terrorismo na américa do sul - francisco carlos

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Editora Multifoco

Terrorismona AmricadoSulUma tica brasileira.organizadores

Francisco Carlos Teixeira da Silva Daniel Santiago Chaves

APOIO:

Rio de Janeiro, 2010

EDITORA MULTIFOCO Simmer & Amorim Edio e Comunicao Ltda. Av. Mem de S, 126, Lapa Rio de Janeiro - RJ CEP 20230-152

CAPA e DIAGRAMAO

Guilherme Peres

Terrorismo na Amrica do Sul: uma tica brasileira.1 Edio Dezembro de 2010 ISBN: 978-85-7961-276-3

Todos os direitos reservados. proibida a reproduo deste livro com fins comerciais sem prvia autorizao do autor e da Editora Multifoco.

Dedicamos esse livro a todos que se engajaram e se engajam, diariamente, na luta por um Rio de Janeiro e um Brasil sem terror.

SumrioINTRODUO

.......................................................................... ...................

9 17

TERRORISMO E GUERRA NA ERA DA ASSIMETRIA GLOBAL

Francisco Carlos Teixeira da Silva

O TERRORISMO INTERNACIONAL CONTEMPORNEO E SUAS CONSEQNCIAS PARA A SEGURANA E DEFESA DO BRASIL

...............

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Alexandre Arthur Simioni

VIOLNCIA POLTICA E CONTROLE DE MASSAS: LIES DO SUCESSO BRASILEIRO NA MELHORA DOS NVEIS DE SEGURANA NO HAITI

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113

Carlos Chagas Braga

A RSSIA FACE AO TERRORISMO

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137

Alexander Zhebit

O PROBLEMA DO TERRORISMO INTERNACIONAL NA AMRICA DO SUL E A TRPLICE FRONTEIRA: HISTRICO E RECOMENDAES

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161

Arthur Bernardes do Amaral

DIMENSO AMAZNICA DO CONFLITO COLOMBIANO E SEUS EFEITOS NAS POLTICAS DE SEGURANA CONTINENTAL E BRASILEIRA

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185

Licio Caetano Monteiro

NOS ANDES, RASTROS DE VIOLNCIA: SENDERO LUMINOSO E EJERCITO GUERILLERO TUPAC KATARI

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205

Daniel Chaves e Rafael Araujo

ENTREVISTA COM O PROFESSOR PAULO GABRIEL HILU PINTO

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221

ResenhasA BATALHA DE ARGEL - RESISTNCIA E TERROR NO PROCESSO DE INDEPENDNCIA DA ARGLIA

......................................................

249

Ricardo Pinto Dos Santos

DRESDEN! HIROSHIMA! VIETN! - REFLEXES SOBRE O GRUPO BAADER-MEINHOF - O FILME

.......................................................

261

Carlos Leonardo Bahiense da Silva

NOVA YORK SITIADA

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274

Karl Schurster

A SOMA DE TODOS OS MEDOS

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279

Igor Lapsky da Costa Francisco

PosfcioTERROR E CRIME ORGANIZADO NO RIO DE JANEIRO

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285

Francisco Carlos Teixeira da Silva

Introduo

Superada a Guerra Fria (1947-1991), sua geopoltica e as implicaes da bipolaridade (Estados Unidos versus Unio Sovitica) para a segurana e a defesa nacional das naes, cabe problematizar as novas condies vigentes nas relaes internacionais depois de 1991 (fim da Unio Sovitica). Durante o perodo entre 1991 e 2001 Administrao Bush, snior e as duas Administraes Clinton deu-se uma grande expectativa, amplamente otimista, num re-ordenamento mais harmonioso das relaes internacionais, com a diminuio da presso e das exigncias sobre segurana e defesa das naes. Contudo, desde 1993 com o primeiro ataque terrorista ao World Trade Center e os subseqentes ataques s embaixadas americanas no Qunia e Tanznia, depois s tropas americanas na Arbia Saudita e ao USS Cole, culminando no ataque de 11/09/2001 contra Nova York e Washington tal fase de transio encerrar-se-ia de forma trgica, inaugurando uma nova fase de pessimismo e de obsedante preocupao com segurana e defesa nacional. Ao mesmo tempo em que avanam as novas condies de insegurana e incerteza, avana tambm, de forma paradoxal, a globalizao. As condies tcnicas e econmicas para a generalizao da circulao de idias, capitais, bens, etc. asseguram o surgimento9

de uma rede global de transies de bens materiais e imateriais, de trocas simblicas e de alto valor financeiro, criando pela primeira vez de forma absoluta a anunciada aldeia global. O paradoxo antes afirmado explicita-se nas caractersticas mais marcantes do framework da globalizao: um mundo mais unificado, mais inseguro e mais incerto. Emergem, em especial aps 2001 Administrao Bush II e os mega atentados terroristas fortes tenses polticas, tericas e econmicas entre unilateralismo versus multilateralismo, com retorno da guerra inter-estatais (como no Afeganisto, 2001 ou Iraque, 2003) ou intra-estatais (Congo/Kinshasa, Sudo) e a recorrncia dos genocdios (Iugoslvia, 1999; Sudo, 2005) . O carter multilateral das crises e a emergncia do unilateralismo lanam suas bases tericas e polticas em antigos paradigmas do campo das Relaes Internacionais e promovem compreenses diferenciadas das novas condies vigentes nas relaes internacionais ps-1991. Tais paradigmas sero, por sua vez, as bases para a formulao de polticas nacionais de Segurana e Defesa Nacional, tambm diferenciadas. Mesmo no interior de pases o debate entre unilateralismo e multilateralismo, muitas vezes tingido pela antiga rivalidade terica entre idealistas kantianos e realistas hobbesianos, atingira o conjunto das instituies formuladoras de polticas pblicas na rea de Relaes Internacionais, Segurana e Defesa (RI,S&DN) . Fenmeno histrico e poltico, a conceituao sobre o terrorismo uma questo contempornea de difcil delimitao e incipiente consenso sobre os seus limites jurdicos ou tericos. Pouco ou quase nenhum consenso restou sobre o assunto nos diversos foros de debate da comunidade internacional, nas discusses das instituies ou da sociedade civil organizada. ainda um horizonte distante essa caracterizao, muito em parte pelo duvidoso uso comum desta caracterizao a todos os sujeitos polticos e sociais, pela sua imposs10

vel universalidade no seio de todas as culturas e pela prpria posio destes sujeitos na trama e impactos das decises no plano da poltica internacional. No menos relevante, os critrios de aceitao tica e moral sobre o uso da fora e da violncia esbarram no tambm improvvel consentimento comum sobre os juzos crticos de racionalidade, justia e direito a legitimidade dos usos da fora. Por um lado, esse conjunto de salva-guardas se circunscreve apenas aos reconhecidos Estados, como forma de organizao a qual os cidados so obedientes e conferem o monoplio deste uso da fora. Por outro, essa forma de uso da fora ou da violncia tem a finalidade de estabelecer normas e impor vontades polticas atravs do dispositivo do Estado, sendo da legtima a utilizao da violncia e do terror como forma de resposta e defesa sobre uma situao estruturalmente desfavorvel, libertando e emancipando o homem do jugo desse monoplio infiel aos princpios da convivncia mtua. O terrorismo, nesse momento, torna-se um fenmeno da luta pela assuno, aceitao e legitimao das vontades organizadas, sendo assim poltico em mais uma das vrias esferas com a qual se relaciona. A mediao do fenmeno atravs da sua hiperexposio global em real-time nas cadeias de TV, rdio e internet especial e notoriamente no 11 de Setembro faz parte de uma relao de apropriao meditica que catapultou-o a nveis de notoriedade e assombro inditos, reconhecendo a sua natureza poltica, ainda que em uma dimenso profundamente comunicacional e retrica. A possibilidade de uma confrontao fsica, a pornogrfica repetio contnua das exploses e a incerteza geral sobre o que de fato ocorrera h alguns minutos atrs, em 2001, foi definitiva para que o ento chamado neoterrorismo ganhasse cada um dos lares e dos espectadores. O ataque suicida sobre a massa, apontando de forma indisciplinada sobre as vtimas e os guerreiros sem distino de ptria, bem como as11

prprias transmisses televisivas em rede mundial, inevitavelmente contriburam endemicamente para a sensao de insegurana, de epidemia de um terrorismo global e sem fronteiras. Uma representao vulgarizante e instantnea de uso do biopoder em propores traumticas, vistas apenas em genocdios e holocaustos. A navalha da guilhotina do terror voltaria a pairar ento sobre o pescoo dos cidados de todo o mundo, no importa onde estejam. E nessa esteira, a incapacidade das formulaes estratgicas em se defender contra um inimigo que no se distingue na multido, no possui territrio e populao - mas apto a declarar guerra! - se tornara incrivelmente sufocante. Consecutivamente ao 11 de Setembro, incorreu uma grave questo e uma imediata necessidade de compreender esta agenda de forma clara e em seus mais diversos exemplos. Dessa maneira, as nossas contribuies se engajam em nos conduzir a uma anlise objetiva da questo recente na Rssia contempornea, bem como sobre as condies paradigmticas do conflito contemporneo no Iraque, onde parte destas questes biopoder, inteligncia, terrorismo e contraterrorismo - se relacionaram de forma intensa e inseparvel. Assim, preciso notar e avaliar as condies das ameaas bem como das aes possveis - realmente existentes e o problema da capacitao dos Estados em equacionar as controvrsias de modo efetivo. Em balano histrico, a narrao do terrorismo colocada de forma precisa e detalhada enquanto fenmeno de natureza poltica, de relao direta com o fim da Guerra Fria (1945-1989/1991) e hoje relacionado agenda nacional de Defesa. Reconhecendo de forma clara o fim deste longo conflito tcito do sculo XX, assim inserindo as chamadas novas ameaas para a agenda internacional de segurana no bojo das transformaes decorrentes do gelatinoso fin de sicle, reconhece-se tambm a franca necessidade do amadu12

recimento e reinsero brasileira no jogo das relaes internacionais se relacionarem diretamente com uma nova mentalidade de Defesa e Poltica Externa bem como uma nova dinmica relacional sobre os problemas de segurana junto s instituies gerentes. Nessa direo, uma anlise objetiva em corte histrico sobre como nos posicionamos e podemos nos posicionar junto aos topoi ponto de partida para o reconhecimento, convivncia e debate sobre as questes comuns do problema do terrorismo fundamental para uma compreenso mais lcida das modalidades de engajamento do pas em um momento especial da sua histria. Nesses lugares comuns ao debate, oportunamente devemos distinguir como as instituies republicanas e Foras Armadas se relacionam e participam de um tema que cada vez mais pblico, a despeito de boa dose de hermetismo na nossa histria da formulao da poltica externa. Os desafios, dilemas e questes para a formulao dessa poltica externa em meio a uma ordem mundial indisciplinada e ausente em coreografismo no sculo XXI esto longe de ser compreendidos como conjunto suprfluo de preocupaes megalmanas. O que invalida essa chave explicativa e situa a questo da segurana regional como transversal e diretamente relacionada ao problema do terrorismo, no entanto, a presena prpria do continuado debate a respeito da Trplice Fronteira Brasil, Paraguai e Argentina e as suas presumidas ligaes com as redes terroristas internacionais. Nesse sentido, impossvel desconectar as ento recorrentes questes estadunidenses sobre a securitizao da regio da prpria prerrogativa da integrao regional sul-americana autnoma com relao aos EUA, em um momento de profundas incertezas e questionamentos sobre a validade da hiperliderana deste sobre o hemisfrio. A prpria questo se funde em uma problemtica mistura de violncia, narcotrfico, contrabando e circulao desregulada de pessoas.13

A questo do conflito colombiano, por sua vez, discutida e circunscrita em outro extremo geogrfico da nossa regio, dentro do panorama do noroeste amaznico que por natureza uma questo sul-americana. O narcotrfico transfronteirio, a interveno estrangeira e a polarizao ideolgica reminiscente do j passado sculo XX so indelveis pontos de pauta da agenda poltica da integrao regional, sendo reconhecidos claramente como problemas de ordem coletiva onde as ameaas e os dilemas so mtuos. Portanto, no epicentro da questo (ou, para as FARC, da libertao) nacional destaca-se a relevncia de um conflito civil insurgente para alguns, um problema de terrorismo, incluindo-se a o Departamento de Estado dos EUA e o prprio governo Uribe que j se arrasta h dcadas e ainda coloca em debate de modo contundente a desigualdade social, a ordem poltica, o mando (ou caciquismo) enquanto prtica que deriva em intolerncia poltica, bem como o trfico de drogas e o adjacente problema da propriedade de terra. Com questes por excelncia sul-americanas, notvel a olho nu o imprescindvel papel da Colmbia dentro da geopoltica continental com vistas ao seu crescimento econmico ascendente, a sua posio geogrfica diferenciada e naturalmente biocenica, com um conjunto da sociedade profissionalmente qualificado e o seu nvel considervel de institucionalidade democrtica junto aos padres ocidentais. A superao do conflito civil interno, bem como a concepo de uma poltica externa que preza a multilateralidade e a conciliao das prerrogativas soberanas do processo de integrao regional so demandas presentes no s para o conjunto da sociedade civil colombiana, mas para toda a comunidade de pases sul-americanos. Na Amrica do Sul, a Colmbia no um caso raro e isolado de intolerncia, violncia e uso da fora em conflitos domsticos. A Cordilheira dos Andes fora um amplo terreno para operaes de14

milcias revolucionrias e contestadoras da ordem poltica e social vigente. Nesse sentido, a compreenso sobre como a questo cultural e autctone se torna uma argamassa vigorosa para manifestaes polticas de desestabilizao da ordem vigente, ainda que no se confundam com o problema do terrorismo internacional. Sociedades historicamente reconhecidas pelos seus mecanismos atvicos de participao e representao poltica, nessa direo, encontram as condies capitais para que as vontades polticas se organizem de forma disruptiva e ganhem dimenso pblica, promovendo uma situao de profunda instabilidade poltica e social, para alm da forja das catstrofes que derrubam presidentes e fragilizam o status vigente das instituies republicanas modernas. Dentro do quadro do processo de integrao regional sul-americano, a nossa ateno tambm deve estar voltada para os desdobramentos dos processos histricos relacionados ao problema da violncia e da intolerncia racial e poltica no nosso entorno geogrfico, que uma franca zona de projeo dos interesses de cooperao e integrao propostos pelos condutores da poltica externa. J no caso da misso de paz liderada pelo Brasil em solo haitiano, definitivamente a situao est longe de ser considerada como parte integrante da agenda global antiterror. A Misso das Naes Unidas para a Estabilizao no Haiti (MINUSTAH) est ligada a existncia de grupos armados organizados ilegais e a prpria prerrogativa da presena brasileira massiva em um engajamento multilateral cooperativo para o controle de massas. Nesse sentido, o que notabilizou a liderana brasileira pode ser notado na forma com a qual as aes de estabilizao, que no perpassaram apenas a fora militar como articuladora nica e exclusiva das iniciativas de paz, mas tambm envolveram a atuao integrada de diversos atores e instituies que possibilitaram a projeo de uma forma particular15

de interveno, caracterizada pela desmobilizao atravs de aes no confrontativas, que serviro certamente como paradigmas para outras misses de paz. Apresentamos de forma concisa neste livro artigos, entrevista e resenhas resultantes de uma discusso que se mostrou impretervel ao longo dos ltimos anos, seja na agenda internacional, seja dentro do prprio sentido das atividades do Laboratrio de Estudos do Tempo Presente, inicialmente no mbito do Grupo de Acompanhamento e Anlise do Terrorismo Internacional (GAATI/TEMPO/UFRJ), avanando na iniciativa do Consrcio Rio de Janeiro de Estudos de Relaes Internacionais, Segurana e Defesa Nacional (Pro-Defesa, parceria PUC-Rio/PPGHC/EGN) e resultando em um amplo conjunto de relacionamento interinstitucional entre universidade e instituies de segurana, situando um quadro aberto de dilogos aqui expostos. Posteriormente, nos engajamos nessa reunio de vises diversas e multifocais sobre o tema, mas que ao mesmo tempo compartilham da preocupao constante sobre a ameaa do terrorismo na Amrica do Sul e no Brasil, entendendo a relevncia do pas no conjunto das relaes regionais, hemisfricas e especialmente, globais. Ofertamos, pois, uma apreciao reunida aps os seminrios organizados pelo Laboratrio de Estudos do Tempo Presente / UFRJ no ms de maio de 2009.

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Terrorismo e guerra na era da assimetria globalFRANCISCO CARLOS TEIXEIRA DA SILVA1

A guerra no Iraque deveria ser, do ponto de vista dos estrategistas neoconservadores americanos a fora dominante na Administrao Bush , um modelo de nova guerra, da guerra que os Estados Unidos deveriam travar no sculo XXI. Dever-se-ia superar o pnico de um grande nmero de baixas a chamada Sndrome do Vietn e, ao mesmo tempo, dispor-se a uma vigorosa ao terrestre. As duas ferramentas bsicas para a nova guerra do sculo XXI deveriam ser (a) o uso intensivo da alta tecnologia e (b) a ao decisiva de tropas especiais, ou de elite, visando decapitar o inimigo. O cerne da nova doutrina era o princpio de que velocidade (entendida aqui atravs da intensificao tecnolgica) supera a massa. Assim, com os imensos recursos tcnicos disponveis com um oramento de defesa superior a US$ 400 bilhes os Estados Unidos no precisavam dispor de um imenso dispositivo humano o chamado manpower dos militares tal como foi o caso no Vietn (cerca de 540 mil homens) ou na Guerra do Golfo de 1991 (cerca de 500 mil homens da coalizo).

1. Professor Titular de Histria Moderna e Contempornea e Professor Emrito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exrcito Brasileiro

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Francisco Carlos Teixeira da Silva

Contrariando os comandos militares, o secretrio de Defesa Donald Rumsfeld e a alma da nova doutrina militar recusou os planos de ataque apresentados e exigiu uma invaso com pouco mais de 120 mil homens. A guerra deveria ser barata, rpida e com zero morte (do lado americano). A nova doutrina que muitos denominaram de Doutrina Rumsfeld iniciava seu teste de fogo, quando atravs de uma srie de golpes rpidos o regime de Saddam Hussein desabou. Nos dias seguintes aps a queda de Bagd o prprio secretrio de Defesa apareceu em pblico afirmando que a guerra travada seria estudada pelos historiadores como um modelo da nova guerra tecnolgica.O retorno da guerra como instrumento poltico.

A Doutrina Rumsfeld representava uma sada para um velho dilema americano: embora seja, de fato, a mais poderosa nao do mundo, com uma imensa panplia militar, sua capacidade de assegurar os seus objetivos polticos so, em verdade, limitados. Na Guerra da Coria (1951-1953) ou na Guerra do Vietn (1964-1975), por exemplo, o poderio militar americano inclusive seu arsenal atmico no garantiu a vitria, levando a Amrica a situaes de grande humilhao. Tratava-se agora aps a desapario da URSS (em 1991) do cenrio mundial de superar a paralisia estratgica que vigorara durante a Guerra Fria (1947-1991), denominada de MAD. Em ingls MAD significava Mtua Destruio Assegurada, condio de igualdade estratgica com a URSS, que impedia que os Estados Unidos alterassem em seu favor o status quo geopoltico. O fim da URSS garantia uma nova liberdade de ao para a Amrica. Era preciso vencer as limitaes psicolgicas e polticas oriundas da Guerra do Vietn, quando a contagem de corpos criou tamanho18

Terrorismo na Amrica do Sul

choque na opinio pblica que se tornou impossvel dar continuidade ao esforo blico na Indochina. Aps o Vietn e sua sndrome, a Amrica procurou evitar envolvimentos macios em cenrios complexos, talvez com exceo do Lbano e da Somlia, onde mais uma vez a perda macia de homens (num clculo relativo ao contingente empregado) levou a rpidas retiradas. Para as administraes sucessivas depois de Nixon (1969-1973), a melhor guerra era a travada atravs da supremacia area da Amrica, com baixssimo envolvimento terrestre. Nas palavras do general Colin Powell, era a guerra onde (...) ns atiramos e eles morrem!. Rumsfeld, tendo em vista os objetivos de ao global de tipo imperial dos Estados Unidos, propunha superar tais limitaes e devolver aos Estados Unidos a plena liberdade de ao poltica e militar em qualquer parte do planeta. O Iraque em 2003 seria o teste definitivo.Os objetivos de guerra dos Estados Unidos.

Neste contexto os objetivos polticos imediatos da Amrica que desencadeiam a Guerra contra o Iraque em 2003 levavam em conta os seguintes pontos: 1. Exercitar a capacidade readquirida dos Estados Unidos de praticar uma poltica externa autnoma, sem precisar de qualquer consenso prvio alcanado em fruns internacionais (o unilateralismo), utilizando-se, quando se julga necessrio, da fora militar; 2. A superao da chamada Sndrome do Vietn, ou seja, o envolvimento militar com um nmero significativo de baixas, sem perspectiva de atingir os objetivos polticos iniciais, enquanto um mecanismo de paralisia da panplia militar da Amrica;19

Francisco Carlos Teixeira da Silva

3. A assuno por parte do Pentgono, mesmo sob crtica do

staff militar, de uma nova doutrina militar, baseada fundamentalmente no conceito de Espanto e Pavor, uma forma infringir um dano to macio que o adversrio, atravs do uso intensivo de alta tecnologia, deveria capitular imediatamente e sem condies; 4. A proposio de uma potencializao constante e crescente da Revoluo Tecnolgica em Assuntos Militares que desse, de forma permanente, aos Estados Unidos uma vantagem mnima de 25 anos sobre seu(s) potencial(s) adversrio(s) ou concorrente(s); 5. A vitria americana deveria permitir o acesso dos Estados Unidos s fontes de energia fssil existentes na regio, criando uma plataforma de poder avanado do pas numa regio extremamente estratgica. Tal poltica garantiria uma permanente juno de interesses no interior do governo americano, reunindo o grupo dos conservadores unilateralistas com os conservadores com interesses na indstria petrolfera, liderados no governo pelo vice-presidente Dick Cheney (bem como o prprio George Bush); 6. Criar uma forte barreira estratgica, sobre controle americano, no Oriente Prximo, tendo como regio-pivot o Iraque e o Kuwait, visando controlar as fontes de acesso ao petrleo para China Popular, considerada na Administrao Bush, como importante adversrio estratgico. Neste sentido, somar-se-ia a poltica iraquiana de Washington, tambm uma poltica iraniana, visando manter a China em situao de forte dependncia, nos mesmos moldes que nos anos de 1936-1941 foi feito com o Japo, quando se configurou como competidor americano no Pacfico Oriental;20

Terrorismo na Amrica do Sul

7. Por fim, a vitria americana deveria abrir o caminho para

uma ampla reconfigurao estratgica da regio, o chamado Plano do Grande Oriente Mdio, que aliado ao Plano Rota da Paz (proposta para a Questo Palestina) deveria exercer uma presso insuportvel sobre Ir, Sria e, mesmo, Arbia Saudita. Estes objetivos estreitavam os laos do lobby conservador do Likud no governo americano, em especial com a dupla Perle/Wolfowitz (representantes simultaneamente dos interesses do Likud partido no poder em Israel e a grande indstria de armas americana). Os elementos acima constituiriam as bases do que poderamos chamar de Doutrina Rumsfeld e que Henry Kissinger denominou, muito apropriadamente, uma revoluo diplomtica de impacto mundial e duradouro: alm da assuno plena do conceito de Guerra Preemptiva uma forma particularmente agressiva de guerra preventiva, no sancionada pelo Direito Internacional. O conceito de Guerra Preemptiva daria poder aos Estados Unidos para agir em primeiro lugar, j que avaliasse a existncia de um risco imediato para sua segurana, de seus cidados ou interesses em qualquer parte do mundo. A disponibilidade de uma fora militar flexvel, rpida, capaz de desdobramentos extensos e ao mesmo tempo dotada de poder letal, seria a ferramenta ideal para ao americana em qualquer ponto do planeta.Negcios de guerra.

A ao no Iraque deveria espalhar uma onda de choque por todo o Oriente Mdio e sia Central, levando ao fortalecimento da oposio liberal, modernizante e laica em sociedades tradicionais, marcadas21

Francisco Carlos Teixeira da Silva

pela dominncia do islamismo. No fundo da percepo americana havia um forte lastro do culturalismo de Samuel Huntington, defensor de um mundo em colossal conflito de civilizaes. Bush, Cheney, Rice e Rumsfeld imaginavam lidando principalmente com meia dzia de exilados ocidentalizados e subornados pela inteligncia britnica e a CIA que seriam recebidos como heris no Iraque. Repetindo o erro histrico do Vietn, do Lbano e da Somlia alm da imensa m vontade dos povos da Amrica Latina os Estados Unidos no conseguiam entender as diferenas culturais, a profunda alteridade do Isl e subestimavam a fora do nacionalismo. Embevecidos por seu prprio fundamentalismo liberal, cristo, materialista e individualista, acharam que o povo iraquiano estava ansioso por este maravilhoso american way of life. Alm disso, os Estados Unidos buscavam esvaziar a crise permanente do Oriente Mdio (com seu corolrio, tambm permanente, de incidncia sobre os preos internacionais do petrleo), evitando centrar-se nas negociaes israelo-palestinas. Em vez de repetir as estratgias de Carter, Bush (pai) e Clinton, a nova administrao americana buscava esvaziar as parcerias palestinas, destruindo os apoios externos (Iraque, Ir, Sria, Lbia) para entregar a resistncia palestina nas mos de Ariel Sharon. Assim, invertendo a relao clssica praticada pelos Estados Unidos: o caminho mais rpido para a normalizao das relaes entre americanos e rabes no mais passaria por Jerusalm. O caminho mais rpido entre Washington e Jerusalm passaria, agora, por Bagd capital de um Iraque liberal e laico e, quem sabe, num futuro imediato, por Damasco, Teer e Trpoli. O sonho neoconservador, j anunciado desde 1998, implicava em uma reconstruo total do Oriente Mdio, abrindo caminho para o abastecimento barato do Ocidente e para um papel hegemnico de Israel na regio.22

Terrorismo na Amrica do Sul

O ncleo impulsionador de tal estratgia organizava-se, de forma orgnica e consistente, em torno de um ncleo duro de poder em Washington: uma coalizo de interesses reunindo neoconservadores, a indstria do petrleo, a indstria de armamentos e o lobby do Likud. Este era o consenso patritico construdo em torno de George Bush. Entretanto, para que tais princpios efetivamente pudessem se constituir no eixo de uma poltica consistente por parte dos Estados Unidos havia uma exigncia bsica: a completa e incontrastvel vitria do pas contra o regime de Saddam Hussein. Embriagados pelos efeitos imediatos da guerra, a equipe em Washington organizou j em 1 de maio de 2003 uma retirada simblica de algumas tropas do cenrio de guerra, um Victory Day, com cenas explcitas de militarismo teatral. A bordo de uma nau de guerra o navio-aerdromo Abraham Lincoln vestido com uniforme de piloto de caa, Bush, que nunca fez servio militar, proclamou a vitria dos Estados Unidos.Os ventos de maio.

Os primeiros dias de maio de 2003 trouxeram, alm dos primeiros ventos do Vero boreal, as primeiras vtimas do ps-guerra americano no Iraque. A cada dia o comando americano contabilizava uma ou mais baixas; ataques contnuos contra oleodutos, refinarias, dutos dgua; rede eltrica; ataques contra iraquianos que apoiavam, de qualquer forma, a ocupao americana; por fim, tornaram-se alvos entidades e pases, que de alguma forma associavam-se aos Estados Unidos, tais como embaixadas estrangeiras, a prpria ONU ou o clero que buscava um entendimento com os Estados Unidos. Mais do que isso, no Iraque e nos Estados Unidos, soldados americanos e suas famlias comearam um amplo movimento contra23

Francisco Carlos Teixeira da Silva

a permanncia das tropas na regio. Da mesma forma ficava claro que os recursos financeiros propostos por Bush e Rumsfeld que afirmara o novo carter poupador e barato da guerra eram insuficientes, incapazes de dar conta das necessidades crescentes da panplia americana no Iraque. Ora, esta era exatamente a situao: no era possvel um Plano B, simplesmente porque a situao de resistncia no deveria existir, no estava nos clculos da Doutrina Rumsfeld. Em alguns meses as baixas americanas alcanaram 1640 homens, com 12 mil feridos, e o terrorismo, os seqestros e as operaes de guerrilha dominaram o cenrio iraquiano. Comeava uma nova guerra: a resistncia contra a ocupao americana. Para superar em definitivo a Sndrome do Vietn, coube ao secretrio de Defesa dos EUA formular uma nova concepo estratgica de guerra dos EUA para atacar o Iraque: velocidade vence massa. Em vez de dispersar meios ou seja, constituir um exrcito volumoso, reunindo um manpower na escala de 500 mil homens - tratou-se de travar em Bagd a me de todas as batalhas ou, em verdade, a me das batalhas modernas, onde tecnologia vigilncia, preveno e velocidade deveriam substituir os velhos mecanismos de guerra.A herana do Vietn: Preparando uma guerra de novo tipo.

Depois dos duros anos da Guerra do Vietn (1964-1975), os Estados Unidos desenvolveram uma hipersensibilidade a guerras em cenrios distantes envolvendo um grande nmero de mortos. A Guerra do Vietn tornar-se-ia um paradigma longamente insupervel de como se podia perder uma guerra: havia superioridade total de meios (armas e equipamentos); havia a24

Terrorismo na Amrica do Sul

disponibilidade do chamado manpower (mais de 500 mil homens no teatro de operaes) e uma ampla superioridade area, expressa nos terrveis bombardeios contra Hani e Hai Phong. Contudo, os Estados Unidos no conseguiram a coeso poltica interna necessria para continuar a luta e vencer o conflito. A opinio pblica americana chocada com a contagem de corpos (cerca de 50 mil mortos americanos) e a sucesso de escndalos e massacres praticados em nome da democracia, exigiu com uma profunda ruptura da unidade nacional a retirada da guerra. Numa atualizao dramtica da mxima de Clausewitz, o comando americano descobriu que toda a guerra poltica e, se no houver coeso poltica nos seus objetivos, os meios militares sero sempre inteis, ou ao menos insuficientes para assegurar uma vitria. Em 30 de abril de 1975, norte-vietnamitas e vietcongs entravam em Saigon, enquanto os americanos saam em helicpteros pelo teto da embaixada assediada. Surgia a Sndrome do Vietn.A boa guerra, Kosovo: 1999, ...ns atiramos e eles morrem

Depois do Vietn, o comando militar americano imps a si mesmo algumas normas que deveriam evitar, para todo o sempre, a repetio da guerra no sudeste asitico. Assim, trs pontos passaram a ser valorizados: 1. Amrica no deveria envolver-se em guerras sobre as quais no houvesse um absoluto consenso poltico interno; 2. Dever-se-ia sempre prever a possibilidade de um desengajamento; 3. Por fim, a Amrica deveria utilizar sua superioridade tec25

Francisco Carlos Teixeira da Silva

nolgica e financeira para evitar lutar a guerra dos outros (ou seja, conforme Sun Tzu, lutar uma guerra nos moldes e possibilidades do adversrio). O grande mestre do pensamento militar oriental, Sun Tzu (autor de Arte da Guerra, que exerceu forte influencia na formulao do pensamento estratgico de Mao Tsedong e de V Giap) tinha entre suas mximas prediletas a idia de que a superioridade de meios deve permitir a moldagem do campo de batalha. Ou seja, quem tem mais meios pode, e deve, decidir quando, onde e como se trava a luta, recusando-se a lutar nos termos impostos pelo adversrio. Desta forma, os recursos acumulados pelo mais forte podem ser melhor dimensionados e exercer toda sua potencialidade. No Vietn os Estados Unidos, mais fortes e mais tcnicos, lutaram uma guerra de guerrilhas que favoreceu quem tinha menos meios, no podendo usar tudo o que tinham para destruir o adversrio. A mxima de Sun Tzu exerceu grande impacto sobre as formulaes da moderna estratgia americana. Assim, nos trs maiores conflitos que se envolveram no final do sculo XX (na Bsnia, depois de 1991-95; no Kosovo, em 1999 e no Iraque em 1991) os americanos procuraram tirar o mximo proveito de sua superioridade, moldando o campo de batalha e, consequentemente, negando ao inimigo o uso dos seus melhores meios. Talvez Kosovo, em 1999, tenha sido o exemplo mais bem acabado da nova estratgia: os srvios, imbudos de forte nacionalismo, prepararam-se para receber os invasores americanos atravs de uma guerra de emboscadas e de resistncia nas montanhas, onde possuam a superioridade do terreno, grande preparo anterior e meios adequados, representados vasto arsenal de armas anti-mecanizao. O comando americano, contudo, recusou-se a lutar nos termos dos26

Terrorismo na Amrica do Sul

srvios. Usou de sua superioridade area e iniciou uma srie de bombardeios, com aviao e msseis, no s contra alvos militares no Kosovo, mas ainda contra alvos econmicos na prpria Srvia. Aps quase 50 dias de bombardeios, e uma reduo catastrfica do PIB srvio, as autoridades de Belgrado pediram o cessar-fogo e cederam o territrio de Kosovo. Na ocasio, o general Colin Powell, responsvel pela estratgia americana, rejubilava-se com os novos mtodos. Esta era a guerra que superava a Sndrome do Vietn: ...ns atiramos, eles morrem!. Dever-se-ia usar ao limite os recursos da guerra area e evitar ao mximo o envolvimento direto de homens boots on the ground, pudessem representar custos polticos ao poder em Washington.A admirvel guerra moderna do senhor Rumsfeld.

O novo modelo de guerra implicava, contudo, em algumas limitaes. Assemelhava-se, bem mais, a uma expedio punitiva, onde a destruio de alvos inimigos especialmente aqueles ligados ao aparelho do Estado-Nao (alvos militares, usinas, meios de comunicao e transporte, etc... ) era garantida. Contudo, o controle efetivo do territrio, a destruio de elementos humanos hostis e a implantao de um poder amigo no podiam ser alcanados desta forma. Somente a velha forma de dispor de massa humana the boots on the ground garantia a ocupao de um territrio e a implantao de uma nova ordem efetiva. Ou seja, o novo mtodo de guerra era limitado quando o objetivo (cada vez mais comum em Washington) era a mudana de um regime hostil num pas distante. Mesmo a Guerra do Iraque de 1991 quando tais meios foram largamente utilizados no culminou numa ao terrestre garantidora dos interesses americanos no pas com a mudana de regime,27

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permitindo-se que Saddam Hussein mantido no poder - mais uma vez massacrasse xiitas e curdos, os aliados dos americanos. Assim, tornou-se bvio para muitos que a estratgia americana padecia de certa paralisia no tocante ao envolvimento de tropas terrestres, particularmente em face ao seu custo humano, poltico e financeiro. Muitos opositores de Clinton, antes de 2001, acusavam a existncia de um grupo de generais de Clinton que no gostavam de lutar... A administrao Bush, aps 2001, resolveu superar em definitivo a Sndrome do Vietn, abrindo uma nova pgina na histria mundial da guerra. Coube a Donald Rumsfeld, nomeado secretrio de Defesa e um especialista em assuntos militares, formular e impor a nova concepo estratgica de guerra dos Estados Unidos. A mxima doutrinria de Rumsfeld o que iria nuclear uma pretensa Doutrina Rumsfeld da Guerra Moderna residia no axioma Velocidade vence massa. A idia bsica era o desenvolvimento de meios tecnolgicos modernos, baseados na extrema flexibilidade, controle do espao, comando articulado e integrado e informao de qualidade como forma de envolver, debordar, desarticular e aniquilar grandes massas de homens e meios oferecidas por um adversrio para combate. Assim, o novssimo conceito de C4ISR (onde se l Command, Control, Communications, Computers, Intelligence, Surveillance and Reconnaissance) deveria ser capaz de superar os elementos que faziam, ento, da guerra uma arte (e no uma cincia o corolrio da Doutrina Rumsfeld seria desmentir Clausewitz/Sun Tzu, provando que a guerra poderia ser uma cincia). Rumsfeld deu a si mesmo a tarefa de cientificar a guerra, abolindo dois princpios que desde Anbal e Alexandre anulavam o carter cientfico das guerras: a nvoa da guerra e a frico. Trata-se aqui de dois conceitos clssicos de Clausewitz, que apontam para o imprevisvel, para fatores aleatrios que agem desde o primeiro tiro sobre o desenrolar da guerra.28

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Neste sentido, Rumsfeld aps se assegurar do completo controle do campo de batalha atravs da panplia tecnolgica disponvel para a realizao do conceito de C4ISR teria tornado a guerra um composio arquitetnico-geomtrica, de carter progressivo e linear. Mais uma vez, conforme a tese de Andr Corvisier, cada sociedade possui sua prpria guerra: a guerra americana de Bush deveria ser cientfica, tecnolgica, cara e geomtrica. Tipificava-se a, ao contrrio da imprevisibilidade de Clausewitz ou da lenta construo da vitria em Sun Tzu, o carter pronto fast and deliverance da nova doutrina da guerra.A nova guerra no Iraque.

Os meios disponveis pelos americanos e sua coalizo no Iraque bastariam para os objetivos militares imediatos previstos por Rumsfeld. Com o deslanchar da guerra em 19 de maro de 2003, em meio ao uso macio de todos os meios disponveis, e com uso intenso de um grande poder de fogo (inclusive com o deslanchar da chamada ofensiva do Choque e Pavor, com o uso extenso de super-bombas em espao urbano), a vanguarda americana atingia Bagd em 9 de abril. Em menos de 12 dias o poderoso Estado baasista, capaz de torturar e aterrorizar sua prpria populao rua frente ao avano americano. Entre 9 de abril e 1 de maio de 2003 quando o presidente Bush, bordo do USS Lincoln proclama tarefa encerrada os americanos e seus aliados dedicam-se a limpeza do territrio, dominando ncleos e fortalezas ainda resistentes, como Basra, ao sul, ou Tikrit, ao norte. A ao, em seu conjunto, baseou-se largamente na noo de velocidade vence massa, com os americanos reeditando uma verso altamente tecnificada da chamada Blitzkrieg, ou guerra relmpago29

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praticada pelos alemes do general Heinz Guderian (1888-1954) e do estrategista britnico John Fuller (1878-1966) contra a Polnia e a Frana na II Guerra Mundial. Tratou-se de um avano irresistvel, centrado em meios mecanizados de ltima gerao, com apoio areo direto avies, msseis e helicpteros visando a penetrao em profundidade, desorganizando a retaguarda do inimigo, cortando suas linhas e atingindo seus centros de comando, numa operao de decapitao. Num belo e acertado raciocnio, baseado em Clausewitz, os americanos reconheciam o centro de gravidade o Schwerpunkt, de todo o Iraque em Bagd, nas tropas a concentradas e no grupo em volta de Saddam Hussein. Assim, em vez de dispersar meios e travar batalhas dissuasrias, tratou-se de seguir em direo a Bagd e travar a a me de todas as batalhas, na qual as foras de Saddam (exrcito nacional + Guarda Republicana, as divises Al Rachid e Babilnia, seriam destroadas). Em 9 de abril de 2003 os americanos atingiam seu objetivo. Uma brigada mecanizada entrava em Bagd em pleno dia, operando o reconhecimento do terreno. No houve resistncia. Travou-se uma escaramua pela posse do aeroporto internacional e, em seguida, tropas americanas ocupavam o Ministrio do Petrleo, da Defesa e os palcios de Saddam Hussein. Bagd, a esplendorosa capital do califado rabe, estava conquistada. O que acontecera com as tropas de Saddam, com a aguerrida Guarda Republicana, com os voluntrios feddayan da Revoluo? Amedrontaram-se frente ao poderio americano, afirmava a mdia ocidental na regio. Enquanto isso, Bagd, num espetculo indito das guerras modernas, era colocada saque. O vandalismo tomava conta das ruas. Prdios pblicos, lojas comerciais e residncias eram saqueadas. Os novos ocupantes ordenam a dissoluo da polcia e das foras armadas, acentuando o caos e a comoo na cidade. Aos olhos da populao iraquiana atnita e decepcionada o senti30

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mento era de punio coletiva. As cenas da biblioteca nacional e da universidade em chamas sero enviadas para todo o mundo rabe. O Museu Nacional, orgulho da identidade nacional, era saqueado. A ltima vez que a cidade fora colocada a saque dera-se nas invases mongis no sculo XV. Enquanto isso, os americanos ainda procuravam o comando militar iraquiano, esperando algum combate. Na verdade, senhores de uma nova estratgia, os elementos centrais do ncleo militar do Iraque operavam uma passagem invisvel para a clandestinidade, levando armas, meios de comunicao e farta munio. Com cachets (esconderijos) e bunkers subterrneos, abastecidos de dinheiro e munio espalhados por todo o pas, uma vontade amparada no nacionalismo e na religio, os quadros mdios (suboficiais, capites e majores) passaram maciamente para a clandestinidade, iniciando uma segunda guerra no Iraque. Depois de proclamada a vitria americana, em 01/05/2003 num espetculo de teatralismo belicista bordo do navio-aerdromo A. Lincoln, comearia uma nova guerra ou ao menos uma nova fase na guerra - totalmente inesperada pelos americanos: desigual, cruel e assimtrica, a resistncia iraquiana comeava s ento a combater os Estados Unidos. Uma guerra que se queria moderna, embora profundamente dessimtrica entre um adversrio forte e poderoso contra um Estado enfraquecido transformava-se, mesmo depois da desapario do Estado-Nao, numa guerra de resistncia nacional, a nova guerra assimtrica.A Guerra Assimtrica e o Terrorismo no Iraque.

Aps o fim da Guerra Fria (1991), a doutrina americana em assuntos militares, ainda mantinha a postura assumida durante a31

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longa Administrao Clinton: o uso macio da supremacia area aviao+balstica e limitao das tropas de solo, visando a superao da Sndrome do Vietn e o custo poltico da contagem de corpos. Assim, ao longo dos conflitos na ex-Iugoslvia, em especial em Kosovo, em 1999, como j vimos, os americanos evitaram um contato imediato com as tropas adversrias no solo. Mantiveram como objetivos militares aes de destruio da infra-estrutura logstica, militar e econmica dos srvios. Vigia, em termos polticos, a chamada Doutrina Powell: ...ns atiramos e eles morrem! Assim, tinham os americanos descoberto a guerra ideal ( em comparao com a carnificina do Vietn ). Por outro lado, muitos crticos acusavam a Administrao Clinton de paralisia perante os inimigos da Amrica, duvidando mesmo da inteligncia e da coragem dos generais de Clinton em perseguir, com meios militares, os objetivos polticos do pas. Os objetivos de Donald Rumsfeld, na linha de frente dos idelogos neoconservadores de George Bush, visavam entre outros pontos , ao assumir o governo americano em 2001, restaurar a confiana americana e explorar, profundamente, a vitria obtida contra os soviticos na Guerra Fria. Foi neste contexto que arquitetaram a Guerra no Iraque como o cenrio ideal para testar o novo modelo de guerra e seu corolrio, a pretensa Doutrina Rumsfeld.O Nascimento da Guerra do Futuro.

A sensao de uma continuada paralisia estratgica, a incapacidade de explorar at o fim a superioridade americana, no decorria apenas da Sndrome do Vietn. Em 1993 o Governo Clinton decidiuse por uma interveno considerada humanitria na Somlia, onde um confronto entre diversos partidos e senhores da guerra locais32

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ameaavam a unidade e soberania do pas africano. Para os Estados Unidos tratava-se de evitar a transformao da Somlia em mais um pas falido, capaz de abrigar bases e santurios do terrorismo internacional, do narcotrfico e do crime organizado. Devemos notar que no mesmo ano, em 1993, um comando terrorista islmico ligado a, ento, desconhecida organizao Al Qaeda tentara dinamitar o World Trade Center, em Nova York. A tentativa, feita atravs de um carro-bomba colocado na garagem do prdio, falharia dessa vez! Contudo, a percepo da inteligncia americana acertara em ver na destruio das instituies estatais somalis um grave risco, ampliando as possibilidades de enraizamento do terrorismo que j apontava a Amrica como o principal inimigo. Foi neste sentido que Clinton despachou para Mogadiscio uma fora-tarefa, altamente treinada e formada de comandos especiais (100 Army Rangers), para evitar o controle da cidade pelos senhores da guerra. A reao foi imediata: com armas precrias, tubos de lana-granadas de US$200, os combatentes irregulares somalis provaram uma larga eficincia, derrubando os super-helicpteros militares americanos e matando 19 comandos americanos, num dramtico episdio da histria militar contempornea. O drama de Mogadiscio, a capital somali (que dar origem a um livro e um filme de grande sucesso: Black Hawk Dawn, 2001, direo de Ridley Scott), provaria que mesmo a hiperpotncia americana, que exerceria uma tranqila hegemonia mundial, poderia ser desafiada. A tecnologia superior americana, o excelente treinamento dos soldados e a grande disponibilidade financeira no bastavam para assegurar a vitria do poder superior num cenrio adverso. bem da verdade, a Guerra do Afeganisto, entre 1979 e 1989, com soviticos contra a resistncia islmica, j havia mostrado que um poder superior poderia ser paralisado pela multiplicao de33

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meios, mesmo que inferiores, quando utilizados por um grupo, partido ou exrcito bem preparado, aguerrido e com forte coeso ideolgica. Da mesma forma, a evidente superioridade de Israel inclusive em termos de inteligncia, atravs de um dos melhores servios secretos do mundo no conseguiu, at hoje, abalar a capacidade de resistncia, e de promover aes violentas altamente dolorosas, da populao da Palestina ocupada. Entretanto, a nova forma de guerra, denominada de assimtrica visto ser a guerra do fraco contra o forte -, no se ressume numa atualizao tecnificada da clssica guerrilha, como praticada no Vietn. Embora a extenso do uso de armas anti-mecanizao contra carros de assalto; transportes; helicpteros, etc... ao lado da multiplicao de C3 (Comando, Controle & Comunicaes), com novos meios, como laptops e celulares seja uma ferramenta bsica da guerra assimtrica, o seu conceito estratgico bem mais amplo. A estratgia assimtrica, visando a vitria de um poder inferior frente a uma potncia superior, implica em um novo elenco ttico, na verdade uma ampla base de instrues, que molda a nova modalidade de combate.A Guerra Assimtrica.

O eixo mais visvel da guerra assimtrica permanece no mbito clssico da guerra no-convencional: uma potncia militarmente inferior, em posio de auto-defesa, quer dizer sob ataque ou ocupao, pode recorrer ao que denominamos de tticas no-convencionais, como ataques surpresa, seguidos de retiradas; recusa em dar combate em situao de inferioridade; escaramuas; batalhas seletivas, sabotagem, etc... Estaramos, ainda a, no domnio clssico da guerra de guerrilhas, tal como nos textos de Mao Tsedong, V Giap34

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e Che Guevara. Porm, a guerrilha apenas uma das mais velhas formas de combate assimtrico e, de certa forma, j previsto no livro A Arte da Guerra, de Sun Tzu, escrito no II sculo antes de Cristo. Mas, o arsenal de tticas assimtricas no se esgota na atualizao tecnolgica da guerrilha. Uma outra dimenso da guerra assimtrica o uso, em larga escala, de meios no-convencionais de combate. Assim, um poder mais fraco, quando atacado em seu territrio ou em defesa do que considera seus legtimos interesses, poderia considerar tais mtodos como necessrios para sua auto-defesa. Destruir as bases econmicas do adversrio, a guerra eletrnica dentro ou fora do seu territrio, cortar suas linhas de suprimento, atingir suas instalaes sob forma dissimulada seja no pas ocupado, seja na sede do pas ocupante -; impor condies de stresse permanente para a tropa ocupante, impedir o descanso e semear o pnico entre os aliados nativos dos ocupantes so, todos eles, meios passveis de uso numa guerra assimtrica. Claramente a guerra assimtrica visa quebrar a vontade poltica do mais forte. Assim, a associao com o crime organizado, o uso de meios terroristas contra a populao civil e alvos no-militares so, infelizmente, uma grande possibilidade. Evidentemente, a maior parte deles pode, claramente, assemelhar-se com atividade criminosa e estar, literalmente, fora das leis de guerra. Por essa razo a mxima One mans terrorist is another mans freedom fighter parece fazer sentido, por exemplo, para os combatentes mujahedines no Iraque. Existem, ainda, outras dimenses da guerra assimtrica, em especial atravs do uso macio de meios eletrnicos, virtuais e da nova economia de plstico. Tais mtodos podem, ou no, ser utilizados por grupos autnomos tais como redes terroristas ou por Estados-Nao (ou seus simpatizantes), conforme aparece no texto terico que mais avanou no debate da guerra assimtrica. Trata-se35

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de A Guerra sem Limites, publicado em 1999, por dois oficiais da China Popular, Qiao Liang e Wang Xiangsui: tratava-se claramente de tirar o mximo de vantagens de um mundo altamente tecnificado, globalizado e mediatizado. O livro chins, aps 11/09/01, passou a causar certo mal-estar, posto que muitos identificaram em seus ensinamentos as bases de ao da Al Qaeda. Na verdade, tratava-se de uma manualizao de prticas j largamente em curso, inclusive praticadas pela CIA no Afeganisto contra os soviticos. Algumas destas modalidades da nova guerra assimtrica foram colocadas em prtica depois da invaso americana do Iraque em 2003. Foras nacionalistas iraquianas, denominadas de insurgentes, ou resistentes, dependendo do ponto de vista, procuraram atingir o Estados Unidos visando sua retirada do pas. Evidentemente sabiam no ter os meios para vencer a formidvel panplia militar norte-americana. Assim, as aes que combinam tticas clssicas de guerra, a guerra de guerrilhas, o terrorismo e a sabotagem econmica visam quebrar a vontade poltica da coalizo no poder em Washington, atingindo diretamente a opinio pblica americana. Destruda sua vontade em permanecer no Iraque em virtude do preo elevado da guerra estariam dadas as condies para a retirada americana. Num quadro-resumo, sobre as principais proposies da Guerra do Futuro dos Estados Unidos e os contra-meios da Guerra Assimtrica, poderamos oferecer os seguintes elementos centrais: a. 36

A Revoluo em Assuntos Militares: Baixos danos colaterais; Zero Morte; Transparncia do Campo de Batalha;

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b.

Armas Inteligentes; Soldado Profissional; Privatizao da Guerra. A resposta sob forma de Guerra Assimtrica: Combatente Suicida; Indiferena de Objetivos; Front Indistinto; Engenhos civis como armas; Guerreiro Poltico; Massificao da Guerra.

Assim, a resistncia nacional iraquiana, ao lado dos combatentes internacionais da Al Qaeda, comearam uma guerra assimtrica como forma de libertao nacional, surpreendendo o planejamento militar americano e paralisando suas formulaes polticas.Pensando a Resistncia.

Os objetivos iniciais dos EUA no pas a criao de um Iraque pr-ocidental no corao de um Oriente Mdio reformatado luz dos interesses norte-americanos foram claramente ultrapassados pelos acontecimentos depois de 1 de maio de 2003. De qualquer forma, e sejam quais forem os desdobramentos militares da guerra, do ponto de vista poltico, os EUA so, hoje, os grandes perdedores. Devemos ter em mente que os objetivos de uma guerra so sempre polticos como j afirmava Clausewitz. Neste sentido, tal qual no Vietn entre 1964-1975, os americanos cometeram graves erros, no conseguindo avaliar corretamente o sentimento nacional iraquiano, a fora de coeso da religio islmica e a possibilidade de caos deri37

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vado da dissoluo do Estado baasista, em especial da polcia e das foras armadas. Neste sentido, faltou aos americanos uma abordagem antropolgica e histrica das condies da guerra, imaginando pura e simplesmente a adeso da sociedade iraquiana aos valores considerados supremos pela Administrao Bush. Da mesma forma, uma srie de erros sucessivos na gesto do pas ocupado do saque de Bagd at os tremendos abusos da priso de Abu Ghraib foram habilmente utilizados no mbito meditico da guerra. Tal erro de apreciao americana derivava de um contato muito intenso da inteligncia americana com a elite ocidentalizada iraquiana, no exlio h dcadas. Boa parte desta elite no viveu a Guerra IrIraque (1980-1988), a Guerra do Golfo de 1991 e os anos de bloqueio e bombardeios subseqentes, no podendo avaliar o ressentimento anti-ocidental presente na populao local e, mesmo, surgindo como estrangeiros ou servio de estrangeiros. O ponto central da estratgia da resistncia, como praticada no Iraque enquanto parte de uma guerra assimtrica, reside na questo da segurana ou melhor, na produo macia da insegurana. Com o atual grau de violncia no pas todos os esforos para a reconstruo institucional e econmica do Iraque so praticamente inteis. A resistncia iraquiana mais de trinta grupos diferentes esto em ao hoje sabe perfeitamente que incapaz de derrotar militarmente a coligao encabeada pelos EUA. Assim, buscam o que Clausewitz chamou de centro de gravidade do inimigo: a base de apoio de todo o sistema poltico-militar que quando tocada desarma o equilbrio do adversrio. Os resistentes iraquianos, como foi o caso dos Vietcongs entre 1964 e 1975, entendem que o centro de gravidade dos EUA poltico e no militar. Assim, promovem o maior nmero de aes possveis, marcadas por ataques pontuais e retiradas rpidas, evitando uma batalha decisiva onde a superiori38

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dade de meios americanos seria arrasadora. Procuram coordenador dois objetivos: provocar o maior nmero de baixas possveis e evitar a reconstruo econmica do pas, causando grande nus financeiro aos americanos. Tais objetivos poderiam levar a populao americana, em mdio prazo, a exigir a retirada das tropas, mesmo sem uma grande derrota militar, do tipo Diem Bien Phu, em 1954, ou da Ofensiva do Tet, em 1968. Hoje, quando as baixas americanas atingem quase 2000 soldados e perto de 14 mil feridos, apenas 37% da populao americana consideram competente a conduo da guerra pela Administrao Bush, o que aponta claramente para a adequao da estratgia da resistncia iraquiana. verdade que o pas sofre com a falta de luz eltrica, que ocasiona a parada do sistema de abastecimento de gua potvel e de escoamento de esgotos, alm de atingir o funcionamento de escolas e hospitais, em razo da estratgia da resistncia adotada. Alm disso, as exportaes de petrleo caram abaixo da poca de Saddam Hussein, em pleno funcionamento do bloqueio ocidental imposto ao pas. Esse o objetivo central dos constantes ataques ao sistema de extrao e transporte de petrleo, que reduziram zero as expectativas do big business em realizar grandes ganhos decorrentes da guerra. Ao contrrio: a guerra carssima aos americanos hoje. Oleodutos, estaes de bombeamento e mesmo refinarias so alvos constantes da resistncia, causando gravssimo dano econmico ao pas (a infra-estrutura petroleira do pas sofreu 642 ataques em 2004, com prejuzos na ordem de US$ 10 bilhes). Este um dos objetivos da resistncia: a guerra deve custar caro aos contribuintes americanos, tornando antiptica a sua conduo. claro, que custa terrveis sacrifcios ao prprio povo iraquiano. A idia inicial da guerra do Iraque como um bom negcio con39

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forme apregoavam os neoconservadores americanos - deve ser paga com elevadssimo nus. Da mesma forma, os ataques e seqestros de estrangeiros mesmo civis em atuao no Iraque um objetivo estratgico maior da resistncia. Trata-se de tornar o Iraque uma terra inspita para estrangeiros, sejam jornalistas, empresrios, mdicos ou funcionrios da ONU.O uso generalizado da violncia.

A violncia no atinge apenas as tropas de ocupao e os estrangeiros no pas. A prpria populao iraquiana sofre duramente a ao de segmentos que formam um misto de criminalidade e insurgncia. Assim, por exemplo, centenas e centenas de meninas, entre 10 e 16 anos, so seqestradas diariamente para serem vendidas (por US$10 at US$30 mil) nos estados petrolferos do Golfo Prsico, visando arrecadar dinheiro para a resistncia ou por puro banditismo. Um grande nmero de cristos iraquianos normalmente proprietrios de lojas de venda de bebidas alcolicas ou de diverso seriam diariamente assassinados, alm de um nmero crescente de ex-funcionrios pblicos do regime de Saddam Hussein. Assim, antes de qualquer coisa, a segurana um ponto central e neste setor o governo iraquiano e as tropas de ocupao esto sendo diariamente derrotados. At muito recentemente a resistncia usava como forma bsica de organizao pequenas clulas de 3 at 7 membros, tendo como base reas suburbanas e perifricas de grandes centros urbanos, em especial junto ao chamado Tringulo Sunita, ao centro do pas. A partir do ano passado, tais clulas expandiram para uma mdia de 11 homens, muitas vezes ultrapassando vinte homens, o seu quadro de operaes.40

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Desde 2004 a insurgncia adquiriu larga mobilidade, para alm da minagem de vias pblicas, usando veculos para aes de ataques contra pontos fixos (quartis, delegacias) ou objetivos mveis (comboios, carros de funcionrios). Percebe-se a a ampla utilizao de telefones celulares mais de 200 mil vendidos nos ltimos seis meses, alm de um grande nmero de furtos de carros. Tais aes de logstica permitiram ampliar a capilaridade de C3 (Comando., Controle e Comunicao) em ao. Hoje, grande parte dos carros-bomba utilizados possui detonadores remotos, acionados por celulares, tal como nos ataques aos trens madrilenhos em Atocha. A partir das eleies parlamentares iraquianas de janeiro de 2005, e muito especialmente depois da formao do novo governo de maioria xiita-curda, em maio de 2005, a espiral ascendente de mortes no pas acelerou-se. Neste sentido, a guerra assimtrica no pas teria avanado para um novo estgio: a retirada dos americanos e seus aliados do pas no seria mais o stated aim da insurgncia e, sim a inviabilizao total do sistema, com o derretimento das instituies e o atolamento dos americanos no pas. Teramos aqui uma estratgia antiVietn: no Vietn a Frente de Libertao Nacional do Vietn (e o seu aliado do Norte) aceitaram condies de dilogo e reconhecimento do governo de Saigon visando a retirada dos EUA (em 1973) e s depois disso lanaram um campanha de aniquilamento do governo da Repblica (Sul) do Vietn. Visavam a separar os americanos de seus aliados em Saigon e em uma guerra particular, entre 1973 e 1975, aniquilar o governo pr-ocidental de Saigon. A FLN do Vietn, desde as decises do seu comit central em 1959, assumiu o carter mltiplo da luta no pas: militar, diplomtica e poltica. O que vemos agora no Iraque uma estratgia de inviabilizar a tal ponto a administrao de Bagd, que os americanos ficariam na obrigao41

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de manter a ocupao, expondo-se a perdas constantes e pesadas, visando uma retirada unilateral humilhante ou iniciar negociaes imediatas com a insurgncia. O anncio (em 23/06/05) por parte do governo dos Estados Unidos de negociaes secretas com a resistncia - com quem Bush havia afirmado no haver contemporizao, posto serem terroristas, criminosos e cavemen irracionais -, soa como a admisso tardia de que a guerra assimtrica no se vence por meios militares, mesmo que muito superiores. Entretanto, o prprio governo americano parece dividido, indeciso, sinalizando de forma contraditria. Embora queira negociar com os sunitas locais, no avana em direo a um Plano B. Os esforos neste sentido buscados nos meses de junho e julho de 2005 com a demanda por parte de setores fundamentais do Partido Republicano de um calendrio de retirada foram torpedeados pela ao da dupla Cheney/Rumsfeld. Ou mesmo tempo, multiplicam-se aes agressivas e a criao de um clima de enfrentamento com o Ir e a Sria, acusados de alimentar a resistncia iraquiana. Em suma, na frente poltico-diplomtica reina sinais contraditrios e falta uma ao mediadora representada no caso da Guerra do Vietn pela Frana e URSS.Terror, Seqestros e Segurana no Iraque.

Malgrado o otimismo oficial da Administrao Bush, expresso no discurso e entrevista imprensa (em 25/06/05), a verdade que a gesto da guerra no Iraque vai mal para os americanos. Com sua imensa capacidade tcnica, financeira e industrial, imaginaram como vimos - que a construo de uma carssima e sofisticada panplia militar fosse suficiente para explorar fundo a vitria obtida sobre os soviticos em 1991.42

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Talvez fosse assim se todos os inimigos possveis da Amrica fossem estruturas estatais convencionais, particularmente o EstadoNao, dotados de territrio, populao e infra-estrutura econmica. Contudo, depois do drama de Mogadscio (o fracasso da expedio americana contra os rebeldes somalis em 1993) ficou evidente que os Estados Unidos no possuem meios adequados a um tipo novo de guerra, conduzida fundamentalmente por estruturas de poder no-convencionais, tais como os chamados Estados-Rede, englobando a as vastas organizaes horizontalizadas e moles do narcotrfico, do terrorismo internacional, do contrabando/pirataria e do crime organizado. Evidentemente o terrorismo no um fato novo na histria. Contudo fundamental buscar uma caracterizao histrica para o fenmeno atual do terrorismo, procedendo mediante uma efetiva comparao entre as diversas formas de ao terrorista ao longa da histria. Assim, a identificao e caracterizao do fenmeno terrorismo implica na percepo de pelo menos Quatro Vagas do Terrorismo Internacional. Em princpio, o perodo de 1880-1914: terrorismo de carter anarquista e/ou libertrio e populista (Norodinics, na Rssia), com grande incidncia na Rssia czarista, Itlia, Srvia, Frana, Espanha e Portugal. De cunho pedaggico procurava atravs dos exemplos espetaculares atentados contra chefes de Estado e figuras notrias dos regimes em vigor despertar a opinio pblica. Poucas vezes visou alvos coletivos e lugares de freqncia de um pblico variado, sendo claramente cioso em manter a simpatia da opinio pblica. Posteriormente, tratamos do perodo de 1945- 1974: terrorismo de cunho dominantemente anti-colonial, incorporado aos processos de descolonizao e no interior das denominadas guerras de libertao nacional. Grande incidncia na Arglia, Indonsia, Malsia,43

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Vietn, Palestina (terrorismo judaico anti-britnico) e apario sob a forma de terrorismo das formas nacionais de resistncia do IRA (oriundo dos anos 20) e do ETA (criado em 1959). Aps a derrota rabe frente a Israel em 1967, surgem organizaes de resistncia palestina que passaro rapidamente para a ao terrorista. Armnios e curdos mantm uma ao regular de atentados contra alvos turcos, visando evitar o esquecimento dos genocdios praticados durante a Primeira Guerra Mundial. Em terceiro, o perodo de 1975-1985: grande ao do terrorismo poltico, de vertente extremista de esquerda e de direita, destacandose o Baader-Meinhof, na Alemanha Ocidental; as Brigadas Vermelhas, na Itlia, os neofascistas tambm na Itlia e na Alemanha; o Exrcito Vermelho no Japo; Carlos, o Chacal e o Grupo Abu Nidal assumem notoriedade mundial aps atentados contra avies, transatlnticos e embaixadas. Vrios Estados participam ativamente da ao terrorista, oferecendo apoio logstico e financeiro, como a Coria do Norte, Lbia, Yemen, Sudo, Bulgria entre outros. O terrorismo decorrente da ao anti-colonial e nacionalista mantm-se extremamente ativo na Irlanda do Norte (IRA) e na Espanha (ETA), com o surgimento de inmeras organizaes palestinas de resistncia ocupao da Palestina (Al Fatah/Organizao Para a Libertao da Palestina, Frente Popular de Libertao da Palestina, etc...). Desde 1979, com a ocupao do Afeganisto pelos soviticos surge uma ampla rede montada pela CIA, Arbia Saudita, Jordnia e Paquisto de sustentao do terrorismo mujahedin no Afeganisto. Mais recentemente, o perodo a partir de 1993: aps uma relativa calma no setor do terrorismo internacional exceto Irlanda do Norte, Espanha e Israel/Palestina, onde em alguns casos d-se um acirramento das aes terroristas, com a introduo do terrorista suicida surge uma nova categoria de terrorismo, oriundo da reor44

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ganizao dos diversos movimentos mujahedines (os chamados afegos), que desmobilizados da luta contra os russos no Afeganisto (1979-1989) voltam-se para os cruzados, os pecadores e os sionistas (a saber: americanos, os regimes rabes moderados e o Estado de Israel). O atentado contra o World Trade Center em 1993, organizado por uma rede terrorista terceirizada pela Al Qaeda, marca o incio de uma nova etapa, compreendida aqui como uma Guerra Assimtrica contra os Estados Unidos, qui todo o Ocidente. Defrontamo-nos, por fim, com uma nova nova onda terrorista de esquerda? Depois da crise econmica mundial de 2008-2010 e o descrdito geral que grande parte da populao, em especial jovens, em relao ao capitalismo globalizado, surgiu em alguns dos pases mais atingidos pela crise a Grcia um bom exemplo uma nova gerao de descontentes com as condies de vida e de futuro na ordem mundial. A primeira entidade assim identificada pela polcia grega a Conspirao Clulas de Fogo, atuante desde 2008 e responsvel pela srie de atentados com cartas ou pacotes bombas contra as autoridades europias em 2010. O enfrentamento com estas novas estruturas de poder, atores inesperados no Global Play da globalizao, no pode, simplesmente, ser travado com meios militares clssicos, inclusive com a panplia altamente tecnificada das foras militares americanas. Este tipo de enfrentamento uma guerra travada atravs de meios no-militares insere-se nas tticas da guerra assimtrica, conforme aparece na obra j citada dos coronis Qiao Liang e Wang Xiangsui. Publicada em Beijing em 1999, as observaes da evoluo dos conflitos depois de 1991 (e inclusive algumas prticas j existentes no mbito da Guerra Fria) ganham uma contextualizao ampla, surgindo como um embate planetrio pela hegemonia mundial, travado com meios militares (s se necessrio e em ltima possibilidade), com militares45

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no-convencionais e com outros meios (uma larga e nebulosa expresso), no militares, de forma permanente. Assim, no novo sculo, o cenrio mais provvel de uma guerra constante pela hegemonia mundial, travada principalmente atravs de mecanismos e instrumentos econmicos, cibernticos e mediticos, escalando episodicamente para o enfrentamento militar convencional e no-convencional. O livro de Liang & Xiangsui marca, de forma clara, uma completa ruptura com a conduo da guerra talvez mesmo com a compreenso do conceito de guerra vigente nos manuais clssicos e, mesmo, da forma como foi concebido o combate durante a Guerra Fria. Os Estados Unidos preparam-se, desde o incio dos anos 90`, para um conflito inter-estatal, em face principalmente aos chamados outlaw states, ou rogue states. Estes, desprezando o direito internacional e calculando mal a prontido do Ocidente para enfrentar desafios alm de menosprezar a segurana e o bem-estar de sua prpria populao estariam disponveis para ataques-relmpagos contra os Estados Unidos e seus aliados. De posse de tecnologias pirateadas ou desenvolvidas de forma ilegal, desenvolveriam armas de destruio em massa ditas do elenco AB&C (atomic, biological and chemical) e vetores principalmente atravs do incrvel desenvolvimento da balstica depois dsos anos 90. Numa hiptese ainda mais grave, tais outlaw states poderiam ceder, vender ou negociar de alguma forma parte de tais armas para grupos organizados em Estados-Rede, como o narcotrfico ou o terrorismo internacional. Estes, sem qualquer preocupao em defender territrio, populao e estruturas econmicas, poderiam deslanchar ataques-relmpago contra o Ocidente. Para a Inteligncia americana, tais ataques partiriam de pasesfalidos (Somlia, Yemen, Sudo, Congo, Afeganisto talib, etc...) que46

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serviriam de base/santurios para a ao do Estado-Rede (Al Qaeda, cartis de drogas, mfia russa, mfia chechena, etc...), poupando o outlaw states ponto de partida de toda a ao do Estado-Rede da poderosa retaliao militar americana. J o Estado-Rede, no possuidor de territrio, populao e estruturas econmicas a defender, estaria livre para desencadear tais ataques praticamente sem temor de ser alcanado pelas retaliaes. neste sentido que a poltica tradicional praticada durante a Guerra Fria a conteno+Equilbrio do Terror, ou Condio MAD no surtiriam efeito nas novas condies estratgicas mundiais. O inimigo hoje ao contrrio da URSS, detentora de uma populao, territrio e economia que deveria proteger e evitar a destruio invisvel, age sob a forma de uma rede contnua de fluxos diversos, lcitos e ilcitos, cambiando de materiais, formas e ferramentas conforme as presses e necessidades. Assim, os principais avanos americanos em termos de panplia militar ps-1991 como o Escudo de Defesa Antimsseis, a nanotecnologia de armas nucleares; o aperfeioamento inteligente de msseis de cruzeiro ou a tecnologia invisvel, dita Stealth no so capazes de dar conta das novas ameaas. Na verdade, os Estados Unidos insistiam que vinham realizando a mais ampla Revoluo em Assuntos Militares da histria (a denominada Doutrina Rumsfeld), baseados na tecnologia dual fortemente incorporada pela panplia militar. Contudo, no perceberam, nem mesmo depois da Somlia, que a verdadeira Revoluo em Assuntos Militares vinha se dando no outro lado do planeta. A Guerra Assimtrica representava uma revoluo no s pela incorporao de alta tecnologia (em fim um objetivo perseguido por todas as organizaes militares em todos os tempos), mas principalmente pelas mudanas profundas em gesto, ferramentas/meios, percepo psicolgica do mundo globalizado e define de objetivos e adversrios.47

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A Guerra Assimtrica surgia como a estratgia de combate num mundo sem paz e sem guerra, numa situao contnua e indefinida de enfrentamento e choque. No Iraque, aps a efetiva destruio das estruturais estatais baasistas depois de 1 de maio de 2003 os Estados Unidos defrontaram-se como vimos, pela primeira vez, com uma guerra assimtrica na era da globalizao. Tal possibilidade no estava prevista no plano de guerra americano, perigosamente otimista. Pior ainda, os Estados Unidos no estavam sequer preparados para uma guerra desse tipo e acabaram sendo surpreendidos, compelidos para aes defensivas e para a limitao das possibilidades de uso da panplia que est ao dispor das suas foras armadas. Assim, a guerra no Iraque afigura-se longa, difcil e sem grandes perspectivas no momento. No interior de todo este drama desenvolve-se uma srie de aes, por parte da insurgncia, que caracterizam, por si s, outro drama: os seqestros. Depois da invaso americana um nmero crescente de estrangeiros encontra-se seqestrados no Iraque, muitos foram mortos e outros trocados de forma mais ou menos pblica, por grandes somas de dinheiro. Em todos os casos restou um profundo embarao para as foras de ocupao no pas.Por que seqestrar?

Para a insurgncia nacional iraquiana o objetivo central conseguir a retirada dos Estados Unidos do pas. Todo o resto as relaes com xiitas, curdos, a questo do Baas e de Saddam Hussein esto reboque deste objetivo maior. Com sua superioridade organizativa, poder de mobilizao, experincia com as foras armadas e de segurana, a minoria sunita teria condies de impor48

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sua vontade ao pas, aps uma hipottica sada dos americanos. Assim, os meios principais de ao esto apontados para este objetivo poltico: a retirada dos estrangeiros ou libertao do Iraque. Estabelecido o objetivo poltico buscam-se os meios militares ou no-militares para alcan-lo. Aqui a resistncia trabalhou com duas hipteses de trabalho que resultaram, at o momento, em formulaes e operaes acertadas: o centro de gravidade dos Estados Unidos no Iraque a partir da noo de Schwerpunkt em Clausewitz no reside na panplia desdobrada pelos americanos na regio. Tais dispositivos, mesmo em face da carncia de manpower, no podem ser vencidos numa batalha decisiva e, nem mesmo, numa constante de aes de tipo guerrilheiro clssico. O ponto frgil da presena americana no Iraque reside na Amrica, na opinio pblica americana e, mais exatamente, na coalizo conservadora/crist/negocista que apoiou e, mesmo, exigiu a guerra. Para quebrar a vontade americana no Iraque necessrio quebrar os liames da coalizo no poder em Washington. Assim, o plano de guerra da insurgncia deveria basear-se num estudo cuidadoso tais fragilidades da opinio pblica americana que possam, efetivamente, agir sobre a coalizo em Washington e, dessa forma, quebrar a vontade americana de permanecer no Iraque. Ainda uma vez, a compreenso terica da guerra em Clausewitz foi utilizada extensamente. A mxima de que a guerra sempre poltica, mesmo que por outros meios, possibilita a compreenso algumas vezes difcil para militares de que as operaes militares no so fins em si mesmo e que o objetivo no reside no seu completo sucesso. A prpria existncia das aes militares j um xito. Mais uma vez, a insurgncia estabeleceu duas formas bsicas de aes militares capazes de causar impacto sobre a opinio pblica americana:49

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i. Aes visando causar o maior nmero de baixas possveis junto aos membros da coalizo e junto aos nacionais iraquianos ligados s instituies de reerguimento do Estado; ii. Aes visando causar o maior dano possvel infra-estrutura do pas, em especial indstria petrolfera, visando tornar a guerra cara e penosa para o contribuinte americano. Desde 2003 a resistncia nacional iraquiana tem sido extremamente feliz em alcanar tais objetivos, revertendo a simpatia que a maioria americana possua pela conduo da guerra pela Administrao Bush. Da mesma forma, a guerra que deveria pagar a si mesma fracassa enquanto um grande negcio, tornando-se um peso para as finanas americanas. Visando aprofundar, e explorar ao limite, os dois objetivos formulados anteriormente, a insurgncia iraquiana passou, simultaneamente, a buscar refns estrangeiros em sua luta para quebrar a vontade de permanncia dos americanos no pas. O seqestro de estrangeiros visa trs objetivos simultneos: i. Estabelecer o pnico entre possveis candidatos a empregos nas empresas ocupadas com a reconstruo do pas, com isso dificultando a contratao de quadros de qualidade e, ao mesmo tempo, alterando o mercado de salrios de forma brutal. Devemos ainda levar em considerao o custo segurana que envolve as medidas de proteo decorrente de uma estratgia anti-seqestro; ii. A produo de recursos financeiros para a manuteno da resistncia com a exigncia de resgates de valores variados. Segundo fontes disponveis, entre US$100 e US$300 mil dlares para funcio50

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nrios subalternos, principalmente de origem asitica, podendo em casos de grande visibilidade poltica, caso o seqestrado seja de procedncia de pases membros da coligao, atingir valores superiores a US$ 1 milho; iii. Os seqestros visam ainda, e de forma espetacular, projetar diretamente a guerra no interior da sociedade do adversrio, levando a opinio pblica a questionar a presena dos seus militares num pas remoto do Oriente Mdio. Atravs do uso macio da mdia, que se mobiliza sempre em torno do seu nacional seqestrado, a resistncia acaba expondo seus objetivos e criando animosidade entre um governo frio e a opinio pblica altamente emocional. Assim, com objetivos especficos mltiplos como vimos acima e um objetivo estratgico unificar a retirada dos Estados Unidos a resistncia obteve, at o momento, um grande xito nas suas aes. Em alguns pases, como Japo e Itlia, os seqestros acabaram por se converter em grande desgaste dos governos pr-americanos, com manifestaes de rua massivas contra a participao na guerra.Existe um padro de ao?

No possvel prever seqestros. Todas as aes vitoriosas das foras policiais dirigem-se para a descoberta do cativeiro e a libertao, com vida, do refm. Mesmo polcias altamente treinadas e com meios modernos disposio como a Bundespolizei alem no Caso Schleicher versus Baader-Meinhof ou a Polcia italiana frente ao Caso Aldo Moro versus Brigadas Vermelhas as chances de evitar um seqestro e, depois, localizar o seqestrado, so verdadeiramente bastante baixas.51

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Devemos destacar que neste caso no se trata de seqestros comuns, organizados por entidades ou bandos criminosos, no mais das vezes improvisados. Os seqestros realizados na Alemanha, Itlia, Brasil durante o regime civil-militar de 1964 -, Argentina e agora no Iraque so feitos por grupos treinados, com forte ligao ideolgica e grande motivao. Mesmo em casos em que a polcia descobre o cativeiro como no Brasil a deciso de invadir pode no ser tomada em virtude da segurana do refm. Assim, uma primeira concluso importante a distino necessria, mesmo imperiosa, entre o seqestro comum, de tipo criminal, do seqestro poltico ( no menos criminoso ) mas, de fundo claramente ideolgico. Na maioria das vezes, a experincia acumulada nos seqestros comuns pode ajudar pouco, ou mesmo nada, na resoluo de seqestros polticos. No caso do Iraque, trs elementos centrais padronizaram, at o final do ano passado, as aes de seqestros: i. um claro objetivo de humilhao da autoridade ocupante, negando aos aliados e seus acompanhantes a possibilidade de criar uma Green Zone, segura e de onde poderiam desenvolver as atividades de gesto do Estado; ii. a busca de financiamento para suas aes, obrigando os aliados a pagarem pelo esforo de guerra voltado contra os mesmos; iii. a exigncia, no mais das vezes retrica, de retirada militar do pas de origem do seqestrado. Aps a revelao dramtica da situao na priso de Abu Ghraib, com a publicao de fotos altamente comprometedoras para os Estados Unidos, houve uma mudana radical na aes dos se52

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qestradores. Na maioria das vezes, os refns americanos e ingleses foram executados, de forma cruel, em frente a cmeras de TV. Neste momento, tratava-se, pura e simplesmente, de disseminao do terror, de criar condies para a completa humilhao da grande potncia, que nada podia fazer para evitar a execuo teatral de seu nacional. Assim, americanos, ingleses e japoneses foram executados, malgrado os diversos apelos feitos. Mesmo fora do Iraque, na Arbia Saudita e Paquisto, o mesmo se sucedeu. Uma segunda concluso prvia, possvel neste momento, que em se tratando de americanos e ingleses ou quem com eles se aliam, trabalham ou mantm qualquer tipo de vnculo o seqestro pode desde o incio resultar numa pena de morte antecipada.A Guerra no sculo XXI.

O anncio feito no final de fevereiro de 2005 pelo Departamento de Defesa dos EUA sobre o chamado Sistema de Combate do Futuro implica para alm de constituir-se na resposta americana Guerra Assimtrica - na aceitao sem reservas da viso de guerra formulada durante a Guerra de Secesso Americana pelo General Sherman (1820-1891). Na ocasio, Sherman, encarregado de submeter ao estado da Gergia, partindo a Confederao em duas pores territoriais descoordenadas, ordenou o incndio da cidade de Atlanta, ante o estupor das autoridades e das prprias tropas confederadas. Ante o protesto indignado, Sherman respondeu que a guerra era sinistra mesmo, um verdadeiro inferno. No seu sentido moral, por no ser o responsvel por ter desencadeado o conflito, possua a liberdade de recorrer a quaisquer meios para encerr-la. As formulaes de Sherman seriam bem aceitas por Carl von Clausewitz (1780-1831), o terico alemo da guerra, que afirmaria53

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que toda a guerra tende ao seu extremo. O que o famoso general alemo afirmava, ainda no sculo XIX, seria uma realidade em todas as guerras posteriores: as potncias envolvidas em conflitos nos quais sua sobrevivncia ou a garantia de seus interesses estivessem em risco no hesitariam em recorrer a quaisquer meios mesmo os mais cruis, desumanos ou imorais que estivessem ao seu alcance. O uso do cerco de cidades e sua reduo pela fome e pelo fogo; o ataque a navios mercantes e a guerra submarina; o uso dos gases venenosos e das armas atmicas contra cidades desarmadas, alm do terrorismo em larga escala, s confirmariam as asseres de Sherman e Clausewitz.Guerra: uma constante da histria.

Da chamada Batalha de Krapina, onde os primeiros Homo Sapiens atacaram e canibalizaram Homens de Neanderthal, numa aldeia na Hungria Paleoltica at a atual Guerra no Iraque, a histria da guerra tem sido uma crnica sinistra, que envergonha o gnero humano. Mas tem sido tambm um dado constante da histria. Assim, seria fantasioso pensar na abolio imediata da guerra e de todas as suas implicaes. Na prtica, a criao de mecanismos jurdicos aceitos mundialmente de controle e limitao da guerra, atravs de organismos como uma ONU refundada e ampliada, alm de convenes especficas interditando aspectos concretos da guerra (tais como as convenes anti-minas pessoais; a interdio de crianas e adolescentes engajados; contra o comrcio de armas automticas ou contra a guerra qumica ou bacteriolgica etc.) seria uma soluo progressiva e realista. Da mesma forma, ao longo da histria, as guerras foram limitadas por constrangimentos objetivos, de cunho material. As condies do54

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tesouro francs, malgrado as operaes brilhantes de Colbert, eram um entrave real s ambies imperiais de Luis XIV. Em vrias ocasies, ingleses e franceses foram levados a aceitar trguas ao longo das Guerras Napolenicas (1804-1814) em virtude do esgotamento de seus recursos. Tambm a disponibilidade de conscritos do manpower, conforme os americanos poderia limitar as ambies belicistas de uma potncia. O recurso a mercenrios seria, sempre, caro e nem sempre confivel, como apreenderam os romanos ao introduzirem brbaros germanos em suas fileiras. Os Estados Unidos encontram-se hoje no centro de tais consideraes. Aps a guerra do Vietn (1964-1975) tornou-se imprescindvel a possibilidade de aplicao de planos alternativos de guerra e de sadas polticas de conflitos, evitando o atoleiro militar vivido antes no Sudeste Asitico e agora no Iraque. Desde ento, os generais americanos passaram a incorporar a varivel poltica a solidez poltica do front interno como elemento de clculo de todos os planos de guerra.Fora e vulnerabilidade da Amrica.

Em face paralisia estratgico-traumtica da Amrica era fundamental elaborar uma resposta adequada. Tratava-se claramente de reelaborar o que Clausewitz denominou centro ( ou ponto) de gravidade. Um diagnstico que apresenta claramente onde residia o equilbrio do adversrio e que deveria ser batido, provocando a sua queda imediata. Evitava-se, assim, o desperdcio de operaes perifricas inconclusivas, demoradas e caras. Foi neste sentido que, a partir do final dos anos 70, generais como William De Puy e Donn A. Starry iniciaram os estudos em torno de uma nova doutrina, centrada na idia da batalha ar-terra.55

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Devia-se vencer mesmo em inferioridade numrica superior relao 1/3, atravs do uso macio das novas tecnologias, em especial melhorando a velocidade, o adestramento e a letalidade do poder de fogo. J o Manual de Campanha 100-5, de 1982, estabelecia as condies de uma vitria capaz de poupar vidas humanas. Tratava-se, ento, de combinar e coordenar sistemas at ento relativamente autnomos, que so organizados em torno de cinco eixos: o carro de combate MI Abrams; a viatura de combate para Infantaria M2-Bradley; o helicptero de ataque 64A Apache; os helicpteros de emprego geral Black Hawk e, em fim, o mssil antiareo Patriot. Alm disso, a doutrina era renovada, as foras armadas reorganizadas e as estruturas de comando ampliadas. Com isso tudo, todavia, a nfase ainda residia na grande batalha convencional num cenrio europeu, tendo os soviticos como adversrios. Poucos chefes militares, e praticamente nenhum civil do Departamento de Defesa inclusive aqueles que organizavam e financiavam a guerrilha e o terrorismo afego contra os russos pensaram num guerra assimtrica prolongada em um ou mais cenrios no Terceiro Mundo. Ora, os adversrios dos EUA, inclusive os potenciais, tambm leram os mesmos livros. Assim, como na Guerra do Vietn, perceberam a fragilidade americana em guerras irregulares e basearam sua prpria doutrina na busca do maior dano possvel ao adversrio, tanto em vidas humanas, quanto em custos materiais. Com o espetculo dirio da contagem de corpos, atingia-se o ponto de gravidade da Amrica: o horror das democracias de massa ocidentais frente morte macia de seus homens. Assim, numa guerra popular prolongada (Mao Tsedong, V Giap etc.), os adversrios da Amrica esto conscientes da impossibilidade de derrotar militarmente seu inimigo em campo de batalha. Para atingir a Amrica deve-se mirar no consenso poltico interno,56

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hoje fortemente cimentado por laos ideolgicos de carter religioso-nacionalista. A vulnerabilidade de tal consenso reside na chamada contagem de corpos. No sendo uma guerra de sobrevivncia da Amrica como foi a 2 Guerra Mundial, aps o ataque japons a Pearl Harbour, em 1941 a sociedade no estaria disponvel a tolerar um nmero crescente de baixas, optando pelo abandono de qualquer parte remota do globo onde se travasse uma guerra sangrenta (foi assim recentemente no Lbano e na Somlia). Frente a tais assimetrias, a liderana americana inclusive a atual Administrao Bush buscou duas aes coordenadas para manter suas aes blicas no Afeganisto (desde outubro de 2001) e no Iraque (desde maro de 2003), alm de exercer crescente presso em outras partes do planeta, como Sria, Ir e Coria do Norte: 1. A transformao de tais guerras regionais em uma luta pela sobrevivncia dos EUA, ao conectar estes conflitos com a questo das armas de destruio em massa e com o terrorismo internacional, em especial a rede Al-Qaeda; 2. Desenvolver todos os esforos possveis no sentido de minimizar a contagem de corpos, fortalecendo o consenso interno na Amrica e com isso deslocando o ponto de gravidade para a ao militar clssica, no que so imbatveis. A Administrao Bush trabalha amplamente em ambas as frentes. Atravs de um forte discurso ancorado na questo da liberdade, conecta toda resistncia aos seus interesses hegemnicos como se fossem ao de tiranos e/ou terroristas, de Bin Laden a Hugo Chvez. Por outro lado, lanou um movimento planetrio, atravs de grandes firmas empreiteiras TitanCorp, Blackwater, Triple Canopy,57

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entre outras para o alistamento de mercenrios que deveriam lutar no Iraque, expostos s operaes mais vulnerveis.Mercenrios: a quem interessa?

O que h em comum entre John Rivas, chileno, Juan Nerio, salvadorenho e Augusto Iturbe, colombiano? Todos so ex-militares latino-americanos contratados por uma empresa norte-americana como bucha de canho para lutar no Iraque. Eis a a globalizao de uma nova tendncia na gesto da guerra moderna, iniciada nos Estados Unidos e que agora atinge a Amrica Latina: a privatizao dos exrcitos. Os dois alemes supostamente envolvidos no recrutamento no Brasil Heiko Seibold e Frank Salewski divulgaram, frente aos escndalos, uma nota pblica negando qualquer envolvimento no esquema. Ao mesmo tempo, recusaram todo envolvimento no recrutamento de homens para lutar no Iraque, afirmando temerem ataques de fundamentalistas internacionais contra suas famlias. Por isso, decidiram pedir proteo Embaixada da Alemanha no Brasil. Tambm negaram vnculo empregatcio com a Inveco e disseram estarem apenas prestando um favor ao consultarem profissionais brasileiros sobre a possibilidade de irem trabalhar no exterior. No se manifestaram, contudo, sobre o impacto que tal ao de recrutamento poderia ter nas negociaes em curso para libertao de um brasileiro seqestrado naquele pas. Se para os brasileiros convites desse tipo so novidade, neste momento j h grande nmero de chilenos, colombianos, salvadorenhos e cubanos da Flrida no Iraque. Ao lado destes, h europeus orientais, turcos, nepalenses, indonsios e outros, formando um contingente de 20 mil homens, o que faz dos mercenrios ocidentais58

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o segundo exrcito no teatro de operaes (logo depois do contingente dos EUA e na frente do contingente britnico. Tal investimento macio em mercenrios uma das novas tendncias da guerra moderna dos idelogos neoconservadores americanos, j esboada na Administrao Clinton e que ganhou imensa fora sob George Bush. Trata-se, no caso, de resolver duas grandes preocupaes: de um lado, o impacto sobre a opinio pblica americana, da morte de seus homens; de outro lado, tentar rebaixar os custos financeiros da guerra. Sabemos, desde a Guerra do Vietn (1964-1975) que os Estados Unidos so altamente refratrios a uma elevada contagem de corpos. E em guerras no nacionais, em cenrios distantes e com motivao duvidosa, aps uma chegada macia de mortos, a opinio pblica tende a rejeitar a participao no conflito. Foi isso que se denominou de Sndrome do Vietn. Assim, durante um bom tempo, as foras armadas americanas preferiram engajamentos de tempo determinado, aes areas sem ocupao de territrio e expedies punitivas com msseis enquanto forma bsica de guerra. Tratava-se, como vimos acima, do mtodo desenvolvido por Colin