textos sobre dzogchen - namkhaï norbu rinpoche

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Chögyal Namkhai Norbu Chögyal Namkhai Norbu nasceu em 1938, na aldeia de Guehug situada próximo de Degué, no país de Kham (Tibet oriental). Aos dois anos de idade, Palyul Karma Yangsi y Zechen Rabjam o reconheceram como o tulku (reencarnación) de Adzam Drugpa, um grande mestre de Dzogchén no início deste século, discípulo por sua vez de Jamyang Khyentse Wangpo e Dza Paltrul, os mais importantes mestres do movimento não-sectário rimé, e também grandes praticantes do Dzogchén. Com oito anos, o décimo sexto Karmapa e o Palpung Situ o reconheceram como a reencarnação da mente de Lodrug Shabdrung Rinpoché, que por sua vez era encarnação de Pema Karpo, um eminente erudito da ordem Drugpa Kagyu. Desde de oito anos, iniciou uma intensa educação no Darma, recebendo ensinamentos de um grande número de mestres. Entre estes cabe assinalar seu tio materno, Khyentse Yangsi Rinpoche, e seu tio paterno Togden Orgyan Tendzin, recebendo de ambos numerosos ensinamentos e instruções de Dzogchen. Entre os outros mestres dos quais recibeu ensinamentos em sua infância cabe destacar Dzogchen Khen Rinpoché e especialmente Neguiab Rinpoché. Dos oito aos doze anos de idade foi aluno na universidade de Degué Böntö Lobdra, no mosteiro de Degué Gonchén, onde recibeu uma erudita instrução na tradição da ordem Sakya. Entre os oito e os catorze anos, ma universidad de Degué Kuse Serjong Shedra, recebeu instruções sobre os textos mahaiana e vários ciclos tântricos, assim como sobre ciências seculares. No mesmo periodo reidiu temporariamente no mosteiro de Dzongsar, onde recebeu vários ciclos de ensinamentos do eminente lama Dzongsar Khyentse Chökyi Lodrö. Pouco depois realizou um retiro com seu tío Orgyan Tendzin, no qual aprofundou na prática tântrica. Nessa mesma época o filho de Adzam Drugpa, Gyurmé Dorje, lhe ensinou alguns ciclos tântricos e de Dzogchén. Aos catorze anos, depois de receber a iniciação de Vajrayoguini, por conselho de seus mestres foi encontrar uma mulher considerada emanação de Vajrayoguini. Se tratava de Ayu Khandró Dorje Peldrön, discípula dos grandes mestres Jamyang Khyentse Wangpo e Ñagla Pema Düdül. Quando Namkhay Norbu Rinpoche a conheceu, ela tinha cento treze anos, cincuenta e cinco dos quais havia passado em retiro na escuridão. Dela recebeu numerosos ensinamentos, entre os quais se contavam seus próprios tesouros da mente. Em 1954 foi convidado a visitar a República Popular da China como representante da juventude tibetana. Desde 1954 foi instrutor de língua tibetana na Universidade do Suroeste para as Nacionalidades Menores em Chengdu, província de Sichuan. Alí conneceu o grande lama Gongkar Rinpoché, mestre de Karmapa. Dele recebeu numerosos ensinamentos da ordem Kagyu e

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Chögyal Namkhai NorbuChögyal Namkhai Norbu nasceu em 1938, na aldeia de Guehug situada próximo de Degué, no país de Kham (Tibet oriental). Aos dois anos de idade, Palyul Karma Yangsi y Zechen Rabjam o reconheceram como o tulku (reencarnación) de Adzam Drugpa, um grande mestre de Dzogchén no início deste século, discípulo por sua vez de Jamyang Khyentse Wangpo e Dza Paltrul, os mais importantes mestres do movimento não-sectário rimé, e também grandes praticantes do Dzogchén. Com oito anos, o déc

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Page 1: Textos sobre Dzogchen - Namkhaï Norbu Rinpoche

Chögyal Namkhai Norbu

Chögyal Namkhai Norbu nasceu em 1938, na aldeia de Guehug situada próximo de Degué, no país de Kham (Tibet oriental). Aos dois anos de idade, Palyul Karma Yangsi y Zechen Rabjam o reconheceram como o tulku (reencarnación) de Adzam Drugpa, um grande mestre de Dzogchén no início deste século, discípulo por sua vez de Jamyang Khyentse Wangpo e Dza Paltrul, os mais importantes mestres do movimento não-sectário rimé, e também grandes praticantes do Dzogchén.

Com oito anos, o décimo sexto Karmapa e o Palpung Situ o reconheceram como a reencarnação da mente de Lodrug Shabdrung Rinpoché, que por sua vez era encarnação de Pema Karpo, um eminente erudito da ordem Drugpa Kagyu.

Desde de oito anos, iniciou uma intensa educação no Darma, recebendo ensinamentos de um grande número de mestres. Entre estes cabe assinalar seu tio materno, Khyentse Yangsi Rinpoche, e seu tio paterno Togden Orgyan Tendzin, recebendo de ambos numerosos ensinamentos e instruções de Dzogchen. Entre os outros mestres dos quais recibeu ensinamentos em sua infância cabe destacar Dzogchen Khen Rinpoché e especialmente Neguiab Rinpoché. Dos oito aos doze anos de idade foi aluno na universidade de Degué Böntö Lobdra, no mosteiro de Degué Gonchén, onde recibeu uma erudita instrução na tradição da ordem Sakya.

Entre os oito e os catorze anos, ma universidad de Degué Kuse Serjong Shedra, recebeu instruções sobre os textos mahaiana e vários ciclos tântricos, assim como sobre ciências seculares. No mesmo periodo reidiu temporariamente no mosteiro de Dzongsar, onde recebeu vários ciclos de ensinamentos do eminente lama Dzongsar Khyentse Chökyi Lodrö.

Pouco depois realizou um retiro com seu tío Orgyan Tendzin, no qual aprofundou na prática tântrica. Nessa mesma época o filho de Adzam Drugpa, Gyurmé Dorje, lhe ensinou alguns ciclos tântricos e de Dzogchén.

Aos catorze anos, depois de receber a iniciação de Vajrayoguini, por conselho de seus mestres foi encontrar uma mulher considerada emanação de Vajrayoguini. Se tratava de Ayu Khandró Dorje Peldrön, discípula dos grandes mestres Jamyang Khyentse Wangpo e Ñagla Pema Düdül. Quando Namkhay Norbu Rinpoche a conheceu, ela tinha cento treze anos, cincuenta e cinco dos quais havia passado em retiro na escuridão. Dela recebeu numerosos ensinamentos, entre os quais se contavam seus próprios tesouros da mente.

Em 1954 foi convidado a visitar a República Popular da China como representante da juventude tibetana. Desde 1954 foi instrutor de língua tibetana na Universidade do Suroeste para as Nacionalidades Menores em Chengdu, província de Sichuan. Alí conneceu o grande lama Gongkar Rinpoché, mestre de Karmapa. Dele recebeu numerosos ensinamentos da ordem Kagyu e

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sobre medicina tibetana. Nesse período, Rinpoché aprendeu a língua china y mongólica.

Aos dezessete anos, regressou a Degué ao haver conhecido em sonhos ao que seria seu mestre-raíz, Ñagla Changchub Dorje, proveniente da região de Ñagrong. Seus mestres haviam sido Adzam Drugpa y Ñagla Pema Düdül, assim como Shardza Rinpoché, o eminente lama bonpo que realizou o Corpo de Arco Íris. Changchub Dorje estava a cabeça de uma comunidad de praticantes, monjes y laicos, chamada Ñagla Gar, situada em um vale remoto. Além de ser um mestre espiritual, Changchub Dorje era um médico de renome. Dele Namkhai Norbu Rinpoché recebeu os principaies ensinamentos das tres series del Dzogchen: semdé, longdé y mangagdé, assim como a transmissão das mismas. Mas por acima de tudo, o mestre o introduziuo diretamente a vivencia do Dzogchen. Namkhai Norbu Rinpoché permaneceu en Ñagla Gar perto de um ano, durante o qual além de receber e praticar ensinamentos, ajudou em sua prática médica a Chanchub Dorje, servindo lhe também como secretario e escriba.

Depois, empreendeu uma peregrinação ao Tibet central, Nepal, Índia e Butão. Regressando a sua terra natal encontrou uma situação de violência que era presságio da guerra que se desataria entre Tibet e China. Decidiu então fugir para a Índia. Chegou a Sikkim em 1958, onde residiu até 1960, trabalhando como editor de livros tibetanos para a Agência de Desenvolvimento do Governo de Sikkim.

Em 1960, foi convidado pelo profesor Giuseppe Tucci para transferir-se para Itália, e residiu em Roma durante vários anos. Nessa época foi associado de investigação no Instituto pelo Meio do Extremo Oriente (IsMEO), e graças a uma bolsa da Fundação Rockefeller, contribuiu com dois apêndices ao livro de Giuseppe Tucci, Canções populares tibetanas de Gyantse e o Tibet ocidental e conduziu seminários no próprio IsMEO sobre yoga, medicina e astrologia.

Desde 1964 até sua aposentadoria recente, Namkhai Norbu Rinpoche trabalhou como professor no Instituto Universitário Oriental de Nápoles, ensinando língua tibetana e mongólica e historia cultural tibetana e filosofia budista. Durante anos realizou uma profunda investigação sobre os orígenes da cultura tibetana, examinando fontes literárias pouco conhecidas da tradição bonpo.

Durante os últimos vinte e cinco anos, conduziu retiros e seminários em muitos paises de todo o mundo, nos quais transmitiu ensinamentos sobre Dzogchen, tantrismo budista, yantra yoga e budismo em geral, todo isso desde um ponto de vista não sectário, assim como sobre aspectos da cultura, da medicina e da astrologia tibetana. Sob sua direção surgiu a Comunidade Dzogchen Internacional, associação de indivíduos que, sem necessidade de modificar seu modo de vida, compartem um interesse comum no estudo e na pratica dos ensinamentos que transmite o mestre.

biografía abreviada retirada do livro"El cristal y la vía de la luz"

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O espelho

Chögyal Namkhaï Norbu RinpocheTradução do Tibetano para o Italiano, Prefácio e Notas:Adriano ClementeTradução para o Português:Ana C. Domingues Mengano e Vincenzo Mengano

Um Conselho sobre a Presença da Consciência

PREFÁCIO

O autor deste texto é o Prof. Chögyal Namkhai Norbu o qual, além de ser um dos maiores expoentes atuais da cultura tibetana, é um importante Mestre da tradição espiritual Dzogchen, antigo sistema de meditação difuso no Tibet seja no Budismo seja no Bön.

Transcorridos os primeiros vinte anos no Tibet, onde recebeu uma educação tradicional em todos os ramos do saber tibetano, em 1960 foi convidado a vir em Itália pelo Prof. Tucci como colaborador do I.S.M.E.O. de Roma. Desde então intraprendeu um profundo estudo de pesquisa sobre as origens da cultura tibetana dando particular relêvo à tradição Bön e à história do Shang Shung, antigo reino do Tibete ocidental. O Prof. Chögyal Namkhai Norbu é, além disso, autor de numerosos livros, alguns dos quais publicados na India, e ensinou no Istituto Universitário Orientale de Napoli. Atualmente realiza seminários em todo o mundo sobre a cultura tibetana, particularmente sobre yoga, a medicina e a astrologia.

Há mais de vinte anos, surgiu sob a sua preciosa sangha, primeiro na Itália e depois em outros países, a Comunidade Dzogchen, ou seja, um grupo de pessoas de diversas condições sociais as quais, mesmo mantendo o próprio papel na sociedade, são unidos pelo interesse de seguir e praticar os ensinamentos que Chögyal Namkhai Norbu continuamente compartilha.

Na ocasião de um retiro da Comunidade realizado na Sardenha no Natal de 1977, ele escreveu este livro. Durante uma conversação o apresentou deste modo: "Em todos os ensinamentos espirituais existem regras, como por exemplo, aquelas do Sutra e do Tantra. Os mestres de Dzogchen, baseando-se sobre estas regras, ensinaram a ter consciência. Mas o que é consciência?

Visto que não existe uma descrição à respeito pensei em escrever este livro".

O ensinamento Dzogchen ou Grande Perfeição tem como alvo reconhecer a condição pura e autêntica de cada indivíduo. Para este fim ensina a observar a si mesmos para descobrir os próprios limites e sair da prisão da condição dualística criada pela mente.

O homem é composto de três elementos: o corpo, a fala (ou seja, a energia vital) e a mente. Mediante a integração e o relaxamento destes três elementos se deve redescobrir a própria consciência do estado rigpa, ou seja, o reconhecimento da natureza primordial da mente, além das dicotomias do pensamento. Obtido tal reconhecimento através da introdução da parte do Mestre, a prática principal consiste no continuar neste estado de consciência.

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Com a perda da originária condição de pureza, nascem as paixões nyon mongs, estados de sublevação do interno da psique, as quais causam a transmigração na roda das aparições fenomênicas ou samsara.

Em particular o ódio zhe sdang, o ofuscamento mental gti mug e o apego 'dod chags são diretamente coligados aos três 'humores' que presidem as funções do organismo: bile mkhris pa, fleuma bad kan e ar rlung.

O desequilíbrio destes três ‘humores’, corresponde à condição de doença, e surge na dependência do comportamento incorreto de corpo, fala e mente. Por este motivo se dá extrema importância à consciência e à atenção contínua e este é o comportamento correto que propicia a cura de uma determinada doença. Neste sentido o comportamento vem a ser, junto com os métodos específicos de cura, os medicamentos e a dieta, um dos fatores primários do restabelecimento.

Este mesmo princípio da consciência é o fundamento do ensinamento Dzogchen, no qual tudo é confiado à responsabilidade do indivíduo. Cada um deve observar-se continuamente e verificar a própria prática, de modo que esta não seja só uma consciência teórica nem se tome um modo de enganar a si mesmos. A este respeito Chögyal Namkhai Norbu disse: "Praticar significa viver sem distrair-se". Não exige nenhum empenho particular. Ninguém pode dizer: ‘Sinto muito, Mestre, não pude viver!’ Se diz assim pode dizer também: "Não pude praticar".

Este texto resume a essência da uma tradição espiritual antiqüíssima, mas ainda hoje viva e que se está difundindo no Ocidente.

O título O espelho reflete o coração do ensinamento Dzogchen: o espelho da nossa verdadeira natureza, a condição autêntica de cada indivíduo.

Desejo agradecer a Chögyal Nankhai Norbu pela ajuda oferecida na tradução.

Adriano Clemente

O ESPELHO

Um Conselho sobre a Presença da Consciência

Rendo Homenagem ao Mestre!

Um praticante de Dzogchen deve ter uma exata presença da consciência. Até que não se conheça realmente a própria mente e não se consiga governá-la, dão-se muitas explicações, mas estas ficam somente tinta sobre o papel ou argumentos para intelectuais, sem que possa nascer a compreensão do verdadeiro sentido.

No Kun-byed rgyal-po', um tantra do Dzogchen se diz: "A mente é a criadora do samsara e do nirvâna: porisso é preciso conhecer este rei que tudo cria".

Nós transmigramos na visão impura e ilusória do samsara, mas na realidade só a nossa mente transmigra.

Igualmente a respeito da pura iluminação, é só a mente purificada a poder realizá-la.

A base de tudo é só a nossa mente, dela tudo surge: o samsara e o nirvana, os seres sencientes e os iluminados.

Examinemos o modo de transmigrar na visão impura do samsara. A essência da mente, a verdadeira natureza da nossa mente, é totalmente pura desde a

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origem. Todavia, por essa ser temporariamente ofuscada pela impureza da ignorância, não se tem reconhecimento do próprio estado. Por causa dessa inconsciência surgem os pensamentos ilusórios e as ações criadas pelas paixões. Assim se acumulam diversos karma negativos e sendo inevitável a maturação destes, se transmigra nos ‘seis estados de existência2 sofrendo amargamente. Não reconhecendo o próprio estado - esta é a causa da transmigração - nos tornamos escravos da ilusão e da distração e, condicionados pela mente, nos habituamos fortemente as ações ilusórias.

Igualmente a respeito da pura iluminação, além da própria mente não há nenhuma luz deslumbrante que venha do externo. Se reconhecermos o próprio estado, puro desde a origem, mas ofuscado pelas impurezas temporárias, e se mantivermos esta presença sem nos distrairmos, todas as impurezas se dissolvem: esta é a essência da via.

Então manifesta-se a natureza de pureza originária do estado primordial, se reconhecemos esta condição e a dominamos.

A experiência do real conhecimento da autêntica condição originária, ou o conhecimento do estado, chama-se nirvana. Porisso a iluminação não é nada mais que a própria mente purificada.

Por isto Padmasambhava3 diz: "A mente é a criadora do sansara e do nirvana. Além desta não existe nemsamsara nem nirvana..."

Tendo deste modo estabelecido que a base do samsara e do nirvana é a mente, resulta que toda a concretude do mundo e dos seres não é mais que uma visão ilusória da própria mente. Como um doente da ‘bile’ vê amarela uma concha, mesmo se objetivamente não é daquela cor, do mesmo modo, como conseqüência dos distintos karmasdos seres, se manifestam as diversas visões ilusórias.

Assim, se na margem de um rio se encontrassem os seres dos seis estados da existência, estes não veriam aquele rio do mesmo modo, porque possuem seis causas kármicas diferentes. Os seres dos infernos quentes veriam o fogo; aqueles dos infernos frios, o gelo; os espíritos famintos, sangue e pus; para os animais aquáticos, um ambiente vital; os homens, água de beber, os semideuses, armas, e as divindades, o néctar. Isto demonstra que na realidade não existe nada de concreto e objetivo. Porisso, compreendendo que a raiz do samsara é a própria mente, tentamos dominá-la. Reconhecendo que esta é também, precisamente, a essência da iluminação, se obtém a liberação. Assim sendo conscientes que a base do samsara e do nirvana é só a mente, toma-se a decisão de praticar.

A este ponto, com consciência e determinação é necessário manter uma presença contínua sem distrair-se. Se, por exemplo, queremos interromper um regato, é necessário bloqueá-lo na nascente, de modo que o seu curso cesse definitivamente; bloqueando-o em qualquer outro ponto não se obtém o mesmo resultado. Similarmente, se quisermos cortar a raiz do sarnsara, precisamos cortar a raiz da mente que o criou; caso contrário não há modo de liberar-se. Se quisermos que todos os sofrimentos e os impedimentos originados pelas ações negativas se dissolvam, devemos cortar a raiz da mente que os produziu.

Se não se faz isto, mesmo cumprindo muitas ações virtuosas com o corpo e a fala, destas resulta somente um benefício momentâneo. Além disso, não tendo

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nunca cortado a raiz das ações negativas estas poderão novamente ser acumuladas. Como se ao invés de cortar uma árvore pela raiz, arrancássemos só as folhas e os galhos: ao invés de secar certamente tornaria a crescer.

Se a mente, o rei que tudo cria, não é deixada na sua condição natural, mesmo praticando os métodos tântricos de Desenvolvimento e Aperfeiçoamento4 e recitando muitos mantras, não se está no caminho da total liberação. Querendo conquistar um país é preciso dominar o rei ou o senhor deste; subjugando somente parte da população ou algum funcionário não se alcança o objetivo. Se não soubermos manter uma presença contínua e nos deixamos dominar pela distração, não nos liberaremos nunca do trasmigrar do samsara sem fim. Ao invés, se não nos deixamos dominar pelo descuido e pela ilusão, possuindo autocontrole e sabendo continuar com a presença do próprio estado, unifica-se em nós a essência de todos os ensinamentos, a raiz de todos os caminhos.

Visto que todos os elementos da visão dualística, como o samsara e o nirvana, a felicidade e o sofrimento, o bem e o mal etc. surgem da mente, daí deriva que esta é a única base destes. Porisso a não distração é a raiz de todos os caminhos e o ponto fundamental da prática.

Seguindo este supremo caminho da presença os Buddhas do passado se iluminaram; seguindo este caminho osBuddhas que virão no futuro se iluminarão; e aqueles do presente, seguindo este caminho justo, se iluminam. Sem seguir este caminho não é possível obter o despertar. Daí, visto que a continuação da presença do próprio estado é a essência de todos os caminhos, a raiz de todas as meditações, a conclusão de todas as práticas espirituais, o suco de todos os métodos esotéricos, o coração de todos os ensinamentos finais, é necessário procurar manter uma presença contínua sem distrair-se.

Isto significa: não seguir o passado, não antecipar o futuro, não seguir os pensamentos ilusórios que surgem no presente, mas, voltando-se para o interior, observar a própria condição e mantê-la além das limitações conceituais dos ‘três tempos’.

Devemos ficar na condição não modificada do próprio estado natural, livre das impurezas das discriminações de ‘ser e não ser’, ‘haver e não haver’, ‘bem e mal’ etc.

A condição originária do Grande Aperfeiçoamento está realmente além das limitações conceituais dos ‘três tempos’; todavia quem inicia prática não tem esta consciência e acha difícil a experiência do reconhecimento, porisso é muito importante não deixar-se distrair pelos pensamentos dos ‘três tempos’.

Se, para não nos distrairmos, procuramos eliminar todos os pensamentos, apegando-nos na busca de um estado calmo ou de uma sensação de prazer, é necessário perceber que isto é um erro, porque o mesmo ‘apegar-se’ não é nada mais do que um pensamento.

É preciso relaxar a mente, mantendo somente a desperta presença do próprio estado, sem deixar-se dominar por qualquer pensamento.

Quando se está realmente relaxado, a mente se encontra na sua condição natural.

Se surgem pensamentos, bons ou ruins, fora desta condição, em vez de julgar se estamos no estado calmo ou na onda do pensamento, devemos reconhecer todos os pensamentos mediante a desperta presença do próprio estado.

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Quando os pensamentos vêm reconhecidos como tais, relaxamos na própria condição e até que dure a consciência do relaxamento, é preciso não esquecer a presença. Se nos distraímos e não reconhecemos os pensamentos, é necessário retomar à presença da consciência.

Se surgem pensamentos com relação a encontrar-se ou não em um estado calmo, sem abandonar a presença, continua-se observando o estado do mesmo pensamento.

Do mesmo modo, se não surgem pensamentos, continua-se com a presença do reconhecimento do estado calmo. Isto significa manter a presença deste estado natural e, sem determiná-lo conceitualmente ou esperar pela manifestação de uma forma, de uma cor ou de uma luz, relaxar-se, numa condição não conturbada pelas características das elaborações do pensamento.

Quem inicia a prática encontra dificuldade em continuar no estado calmo por mais de alguns instantes; não é preciso preocupar-se com isso mas, sem desejar que este tenha uma longa duração ou temer a sua ausência, é necessário somente manter a presença e não distrair-se, sem cair na consideração dualística de um estado de observar e alguém que observa.

Se a mente, embora se mantenha a presença, não perdura neste estado calmo e segue a onda dos pensamentos, referentes ao passado ou ao futuro, ou se deixa distrair pelos seis agregados dos sentidos, como a vista, o ouvido etc, é preciso compreender que a onda do pensamento é insubstancial como o vento. Se tentarmos agarrar o vento não conseguimos; do mesmo modo se procuramos bloquear a onda de pensamento, essa não se interrompe. Por este motivo não se deve bloqueá-la nem renegá-la considerando-a negativa.

Na realidade o estado calmo é a condição essencial da mente e a onda do pensamento a sua natural clareza: como o sol e os seus raios, um regato e as suas ondas, sem distinção nenhuma. Se considerarmos o estado calmo como qualquer coisa de positivo a obter e a onda do pensamento como qualquer coisa de negativo a abandonar, ficando assim na dualidade de aceitar ou recusar, não há modo de superar o estado mental ordinário. Porisso o ponto essencial é reconhecer, sem distrair-se, qualquer pensamento, bom ou mau, importante ou não e continuar no estado próprio da onda do pensamento.

Quando surge um pensamento e não se consegue relaxar na presença, visto que daquele podem surgir outros, é necessário ter cuidado no reconhecê-lo sem distração. ‘Reconhecer’ não significa ver com os olhos ou determinar com os conceitos, mas estar atentos a qualquer pensamento dos ‘três tempos’ ou percepção dos sentidos e estar assim conscientes deste movimento, continuando a presença desta consciência. Não significa absolutamente modificar a mente, como aprisionar os pensamentos ou bloquear o seu fluxo.

Para quem inicia a praticar é difícil que este reconhecimento sem distração dure muito, porque estamos transmigrando há tanto tempo que nos habituamos profundamente a distração. Se considerarmos somente esta vida, do nascimento até agora não temos feito outra coisa senão distrair-nos e nunca se é apresentada a ocasião para treinarmos a presença da consciência e a não distração. Porisso, até que não nos tornemos capazes de reconhecer a distração, se, por falta de atenção, nos deixamos dominar pelo descuido e pelo esquecimento, devemos procurar de qualquer modo perceber isto, baseando-nos na presença.

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Continuar na própria condição com a presença do estado calmo e da onda do pensamento: não há ‘meditação’ senão esta. Além do reconhecimento e da continuação do próprio estado, não há nada melhor e mais claro a procurar.

Se, além da continuação da presença do próprio estado, esperamos que se manifeste alguma coisa vinda do exterior, nos comportamos como aquele que, segundo um provérbio tibetano, coloca na porta ocidental a oferta ritual para afastar o mau espírito que está na porta oriental. Neste caso, igualmente se pensa de fazer uma ótima meditação, mas na realidade é só um modo de cansar-se. Por isto continuar no estado em que se encontra dentro de si mesmos é realmente a coisa mais importante.

Se dermos pouca importância ao que possuímos e procurarmos por alguma coisa que pensamos não ter, nos tornamos como aquele mendigo que, segundo uma parábola budista, não sabia de ter uma pedra preciosa como travesseiro e vivia de esmola.

Por isto, mantendo o estado de pura presença não dualística e observando o movimento da mente cada vez que este se apresenta, sem julgar se esta presença é clara ou não e sem aceitar o estado calmo ou recusar a onda do pensamento, é preciso aplicar a essência da prática: manter o próprio estado sem distrair-se, absolutamente não condicionados da idéia de querer modificar alguma coisa.

Algumas pessoas quando ouvem ruídos de gente que caminha, fala, etc, ficam perturbados e se irritam; ou se deixam distrair pelo ambiente externo, fazendo surgir muitas ilusões. Este é o caminho errado conhecido como "a perigosa passagem na qual a percepção externa aparece como um inimigo".

Isto demonstra que mesmo sabendo continuar com o conhecimento da condição do estado calmo e da onda do pensamento, não se consegue integrar este estado com a visão externa.

Neste caso, mantendo sempre a presença, se vemos alguma coisa não devemos nos distrair, mas, sem julgar se é agradável ou desagradável, relaxa-se e continua-se nesta presença.

Se surge um pensamento agradável ou desagradável, deve-se reconhecê-lo e continuar com esta presença sem esquecê-la.

Se nos encontramos em uma circunstância perturbada, de confusão, alvoroço etc., devemos reconhecê-la e continuar com a presença, sem esquecê-la. Se surge um pensamento que julgamos desagradável, podemos aceitá-lo e, sem deixar-se dominar pelas paixões, continuamos na presença, sem esquecê-la.

Também com respeito aos sons, aos odores etc., continua-se com a presença de todas as sensações, sem esquecê-la.

Se não se sabe integrar a presença da consciência com todas as ações cotidianas, como comer, dirigir, sentar etc., não é possível continuar no estado da contemplação além do tempo limitado de urna sessão. Neste caso, não havendo ainda estabilizado a presença, existe sempre a separação entre a prática da meditação e a vida cotidiana. Por isto é muito importante continuar a presença sem distração, integrando-a com todas as ações cotidianas. OBuddha no Prajnaparamita Sutra5 diz: "Subhuti, em que modo um Bodhisattva-mahasattva, reconhecendo que possui um corpo, aplica o perfeito comportamento? Subhuti, um Bodhisattva mahasattva se caminha é

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totalmente consciente de caminhar, se está em pé é totalmente consciente de estar em pé, se esta sentado é totalmente consciente de estar sentado, se dorme é totalmente consciente de dormir, se o corpo está bem ou está mal ele é totalmente consciente disso.

Para compreender como integrar a presença com todas as ações cotidianas, tomamos o exemplo do caminhar. Apenas surge esta idéia não precisamos nos levantar imediatamente e caminhar de modo distraído e agitado para cima e para baixo quebrando o que encontramos pela frente; mas quando nos levantamos o fazemos lembrando: "Agora estou me levantando e enquanto caminho não quero distrair-me".

Deste modo, sem deixar-se distrair, passo após passo nós devemos nos governar com a presença da consciência. Do mesmo modo, se estamos sentados não devemos esquecer esta consciência e, se comemos ou bebemos ou falamos duas palavras, qualquer ação que se desenrole, seja essa importante ou não, continuamos com a presença de tudo isto sem nos distrairmos.

Desde o momento que somos assim fortemente habituados à distração é difícil fazer nascer esta presença da consciência, especialmente para quem esta no início da prática. Todavia, quando se tem um trabalho novo a fazer, no início é preciso aprender, e mesmo se nos primeiros tempos não somos práticos, com a experiência, pouco a pouco, o trabalho toma-se fácil. Do mesmo modo, no início é necessário empenho e preocupação para não distrair-se, a seguir deve-se manter o mais possível a presença e, ao final, se nos distraímos precisamos percebê-lo.

Se continuarmos com este empenho da presença da consciência é possível chegar a não distrair-se mais.

Em geral no Dzogchen6 - o ensinamento do estado de autoaperfeiçoamento - se fala da autoliberação do modo de ver, de meditar, de comportar-se e do fruto; mas esta autoliberação deve surgir através da presença da consciência. Em particular a autoliberação do comportamento não pode absolutamente surgir se não nos baseamos na presença da consciência. Por isto se não se chega a precisar a autoliberação do comportamento, não se pode superar a distinção entre a sessão de meditação e a vida cotidiana. Quando falamos de autoliberação do comportamento como o princípio fundamental de todos os tantra, os agama, e os upadesha do Dzogchen7, isto agrada muito aos jovens de hoje. Todavia alguns não sabem que a base da autoliberação é a presença da consciência e muitos, mesmo se compreendem isto um pouco em teoria, e desta sabem falar, têm igualmente o defeito de não aplicá-la.

Se um doente conhece perfeitamente as propriedades e a função de um remédio e também é perito ao dar explicações a respeito, mas não o toma, não pode sarar.

Igualmente, desde sempre, a nossa grave doença é a sujeição à condição dualística e o único remédio é o conhecimento real do estado de autoliberação, sem cair nas limitações.

Quando se está em contemplação, na continuação da consciência do próprio estado, não é necessário dar importância ao comportamento; para quem ao invés está no inicio não tem modo de entrar na prática se não alternando a sessão de meditação e a vida cotidiana. Isto porque nós temos um forte apego

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baseado na lógica e na consideração dos objetos dos nossos sentidos como concretos e ainda mais do nosso corpo material feito de sangue e carne.

Quando meditamos sobre o ‘não eu’, eliminando mentalmente a cabeça e os membros um a um, podemos chegar a estabelecer que não existe um ‘eu’.

Todavia este ‘não eu’ é somente um conhecimento derivado de análise intelectual, não é o conhecimento real do estado do ‘não eu’.

Assim, se enquanto estamos dizendo ‘não eu’ nos entra um espinho no pé, sem dúvida gritamos imediatamente: ‘Ai, ai, ai’. Isto demonstra que estamos sujeitos à condição dualística e que aquele ‘não eu’ pronunciado com a boca não tomou-se um estado real. Por este motivo é indispensável dar importância à presença da consciência como base da autoliberação no comportamento cotidiano.

Os diversos modos de dar importância ao comportamento deram origem a várias formas de lei estabelecidas em base às condições exteriores, como as regras religiosas e os ordenamentos jurídicos.

Existe, porém uma grande diferença de princípio no respeitar uma lei por obrigação ou por consciência. Visto que, em geral, todos são condicionados pelo karma, pelas paixões e pelo dualismo, são pouquíssimos aqueles que observam as leis apenas pela consciência. Por este motivo, mesmo não querendo, os homens ficam obrigatoriamente sujeitos ao poder das diversas formas de lei.

Nós já somos condicionados pelo karma, pelas paixões e pelo dualismo, se a isso se juntam as limitações que derivam do dever seguir as leis por obrigação, o nosso fardo toma-se ainda mais pesado e, sem dúvida, nós nos afastamos do correto ‘modo de ver’ e do justo ‘comportamento’.

Por isso, quem já conseguiu chegar a um real conhecimento interior da prática deve compreender de modo preciso a presença da consciência como método da autoliberação do comportamento.

Não se deve, porém, compreender ‘a autoliberação’ no senso de poder fazer qualquer coisa que se queira; não é absolutamente este o princípio da autoliberação. Quem pensa desta maneira demonstra claramente de não ter entendido o significado de consciência

Além disso, não devemos considerar iguais os princípios da lei e da consciência; a lei de fato vem estabelecida em-base as circunstâncias do tempo e do lugar e condiciona o indivíduo pelo externo; a consciência ao contrário, surge do conhecimento que o mesmo indivíduo possui. Por esta razão, às vezes, as leis correspondem à consciência do indivíduo, às vezes não. Todavia, a quem possui a consciência é possível superar o dever de observar as leis por obrigação. Não só, mas o indivíduo que possue a consciência e sabe manter estável a presença, é capaz de viver tranqüilo sob todas as leis do mundo, sem ser por estas condicionado.

Muitos Mestres dizem: "Incita-se o cavalo da consciência com o açoite da presença!" De fato se a consciência não vem solicitada pela presença não pode funcionar.

Um exemplo para se entender a consciência: em frente a uma pessoa adulta e em condições normais tem uma taça cheia de veneno e ela é consciente disto As pessoas adultas e equilibradas, que reconhecem o veneno e são também

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conscientes das suas conseqüências, não precisam de tantos esclarecimentos à respeito e devem advertir aqueles que ignoram a presença do veneno dizendo: "Nesta taça tem um veneno, se o ingerir morrerá!" Neste modo despertando também nos outros a consciência, cada um terá a capacidade de evitar sozinho o perigo. Isto se entende por consciência.

Mas no caso em que uma pessoa mesmo sabendo do perigo que é o veneno, não dá importância ou tem ainda dúvidas a respeito, ou não tem mesmo consciência, não é suficiente dizer somente: "Isto é um veneno", mas é necessário dizer: "Proibido beber, os transgressores serão punidos pela lei". Assim mediante a ameaça da lei se protege a vida. Este é o princípio em que se baseia a lei e mesmo se é muito diverso daquele da consciência é, contudo indispensável para salvar a vida de quem é inconsciente.

Um exemplo da presença: uma pessoa que tem diante de si uma taça de veneno, mesmo que seja consciente e conheça bem o seu efeito, se não há uma contínua atenção pode acontecer que se distraia e o beba. Por isto se a consciência não está continuamente acompanhada pela presença é difícil que possa dar algum resultado.

No Mahayana, o princípio ao qual se dá a máxima importância, e é a essência mesma do ensinamento, é a união de vazio e compaixão. Na realidade, se não se possui a consciência inseparável da presença, não pode absolutamente nascer uma autêntica compaixão. É inútil fingir ser cheio de compaixão se não se sente realmente um sentimento de compaixão pelos outros. A este respeito há um provérbio tibetano que diz: "Para olhar os outros temos os olhos, mas para ver-se a si mesmo é preciso um espelho!" Para desenvolver internamente uma autêntica compaixão é necessário observar os próprios defeitos, reconhecê-los e colocar-se no lugar dos outros para descobrir qual é a sua verdadeira condição e o único meio para conseguir isto é possuir a presença da consciência.

Em caso contrário, mesmo se fingimos ter uma grande compaixão, mais cedo ou mais tarde surgirá uma ocasião que demonstrará como esta nunca nasceu verdadeiramente em nós.

Até que não seja uma pura compaixão não existe nenhum modo de abolir os limites e as atitudes sectárias. Todavia a muitos praticantes acontece que, progredindo na prática, chegam a considerar a si mesmos como uma ‘divindade’ e os outros como ‘espíritos ruins’. Deste modo não se faz mais que aumentar os próprios limites desenvolvendo o apego a si mesmos e a aversão pelos outros. Ou, mesmo se falam muito de Mahamudra8 e deDzogchen, na realidade tornam-se mais peritos e refinados no comportamento dos oito dharmas mundanos9. Este é o sinal concreto que em nós não nasceu uma verdadeira compaixão e nem mesmo a sua única raiz: a presença da consciência.

Por isto, sem tagarelar muito ou tentar parecer uma pessoa interessante, devemos fazer surgir em nós a presença da consciência e concretamente colocá-la em prática. Este é o ponto mais importante da prática do Dzogchen.

Dedicado aos discípulos da Comunidade Dzogchen.

Dzogchenpa Namkhai Norbu.

Boa sorte!

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Notas:

1. Kun-byedrgyal-po,que trauzidosignifica"O Rei que tudo cria"é o tantra principal do Sems-de ou

Série da Mente das escrituras do ensinarnento do Dzogchen.

2. Os seis estados de existência (rigs-drug) são as seis principais dimensões da visão kartnica,

causadas cada uma pelo prevalecer de uma determinada paixão. Estes são: o reino dos deva ou

divinidades, causado pelo apego; o reino dos asura ou semideuses, causado pelo ciúme; o reino

dos hoinens, causado pelo orgulho; o reino dos animais, causado pelo ofliscamento mental; o reino

dos preta ou espíritos famintos, causado pela avareza; o reino infernal, causado pela ira.

3. Padrnasambhava, cerca do oitavo século, é um dos protagonistas do Tantrismo e se acredita que

tenha sido um dos primeiros a introduzir o Budismo Tantrico no Tibet. E além disso reconhecido

como um dos principais Mestres na linhagem espiritual doDzogchen.

4. Se trata de práticas muito elaboradas características do Anuttaratantra, o caminho da

transformação dos constituintes psicofísícos do indivíduo na energia da sabedoria da iluminação. A

‘fase do desenvolvimento’ bskyedrim, inclui um processo muito gradual e acurado de visualização,

recitação de mantra e a utilização de gestos simbólicos mudra. A ‘fase do aperfeiçoamento’ rdzog-

rim, através da concentração interna sobre os nadis e sobre os chakras, tem o fim de portar o

praticante ao estado da contemplação.

5. O Prajnaparamita Sutra é um dos sutras fundamentais do Budismo Mahayana ou Grande Veículo.

Neste sutra vem exposta a doutrina da "vacuidade" shunyata ou seja a não existência intrínseca de

todas os fenômenos.

6. Os primeiros três são os elementos fundamentais do ensinamento Dzogchen: "modo de

ver" (Ita-ba) significa tomar consciência da própria condição;"rneditar" (sgom-pa) é a experiência

do estado natural da própria mente; o "comportamento" (spyod-pa) é a aplicação deste

conhecimento na vida cotidiana. Além destes três tem "o fruw' (bras-bu), ou seja, a realização total

do estado fora do dualismo.

7. Esta é uma subdivisão peculiar da tradição Dzogchen. Por tantra (rgyud) se entende um

ensinamento básico revelado diretamente pela dimensão do dharmakaya, o estado essencial de

todos os iluminados. Os agama (lung) se consideram os elementos transmitidos pela manifestação

do sambhogakaya, a dimensão da pureza da energia luminosa do indivíduo. Os upadesha

(manngag) são ensinamentos mais detalhados, derivados da experiência direta dos Mestres.

8. A Mahamudra (phyag-rgya chen-po) é o ponto de chegada das práticas do Anu tantra; é o

estado no qual, para o praticante, não existe distinção entre meditação e vida cotidiana. Neste

sentido corresponde ao estado do Dzogchen, mesmo se o caminho é diverso. Este conhecimento,

originariamente transmitido pelos siddhas da Índia, foi a seguir difundido no Tibet, principalmente

na escola Budista bka-rgyud-pa.

9. Os oito dharma mundanos (jig-rten chos-brgyad) são: ganho e perda, fama, má fama, louvor e

maledicência, felicidade e sofrimento.

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A essência do dzogchen

Namkhaï Norbu RinpocheExtrato dos ensinamentos dados durante o retiro de Marcevol, maio 1989,publicados no livro: "DHARMA la voie du Boudha - Mahamudra-Dzogchen"Tradução para o português: Karma Tenpa Dhargye

O famoso mestre Dzogchen N. Norbu Rinpoche expõe aqui um breve resumo da visão essencial da grande perfeição situando-a com relação à via tântrica. Na aproximação tântrica trata-se de transformar ou de transmutar a base em fruto pelas práticas do caminho, enquanto que no Dzogchen essencial semelhante à um espelho está em questão uma liberação onde base, caminho e fruto não são diferenciados.

O ensinamento do Dzog-Chen é um ensinamento principalmente ligado ao nível da mente, uma maneira mais direta de obter o conhecimento. Em geral, dizemos o ensinamento do estado da mente de Samantabhadra. Na tradição Nyingmapa, o verdadeiro ensinamento do Dzog-chen é chamado Ati-yoga. Há uma diferença entre a Anu-yoga, cujo objetivo final é chamado Dzog-Chene o Dzog-Chen da auto-liberação. Na auto-liberação, desde o início, a via, a base e o fruto, a realização, tudo é Dzog-Chen. Na linguagem de Oddiyana, isso se chama Ati-yoga. Ati significa primordial, a compreensão ou a natureza primordial. Chamamos também a via da auto-liberação. A via da auto-liberação não é nem a via da transformação nem a via da renúncia. Então é preciso saber o que significa auto-liberação.

Em geral temos uma idéia do bem e do mal; todas as nossas noções do bem e do mal e toda nossa visão dualista, consideramos que é nossa visão relativa ou visão impura. No tantrismo dizemos que transformamos a visão impura em visão pura. Temos então agora uma idéia de duas visões. Isso significa que alguma coisa não é válida. A visão impura é o samsara e o samsaranão é válido para nos encontrar no estado de contemplação: por esta razão o transformamos. Mas no Dzog-Chen dizemos Kun tu Bzangpo (em sânscrito Samantabhadra). Kun tu significa "todas as circunstâncias diferentes" e Bzangpo "bom". Porque? Que quer dizer bom? Isso não tem nada a ver com as noções de bom e mau da visão dualista, mas quando estamos em estado de contemplação, o estado de Dzog-Chen não existe nada de falso, de mau, nada a rejeitar, a que devamos renunciar ou então a transformar. Não há nada que não seja válido na contemplação. É o princípio que chamamos "Bzangpo" bom. É igualmente o estado de Dzog-Chen.

Podemos aprender pelo exemplo do espelho. Quando olhamos em um espelho podemos ver nosso próprio reflexo bem como o dos objetos que estão em frente ao espelho. Nesse momento quando consideramos que estamos a ponto de olhar no espelho, somos uma pessoa/sujeito e o espelho é o objeto e pensamos então: "Eu olho, há um reflexo": é a nossa condição de visão dualista. Neste caso aqui temos sempre a noção de bem e de mal. Mesmo que saibamos que o reflexo no espelho não é real, pensamos sempre que o objeto refletido é concreto para nós. Então nossa compreensão do fato que o reflexo no espelho é irreal não é senão uma compreensão intelectual. De toda maneira, temos sempre o apego, as tensões, os problemas, os conceitos, etc... e essa é nossa condição habitual. Mas se tivermos o conhecimento de nossa

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condição real, isso que chamamos Ati-yoga, através desta compreensão nos tornamos nós mesmos a natureza do espelho: não olhamos mais no espelho mas somos o espelho. Se formos o espelho tudo o que se reflete, bem ou mal, faz parte de nossa qualificação; isso que chamamos espelho tem a qualificação ou a potencialidade de refletir diferentes coisas, senão não seria um espelho.

Então se formos o espelho, se estivermos no estado do espelho, temos esta qualificação e manifestamos os reflexos. Todas as existências os corpos, as vozes, as mentes, os pensamentos as confusões, as paixões, tudo é semelhante aos reflexos, faz parte dos reflexos. Então se estivermos verdadeiramente no estado do espelho, todas as coisas não nos causarão nenhum problema, porque os reflexos não podem jamais condicionar a natureza do espelho e um espelho não tem jamais nenhum problema com os reflexos, ele não pergunta se um reflexo é bom ou mau, ele tem a qualificação de os manifestar e isso é tudo. Pois se estamos verdadeiramente no estado do espelho, o que significa que temos o conhecimento desta natureza, não há nada de ruim, é isso que chamamos auto-liberação: podemos auto-liberar qualquer coisa nesta natureza que é a nossa.

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O Caminho e a maneira de praticar

Namkhaï Norbu RinpocheTradução para o português: Maria Heleosina Ribeiro Pessôa

Não há nenhum conceito que possa definir a condição de "o que é"Mas a visão contudo se manifesta: tudo é bom.

Diz-se que a prática do Dzogchen está "além do esforço", e realmente ninguém precisa criar, modificar, ou trocar nada, mas apenas encontrar a si mesmo na verdadeira condição de "o que é". Mas pode acontecer que uma frase, que tem a intenção de indicar um estado além dos conceitos, se torne ela mesma um outro conceito, da mesma forma que se você perguntar a uma pessoa seu nome e ela responde que não têm nenhum nome, você irá talvez, incorretamente, chamá-la de "nenhum nome".

Os próximos dois versos dos Seis Versos Vajra explicam o significado do caminho e a prática do Dzogchen. A expressão "o que é" (ji bzhin há) é usada grandemente nos textos antigos de Dzogchen, e é sinônimo de "não corrigido" (ma bcos pa) e outros termos que denotam o estado verdadeiro, inalterado, não modificado e não corrigido. Corrigir, modificar, etc são todas funções características de nossas mentes duais, e assim quando alguém se encontra no estado não corrigido significa estar além da mente. No Dzogchen isto é verdadeiro apenas no estágio final da prática, tal como em outras tradições, mas por outro lado, a pessoa deve tentar entrar no estado de conhecimento de "o que é" desde o início.

No tantrismo, a introdução à natureza original da mente é o último estágio da prática, após os estágios de desenvolvimento e de conclusão. Mas no Dzogchen esta condição é introduzida diretamente, não apenas no nível da mente, mas também nos níveis de voz e corpo, porque, para ser integrado com a contemplação, todos os aspectos de nossa existência precisam estar neste estado não corrigido.

No O Grande Espaço de Vajrasattva (rDorje sems dpa’ nam mkha’ che), num dos principais textos da Série da Natureza da Mente, está escrito que, "Corrigir a condição do corpo a fim de encontrar um estado de contemplação não é aplicado no Dzogchen. Controlar a posição do corpo de alguém e manter as costas eretas não é contemplação, mas podem, de fato, tornarem-se obstáculos à contemplação". Como resultado de tais afirmações algumas pessoas têm acusado o Dzogchen de negar o valor da meditação sentada, ou do controle da respiração e da postura do corpo, etc. Mas Dzogchen não nega nada, e quando se fala em deixar o corpo "não controlado", isto significa simplesmente deixar o corpo permanecer na condição autêntica, não corrigida, na qual não é necessário modificar ou melhorar nada. Isto porque, desde que todas as nossas tentativas de corrigir o corpo vêm da mente racional, elas são todas falsas e artificiais.

Na Série de Instruções Secretas, são explicadas quatro maneiras de continuar em contemplação, conhecidas como as quatro maneiras de "deixar exatamente como está". A primeira que se refere ao corpo, é dita "como uma montanha". Isto se refere a que, mesmo que uma montanha possa ser mais

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alta ou mais baixa, ou de diferentes formas, é alguma coisa que, contudo sempre permanecerá estável, e nunca muda de posição. Da mesma forma, ao longo de um mesmo dia assumimos diferentes posições de acordo com as circunstâncias variadas em que nos encontramos, e todas estas posições são igualmente adequadas à contemplação, sem a necessidade de altera-las. Se a posição em que me encontro é a deitada, no momento em que encontro a mim mesmo no estado de "o que é", então esta é a minha posição natural, exatamente como a posição imóvel de uma montanha. Não é necessário que eu me levante imediatamente, coloque minhas costas eretas, e cruze minhas pernas. O mesmo é verdadeiro se eu me encontro em contemplação no momento de beber uma xícara de café. Não é necessário que eu corra para o meu quarto, feche a porta, e sente em meditação. Todos os pontos acima são úteis no aprendizado de como integrar a contemplação à vida diária.

A fim de alguém ser capaz de realmente integrar sua prática à vida diária, umas poucas sessões de meditação sentada por dia não são suficientes, porque nós vivemos um dia de vinte e quatro horas e uma ou duas horas de prática não dará os resultados corretos. "Integrar", por outro lado, significa entender a condição de "o que é" em relação à própria vida, sem corrigi-la, de modo que cada circunstância da vida da pessoa se torna uma ocasião de prática.

Pode-se, então, perguntar, "Uma vez que no Dzogchen é ensinado que a pessoa não deve corrigir nada, isto significa que é inútil efetuar práticas de respiração, visualização, etc, que estão realmente baseadas em corrigir uma coisa ou outra?" Mas em Dzogchen "não corrigir" não significa nem negar nem combater qualquer método de prática. Contudo o praticante deve estar aberto e relaxado em relação aos vários métodos, e saber como usa-los, sem ser condicionado por eles.

Algumas vezes pode ser que uma grande importância seja dada a detalhes da posição do corpo de uma pessoa, de suas mãos, etc, e à cor e forma da divindade a ser visualizada, de tal forma que o verdadeiro significado do que a pessoa esta fazendo seja esquecido. Posição, respiração, e visualização, trabalhando com os três aspectos de corpo, voz e mente, são somente os meios para nos capacitarem a entrar no estado relaxado de contemplação. Existem milhares de métodos de prática, muitos dos quais podem parecer muito semelhantes entre si, assim se a pessoa apenas olha para o exterior, mais do que para o significado essencial, pode ficar perturbada por dúvidas e contradições. Mas todos esses problemas e conflitos surgem da mente, que é como uma pessoa limitada que é ajudada e auxiliada por cinco ou mesmo mais pessoas limitadas aos cinco sentidos. Entretanto quando alguém verdadeiramente conhece o estado de contemplação, além do esforço, e além de julgamento, também será capaz de ultrapassar estes problemas em relação aos métodos de prática.

...

A prática do Dzogchen pode começar pela fixação em um objeto, a fim de acalmar os pensamentos da pessoa. Então ela relaxa a fixação, dissolvendo a dependência do objeto, e fixa o olhar no espaço aberto. Então, quando ela consegue tornar o estado calmo estável, é importante trabalhar com o movimento dos seus pensamentos e energia da pessoa, integrando este movimento com a presença da contemplação. Neste ponto a pessoa está

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pronta para aplicar a contemplação ao seu cotidiano. O sistema de prática descrito é característico das Séries da Natureza da Mente, mas isto não quer dizer que no Dzogchen o indivíduo precisa necessariamente começar com fixação e meditação em um estado calmo. Nas Séries de Espaço Primordial, e nas Séries de Instruções Secretas, por exemplo, a pessoa entra diretamente na prática da contemplação. Particularmente no primeiro, existem instruções muito precisas de como encontrar o estado puro de contemplação. No último, por outro lado, as explicações concernem principalmente a como a pessoa continua em contemplação em todas as circunstâncias.

...

No Dzogchen não é necessário transformar a visão impura em visão pura, trabalhando com a imaginação da pessoa. Todas as visões de alguém são uma qualidade inerente à claridade natural do próprio indivíduo. Se nós vemos uma casa feita de pedra, e nós tentamos imagina-la transformada em uma dimensão de luz, nós estamos apenas brincando com nossas mentes, porque a casa é como ela é, mesmo se ela for uma parte de nossa visão cármica, é verdadeiramente uma manifestação de nossa própria claridade. Então por que deveríamos bloqueá-la, ou transforma-la? Problemas surgem somente quando entramos em julgamento se a casa é bonita ou feia, pequena ou grande, etc. Então, com nossas mentes racionais, é muito fácil entrar em ação e produzir carma.

...

É importante manter a presença na contemplação, sem corrigir o corpo, a voz, ou a mente. O indivíduo precisa encontrar-se numa condição relaxada, mas os sentidos precisam estar presentes e alertas, porque eles são as portas para a claridade. A pessoa relaxa sem esforço nenhum, abandonando toda tensão com respeito à posição do corpo, respiração, e pensamentos, apenas mantendo uma presença vívida.

Quando alguém começa a praticar, pode parecer que a confusão de seus pensamentos está aumentando, mas isto é na verdade devido ao relaxamento da mente. De fato, este movimento de pensamentos sempre existiu; é que apenas agora a pessoa está consciente deles, porque a mente ficou mais clara, da mesma maneira que, enquanto o mar estiver agitado, não se pode ver seu fundo, mas quando ele se acalma pode-se ver o que está lá embaixo.

Quando nos tornamos conscientes do movimento de nossos pensamentos, precisamos aprender a integra-los com presença, sem segui-los ou deixar-nos distrair por eles. O que queremos dizer com "deixar-nos distrair"? Se eu vejo uma pessoa e tomo uma antipatia imediata por ela, isto significa que eu permiti a eu mesmo ser pego num julgamento mental; isto é, eu me distrai. Se eu mantiver a presença, por outro lado, por que eu deveria tomar antipatia por alguém que eu vejo? Aquela pessoa também é realmente parte de minha própria claridade. Se eu realmente entender isto, todas as minhas tensões e conflitos se dissolverão, e tudo se estabilizará num estado de completo relaxamento.

Existem dois defeitos principais freqüentemente encontrados na prática, e eles são a sonolência e a agitação. Algumas vezes, por exemplo, quando nós estamos engajados na prática nós tanto ficamos sonolentos, como nós nos achamos tão agitados que nossos pensamentos não nos dão paz por nem um momento, e parece impossível encontrar um estado calmo. Existem práticas,

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que a pessoa pode aplicar como antídoto para esses problemas, mas se nós soubermos como relaxar em nós mesmos podemos ultrapassar estas dificuldades naturalmente sem tal esforço.

Uma pessoa que está começando a praticar geralmente prefere retirar-se para um lugar ermo, porque ela precisa encontrar um estado de calma e equilíbrio mental. Mas quando alguém começa a ter verdadeira experiência de estado de contemplação ela necessita integrá-la às atividades diárias de caminhar, conversar, comer, etc. Um praticante Dzogchen nunca necessita se afastar da sociedade e retirar-se para meditar no topo de uma montanha. Isto é especialmente impróprio na nossa sociedade moderna, na qual todos temos que trabalhar para comer e viver normalmente. Se nós soubermos como integrar nossa contemplação à nossa vida diária, entretanto, manifestaremos progresso em nossa prática do mesmo modo.

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O BUDHA NÃO ESTÁ MAIS DISTANTE QUE A PALMA DE NOSSA MÃO.de Namkhaï Norbu Rinpoche Extraído do livro "Le Yoga du Rêve"Composto por Mip’am Jamyang Dorje RinpocheTraduzido do tibetano por Khenpo Palden Sherab, Khenpo Tséwong Dongyal, Deborah Lockwood, Michael Katz.Traduzido para o português por Karma Tenpa Dhargye

Nota do editor: o texto seguinte que trata da via dzogchen, é traduzido aqui pela primeira vez. O autor, o grande mestre de meditação Mip’am Rinpoche (1846-1914), tentou mostrar a "verdadeira natureza da mente".

I – Ensinamento Quintessencial sobre o tema da Mente;

O Budha não está mais Distante que a Palma de Nossa Mão.Inclino-me diante de Padmasambhava.E diante do ilustre Lama que é a emanação do ser de sabedoria Manjushri1 (e semelhante a) todos os budhas seus filhos. Em atenção daqueles que desejam (aprender) a meditação (sobre) o reconhecimento do sentido profundo da mente,Eu vou explicar brevemente o início da via dos conselhos do coração2.É necessário, no início, confiar no ensinamento quintessencial de um Lama que (possui) a experiência da realização.Se não penetrarmos (na experiência do) ensinamento do Lama,Toda a perseverança e o esforço consagrados à meditação equivalerão a disparar uma flecha na escuridão.Por esta razão, renunciem a todas as aproximações corrompidas e artificiais da meditação.O ponto crucial é de colocar (sua consciência) no estado não-fabricado3, instalado em si-mesmo; o rosto da sabedoria sem véu que é distinto do envoltório da mente (quer dizer daquela que se identifica).Reconhecendo (esta sabedoria), atingimos o ponto essencial.O sentido de "permanecer desde o início" é o estado natural, não-fabricado.Tendo desenvolvido a convicção intima de que tudo o que surge é a essência do Dharmakaya4, não rejeitem (este conhecimento).(Deixar-se levar) pelas explicações discursivas (sobre o tema da via), é como correr atrás de um arco-íris.Quando as experiências meditativas se manifestam como conseqüência da consciência lúcida do nobre estado não-fabricado, não é pelo meio indireto de uma concentração exterior (mas de preferência) mantendo a não-ação5.Estupendo, (a maneira como) chegamos à este conhecimento!

II – No momento bem-aventurado onde (atingimos) o estado intermediário

A constância do estado inabalável é mantida pela lembrança do estado espontaneamente estabelecido da "mente-em-si".Se colocar neste estado é suficiente.(Se obstáculos são produzidos) pelas nuvens que se elevam da análise mental que cria a distinção entre o sujeito e o objeto da meditação.(Lembremo-nos) então da natureza da mente que desde o início é não-

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fabricada – "a mente-em-si", vasta como o céu.(Para) relaxar, libertemo-nos da estreiteza e dissipemos o apego à (esses conceitos).O conhecimento espontâneo estabelecido não consiste em pensamentos que fluem em todas as direções.Ele é vacuidade límpida e radiante, distinta de toda avidez mental.(Este estado) não pode ser descrito por exemplos, símbolos ou palavras.Percebemos diretamente a consciência (última) por meio da sabedoria do discernimento.O nobre estado da consciência lúcida, imparcial, vazia não mudou, não muda e não mudará.(Ela é) nosso próprio rosto, mascarado pelas impurezas dos conceitos repentinos, diversas vagabundagens quiméricas.Como é triste!Que ganharemos em nos prender a uma miragem?Qual o objetivo de perseguirmos esses sonhos diversos?De que serve se agarrar ao espaço?Por conceitos variados, colocamos a cabeça ao contrário.Coloquem de lado essa falta de sentido esgotante e detenhamo-nos na esfera primordial.O céu verdadeiro é (saber) que samsara e nirvana não são mais que uma exibição ilusória. Mesmo que hajam exibições muito variadas, consideremos que elas têm o mesmo sabor.(Ter-se estabelecido) em uma relação íntima com a meditação permite lembrar-se da consciência semelhante ao céu;Que é consciência nua, situada em si mesma, vibrante, livre dos conceitos.(A mente natural) está além do conhecimento ou do não-conhecimento, da felicidade ou do sofrimento.A felicidade nasce (deste) estado de relaxamento/repouso total.Então, no movimento ou na imobilidade, no ato de comer ou de dormir, nós conhecemos permanentemente este estado, e tudo é a via.(Assim), "vigilância" [atenção] designa esta consciência semelhante ao céu. (E mesmo) no período que segue a sessão de meditação (formal), elaboramos muito menos conceitos.

III – Nos momentos bem-aventurados do estado último,

Relativamente às quatro ocasiões (mover, ficar imóvel, comer e dormir)6,As marcas dos hábitos tenazes, a partir das quais surgem todos os conceitos e os sopros cármicos da mente, são transformados. (Nós) possuímos a capacidade de nos recolher na cidadela da sabedoria imóvel e inata. O que chamamos samsara7 não é mais que um conceito. A majestosa sabedoria é livrar-se de todo conceito.Então, tudo o que surge se manifesta como totalmente perfeito.O estado da nobre clara luz é constante – tanto à noite como de dia.Ela é outra que a distinção entre se lembrar e não se lembrar. Outra que desviar-se de seu justo lugar pela advertência do terreno fundamental que impregna toda coisa.Então, não realizamos nada pelo esforço.Sem nenhuma exceção, todas as qualidades inerentes às vias e as bases – clarividência, compaixão, etc. – surgem espontaneamente8,Crescente como a relva que chega à maturidade no verão.

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Liberto de apreensão e de vaidade, liberado de esperança e medo,É a grande felicidade não-nascida, eterna, vasta como o céu.Essa nobre yoga é (semelhante) ao Garuda lúdico no céu da Grande Perfeição imparcial.Maravilhoso!Confiando no ensinamento quintessencial dum mestre,O meio de manifestar esta sabedoria da essência do coraçãoÉ realizar as duas acumulações (de mérito e sabedoria)9 d’uma maneira tão ampla como o oceano é vasto.Então, sem dificuldade, (a realização) será colocada na sua mão.Espetacular!Em conseqüência, possam todos os seres sensíveis, pela virtude desta explicação, chegar a ver Manjushri juvenil, que é atividade compassiva de nossa própria consciência, mestre supremo, essência do diamante (o Dzogpa Chenpo da clara-luz).Tendo percebido isso, nesta vida mesma, possamos atingir a iluminaçao perfeita.

Notas:

1. Manjushri: o Bodhisattva da Sabedoria. Segundo a mitologia budista, Manjushri foi, em uma encarnação anterior, o rei Amba que fez o voto de se tornar um bodhisattva para o bem de todos os seres.

2. Os conselhos do coração: o ensinamento do coração do lama. É um ensinamento essencial condensado, destinado à meditação e apresentado pelo lama aos seus discípulos de coração.

3. O estado não-fabricado: a consciência que surge no instante da percepção; uma pura presença que aparece sem modificação, não engendrada por causas. Para mais detalhes, ver The Cycle of Day and Night, de Namkhaï Norbu.

4. Dharmakaya: dharma significa a totalidade da existência; kaya é esta dimensão. A base essencial do ser cuja essência é a claridade e a luminosidade e no seio da qual todos os fenômenos são percebidos como despidos de existência intrínseca.

5. A experiência meditativa se manifestando por intermédio da não-ação: a meditação do Dzogchen é não-conceitual e realizada simplesmente pelo reconhecimento sem esforço de nossa própria natureza verdadeira, não condicionada. A ação ou o esforço para realizar a meditação são contrários à presença relaxada que caracteriza a prática dzogchen.

6. Mover-se, permanecer imóvel, comer e dormir: as quatro atividades, englobando todas as ações possíveis, no meio das quais um praticante dzogchen tenta manter sua consciência lúcida.

7. Samsara: existência cíclica marcada pelo nascimento, a velhice, a doença, a morte e o renascimento. Os seres sensíveis, dominados pelo desejo, a ira e a ignorância, continuam a migrar através dos seis mundos do samsara (o mundo dos deuses, dos semi-deuses,, dos humanos, dos animais, dos espíritos famintos, e dos seres infernais) segundo seu carma.

8. Qualidades inerentes que surgem espontaneamente: como conseqüência natural da meditação dzogchen, os praticantes avançados podem

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desenvolver qualidades transcendentais tais como uma grande sabedoria, compaixão, a clarividência etc.

9. As duas acumulações: a acumulação de mérito por meio das boas ações e da sabedoria por intermédio da contemplação. Se bem que os dois sejam importantes sobre a via do Dharma, o Budha disse que se conseguimos manter o estado de contemplação (a acumulação de sabedoria) durante o tempo que é preciso a uma formiga para ir da extremidade do nariz de uma pessoa a sua testa, isso seria mais benéfico que uma vida inteira de acumulação de méritos pela ação virtuosa e a generosidade.

10.Mip’am Rinpoche: celebre mestre budista tibetano do séc. XIX que começou por ser aluno de Patrul Rinpoche. Mip’am foi o autor de comentários originais sobre o dzogchen e sobre outras escrituras budistas importantes.

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PRÁTICA DA NOITE

Texto extraído do livro: "O Ciclo do Dia e da Noite"de Namkhaï Norbu RinpocheTraduzido para o português por Karma Tenpa Dhargye

O yoga da noite consiste em duas práticas. Prática da tarde, que se executa no momento de adormecer, e da manhã no instante do despertar. Quando dormimos, os sentidos estão em repouso. Praticaremos antes de adormecer por que os sentidos estão ainda todos presentes. Os relaxamos em um estado de contemplação. Não os permitimos entrar em um estado condicionado; deixamos as coisas tais quais são sem nos sentir coagidos. O indivíduo deve também integrar sua prática de concentração ao sono. Que quer dizer "meditação concentrada", dhyana? Quando nos fixamos de maneira precisa e com uma grande concentração sobre um objeto antes de lentamente relaxar sua atenção, praticamos samatha ou shine, "acalmar a mente". Quando trabalhamos de preferência com os movimentos dos pensamentos, isso é que chamamos vipassana ou lhagtong. Dhyana designa essa espécie de meditação. Para esta prática da noite, um mínimo de atenção e vigília da mente se mostra necessária. Pois é preciso integrar esta concentração ao sono e adormecer em um estado de concentração.

Como procedemos? Bem antes de adormecer, visualizamos um A branco [ ] entre nossas sobrancelhas, ou uma pequena pérola esférica (tiglé) parecida com um arco-iris de luzes das cinco cores. Visualizamos bem claramente: o A branco [ ] ou a esferinha não são maiores que um grão de ervilha. Na upadesha dzogchen, visualizamos no centro do coração de preferência à entre as sobrancelhas; porque essa última visualização cria uma impressão de presença excessiva, susceptível de impedir o adormecimento. De nossa parte, entretanto, adotaremos a visualização entra as sombrancelhas, porque ela permite controlar automaticamente todas as nossas energias vitais ou "prana" (rlung). Se parecer difícil visualizar o A [ ] nesse lugar, procederemos a alguns arranjos. O praticante deve proceder com discernimento porque é o individuo que comanda a prática e não ao contrário. É inútil realizar esta visualização se ela nos impede o sono. Ela não deve ser muito brilhante, o que nos impediria de adormecer facilmente. Podemos ainda, no lugar do A [ ], visualizar um bindu (tigle), uma pérola de luz irisada análoga as penas da cauda do pavão. Se nós pudermos visualizar esse bindu pentacolorido, isso será de melhor efeito sobre o controle dos elementos. Começaremos, pois por fixar nossa atenção sobre o objeto da meditação, depois relaxaremos ligeiramente nossa atenção; sem esse relaxar não conseguiremos dormir.

Quando nós adormecemos em um estado onde nossos seis agregados sensoriais se encontram relaxados e alertas, nossa presença não é manchada pela fuligem dos pensamentos discursivos e a clara luz natural se manifesta. Quando nos fixamos ou nos concentramos num objeto de meditação único, não há lugar para pensamentos estranhos. Mas quando nos relaxamos um pouco, é fácil de surgir pensamentos, como ao individuo de se deixar condicionar por eles. Nós não deveríamos tentar bloqueá-los, mas se nos falta presença, eles nos distrairão. Seremos então prisioneiros desses pensamentos e o sono terá que esperar. Mas se permanecemos na presença de um estado relaxado, o sono virá facilmente. Em outras palavras, nós teremos integrado essa pura

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presença ao sono, isso que leva o nome de "clara luz natural". Nos encontraremos então em presença da real condição da existência, o dharmata, livre da distração dos pensamentos discursivos.

Entretanto, se podemos fazer a visualização, mas não conseguimos dormir, como proceder então? Quando vamos nos deitar, temos ainda pensamentos porque a mente continua a funcionar. Também, quando aparece um pensamento, nesse instante de reconhecimento muito preciso, nos encontramos presentes com uma atenção clara a tudo que surge. Continuamos nessa presença clara e límpida, apesar da intrusão de outros pensamentos. Mas não vemos nada neles que poderíamos dizer que se trata de calma, ou então do movimento dos pensamentos. Esse procedimento não impedirá o individuo de dormir. Mas se saturando a mente de pensamentos e se deixando prender à todas as espécies de coisas por distração, seremos incapazes de adormecer. Todavia, o estado de presença não afetará nosso sono. Nos encontramos pois num estado de presença alerta e vibrante. Estando então estabelecidos em uma presença tranqüila, nós dormimos.

O processo de adormecimento [gnyid-log] é ele mesmo a circunstância que permite entrar na claridade da real condição da existência. O funcionamento de todos os nossos sentidos, quando estamos em um estado de presença, se encontra inteiramente absorvido no dharmadatu. Até o adormecer completo, é possível, nos encontrar presentes nesse estado de contemplação.

Adormecendo, nos livramos das marcas kármicas do corpo material, das marcas kármicas da visão e das marcas kármicas do funcionamento da mente. Durante o estado de vigília, essas marcas kármicas se manifestam respectivamente como nosso corpo material, como as aparências exteriores que nós percebemos e como o funcionamento das nossas mentes. Porque dizemos nós que somos desembaraçados? Os muros bem sólidos de uma peça, por exemplo, constituem limites materiais que nós não podemos livremente atravessar. Mas quando estamos presentes no estado de rigpa, não somos condicionados pelos corpos materiais. Quando estamos presentes neste estado, há meios de ultrapassar estes limites e de nos reencontrar na real condição de existência. Como é isso possível? Entre o momento em que se dorme e o momento em que começamos a sonhar, a mente não funciona e nos encontramos na presença da real condição da existência. Neste estado, teremos a experiência de um certo grau de fusão com o que chamamos a clara luz natural. Se for o caso, seremos capazes sem muito esforço de ter a experiência de sonhos conscientes que poderemos controlar o conteúdo. De outro modo, no instante da morte, seremos capazes de morrer mantendo uma presença e sabedoria totais. E quando morremos guardando a presença, todas as aparições que surgem notchönyi bardo, surgem simplesmente como a manifestação da perfeição espontânea, e as reconhecemos como tais. Essas qualidades espontaneamente perfeitas que aparecem então são essas do sambhogakaya. O adormecer é um processo análogo àquele da morte, se bem que, dominando o estado de sonho nesta vida, atingiremos o domínio da morte e do estado do bardo. Adormecer no estado da clara luz natural equivale a experiência do tchönyi bardo.

A etapa seguinte é a aparição do sonho. O estado de sonho é análogo ao sipai bardo. Chamamos esse último "bardo do futuro", porque ele representa o desencadeamento do processo de renascimento. Quando somos conscientes de nos encontrar no bardo, há muitas coisas a fazer para melhorar a situação.

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Assim, do mesmo modo que no estado de sonho, no bardo, não somos condicionados por um corpo material e, portanto não temos todas nossas faculdades sensoriais. Graças as práticas que tenha efetuado enquanto vivo, o praticante se encontrará em uma melhor posição, e ele terá adquirido uma maior claridade que um ser comum preso nas experiências do pós-morte. Do fato de sua maior claridade no bardo o praticante terá a capacidade de compreender sua condição e o que está por vir. Ele não se sentirá desamparado, cegamente empurrado e jogado daqui para lá pelo vento de seu karma. Mas esta capacidade só é possível se estamos conscientes e presentes durante o bardo. É a mesma coisa para os sonhos lúcidos, se bem que podemos utilizar o estado de sonho para adquirir esta capacidade graças a uma prática quotidiana. No estado de vigília, é preciso passar pela porta para sair de uma peça, mas no estado de sonho podemos atravessar muros, mesmo se são aparentemente sólidos. Essa experiência do estado de sonho favorece enormemente o triunfo sobre os apegos de nossa vida quotidiana, porque em sonho nós fazemos diretamente a experiência da insubstâncialidade e da irrealidade de todas as coisas.

Quando nos encontramos no estado da clara luz natural, não temos pensamentos discursivos criadores de distrações. Nosso estado de presença se absorve em sua "mãe", a clara luz natural, e nós nos reconhecemos no estado de dharmata, a real condição da existência. Diríamos os reencontros de um filho único e sua mãe após uma longa separação. Assim falamos da clara luz "filha" que fizemos a experiência na prática durante a vida, e da clara luz "mãe" que fazemos a experiência aqui no momento de adormecer, e muito particularmente no momento da morte. O que nos interessa, é o principio de reintegração da energia. Pelo fato da prática da clara luz natural, ela chegará durante o período que segue à contemplação, e no caso que nos ocupa, saber, o estado de sonho, onde nós começamos a fazer a experiência da consciência de sonho: reconhecemos que os sonhos são sonhos sem sair do sono. Assim, a prática da clara luz natural é suficiente, e não temos necessidade alguma de nenhuma outra prática especial, de nenhum outro yoga. Nos encontramos libertos de toda ilusão e alucinação, os sonhos surgirão como amigos benfeitores e nos ajudarão a manifestar nossa dimensão da existência na sua totalidade, do mesmo modo que sua sabedoria primordial.

Há duas maneiras de encarar essa vitória sobre a ilusão. De uma parte, reconhecendo que os sonhos são sonhos enquanto dormimos, tomamos consciência da natureza ilusória do estado de sonho, e, durante o estado de vigília, tomamos mais e mais consciência da natureza ilusória de toda coisa na vida quotidiana. Por outro lado, não somos mais escravos dos sonhos e do sono. Quando dormimos, temos tendência a ser condicionados pelos sonhos segundo os mesmo esquemas que nos condicionam na vida quotidiana. Esta prática faz, pois do sonho um método da descoberta do verdadeiro conhecimento e, do mesmo modo, um meio de desenvolver a manifestação de nossa dimensão e de nossa sabedoria primeira. Eis, em resumo a prática da noite.

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PRÁTICAS PRELIMINARES

Texto extraído do livro: "O Ciclo do Dia e da Noite"de Namkhaï Norbu RinpocheTraduzido para o português por Karma Tenpa Dhargye

Os praticantes do dzogchen deveriam começar por purificar o fluxo de nossos pensamentos, nossa corrente de consciência, abrandando-os com a ajuda das quatro meditações que promovem uma mudança na nossa maneira de encarar a vida, a saber:

I.A dificuldade de renascer no mundo humano;

II.A brevidade da vida;

III.A universalidade do sofrimento no samsara;

IV.Karma: causas e efeitos.

Concretamente, isso quer dizer que, qualquer que seja nossa prática, devemos permanecer conscientes. Se já conhecemos algumas práticas, as prosternações, por exemplo, mas que, por distração ou por preguiça, nós não as fazemos nunca, é necessário buscar a razão. Nós não praticamos porque somos inconscientes, porque ser consciente, aqui, é não perder seu tempo. Ser consciente, também quer dizer que deveríamos nos dar conta do valor dos ensinamentos, e da ocasião única que nos oferece esta vida humana. É desta tomada de consciência que vem o reconhecimento dos efeitos que se seguem à perda desta ocasião única que representa a preciosa existência humana. Eis tudo o que se encontra implícito nisso que entendemos por "ser consciente".

Quando se trata de explicar essas quatro meditações, começamos geralmente por mostrar a importância de ter renascido entre os humanos. Para estudar os ensinamentos preliminares, o ngöndro, é preciso abordar, em todos os detalhes, cada uma das dezoito características d’uma existência humana dita "preciosa". Mas igualmente, deveríamos estar conscientes que, mesmo se tomamos renascimento humano sobre o planeta Terra, esta situação não durará sempre; ela não é eterna. Nos sutras há uma história de mercador que se encontra a mercê das circunstâncias sobre uma ilha toda de pedras preciosas no meio do vasto oceano e que regressa de mãos vazias porque não havia reconhecido nada. Quando por fim morrermos e nos encontremos nobardo, o estado que segue a morte e precede o renascimento, se vivemos sem a menor consciência, se não apreciamos nunca o valor da vida humana nem reconhecemos sua impermanência, nossa condição, então, não será melhor do que a de um cão. Em geral, encontramos nos textos budhistas uma analise muito detalhada da impermanência do mundo e do indivíduo. Entretanto, o essencial aqui não consiste em memorizar o maior número possível de ensinamentos, mas em permanecer consciente, em cada instante, da impermanência universal.

Isso não impede que, mesmo consciente da brevidade da vida, se exercemos alguma ação positiva à altura de nossa preciosa existência, acumulemos causas d’um feliz renascimento próximo. Se continuarmos tolamente a acumular causas negativas, estaremos ignorando a realidade do karma, que é

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de uma importância extrema, então é seguro e certo que experienciaremos seus efeitos, negativos também. Esse processo não tem outro resultado do que a transmigração e o sofrimento em um ou outros dos renascimentos possíveis. Quando tomamos consciência das causas e dos efeitos de nossos atos, assim como da universalidade do sofrimento no samsara, não há dúvida que seremos então motivados para praticar os ensinamentos do dharma, a via segura e certa da liberação e do despertar.

Exercitar-se nessas quatro meditações, isso quer dizer, sobretudo tentar estar presente em todo momento e consciente em todas as circunstâncias. Isso não significa somente ler livros budistas e ainda menos se comprazer em discussões intelectuais as mais sofisticadas. Alguns entre nós, por exemplo, estudam um texto tibetano do ngöndro, depois o praticam durante um longo período de tempo. Não há nada de mal nisso: o ngöndro são práticas muito importantes. Abordamos essas quatro meditações estudando as condições necessárias para uma preciosa existência humana – uma existência humana, pois, que reunirá todas as condições necessárias à prática do dharma.

Quais são essas condições? É preciso de início escapar às oito condições que não oferecem a menor ocasião, o menor lazer para praticar o dharma. Um renascimento nos infernos, no reino dos pretas – ou espíritos famintos -, no reino dos animais, ou entre os bárbaros que ignoram o dharma, no reino dos deuses cuja vida é desmedidamente longa, ou então no reino dos seres que tem visões fundamentalmente perversas, ou numa era que nenhum budha dá a honra de seu aparecimento, ou enfim, um renascimento entre os homens, claro, mas em um corpo cujos sentidos e faculdades não funcionam. Essas oito condições são ausências de liberdade, e seus contrários, terão ocasiões favoráveis. Dez outras ocasiões favoráveis são em seguida necessárias, cinco dependendo do indivíduo e cinco não dependendo dele. Essas últimas concernem a aparição d’um budha nesse mundo: um budha veio, ele ensinou o dharma, seu dharma existe ainda, empreendemos a prática, e há outros seres vivos em todo mundo suscetíveis de se tornar objetos da compaixão do praticante. As cinco condições que dependem do indivíduo resultam de sua situação: é um ser humano, nasceu num país onde o dharma é acessível, ele possui todos os sentidos, ele não vive de expedientes imorais ou criminosos, e ele tem fé no seu mestre e nos ensinamentos de seu mestre. Nenhuma dessas condições deve faltar.

Para terminar, quando os adeptos do ngöndro fazem um retiro, seu mestre lhes ensina a meditar sobre cada um desses pontos, um por um, durante alguns dezoito dias. É isso que muitos praticantes têm feito, e é bem isso que é preciso fazer: meditar sobre cada uma dessas condições e sobre a argumentação que é estabelecida, uma após outra, para melhor conhecer as dezoito condições necessárias à uma existência humana verdadeiramente preciosa. E nisso que eles se exercitam.

No dzogchen, entretanto, a consciência não funciona dessa maneira. Não há argumento à fornecer nem à confirmar. Essas demonstrações, esses esquemas de análise foram criadas por mestres posteriores. Quando o budha Shakyamuni explicava o valor d’uma vida humana e sua indubitável impermanência, ele recorria a diferentes imagens: a nuvem n’um céu de outono, a torrente na montanha, a representação teatral, a chama tremulante d’uma lamparina de manteiga, e assim em diante. Tendo extraído essas comparações dos sutras, que são as palavras do budha, os eruditos estabeleceram uma lista e suas

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análises criando um método de raciocínio sobre a impermanência. Não foi o próprio budha que apresentou essas comparações sob forma de demonstrações. Ele tentava somente conduzir os diferentes seres à uma certa compreensão da existência humana, e por isso recorria a métodos diferentes. O principio aqui, não é, pois meditar sobre esses diversos argumentos, os quais tendem a provar a impermanência de todas as coisas, em nossa vida, mas de manter constantemente presente à mente esta consciência de impermanência de todas as coisas. Pouco importa como em nossa vida atual, o momento em que satisfazemos essas dezoito condições – não é isso que conta! Deveríamos, sobretudo estar conscientes, de momento a momento, da ocasião única que oferece um renascimento humano, afim de não deixar passar em vão. Nossa existência humana vale mais que a de um gato ou de um cachorro, na medida em que o ser humano sabe pensar e falar. O ser humano tem de longe uma maior capacidade de prejudicar que os gatos e os cães: fabricando bombas atômicas, por exemplo. Mas os seres humanos têm também a capacidade de realizar o despertar no curso de sua vida, de tal modo seus poderes são muito superiores àqueles dos animais. Eis o verdadeiro sentido da preciosa existência humana – seu potencial. A consciência de nossa verdadeira condição, bem como nossos limites e nossas capacidades, eis o sentido da atenção e da consciência [dran-rig].

Se for preciso estudar nos textos a totalidade dessas análises, é aí que o trabalho se complica, não somente para os tibetanos mais ainda, senão mais, para os ocidentais. E é assim que freqüentemente perdemos o verdadeiro sentido das coisas. É isso que é preciso evitar. Revela-se, pois necessário simplificar as coisas se queremos colocar o dedo sobre o que é verdadeiramente importante. Ser consciente não se resume somente em praticar as quatro meditações que nós mencionamos; em princípio, isso significa não estar distraído tentando fazer o melhor em qualquer circunstância. E é assim que treinamos em ficar conscientes e presentes. É esse o sentido do "treinamento da mente"; e as quatro meditações que acabamos de ver, destinadas à nos fazer mudar de atitude, constituem as práticas preliminares comuns.

Em seguida vem as práticas preliminares extraordinárias, que têm por função nos fazer acumular karma meritório e de nos purificar de nosso véus. Para isso, é preciso tomar refúgio nas três jóias, cultivar a mente do despertar (bodhichitta), meditar sobre Vajrasattva recitando seu mantra, oferecer mandala e nos unir a todos os mestres no "guru yoga". De todas essas práticas, a mais importante é o "guru yoga", ou "yoga do mestre".

Os ensinamentos como o tantra e a grande perfeição se ligam à uma transmissão. A transmissão permite ao indivíduo compreender seu estado primordial ao nível da experiência imediata, por intermédio de palavras ou de símbolos, ou diretamente de mente para mente. O mestre tem por papel conduzir o praticante à reconhecer que a natureza de sua mente é comparável à um espelho, e que os pensamentos que aparecem são comparáveis aos reflexos que surgem no espelho. Nossa pura presença, nossa consciência intrínseca [rig-pa], é análoga à este poder que tem o espelho de refletir tudo o que passa diante dele, tanto o belo como o feio. Esses reflexos aparecem como propriedades, ou qualidades, do espelho. Mas, do fato de que não percebemos a natureza do espelho, seu poder, tomamos os reflexos que aparecem como entidades sólidas, exteriores e reais. Assim condicionados por esses reflexos,

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agimos de acordo com essa conclusão errônea para cair na transmigração. É o mestre que mostra ao praticante a diferença que existe entre a mente, quer dizer os pensamentos, e a natureza da mente. Quando começamos a apreender esta distinção, podemos seriamente falar de transmissão de conhecimento, um conhecimento que não é somente compreensão intelectual, mas experiência real e concreta.

No dzogchen, a palavra yoga não significa somente "união", mas designa, sobretudo aquele ou aquela que será rica de conhecimento de seu estado natural, dito de outro modo aquele ou aquela que se encontrará na presença do conhecimento de sua condição primordial chamada rig-pa, ou pura presença. Esta consciência de nossa pura presença inata, ou consciência intrínseca, é o nosso mestre verdadeiro. Esta condição tem por contrário a ignorância. Não deveríamos jamais nos permitir abandonar este estado de consciência. Os quatro momentos ou ocasiões, aos quais se faz referencia nos texto tibetano são os momentos quando comemos, quando andamos quando estamos sentados e quando dormimos. Como já dissemos, na grande perfeição, o essencial, é de não ficar distraído e de perseverar na presença desta consciência vigilante.

Tal é a raiz da prática.

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A vida de Garab Dorje

Texto extraído do livro: "O Cristal e a via da Luz– Sutra, Tantra e Dzogchen"de Namkhaï Norbu RinpocheCompilação e apresentação: John ShaneTraduzido para o português por Karma Tenpa Dhargye

Diferentemente do Budha Shakyamuni, que viveu antes dele, porém igualmente a Padmasambhava, que apareceu depois, Garab Dorje não manifestou um nascimento comum. Um indivíduo realizado pode escolher a forma, o momente e o lugar de seu nascimento, de uma maneira que parece impossível do ponto de vista limitado da visão dualista. A mãe de Garab Dorje, Sudharma, que era filha do rei de Örguien, havia tomado os votos monásticos. A criança que ela teve foi concebida depois de uma visão meditativa que a deixou encantada, porém também atônita. Estava envergonhada e, temendo que as pessoas pensassem mai dela ou acreditassem que a criança era um fantasma porque havia nascido de uma virgem, o escondeu em forno com brasas dos que se utilizavam para queimar madeira a fim de produzir carvão. Quando, cheia de remorsos, regressou alguns dias depois, encontrou a criança radiante e saudável brincando nas cinzas. Desde então aceitou-se que a criança era uma encarnação milagrosa de um grande mestre e, em conseqüencia, foi educado no palácio do rei. Espontâneamente e sem que o ensinassem, como soubesse de memória, começou a recitar tantras essenciais a partir de sua grande claridade, e o rei achou tão prazerosa sua companhia que o chamou Praharsha Vajra, que na língua de Örguien (que era sinilar ao sânscrito) significa "Vajra Prazeroso". Este nome traduzido ao tibetano é "Garab Dorje".

Com sete anos, quando os mais doutos pandits do reino se reuniram para um debate, Garab Dorje uniu-se a eles discutindo e mostrando uma compreensão muito superior à de seus interlucotores e derrotando-os fácilmente. Em continuação lhes transmitiu os ensinementos dzogchen. Assim pois, em pouco tempo de difundiu até terras muito afastadas a notícia de que opaís de Örguien, uma criança considerada como a reencarnação de um grande mestre estava ministrando um ensinamento que se encontrava além da lei de causa e efeito.

Quando a notícia chegou a Índia, os pandits budistas deste país se sentiram perturbados e decidiram que o mais sábio entre eles – que resultou ser Majushrimitra, um grande especialista em lógica e debate – deveria dirigir um grupo que visitaria o descarado, desavergonhado e presunçoso joven e o derrotaria em debate. Muito bem, quando Majushrimitra enfrentou o garoto, não pode encontrar erro algum em seu ensinamento e se fez evidente que a realização deste ia muito além de sua própria compreenção intelectual e que se tratava na verdade de um grande mestre. Então se arrependeu profundamente e confessou a Garab Dorje a motivação errônea que havia tido ao vir ve-lo, a única intenção era derrotá-lo em debate. Garab Dorje perdoou Majushrimitra – o maior dos eruditos budistas de seu tempo - e procedeu a dar-lhe mais ensinamentos, pedindo-lhe em troca que escrevesse um texto colocando o raciocínio com que Garab Dorje o havia derrotado. O texto que Majushrimitra escreveu então existe ainda em nosso dias.

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Ainda que, na medida em que se apresentava como um ensinamento que se encontrava além da lei fundamental do cárma ou "causa e efeito", o ensinamento de Garab Dorje parecia contradizer o dharma budista, na verdade estava em perfeito acordo com as mais altas expressões deste. Com efeito, o famoso sutra Prajnaparamita hridaya, que constitui o resumo essencial dos vastos sutras do Prajnaparamita, ilustra o princípio do shunyata ou "vacuidade de auto-natureza" – a ausência de existência intrínseca e independente que postula o budismo – enumerando os principais elementos com os quais construimos nossa realidade e declarando que cada um deles é vazio. Assim pois, o sutra afirma a vacuidade das funções sensoriais e seus objetos, afirmando que o olho carece de existência independente e que, da mesma maneira, "entes" tais como "ouvído", o "nariz", as faculdades de ver, ouvir e de cheirar, e assim sucessivamente, não existem na verdade, de maneira intrínseca. Em continuação o texto nega a auto-existência dos elementos centrais dos ensinamentos do Budha e, ao faze-lo, declara – em perfeito acordo com Garab Dorje - que desde o ponto de vista do vazio não há cárma nem lei de causa e efeito.

O sutra nos diz que, frente a uma multidão de seres de várias espécies, o Budha mesmo pediu ao grande bodisatvaAvalokiteshvara que transmitisse esse ensinamento ao grande arhant Shariputra. Ao final do sutra, Shakyamuni elogia muito a sabedoria expressa pelas palavras de Avalokiteshvara e diz que ao escutá-las todos se regozijaram. Em conseqüencia, não cabe dúvida de que no coração mesmo dos ensinamentos do Budha há um ensinamento além da relação causa-efeito e de qualquer limite.

Garab Dorje continuou ensinando durante o resto de sua vida e teve muitos discípulos, tanto entre os seres humanos como entre as dakinis. Finalmente, antes de que seu corpo se dissolvesse na essência dos elementos e entrasse na manifestação do Corpo Luz, deixou o resumo de seus ensinamentos, conhecido como os "Três Princípios".

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O Estado Primordial

Texto extraído do livro: "O Cristal e a via da Luz– Sutra, Tantra e Dzogchen"de Namkhaï Norbu RinpocheCompilação e apresentação: John ShaneTraduzido para o português por Karma Tenpa Dhargye

Na essência, o ensinamento dzogchen se ocupa do Estado Primordial que, desde o começo, tem constituído a natureza intrínseca de cada individuo. A vivência de dito Estado é a vivência de nossa verdadeira condição: somos o centro do universo, embora não no sentido egoísta próprio de nossa experiência comum. A consciência egocêntrica comum não é outra coisa que a gaiola limitada da visão dualista que exclui a vivência de nossa verdadeira natureza: a vivência do espaço do Estado Primordial. Descobrir o Estado em questão é compreender o ensinamento dzogchen, cuja transmissão tem função de comunicar dito Estado: quem o descobriu e se estabeleceu nele o transmite àqueles que estão presos na condição dualista. Inclusive o nome "dzogchen", que significa "Grande Perfeição", se refere à autoperfeição deste estado, fundamentalmente puro desde o começo, no qual não há nada que aceitar ou rejeitar. Para entrar no Estado Primordial e apreende-lo diretamente, ninguém necessita conhecimentos intelectuais, culturais ou históricos. Por sua própria natureza, dito Estado está além do alcance do intelecto. No entanto, quando a gente encontra um ensinamento que não conhecia anteriormente, logo quer saber onde surgiu, de onde veio, quem o ensinou e assim sucessivamente. Ainda que o anterior seja perfeitamente compreensível, não se pode dizer que o dzogchen mesmo pertença à cultura de nenhum país. Por exemplo, há um tantra dzogchen chamado "Dra Talyur Tsawe Guiü"que afirma que o ensinamento dzogchen se encontra também em outros treze sistemas solares diferente do nosso; em conseqüência, nem sequer podemos dizer que o ensinamento dzogchen pertença ao planeta Terra. Como podemos afirmar que o ensinamento dzogchen pertença a alguma cultura nacional particular? Embora seja certo que a tradição dzogchen foi transmitida através da cultura do Tibet, que a conservou desde o começo da historia conhecida desse país, não podemos concluir, no entanto, que o dzogchen seja tibetano, uma vez que o Estado Primordial não tem nacionalidade e se encontra em todas as partes. No entanto, também é certo que em todos os lugares os seres sensíveis entraram na visão dualista que oculta a vivência do Estado Primordial. E quando os seres realizados entraram em contato com eles, somente raras vezes tem sido capazes de comunicar o Estado em questão de maneira completa sem palavras ou símbolos; em conseqüência, tiveram que usar como meio de comunicação a cultura própria de cada lugar. Assim pois, freqüentemente tem sucedido que a cultura e os ensinamentos se encontram entrelaçados e, no caso do Tibet, isto é certo a tal ponto que não é possível compreender a cultura do país sem uma compreensão dos ensinamentos.

Isto não significa que, o ensinamento dzogchen se tenha difundido amplamente no Tibet e chegado a ser bem conhecido por todos; a verdade é bem ao contrário. Dito ensinamento sempre esteve reservado, pois é tão direto que as pessoas lhe tinham um pouco de medo e, em conseqüência, em certa medida sempre houve que mante-lo em segredo. No entanto, não há dúvida de

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que ele constitui a essência de todos os ensinamentos tibetanos. Inclusive na antiga tradição bön – tradição em grande parte chamânica, que é nativa do Tibet e que antecedeu a chegada do budismo da Índia – existia um ensinamento dzogchen. Assim pois, ainda que os ensinamentos dzogchen não pertençam ao budismo nem ao bön, podemos considera-lo como a essência de todas as tradições espirituais tibetanas, tanto dentro da primeira de ditas religiões como dentro da segunda. Entendendo isto, e tendo em conta o fato de que as tradições espirituais do Tibet constituem a essência da cultura tibetana, podemos fazer uso dos ensinamentos dzogchen como uma chave para uma compreensão dessa cultura na totalidade. Com efeito, todos os aspectos da cultura em questão surgiram como facetas da visão unificada dos mestres realizados das distintas tradições espirituais. A claridade do Estado Primordial – essência da experiência de muitos mestres – funcionou como um cristal no coração da cultura, que projetou as formas da arte e iconografia, medicina e astrologia tibetanas, como brilhantes raios ou reflexos. Se compreendermos a natureza do cristal, compreenderemos melhor os raios refletidos que dele emanaram.

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OS ENSINAMENTOS DZOGCHEN E A CULTURA DO TIBET

Texto extraído do livro: "O Cristal e a via da Luz– Sutra, Tantra e Dzogchen"de Namkhaï Norbu RinpocheCompilação e apresentação: John ShaneTraduzido para o português por Karma Tenpa Dhargye

Se dermos uma explicação do dzogchenA cem pessoas interessadasIsso não é suficiente,Porém se dermos uma explicação uma pessoa que não está interessadaIsso é demais.

Hoje em dia existe muita gente que não tem o mínimo interesse em assuntos espirituais, falta o interesse que é reforçado pela visão materialista que impera em nossas sociedades. Se perguntarmos a pessoas desse tipo em que crêem, a resposta pode inclusive ser "não creio em nada". Tais indivíduos pensam que toda religião está baseada na fé, a qual não parece muito melhor que a superstição, e que as religiões em geral não são aplicáveis ao mundo moderno. Pois bem, o Dzogchen não exige a adoção de crença alguma, nem pode ser considerado uma religião. Este sistema se limita a sugerir ao indivíduo que se observe a si mesmo e assim possa descobrir sua verdadeira condição. Nos ensinamentos Dzogchen se considera que o indivíduo funciona em três níveis interdependentes, que são o corpo, a fala ou energia, e a mente. Nem sequer aqueles que afirmam não crer em nada podem dizer que não crêem em seu próprio corpo, pois este é algo básico para sua existência, e os limites e problemas do mesmo são claramente tangíveis. Sentimos frio e fome, sofremos dor e solidão e passamos uma grande parte de nossas vidas tratando de superar nossos sofrimentos físicos.

O nível da energia ou fala não é tão fácil de perceber e, em conseqüência, sua compreensão não é tão universal. No Ocidente, inclusive os médicos, em sua maioria, o ignoram completamente e tratam de curar todas as enfermidades atuando em um nível puramente material. Então, se a energia de um indivíduo está alterada, nem o seu corpo nem sua mente estarão equilibrados. Algumas enfermidades, como o câncer, são causadas por perturbações da energia e não se podem curar simplesmente com a cirurgia ou os medicamentos. De forma similar, muitas psicoses, neuroses e outros problemas mentais são causados por uma má circulação da energia. Em geral, nossas mentes são muito complicadas e estão muito confusas. Se tentarmos obter uma certa calma, é provável que não consigamos, a nossa energia nervosa e agitada torna isso impossível. Assim pois, para enfrentar estes problemas do corpo, fala e mente, os ensinamentos dzogchen apresentam exercícios que atuam sobre cada um desses três níveis, os quais podem integrar-se em nossa vida cotidiana e portanto podem mudar a totalidade de nossa experiência fazendo-nos passar da tensão e confusão à sabedoria e à verdadeira liberdade. Os ensinamentos dzogchen não são meramente teóricos; eles são, sobretudo práticos e, ainda que sejam muito antigos como a natureza do corpo, a energia e a mente dos

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indivíduos não mudaram com o passar do tempo, seguem sendo tão aplicáveis à situação humana de hoje como o foram no passado.

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VISÃO DE CONJUNTOTexto extraído do livro: "Risos de diamante"de Namkhaï Norbu Rinpoche e Arnaud PozinTraduzido para o português por Karma Tenpa Dhargye

A sabedoria contida em poucas palavras, pode ser mesmo ainda menor, pois que é dito, no Ensinamento Dzogchen, que ela é inteiramente concentrada nas Seis Liberações que são, de fato, Seis silabas: Á A HA SHA SA MA.

Estas contêm a natureza deste Ensinamento, que pode se reduzir à sua mais simples expressão como se estender por todo um leque de práticas se julgarmos necessário, segundo as circunstâncias.

O Dzogchen enquanto tal, temos muito freqüentemente a tendência de esquecer, é um Ensinamento que se desenvolveu ao longo das linhagens do chamanismo Bön1 e do Budismo Tibetano que o considera como o nono Yana, quer dizer a mais alta via. Não podemos, portanto considerar que ele é tipicamente tibetano, pois que provém da região de Oddyana, nem especialmente chamânico, pois que está presente no budismo, atravessou a Índia e chegou ao Tibet graças particularmente a Vimalamitra, o tradutor, e Padmasambhava, o Mestre querido dos tibetanos. O encontramos mesmo até na China, com Shri Simha. Ele foi de fato transmitido de maneira ininterrupta através de diversas Linhagens de Visionários. Não podemos mesmo dizer que se trata de um ensinamento de origem humana, pois que a tradição relata que sobre os oitenta e quatro milhões de Tantras do Dzogchen simultaneamente transmitidos em treze dimensões diferentes, somente seis milhões e quatrocentos mil penetraram na dimensão humana. E não se trata aqui senão de uma alusão à Transmissão Oral/Escrita, que não leva em consideração as Transmissões Simbólicas e Diretas.

O Dzogchen, A Grande Perfeição ou Grande Plenitude, como é chamada pelos tibetanos, é, pois um Ensinamento atípico e multicompativel, tendo por origem o Budha Primordial, Samantabhadra, que o transmitiu a Vajrasattva, que por sua vez o transmitiu a Garab Dorje, primeiro mestre humano desta linhagem, seis séculos antes de J.Cristo.

A CHAVE DAS SEIS LIBERAÇÕES

Os seis milhões e quatrocentos mil Tantras introduzidos na dimensão humana estão inteiramente condensados no Canto Vajra2 - prática fundamental da contemplação - que se condensa por sua vez nas Seis Silabas, que resumem, pois a essência do Dzogchen e permitem integrar todas as situações da vida e da morte à contemplação.

Na sua forma fundamental, chamamos os Seis Espaços ou as Seis Esferas de Samantabhadra, ou ainda os Seis Modos em que o Vazio se Manifesta Espontaneamente. De um ponto de vista relativo, nós as chamamos indiferentemente as Seis Liberações ou as Seis Silabas.

As Seis Liberações se condensam por sua vez nos Três Vajras OM A HUM

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(corpo, palavra e mente) que se unificam na prática quintessencial do A branco.

Como nos lembra Namkhai Norbu Rinpoche nos ensinamentos do capítulo I, as Seis Silabas estão não somente em relação com a Liberação dos Seis Lokas, as Seis Dimensões da Existência, mais também com a liberação das Seis Emoções perturbadoras predominantes entre os seres. Elas estão igualmente conectadas aos Seis Sentidos - incluindo a mente -, razão pela qual é dito que não importa qual seja o contato sensorial com elas, quer as vejamos, as toquemos, as ouçamos, degustamos ou sentimos as substâncias sobre as quais elas tem sido repetidas, ou simplesmente que pensemos nelas - basta para semear as sementes do despertar no continuum mental dos seres que entram em contato com elas.

Há aí um ponto fundamental com relação à visão geral que foi desenvolvida no ocidente e no oriente durante séculos e segundo a qual o sistema sensorial é concebido seja como "pecado" seja como gerador de ilusão. No Dzogchen, ao contrário, os Seis Sentidos são integrados à contemplação e preenchem assim sua função autêntica de Vias do Conhecimento.

Um outro aspecto incomum desse estado de fato é a imediaticidade, por exemplo, desde que vejamos as Seis Silabas uma primeira conexão se estabelece por ela mesma entre nós e a essência deste Ensinamento. Isto não significa, bem entendido, que realizamos todo entendimento de um só golpe de vista, mas que um acesso se abre e se oferece, sem que sejam requeridas preliminares de longas macerações.

Trata-se de uma dimensão bem mais que anedótica, porque ela remonta de fato ao testamento de Garab Dorje - primeiro Mestre humano da Linhagem Dzogchen, que Namkhai Norbu Rinpoche transmite ainda hoje em sua forma original:

1. Introdução Direta2. O discípulo não tem mais dúvida.3. O discípulo Continua no Estado

No início da relação entre Mestre e Discípulo, é dada a Transmissão do Estado Primordial. Do mesmo modo que, desde que vejamos as Seis Liberações, um primeiro contato favorável se estabelece com nosso próprio Estado Primordial através da Transmissão Direta. Esta imediaticidade, que não tem necessidade nenhuma de preliminares, provém do fato que o Estado Primordial do indivíduo está constantemente presente, mesmo se não temos sempre consciência disso. É por isso que podemos dizer que o Ensinamento Dzogchen, no seu conjunto, tem por função favorecer a consciência da presença.

MEDITAÇÃO E CONTEMPLAÇÃO

Muitos de nós utilizamos indiferentemente esses dois termos que revestem, portanto, nos Ensinamentos Dzogchen, um significado radicalmente diferente. Quase em cada retiro, Namkhai Norbu Rinpoche toma cuidado de precisar as diferenças.

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A meditação implica, com efeito, uma atividade da mente como, por exemplo, a visualização, a prece, a repetição de mantras, o aperfeiçoamento da personalidade ou do estado de saúde, o bem estar dos outros, etc. A contemplação, quanto a ela, apesar de não excluir a meditação, consiste simplesmente na consciência do Estado Primordial do individuo. A consciência da presença da realidade tal como ela é, é sem contestação, a característica maior do Ensinamento Dzogchen.

As Seis Liberações, a maneira do Canto do Vajra, dos Três Vajras e do A branco, figuram entre os métodos essenciais, próprios ao Dzogchen, que permitem entrar diretamente no Estado de contemplação e de se Auto-Liberar das artimanhas, truques e falsificações dos sentidos, das emoções e da mente comum, pela visão direta da realidade nua.

O Dzogchen não é, pois uma filosofia porque ele não apresenta nenhum sistema doutrinal, nem uma religião, pois que ele não presta nenhum culto a um Deus todo-poderoso, nem um sistema qualquer de representação do mundo, pois que seu método próprio - A Auto-Liberação - permite justamente se liberar de todos os sistemas e condicionamentos inclusive os espirituais.

Esta é razão pela qual ele foi praticado por séculos por seres de todas as naturezas e não somente por filósofos, religiosos ou intelectuais. Nenhuma necessidade aqui de se tornar tibetólogo, monge budista ou lingüista. Nenhuma necessidade de cessar de ser como somos. A contemplação consiste justamente em estar em contato com nosso Estado Primordial.

1. O Chamanismo Bön, presente no Tibet ha milhares de anos antes da implantaçao do Budismo, foi objeto de uma pesquisa aprofundada da parte de Namkhaï Norbu Rinpoche publicada sob o título Drung, Deu and Bön, Library of Tibetan Works and archives, 1995.

2. Le Chant du Vajra, Namkhaï Norbu Rinpoche, tradução Arnaud Pozin, edições Altess, 1993. Ver capítulo III.

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O DZOGCHENDo livro "Dzogchen e Tantra"de Namkhaï Norbu RinpocheCollection Spiritualités Vivantes, Editions Albin Michel.Traduzido para o português por Karma Tenpa Dhargye

O Dzogchen não é nem o Sutra nem o Tantra, a base da transmissão do Dzogchen é a "introdução" e não a "manifestação" como no Tantra.

Suas práticas principais trabalham diretamente no nível da mente para conduzir o indivíduo ao "estado primordial", que é introduzido pelo Mestre, estado em que continuamos até a realização da "Grande Transferência" ou do "Corpo de Luz".

Se bem que o ensinamento Dzogchen funcione ao nível da mente, existe também práticas da fala e do corpo, mas elas são secundarias com relação às práticas da contemplação não-dual, utilizadas para conduzir o praticante a esse estado.

Somente esta contemplação pode verdadeiramente ser chamada de Dzogchen, mas o praticante pode utilizar todas as práticas de qualquer nível dos Sutras e dos Tantras, se elas se revelarem necessárias para eliminar o que está criando obstáculos para o estado de contemplação.

O método específico do Dzogchen é chamado a Via da autoliberação. Para aplica-lo, não há nada a que devamos renunciar, nada a purificar nem a transformar. A visão cármica que aparece, qualquer que seja, é utilizada como a Via. O grande mestre Padampa Sangye disse: "Não são as circunstâncias aparecendo como uma visão cármica que condicionam uma pessoa no estado dualista; é a própria pessoa que permite ao que aparece de condiciona-la". Para romper com esse apego da maneira a mais rápida e a mais efetiva, a capacidade da mente de se autoliberar deve ser colocada em ação.

O termo autoliberação não deve, entretanto nos fazer crer que exista uma espécie de "eu" ou de "ego" à liberar. É, um postulado fundamental ao nível do Dzogchen, o de que todos os fenômenos são vazios de natureza própria."Autoliberação", no sentido do Dzogchen, significa que tudo o que se manifesta no campo da experiência do praticante é deixado livre de se manifestar tal como é, sem ser julgado 'bom' ou 'mal', 'belo' ou 'feio'. E, nesse exato momento, se não há apego, sem esforço e mesmo sem vontade, o que surge, pensamento ou evento aparentemente exterior, se libera por si mesmo.

Praticando assim, as sementes da arvore envenenada da visão dualista não terão nunca a ocasião de germinar e ainda menos de criar raízes. Assim, o praticante vive sua vida de uma maneira comum, sem ter necessidade de regras além de sua própria consciência, mas ele permanece sempre na unidade primordial e integra a esse estado tudo o que aparece e que experimenta, e sem que nenhuma atitude exterior revele que ele está praticando. É isso que entendemos pela palavra Dzogchen que significa

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"Grande Perfeição", e é isso que entendemos por contemplação não-dual, ou simplesmente contemplação.

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O DZOGCHEN COM RELAÇÃO AOS VÁRIOS NÍVEIS DO CAMINHO BUDISTATexto extraído do livro: "O Cristal y la Via de la Luz"de Namkhaï Norbu RinpocheTraduzido para o português por Karma Tenpa Dhargye

Abandona todas as ações negativas,Atua sempre com perfeita virtude,Obtém o domínio totalDe tua própria mente;Esta é a essência do Budha.

Budha Shakyamuni

Se surge um pensamentoObserva o que está surgindo;Se não surgem pensamentosObserva este estado calmo,Ambos momentos são igualmente vazios.

Garab Dordje

Para alcançar uma compreensão do Dzogchen será útil considera-lo em relação à vários outros caminhos espirituais existentes dentro do espectro budista. Ainda que cada um deles tenha sido ensinado para benefício dos seres com um nível particular de capacidade, todos são igualmente preciosos.

Todos os caminhos em questão têm um objetivo comum: a superação do problema que surgiu quando o indivíduo entrou no dualismo, desenvolvendo um espúrio "eu objetivo" ou "ego" que experimenta o mundo como algo separado de sí, externo e objetivo, e que em cada momento trata de manipular esse mundo com o objetivo de obter satisfação e segurança. Na verdade, jamais se poderá alcançar satisfação e segurança desta maneira, já que a causa do sofrimento e da insatisfação não é outra que a sensação fundamental de estar incompleto que é conseqüencia inevitável de encontrar-se no estado dual e, ainda mais, todos os fenômenos aparentemente externos em que tentamos basear nossa satisfação e nossa segurança são transitórios ou impermanentes.

Budha shakyamuni foi um indivíduo totalmente realizado que manifestou um nascimento humano na Índia, nos sec. V a.C, com o objetivo de poder ensinar outros seres por meio de suas palavras e de seu exemplo. Como o sofrimento é algo muito concreto, que todo mundo conhece e quer evitar na medida do possível, o Budha falou sobre ele no seu primeiro ensinamento, as "Quatro Nobres Verdades". A primeira verdade nos exhorta a descobrir o fato de que sofremos, assinalando a existência da insatisfação básica e inelutável que é inerente à nossa condição.

A Segunda Nobre Verdade explica a causa da insatisfação, que é o estado de

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dualidade e a ansia insasiável que lhe é inerente: o sujeito valoriza seus objetos e tenta agarrá-los por todos os meios e, por sua vez, esta ansia afirma e sustenta a ilusória existência do sujeito como uma entidade separada da totalidade integrada do universo.

A Terceira Nobre Verdade ensina que o sofrimento cessará se superarmos o dualismo e alcançarmos a reintegração, de modo que não nos sintamos separados da plenitude do universo.

Finalmente, a Quarta Nobre Verdade explica que há um caminho que conduz à cessação do sofrimento, que é descrito pelo conjunto dos ensinamentos budistas.

Embora todas as tradições reconheçam a existência do problema básico do sofrimento, seus métodos para enfrentá-lo e conseguir que o indivíduo recupere a vivência da unidade primordial são diferentes.

A tradição hinayana do budismo o "caminho da renúncia", ensinado pelo Budha sahkyamuni em sua forma humana é expresso mais tarde em forma escrita no que se conhece como os sutras. A tradição em questão considera o ego como uma árvore venenosa, e o método que aplica poderia ser comparado com escavar para arrancar uma a uma as raízes desta árvore. O indivíduo tem que superar todos os hábitos e tendências que se consideram negativas e obstáculos para a liberação. Em conseqüencia, neste nível há muitas regras de conduta, estabelecidas por votos, que regulam todas nossas ações. O ideal é o do monge ou da monja, que toma o máximo número de votos; muito bem, independentemente de que sejamos monges ou praticantes laicos, se considera a nossa forma de ser comum como algo impuro a que devemos renunciar. Trabalhando da maneira descrita, mediante o desenvolvimento de vários estados de meditação devemos recriarnos como indivíduos puros que transcenderam as causas do sofrimento, ou seja, como arhats que não voltam ao ciclo de nascimentos e mortes na existência condicionada.

Do ponto de vista do mahayana, perseguir desta maneira somente a própria salvação e tentar transcender o sofrimento enquanto os outros continuam sofrendo, não é precisamente ideal. No mahayana considera-se que se deve trabalhar por um bem maior que o próprio, antepondo ao desejo de alcançar para sí mesmo a realização, o desejo de que todos os demais seres se realizem, e inclusive voltando constantemente ao ciclo de sofrimento para ajudar a outros a trancende-lo. Quem pratica desta maneira é chamado de bodhisatva.

Embora o hinayana ou "veículo menor" e o mahayana ou "veículo maior" pertençam ambos ao caminho da renúncia, seus enfoques característicos são diferentes. Posto que para cortar uma a uma as raízes da árvore se investe muito tempo, no mahayana a pessoa se concentra basicamente em cortar a raiz principal, de modo que as outras raízes sequem por si mesmas. A forma de cortar a raiz principal é trabalhar para descobrir a vacuidade essencial, tanto do sujeito como de todos os objetos, e desenvlver a compaixão suprema. Cabe assinalar que enquanto no mahayana se postula e se deve descobrir a vacuidade tanto do sujeito como de seus objetos, no hinayana somente se postula e deve se descobrir a vacuidade do ego.

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Enquanto que no hinayana é imprescindível governar cada um de nossos atos mediante votos. No mahayana o tipo de intenção por trás de nossos atos é considerada mais importante que a natureza dos atos mesmos. Há uma história que ilustra muito bem esta diferença de enfoque. "Um rico mercador que era discípulo de Budha foi com um grande número de mercadores e servos a uma ilha buscar algumas das gemas pelas quais a ilha era famosa. A bordo do barco, durante a viagem de regresso, o mercador se inteirou de que um dos mercadores planejava matar o resto dos passajeiros, que eram centenas, com o objetivo de roubar o carregamento de jóias. O mercador, que conhecia o homem e sabia que, com efeito, este era capaz de matar toda aquela gente, se perguntou que fazer a respeito e, finalmente, apesar de que ele havia recebido de Budha um voto que lhe proibia de tirar a vida de qualquer outro ser, não teve outra alternativa que matar ao assassino-ladrão-em-potencial.

Apesar de que não havia tido outra alternativa para salvar seus companheiros, o mercador tinha uma terrível sensação de culpa pelo que havia feito e, em conseqüencia, tão logo regressou a seu país foi ver Shakyamuni para confessar-lhe sua má ação. No entanto, este lhe disse que não havia feito mal, já que a intenção não havia sido matar senão salvar e proteger aos outros e, mais ainda, posto que de fato havia salvo a vida de centenas de pessoas e também havia salvo ao ladrão do terrível carma da matar aquele grande número de pessoas, assim como das conseqüencias inevitáveis de tão má ação, o mercador havia levado a cabo uma boa ação". Ao dar tanta importância às intenções que há atrás de nossas ações, o mahayana considera que toda prática deve realizar-se em benefício dos demais.

O budismo zen é um caminho do mahayana. Muito bem, posto que freqüentemente de diz que o zen é um caminho não-gradual, muita gente pensa que deve ser o mesmo que o dzogchen, que também não pode ser considerado gradual. No entanto, tantos os métodos dos sistemas em questão como os resultados obtidos mediante a aplicação dos mesmos são fundamentalmente diferentes.

Podemos dizer que os dois níveis do caminho da renúncia - o hinayana e o mahayana - trabalham, sobretudo ao nível do corpo. O tantrismo, ao contrário, trabalha sobre o nível da energia ou "fala".

É evidente que a energia é menos concreta que o corpo e menos fácil de perceber. Como é mais difícil entender a energia e seu funcionamento que compreender o simples fato do sofrimento, a capacidade que se requer para praticar o tantrismo é superior a necessária para praticar o caminho da renúncia. Embora o termo sânscrito tantra e seu equivalente tibetano guiü, chegaram a denotar os textos principais que contêm os ensinamentos tântricos, o verdadeiro sentido da palavra é "continuidade"2: todos os fenômenos são vazios, porém seguem manifestando-se. Todos os métodos tântricos trabalham com esta continuidade, tomando como fundamento e ponto de partida a vacuidade de todos os fenômenos que os sutras nos levam a descobrir. (Como veremos mais adiante, também no ensinamento dzogchen há uma continuidade entre a Base, o Caminho e o Fruto do ensinamento: o Fruto é a plena presença da Base, e o Caminho não é mais que continuar nessa presença.

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Do ponto de vista do ensinamento dos sutras, a dimensão relativa é um obstáculo que temos que renunciar com o objetivo de descobrir o nível absoluto, que corresponde a vacuidade. Ao contrário, o tantrismo utiliza o relativo para acelerar o progresso no caminho que nos leva além da dimensão em questão, e sua atitude com relação às paixões as quais num nível sútrico se deve renunciar, é a expressa por um ditado tântrico: "enquanto mais madeira-paixões tenhamos, mais fogo-realizações obteremos".

Existem tantras externos e internos, que também se chamam tantras inferiores e superiores. Ambos empregam a visualização como método principal, porém os tantras externos ou inferiores começam trabalhando ao nível da conduta externa do praticante a fim de conseguir uma purificação de seus pensamento e ação que o prepare para receber a Sabedoria. Assim pois, os tantras externos começam com o que se chama caminho de purificação, que constitui o nível inferior do vajrayana ou "Veículo Indestrutível".

O nível superior do vajrayana é o caminho de transformação que começa com o terceiro e supremo dos tantras externos, e inclui os três tantras internos. Igualmente aos externos, os tantras internos tomam como fundamento e ponto de partida a vacuidade de todos os fenômenos, porém usam principalmente o yoga interno que trabalha sobre o sistema de energia sutil do organismo a fim de provocar uma transformação da dimensão total do praticante, que se converte na dimensão pura do individuo realizado {Yidam} que se visualizou. Estes métodos foram ensinados por Budha em um "corpo de manifestação" pertencente ao Sambhogakaya e não no corpo físico, e também por meio de outras manifestações da dimensão em questão.

A transmissão do tantra se recebe originalmente através de uma manifestação da dimensão Sambhogakaya que se apresenta a um mestre que tem claridade visionária necessária para percebe-la, e o método de prática a ser aplicado utiliza a manifestação correspondente. Uma vez que a pessoa é iniciada na prática por um mestre, mediante a visualização e a reintegração da própria energia sutil, o indivíduo segue o exemplo da transmissão original e se manifesta como deidade, entrando na dimensão pura do mandala. Então a pessoa descobre por si mesma o sambhogakaya, transcendendo a dimensão mundana dos elementos pesados, que são transformados em suas essências. Quando a pessoa morre, entra na dimensão da luz e da cor que constituem a essência dos elementos e, nesse estado purificado, ainda que a pessoa não esteja ativa no sentido individual, segue sendo capaz de beneficiar continuamente outros seres. Diz-se que o praticante tântrico desenvolvido é como um filhote de águia, que pode voar tão pronto rompe a casca do ovo: no mesmo momento em que a pessoa morre, sem entrar no bardo ou estado intermediário, se manifesta como a divindade de cuja prática conseguiu resultados durante sua vida. Esta realização é claramente diferente da simples cessação do ciclo de nascimento e morte que se persegue na prática do nível sútrico. Muito bem, apesar de que o veículo tântrico de transformação é mais rápido que os veículos do caminho da renúncia, os quais produzem seus resultados depois de muitas existências, na vida diária é muito difícil desenvolver o controle sobre a energia interna e o poder de concentração necessários para levar a sua culminação o processo de transformação próprio do tantrismo: para desenvolver as mencionadas faculdades se precisam muitos

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anos de retiro solitário. Ao contrário, o dzogchen não é nem sutra nem tantra; a base para sua comunicação é a Introdução ao Estado Primordial e não em transformar-se em uma manifestação, como se faz no tantrismo. As práticas principais do dzogchen trabalham diretamente no nível da Mente para permitir ao indivíduo descobrir o Estado Primordial, ao que é introduzido diretamente pelo mestre, e continuar nele até a obtenção da Grande Transferência ou o Corpo de Luz. Cabe mencionar que, tal como na realização a que conduz o tantrismo difere das que se obtém como resultado de aplicar as práticas dos veículos do sutra, a Grande Transferência e o Corpo de Luz são próprios dos ensinamentos dzogchen e não correspondem as realizações das práticas dos veículos do sutra e do tantra. Estes níveis não serão discutidos aqui, porém no capítulo sobre o Fruto do ensinamento dzogchen.

Embora, como vimos, o dzogchen trabalha principalmente sobre o nível da Mente, os ensinamentos do veículo em questão também comunicam práticas que funcionam no nível da Fala e no nível do Corpo. No entanto, estas são utilizadas para levar o praticante ao Estado de não-dualidade da Contemplação e são secundárias em relação à prática da contemplação não dual. Ainda que somente esta última prática possa ser propriamente chamada dzogchen, um praticante deste veículo pode empregar práticas de qualquer dos níveis do sutra e do tantra se achar necessário a fim de superar os obstáculos que possam bloquear o Estado de Contemplação.

Devido às características comuns de seus métodos, o dzogchen é conhecido como o caminho da autoliberação. Para aplica-lo não temos que renunciar a nada, nem purificar ou transformar nada; o que surja por si mesmo como parte de nossa visão cármica é utilizado como caminho. O grande mestre Pa Dampa Sanguie disse uma vez: "O que condiciona uma pessoa, mantendo-a no estado dualista, não são as circunstâncias que surgem como parte de sua visão cármica. É o apego dessa pessoa para com o que surge o que faz que isso a condicione". Para cortar o apego da maneira mais rápida e efetiva temos que por em ação a capacidade espontânea de autoliberação inerente ao Estado Primordial.

Muito bem, o termo "autoliberação" não deve nos fazer conceber um "si mesmo" ou ego existente de modo intrínseco que deva liberar-se. Como vimos, o fundamento e ponto de partida do nível dzogchen é o conhecimento de que todos os fenômenos são "vazios de natureza própria" (ou seja, o conhecimento de que nenhum deles existe de maneira intrínseca). A autoliberação do dzogchen implica permitir que qualquer manifestação no campo da experiência do praticante surja tal como é, sem julga-la como boa ou má, bonita ou feia. Se não entram em jogo o apego e a fixação, aquilo que surge - independentemente de que se trate de um pensamento discursivo ou da conceitualização intuitiva de um fenômeno aparentemente externo - se liberará automaticamente por si mesmo no preciso momento de sua manifestação, sem que faça falta realizar esforço algum e sem que intervenham a volição ou a intenção. Se praticarmos dessa maneira, as sementes da planta venenosa da visão dualista nunca terão a oportunidade de germinar e, portanto, a indesejável planta jamais poderá lançar raízes e crescer.

Assim pois, o praticante de dzogchen vive sua vida de uma maneira comum, sem ter que sujeitar-se a um código de regras religiosas, porém sem que

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jamais se interrompa sua vivência do Estado de inseparabilidade primordial, pois tudo o que surge como parte de sua experiência se integra com dito Estado sem que ele manifeste sinal externo algum de estar praticando. Isto é o que indicam os termos "autoliberação", "dzogchen" ou "Grande Perfeição", e "contemplação não-dual" ou simplesmente contemplação. Ainda que durante minha educação na universidade monástica estudei e pratiquei todos os caminhos, meu mestre Changchub Dordje me ajudou a compreender o valor particular dos ensinamentos dzogchen, que são os que estou principalmente interessado em ensinar.

A fim de apresentar com claridade uma grande parte da terminologia que se usa geralmente na discussão dos ensinamentos, em continuação se inclui um quadro esquemático no qual se compara e relaciona o dzogchen com os vários níveis de tantra e os dois veículos do sutra. É necessário advertir, não obstante, que o mesmo não implica uma hierarquia de ensinamentos com o dzogchen na cúpula. Com efeito, todo o esquema pode ser invertido de modo que o dzogchen fique na base, ou também poderia deixar-se como está, porém lido desde a base até acima, que é a seqüência de apresentação dos diferentes níveis no caminho gradual, no qual cada estágio tem que ser completado antes de entrar no seguinte. O dzogchen é diferente do caminho gradual porque nele o mestre introduz o discípulo diretamente na "Grande Perfeição", que constitui o coração de todos os caminhos.

Há muitos caminhos por isso a cada indivíduo temos que oferecer um ensinamento apropriado para sua capacidade. E se para alguém o ensinamento do sutra é o mais apropriado, na medida em que para essa pessoa seja o mais efetivo poderá dizer-se que para ele ou ela é o "mais alto". Qualquer uso das palavras "alto" ou "mais alto" em relação com os ensinamentos dzogchen, deveria entender-se sempre tendo em conta esta importante advertência.

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O cuco do estado de presençaNamkhaï Norbu Rinpoche

O "Cuco do Estado de Presença" (rig pa´i khu byug) é um dos textos Dzogchen que foi trazido para o Tibet em tempos antigos por Vairochana. O título do texto foi inventado por Vairochana como um epíteto para os Seis Versos Vajra, que pertencem à categoria dos escritos Dzogchen conhecidos como "lung" (lung). Lung, que são parte dos ensinamentos originalmente transmitidos por Garab Dorje, contêm os pontos essenciais de um ou mais tantras. Os Seis Versos Vajra, assim chamados porque eles explicam a condição primordial do indivíduo, resume a essência da base, caminho, e fruto do Dzogchen.

A estória conta que Vairochana, que era também um grande tradutor, foi enviado a Oddiyana pelo rei Trisong Detsen para receber ensinamentos Dzogchen, que até aquele momento não tinham sido introduzidos no Tibet. Padmasambhava já havia transmitido ensinamentos Dzogchen aos seus discípulos tibetanos, mas o que ele havia transmitido eram em sua maioria preceitos vinculados a métodos de transformação do Anuyoga.²

Em Oddiyana Vairochana encontrou o mestre Shri Singha, que lhe ensinou tanto sutras e ensinamentos esotéricos durante o dia, como Dzogchen durante a noite, por causa da proibição sobre os ensinamentos Dzogchen imposta pelo rei de Oddiyana. Vairochana também traduziu uma série de textos com a colaboração de Shri Singa, e diz-se que ele os escreveu com leite de cabra sobre algodão a fim de mantê-los secretos. Quando retornou a seu país ele começou a transmitir os ensinamentos Dzogchen ao rei e a uns poucos escolhidos. O texto dos Seis Versos Vadjra foi na verdade o primeiro texto que ele introduziu no Tibet, e assim ele deu o título, O Cuco do Estado de Presença, um Sinal de Boa sorte e Glória (bKra shis pa´i dpal rig pa´i khu byug).³

No Tibet o cuco é considerado como um sinal de boa sorte e prosperidade porque ele anuncia a chegada da primavera. Quando o povo tibetano ouve o canto do cuco sabe que o longo inverno frio está acabando, e a natureza está despertando novamente. Assim, o canto do cuco é comparado por Vairochana ao despertar da presença do estado primordial (rig pa) que se tornou possível com a introdução dos ensinamentos Dzogchen no Tibet.

Ao longo dos séculos os ensinamentos Dzogchen foram alvo algumas vezes de critica e difamação dirigidos por alguns eruditos tibetanos. Uma das maneiras que algumas pessoas tentaram provar que os textos Dzogchen não eram autênticos foi sugerindo que existiam erros da gramática sânscrita em títulos de muitos tantras Dzogchen. O que isto de fato mostra é que esses que denegriam os ensinamentos Dzogchen não conheciam a existência da língua de Oddiyana, a partir da qual os tantras foram traduzidos em tibetano por Vairochana e outros mestres. Mas os praticantes de Dzogchen nunca tiveram nenhum interesse em formar uma seita, ou em defender a si mesmos ou entrar em argumentação, porque a coisa principal no Dzogchen é o estado de conhecimento, que não tem a ver com o que é exterior. Hoje, entretanto, a autenticidade histórica dos textos Dzogchen pode ser provada, graças a certos textos redescobertos entre os manuscritos de Tun Huang que são considerados

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originais e autênticos por todos os eruditos4.

Um destes manuscritos redescobertos contem de fato O Cuco do Estado de Presença, que foi encontrado junto com um comentário sobre ele que foi provavelmente o trabalho do próprio Vairochana. Estes textos nos trazem alguns dos mais antidos ensinamentos Dzogchen, que refletem o espírito original da tradição oral, em particular da Série da Natureza da Mente.

Os Seis Versos Vajra não são palavras vazias. Através do entendimento de sua mensagem, uma linha ininterrupta de mestres, do tempo de Garab Dorje em diante, tem manifestado conhecer o estado primordial. Nas três partes de duas linhas cada que faz um total de seis linhas, podem ser encontrados os princípios da base, do caminho e do fruto, ao lado de uma explicação simultânea da maneira de ver, da maneira de praticar, e a maneira de agir de acordo com os ensinamentos Dzogchen. A base não é algo abstrato. È a nossa própria condição quando reconhecemos nosso estado. Isto também é verdade quanto à maneira de ver de um praticante Dzogchen, que é um ponto de vista inseparável do verdadeiro conhecimento em si mesmo. O caminho é o meio para desenvolver este conhecimento através de vários métodos de prática. E o fruto é a realização de unir o modo de agir de uma pessoa com o estado de presença de modo que a contemplação e as atividades diárias da pessoa estejam totalmente integradas. Através do entendimento dos Seis Versos Vajra podemos ter acesso direto à essência do Dzogchen.

A Base não é alguma coisa abstrata. É nossa própria condição quando reconhecemos nosso estado. Isso é igualmente verdadeiro na maneira de ver de um praticante Dzogchen, que é um ponto de vista inseparável do verdadeiro conhecimento.A Via é o meio de desenvolver este conhecimento através de diferentes métodos e práticas. E o fruto é a realização da união de nossa maneira de nos comportar e o estado de presença, de modo que nossa contemplação e nossas atividades quotidianas estejam totalmente integradas. Por uma compreensão dos Seis Versos Vajras podemos obter um acesso direto a essência do Dzogchen.Tradução para o português: Maria Heleosina Ribeiro Pessôa

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O estado de auto-perfeição

Namkhaï Norbu RinpocheTradução para o português: Maria Heleosina Ribeiro Pessôa

Alguém que comece a desenvolver interesse sobre os ensinamentos pode tender a distanciar-se da realidade das coisas materiais como se os ensinamentos fossem algo completamente dissociado da vida cotidiana. Freqüentemente, no fundo de tudo isso, existe uma atitude de desistência e fuga de seus próprios problemas, com a ilusão de que se pode ser capaz de encontrar alguma coisa que ajudará miraculosamente a transcender tudo aquilo. Mas os ensinamentos baseiam-se no princípio de nossa atual (real, verdadeira) condição humana. Temos um corpo físico com todos os seus vários limites: a cada dia temos que comer, trabalhar, descansar, etc. Esta é nossa realidade, e não podemos ignorá-la.

Os ensinamentos do Dzogchen não são nem uma filosofia, nem uma doutrina religiosa, nem uma tradição cultural. Compreender a mensagem dos ensinamentos significa descobrir sua própria condição verdadeira, despida de todas as autodecepções e irrealidades que a mente cria. O verdadeiro significado do termo tibetano Dzogchen, "Grande Perfeição", refere-se ao estado primordial de cada indivíduo e não a qualquer realidade transcendente.

Muitos caminhos espirituais têm como base o princípio da compaixão, do benefício aos outros. Na tradição budista Mahayana, por exemplo, a compaixão é um dos pontos fundamentais da prática, associada ao conhecimento da verdadeira natureza do fenômeno, ou "vacuidade". Algumas vezes, entretanto, a compaixão pode ser algo construído e temporário por não entendermos o verdadeiro princípio dela. Uma compaixão genuína, não artificial, só pode surgir após termos entendido nossa verdadeira condição. Observando nossos limites, nossos condicionamentos, nossos conflitos, etc, tornamo-nos verdadeiramente conscientes do sofrimento dos outros, e, então, nossa própria experiência se torna a base ou o modelo para que possamos entender melhor e ajudar os outros à nossa volta.

A única fonte de todo tipo de benefício para os outros é estar consciente de nossa própria condição. Quando sabemos como nos ajudarmos e como lidar com nossa situação podemos realmente beneficiar outros, e nosso sentimento de compaixão surgirá espontaneamente, sem que tenhamos necessidade de nos atrelarmos a regras de comportamento de qualquer doutrina religiosa.

O que queremos dizer com, "estando consciente de nossa própria condição real"? Significa nos observarmos, descobrindo quem somos, quem acreditamos que somos, e qual a nossa atitude para com os outros e para com a vida. Se nós apenas observarmos os limites, os julgamentos mentais, as paixões, o orgulho, o ciúme, e os apegos com os quais nós nos fechamos ao longo de apenas um dia, de onde surgem, em que estão enraizados? Sua fonte é nossa visão dualística, e nosso condicionamento. Para ser capaz de ajudar tanto a nós mesmos quanto aos outros precisamos ultrapassar todos os limites nos quais

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estamos enclausurados. Esta é a verdadeira função dos ensinamentos.

Qualquer ensinamento é transmitido através da cultura e conhecimento dos seres humanos. Mas é importante não confundir qualquer cultura ou tradição com os ensinamentos em si, porque a essência dos ensinamentos é o conhecimento da natureza do indivíduo. Qualquer cultura pode ser de grande valor porque é o meio que capacita as pessoas a receberem a mensagem de um ensinamento, mas não é o ensinamento em si. Tomem o exemplo do Budismo. Buda viveu na Índia, e para transmitir seu conhecimento ele não criou uma outra forma de cultura, mas usou a cultura do povo indiano de seu tempo como base para comunicação. No "Abhidharmakosha",¹ por exemplo, encontramos conceitos e noções, tais como a descrição de Monte Meru e os cinco continentes, que são típicos da cultura antiga da Índia, e que não seria considerado de importância fundamental para a compreensão do ensinamento de Buda em si. Podemos ver um outro exemplo deste tipo na forma completamente nova que o Budismo adquiriu no Tibet após sua integração com a cultura nativa tibetana. De fato, quando Padmasambhava introduziu o Vajrayana no Tibet ele não eliminou as práticas rituais usadas na antiga tradição Bön, mas soube como usa-las, incorporando-as às práticas do Budismo tântrico.

Se alguém não sabe como compreender o verdadeiro significado de um ensinamento através de sua própria cultura, pode confundir a forma externa da tradição religiosa e a essência de sua mensagem. Tomemos o exemplo de uma pessoa ocidental interessada no Budismo e que vai à Índia a procura de um mestre. Lá ele encontra um mestre tibetano tradicional que vive em um monastério isolado e que desconhece a cultura ocidental. Quando se pede a esse mestre para ensinar, ele seguirá o método que usa para ensinar tibetanos. Mas a pessoa ocidental tem algumas grandes dificuldades para ultrapassar, a começar pelo obstáculo do idioma. Talvez ele receba uma iniciação importante e será envolvido por uma atmosfera especial, pela "vibração" espiritual, mas não compreenderá seu significado. Atraído pela idéia de um misticismo exótico ele poderá permanecer uns poucos meses no monastério, absorvendo uns poucos aspectos da cultura e costumes religiosos tibetanos. Quando ele retornar ao ocidente estará convencido de que entendeu o Budismo e sente-se diferente daqueles que o cercam, agindo como um tibetano.

Mas a verdade é que para um ocidental praticar um ensinamento que vem do Tibet não há necessidade de que se torne semelhante a um tibetano. Ao contrário, é de fundamental importância que ele saiba como integrar aquele ensinamento com sua própria cultura a fim de ser capaz de transmiti-lo, em sua forma essencial, a outros ocidentais. Mas freqüentemente, quando as pessoas se aproximam de um ensinamento oriental, acreditam que sua própria cultura não tem qualquer valor. Esta é uma atitude muito equivocada, porque sua cultura tem seu valor, relacionado com o ambiente e as circunstâncias em que ela surgiu. Nenhuma cultura pode ser tachada de melhor do que a outra; isso depende sim do indivíduo, se ele usufruirá maior ou menor vantagem dela em termos de desenvolvimento interior. Por esta razão é inútil transferir regras e costumes para um ambiente cultural diferente daquele do qual eles surgiram.

Os hábitos e o ambiente cultural de uma pessoa são importantes para o

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indivíduo para torna-lo capaz de compreender um ensinamento. Você pode transmitir um estado de compreensão usando exemplos conhecidos para o ouvinte. Se "tsampa" com chá tibetano for servido a um ocidental, ele provavelmente não terá idéia de como come-lo. Um tibetano, por outro lado, que come tsampa desde criança, não terá esse problema, e imediatamente misturará o tsampa com o chá e o comerá. Da mesma maneira, se uma pessoa não conhece a cultura através da qual o conhecimento é transmitido, é difícil compreender sua mensagem essencial. Este é o valor do conhecimento de cada cultura em particular. Mas os ensinamentos envolvem um estado interior de conhecimento que não deve ser confundido com a cultura através da qual é transmitido, ou com seus hábitos, costumes, sistema político e social, etc. Os seres humanos criaram culturas diferentes em épocas e lugares diferentes, e alguém que esteja interessado nos ensinamentos deve estar consciente disto e saber como trabalhar com as diversas culturas, sem entretanto tornar-se condicionado por suas formas externas.

Por exemplo, aqueles que já têm uma certa familiaridade com a cultura tibetana poderiam pensar que para praticar Dzogchen tenham que se converter tanto ao Budismo quanto ao Bön, porque o Dzogchen se espalhou através destas duas tradições religiosas.Isto mostra como é limitada a nossa maneira de pensar. Se decidirmos seguir um ensinamento espiritual, estamos convencidos de que é necessário para nós mudar alguma coisa, tal como nossa maneira de vestir, de comer, de agir, etc. Mas o Dzgchen não pede a ninguém para aderir a alguma doutrina religiosa ou para entrar para uma ordem monástica, ou para aceitar cegamente os ensinamentos e se tornar "dzogchenista". Todas estas coisas podem, de fato, criar obstáculos ao verdadeiro conhecimento.

O fato é que as pessoas estão tão acostumadas a colocar rótulos em tudo de forma que elas são incapazes de entender qualquer coisa que não se enquadre dentro de seus limites. Deixe-me dar um exemplo pessoal. De vez em quando eu encontrarei um tibetano que não me conheça bem, e que me fará a seguinte pergunta, "a que escola você pertence?". No Tibet, ao longo dos séculos, surgiram quatro tradições budistas tibetanas principais, e se um tibetano ouve um mestre, ele está convencido de que o mestre deve necessariamente pertencer a uma destas tradições. Se respondo que sou um praticante de Dzogchen, esta pessoa presumirá que pertenço à escola Nyngmapa, na qual os textos Dzogchen foram preservados. Algumas pessoas, por outro lado, como realmente aconteceu, sabendo que escrevi alguns livros sobre Bön com o objetivo de reavaliar a cultura nativa do Tibet, diriam que sou um Bonpo. Mas Dzogchen não é uma escola ou seita, ou sistema religioso. É simplesmente um estado de conhecimento que os mestres têm transmitido além dos limites da tradição de uma seita ou monástica. Na linhagem dos ensinamentos Dzogchen têm existido mestres pertencentes a todas as classes sociais, incluindo fazendeiros, nômades, nobres, monges, e grandes figuras religiosas, de todas as tradições espirituais e de seitas. O quinto Dalai Lama, por exemplo, enquanto mantinha perfeitamente as obrigações de sua elevada posição religiosa e política, foi um grande praticante de Dzogchen.

Uma pessoa que esteja realmente interessada nos ensinamentos tem que entender seu princípio fundamental sem que se torne condicionado pelos limites de uma tradição. As organizações, instituições, e hierarquias que

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existem nas várias escolas freqüentemente se tornam fatores que nos condicionam, mas isto é algo difícil para nós notarmos. O verdadeiro valor dos ensinamentos está além de todas as estruturas que as pessoas criam, e para descobrir se os ensinamentos são realmente uma coisa viva para nós, precisamos observar em que medida nós nos libertamos de todos os fatores que nos condicionam. Algumas vezes podemos acreditar que nós compreendemos os ensinamentos, e que sabemos como aplica-los, mas na prática continuamos condicionados por atitudes e princípios doutrinários que estão longe da verdadeira (real) compreensão da nossa verdadeira condição.

Quando um mestre ensina Dzogchen, ele esta tentando transmitir em estado de conhecimento. O objetivo do mestre é despertar o estudante, abrindo a consciência do indivíduo para o estado primordial. O mestre não diria "Siga minhas regras e obedeça aos meus preceitos!". Ele diria, "Abra seu olho interior e observe a si mesmo. Pare de procurar uma lâmpada externa para ilumina-lo, mas acenda sua própria lâmpada interna. Assim os ensinamentos irão viver em você, e você nos ensinamentos".

Os ensinamentos precisam tornar-se um conhecimento vivo em todas as atividades cotidianas do indivíduo. Esta é a essência da prática, e ao lado disso não há nada em particular para ser feito. Um monge, sem abandonar seus votos, pode praticar perfeitamente bem o Dzogchen, como um padre católico, um balconista, uma operária, etc, sem ter que abandonar seu papel na sociedade, porque o Dzogchen não modifica a pessoa a partir de seu exterior. Na verdade ele as acorda internamente. A única coisa que um mestre Dzogchen pedirá é que o indivíduo observe a si próprio, para alcançar a consciência necessária para aplicar os ensinamentos no cotidiano.

Toda religião, todo ensinamento espiritual, tem seus princípios filosóficos básicos, seu jeito característico de ver as coisas. Na filosofia Budista, por exemplo, sugiram diferentes sistemas e tradições, freqüentemente discordando entre si apenas sobre sutilezas de interpretação dos princípios fundamentais. No Tibet estas controvérsias filosóficas persistem até hoje, e os textos polêmicos resultantes constituem agora um corpo inteiro de literatura. Mas no Dzogchen nenhuma importância é dada às opiniões e convicções filosóficas. A forma de ver no Dzogen não está baseada no conhecimento intelectual, mas na consciência do indivíduo de sua verdadeira condição.

Todo mundo geralmente tem sua própria forma de pensar e suas próprias convicções sobre a vida, mesmo que nem sempre consigam defini-los filosóficamente. Todas as teorias filosóficas que existem foram criadas pelas mentes dualistas equivocadas dos seres humanos. No domínio da filosofia, que hoje é considerada verdadeira, amanhã pode se considerada falsa. Ninguém pode garantir a validade de uma filosofia. Por causa disto, qualquer forma intelectual de ver o que quer que seja é parcial e relativa. O fato é que não existe verdade a ser buscada ou confirmada logicamente; em lugar disto o que o indivíduo deve fazer é descobrir o quanto a mente continuamente limita a si próprio numa condição de dualismo.

O dualismo é a raiz verdadeira de nosso sofrimento e de todos os nossos conflitos. Todos os nossos conceitos e crenças, não importa quanto profundos possam parecer, são como redes que nos aprisionam no dualismo. Quando

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descobrimos nossos limites temos que tentar ultrapassa-los, desligando-nos de qualquer tipo de convicção religiosa, política, ou social que possa nos condicionar. Nós temos que abandonar conceitos tais como "iluminação", "a natureza da mente", etc, até que não nos satisfaçamos mais com um conhecimento meramente intelectual, e até que nós não nos descuidemos mais de integrar nosso conhecimento com nossa existência verdadeira.

Assim, é necessário começar o que sabemos, com nossa condição humana material. No ensinamento é explicado que o indivíduo é constituído de três aspectos: corpo, voz e mente. Estes constituem nossa condição relativa, que está sujeita ao tempo e à separação do sujeito e do objeto. Aquela que está além do tempo e dos limites do dualismo é chamada "condição absoluta", o verdadeiro estado do corpo, voz e mente. Para entrar nesta experiência, entretanto, é necessário primeiro entender nossa existência relativa.

O corpo é algo verdadeiro para nós; é a forma material que nos limita dentro do domínio humano. Externamente ele encontra seu reflexo na sua própria dimensão material, com a qual está intimamente ligado. No Tantrismo, por exemplo, fala-se de correspondências precisas entre o corpo humano e o universo, com base no princípio de que são uma única energia. Quando pensamos em nós mesmos, a primeira coisa que pensamos é em nosso corpo e no nosso ser físico. Disto surge um sentimento de um Eu, nosso apego, e todos os conceitos de propriedade que decorrem disso, tais como, minha casa, meu país, meu planeta, etc.

Através da dimensão material do corpo podemos compreender sua energia, ou a "voz", o segundo aspecto do indivíduo. Energia não é material, visível, ou tangível. É algo mais sutil e difícil de entender. Um de seus aspectos perceptíveis é vibração, ou som, e assim conhecido como "voz". A voz esta ligada à respiração, e a respiração à energia vital do indivíduo. No Yantra Yoga,4 movimentos do corpo e exercícios respiratórios têm como objetivo o controle dessa energia vital.

A relação entre voz, respiração, e mantra pode ser melhor demonstrada através do modo como os mantras funcionam. Um mantra é uma série de sílabas cujo poder reside em seu som, através da pronúncia repetida das quais se pode obter controle de uma dada forma de energia. A energia do indivíduo está intimamente ligada à energia externa, e cada uma pode influenciar a outra. O conhecimento dos vários aspectos da relação entre as duas energias é a base das tradições rituais Bön, as quais até hoje têm sido um pouco descuidadas pelos estudiosos ocidentais. No Bön, por exemplo, considera-se que muitos distúrbios e doenças derivam de classes de seres que têm a capacidade de dominar certas formas de energia. Quando a energia de um indivíduo enfraquece, é como deixar uma porta aberta através da qual distúrbios de tais classes de seres passam. Assim é dada uma grande importância à manutenção da integridade da energia do indivíduo.

Trabalhando de forma oposta, é possível influenciar a energia externa, desencadeando o que eles chamam de "milagres". Tal atividade é na verdade o resultado de ter-se o controle da própria energia, através da qual se obtém a capacidade do poder sobre os fenômenos externos.

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A mente é o aspecto mais sutil e oculto da nossa condição relativa, mas não é difícil notar sua existência. Tudo o que se tem a fazer é observar os pensamentos e como nos deixamos capturar no seu fluxo. Se alguém pergunta "O que é a mente?" - a resposta poderia ser de que é a mente que faz essa pergunta. A mente é um fluxo ininterrupto de pensamentos que surgem e desaparecem. É a capacidade para julgar, para racionalizar, para imaginar, etc, dentro dos limites do espaço e do tempo. Mas além da mente, além de nossos pensamentos, existe algo que chamamos a "natureza da mente", a verdadeira condição da mente, que está além de todos os limites. Se está além da mente, assim, como podemos chegar ao entendimento dela?

Tomemos o exemplo do espelho. Quando olhamos no espelho vemos nele as imagens refletidas de muitos objetos que estão em frente dele; não vemos a natureza do espelho. Mas o que queremos dizer com esta "natureza do espelho"? Nós nos referimos à sua capacidade de refletir, definida por sua claridade, sua pureza, e sua limpidez, que são condições indispensáveis para a manifestação dos reflexos. Esta "natureza do espelho" não é algo visível, e a única maneira pela qual podemos compreender é através das imagens refletidas no espelho. Do mesmo modo, nós apenas sabemos e temos experiência concreta daquilo que é relativo à nossa condição de corpo, voz e mente. Mas esta é a própria maneira de entender suas naturezas verdadeiras.

Na verdade, falando do ponto de vista absoluto, não existe qualquer separação entre a condição relativa e a sua verdadeira natureza, da mesma maneira que um espelho e as imagens refletidas nele são de fato indivisíveis do todo. Contudo, nossa situação é tal que é como se houvéssemos saído do espelho e agora estivéssemos olhando para as imagens refletidas que estão aparecendo nele. Inconscientes de nossa própria natureza de claridade, pureza e limpidez, consideramos as imagens refletidas como reais, desenvolvendo aversão ou apego. Assim, em vez destas imagens constituírem um meio para descobrirmos nossa verdadeira natureza, elas se tornam um fator de condicionamento. E nós vivemos distraídos pelas condições relativas, atribuindo grande importância a tudo.

Esta condição dualista, que é a situação geral de todos os seres humanos, é chamada "ignorância" nos ensinamentos. E mesmo uma pessoa que tenha estudado os conceitos mais profundos quanto "à natureza da mente", mas que não entendeu realmente sua condição relativa, pode ser definida como "ignorante", porque a "natureza da mente" para aquela pessoa permanece um conhecimento intelectual. Entender nossa verdadeira natureza não requer necessariamente o uso do processo mental de análise e racionalização. Uma pessoa que tem um conhecimento intelectual da natureza da mente permanecerá apegada, tal como qualquer outra pessoa, pelas imagens refletidas que aparecem e as julgarão como belas ou feias, permitindo a si mesmas serem presas pelo dualismo da mente.

Nos ensinamentos Dzogchen o termo "conhecimento" denota um estado de consciência que é como um espelho, em que sua natureza não pode ser colorida pela imagem refletida nele. Quando nos encontramos a nós mesmos no conhecimento de nossa verdadeira natureza, nada nos condiciona. Tudo o que surge é vivenciado como parte das qualidades do nosso próprio estado primordial. Por esta razão o ponto fundamental não é abandonar ou

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transformar a condição relativa, mas compreender sua verdadeira natureza. Para este fim é necessário clarear (esclarecer, clarificar) todos os conceitos equivocados e falsificações que nós continuamente nos aplicamos.

Nós temos um corpo material, que é extremamente delicado, e que tem muitas necessidades que temos que respeitar. Se estivermos com fome precisamos comer, se estamos cansados precisamos descansar, etc. Se não o fizermos, podemos desenvolver problemas de saúde sérios, porque os limites de nosso corpo são reais para nós. Nos ensinamentos, ultrapassar o apego ao corpo é ensinado de uma maneira ampla. Mas isto não significa que devemos romper abruptamente todos os limites e negar suas necessidades. O primeiro passo para ultrapassar este apego é entender a condição do corpo, e assim saber como respeita-lo. Isto também é verdade no que concerne ao funcionamento de nossa energia. Quando alguém ignora isso e tenta debater-se com seus limites naturais, os distúrbios resultantes podem espalhar-se facilmente para áreas do corpo ou da mente. Na medicina tibetana, por exemplo, algumas formas de loucura são consideradas como causadas pela circulação de uma energia vital sutil em lugares diversos daqueles em que usualmente fluiria.

Problemas de energia são muito sérios. Nos tempos modernos atravessamos um período no qual existe uma maior disseminação de doenças, tal como câncer, que estão ligadas a desordens de energia. As formas oficiais de medicina ocidental, mesmo tendo identificado os sintomas de tal doença, não sabem qual a causa fundamental, porque eles não compreendem como a energia funciona. Na medicina tibetana estes tipos de distúrbios, assim como quando o curso do tratamento médico mostra ineficácia, são curados pela prática de mantra, que influencia e coordena a condição da energia do paciente através do som e da respiração. Paralelamente, no Yantra Yoga existem posições do corpo, métodos de controle da respiração, e concentrações mentais que podem ser usados para restabelecer desordens de energia.

Os ensinamentos Dzogchen advertem para que o indivíduo nunca force a condição de energia de alguém, mas sempre esteja consciente de seus limites em todas as várias circunstâncias em que ele se encontre. Se algumas vezes o indivíduo não se sentir bem sentando para praticar, deve evitar se colocar em luta contra ele próprio. Pode ser que haja algum problema em nossa energia que nós desconhecemos por traz de um sentimento nosso como esse. Em tais situações é importante saber como relaxar, e como dar espaço a si próprio, a fim de não bloquear o progresso de sua prática. Problemas de solidão, depressão, confusão mental, etc, também freqüentemente derivam de uma condição de desbalanceamento de nossa energia.

A mente influencia tanto a condição do corpo como da energia, e ao mesmo tempo depende deles. Algumas vezes a mente está totalmente escravizada pela energia e não há nenhuma forma de balanceá-la sem limpar as desordens de energia primeiro. É muito importante entender a relação de interdependência entre mente e energia. Em todas as tradições budistas, quando se ensina alguém a meditar, explica-se que a respiração precisa ser lenta e profunda, a fim de favorecer o desenvolvimento de um estado de calma para a mente. Por outro lado, se observarmos uma pessoa nervosa cuja mente se encontra num estado agitado, notaremos certamente que sua respiração é

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curta e apressada. Algumas vezes é impossível acalmar a mente apenas pela meditação, e é necessário praticar respiração e movimentos de Yantra Yoga, a fim de re-coordenar a energia da pessoa.

A imagem de uma gaiola é geralmente usada como exemplo para representar nossa condição relativa. Diz-se que um indivíduo assemelha-se a um pássaro preso e protegido por uma gaiola. A gaiola é aqui um símbolo de todos os limites de nosso corpo, voz e mente. Mas a gaiola no exemplo não é usada para indicar alguma situação anormal horrível, mas sim para descrever uma condição normal na qual o ser humano vive. O problema é que não estamos conscientes da situação em que realmente nos encontramos, e estamos de fato com medo de descobri-la, porque crescemos nessa gaiola desde pequenos.

Consideremos a maneira como uma criança entra nesses limites. Durante os primeiros meses de vida, quando a criança ainda não sabe racionalizar ou falar, seus felizes pais embalam-na em seus braços e murmuram palavras doces para ela. Mas quando a criança começa a andar e querer tocar alguma coisa eles dizem, "Não toque nisso! Não vá lá!" Então a criança cresce, e é obrigada a limitar mais e mais sua maneira de se expressar, de sentar-se à mesa, de comer, etc. Os pais ficam orgulhosos disto, mas a verdade é que a pobre coisinha esta sendo introduzida completamente na maneira deles pensarem. E então, aos cinco ou seis anos de idade, a criança começa a ir à escola, com todas as regras e expectativas resultantes. A criança terá novas dificuldades a superar, mas irá gradualmente acostumar-se a esta gaiola adicional. Atualmente leva-se muitos anos para completar a gaiola que é indispensável para nós porque nos capacita a viver em sociedade. Então há muitos outros fatores condicionantes, tais como idéias políticas, crenças religiosas, os vínculos da amizade, do trabalho, etc. Quando a gaiola está suficientemente desenvolvida estamos prontos para viver nela, e nos sentirmos protegidos. Esta é a condição de cada indivíduo, e nós temos que descobri-la observando a nós mesmos.

Quando estamos conscientes de nossos limites há a possibilidade de ultrapassa-los. Um pássaro numa gaiola gera seus filhotes na gaiola. Quando nascem, os passarinhos têm asas. Mesmo se, na gaiola, eles não podem voar, o fato de que eles nasceram com asas mostra que sua natureza verdadeira é ter contato com o espaço aberto do céu. Mas se um passarinho que viveu sempre numa gaiola de repente escapa de trás das grades, ele poderia encontrar um gato. Assim é necessário para o passarinho treinar um pouco em um espaço limitado, até que, quando ele se sinta pronto, pode alçar vôo definitivamente.

É o mesmo conosco: mesmo se é difícil para nós ultrapassar todos os nossos limites em um instante, é importante saber que nosso estado verdadeiro está lá, além de todos os fatores condicionantes, e que nós realmente temos a possibilidade de redescobri-lo.

Nós podemos aprender a voar além dos limites de nossa condição dualista, até que estejamos prontos para deixa-la para trás completamente. Podemos começar tomando consciência de nosso corpo, voz e mente. Entender nossa verdadeira natureza significa entender nossa condição relativa e saber como

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reintegrar com sua natureza essencial, de modo que nos tornemos novamente como um espelho que reflete qualquer objeto que seja, manifestando sua claridade.

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O QUE É O DZOGCHEN?

Por Namkhaï Norbu Rinpoche

A palavra Dzogchen significa literalmente "Grande Perfeição" e se refere à realização do Estado Natural, não dual e puro da mente, no qual não há nada a rechaçar nem a aceitar, onde tudo é perfeito. O ensinamento do Dzogchen esteve reservado por séculos no Tibet, e somente o recebiam altos lamas. Ainda que, geralmente, o associem com a escola Nyingma, todas as escolas do budismo tibetano o praticam como forma de meditação avançada.

Para entrar nesta "Grande Perfeição" ou Estado Primordial da mente e apreende-lo assim diretamente, não é necessário conhecimentos intelectuais, culturais ou históricos. Por isso, o Dzogchen não requer que ninguém mude de religião, filosofia ou ideologia, nem tampouco que a pessoa se transforme em algo diferente do que é. Requer somente que a pessoa se observe a si mesmo e descubra a gaiola que construiu com seus condicionamentos e seus limites. Assim ensinamos a sair dessa gaiola sem criar outra, para tornar-se uma pessoa livre, autônoma. Este método simples, direto, imediato é aplicável sob qualquer circunstância e é facilmente integrado à vida moderna. Dada suas características muitos mestres dizem que Dzogchen é o ensinamento para nosso tempo.

UMA PERSPECTIVA INTRODUTÓRIA

Os ensinamentos Dzogchen e a cultura do Tibet

Hoje em dia existe muita gente que não tem o mínimo interesse em assuntos espirituais, falta o interesse que é reforçado pela visão materialista que impera em nossas sociedades. Se perguntarmos a pessoas desse tipo em que crêem, a resposta pode inclusive ser "não creio em nada". Tais indivíduos pensam que toda religião está baseada na fé, a qual não parece muito melhor que a superstição, e que as religiões em geral não são aplicáveis ao mundo moderno. Pois bem, o Dzogchen não exige a adoção de crença alguma, nem pode ser considerado uma religião. Este sistema se limita a sugerir ao indivíduo que se observe a si mesmo e assim possa descobrir sua verdadeira condição. Nos ensinamentos Dzogchen se considera que o indivíduo funciona em três níveis interdependentes, que são o corpo, a fala ou energia, e a mente. Nem sequer aqueles que afirmam não crer em nada podem dizer que não crêem em seu próprio corpo, pois este é algo básico para sua existência, e os limites e problemas do mesmo são claramente tangíveis. Sentimos frio e fome, sofremos dor e solidão e passamos uma grande parte de nossas vidas tratando de superar nossos sofrimentos físicos.

O nível da energia ou fala não é tão fácil de perceber e, em conseqüência, sua compreensão não é tão universal. No Ocidente, inclusive os médicos, em sua

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maioria, o ignoram completamente e tratam de curar todas as enfermidades atuando em um nível puramente material. Então, se a energia de um indivíduo está alterada, nem o seu corpo nem sua mente estarão equilibrados. Algumas enfermidades, como o câncer, são causadas por perturbações da energia e não se podem curar simplesmente com a cirurgia ou os medicamentos. De forma similar, muitas psicoses, neuroses e outros problemas mentais são causados por uma má circulação da energia. Em geral, nossas mentes são muito complicadas e estão muito confusas. Se tentarmos obter uma certa calma, é provável que não consigamos, a nossa energia nervosa e agitada torna isso impossível. Assim pois, para enfrentar estes problemas do corpo, fala e mente, os ensinamentos dzogchen apresentam exercícios que atuam sobre cada um desses três níveis, os quais podem integrar-se em nossa vida cotidiana e portanto podem mudar a totalidade de nossa experiência fazendo-nos passar da tensão e confusão à sabedoria e à verdadeira liberdade. Os ensinamentos dzogchen não são meramente teóricos; eles são, sobretudo práticos e, ainda que sejam muito antigos como a natureza do corpo, a energia e a mente dos indivíduos não mudaram com o passar do tempo, seguem sendo tão aplicáveis à situação humana de hoje como o foram no passado.

O Estado Primordial

Na essência, o ensinamento dzogchen se ocupa do Estado Primordial que, desde o começo, tem constituído a natureza intrínseca de cada individuo. A vivência de dito Estado é a vivência de nossa verdadeira condição: somos o centro do universo, embora não no sentido egoísta próprio de nossa experiência comum. A consciência egocêntrica comum não é outra coisa que a gaiola limitada da visão dualista que exclui a vivência de nossa verdadeira natureza: a vivência do espaço do Estado Primordial. Descobrir o Estado em questão é compreender o ensinamento dzogchen, cuja transmissão tem função de comunicar dito Estado: quem o descobriu e se estabeleceu nele o transmite àqueles que estão presos na condição dualista. Inclusive o nome "dzogchen", que significa "Grande Perfeição", se refere à autoperfeição deste estado, fundamentalmente puro desde o começo, no qual não há nada que aceitar ou rejeitar. Para entrar no Estado Primordial e apreende-lo diretamente, ninguém necessita conhecimentos intelectuais, culturais ou históricos. Por sua própria natureza, dito Estado está além do alcance do intelecto. No entanto, quando a gente encontra um ensinamento que não conhecia anteriormente, logo quer saber onde surgiu, de onde veio, quem o ensinou e assim sucessivamente. Ainda que o anterior seja perfeitamente compreensível, não se pode dizer que o dzogchen mesmo pertença à cultura de nenhum país. Por exemplo, há um tantra dzogchen chamado "Dra Talyur Tsawe Guiü" que afirma que o ensinamento dzogchen se encontra também em outros treze sistemas solares diferente do nosso; em conseqüência, nem sequer podemos dizer que o ensinamento dzogchen pertença ao planeta Terra. Como podemos afirmar que o ensinamento dzogchen pertença a alguma cultura nacional particular? Embora seja certo que a tradição dzogchen foi transmitida através da cultura do Tibet, que a conservou desde o começo da historia conhecida desse país, não podemos concluir, no entanto, que o dzogchen seja tibetano, uma vez que o Estado Primordial não tem nacionalidade e se encontra em todas as partes. No entanto, também é certo que em todos os lugares os seres sensíveis entraram na visão dualista que oculta a vivência do Estado Primordial. E quando os seres realizados entraram em contato com eles, somente raras

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vezes tem sido capazes de comunicar o Estado em questão de maneira completa sem palavras ou símbolos; em conseqüência, tiveram que usar como meio de comunicação a cultura própria de cada lugar. Assim pois, freqüentemente tem sucedido que a cultura e os ensinamentos se encontram entrelaçados e, no caso do Tibet, isto é certo a tal ponto que não é possível compreender a cultura do país sem uma compreensão dos ensinamentos.

Isto não significa que, o ensinamento dzogchen se tenha difundido amplamente no Tibet e chegado a ser bem conhecido por todos; a verdade é bem ao contrário. Dito ensinamento sempre esteve reservado, pois é tão direto que as pessoas lhe tinham um pouco de medo e, em conseqüência, em certa medida sempre houve que mante-lo em segredo. No entanto, não há dúvida de que ele constitui a essência de todos os ensinamentos tibetanos. Inclusive na antiga tradição bön - tradição em grande parte chamânica, que é nativa do Tibet e que antecedeu a chegada do budismo da Índia - existia um ensinamento dzogchen. Assim pois, ainda que os ensinamentos dzogchen não pertençam ao budismo nem ao bön, podemos considera-lo como a essência de todas as tradições espirituais tibetanas, tanto dentro da primeira de ditas religiões como dentro da segunda. Entendendo isto, e tendo em conta o fato de que as tradições espirituais do Tibet constituem a essência da cultura tibetana, podemos fazer uso dos ensinamentos dzogchen como uma chave para uma compreensão dessa cultura na totalidade. Com efeito, todos os aspectos da cultura em questão surgiram como facetas da visão unificada dos mestres realizados das distintas tradições espirituais. A claridade do Estado Primordial - essência da experiência de muitos mestres - funcionou como um cristal no coração da cultura, que projetou as formas da arte e iconografia, medicina e astrologia tibetanas, como brilhantes raios ou reflexos. Se compreendermos a natureza do cristal, compreenderemos melhor os raios refletidos que dele emanaram.

Possuir o conhecimento dzogchenÉ como estar no cume mais alto de uma montanha:Nenhum nível da montanha permanece oculto ou envolto em mistérioE quem se encontra neste supremo cumeNão pode ser condicionadoPor nada nem por ninguém

De um tantra dzogchen Upadesha

Extrato do livro "EL CRISTAL Y LA VIA DE LA LUZ" de Namkhaï Norbu Rinpoche - traduzido para o português por Karma Tenpa Dharguye