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Tese realizada com o apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia - financiamento no âmbito do III Quadro Comunitário de Apoio, comparticipado pelo Fundo Social Europeu e por fundos nacionais do MCES.

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  • Tese realizada com o apoio da Fundao para a

    Cincia e Tecnologia - financiamento no

    mbito do III Quadro Comunitrio de Apoio,

    comparticipado pelo Fundo Social Europeu e

    por fundos nacionais do MCES.

  • MARTINHO TOM MARTINS SOARES

    Histria e Fico em Paul Ricur e Tucdides

    Dissertao de Doutoramento na rea de Estudos

    Clssicos, especialidade de Potica e Hermenutica,

    apresentada Faculdade de Letras da Universidade de

    Coimbra, sob a orientao da Prof. Doutora Maria do

    Cu Fialho e da Prof. Doutora Maria Lusa Portocarrero.

    Faculdade de Letras Universidade de Coimbra

    2010

  • Confesso que procuro contar-me entre o nmero dos que

    escrevem progredindo e que progridem escrevendo. Portanto, se

    afirmei, por imprudncia ou ignorncia, uma opinio que

    merece ser corrigida, no apenas por outros que se possam

    aperceber dela, mas por mim prprio, na medida em que

    progrido, isso no h-de causar nem admirao nem pena. Antes

    preciso perdoar e alegrar-se, no porque houve erro, mas

    porque houve correco.

    (Agostinho de Hipona, Epstola 143)

  • 7

    PREFCIO

    O interesse pelo pensamento de Ricur surge como consequncia dos estudos de

    mestrado em Potica e Hermenutica, onde foram preponderantes os seminrios

    conduzidos pela especialista em Paul Ricur, Doutora Lusa Portocarrero. Mais tarde,

    concedeu-me o privilgio de co-orientar as minhas teses de mestrado e de

    doutoramento. Nesses mesmos estudos de mestrado, os seminrios de Potica

    aristotlica, ministrados pela Doutora Maria do Cu Fialho, consolidaram e aumentaram

    o meu interesse por Aristteles e pelos estudos filosfico-literrios. Daqui resultou uma

    tese de mestrado onde se interceptava o pensamento de Ricur, de S. Agostinho e de

    Aristteles sobre o cho comum do tempo e da narrativa.1 A intercesso de tempo e

    narrativa desembocava no cruzamento de histria e fico. Histria e fico concorriam

    ambas, sob o modo de intriga, para prefigurar, configurar e refigurar o tempo da praxis

    humana, na medida em que ambas nos oferecem uma imagem narrativa do tempo que se

    subtrai ao pensamento fenomenolgico e constituem, desse modo, uma soluo potica

    aporia do tempo. Aquando da investigao para a tese de mestrado, apercebi-me de

    um imenso continente de reflexes, dispersas por vrias obras e artigos de Paul Ricur,

    que confrontavam a histria com a cincia e a narrativa, e que tive de contornar por

    constries de tempo e de pertinncia temtica. Todavia, a curiosidade e o interesse

    insinuaram-se, e ficaram aguardando, ansiosamente, uma oportunidade. Essa

    oportunidade surgiu com outra bolsa da FCT; desta feita, para doutoramento.

    O tema foi instantneo: histria e fico. E o autor tambm: Paul Ricur.

    Conhecendo j um pouco do seu esprito de leitor dialctico, atento e transversal, que

    produz a sua reflexo com um leque de livros abertos sua frente, sabia que, pela sua

    mo, eu seria levado a visitar tudo o que de essencial no sculo XX se tivesse escrito

    acerca de histria e fico e histria e cincia, e este facto explica, em grande parte, a

    extenso desta tese, a qual pretende no s dar voz a Ricoeur, mas tambm a todas as

    vozes que ecoam em Ricoeur e que so essenciais para se compreender, com seriedade e

    abrangncia, este assunto. Assim, Ricoeur acabou por ser um bom pretexto para uma

    compilao, indita em Portugal, de teorias (e pensadores), ora complementares ora

    antagnicas, sobre histria e fico.

    1 Martinho Soares, Tempo, mythos e praxis: o dilogo entre Ricur, Agostinho e Aristteles, Coimbra, 2006.

  • 8

    Embora estivesse ciente de que o filsofo francs fornecia matria suficiente

    para uma tese de doutoramento, a minha matriz classicista e a minha ndole

    comparatista reclamavam de insatisfao. Em se tratando de histria e fico, o nome

    que primeiro me veio mente foi o de Herdoto. A interveno feliz e oportuna da

    minha co-orientadora da parte de clssicas, Doutora Maria do Cu Fialho, jogou aqui

    um papel determinante, ao sugerir-me Tucdides. Apesar de ser um dos pensadores

    gregos mais estudados em todo o mundo, autor de um dos maiores clssicos da

    literatura universal, constantemente revisitado por historiadores, socilogos,

    politlogos, Tucdides uma figura ainda pouco conhecida em Portugal.2 Hoje, posso

    diz-lo: ningum como ele, na Antiguidade, problematizou de forma to complexa e to

    completa a dialctica histria e fico e suas variantes: retrica e verdade, cincia e arte,

    histria e memria, subjectividade e objectividade, imparcialidade e interpretao,

    seleco e totalidade, geral e particular.

    Aproveito o ensejo para expressar a minha mais profunda gratido a todos

    aqueles que suportaram anmica e cientificamente esta investigao, e propiciaram a sua

    realizao. minha esposa e minha filha, aos meus pais, aos meus sogros e amigos

    deixo o meu mais sincero e sentido muito obrigado. Revejo neles as ncoras

    fundamentais, os garantes de estabilidade emocional; pela compreenso, pela

    complacncia, pela companhia fiel e auxlio pronto, ao longo dos altos e baixos desta

    ora entusiasmante ora sofrida jornada. s minhas orientadoras exprimo o meu efectivo

    reconhecimento pelo apoio incondicional, pela motivao, pela confiana, pelo

    competente acompanhamento cientfico.

    A todos o meu muito bem-haja.

    Coimbra, 28 de Dezembro de 2010

    Martinho Tom Martins Soares

    2 A primeira traduo para portugus - directamente a partir do grego - da Histria da guerra do Peloponeso, muito recente; data de Dezembro de 2010, e da responsabilidade de Raul Miguel Rosado Fernandes e M. Gabriela P. Granwehr. Em termos de estudos sobre Tucdides, at data, o que existe em Portugal uma tese de doutoramento defendida por Adriana Nogueira, em 2000: A filosofia do Poder: Nomos e physis e a lei do mais forte em Tucdides.

  • 9

    NOTA PRELIMINAR

    Tendo usado para Ricur um modelo de referncia bibliogrfica diferente do

    utilizado para os restantes autores e obras, importa explicit-lo. Por uma questo de

    clareza e operacionalidade, nas citaes retiradas das principais obras de Ricur,

    optmos por substituir a data de publicao pelas iniciais das obras. Assim, em vez de

    termos (Ricur 1983: 20) temos (Ricur, TR I, 20). Quando se trata de artigos ou

    ensaios do filsofo, seguimos a prtica comum, ou seja, referimos a data de publicao.

    Relativamente s restantes citaes, quando estas surgem entre , a referncia

    bibliogrfica vem entre ( ); quando aparece destacada do corpo do texto, a referncia,

    porque aparece integrada na prpria citao, vem entre [ ]. Aparecem entre todas as

    citaes em nota de rodap e aquelas que ocupam menos de trs linhas. As que tm uma

    extenso superior so destacadas do corpo do texto, a letra de tamanho 10 e 1 espao

    entre linhas. Expomos, abaixo, a lista de siglas utilizadas para referir as obras de Paul

    Ricur mais frequentemente citadas por ns.

    HV Histoire et Vrit, Seuil, Paris, 1964 (2 ed., reimp. 2003).

    TR I Temps et rcit I: Lintrigue et le rcit historique, Seuil, Paris, 1983 (reimp.

    2005).

    TR II Temps et rcit II : La configuration dans le rcit de fiction, Seuil, Paris,

    1984 (reimp. 2005).

    TR III Temps et Rcit III : Le temps racont, Seuil, Paris, 1985 (reimp. 2005).

    MV La mtaphore vive, d. du Seuil, Paris, 1975 (reimp. 2002).

    TA Du texte laction. Essais dhermneutique II, Seuil, Paris, 1986.

    RF Rflexion faite: autobiographie intellectuelle, Esprit, Paris, 1995.

    MHO La mmoire, lhistoire, loubli, Seuil, Paris, 2000.

  • 10

  • 11

    ndice

    PREFCIO ................................................................................................................................... 7

    NOTA PRELIMINAR .................................................................................................................. 9

    NDICE ...................................................................................................................................... 11

    INTRODUO GERAL - histria e histrias............................................................................ 15

    PRIMEIRA PARTE - HISTRIA E FICO EM PAUL RICUR ........................................ 23

    CAPTULO I - Sob o signo da verdade ...................................................................................... 25

    I. Subjectividade e objectividade em histria ...................................................................... 34

    II. Interpretao e verdade ................................................................................................... 42

    CAPTULO II - Explicao histrica e Compreenso narrativa ................................................. 47

    I. Explicar e compreender: texto, aco e histria .............................................................. 51 II. Histria e narrativa ......................................................................................................... 62 1. O eclipse da narrativa ................................................................................................ 64 1.1 Historiografia francesa contra o acontecimento e a narrativa ................... 65 i) Raymon Aron - a dissoluo do objecto ........................................ 67 ii) H. I. Marrou e a compreenso do outro ............................................ 68 iii) A escola dos Annales e a nova histria ........................................... 71 iv) Marc Bloch - testemunho e anlise ................................................. 76 v) Fernand Braudel e a longa durao ............................................... 79 1.2 Modelo nomolgico - contra a compreenso narrativa ............................... 89 i) Carl Hempel e as leis gerais em histria ......................................... . 90 ii) Charles Frankel e a interpretao .................................................... 95 1.3 Crticas e alternativas ao modelo nomolgico ............................................. 98 i) William Dray e a explicao fora da lei .......................................... . 99

    ii) A explicao histrica de Georg Wright ...................................... . 105 2. O ressurgimento da narrativa as teses narrativistas ......................................... ...109 i) A. Danto - as frases narrativas da histria ................................. . 111 ii) W. Gallie - Story e history luz do conceito de followability ...... . 116 iii) L. O. Mink - compreenso histrica como configurao ........... . 128 iv) Hayden White -explicao por composio da intriga ............... . 139 v) Paul Veyne - a escrita da histria ................................................. . 150 3. Compreenso e explicao - um balano ............................................................ ...161

    III. Intencionalidade histrica - dialctica explicao/compreenso .............................. ...169

    1. Imputao causal e imaginao - quase-intriga ..................................................... 171 2. As entidades da histria - quase personagens ........................................................ 180 3. Tempo histrico e tempo narrativo - quase acontecimento ................................... 185

    IV. Repercusses das teses de Ricur............................................................................... 193

  • 12

    CAPTULO III Histria e fico - por uma potica do tempo ............................................... 203

    I. Narrativa - a guardi do tempo ....................................................................................... 205 1. Teoria geral da narrativa: mimesis, mythos e praxis .............................................. 211 2. O tempo narrado pela histria e pela fico ......................................................... . 222 2.1. Heterogeneidade - respostas s aporias do tempo .................................... 225 2.1.1 A potica do tempo histrico ............................................................. 226 i) O tempo do calendrio .................................................................. . 226 ii) A sequncia das geraes ............................................................. . 230 iii) Os arquivos, documentos e traos ............................................... . 234 2.1.2 Tempo ficcional - as variaes imaginativas ................................... . 238 i) A neutralizao do tempo histrico ............................................... . 239 ii) Variaes imaginativas sobre a falha entre tempo vivido . ...... . 240 iii) Variaes sobre as aporias internas da fenomenologia .............. . 242 iv) Variaes imaginativas e tipos-ideiais .................................... . 245 2.2. Paralelismo representncia e leitura ...................................................... 247 2.2.1 A realidade do passado histrico a noo de representncia ........ . 247 i) Sob o signo do Mesmo - imaginao histria e reenactement em Collingwood ....................................................................................... 250 ii) Sob o signo do Outro - Dilthey (o outro), Veyne (a diferena), De Certeau (o afastamento) .................................................................... . 257 iii) Sob o signo do Anlogo - H. White e a teoria dos tropos ........... . 261 2.2.2 Mundo do texto e mundo do leitor leitura e refigurao .............. . 269 i) Da potica retrica ........................................................................ 272 ii) A retrica entre texto e leitor.......................................................... 273 iii) Fenomenologia e esttica da leitura .............................................. 274 A) Fenomenologia do acto individual de ler .......................... 275 B) Hermenutica da recepo pblica de uma obra ............... 278 2.2.3 Dialcticas da refigurao; afinidades com a representncia .......... . 282

    2.3 Entrecruzamento de histria e fico ....................................................... . 285 2.3.1 Ficcionalizao da histria imaginao, metfora, imagem ......... . 286 2.3.2 Historicizao da fico tempo verbal e verosimilhana ............. . 294

    3. Notas finais .......................................................................................................... . 298

    CAPTULO IV Representao e fico ................................................................................. 301 I. Representao mnemnica ............................................................................................. 304

    1. O documento como prova cientfica ...................................................................... 311 II. Representao como objecto de compreenso/explicao variao de escalas ......... 325 III. Representao literria ................................................................................................ 339 1. Representao e narratividade ............................................................................... 342

    2. Representao e retrica a questo do referente ................................................. 347 3. Representao e imagem a dialctica do ler e do ver ......................................... 356 4. Representao como representncia ...................................................................... 362

    IV. A hermenutica da condio histrica do homem ....................................................... 369 V. Histria e Fico sntese e outras perspectivas (Pomian e Jauss) .............................. 372

  • 13

    SEGUNDA PARTE - HISTRIA E FICO EM TUCDIDES .................................... 385

    PREMBULO a perenidade da historiografia clssica ................................................. 387

    CAPTULO I Tucdides, mestre de verdade .................................................................. 397

    1. Tucdides e Herdoto ............................................................................................... 405

    2. Condies do surgimento da histria grandiosidade, imortalidade e poltica ....... 410

    3. Historie e syngrapho ................................................................................................ 416

    4. Ktema es aei ............................................................................................................. 429

    5. Os discursos .............................................................................................................. 445

    6. Tucdides cientista ou artista? Entre objectividade e subjectividade........................ 459

    6. 1 O historiador ntegro e o artista intenso .................................................... 470

    CAPTULO II Prefigurao, configurao e refigurao da Histria da guerra do Peloponeso ................................................................................................................... 483

    1. Prefigurao testemunhos e documentos ............................................................... 484 1.1 Supremacia da observao directa e das testemunhas oculares ................. 489 1.2 Histria do presente e histria do passado testemunhos e indcios ........ 493 1.3 Histria e memria .................................................................................... 499 1.4 Semeion e tekmerion .................................................................................. 504

    2. Configurao narrativa e explicao ........................................................................ 510 2.1 Unidade narrativa e causalidade ................................................................ 514 2.2 Processo e causalidade............................................................................... 520 2.2.1 Tempo e acontecimento ............................................................. 524 2.2.2 Processo e estrutura ................................................................... 527 2.3 Tucdides e Aristteles, a propsito de histria e poiesis .......................... 530

    3. Refigurao e retrica do ver como ao fazer ver ............................................ 546 3.1 Refigurao e leitura .................................................................................. 546 3.2 Ver como trgico .................................................................................... 553 3.3 Fazer ver o passado ................................................................................ 556 3.3.1 A vividez do discurso de Tucdides enargeia e ekphrasis ...... 562

    CONCLUSO Histria e retrica ............................................................................ 573

    ndice Onomstico ....................................................................................................... 579

    BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................... 587

  • 14

  • 15

    INTRODUO GERAL histria e histrias

    Ricur no consagra nenhuma monografia, captulo ou mesmo pgina a

    Tucdides, mas evoca-o em todas as suas obras e na maioria dos artigos de reflexo

    histrica. Na maior parte das vezes, nomeia-o em notas de rodap e por variados

    motivos: tendncia generalizante do seu sistema explicativo, o carcter verosmil

    (potico) dos discursos ou a funo do histor na Grcia Antiga e a sua relao com o

    aedo.3 Em La mmoire, lhistoire, loubli, Ricur ensaia mesmo uma explicao para as

    famosas lies para sempre da histria (ktema es aei), colocando-as no lugar de

    estados de coisas. No entanto, no h indcios inequvocos de que Ricur tivesse um

    conhecimento directo ou frequente da obra de Tucdides. muito provvel que, em

    tempos, enquanto estudante e apreciador dos clssicos, tivesse lido a Histria da guerra

    do Peloponeso e por isso possusse uma ideia geral do texto. Em todo o caso, ficamos

    com a sensao de que Ricur conhece as problemticas inerentes ao texto de

    Tucdides por intermdio de abordagens de outros autores, nomeadamente, Aron,

    Hartog, Dosse e, talvez, Chtelet - intelectuais que dedicam importantes anlises obra

    do historiador ateniense e que Ricur cita amide. Ainda assim, pese o imenso hiato

    epistemolgico e temporal, com tudo o que isso representa, possvel ler a obra de

    3 Em Histoire et Vrit, Ricur consagra uma nota a Tucdides onde refere que o tipo de causalidade praticada pelo historiador ateniense prximo do da cincia fsica do seu tempo, distanciando-se, nesse particular, de Herdoto (HV: 29). O nome de Tucdides surge depois duas vezes em TR I e uma vez em TR II. Em TR I Ricur declara, num parntesis, que a Histria de Tucdides contradiz o dito aristotlico de que a histria demasiado episdica para as exigncias da Potica (p. 288). Na vez seguinte (p. 308), o nome do historiador ateniense aparece atrelado a Paul Veyne, historiador e intelectual francs que cita amide o nome de Tucdides na sua obra Comment on crit lhistoire. Em TR II, a evocao faz-se a propsito do carcter permanente das ktema humanas narradas por Tucdides (p. 273, nota 1). Em La mmoire, lhistoire, loubli, o nome de Tucdides surge pelo menos quatro vezes, nas pginas 29, 168, 173, 209: uma vez no mbito das ktema es aei; outra em que apoda Tucdides um mestre de verdade; outra relacionada com a escrita e a finalidade que Tucdides outorgou escrita da sua obra; e a ltima a propsito da distino entre o histor e o aedo. Para alm disso, h ainda menes ao nome do historiador grego em vrios artigos que oportunamente sero citados e que, grosso modo, se referem a Tucdides e Herdoto como os pais da histria.

  • 16

    Tucdides seguindo algumas das coordenadas fundamentais da reflexo ricoeuriana: a

    dialctica entre histria e fico, cincia e arte, compreenso e explicao, objectividade

    e subjectividade, imparcialidade e retrica.

    Tucdides pratica uma disciplina que est dar os primeiros passos como prtica

    na histria do pensamento ocidental; um gnero ainda procura do seu lugar entre a

    cincia e a literatura (principalmente a retrica, com quem mantm uma relao

    ambgua). Por um lado, est ainda muito presa aos gneros trgico e retrico, onde vai

    beber os discursos polticos, as tcnicas de composio dramtica, a fora dectica e

    ecfrstica, o efeito catrtico e persuasivo; por outro lado, manifesta um desejo veemente

    de se demarcar destes gneros ficcionais e das Histrias de Hertodo: dos seus

    devaneios fantasiosos - prprios para discurso oral, dos excessos de linguagem e do

    descuro da verdade. A prosa tucididiana j uma crislida a tentar evolar-se do casulo

    da tradio mtica e ficcional urdida por poetas, oradores e loggrafos, a ganhar asas

    que a levem pelos caminhos mais seguros da objectividade, do rigor, da imparcialidade

    e da verdade, encontrando na escrita e no racionalismo grego uma poderosa rampa de

    lanamento. O texto de Tucdides caminha nesta tenso entre a episteme grega e a

    mimesis literria; pretende dizer a verdade sob os constrangimentos da exactido

    (akribeia) e ao mesmo tempo moldar o seu texto de tal forma que ele seja a prpria

    guerra, a figura do horror. Mas a figura nunca o objecto. Teria Tucdides conscincia

    desta clivagem? Mimesis, para Aristteles e Ricur, como veremos, recriao,

    reconstruo, representncia e no cpia ou imitao. Para Tucdides, a mimesis tem

    como objectivo fazer ver a guerra tal como aconteceu. Poderemos sempre especular

    sobre o sentido da conjuno (cpia ou reconstruo?), tal como podemos perguntar

    o mesmo a Leopold Ranke - o historiador positivista que adopta a expresso tucididiana

    como uma espcie de axioma para a histria cientfica. Curiosamente, sobre ela que

    Ricur, luz do pensamento de Dilthey, Collingwood, Marrou, Certeau, Veyne e

    Hayden White, constri a sua teoria da representncia. Mas ser Tucdides um digno

    patrono da histria cientfica? O passado no estanque, a prpria escrita do passado

    no monoltica ou unvoca, est em constante metamorfose e adapta-se s mais

    variadas incidncias interpretativas. No esse o valor maior dos gregos, que ns os

    possamos interpretar constantemente luz de novos presentes? S assim se entendem

    leituras to dspares como as de Cornford e Cochrane, que representam duas tendncias

    antagnicas de posicionamento diante da obra de Tucdides. Mas pelo meio h toda uma

  • 17

    panplia matizada de anlises e interpretaes que transformam a Histria da guerra do

    Peloponeso numa densa nuvem hermenutica da qual impossvel sair pacificado.

    No nos alongamos em apreciaes relativamente a Tucdides. Na segunda parte

    desta investigao, haver oportunidade para aprofundar e desenvolver os motivos que

    nos levam a reunir sob o mesmo tecto Ricur e Tucdides. Centremo-nos, por agora, no

    filsofo francs, figura tutelar da primeira parte deste estudo.

    Paul Ricur foi um dos filsofos que, nas ltimas dcadas, mais tempo e

    pginas dispensou a reflectir sobre a histria, com o nico intuito de lhe encontrar um

    lugar condigno entre as cincias sociais. Por ela combateu contra todas as ameaas que

    punham em perigo o seu estatuto cientfico, a sua vitalidade narrativa e a sua prpria

    validade tica: o narrativismo e o estruturalismo, o positivismo lgico, o negacionismo.

    De facto, a histria ocupa um lugar de destaque na economia do pensamento

    ricoeuriano. Basta ver o nmero de vezes que ela convocada para a sua obra filosfica.

    Para alm de um amplo naipe de artigos e ensaios citados no decorrer deste estudo, h

    trs obras principais onde a problemtica histrica nuclear: Histoire et vrit (1955),

    Temps et rcit I e III (1983 e 1985), La mmoire, lhistoire, loubli (2000).

    Numa entrevista divulgada na revista Esprit, em 1981, pouco antes da

    publicao do primeiro volume de Temps et rcit, Paul Ricur justifica a sua opo pela

    histria com trs razes de ordem essencial e vrias de ordem tcnica.4

    No possvel uma filosofia sem dilogo com as cincias humanas; ora, a

    histria ocupa um lugar fundamental no concerto das cincias humanas. No h

    conhecimento de si que no se efectue atravs do desvio por sinais, smbolos e obras

    culturais;5 entre estas obras culturais encontram-se de forma permanente as histrias que

    contamos e que o historiador escreve. Por fim, preciso preservar a diversidade das

    formas de linguagem existentes - a Ricur interessa, sobretudo, o carcter narrativo do

    acto de contar histrias.

    4 Lhistoire comme rcit et comme pratique. Entretien avec Paul Ricur, in Esprit, n 54, 1981, pp. 155-165. Redaco de P. Kemp e F. Marchetti. 5 Esta ideia do mediato contra o imediato, do indirecto contra o directo, do desvio pelos smbolos da cultura, Ricur vem defendendo desde a Simblica do mal e repete em escritos posteriores, contra a imanncia textual defendida pelo estruturalismo: Contrairement la tradition du Cogito et la prtention du sujet de se connatre lui-mme par intuition immdiate, il faut dire que nous ne nous comprenons que par le grand dtour des signes dhumanit dposs dans les uvres de culture. Que saurions-nous de lamour et de la haine, des sentiments thiques et, en gnral, de tout ce que nous appelons le soi, si cela navait t port au langage et articul par la littrature. Ce qui parat ainsi le plus contraire la subjectivit, et que lanalyse structurale fait apparatre comme la texture mme du texte, est le medium mme dans lequel nous pouvons nous comprendre (Ricur, TA, 116).

  • 18

    As razes de ordem tcnica prendem-se com vrias questes interligadas. Em

    primeiro lugar, o desejo de superar a subdiviso paradoxal do acto de narrar entre

    histria e fico. No haver um factor de convergncia, de unidade? Para Ricur, a

    intriga o elemento comum que une os dois gneros narrativos. Em segundo lugar,

    pareceu ao filsofo que este acto narrativo unificador tem uma relao privilegiada com

    a experincia humana do tempo, porquanto esta no redutvel ao tempo cronolgico

    marcado pelos relgios.6 Daqui surge a bifurcao entre tempo cronolgico e tempo

    histrico; se o segundo o meio atravs do qual ns narramos, conclui-se o seguinte:

    Le caractre narratif de lexprience du temps serait alors une sorte de test pour

    articuler philosophiquement la structure du temps, ce qui a toujours constitu un des

    grands problmes philosophiques (Ricur 1981: 156). Contra a opacidade e mudez da

    experincia temporal, o filsofo prope a loquacidade da narrativa, que serve como uma

    espcie de janela aberta sobre o que o tempo humano (ibid.).

    Finalmente, h ainda razes de uma terceira ordem, secundrias do ponto de

    vista filosfico mas centrais do ponto de vista das suas convices pessoais. Ricur

    recorda o carcter essencialmente narrativo da f bblica, que, antes de se exprimir em

    dogmas, em expresses abstractas sobre Deus, se apoia em histrias contadas: a histria

    do xodo, a histria da Crucificao e da Ressurreio, a histria do Pentecostes, da

    Igreja primitiva [] (ibid.).

    O acto narrativo possui, ento, uma dimenso religiosa que poder estar

    relacionada com o potencial da narrativa para estruturar o tempo. Mas, antes desta

    dimenso religiosa, existe uma dimenso tica na narrativa. Nenhuma existncia pode

    viver sem histria, nenhuma conscincia humana auto-transparente ou auto-

    posicional, porque toda a experincia est imbuda de temporalidade e ningum se pode

    conhecer a si prprio sem ser por intermdio das narrativas que conta sobre si, o que

    leva a falar de uma funo identitria pessoal e comunitria da narrativa.7

    6 Est-ce que lacte de raconter ne dveloppe pas son propre temps, qui serait le temps humain ? (Ricur 1981: 156). 7 [] notre propre existence est insparable du rcit que nous pouvons faire de nous-mmes: les histoires, vraies ou fausses dailleurs peu importe ! -, les fictions aussi bien que les histoires exactes, disons vrifiables, on cette valeur de nous donner une identit. [] Si lon applique cette ide au champ religieux, on peu dire quIsral a constitu son identit en racontant sa propre histoire. Certains auteurs ont mme appel la Bible lautobiographie dIsral. Et, en ce sens, on peut dire quune tradition religieuse se caractrise dabord par les histoires quelle raconte et, bien entendu aussi, par les interprtations symboliques ou autres quelle greffe sur ces histoires. Mais le premier noyau est un noyau narratif (Ricur 1981: 156).

  • 19

    Talvez no seja possvel identificar um tema com que se possa unificar a ampla

    e heterognea bibliografia ricoeuriana sobre a temtica histrica, que conta com as trs

    obras maiores j referidas e uma panplia de artigos, comunicaes, entrevistas e

    ensaios dispersos por revistas, livros, enciclopdias e actas de colquios. No mbito da

    reflexo epistemolgica, os mais recorrentes so a dialctica explicao-compreenso,

    sob a qual se discute a relao da histria com a cincia e a narrativa, e da com o

    tempo, a memria e a fico. No mbito da hermenutica, da ontologia e da filosofia da

    histria, os escritos de Paul Ricur giram em torno do sentido da histria, da

    conscincia histrica e da condio histrica do homem, da memria e do

    esquecimento. No entanto, parece-nos que a preocupao maior do filsofo nesta

    matria como, de um modo geral, em toda a sua produo filosfica tem como cerne a

    compreenso do homem no seu meio a partir da sua aco: o que o homem, o que e de

    que forma as praxeis culturais humanas (muito particularmente as mediadas pela

    linguagem simblica-metafrica-narrativa) nos podem revelar acerca do agente e do

    paciente humano? Em ltima anlise, sempre o mistrio do homem temporal, agente,

    falvel e sofredor que Ricur procura iluminar atravs da anlise semntica dos elos

    opacos que medeiam a nossa relao com o mundo e connosco prprios.8 Neste

    processo interpretativo, as narrativas ocupam um lugar cimeiro: a narrativa diz de forma

    indirecta (potica), mas significativa, o homem concreto e a realidade que o envolve.9

    Ricur parte da constatao de que o homem vive enredado em histrias, procura

    conhecer-se e dar-se a conhecer atravs delas.

    Compreende-se, pois, que a histria sendo, de um modo especfico, uma

    narrativa e, alm do mais, uma narrativa que visa relatar factos verdadeiros,

    comprovveis - ocupe um lugar central nesta economia. Que a histria uma narrativa 8 A opo de reflectir o sujeito de forma indirecta - recusando a ideia husserliana de uma conscincia de si imediata - atravs do desvio pelas manifestaes simblico-culturais do prprio sujeito orienta toda a sua actividade filosfica desde o incio e define a sua originalidade como pensador, mesmo relativamente a filsofos que ele admira e tem como mestres, como o caso de Husserl. Na sua autobiografia intelectual, Ricur admite-o: [] dj dans les essais que jai consacrs Husserl la suite de la traduction des Ideen I [], je prenais mes distances lgard dune conscience de soi immdiate, transparente soi, directe, et plaidais pour la ncessit du dtour par les signes et les uvres dploys dans le monde de la culture (RF, 34). A hermenutica como instrumento privilegiado desponta em Symbolique du mal, segundo volume de Finitude et culpabilit (1960). No quadro de toda uma reflexo acerca da conscincia do mal, Paul Ricur formula o famoso adgio que o smbolo d que pensar. Aceitando a mediao dos smbolos e dos mitos e recusando terminantemente um acesso imediato, directo ou apodctico ao Cogito, o autor prope um conhecimento do ser humano atravs dos signos depostos na sua memria e no seu imaginrio pelas grandes culturas (cf. Portocarrero 2005, 71-86: A via longa da hermenutica). 9 Para Ricur, a fico um meio privilegiado para redescrever a realidade. Aristteles cauciona esta teoria atribuindo linguagem potica a virtude de fazer a mimesis da realidade. A tragdia s imita a realidade recriando-a por meio de um mythos, de uma fbula que atinge a sua essncia mais profunda (cf. Ricur, TA, 115).

  • 20

    comprova-o a prpria ambiguidade do termo que, na maior parte das lnguas europeias,

    significa, simultaneamente, o que realmente aconteceu no passado (dimenso ontolgica

    do termo) e o discurso que sobre isso se faz (dimenso epistemolgica do termo).10

    Ricur acredita que esta ambiguidade semntica no acontece por acaso, contribuindo

    para reforar a similitude entre o acto de narrar a histria e o estar na histria, ou seja,

    entre fazer a histria e ser histrico.11 Mas vai mais longe ao destacar o papel que

    histria e fico desempenham na construo de narrativas que directa e indirectamente

    contribuem para desfazer a opacidade da experincia humana.12 De facto, as histrias e

    a histria so fautoras de historicidade humana.13 A polissemia da palavra histria serve

    para recuperar o papel da narrativa na histria, depois de um perodo de eclipse,

    obrigando o historiador a interrogar-se sobre o seu acto de escrita, sobre a proximidade

    deste com a fico e ainda sobre a fronteira que os separa.14 precisamente o que faz

    Ricur e, como veremos adiante, igualmente Tucdides. Apesar de reconhecer essa

    polissemia do termo histria, que tanto pode significar histria como histrias, o

    filsofo francs no pretende fazer tbua rasa das diferenas que separam a histria das

    narrativas ficcionais, nomeadamente, no que pretenso verdade diz respeito. que a

    imaginao no est confrontada com as mesmas exigncias crticas e cientficas da

    histria, sendo que esta se pauta pela realidade dos documentos e dos arquivos.

    10 Geschichte , history , histoire , avons-nous dit, signifie la fois ce qui sest rellement produit et le rcit que nous en faisons (Ricur 1980, in Tiffeneau 1980: 58). 11 [] le terme histoire, dans la plupart des langues europennes, a lambigut intrigante de signifier la fois ce qui sest rellement produit et le rcit de ces vnements. Or cette ambigut semble recouvrir plus quune rencontre de hasard ou quune confusion dplorable. Nos langues, plus vraisemblablement, prservent [] une certaine appartenance mutuelle entre lacte de raconter (ou dcrire) lhistoire et le fait dtre dans lhistoire, entre faire lhistoire et tre historique. En dautres termes, la forme de vie dont le discours narratif est une partie est notre condition historique elle-mme (Ricur 1980, in Tiffeneau 1980: 50). 12 [] la prtention rfrentielle indirecte des rcits de fiction et la prtention rfrentielle directe des rcits historiques (en tant quhistoire vraie , au sens pistmologique du mot vrai ) (Ricur 1980, in Tiffeneau 1980: 58). 13 Cette opacit logique peut expliquer que lhistoricit de lexprience humaine ne puisse tre porte au langage que comme narrativit, - et que cette narrativit elle-mme ne require pas moins que le jeu et lintersection des deux grands modes narratifs. Lhistoricit est dite, dans la mesure o nous racontons des histoires et crivons lhistoire (Ricur 1980, in Tiffeneau 1980: 59). Nous avons besoin du rcit empirique et du rcit de fiction pour porter au langage notre situation historique (Ricur 1980, in Tiffeneau 1980: 65). 14 Aprs une longue clipse du rcit au cours de laquelle les historiens du XIXe et du XXe sicle ont cru pouvoir fonder une physique sociale, croyant rompre jamais avec lhistoire-rcit, les historiens aujourdhui insistent au contraire sur le fait que la notion dhistoire revt une valeur polysmique, dsignant tout la fois laction narre et la narration elle-mme, confondant tout ainsi laction dun narrateur, qui nest pas forcment lauteur, avec lobjet du rcit. Lhistorien est de nouveau invit sinterroger sur son acte dcriture, sur la proximit de celui-ci avec lcriture fictionnelle et en mme temps sur la frontire qui distingue les deux domaines (Dosse 2000: 87).

  • 21

    Je nai aucunement lintention de nier ou dobscurcir les diffrences videntes qui sparent lhistoire de lensemble des rcits de fiction quant leur prtention respective la vrit. Pour un certain niveau danalyse et dargumentation, le concept conventionnel de vrit, dfini en termes de vrification et de falsification empiriques, est parfaitement valide. [] la vrification ou la falsification en histoire ne met pas en jeu un concept de vrit diffrent de celui que la physique assume. Documents et archives sont les sources de vrification et de falsification pour linvestigation historique. Les rcits de fiction, dautre part, ignorent la charge de fournir des preuves de cette sorte. [] il reste que limagination ignore le dur labeur de se confronter des documents et mme de les tablir en fonction des questions qui leur sont poses. En ce sens limagination na pas de faits traiter [Ricur 1980, in Tiffeneau 1980: 51].

    A suspeita de que a histria no totalmente verdadeira porque est enredada na

    fico nasceu com a prpria histria e acompanhou-a ao longo dos sculos.15 Contudo,

    foi a partir do sc. XIX, com o eclodir da chamada histria cientfica (epifenmeno do

    hegemnico e optimista modelo positivista), que a questo se agudizou e ganhou novos

    contornos. Para a histria exigiu-se o mesmo tipo de mtodo e resultados que as

    cincias fsicas e biolgicas almejam (Montesquieu, Voltaire, Condorcet). A concluso

    de que a lei e a causa positivista no estavam ao alcance da histria no faz os

    historiadores arredarem p da senda das cincias, j no das naturais mas das sociais e

    humanas. Enquanto tericos narrativistas e estruturalistas tentaram aproximar a

    narrativa da cincia e contriburam para reduzir a histria a um artefacto literrio,

    sujeito ao relativismo de todo o discurso ficcional, os historiadores franceses da

    movncia dos Annales e os tericos do modelo nomolgico tentam afastar a histria da

    narrativa e do acontecimento breve, aproximando-a da cincia. A histria confrontada

    com a alternativa de ser cincia idiogrfica (compreensiva) ou cincia nomottica

    (explicativa), narrativa de acontecimentos singulares ou conjunto de proposies

    cientficas que inscrevem factos sob leis gerais.

    neste cenrio de real tenso que surgem as reflexes de Ricur. Homem

    atento s questes do seu tempo, leitor assduo das obras dos historiadores, contribui de

    forma determinante para uma reconciliao. A sua grande vitria foi justamente a de ter

    conseguido conciliar dois termos aparentemente contraditrios sem retirar credibilidade

    e autoridade explicativa histria. Esta, apesar de recorrer fico para cativar o

    pblico, para dar visibilidade aos factos narrados, em suma, para se dar a ler, continua a

    ter como alvo insubstituvel a verdade. No uma verdade de teor positivista (em que

    haveria coincidncia entre o real e o conhecimento histrico), mas a verdade visada

    atravs da positividade do ter-sido e reconstruda sob o regime analgico da

    15 Histoire et fiction: vieux comme lhistoire mme, le problme de leurs rapports porte de nos jours une interrogation fondamentale pour lavenir de la philosophie et de la connaissance (Pomian 1989: 115).

  • 22

    representncia. S assim a histria mantm a capacidade para dar conta, de forma

    cientfica, de uma realidade exterior ao discurso, evitando cair no relativismo que os

    tericos do linguist turn alimentaram.

    Actualmente, relativamente pacfica entre historiadores e filsofos a

    componente ficcional da histria em concomitncia com a autonomia explicativa e

    cientfica da mesma. Ricur tem a a sua quota-parte.16 A histria uma cincia, ainda

    que no como as outras, e uma arte, ainda que diferente de todas as outras (vide Le Goff

    1984: 158). Esse facto hoje assumido um pouco por toda a parte.17 A fico, sabemo-

    lo, do domnio da criao, da modelao, do recurso imaginao;18 tem contacto

    com o mundo, mas no tem contrato com a verdade nem est obrigada a prestar provas

    das suas declaraes. A opinio de Ricur de que a histria, ainda que no possa

    dispensar a imaginao, a interpretao e a retrica, um discurso que, atravs de um

    mtodo cientfico e crtico, busca incessante e incansavelmente a verdade rigorosa dos

    factos que narra, nisso ocupando um espao distinto do da fico. O historiador

    estabelece implicitamente com o leitor um compromisso tico e profissional de verdade,

    que implica julgar/explicar mediante a apresentao de provas. E, por conseguinte, a sua

    tarefa aproxima-se da do juiz.19

    16 Le tournant interprtatif adopt par les travaux actuels permet de ne pas se laisser enfermer dans la fausse alternative entre une scientificit qui renverrait un schma monocausal organisateur et une drive esthtisante. Le basculement est particulirement spectaculaire dans la discipline historique qui a t nourrie tout au long des annes soixante et soixante-dix, sous limpulsion de lcole des Annales, dun idal scientiste, celui de trouver la vrit ultime au bout des courbes statistiques et des grands quilibres immobiles et quantifis. Grce au travail sur le temps de Paul Ricur, on redcouvre la double dimension de lhistoire qui, sous le mme vocable en France, recouvre la fois la narration elle-mme et laction narre (Dosse 2000: 54 55). 17 A dimenso potica da produo e da escrita da histria, que esta de facto nunca perdeu - apesar de, insista-se, em dada altura se ter feito crer que tal tinha acontecido, o que apenas diminuiu o valor da sua presena mas sem a anular - pode ento assumir-se, sem pretenso alguma de se tornar nica ou dominante, de celebrar "retornos" ou "rupturas" que excluam outras experincias, como modelo plausvel e capaz de seguir um caminho prprio. Articulando, naturalmente, a sua experincia com o rigor dos mtodos de pesquisa e de crtica documental, e com todo o corpo de conhecimentos, que so patrimnio incontornvel da historiografia no seu conjunto. Quer isto dizer: admitindo e praticando a histria como saber prprio mas hbrido, que combina dados e imaginao, e o faz com rigor e com arte, afastando-se da estril presuno da certeza e oferecendo-se ao interesse das pessoas que, por prazer ou vontade de conhecer - mas de preferncia pelos dois motivos combinados - por ela se interessam, para ela so conquistadas, de alguma maneira a integram nas suas vidas (Bebiano s/d: 19). 18 Fiction, cest fingere, et fingere, cest faire (Ricur, TA, 17). 19 A comparao do historiador com o juiz muito frequente em P. Ricur. Para alm de vrias referncias em Temps et Rcit, o autor dedica uma anlise mais demorada ao tema em La mmoire, lhistoire, loubli (Lhistorien et le juge, pp. 413-436). O grande historiador Carlo Ginzburg escreveu tambm um ensaio sobre o mesmo assunto: Il giudice e lo storico, Turin, Einaudi, 1991.

  • 23

    PRIMEIRA PARTE

    Histria e Fico em Paul Ricur

  • 24

  • 25

    CAPTULO I - SOB O SIGNO DA VERDADE

    Mon propos, aprs bien dautres, cest la vrit en histoire (Ricur 1996: 7).

    Ricur rene sob o ttulo de Histria e verdade os seus primeiros escritos de

    epistemologia e filosofia da histria.20 E a verdade (a par do sentido, podemos dizer21)

    um dos motores que de forma mais ruidosa ou em surdina impele a reflexo

    fenomenolgica, epistemolgica e ontolgica de Ricur at sua ltima publicao

    sobre o acto de historiar: La mmoire, lhistoire, loubli (Seuil, Paris, 2000).22 Que

    outro cuidado pode justificar tanto labor a confrontar e a conciliar o aparentemente

    inconcilivel: objectividade e subjectividade, histria e fico, explicao e

    compreenso, cincia e narrativa, histria e memria, interpretao e metodologia

    crtica?23 Mesmo quando o dilogo da histria no directamente com a fico, mas

    com interlocutores como a narratividade, a cincia, o tempo ou a memria, a verdade 20 Em Histoire et vrit (HV, Seuil, Paris, 19551, 19642), o autor coloca os seus ensaios - enquadrem-se eles no mbito da epistemologia histrica, da histria da filosofia ou da filosofia e teologia da histria - sob a regncia da verdade. 21 Parce que lhistoire est notre histoire, le sens de lhistoire est notre sens (Ricur 1986 : 36]. 22 Fazemos nossas as palavras de Dosse: Cette dimension vritative de lhistoire est un fil conducteur majeur de Ricur dans son dernier ouvrage. Elle constitue mme ce par quoi lhistoire se diffrencie dautres formes dcriture, dautres genres comme la fiction. A ce titre, Ricur dfinit une pistmologie de lhistoire dont lambition et le pacte avec ses lecteurs est datteindre le niveau de la vracit par lcriture (2006: 22-23). 23 Falamos de verdade na acepo que lhe deu Toms de Aquino, na senda de Plato e Aristteles: adaequatio rei et intellectus- o acordo do pensamento com a coisa ou, numa traduo mais livre, a adequao do saber ao real. Acrescentamos: adequao ao real que est a montante e a jusante do pensamento. Nesse sentido, verdade no apenas correspondncia mas tambm coerncia, o que implica necessariamente a considerao no s de uma prtica metodolgica como de uma prtica literria configurativa. nesta dupla vertente que o tema da verdade em histria est directamente relacionado com o seu oposto, a fico, como bem no-lo relembra Chartier: Aujourdhui, pour les historiens, la pertinence dune interrogation sur les rapports entre histoire et vrit est directement lie son envers, cest--dire leur relation avec la fiction (1998b: 30).

  • 26

    no deixa de ser a estrela polar que orienta a reflexo de Ricur. Da pretenso

    verdade destaca-se de forma mais manifesta a dicotomia entre histria e fico -

    Lhistoire et la fiction se rfrent toutes deux laction humaine, quoiquelles le font sur la base de deux prtentions rfrentielles diffrentes. Seule lhistoire peut articuler la prtention rfrentielle en accord avec les rgles de lvidence commune tout le corps des sciences. Au sens conventionnel attach au mot vrit par la familiarit avec ce corps des sciences, seule la connaissance historique peut noncer sa prtention rfrentielle comme une prtention la vrit [Ricur 1980, in Tiffeneau 1980 : 58]24

    - e a construo deste ponto de honra constitui um dos contributos mais significativos

    de Ricur epistemologia da histria, na medida em que eleva o seu estatuto e delimita

    o seu lugar no (des)concerto terico-prtico que marcou o sculo XX, dividido entre os

    extremos do cientismo e do narrativismo.25

    Como veremos ao longo deste estudo, Ricur evita habilmente qualquer posio

    extremista ou unilateral, colaborando de forma determinante para dirimir esta contenda

    entre histria-cincia e histria-narrativa.26 Podemos dizer que o filsofo francs prope

    uma via do meio, que uma via de dilogo, de conciliao da cincia-verdade com a

    narrativa-fico, que ecoa nos trabalhos de pensadores e historiadores de craveira como

    Franois Dosse, Roger Chartier, Christian Delacroix, Le Goff, ou, entre ns, Fernando

    24 Isto no invalida que a fico no almeje tambm a verdade, apenas se trata de um outro tipo de verdade, segundo uma modalidade diferente de pretenso referencial, a pretenso a redescrever a realidade de acordo com as estruturas simblicas da fico (Ricur 1980, in Tiffeneau 1980: 58). A pretenso que guia a fico indirecta - ela visa indirectamente a nossa experincia temporal a da histria directa, mas isso no nos impede de dizer que, num outro sentido de verdadeiro e verdade, histria e fico podem ser consideradas as duas verdadeiras. 25 As ltimas trs dcadas do sc. XX conheceram uma importante reaco do chamado linguistic turn, nascido em solo americano e filho da ps-modernidade, contra a histria concebida como disciplina objectiva e portadora de natureza demonstrativa. Os narrativistas (sados do movimento do linguistic turn) trouxeram um importante contributo reconhecido por Ricur - epistemologia da histria, ao recordarem-nos que a histria tambm narrativa, arte, retrica, fico e que a sua verdade, tal como a de outras cincias, no objectiva, definitiva nem incontestvel. Contudo, ao serem exclusivos, contriburam para aumentar ainda mais o ambiente de cepticismo relativista, de descrena na verdade, que marcou a ps-modernidade, como nos conta Rui Bebiano: O carcter plural das formas de pensamento da ps-modernidade, que como sabido exclui uma ideologia ou tendncia hegemnica e se centra no discurso do multiculturalismo, tem vindo a acentuar esta redefinio dos conceitos, relativizando como nunca o valor definitivo da espcie de verdade que pode ser obtida no processo de aproximao e de conhecimento do passado. F-lo tomando os documentos singulares [] como fragmentos manipulveis (e remanipulveis) em todos os momentos pelo historiador, rompendo com a presuno cientista e assumindo com frequncia o carcter potico, como tal recorrentemente indeterminado e dependente da criatividade, da concepo da escrita e da comunicao em histria (s/d: 1). 26 como mediador e sanador deste conflito metodolgico/epistemolgico que Ricur merece ser reconhecido: Les historiens savent la dette quils ont envers Paul Ricur. [] Le livre de Ricur les a aids tre plus lucides sur leur propre pratique et comprendre comment lintention de vrit qui fonde leur discipline ne pouvait tre spare des parents qui lient son criture celle des rcits de fiction (Chartier 2002: 4).

  • 27

    Catroga (2001, 2003, 2009) e Ftima Bonifcio (1993, 1999, 1999b). A histria vista

    como um discurso crtico sobre a realidade passada, mas sem poder dispensar os

    recursos da fico para se dar a ler; para isso d ao passado a forma de intriga, cria

    continuidade entre os vestgios do passado, pe, eventualmente, em cena actores

    ficcionais (povo, classe, nao), emprega a metfora, joga com os tempos verbais, etc.27

    Prudentemente, o autor de Temps et rcit no se cansa de insistir na assimetria

    inegvel dos mtodos que histria e fico usam para se dirigir realidade: a

    historiografia tem a obrigao da verdade e o que lhe resta do acontecimento passado

    confere-lhe uma nota realista inalcanvel mesmo pela literatura mais realista. O

    historiador , filosoficamente falando, um realista, no no sentido positivista e

    empiricista da histria de Ranke, mas porque considera que h uma realidade distinta do

    acto atravs do qual conhece essa realidade. Para Ricur, a ideia de um referente

    passvel de ser reconstrudo pelo historiador basilar:

    Seule lhistoriographie peut revendiquer une rfrence qui sinscrit dans lempirie, dans la mesure o lintentionnalit historique vise des vnements qui ont effectivement eu lieu. Mme si le pass nest plus et si, selon lexpression dAugustin, il ne peut tre atteint que dans le prsent du pass, cest--dire travers les traces du pass, devenues documents pour lhistorien, il reste que le pass a eu lieu. Lvnement pass, aussi absent quil soit la perception prsente, nen gouverne pas moins lintentionnalit historique, lui confrant une note raliste que ngalera jamais aucune littrature, ft-elle prtention raliste [Ricur, TR I, 154].28

    A verdade, mais do que um tema de especulao filosfica, um critrio e um

    objectivo: um critrio que permite separar e demarcar histria e fico e um objectivo

    que desde Tucdides orienta o ofcio do historiador que pretende dizer de forma

    verdadeira a verdade sobre os homens do passado.29 Perguntar se a histria cincia ou

    27 Outros pensadores franceses, contemporneos de Ricur, chamaram a ateno para este vnculo que une narrativa e operao historiogrfica. O pioneiro foi Paul Veyne, que em 1971 deu estampa o seu importante texto Comment on crit lhistoire, Seuil, Paris. Segue-se-lhe Michel de Certeau, no seu artigo Lopration historiographique, publicado, numa verso truncada, em 1974, em Faire de lhistoire e, numa verso completa, na sua clebre obra Lcriture de lhistoire (1975), que influencia indelevelmente, e a vrios nveis, a reflexo de Ricur, nomeadamente, a diviso tridica da operao historiogrfica; a formulao do conceito de representncia, com a categoria do outro; e a ideia de histria como tmulo, referente a uma potica do ausente. O outro pensador foi Jacques Rancire, que no seu livro Les mots de lhistoire (1992) define a potica do saber como o conjunto dos procedimentos literrios pelos quais um discurso se subtrai literatura, ganha um estatuto de cincia e o significa (p. 21). 28 As palavras de Roger Chartier, em Au bord de la falaise (1998 : 247), convergem com o pensamento de Ricur: Cette rfrence une ralit situe hors et avant le texte historique et que celui-ci a pour fonction de restituer sa manire na t abdique par aucune des formes de la connaissance historique, mieux mme, elle est ce qui constitue lhistoire dans sa diffrence maintenue avec la fable et la fiction. 29 Dosse 2000 : 13-17: Thucydide ou le culte du vrai. Desde o alvorecer da histria que se julga o historiador pela medida da verdade. Com razo ou sem ela, Herdoto passa muito tempo por mentiroso [] e Polbio, no livro XII das suas Histrias, ataca sobretudo um confrade, Timeu (Le Goff 1984: 166).

  • 28

    narrativa, objectividade ou subjectividade, explicao ou compreenso, memria ou

    esquecimento tentar perceber, por um lado, qual o capital de confiana e rigor

    cientfico que se lhe pode atribuir e, por outro, a qualidade da verdade que pe a

    descoberto acerca da nossa condio histrica, comparativamente com outras cincias

    sociais e humanas e com a literatura.

    No estranhamos, pois, que sob o signo da verdade tenha desabrochado a reflexo

    de Ricur sobre a praxis histrica.30 A sua primeira incurso relevante no domnio da

    metodologia da histria data de 1952, por ocasio de uma comunicao nas Jornadas

    pedaggicas de coordenao entre o ensino da filosofia e da histria.31 A profere o

    texto que dispor entrada de Histoire et vrit (1955), com o sugestivo ttulo de

    Objectivit et subjectivit en histoire. Os paralelos que estabelece entre histria e

    cincia e histria e filosofia tm como preocupao latente a relao entre histria e

    verdade;32 verdade na dupla acepo: no sentido de rigor cientfico (enquanto

    capacidade de dizer o que realmente aconteceu); e no sentido de revelador da

    subjectividade histrica que procuramos compreender e explicar. A primeira

    constatao a de que a objectividade alcanada pelo historiador de um tipo

    especfico, mais limitada do que a alcanada pelos cientistas, certo, mas ainda assim

    suficiente para no deixar a histria envergonhada diante das outras cincias. O que

    poderia ser considerado como um obstculo verdade, a saber, a interferncia

    subjectiva-interpretativa-selectiva-explicativa do historiador, de facto um limitador da

    verdade objectiva/cientfica, mas no da verdade subjectiva filosfica; pelo contrrio,

    a interveno do historiador no desconexo material histrico que permite concluir e

    salientar verdades significantes do passado dos homens e dos homens do passado.

    Este artigo de abertura bastante significativo, porquanto encerra em si, de forma

    ainda seminal, muitos dos tpicos que Ricur proficuamente desenvolver em Temps et

    rcit e em La mmoire, lhistoire, loubli. Assim, embora Histoire et vrit no seja

    30 Signo no tomado aqui na acepo saussurriana que serviu de base semitica estruturalista - o que seria contrariar o prprio pensamento de P. Ricur, que muitas vezes, em nome do referente e do sentido, combateu o conceito de signo em favor do de frase como unidade mnima de discurso -, mas mais na acepo de sinal ou antes de trao, aquele trao deixado que uma marca do passado no presente e condio ontolgica da operao historiadora. Adiante,veremos como este trao tem a dupla condio de signo e efeito. 31 Em bom rigor, P. Ricur aborda pela primeira vez o tema da histria em 1949 com o artigo Husserl et le sens de lhistoire, mas por se tratar de um estudo de caractre philosophique trop technique (HV, 9: nota 1), o autor opta por deix-lo de fora da compilao de Histoire et vrit. 32 Justamente, Dosse, referindo-se a este ensaio do filsofo francs, sublinha o contrato de verdade, a relembrado por Ricur, que desde Herdoto e Tucdides guia o trabalho do historiador: Ricur rappelle les rgles qui rgissent ce contrat de vrit qui, depuis Thucydide et Hrodote, guide toute investigation historienne et fonde sa mthodologie (2006: 19).

  • 29

    proeminente no panorama da epistemologia histrica empreendida por Ricur (s o

    primeiro dos ensaios se pode classificar verdadeiramente de epistemolgico), ao

    escolher como estruturador temtico da compilao o binmio histria e verdade, acaba

    por lanar as bases de todo um programa de pesquisa que se repercutir nas obras

    subsequentes.33

    Logo em Temps et rcit I (pp. 125-126), na descrio dos processos mimticos

    que fazem a inteligibilidade narrativa, Ricur tem o cuidado de abdicar do termo

    fico para designar a operao mimtica que abre o espao do como se (a que d

    os nomes de configurao narrativa ou mimesis II) e guard-lo para fazer o

    contraste com a histria (cf. TR I, 154 e 397: nota 1). Apesar de a crtica literria, de

    um modo geral, entender a fico como sinnimo de configurao narrativa, Ricur

    emprega o conceito como antnimo da pretenso da narrativa histrica a constituir uma

    narrativa verdadeira.34 Com efeito, a histria mise en intrige e resulta tambm de um

    processo de configurao narrativa, mas no uma fico - ainda que com ela se

    entrecruze nalguns pontos - porque est obrigada a aproximar-se, tanto quanto possvel,

    da verdade dos factos ocorridos. Discrepncias relevantes ao nvel da mimesis I e da

    mimesis III no permitem a sobreposio de gneros, apenas entrecruzamento.

    verdade que ambos vo ao campo da praxis recolher a matria-prima do seu trabalho,

    mas a histria dirige-se para aces realmente ocorridas no passado, tendo como

    referncia os traos deixados, e, ainda que escolha o mesmo material, a fico no est

    obrigada ao nus da prova, porque a sua referncia metafrica.35 A prova (assente nos

    33 Esta obra, como o prprio autor admite no prefcio, resulta da reunio de alguns ensaios produzidos para circunstncias diversas, sem uma aparente espinha dorsal ou conexo lgica. No entanto, possvel ver neles uma certa ordem com base nas constantes de ritmo e tema. Agrupados em torno de dois plos fundamentais, o da metodologia histrica e o da tica-poltica-cultura, estes ensaios encontram um ritmo nico (de propores invertidas em cada uma das partes) na recusa de dissociar a reflexo levada a cabo sob a alada dos conceitos directores de histria e verdade do compromisso social e poltico e de intervir activamente na crise da nossa civilizao. Por sua vez, a unidade temtica conseguida sob a batuta da verdade da histria, que na primeira parte rege o conhecimento histrico e, na segunda, a aco histrica. 34 Je rserve toutefois le terme de fiction pour celles des crations littraires qui ignorent lambition qua le rcit historique de constituer un rcit vrai. Si, en effet, nous tenons pour synonymes configuration et fiction, nous navons plus de terme disponible pour rendre compte dun rapport diffrent entre les deux modes narratifs et la question de la vrit. Ce que le rcit historique et le rcit de fiction ont en commun, cest de relever des mmes oprations configurantes que nous avons places sous le signe de mimsis II (Ricur, TR II, 12). 35 A despeito das diferenas referenciais, Ricur reconhece que referncia por traos e referncia metafrica fazem um intercmbio de elementos. A referncia por traos aprende da referncia metafrica, comum a todas as obras poticas, a reconstruir o passado com o auxlio da imaginao. Por outro lado a referncia da narrativa ficcional aprende da referncia histrica a narrar como se as coisas tivessem realmente acontecido, recorrendo aos tempos verbais do passado para narrar o irreal. Nisto consiste, basicamente o entrecruzamento de histria e fico: cf. Ricur, TR I, 154; TR III, 329-348.

  • 30

    testemunhos transformados em documentos) e o tipo de referente fazem toda a

    diferena. Em termos de refigurao, verifica-se que ambas as artes se dirigem a um

    leitor ou a um pblico que recebe o texto histrico e ficcional e a partir deles refigura o

    mundo da praxis que o texto desdobra, mas ainda a h discrepncias: entre historiador e

    leitor h um pacto de verdade sem paralelo em qualquer outro tipo de literatura dita

    narrativa, mesmo realista.36 Dito de outro modo, histria no se aplica o preceito

    coleridgiano de suspenso voluntria da descrena.

    Em Temps et rcit, tal como em La mmoire, lhistoire, loubli, o conceito

    fundamental que garante a verdade da histria o mesmo que garante o seu referente

    extra-textual: a representncia. O facto histrico no fica enredado nas estruturas da

    narrativa auto-referencial, por isso, a histria no pode ser vista apenas como

    representao; tambm e, acima de tudo, como representncia.37 A noo, ainda que

    aportica e enigmtica, chega para nos dar conta de uma histria que tende para um

    passado realmente acontecido, ausente fisicamente, presente nos traos e testemunhos

    deixados, entretanto tornados provas documentais que conferem histria uma tnica

    cientfica e realista;38 uma histria que movida por uma dvida para com os mortos;

    36 Cest une attente du lecteur du texte historique que lauteur lui propose un rcit vrai et non une fiction (Ricur 2000b: 731). 37 Ricur vite tout enfermement de lcriture dans la seule strate discursive et accorde une place nodale un concept dj utilis dans Temps et Rcit qui est celui de reprsentance. Par l, il entend la cristallisation des attentes et des apories de lintentionnalit historienne. La reprsentance est la vise de la connaissance historique elle-mme place sous le sceau dun pacte selon lequel lhistorien se donne pour objet des personnages, des situations ayant exist avant quil nen soit fait rcit. Cette notion se diffrencie donc de celle de reprsentation dans la mesure o elle implique un vis--vis du texte, un rfrent que Ricur qualifie de lieutenance du texte historique (Dosse 2006: 27). 38 Ao propor a noo de representncia, P. Ricur recusa a separao radical entre o real e as representaes que dele d o historiador. Todavia, esta noo constitui mais um problema ou enigma do que propriamente uma soluo, porque a histria construo, configurao e no cpia ou coincidncia; o que foi j no e no volta a ser e a traduo verbal do acontecimento no exactamente a mesma coisa, sempre outra coisa, anloga ou semelhante primeira. A ambio de verdade e os limites da noo de representncia so determinados pela distino essencial entre facto e acontecimento. A distino entre os factos declarados pelo historiador e os acontecimentos reais rememorados um acautelamento contra uma epistemologia ingnua da coincidncia entre facto construdo e acontecimento real. No se trata de um regresso ao mtodo historiogrfico dito positivista, objectivista. O estatuto epistemolgico especfico do facto histrico resulta de uma reciprocidade entre a construo e o estabelecimento do facto com base no documento; , justamente, porque o facto construdo/estabelecido a partir de documentos que ele pode ser dito falso ou verdadeiro. No s o facto construdo deve ser separado do acontecimento real como tambm do trabalho de interpretao, distino que H. White no tem em conta e que Ricur procura instituir. Recusar a distino entre facto histrico construdo e interpretao ao nvel da pesquisa documental, com o pretexto de evitar uma regresso positivista, tem como consequncia a impossibilidade de qualquer julgamento de verdade sobre o facto histrico. Pior ainda, porque este julgamento se torna mais difcil nas fases de explicao/compreenso e de representao literria, mais contaminadas que esto pela interpretao. Eis porque Ricur tem necessidade de deixar bem clara a autonomia da operao documental de estabelecimento/construo do facto relativamente ao trabalho de interpretao ou de configurao narrativa; o que equivale a defender a

  • 31

    uma histria que exige do historiador o cumprimento de um pacto de verdade com o

    leitor. Como saldar esta dvida, como cumprir este pacto, como atestar, contra a iluso e

    a opacidade da linguagem, a existncia de um facto real extra-textual? Em primeiro

    lugar, a tese de Temps et rcit defende que a representncia, enquanto signum da

    verdade, consiste em percorrer o ciclo da hermenutica histrica sob o signo do Mesmo,

    do Outro e do Anlogo e representar o passado tal como aconteceu, isto , de um modo

    similar - mas no totalmente coincidente - ao como se da fico. Deste modo, preserva-

    se o carcter ontolgico do facto histrico, marcado pela dupla caracterstica de

    presena e ausncia, passvel de uma reconstruo analgica. Todavia, representar no

    basta. A fico tambm representa. Os mortos, sobretudo as vtimas do horror, merecem

    que se procure e se diga a verdade, com base nos documentos/provas encontradas. Em

    La mmoire, lhistoire, loubli, Ricur esclarecer que a nica maneira possvel de

    furar as malhas narrativas - que tendem a fechar-se em torno de um sentido e de um

    significado - de modo a atestar a realidade ou o referente externo, obrigar a fase

    representativa ou da escrita a articular-se com a fase documental e de

    compreenso/explicao.39 A representncia liga-se a esta condio de vai-e-vem entre

    as diversas fases do trabalho do historiador e salva a histria de se perder no labirinto do

    linguistic turn. No chega, pois, escrever a histria dando-lhe legibilidade e at

    visibilidade, preciso fundamentar a representao sobre a memria arquivada dos

    testemunhos e sobre os modos de conexo causal ou final.40 Por isso, Ricur pugna por

    existncia de referente extra-textual e de procedimentos cientficos prprios que o saber histrico no partilha com a operao configurativa ficcional. 39 Cest ensemble que scripturalit, explication comprhensive et preuve documentaire sont susceptibles daccrditer la prtention la vrit du discours historique (Ricur, MHO, 363). Delacroix, falando do conceito de verdade histrica em Paul Ricur (2005: 103-112), salienta um dado insistentemente sublinhado por Ricur em La mmoire, lhistoire, loubli: a interligao das trs fases da operao historiogrfica e o poder dado prova documental como imperativo que se impe s restantes fases de compreenso/explicao e da representao literria. Citamos: Loriginalit de [ La mmoire, lhistoire, loubli], par rapport aux dveloppements antrieures de P. Ricur sur le ncessaire projet dobjectivit de lhistoire, est dinsister sur limbrication de ces trois moments mthodologiques [] et sur la contrainte incessante de limpratif documentaire avec son noyau dur de la critique des tmoignages - qui opre aussi bien dans le moment dexplication/comprhension que dans celui de lcriture. Ce dplacement de la contrainte de la preuve documentaire tout au long de lopration historiographique vise, en particulier, rappeler que la phase de reprsentation/criture, pourtant expose la clture discursive, a avant tout en charge de raliser la vise de vrit propre au discours historique (Delacroix 2005: 105). 40 Nesse sentido, as configuraes narrativas e retricas tm um papel paradoxal quanto ao projecto de verdade da escrita histrica: [] structurant son insu le lecteur, elles peuvent jouer le double rle de mdiations en direction du rel historique et dcrans opposant leur opacit la transparence prtendue des mdiations (Ricur 2000b: 742). As constries narrativas e retricas (analisadas pela semitica estrutural e pela escola narrativista) exercem uma aco ambgua relativamente inteno de representar com verdade o passado, porque, por um lado, nos aproximam do acontecimento dando-lhe legibilidade e visibilidade, mas, ao mesmo tempo, levantam uma cortina opaca entre a realidade e a sua representao

  • 32

    um realismo crtico, entendido como a inteno de a histria ser uma reconstruo

    verdadeira do passado.41

    Defender a verdade da histria passa por defender o seu carcter cientfico, pelo

    cuidado de no confundir explicao e narratividade e retrica, sabendo, contudo, que

    no h explicao sem coerncia narrativa. Nesse sentido, a dialctica

    compreenso/explicao, em Temps et rcit, - que sustenta um corte epistemolgico

    entre explicao histrica e explicao narrativa ao nvel da explicao, das entidades e

    do tempo e a mesma articulao reforada em La mmoire, lhistoire et loubli, desta

    feita com a coerncia narrativa, so contributos inequvocos para a inteno de verdade

    que anima o trabalho do historiador. Sem dvida que a histria se ergue a partir da

    matriz narrativa, sem dvida que a histria uma arte, uma arte narrativa e, mesmo

    quando envereda pelas longas duraes e pelas estruturas sincrnicas, ela no perde essa

    marca matricial. Todavia, isso no invalida que a histria seja uma cincia, procure o

    rigor, a exactido, a verdade, e, por isso, no possa ater-se exclusivamente ao poder

    explicativo da inteligibilidade narrativa e procure ser uma fico cientfica.42 Tem

    modos prprios de se explicar, de percorrer o tempo, de constituir acontecimentos, de

    observar e sintetizar os factos. E tudo isto s cientfico porque est sujeito a crtica e

    reviso constante por parte da comunidade cientfica dos historiadores, que tem por trs

    o suporte insubstituvel da prova documental, a qual orienta a explicao e certifica a

    representao. Qualquer obra histrica alvo de atestao ou refutao.

    Em La mmoire, lhistoire, loubli, a verdade assumidamente uma coordenada

    para a fenomenologia da memria e para a hermenutica histrica, porm, ao nvel da

    em forma narrativa, pondo em causa a objectividade e a verdade histricas. Por tudo isto, Ricur decide, na sua ltima obra, abordar a questo narrativa em histria at considerao dos signos de literariedade, coisa que no fez em Temps et rcit, dando azo a que se confundisse a composio narrativa com a conexo explicativa. 41 Le but de P. Ricur est prcisment de dmontrer que cest le travail lui-mme de lhistorien, le respect de procdures et mthodes propres, qui permettent non seulement la seule sortie scientifique possible de lnigme de la reprsentance mais aussi de surmonter le handicap historien de labsence de reconnaissance. [ ] Lintervention pistmologique de P. Ricur vise donc dfendre, avec les historiens, la ncessit de la dimension critique de lhistoire, seule dmarche disponible au service de la vrit en histoire (Delacroix 2005: 110-111). 42 [..] ela para ns uma fico, no sentido em que a histria sempre uma modelao do passado. E com isto no estamos a admitir que ela no uma cincia e muito menos que ela apenas uma arte, j que no entendemos a cincia como um conhecimento que estabelece leis rgidas, que devem necessariamente conduzir previso, como se existisse apenas um s paradigma cientfico. Por outro lado, mesmo que queiramos afastar a histria o mais possvel da literatura, nunca o conseguiremos de todo. A fico de que falvamos , por assim dizer, uma fico cientfica e no uma fico literria, mas no esconderemos o drama do historiador no acto da escrita da histria. O certo que ele no deixa de usar, ao descrever e at ao interpretar, uma linguagem literria, ainda que reduzida, mesmo que se esforce por utilizar uma terminologia rigorosa e por formular juzos objectivos (Lus Reis Torgal, in Torgal; Mendes; Catroga 1998: 155-156).

  • 33

    reflexo epistemolgica que ela se revela uma condicionante multifacetada.43 Mas se, de

    algum modo, a verdade o subsolo de tudo o que Ricur disse acerca de histria e

    fico, ela transcende em muito este tpico, alastrando-se a outras reas do saber

    examinadas por Ricur, como o comprova a heterogeneidade dos ensaios reunidos em

    Histoire et vrit. A busca de unidade e operatividade metodolgica leva-nos a

    concentrar os nossos esforos no par histria e fico, sendo o ncleo em torno do qual

    gravitam grande parte das reflexes do filsofo francs sobre a histria. Por uma

    questo de pertinncia e coerncia lgica, e seguindo a prpria opo do autor,

    integramos neste primeiro captulo (sob o signo da verdade) a nica reflexo de teor

    epistemolgico que o prprio inseriu em Histoire et vrit e a reflexo de carcter mais

    hermenutico que, posteriormente, constitui uma reviso e complemento do par

    objectividade/subjectividade: falamos do conceito de interpretao, tal como ele

    apresentado em La mmoire, lhistoire, loubli. Exceptuando esta prolepse, tudo o mais

    seguir uma ordem aproximadamente cronogrfica que tambm (crono)lgica.

    43 Referindo-se, num dos artigos que antecedem a publicao de La mmoire, lhistoire, loubli, s trs fases que decanta na epistemologia do processo historiogrfico, Ricur bastante assertivo quanto ao papel da(s) verdade(s) como espelho de toda a reflexo: Ces trois niveaux peuvent tre ordonns en fonction de lide de vrit. On ne peut en effet appliquer lhistoire un concept homogne de vrit. Les trois niveaux distingus offrent trois versions diffrentes de lide de vrit (1998b: 24). Num outro artigo, insiste na mesma ideia: [] le destin de la vrit en histoire ne se joue pas au seul niveau terminal de lcriture au sens scripturaire et littraire, mais tout au long de la chane pistmologique. [] Cest lopration historiographique intgrale qui doit tre value en terme de vrit dans la reprsentation du pass (1996: 15).

  • 34

    I. OBJECTIVIDADE E SUBJECTIVIDADE EM HISTRIA

    Da obra Histoire et Vrit ganha particular relevo para a nossa pesquisa o j

    referido ensaio sobre objectividade e subjectividade em histria (Ricur, HV, 27-50).

    Os estudos seguintes, embora continuem sob a batuta do binmio histria-verdade,

    estendem-se do mbito da epistemologia histrica para os da histria da filosofia e para

    os da filosofia e da teologia da histria.44 Esta reflexo, apresentada por Paul Ricur no

    quadro de umas jornadas pedaggicas acerca da coordenao entre o ensino da filosofia

    e o da histria, segue uma determinada ordem lgica: da objectividade da histria

    subjectividade do historiador e destas subjectividade filosfica. As trs etapas, fiis ao

    contexto da comunicao, desembocam num confronto entre a histria dos historiadores

    e a histria dos filsofos.

    Uma das ideias fundamentais deste texto precisamente a de que histria e

    filosofia precisam uma da outra. A histria da filosofia tem, indubitavelmente,

    horizontes diferentes dos da histria propriamente dita; segue um caminho bifurcado

    que tanto pode ir na direco de uma lgica da filosofia, pela procura de um sentido

    coerente atravs da histria, ou ir ao encontro da intimidade e da singularidade de uma

    filosofia ou de um filsofo particulares. No entanto, em ambos os modos de fazer

    aflorar a subjectividade da histria, a histria dos historiadores serve de suporte

    informativo a retomar pelo filsofo. No primeiro caso, para a reflexo acerca do sujeito

    e da subjectividade histrica, porque todas as filosofias andam em busca da verdadeira

    subjectividade, do verdadeiro acto de conscincia (Ricur, HV, 41), o filsofo leitor

    retoma o trabalho do historiador, fazendo coincidir a sua tomada de conscincia com a

    retomada da histria.45 Este acto de conscincia, que s possvel atravs da meditao

    do texto histrico, cumpre num leitor (neste caso, filsofo) o trabalho do historiador,

    pois no h texto sem leitor. A histria retomada (reprise) pelo filsofo permite-lhe

    44 O ensaio de abertura consagrado ao estudo da objectividade da histria ocupa uma posio estratgica na economia da obra, uma vez que serve de antecmara para os restantes, ao introduzir os conceitos nucleares de histria e verdade, conceitos estes que para alm de emprestarem o nome ao ttulo da obra permitem estabelecer um fio condutor entre os vrios ensaios. O segundo, Lhistoire de la philosophie et lunit du vrai (pp. 51-68), parte da constatao alcanada no anterior de que a verdade da obra histrica limitada. Ricur o que faz estender este princpio ao campo da histria da filosofia que ensina na Universidade, uma vez que a histria da filosofia prossegue a partir da histria dos historiadores, guiada por uma tomada de conscincia histrica. Nesse sentido, acrescenta Ricur (HV, 12), ela deriva da histria e no da filosofia. 45 Le philosophe a une manire propre dachever en lui-mme le travail de lhistorien, cette manire propre consiste faire concider sa propre prise de conscience avec une reprise de lhistoire (Ricur, HV, 41).

  • 35

    formular uma histria do esprito que no absorve nem anula a histria dos

    historiadores. No segundo caso, retoma-se o texto histrico para determinar toda a

    problemtica de uma poca e as influncias do passado que ecoam em determinada

    filosofia, sem que o trabalho do historiador da filosofia se confunda com o do

    historiador propriamente dito.46

    Por sua vez, esta dupla leitura filosfica que fez surgir o homem como

    conscincia e como subjectividade tambm pode ser til ao historiador, revelando-lhe

    uma histria contnua como nico sentido em marcha - e descontnua - como

    constelao de pessoas (Ricur, HV, 49), e ainda a necessidade de trabalhar aqum

    desta diviso da filosofia para assumir como objecto completo de estudo a histria

    factual e a histria estrutural.

    Concluindo, apesar de o ofcio do historiador bastar para discernir a boa e a m

    subjectividade do historiador, o historiador precisa da reflexo filosfica para discernir a

    boa e a m objectividade da histria. A filosofia relembra histria o erro que seria

    voltar-se exclusivamente para uma espcie de objectivismo que omite o homem,

    composto por estruturas, foras e instituies, em detrimento dos homens e dos valores

    humanos que constituem as civilizaes.47

    Estas consideraes de carcter filosfico, que aqui expusemos abreviadamente

    para dar uma viso holstica do ensaio de Ricur, surgem no seguimento da

    problemtica epistemolgica que faz sobressair a dialctica entre a objectividade

    especfica da prtica histrica e a subjectividade do historiador, que leva a concluir que

    46 [Lhistorien de la philosophie] a seulement fait un autre choix que lhistorien proprement dit : le choix pour les existants exceptionnels et pour leur uvre, en tant que cette uvre est une uvre singulire, irrductible des gnralits, des types reprables (ralisme, empirisme, rationalisme, etc.) ; le choix de cette lecture implique que lconomique, le social, le politique, ne sont considrs que comme influence, situation, facilitation par rapport lmergence de tel crateur de penses, de telle uvre singulire. Ce crateur et cette uvre sont alors le centre de gravit, le rceptacle, le porteur unique de toutes les influences subies et de toutes les influences exerces (Ricur, HV, 46-47). 47 [] lobjet de lhistoire cest le sujet humain lui-mme (Ricur, HV, 50). Esta uma ideia tambm muito cara a Marc Bloch, que no apreciava a definio de histria como a cincia do passado, considerando absurda a ideia de que o passado, como tal, pudesse ser objecto da cincia, e definia a histria como a cincia dos homens no tempo (1952: 18). Por outro lado, esta uma mxima que Ricur perfilha e no se cansar de frisar em Temps et rcit, a propsito do eclipse da narrativa na historiografia francesa praticada pela escola dos Annales. Para que haja narrativa fundamental personagens e acontecimentos que suscitem mudanas. J Antoine Prost, invocando justamente L. Febvre e Marc Bloch, insiste na mesma tecla, mas atribuindo trs caractersticas ao objecto da histria: humano, e mesmo as histrias que parecem mais afastadas do carcter humano acabam por indirectamente conduzir ao humano; colectivo, a histria interessa-se por grupos, e mesmo quando se concentra num s indivduo porque ele representativo de todo um grupo ou classe; por fim, concreto, situado num tempo e num espao (Prost 1996: 148-149).

  • 36

    a histria deriva de uma epistemologia mista, de um entrelaamento de objectividade e

    subjectividade, de explicao e compreenso;48 dialctica do mesmo e do outro afastado

    no tempo, confronto entre a linguagem contempornea e uma situao passada que pe

    a descoberto a equivocidade da linguagem histrica.

    Quando se fala de objectividade no contexto da histria, impe-se o cuidado de

    no a identificar totalmente com a objectividade prpria das cincias fsicas e

    biolgicas. A objectividade histrica de outra natureza. Apesar disso, do mesmo modo

    que essas cincias, a histria tem como objectivo o que o pensamento metdico (Ricur

    jamais descura o mtodo e a anlise crtica) elaborou, ordenou, compreendeu e pode dar

    a compreender, da que seja legtimo esperar que ela eleve o passado das sociedades

    humanas a um nvel de objectividade. Acontece, porm, que os nveis de objectividade

    variam consoante os mtodos e a histria tem um mtodo prprio, que acrescenta uma

    nova provncia ao imprio da variedade da objectividade (Ricur, HV, 28).

    A objectividade em histria fixada pelo ofcio cientfico do historiador e no

    pela reflexo do filsofo. A rectificao a que o labor histrico est sujeito atesta a

    existncia de uma objectividade prxima da das cincias fsicas.

    Nous attendons de lhistoire une certaine objectivit, lobjectivit qui lui convient ; la faon dont lhistoire nat et renat nous latteste ; elle procde toujours de la rectification de larrangement officiel et pragmatique de leur pass par les socits traditionnelles. Cette rectification nest pas dun autre esprit que la rectification que reprsente la science physique par rapport au premier arrangement des apparences dans la perception et dans les cosmologies qui lui restent tributaires [Ricur, HV, 28, 29].49

    Prxima mas distinta. Ricur retira do clebre texto de Marc Bloch os alicerces da

    objectividade possvel no trabalho do historiador. A inacabada obra Apologie pour

    48 [Ricur] rcuse notamment la fausse alternative, qui va devenir de plus en plus prgnante dans lopration historiographique, entre lhorizon dobjectivation, avec son ambition scientiste, et la perspective subjectiviste avec sa croyance en une exprience de limmdiatet quant la capacit procder la rsurrection du pass. Lobjet est de montrer que la pratique historienne est une pratique en tension constante entre une objectivit jamais incomplte et la subjectivit dun regard mthodique qui doit se dprendre dune partie de soi-mme en se clivant entre une bonne subjectivit, le moi de recherche et une mauvaise, le moi pathtique (Dosse 2006: 18 ; vide, etiam, Delacroix , Dosse, Garcia 2007: 370-374). 49 Le Goff, reflectindo acerca das revises incessantes a que deve estar sujeito o trabalho histrico, cita este passo de Ricur dizendo que foi um dos dois filsofos que melhor exprimiu a lenta marcha da histria para a objectividade (1984: 168, 169).

  • 37

    lhistoire ou Mtier d historien fornece as vrias etapas da construo da objectividade:

    observao histrica, crtica, e anlise histrica.50 A cada uma corresponde um captulo.

    A observao diz respeito apreenso do passado. No se trata de uma apreenso

    directa, mas atravs de traos ou vestgios deixados pelo passado. Nesse sentido,

    segundo a clebre frmula de Franois Simiand, retomada por M. Bloch (1952: 34),

    toda a histria um conhecimento por traos.51 Isso significa tambm que toda a

    histria uma reconstituio. O facto de o historiador no estar nunca diante do objecto

    passado no retira crdito cientfico sua actividade, pois

    reconstituir um acontecimento ou antes uma srie de acontecimentos, ou uma situao, ou uma instituio, a partir de documentos, elaborar uma conduta de objectividade de um tipo especfico, mas irrecusvel: pois esta reconstituio supe que o documento seja interrogado, forado a falar; que o historiador v ao seu encontro, lanando-lhe uma hiptese de trabalho [Ricur, HV, 29].

    Deste modo, o historiador/questionador eleva o trao ao estatuto de documento

    significante e institui o facto histrico, j que o documento no era documento antes de

    o historiador o isolar para o questionar.52 Desta actividade metdica, em tudo similar

    das outras cincias, surge a objectividade do facto cientfico, tambm ele idntico aos

    outros factos cientficos. Podemos, pois, concluir que o facto cientfico no dado

    partida, mas resulta de uma operao crtica.53

    A anlise diz respeito actividade do historiador que procura uma explicao.

    Para Marc Bloch, a explicao histrica no se faz sem a prvia constituio de sries

    de fenmenos - econmi