80: 1766. Desastres 81: 178,1818. Desastres 82: 1768.Cena de guerra, 1810-2: 1419-1218.Tauromaquia, 1815-6: 185

BUM C, 1808-14

1. Boa mulher, ao que parece: 942. Abraço paterno: 940.Que vingança horrível!: 1067-85.Visões burlescas: 1080.Quarta visão da mesma noite: 107 , 1084. Há muitas dessas coisas…: 1067. Elas não dizem nada: 1080. Nada nos importa: 106, 2533.Colocaram-lhe uma mordaça…: 1586. Porque ele não tinha pernas: 1587. Muitos acabaram assim: 163,1659. Por casar-se com quem ela quis: 159, 2542. Por não ter escrito para os imbecis: 160, 2544. Foi porque ela era liberal?: 153 , 159, 254

7. Não se consegue olhar : 1609. É melhor morrer : 1594.Que crueldade!: 160,1626-9. Álbum C, 111-4, 1730. Divina Liberdade: 1731.Tomara que dure a alegria: 170 , 1742. A luz nasce das trevas: 1733.O triunfo da Justiça: 1747. Divina razão…: 175-68.O que deseja este grande fantasma?: 175,1770.Quantas alnas?: 175

1.Sem camisão eles são felizes: 175

BUM D, 1816-20

0. Regozijo: 190,191 , 1924.Sonho de uma bruxa boa: 1926. Pesadelo: 1928.Sonho de palmada: 1929. Mulher má: 212,213

BUM E, 1816-20

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7. Não enchas tanto o cesto!: 1889. A severidade nem sempre é boa: 1880.Sabes muito…: 2243. Pesadelo: 192,1938. Pobre e nua vai a filosofia: 10 , 12, 1902. A resignação: 1906.Trabalhos úteis: 188,1890. Deus nos livre de uma sorte tão penosa: 1942. Pensa bem: 1905. Acordo completo: 188

7.O trabalho sempre recompensa: 1909. Atenção aos conselhos: 1941.O cego laborioso: 1886. [ Duas mulheres se enlaçam]: 1948. [O mingau]: 188

BUM F, 1816-20

8-43. [ Duelos]: 2504.O miserável de Ybides: 1945. [ No mercado]: 1906. Briga conjugal : 211 , 2120. A Verdade assediada pelas forças do mal : 1767. [Suplício da polé]: 1610. [ Despertar ao ar livre]: 192,195 , 2533. [ A palmada]: 1943. [ Mulher assassinando um homem adormecido]: 2128. [ Mulher estendendo um copo]: 188

TURAS DOS ANOS 1814-8

4. Assembleia da junta das Filipinas (1815): 1830. Fernando VII com manto real (1814): 1821. Autorretrato (1815): 1829.Santas Justina e Rufina (1817): 184

PARATES, 1818-3

1. Loucura desordenada: fig. 33 , 2100. Loucura fúnebre: 218,2194. Loucura de bestas: 225

TURAS NEGRAS, 1820-3

5. As Parcas: 2166. Duelo a bordoadas: 216, 2507. A leitura: 2158. A masturbação (?): 2159.O passeio do Santo Ofício: 2150. Asmodeia: 2161.O cão: il. 23 , 217, 2422. Leocadia: 205, 218, 2243.O grande bode (ouO sabá das bruxas): 205, 212, 214

4.Saturno: il. 22 , 2075. Judite e Holofernes: 205

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6. A peregrinação a San Isidro: 205, 2127.Velho e demônio: il. 21 , 2067a. Dois velhos comendo: 216

AGENS DOS ANOS 1818-27

9. Autorretrato com Arrieta (1820):il. 19 , 196, 197, 199, 201, 241, 2548. A última comunhão de são José de Calasanz (1819): 1970.Cristo no jardim de Getsêmani (1819):il. 20 , 156, 1987. [O caminho do inferno] (1818-23):Fig. 37 , 2207. A leiteira (1825-7):il. 24 , 224, 2305. Frade falando com uma velha (1824-5): 2239. A leitura (1819-25): 230

BUM G, 1824-8

5.O cão voador : 2258.Grande disparate: 225,2270.Sonho mau: 2251. Marido mau: 2253.União natural e segura…: 2268. Louco furioso: 2285. Louco furioso: 2281. Intrigas de suas vidas: 1942.Crônica do campo: 2283.Castigo francês: 2264.Castigo francês: 2268.Continuo aprendendo: 206,208 , 224, 252

BUM H, 1824-8

0. [ Irmão converso patinando]: 2344. [ Frade flutuando nos ares]: 2346. [ Homem assassinando um frade]: 2287. [ Duas velhas comadres dançantes]: 2340. [Vitória fácil ]: 228,229 , 2505. [O diabo os une]: 2266. [Velho no balanço]: 233 , 234, 2538. [ Fantasma dançando com castanholas]: 232 , 2342. [O idiota]: 228,231

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TZVETAN TODOROV nasceu em Sofia, Bulgária, em 1939. Estudou filologia na Univfia. Em 1963, emigrou para Paris. Em sua tese de doutorado, Literatura e significação (196entado por Roland Barthes. É pesquisador do Centre national de la recherche scientisde 1968. Foi professor visitante das universidades Yale, Harvard, Columbia blicou, entre muitos outros, A gramática do Decameron (1969), A conquista da América (19 inimigos íntimos da democracia (2012), este último pela Companhia das Letras.

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pyright © 2011 by Tzvetan Todorov

afia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

ulo original ya à l’ombre des Lumières

paudia Espínola de Carvalho

agem da capazilamento em um acampamento militar , de Francisco de Goya,8/12, óleo sobre tela, 323 58 cm.

Album/ Oronoz

paraçãovana Afram

ice onomásticoiano Marchiori