teoria tradicional e teoria crítica

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  • 7/24/2019 Teoria Tradicional e Teoria Crtica

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    124

    H O R K H E I M E R - A D O R N O

    r do ser e do ser-consciente dos hom ens. Mas a praxis revolucion ria depende da

    intransigncia da teoria face inconscincia com a qual a sociedade deixa que

    ( o pensar se endurea. A concretiza o no posta em causa pelos seus pressup os-

    / tos materiais , pela tcnica, como tal, deixada solta. Isso o que dizem os soci

    logos que sonham, por sua vez, com um antdoto, mesmo que de cunho coleti-

    f vista , para se tornarem seus don os.

    36

    A culpa est no obcecante contexto socia l .

    , O mtico respeito da cincia dos povos pelo dado , que entretanto sempre produ

    zido por eles, converte-se finalmente, por sua vez, num fato positivo, na torre-de-

    { guarda diante da qual at mesmo a fantasia revolucio nria se envergon ha de si,

    como um utopismo, e degenera em dcil confiana na tendncia objetiva da hist

    ria. Como rgo de uma tal adaptao, como mera construo de meios, o ilumi-

    j nismo to destrutivo como o proclama m seus inimigos rom nticos. Ele s re

    cair em si quando desfizer o ltimo acordo com esses inimigos e ousar

    ' aban don ar o falso absoluto , o princpio da dom inao cega. O esprito dessa teo-

    ( ria intransigente poderia inverter, para seus prprios fins, o esprito desse pro

    gresso impiedoso. Bacon, o arauto desse ltimo, sonhava com as muitas coisas

    { "que os reis, com todos os seus tesouro s, no podem comp rar, sobre as quais

    , no se impe seu mand o, das quais seus informantes e alcagetes no do notcia

    alguma". Tal como ele queria, tudo isso coube aos burgueses, herdeiros esclareci-

    / dos dos reis. Multiplicando o seu poder pela media o do mercad o, a econom ia

    burguesa multiplicou de tal modo suas coisas e suas foras que no s reis, mas

    tambm burgueses, deixaram de ser necessrios para administr-las: necessrios

    ( ainda so apenas todos . Esses ento aprendem , pelo poder das coisas , a passar

    finalmente sem o poder. O iluminismo se completa e se supera quando os fins

    prticos prximos se revelam como o ponto mais distante a que se chegou, e

    ( as terras "das quais seus informantes e alcagetes no do notcia algum a", a

    saber, a natureza incompreendida pela cincia senhorial, so recordadas como

    ( as terras da origem. Hoje que a utopia de Bacon , de poderm os "ter a naturez a,

    / na praxis, a nosso man do", concret izou-se em propores te lricas, torna-se ma

    nifesta a essncia da coao, por ele atribuda natureza no dominada. Essa

    essncia era a prpria dom inao . O saber, que para Bacon residia indubitavel-

    t mente na "superioridade do homem ", pode passar agora dissoluo dessa domi

    nao. Mas, face a semelhante possibilidade, o iluminismo a servio do presente

    ( transforma-se no total engano das mass as.

    3

    " "The supreme question which confronts our generation today the question to which al other problems

    are merely corollaries is whether technology can be brought under control. . . Nobody can be sure of the

    { formula by wich this end can be achieved. . . We must draw on all the resources to which acess can be

    had. . . " "(The Rockefeller F ound ation. A Review for 1943. Nova York. 1944, pp. 33-35. (N. do A.)

    ( ("A questo suprema com a qual nossa gerao hoje se depara questo da qual iodas a.s outras so

    corolrios a de saber se a tecnologia pode ser posta sob con trole. . . Ningum pode ter segurana

    ( quanto frmula pela qual esse fim pode ser alcanad o. . . preciso lanar mo de todos os recursos

    aos quais possamos ter acesso. . . "(N. dos T.)

    (

    (

    (

    T E O R I A T R A D I C I O N A L E T E O R I A C R T I C A *

    A questo o que teoria parece no oferecer maiores dificuldades

    dentro do quadro atual da cincia. No sentido usual da pesquisa, teoria equivale

    a uma sinopse de proposies de um campo especializado, ligadas de tal modo

    entre' si que se poderiam deduzir de algumas dessas teorias todas as dem ais.

    Quanto menor for o nmero dos princpios mais elevados, em relao s conclu

    ses, tanto mais perfeita ser a teoria. Sua validade real reside na consonncia

    das proposies deduzidas com os fatos ocorridos. Se, ao contrrio, se evidenciam

    contradies

    (Widersprueche)

    entre a experincia e a teoria, uma ou outra ter

    que ser revista. Ou a observao foi falha, ou h algo discrepante nos princpios

    tericos. Portanto, no que concerne aos fatos, a teoria permanece sempre hipot

    tica. Deve-se estar disposto a mud-la sempre que se apresentem inconvenientes

    na utilizao do material. Teoria o saber acumulado de tal forma que permita

    ser este utilizado na caracterizao dos fatos to minuciosamente quanto possvel.

    Poincar compara a cincia com uma biblioteca que deve crescer incessante

    mente. A fsica experimental desempenha o papel do bibliotecrio que realiza

    as aquisies, isto , que enriquece o saber, trazendo o material. A fsica matem

    tica, teoria da cincia natural em sentido mais estrito, tem a tarefa de catalogar.

    Sem o catlogo no se poderia fazer uso da biblioteca, apesar de toda a sua

    riqueza. " este, portanto, o papel da fsica matemtica: deve dirigir a generaliza

    o de tal forma que ( . . . ) aumente a sua eficcia".

    1

    O sistema universal da

    cincia aparece a como a meta da teoria em geral. No se restringe mais a uma

    rea particular, mas abrange todos os objetos possveis. Ao fundar as proposies

    referentes a ramos diversos nas mesmas pressuposies,

    2

    elimina-se a separao

    das c incias. O mesmo aparato conceptual (begrifflicher Apparat) empregado na

    determinao da natureza inerte serve tambm para classificar a natureza viva,

    podendo ser utilizado a qualquer momento por toda pessoa que tenha aprendido

    o seu manejo, isto , as regras da deduo, o material significante, os 'fntodos

    de comparao de proposies .deduzidas com constataes de fatos, etc. Mas

    estamos longe de tal situao.

    Esta , em linhas gerais, a representao

    (Vorstellung)

    atualmente difundida

    da essncia (Wesen) da teoria. Essa representao encontra em geral sua origem

    * Traduzi do do original alemo : "Tradizionelle und kritische Thorie", em

    Kritische Thorie, cine

    Dokumentation,

    Frankfurt am Main , 1968, S. Fischer Verlag, II, pp.

    137-191.

    Publicado pela primeira vez

    em Zeitschrift fuer Sozialforschung, ano VII, 1937, pp. 245-294. (N. do E.)

    ' H . Poincar. Vissenscha/t und Hypothse, edio alem de F. e L. Lindemann. Leipzia. 1914. p. 146.

    (N. do A.)

    2

    "prem issas", na edio de Alfred Schmidt. (N. dos T.)

  • 7/24/2019 Teoria Tradicional e Teoria Crtica

    2/20

    126

    H O R K H E I M E R

    nos primordios da filosofia moderna. Descartes assinala na terceira mxima de

    seu mtodo cientfico a deciso "de conduzir a ordem de acordo com os meus

    pensamentos, portanto, comeando com os objetos de conhecimento mais fcil

    e simples, para ento subir, por assim dizer, gradualmente, at chegar a conhecer

    os mais complexos, pressupondo nesses objetos uma ordem que no sucede de

    um m odo natural". A deduo ta l como usual na matemt ica deve ser estendida

    totalidade das cincias. A ordem do mundo abre-se para uma conexo de dedu

    es intelectuais (deduktiven gedanklickenZiisam menhan g). "As longas cadeias

    formadas por motivos racionais, de muito simples e fcil compreenso, habitual

    mente utilizados pelo gemetra para chegar s mais difceis demonstraes, me

    levaram a imaginar que todas as coisas que possam ser do conhecimento do ho

    mem se encontram na mesma re lao, e queratendo-se apenas em no considerar

    verdadeira uma coisa que no o seja, e mantendo-se a ordem que necessria

    para dizer uma coisa da outra , no pode haver nenhum conhecimento que, por

    mais distante que esteja, no possa ser alcanado, nem conhecimento que, por

    mais oculto que esteja, no possa ser descoberto".

    3

    As proposies mais gerais

    de onde partem as dedues so vistas conforme a respectiva posio filosfica

    do lgico. Para John Stuart Mill, por exemplo, elas so ainda juzos empricos

    (Erfahrungsurteile), indue s; nas correntes raciona listas e fenomenolgicas s o

    consideradas inteleces evidentes (evidente Einsichten), enquanto a moderna

    axiomt ica as toma como est ipulaes arbi t rr ias. Para a lgica mais avanada

    da atualidade, que se expressa representativamente nas Investigaes Lgicas de

    Husserl, a teoria considerada "como um sistema fechado de proposies de

    uma cincia".

    4

    Teoria, em sentido preciso, "um encadeamento sistemtico de

    proposies de uma deduo sistemat icamente uni tr ia".

    B

    Cincia significa "um

    certo universo de proposies (. .

    .

    ) tal como sempre su rge do trabalho terico,

    cuja ordem sistemtica permite a determinao (Bestimmung) de um certo uni

    verso de obje tos".

    6

    Uma exigncia fundamental, que todo sistema terico tem

    que satisfazer, consiste em estarem todas as partes conectadas ininterruptamente

    e livres de contradio. H. Weyl considera como condio imprescindvel a har

    monia que exclui toda a possibilidade de contradio, assim como a ausncia

    de componentes suprfluos, puramente dogmticos, e independentes das aparn

    cias observveis.

    7

    Na medida em que se manifesta uma tendncia nesse conceito (Begriff) tra

    dicional de teoria, ela visa a um sistema de sinais puramente matemticos. Cada

    vez menor o nmero de nomes que aparecem como elementos da teoria e partes

    das concluses e proposies, sendo substitudos por smbolos matemticos na

    designao de objetos observados. Tambm as prprias operaes lgicas j esto

    3

    Descartes. Discours de la Mthode, II, trad, aiem de A. Buchenau, Leipzig. 1911, p. 15. (N. do A.)

    4

    E. Husserl, Formale und transzendemale Logik, Halle, 1929, p. 89. (N. do A.)

    5

    Idem,p. 79. (N. do A.)

    6

    Idem.p. 91.(N. do A.)

    7

    H. Weyl. "'Philosophie der Naturwissenschaft", in Handhuch der Philosophie, parte II, Munique e Berlim,

    1927,

    p p. 118 ess .

    T E O R I A T R A D I C I O N A L E T E O R I A C R T I C A 1 27

    racionalizadas a tal ponto que, pelo menos em grande parte da cincia natural,

    a formao de teorias tornou-se construo matemtica.

    As cincias do homem e da sociedade tm procurado seguir o modelo (Vor-

    bild)

    das bem sucedidas cincias naturais. A diferena entre as escolas da cincia

    social, que se dedicam mais pesquisa de fatos, e outras que visam mais os

    princpios, no tem nada a ver com o conceito de teoria como tal. A laboriosa

    atividade de colecionar, em todas as especialidades que se ocupam com a vida

    social, a compilao de quantidades enormes de detalhes sobre problemas, as

    pesquisas empricas realizadas atravs de enqutes cuidadosas ou outros expe

    dientes, que, desde Spencer, constitui uma boa parte dos trabalhos realizados nas

    universidades anglo-saxnicas, oferecem certamente uma imagem que aparenta

    estar mais prxima exteriormente da vida em geral dentro do modo de produo

    industrial do que a formulao de princpios abstratos e ponderaes sobre con

    ceitos fundam entais, em gabinete,, como foi caracterstico de uma parte da socio

    logia alem. Mas isto no significa diferena estrutural do pensamento. Nas lti

    mas pocas da sociedade atual as assim chamadas cincias do esprito tm tido

    apenas um valor de mercado oscilante; elas se vem na contingncia de fazer

    de qualquer maneira o mesmo que as cincias naturais, mais venturosas, cuja

    possibilidade de aplicao est fora de dvidas. De qualquer maneira existe uma

    ident idade na concepo (Auffassung) de teoria entre as'diferentes escolas socio

    lgicas e entre estas e as cincias naturais. Os empricos no tm outra representa

    o melhor de teoria do que os tericos. Esto meramente convencidos de que,

    em vista da complexidade dos problemas sociais e do quadro atual da cincia,

    o trabalho com princpios gerais deve ser considerado como ocioso e cmodo.

    Na medida em que seja necessria a realizao de um trabalho terico, isso ocor

    rer, pensam eles, atravs do manuseio crescente do material; no de se esperar

    a curto prazo exposies tericas de grande alcance. So os mtodos de formula

    o exata, especialmente mtodos matemticos, cujo sentido est em estreita co

    nexo com o conceito de teoria esboado acima, que so muito apreciados por

    estes cientistas. N o o significado da teoria, em geral que questionado aqui,

    mas a teoria esboada "de c ima para baixo" por outros, e laborada sem o contato

    direto com os problemas de uma ciencia emprica particular. Diferenciaes

    como, por exemplo, entre coletividade e sociedade (Toennies), entre solidariedade

    mecnica e solidariedade orgnica (Durkheim), entre cultura e civilizao (A.

    Weber), empregadas como formas fundamentais da socializao humana, desven

    dam imediatamente sua problemtica, se se intenta aplic-las a problemas concre

    tos .

    Em vista do quadro atual da pesquisa, o caminho que a sociologia teria que

    percorrer seria a difcil ascenso da descrio de fenmenos sociais at compara

    es detalhadas, e s ento a partir da passar para a formao de conceitos

    gerais.

    oposio (Gegensatz) acima exposta est baseada no fato de os empiristas,

    em conformidade com sua tradio, considerarem apenas as indues concludas

    como as mais elevadas proposies da teoria, e ao mesmo tempo acreditarem

    que ainda se estaria longe da realizao de tais indues. Seus opositores conside-

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    1 2 8 H O R K H E I M E R

    y ram corretos outros modos de procedime nto, que no so totalmente dependentes

    da acumulao do material coletado, para a formao das inteleces e das cate

    gorias mais elevadas. Pode ser que, por exemplo, Durkheim concorde em muitos

    aspectos com as teorias bsicas dos empiristas, mas, na medida em que se trata

    ' de princpios, ele declara redutvel o processo da indu o. A classificao de pro-

    ( cessos sociais por meio de inventrios empricos no possvel, nem tampo uco

    traria facilidades na pesquisa, na forma que se espera. "Seu papel o de colocar-

    ' nos mo pontos de referncia, aos quais podem os relacionar outras observa es

    f alm daquelas pelas quais adquirimo s estes pontos de referncia. Para satisfazer

    esta finalidade ela no necessita ser concebida segundo o inventrio completo

    f de todos os traos individuais, mas de um nme ro pequen o, cuidados amente es-

    , colhido dentre e les. ( . . . ) Ela pode poupar mui t ssimos passos ao observador,

    pois e la o guiar . ( . . . ) Temos portanto que descobri r t raos part icularmente

    f essenciais para nossa classifica o.

    3

    Mas, com relao sua funo no sistema

    . terico ideal (idealen), no faz diferena alguma que os princpios mais elevados,

    por sua vez, sejam adquiridos por escolha, por intuio eidetica do ser

    (Wesen-

    ( schau) ou pela simples conveno. certo que o cientista aplicar suas proposi

    es mais ou menos gerais como hipteses aos novos fatos surgidos. Depois da

    constatao de uma lei essencial (Wesensgesetz), o socilogo de orienta o feno-

    i menolg ica estar indubitavelmente seguro de que cada exemplar teria que proce

    der de conformidade com essa lei. Mas o carter hipottico da lei essencial se

    ' impe no problem a: se se trata de um exemplar da respectiva essncia ou de

    / uma essncia prxim a; se se trata de um mau exemplar de um gnero, ou de

    um bom exemplar de um outro. Tem-se sempre, de uma lado, o saber formulado

    ( intelectualmente e, de outr o, um fato concreto (Sachverhalt) que deve ser subsu-

    / mido por esse saber subsum ir, isto , este estabelecer a relao entre a mera per

    cepo ou constatao do fato concreto e a ordem

    9

    conceituai do nosso saber

    ( chama- se explicao terica.

    , No ser necessrio falar aqui dos diferentes tipos de classificao. Indicare

    mos apenas em breves palavras como se procede com a explicao dos aconteci-

    i mentos histricos segundo este conceito tradiciona l de teoria. Isto se torna na

    controvrsia entre Eduard Meyer e Max Weber. A respeito de certas decises

    voluntrias de determinados personagens histricos que desencadearam guerras,

    ( Meyer havia afirmado que a questo de saber se estas guerras se dariam ou no ,

    caso no tivessem sido tomadas tais decises, irrespondvel e ociosa. Tomando

    ' partido contr rio, Weber tentou provar que admitir isso significaria que a explica-

    / o histrica impossvel. Segundo as teorias do fisilogo Von Kries, de juristas

    e economistas como Merkel , Liefmann e Radbru ch, Weber desenvolveu a "teoria

    da possibilidade objetiva". Segundo este autor, do mesmo modo que para o espe

    cialista em direito penal, a explicao para o historiador no consiste em uma

    enumerao mais completa possvel de todas as circusntncias a presentes, mas

    8

    E.Dvikhm, Les rgles de la mthode sociologique, Paris , 1927, p. 99.(N.do A.)

    s

    "estrutu ra", na ed. de A. Schmidt. (N. dos T.)

    T E O R I A T R A D I C I O N A L E T E O R I A C R T I C A 1 29

    em destacar a conexo entre certos componentes do acontecimento, importantes

    para a continuao do processo histrico, e, por outro lado, os processos indivi

    duais determinantes. Esta conexo, por exemplo, o julgamento de que uma guerra

    foi desencadeada pela ao poltica de um estadista decidido, pressupe logica

    mente que, no caso de esta poltica no ter sido levada a cabo, no se daria

    o efeito explicado por ela, mas um outro. A afirmao de uma determinada causa

    histrica implica sempre que, no caso de sua no-realizao, devido a regras de

    experincia conhecidas, e sob as circunstncias vigentes, ocorreria um outro de

    terminado efeito. As regras da experincia, neste caso, no so outra coisa que

    formulaes do nosso saber a respeito dos nexos econmicos, sociais e psicolgi

    cos. Com sua ajuda construmos o percurso provvel, omitindo ou incluindo a

    ocorrncia que deve servir para explic-lo.

    1

    Opera-se com proposies condicio

    nais , aplicadas a uma situao dada. Pressupondo-se as circunstncias a, b,

    e, d, deve-se esperar a ocorrncia q; desaparecendo p, espera-se a ocorrncia r,

    advindo g, ento espera-se a ocorrncia s, e assim por diante. Esse calcular per

    tence ao arcabouo lgico da histria, assim como ao da cincia natural. E o

    modo de existncia da teoria em sentido tradicional.

    Por conseguinte, o que os cientistas consideram, nos diferentes campos,

    como a essncia da teoria, corresponde quilo que tem constitudo de fato sua

    tarefa imediata. O manejo da natureza fsica, como tambm daqueles mecanismos

    econmicos e sociais determinados, requer a enformao (Formung) do material

    do saber, tal como dado em uma estruturao hierrquica (Ordnungsgefiiege)

    das hipteses. Os progressos tcnicos da idade burguesa so inseparveis deste

    tipo de funcionamento da cincia. Por outro lado, os fatos tornam-se fecundos

    para o saber por meio deste funcionamento, o que tem utilizao dentro das rela

    es dadas. Por outro lado, o saber vigente aplicado aos fatos. No h dvidas

    de que tal elaborao representa um momento de revoluo e desenvolvimento

    constantes da base material desta sociedade. Na medida em que o conceito da

    teoria independentizado, como que saindo da essncia interna da gnose (Er-

    kenntnis), ou possuindo uma fundamentao a-histrica, ele se transform a em

    uma categoria coisificada (verdinglichte) e, por isso, ideolgica.

    Tanto a fecundidade de nexos efetivos recm-descobertos para a modificao

    da forma

    11

    do conhecimento existente, como a aplicao deste conhecimento

    aos fatos so determinaes que no tm origem em elementos puramente lgicos

    ou metodolgicos, mas s podem ser compreendidos em conexo com os proces

    sos sociais reais. O fato de uma descoberta motivar uma reestruturao das intui

    e s

    12

    vigentes no pode jamais ser fundamentado exclusivamente por meio de

    ponderaes lgicas, mas precisamente em contradio com determinadas partes

    das representaes dominantes. Sempre possvel encontrar hipteses auxiliares,

    por meio das quais se poderia evitar uma total transformao da teoria. Ainda

    10

    Cf. Max Weber, "Kritische Studien auf dem Gebiet der kulturwissenschaftlichen L ogik".

    in Gesammelle

    Aufsaetze, Tuebingen, 1922, pp. 266 e ss. (N. do A.)

    11

    "transform ao", na ed. de A. Schmidt. (N. dos T.)

    12

    "teses" , na ed. de A. Schmidt. (N. dos T.)

  • 7/24/2019 Teoria Tradicional e Teoria Crtica

    4/20

    1 3 0 H O R K H E I M E R

    que para o prprio cientista s os

    1

    motivosimane.ntes

    1

    seiamlidGS conio determi

    nantes, novas teses se impem e se enquadram nas conexes histricas concretas.

    Isto no negado pelos epistemlogos modernos quando pensam mais em gnio

    e acaso do que nas relaes sociais, tambm no que se refere aos fatores extra-

    cientficos decisivos. No sculo XVII, ao invs de resolver as dificuldades nas

    quais o procedimento gnosiologico da astronomia tradicional havia se envolvido

    tentando super-las por meio de construes lgicas, passou-se a adotar o sistema

    coper niciano . Este fato no se deve "apenas s qualidades lgicas deste sistem a,

    como sua simplicidade, por exemplo. Mesmo as vantagens que estas qualidades

    representam conduzem base da

    praxis

    daquele perodo histrico. O modo pelo

    qual o sistema de Coprnico, que era pouco mencionado durante o sculo XVI,

    tornou-se um poder revolucionrio, constitui uma parte do processo social, no

    qual o pensamento mecnico passa a ser dominante .

    13

    Contudo no s para teo

    rias to extensas, como o sistema coperniciano, que a mudana da estrutura

    cientfica depende da respectiva situao social: isto se faz presente tambm nos

    problemas especiais da pesquisa cotidiana. No se pode de forma alguma deduzir

    simplesmente da situao lgica se a descoberta de novas variedades em campos

    isolados da natureza orgnica o^i3giuca, se ja^em a tor tao; :qrai ixiu em

    pesquisas paleontolgicas, implicar na alterao de antigas classificaes ou no

    surgimento de novas. Os epistemlogos costumam neste caso recorrer a um con

    ceito aparentemente imanente sua cincia o conceito de convenincia

    (Zweckmaessigkeit). Se e como novas so formuladas convenientem ente, isto, na

    verdade, no depende s da simplicidade e da coerncia do sistema, mas tambm,

    entre outras coisas, da direo e dos objetivos da pesquisa que no explica e

    no pode tornar nada inteligvel por si mesma. Tanto quanto a influncia do mate

    rial sobre a teoria, a aplicao da teoria ao material no apenas um processo

    intracientfico, mas tambm um processo social. Afinal a relao entre hipteses

    e fatos no se realiza na cabea dos cientistas, mas na indstria. As regras como,

    por exemplo, a de que o a lcat ro de 'MIha quando submet ido a determinadas

    reaes desenvolve um corante, ou a de que a nitroglicerina, o salitre e outros

    elementos possuem grande fora explosiva, constituem um saber acumulado que

    aplicado efetivamente aos fatos no interior das fbricas dos grandes trustes.

    1 4

    Dentre as diferentes escolas filosficas parecem ser particularmente os posi

    tivistas e pragmticos que tomam em considerao o entrelaamento do trabalho

    terico com o processo de vida da sociedade. Eles assinalam como tarefa da cin

    cia a previso e a utilidade dos resultados. Na realidade, este carter resoluto,

    a crena no valor social da sua profisso, para o cientista, todavia, um assunto

    privado. Ele pode crer tanto num saber independente, "supra-social" e desligado,

    como no significado social da sua esDecialidade; esta oposio na interpretao

    no exerce a mnima influncia sobre a sua atividade prtica. O cientista e sua

    13

    Este processo foi exposto por H. Grossmann em seu ensaio "Die gesellschaftlichen Grundlagen der

    mechanistischen Philosophie und die Maniifaktur". na Zrischrift fuer Sozialfovschun, ano IV. 1935. pp.

    161

    es s.

    (N. do A.)

    14

    "indus trias", na ed. de A. Schmidt. (N. dos T.)

    T E O R I A T R A D I C I O N A L E T E O R I A C R T I C A 1 31

    cincia esto atrelados ao aparelho social, suas realizaes constituem um mo

    mento da autopreservao e da reproduo contnua do existente, independente

    mente daquilo que imaginam a respeito disso. Eles tm apenas que se enquadrar

    ao seu "conceito", ou seja, fazer teoria no sentido descrito acima. Dentro da divi

    so social do trabalho, o cientista tem que conceber e classificar

    15

    os fatos em

    ordens conceituais e disp-los de tal forma que ele mesmo e todos os que devem

    utiliz-los possam do minar os fatos o mais amplam ente possvel. Dentr o da cin-

    eia'&'expeamfiato tem se ntido de constata r os fatos d e tal modo que seja parti

    cularmente adequado respectiva situao da teoria. O material em fatos, a mat

    ria, fornecida de fora. A cincia proporciona uma formulao clara, bem visvel,

    de modo que se possam manusear os conhecimentos como se queira . No importa

    'se-seitrata de exposio da matria, como na histria e partes descritivas de outras

    cincias particulares, ou de sinopse de grandes quantidades de dados e obteno

    de regras gerais, como na fsica; para o cientista a tarefa de registro, modificao

    da forma e racionalizao total do saber a respeito dos fatos sua espontanei

    dade, a sua atividade terica. O dualismo entre pensar e ser, entendimento e

    percepo, lhe natural.

    A..representao tradicional de teoria abstrada do funcionamento da cin

    cia, tal como este ocorre a um nvel dado da diviso do trabalho. Ela corresponde

    atividade 'cientfica tal como executada ao lado de todas as demais atividades

    sociais, sem que a conexo entre as atividades individuais se torne imediatamente

    transparente. Nesta representao surge, portanto, no a funo real da cincia

    nem o que a teoria significa para a existncia humana, mas apenas o que significa

    na esfera isolada em que feita sob as condies histricas. Na verdade, a vida

    da sociedade um resultado da totalidade do trabalho nos diferentes ramos de

    profisso, e mesmo que a diviso do trabalho funcione mal sob o modo de produ

    o capitalista, os seus ramos, e dentre eles a cincia, no podem ser vistos como

    autnomos e independentes. Estes constituem apenas particularizaes da ma

    neira como a sociedade se defronta com a natureza e se mantm nas formas da

    d as . So, portanto, momentos do processo de produo socia l , mesmo que, pro

    priamente falando, sejam pouco produtivos ou at improdutivos. Nem a estrutura

    da produo industrial e agrria nem a separao entre funes diretoras e fun

    es executivas, entre servios e trabalhos, entre atividade intelectual e atividade

    manual, constituem relaes eternas ou naturais, pelo contrrio, estas relaes

    emergem do modo de produo em formas determinadas de sociedade. A aparente

    autonomia nos processos de trabalho, cujo decorrer se pensa provir de uma essn

    cia interior ao seu objeto, corresponde iluso de liberdade dos sujeitos econmi

    cos na sociedade burguesa. Mesmo nos clculos mais complicados, eles so ex

    poentes do mecanismo social invisvel, embora creiam agir segundo suas decises

    individuais.

    A autoconscincia errnea dos cientistas burgueses durante a era liberalista

    aparece nos mais diferentes sistemas filosficos. Pode-se encontrar uma expanso

    15

    Falta na ed. de A. Schmidt. (N. dos T.)

  • 7/24/2019 Teoria Tradicional e Teoria Crtica

    5/20

    1 3 2 H O R K H E I M E R

    f

    , bem precisa disso no neoka ntismo do estilo da escola de Marb urg, na passagem

    do sculo. Alguns traos da atividade terica do especialista so transformados

    f em categorias universais, por assim dizer, em momen tos do esprito universal,

    do lgos eterno, ou, antes, traos decisivos da vida social so reduzidos ativi-

    ' dade terica do cientista. A "fora da gnose " passa a ser cham ada "fora da

    (' or igem". Por "produzir" (Erzeugen) passa-se a entender a "soberania criadora

    do pensamento". No momento em que algo aparece como dado, tem que ser

    ( possvel pensam os referidos cientistas constituir todas as determinaes

    f deste algo a partir dos sistemas tericos , em ltima instnc ia, a partir da matem

    tica: todas as dimenses finitas podem ser deduzidas do conceito do infinitamente

    f pequen o, por meio do clculo infinitesimal, e justam ente isso a sua "pr od u o"

    (Erzeugung). O ideal o sistema unitrio da cincia que, nesse sentido, todo-p o-

    derosa. E porque no objeto tudo se resolve em determinaes intelectuais, o resul-

    { tado no representa nada consistente e material: a funo determina nte, classifica

    dora e doadora de unidade, a nica que fornece a base para tudo, e a nica

    que o esforo almeja. A produo produo da unidade, a prpria produo

    ( produto.

    1 6

    Segundo esta lgica o progresso da conscincia da liberdade con

    siste propriamente em poder expressar cada vez melhor, na forma de quociente

    ' diferencial, o aspecto do mundo miservel que se apresenta aos olhos do cientista.

    ( Enqu anto a profisso do cientista representa efetivamente um momento no inde

    pendente no trabalho e na atividade histrica do homem, ela colocada no lugar

    < deles. Na medida em que o entendimento deve determin ar efetivamente os aconte-

    f cimento s, numa sociedade futura, esta hypostasis do lagos como realidade efetiva

    tambm uma utopia travestida. Todavia a cincia natural matemtica, que apa-

    ( rece como logos eterno, no a que constitui atualmente o autoconhecimento

    do homem, mas a teoria crtica da sociedade atual, teoria esta impregnada do

    interesse por um estado racional.

    A consider ao que isola as atividades particulares e os ramos de atividade

    juntamente com os seus contedos e objetos necessita, para ser verdadeira, da

    conscincia concreta da sua limitao. preciso passar para uma concepo que

    'i elimine a parcialidade que resulta necessaria mente do fato de retirar os processos

    parciais da totalidade da praxis social. Na representao da teoria, tal como ela

    se apresenta ao cientista, como resultado necessrio de sua prpria profisso,

    ' a relao entre fato e ordem conceituai oferece um impo rtante ponto de partida

    para tal eliminao. A gnosiologia dominante reconhece tambm a problemtica

    ( dessa relao. Tem sido salientado constan temente que os mesmos objetos que

    . constituem problemas numa disciplina, para os quais uma soluo remota , so

    aceitos como fatos consumados em outras disciplinas. Nexos que na fsica so

    f temas de pesquisa, na biologia so considerad os como pressupos io evidente.

    Na prpria biologia acontece o mesmo com os processos fisiolgicos em relao

    aos processos psicolgicos. As cincias sociais tomam a totalidade da natureza

    { hum ana e extra-hum ana como dada e se interessam pela estrutura das relaes

    '

    1B

    Cf. H. Cohen.Logik 1er reine Erkennmis, Berlim. 1914. pp. 23 ess.(N. do A.)

    (

    T E O R I A T R A D I C I O N A L E T E O R I A C R I T I C A 1 33

    entre homem e natureza e dos homens entre si. No por meio dessa referncia

    relatividade da conexo entre pensamento terico e fatos, imanentes cincia

    burguesa, que se d o desenvolvimento do conceito e teoria, mas por uma ponde

    rao que no tange unicamente ao cientista, mas tambm a todos os indivduos

    cognoscentes.

    A totalidade do mundo perceptvel, tal como existe para o membro da socie

    dade burguesa e tal como interpretado em sua reciprocidade com ela, dentro

    da concepo tradicional do mundo, para seu sujeito uma sinopse de faticida-

    des; esse mundo existe e deve ser aceito. O pensamento organizador concernente

    a cada indivduo pertence s reaes sociais que tendem a se ajustar s necessida

    des de modo o mais adequado possvel. Porm, entre indivduo e sociedade, existe

    uma diferena essencial. O mesmo mundo que, para o indivduo, algo em si

    existente e que tem que captar e tomar em considerao , por outro lado, na

    figura que existe e s mantm, produto da praxis social geral. O que percebemos

    no nosso meio ambiente, as cidades, povoados, campos e bosques trazem em

    si a marca do trabalho. Os homens no so apenas um resultado da histria

    em sua indumentria e apresentao, em sua figura e seu modo de sentir, mas

    tambm a maneira como vem e ouvem inseparvel do processo de vida social

    tal como este se desenvolveu atravs dos sculos. Os fatos que os sentidos nos

    fornecem so pr-formados de modo duplo: pelo carter histrico do objeto perce

    bido e pelo carter histrico do rgo perceptivo. Nem um nem outro so mera

    mente naturais, mas enformados pela atividade humana, sendo que o indivduo

    se autopercebe, no momento da percepo, como perceptivo e passivo. A oposi

    o entre passividade e atividade que na gnosiologia surge como dualismo da

    sensibilidade e entendimento no vlida para a sociedade na mesma medida

    em que vlida para o indivduo. Enquanto este se experimenta como passivo

    e dependente, a sociedade, que na verdade composta de indivduos, entretanto

    um sujeito ativo, ainda que inconsciente e, nessa medida, inautntico. Esta dife

    rena na existncia do homem e da sociedade uma expresso da ciso que no

    passado e no presente tem sido prpria s formas sociais da vida social. A existn

    cia da sociedade se baseou sempre na oposio direta, ou resultado de foras

    con trria s; de qualquer mo do no o resultado de uma espo ntaneidade co nsciente

    de indivduos livres. Por isso altera-se o significado dos conceitos de passividade

    e de atividade, em conformidade com a sua aplicao sociedade ou ao indiv

    duo.

    No modo burgus de economia (buergerliche Wirtsschaftsweise) a atividade

    da sociedade cega e concreta, e a do indivduo abstrata e consciente.

    A produo humana contm tambm sempre algo planificado. Na medida

    em que o fato surge como algo exterior que se acrescenta teoria, portanto

    necessrio que contenha em si razo (Vemunft), mesmo que num sentido limitado.

    Com efeito, o saber aplicado e disponvel est sempre contido na prxis social;

    em conseqncia disso o fato percebido antes mesmo da sua elaborao terica

    consciente por um indivduo cognoscente, j est codeterminado pelas representa

    es e conceitos humanos. No se deve pensar aqui apenas nos experimentos

    da cincia natural. A assim chamada pureza do processo efetivo que deve ser

  • 7/24/2019 Teoria Tradicional e Teoria Crtica

    6/20

    134

    H O R K H E I M E R

    alcanada pelo procedimento experimental est ligada a requisitos tcnicos, cuja

    conexo com o processo material de produo evidente. Todavia se confunde

    facilmente a questo da mediao do fato pela praxis social como um todo com

    a questo da influencia exercida pelo instrumento medidor sobre o objeto obser

    vado, ou seja, com um mtodo particular. O ltimo problema com que a prpria

    fsica se ocupa continuamente no est menos ligado com o problema aqui levan

    tado do que com a percepo em geral, inclusive a percepo cotidiana. O prprio

    aparelho fisiolgico dos sentidos do homem trabalha j h.tempos detalhada

    mente nos experimentos fsicos. A maneira pela qual as partes so separadas ou

    reunidas na observao registradora, o modo pelo qual algumas passam desperce

    bidas e outras so destacadas, igualmente resultado do moderno modo de produ

    o , assim como a percepo de um homem de uma t r ibo qualquer de caadores

    ou pescadores primitivos o resultado das suas condies de existncia, e, por

    tanto, indubitavelmente tambm do objeto. Em relao a isso poder-se-ia inverter

    a frase: as ferramentas so prolongamentos dos rgos humanos, na frase: os

    rgos so tambm prolongamentos das ferramentas. Nas etapas mais elevadas

    da civilizaoa praxis humana consciente determina inconscientemente no ape

    nas o lado subjetivo da percepo, mas em maior medida tambm o objeto. O

    que o membro da sociedade capitalista

    1 7

    v diariamente sua vol ta : conglome

    rados habitacionais, fbricas, algodo, gado de corte, seres humanos, e no s

    estes objetos como tambm os movimentos, nos quais so percebidos, de trens

    subterrneos, elevadores, automveis, avies, etc, tem este mundo sensvel os tra

    os do trabalho consciente em si; no mais possvel distinguir entre o que per

    tence natureza inconsciente e o que pertence

    praxis

    socia l . Mesmo quando

    se trata da experincia com objetos naturais como tal, sua naturalidade determi

    nada pelo contraste com o mundo social, e nesta medida dele depende.

    Contudo o indivduo registra a realidade efetiva sensvel como mera seqn

    cia de fatos nas ordens conceituais. Sem dvida, estas tambm se desenvolveram

    em conexo recproca com o processo vital da sociedade. Quando ocorre por

    isso a classificao nos sistemas do entend imento, o julgam ento dos objetos, o

    que se d em geral com grande evidncia e em aprecivel concordncia entre

    os membros da sociedade dad a, essa harmonia entre a percepo e o pensam ento

    tradicional, como tambm entre as mnadas, isto , entre os sujeitos cognoscentes

    individuais, no um fato metafsico acidental. O poder do bom senso, do com

    mon sense, para o qual no existe segredos, mais que isto, a validade geral das

    intuies

    18

    em campos que no esto diretamente relacionados com as lutas

    sociais, como o caso das cincias naturais, condicionado pelo fato de que

    o mundo-objeto

    (Gegenstandswelt)

    a ser julgado advm em grande medida de

    uma atividade determinada pelos mesmos pensamentos, graas qual o poder

    reconhecido e compreendido no indivduo. Este fato expresso na filosofia kan

    tiana de forma idealista. Segundo Kant, a doutrina da sensibilidade meramente

    17

    "sociedadeindustrial",na ed. de A. Schmidt. (N. dos T.)

    18

    "validade gera das teses", na ed. de A. Schmidt. (N. dos T.)

    T E O R I A T R A D I C I O N A L E T E O R I A C R T I C A 1 35

    passiva e do entendimento ativo amadurece a seguinte questo: donde o entendi

    mento retira a previso segura de, segundo as suas regras, se ocupar para todo

    o sempre do mltiplo que dado na sensibilidade? Ele combate veementemente

    a tese de uma harmonia preestabelecida, de um "sistema de pr-formaes da

    razo pura", na qual as regras certamente seriam inatas ao pensamento, de forma

    que os obje tos ter iam que se enquadrar nelas.

    19

    Sua explicao a de que as

    aparncias sensveis do sujeito transcendental j esto portanto enformadas (ge-

    formt) atravs da atividade racional quando registradas pela percepo ejulgadas

    com conscincia .

    20

    Nos captulos mais importantes da Crtica da Razo Pura,

    Kant tentou fundamentar com maior preciso essa "afinidade transcendental",

    essa determinidade (Bestimmtheit) subjetiva do material sensvel, sobre a qual

    o indivduo nada sabe.

    De acordo com a prpria intuio

    21

    kantiana, as partes principais da dedu

    o e do esquematismo dos conceitos puros do entendimento aqui referidos tra

    zem em si a dificuldade e a obscuridade, as quais podem estar ligadas ao fato

    de ele representar a atividade supra-individual, inconsciente ao sujeito emprico,

    apenas na forma idealista de uma conscincia em si, de uma instncia puramente

    espiritual. De acordo com a viso terica geral, possvel em sua poca, ele consi

    dera a realidade no como produto do trabalho social, catico em seu todo, mas

    individualmente orientado para objetivos certos. Onde Hegel j v a astcia de

    uma razo objetiva, pelo menos ao nvel histrico, Kant v "uma arte oculta

    nas profundidades da alma humana, cujo manejo verdadeiro ns dificilmente ar

    rancaremos da natureza , colocando-a a descoberto diante dos olhos".

    22

    Em todo

    o caso ele compreendeu que, atrs da discrepncia entre fato e teoria que o cien

    tista experimenta em sua ocupao especializada, existe uma unidade profunda,

    a subjetividade geral de que depende a cognio (Erkennen) individual. A ativi

    dade social aparece como poder transcendental, isto , como supra-sumo de fato

    res espirituais. A afirmao de Kant de que a eficcia desta atividade est envol

    vida por uma obscuridade, ou seja, apesar de toda a racionalidade irracional,

    no deixa de ter um fundo de verdade. O modo burgus de economia no orien

    tado por nenhum planejamento nem orientado conscientemente para um obje

    tivo geral, apesar da perspiccia dos indivduos concorrentes; a vida do todo re

    sulta numa figura deformada, como que por acaso, mesmo assim sob enormes

    atritos. As dificuldades internas que acompanham os conceitos mais elevados da

    filosofia kantiana, principalmente o Eu da subjetividade transcendental, a aper-

    cepo pura ou original e a conscincia em si testemunham a profundidade e

    sinceridade de seu pensamento. O duplo carter destes conceitos kantianos, que

    mostram por um lado a mxima unidade e orientao, e, por outro lado, algo

    19

    Cf. Kritik der reinen Vernunft. Transzendentate Dedukion der reinen Verslandesbegrijje, 2." ed., 27,

    B

    167.

    (N. do A.)

    20

    Ibid. Zur Deduktion der reinen Verstandesb egriffe, 1.

    a

    edio. 2. "Abschnitt, 4. Vorlaeufige Erklaerung

    der Moeglichkeit der Kategorien ais Erkenntnisse a priori". A 110. (N. do A.)

    2

    ' "Segundo o prprio Kant" , na ed. de A. Schmidt. (N. dos T.)

    22

    Ibid. Von demSchematismus der reinen VerstandesbegriJfe,B 181.

    (N. do A.)

  • 7/24/2019 Teoria Tradicional e Teoria Crtica

    7/20

    136

    H O R K H E I M E R

    de obscuro, de inconsciente, de intransparente, define exatamente a forma contra

    di tria da a t ividade humana nos l t imos tempos. A ao conjunta dos homens

    na sociedade o modo de existncia de sua razo; assim utilizam suas foras

    e confirmam sua essncia. Ao mesmo tempo este processo, com seus resultados,

    estranho a eles prprios; parece-lhes, com todo o seu desperdcio de fora de

    trabalho e vida humana, com seus estados de guerra e toda a misria absurda,

    uma fora imutvel da natureza, um destino sobre-humano. Esta contradio

    mantida na filosofia terica de Kant, na sua anlise da gnose. A problemtica

    no solucionada da relao entre atividade e passividade, entre o a priori e o

    dado sensvel, entre filosofia e psicologia, no por isso uma insuficincia subje

    t iva mas, ao contrrio, uma insufic incia necessariamente condicionada.

    23

    Hegel

    desvelou e desenvolveu essas contradies, mas por fim as concilia numa esfera

    espiritual mais elevada. Ao colocar o esprito absoluto como eminentemente real,

    Hegel se livrou do embarao, do sujeito universal, que Kant havia afirmado, mas

    no conseguiu caracteriz-lo corretamente. Segundo ele, o universal j se desen

    volveu adequadamente , e idnt ico qui lo que ocorre . A razo no precisa mais

    ser meramente crtica consigo mesma, ela se tornou afirmativa com Hegel antes

    mesmo de ser possvel afirmar a realidade como racional. Em vista das contradi

    es da existncia humana, que continua efetivamente existindo, e em vista da

    debilidade dos indivduos diante das situaes criadas por eles prprios, esta solu

    o aparece como uma afirmao privada, com o pacto de paz pessoal do filsofo

    com um mundo inumano.

    A classificao de fatos em sistemas conceituais j prontos e a reviso destes

    atravs de simplificao ou eliminao de contradies , como foi exposto

    acima, uma parte da prxis social geral. Sendo a sociedade dividida em classes

    e grupos, compreende-se que as construes tericas mantm relaes diferentes

    com esta prxis geral, conforme a sua filiao a um desses grupos ou classes.

    Enquanto a classe burguesa ainda se encontra em formao sob uma ordem social

    feudal, a teoria puramente cientfica que surgia com ela tinha em relao sua

    poca uma tendncia fortemente agressiva contra a forma antiga da prxis. N o

    liberalismo ela caracterizou o tipo humano dominante. Hoje o desenvolvimento

    no determinado tanto pelas existncias mdias que na sua concorrncia so

    obrigadas a melhorar o aparelho materia l de produo e seus produtos, quanto

    pelas oposies em nvel nacional e internacional de camarilhas de caciques

    (Fuehrercliquen)

    nos diversos escales da economia e do Estado. Na medida em

    que o pensamento terico no se relaciona com fins muito especiais ligados a

    essas lutas, sobretudo com a guerra e sua indstria, diminui o interesse por esse

    pensamento. No se emprega mais tanta energia em formar e desenvolver a capa

    cidade de pensar, independente de seu tipo de aplicao. Contudo, estas diferen

    as , s quais se poderiam juntar mui tas outras, no impedem que uma funo

    social positiva seja desempenhada pela teoria na sua figura tradicional, pela ava

    liao existente feita por m eio de um instrumen to tradicion al de conceitos e ju-

    23

    "insuficincia materialmente (sachliche) necessria", na ed. de A. Schmidt. (N. dosT.)

    T E O R I A T R A D I C I O N A L E T E O R I A C R T I C A 1 37

    zos, ainda atuante na conscincia mais simples, e, alm disso, pela ao recproca

    que ocorre entre os fatos e as formas tericas por mo tivo das tarefas profissionais

    cotidianas. Desta atividade intelectual passaram a fazer parte as necessidades e

    fins, as experincias e habilidades, e os costumes e tendncias da forma atual

    de ser humano. Como se fora um instrumento material de produo, ela repre

    senta, segundo as suas possibilidades, um elemento no s do presente, como

    tambm de um todo mais justo, mais diferenciado e culturalmente mais harm

    nico. No momento em que o pensamento terico deixa de se adaptar consciente

    mente a interesses exteriores, estranhos ao objeto, e se atm efetivamente aos pro

    blemas tal como eles aparecem diante deste pensamento, em conseqncia do

    desenvolvimento da sua especialidade, que em conexo com isso lana novos pro

    blemas e modifica conceitos antigos onde isso se faz necessrio, pode com direito

    ver as realizaes na tcnica e na indstria da poca burguesa como sua legitima

    o e estar seguro de si mesmo. Sem dvida o pensamento terico compreende

    a si mesmo como hiptese e no como certeza. Mas este carter hipottico com

    pensado de algum modo. A insegurana no maior do que deve ser, se se leva

    em conta os meios intelectuais e tcnicos existentes, que tem em geral sua utili

    dade comprovada, e a formulao de tais hipteses, por mais reduzida que seja

    a sua probabilidade, considerada inclusive uma realizao socialmente necess

    ria e valiosa, que de qualquer maneira no em si hipottica. A formulao de

    hipteses, a realizao terica em geral um trabalho para o qual existe possibili

    dade fundamental de aplicao, isto , tem uma demanda sob as condies sociais

    existentes. Na medida em que ele pago abaixo do seu valor, ou no encontra

    demanda, a nica coisa que lhe pode acontecer compartilhar o destino de outros

    trabalhos concretos, possivelmente teis, que sucumbem sob estas relaes econ

    m i c a s .

    24

    Estes trabalhos pressupem contudo essas mesmas relaes que fazem

    parte da totalidade do processo econmico, tal como ele se desenrola sob condi

    es histricas determinadas. Isso no tem nada a ver com a questo de se os

    prprios esforos cientficos, em sentido estrito, so produzidos ou no. Neste

    sistema existe uma demanda para um sem-nmero de produtos pretensamente

    cientficos. Eles recebem honorrios dos modos mais diversos, isto , uma parte

    dos bens provenientes do trabalho efetivamente produtivo so gastos com eles,

    sem que isso altere um mnimo da sua prpria produtividade. Os esforos inteis

    de certos setores da atividade universitria como tambm a perspiccia v, a for

    mao, metafsica ou no, de ideologias, assim como outras necessidades prove

    nientes da oposio das c lasses,

    2 5

    tm sua importncia socia l sem corresponder

    efetivamente no perodo atual aos interesses de alguma maioria notvel da socie

    dade. Uma atividade que contribui para a existncia da sociedade na sua forma

    dada no precisa ser absolutamente produtiva, isto , ser formadora de valor para

    uma empresa. Apesar disso ela no pode pertencer a esta ordem [social] e, com

    isso, torn-la possvel, como realmente o caso da cincia especializada.

    24

    "que sucumbe sob esta

    economia ,

    na ed. de A. Schmidt. (N. dos T.)

    2

    5

    "necessidades provenientes de oposies sociais ,na ed. de A. Schmid t. (N. do T.)

  • 7/24/2019 Teoria Tradicional e Teoria Crtica

    8/20

    1 3 8 H O R K H E I M E R

    Mas existe tambm um comportamento hu ma no

    26

    que tem a prpria socie

    dade como seu objeto. Ele no tem apenas a inteno de remediar quaisquer in

    convenientes; ao contrrio, estes lhe parecem ligados necessariamente a toda or

    ganizao est rutural da sociedade. Mesmo que este comportamento provenha de

    estrutura social, no nem a sua inteno consciente nem a sua importncia

    objetiva que faz com que alguma coisa funcione melhor nessa estrutura. As cate

    gorias: melhor, til, conveniente, produtivo, valioso, tais como so aceitas nesta

    ordem [social], so para ele suspeitas eno so de forma alguma premissas extra-

    cientficas que dispensem a sua ateno crtica. Em regra geral o indivduo aceita

    naturalmente como preestabelecidas as determinaes bsicas da sua existncia,

    e se esfora para preench-la. Ademais ele encontra a sua satisfao e sua honra

    ao empregar todas as suas foras na realizao das tarefas, apesar de toda a

    crtica enrgica que talvez fosse parcialmente apropriada, cumprindo com af

    a sua parte. Ao contrrio, o pensamento crtico no confia de forma alguma nesta

    diretriz, tal como posta mo de cada um pela vida social. A separao entre

    indivduo e sociedade, em virtude da qual os indivduos aceitam como naturais

    as barre i ras que so impostas sua a t ividade, e l iminada

    27

    na teoria crtica,

    na medida em que ela considera ser o contexto condicionado pela cega atuao

    conjunta das atividades isoladas, isto , pela diviso dada do trabalho e pelas

    diferenas de classe, como uma funo que advm da ao humana e que poderia

    estar possivelmente subordinada deciso planificada e a objetivos racionais.

    Para os sujeitos do comportamento crtico, o carter discrepante cindido

    do todo social, em sua figura atual, passa a ser contradio consciente. Ao reco

    nhecer o modo de economia vigente e o todo cultural nele baseado como produto

    do t rabalho humano, e como a organizao de que a humanidade foi capaz e

    que imps a si mesma na poca atual, aqueles sujeitos se identificam, eles mes

    mo s , com esse todo e o compreendem com o vontade e raz o: e le o seu prprio

    mundo. Por outro lado, descobrem que a sociedade comparvel com processos

    naturais extra-humanos, meros mecanismos, porque as formas cul tura is baseadas

    em luta e opresso no a prova de uma vontade autoconsciente e unitria. Em

    outras palavras: este mundo no o deles, mas sim o mundo do capital. Alis

    a histria no pde at agora ser compreendida a rigor, pois compreensveis so

    apenas os indivduos e grupos isolados, e mesmo esta compreenso no se d

    de uma forma exaustiva, uma vez que eles, por fora da dependncia interna de

    uma sociedade desumana, so ainda funes meramente mecnicas, inclusive na

    ao consciente. Aquela identificao portanto contraditria, pois encerra em

    si uma contradio que caracteriza todos os conceitos da maneira de pensar cr

    tica. Assim as categorias econmicas tais como trabalho, valor e produtividade

    so para ela exatamente o que so nesta ordem [social], e qualquer outra interpre

    tao no passa de mau idealismo. Por outro lado, aceitar isso simplesmente apa-

    26

    Este comportamento ser denominado a seguir de comp ortament o "crtico"". Mas '"crtico"" no tanto

    no sentido da crtica idealista da razo pura como no sentido da crtica dialtica da economia poltica.

    Este termo indica uma propriedade essencial da teoria dialtica da sociedade. (N. do A.)

    2

    7

    "relativizadana teoria crtica", na ed. de A. Schmidt. (N. dos T.)

    T E O R I A T R A D I C I O N A L E T E O R I A C R T I C A 1 39

    rece como uma inverdade torpe: o reconhecimento crtico das categorias domi

    nantes na vida social contm ao mesmo tempo a sua condenao. O carter

    dialtico desta autoconcepo do homem contemporneo condiciona em ltima

    instncia tambm a obscuridade da cr t ica kant iana da razo. A razo no pode

    tornar-se , e la mesma, t ransparente enquanto os homens agem como membros de

    um organismo i rracional . Como uma unidade naturalmente crescente e decadente ,

    o organismo no para a sociedade uma espcie de modelo, mas sim uma forma

    aptica do ser, da qual tem que se emancipar. Um comportamento que esteja

    orientado para essa emancipao, que tenha por meta a transformao do todo,

    pode servir-se sem dvida do trabalho terico, tal como ocorre dentro da ordem

    desta realidade existente. Contudo ele dispensa o carter pragmtico que advm

    do pensamento tradicional como um trabalho profissional socialmente til.

    O pensamento terico no sentido tradicional considera, como foi exposto

    acima, tanto a gnese dos fatos concretos determinados como a aplicao prtica

    dos sistemas de conceitos, pelos quais estes fatos so apreendidos, e por conse

    guinte seu papel na praxis como algo exterior. A alienao que se expressa na

    terminologia filosfica ao separar valor de cincia,

    28

    saber de agir, como tambm

    outras oposies, preservam o cientista das contradies mencionadas e empresta

    ao seu trabalho limites bem demarcados. Um pensamento que no reconhea es

    ses limites parece perder suas bases. Que outra coisa poderia ser um mtodo te

    r ico ,

    que em ltima instncia no coincide com a determinao dos fatos dentro

    de sistemas conceituais diferenciados e bastante simplificados, alm de um diver

    timento intelectual desorientado, em parte poesia racional, e em parte expresso

    impotente de estados de esprito? A investigao do condicionamento de fatos

    sociais assim como de teoria podem muito bem constituir um problema da pes

    quisa, inclusive um campo prprio do trabalho terico, mas no se v por que

    este tipo de estudo deveria ser fundamentalmente diferente dos outros esforos

    tericos. A anlise da ideologia ou a sociedade do saber, retiradas da teoria crtica

    da sociedade e estabelecidas como ramos particulares de pesquisa, no se encon

    tram em oposio ao funcionamento normal da cincia ordenadora, nem quanto

    sua essncia nem em relao sua ambio. Nisso a autognose do pensamento

    reduzida revelao das relaes entre intuies

    29

    e posies sociais. A estru

    tura do comportamento crtico, cujas intenes ultrapassaram as dapraxis social

    dominante, no est certamente mais prxima destas disciplinas sociais do que

    das cincias naturais. Sua oposio ao conceito tradicional de teoria no surge

    nem da diversidade dos objetos nem da diversidade dos sujeitos. Para os represen

    tantes deste comportamento, os fatos, tais como surgem na sociedade, frutos do

    trabalho, no so exteriores no mesmo sentido em que o so para o pesquisador

    ou profissional de outros ramos, que se imagina a si mesmo como pequeno cien

    tista. Para os primeiros importante uma nova organizao do trabalho. Os fatos

    concretos que esto dados na percepo devem despojar-se do carter de mera

    faticidade na medida em que^ forem com preendido s como prod utos que, com o

    2a

    "ao separar valordepesquisa", na ed. de A. Schmidt. (N. dos T.)

    2 9

    "das relaes entreposies intelectuaise posies sociais'" na ed. de A. Schm idt. (N. dos T.)

  • 7/24/2019 Teoria Tradicional e Teoria Crtica

    9/20

    1 4 0 H O R K H E I M E R

    f tais, deveriam estar sob o controle huma no e que, em todo o caso , pass aro futu

    ramente a este controle.

    { O especialista "en qua nto " cientista v a realidade social e seus produtos

    , como algo exterior e "en qua nto " cidado mostr a o seu interesse por essa realidade

    atravs de escritos polticos, de filiao a organizaes partidrias ou beneficentes

    ( e participa o em eleies, sem unir ambas as coisas e alguma s outras formas

    suas de comportamento, a no ser por meio da interpretao ideolgica. Ao con

    trrio, o pensamento crtico motivado pela tentativa de superar realmente a

    ( tens o, de eliminar a oposi o entre a conscincia dos objetivos, espontan eidade

    e racionalidade, inerentes ao indivduo, de um lado, e as relaes do processo

    de t rabalho, bsicas para a sociedade, de outro. O pensamento cr t ico contm

    um conceito do homem que contraria a si enquanto no ocorrer esta identidade.

    Se prprio do homem que seu agir seja determinado pela razo, a

    praxis

    social

    ' dada, que d forma ao modo de ser (Dasein), desumana, e essa desumanidade

    (

    repercute sobre tudo o que ocorre na sociedade. Semp re perman ecer algo exte

    rior atividade intelectual e material, a saber, a natureza como uma sinopse de

    ( fatos ainda no domin ados, com os quais a sociedade se ocup a. Mas neste algo

    /- exterior incluem-se tambm as relaes constitud as unicame nte pelos prprios

    homens, isto , seu relacionamento no trabalho e o desenrolar de sua prpria

    I histria , como um prolongamento da natureza . Essa exterioridade no contudo

    uma categoria supra-histrica ou eterna isso tambm no seria a natureza

    no sentido assinalado aqui , mas sim o sinal de uma impotncia lamentvel,

    t e aceit-la seria anti-hum ano e anti-racional.

    O pensamento burgus const i tudo de ta l maneira que, ao vol tar

    30

    ao seu

    prprio sujeito, reconhece com necessidad e lgica o ego que se julga au tno mo.

    C Segundo a sua essncia ele abstr ato, e seu princpio a individualidade que,

    isolada dos acontecimentos, se e leva condio de causa primeira do mundo

    ( ou se considera o prprio mun do. O oposto imediato a isso a convico que

    f se julga expresso no problem tica de uma coletividade, como uma espcie de

    ideologia da raa. O n s retr ico empregado a srio. O falar se julga o instru-

    (

    mento de todos. Na sociedade dilacerada do presente, este pensamen to , sobre-

    , tudo em questes sociais, harmo nicista e ilusionista. O pensamen to crtico com

    sua teoria se ope a ambo s os tipos referidos. Ele no tem a funo de um in divi-

    f duo isolado nem a de uma generalidade de indivduo s. Ao contr rio, ele considera

    conscientemente como sujeito a um indivduo determinado em seus relacionamen

    tos efetivos com outros indivduos e grupos, em seu confronto com uma classe

    f determ inada, e, por ltimo, mediado por este entrelaam ento, em vinculao com

    o todo social e a natureza. Este sujeito no pois um ponto, como o eu da filoso-

    ' fia burgue sa; sua exposio (Darstellung) consiste na const ruo do presente his-

    ( trico. Tam pouc o o sujeito pensante o ponto onde coincidem sujeito e objeto,

    e donde se pudesse extrair por isso um saber absoluto. Esta aparncia, da qual

    (

    30

    Na ed. de A. Schmidt, ao invs de in der Rueckwendung, que traduzimos por "ao voltar-se", consta

    ^ m der Reflexion (na reexo). (N. dos T.)

    (

    \

    T E O R I A T R A D I C I O N A L E T E O R I A C R T I C A 1 41

    o idealismo tem vivido desde Descartes, ideologia em sentido rigoroso; a liber

    dade limitada do indivduo burgus aparece na figura de liberdade e autonomia

    perfeitas. Mas o eu, quer seja meramente pensante, quer atue de alguma outra

    forma, tambm no est seguro de si prprio numa sociedade intransparente e

    inconsciente. No pensamento sobre o homem, sujeito e objeto divergem um do

    outro; sua identidade se encontra no futuro e no no presente. O mtodo que

    leva a isso pode ser designado clareza, de acordo com a terminologia cartesiana,

    mas esta clareza significa, no pensamento efetivamente crtico, no apenas um

    processo lgico, mas tambm um processo histrico concreto. Em seu percurso

    se modifica tanto a estrutura social em seu todo, como tambm a relao do

    terico com a c lasse

    31

    e com a sociedade em geral, ou seja, modifica-se o sujeito

    e tambm o papel desempenhado pelo pensamento. A suposio da invariabili-

    dade social da relao sujeito, teoria, e objeto distingue a concepo cartesiana

    de qualquer tipo de lgica dialtica.

    Mas como se d a conexo do pensamento com a experincia? Se no se

    t ra ta apenas de ordenar, mas tamb m de buscar o s f ins t ranscendentes deste orde

    nar, isto , buscar a sua direo em si mesma, ento poder-se-ia concluir ele

    permanece sempre em si mesmo, como na filosofia idealista. Se o pensamento cr

    tico pensa-se no recorresse a fantasias utpicas, afogar-se-ia em querelas

    formalistas. A tentativa de legitimar objetivos prticos por meio de pensamentos

    teria sempre que fracassar. Se o pensamento no se conforma com o papel que lhe

    foi adjudicado pela sociedade existente, e se no faz teoria no sentido tradicional,

    ele recai necessariamente nas iluses j superadas h muito. Esta reflexo comete

    o erro de entender o pensamento de modo especializado, isolado, e por isso espiri

    tualista, tal como este ocorre sob as condies da atual diviso do trabalho. Na

    realidade social, a atividade de representao jamais se manteve restrita a si

    mesma, pelo contrrio, sempre atuou como um momento dependente do processo

    do trabalho que tem, por sua vez, uma tendncia prpria. Atravs do movimento

    oposto de pocas e foras progressistas e retrgradas tende o processo de trabalho

    a preservar, elevar e desenvolver a vida humana. Nas formas histricas do modo

    de ser da sociedade, o excedente de bens produzidos na etapa alcanada benefi

    ciou diretamente apenas um pequeno grupo de seres humanos, e essas condies

    de vida manifestaram-se tambm no pensamento e deixaram a sua marca na filo

    sofia e na religio. No fundo sempre existiu o anseio de estender o desfrute

    maioria; apesar de toda a convenincia material da organizao de classe, todas

    as suas formas no fim se mostraram inadequadas. Os escravos, os servos e os

    cidados (Buerger) se livraram do jugo. Tambm este anseio modelou configura

    es culturais. Ao exigir de cada indivduo que faa seus os fins da totalidade e

    que os reconhea nela depois, como tem ocorrido na histria recente, existe a

    possibilidade de que a direo do processo social do trabalho, estabelecida sem

    teoria determinada e resultante de foras dspares, em cujas ocasies crticas o

    desespero das massas foi momentaneamente decisivo, seja registrada na cons-

    31

    "com a classe", omitido na ed. de A. Schmidt. (N. dos T.)

  • 7/24/2019 Teoria Tradicional e Teoria Crtica

    10/20

    142

    H O R K H E I M E R

    ciencia e posta como meta. O pensamento no inventa estrias a

    partir de sua prpria fantasia, antes exprime a sua prpria funo interior. Em seu

    percurso histrico os homens chegam gnose do seu fazer e com isso entendem

    a contradio encerrada em sua existncia. A economia burguesa estruturou-se de

    tal forma que os indivduos, ao perseguirem a sua prpria felicidade, mantenham

    a vida da sociedade. Contudo essa estrutura possui uma dinmica em virtude da

    qual se acumula , numa proporo que lembra as ant igas dinast ias asi t icas, um

    poder fabuloso, de um lado, e, de outro;"ma'rnpotncia material intelectual. A

    fecundidade original dessa organizao do processo vital se transforma em esteri

    lidade e inibio. Os homens renovam com seu prprio trabalho uma realidade

    que os escraviza em medida crescente e os ameaa com todo tipo de misria. A

    conscincia dessa oposio no provm da fantasia, mas da experincia.

    32

    No entanto, no que diz respeito ao papel da experincia, existe uma dife

    rena entre a teoria tradicional e a teoria crtica. Os pontos de vista que a teoria

    crtica retira da anlise histrica como metas da atividade humana, principal

    mente a idia de uma organizao social racional correspondente ao interesse

    de todos, so imanentes ao trabalho humano, sem que os indivduos ou o esprito

    pblico os tenham presentes de forma correta. necessrio uma determinada

    direo do interesse para descobrir e assimilar essas tendncias. Que essas so

    produzidas necessariamente no prole tariado, a c lasse di re tamente produt iva ,

    33

    o que mostram os ensinam entos de Marx e Engels . Devid o a sua situao na

    sociedade moderar, o proletariado vivencia o nexo entre o trabalho que d aos

    homens, em sua luta com a natureza, ferramentas cada vez mais poderosas, por

    um lado, e a renovao constante de uma organizao obsoleta, que o faz cada

    vez mais miservel e impotente, por outro.

    34

    O desemprego, as crises econmicas,

    a militarizao, os governos terroristas e o estado em que se encontram as mas

    sas,

    ta l como os produtores vivenciam a todo instan te ,

    35

    no se baseiam de forma

    alguma na limitao do potencial tcnico, como poderia ter ocorrido em pocas

    anteriores, mas sim nas condies inadequadas da produo a tual . O emprego

    de todos os meios fsicos e intelectuais de domnio da natureza impedido pelo

    fato de esses meios, nas relaes dominantes, estarem subordinados a interesses

    particulares e confiitivos. A produo no est dirigida vida da coletividade

    nem satisfaz s exigncias dos indivduos mas est orientada exigncia de poder

    de indivduos e se encarrega tambm da penria na vida da coletividade. Isso

    resultou inevitavelmente da aplicao, dentro do sistema de propriedade

    dominante, do princpio progressista de que suficiente que os indivduos se preo

    cupem apenas consigo mesmos.

    Mas nesta sociedade tampouco a situao do proletariado constitui garantia

    para a gnose correta. Por mais que sofra na prpria carne o absurdo da continua-

    32

    "e os ameaa com todo tipo de misria. A conscincia desta oposio no provm da fantasia mas

    da experincia". Todo este trecho no aparece na ed. de A. Schmidt. (N. dos T.)

    33

    "a classe diretamente produtiva", omitido na ed. de A. Schmidt. (N. dos T.)

    34

    "que o faz cada vez mais miservel e impotente", no aparece na ed. de A. Schmidt. (N. dos T.)

    35

    "tal como os produtores vivenciam a todo instante", omitido na ed. de A. Schmidt. (N. dos T.)

    T E O R I A T R A D I C I O N A L E T E O R I A C R T I C A 1 43

    o da misria e do aumento, da injustia, a diferenciao de sua estrutura social

    estimulada de cima, e a oposio dos interesses pessoal e de classe, superadas

    apenas em momentos excepcionais, impede que o proletariado adquira imediata

    mente conscincia disso. Ao contrrio, tambm para o proletariado o mundo apa

    rece na sua superfcie de uma outra forma. Uma atitude que no estivesse em

    condies de opor ao prprio proletariado os seus verdadeiros interesses e com

    isso tambm os interesses da sociedade como um todo, e, ao invs disso, retirasse

    sua diretriz dos pensamentos e tendncias da massa, cairia numa dependncia

    escrava da situao vigente. O intelectual que, numa venerao momentnea da

    fora de criao do proletariado encontra sua satisfao em adaptar-se e em fazer

    apoteoses, no v que qualquer poupana de esforos do seu pensamento e a

    recusa a uma oposio momentnea s massas, para as quais ele poderia levar

    os prprios pensamentos, faz com que estas fiquem massas mais cegas e fracas

    do que precisariam ser. Seu prprio pensamento faz parte do desenvolvimento

    das massas como um elemento crtico e estimulador. Submetendo-se totalmente

    s situaes psicolgicas respectivas da classe, que em si representa a fora para

    a transformao, esse intelectual levado ao sentimento confortador de estar li

    gado com um enorme poder e o conduz a um otimismo profissional. Mas quando

    este otimismo abalado em perodos de duras derrotas, surge ento o perigo

    para muitos intelectuais de carem num pessimismo e num niilismo, igualmente

    profundos, to exagerados como foi o seu otimismo. No suportam o fato de

    que justamente o pensamento mais a tual izado, o que compreende com mais pro

    fundidade o momento histrico e o que mais promete para o futuro, contribui

    em determinados perodos para o isolamento e abandono de seus representantes.

    Eles esqueceram a relao entre revoluo e independncia.

    36

    Se a teoria crtica se restringisse essencialmente a formular respectivamente

    sentimentos e representaes prprias de uma classe, no mostraria diferena es

    trutural em relao cincia especializada; nesse caso haveria uma descrio

    de contedos psquicos, tpicos para um grupo determinado da sociedade, ou seja,

    tratar-se-ia de psicologia social. A relao entre ser e conscincia diferente nas

    diversas classes da sociedade. As idias com as quais a burguesia explica a sua

    prpria ordem a troca justa, livre concorrncia, a harmonia dos interesses,

    etc. mostram, se tomadas a srio e se, como princpios da sociedade, levadas

    at as ltimas conseqncias, a sua contradio interna e com isso tambm a

    sua oposio a esta ordem. A simples descrio da autoconscincia burguesa no

    suficiente para mostrar a verdade sobre sobre sua classe. Tampouco a sistemati

    zao dos contedos da conscincia do proletariado fornece uma verdadeira ima

    gem do seu modo de ser e dos seus interesses. Ela seria uma teoria tradicional

    caracteriz ada por uma prob lemtica peculiar, e no a face intelectual do processo

    histrico de emancipao do proletariado. Isto tambm vlido, mesmo quando

    se deixam de lado as representaes do proletariado em geral, para assumir e

    divulgar as representaes de uma parte progressista dele, de um partido ou de

    36

    Esta frase no consta na ed. de A. Schmidt. (N. dos T.)

  • 7/24/2019 Teoria Tradicional e Teoria Crtica

    11/20

    1 4 4 H O R K H E I M E R

    uma direo. Registrar e classificar por meio de um aparato conceituai que esteja

    adaptado ao mximo aos fatos constitui, tambm nesse caso, a tarefa peculiar,

    e a previso de futuros dados scio-psicolgicos aparece como a ltima meta

    do terico. O pensamento, a formulao da teoria, seria uma coisa, enquanto

    que o seu objeto, o proletariado, seria outra. Contudo, a funo da teoria crtica

    torna-se clara se o terico e a sua atividade especfica so considerados em uni

    dade dinmica com a classe dominada, de tal modo que a exposio das contradi

    es sociais no seja meramente uma expresso da situao histrica concreta,

    mas tambm um fator que estimula e que transform a. O desenrolar do co nfronto

    entre os setores mais progressistas da classe e os indivduos que exprimem a ver

    dade dela, e alm disso, o confronto entre esses setores inclusive os seus tericos

    e o resto da classe, se entende com um processo de efeitos recprocos, no quala

    conscincia desenvolve, junto com suas foras libe rtadora s, suas foras estimula

    doras,

    disc ipl inadoras e violentas.

    3 7

    O vigor deste processo se manifesta na possi

    bilidade constante de tenso entre o terico e a classe, qual se aplica o seu pen

    sar. A unidade das foras sociais, das quais se espera a libertao , em sentido

    hegeliano, ao mesmo tempo sua diferena: ela existe s como conflito, o qual

    ameaa constantemente os sujeitos nela envolvidos. Isso se torna evidente na pes

    soa do terico; sua crtica agressiva no apenas frente aos apologetas cons

    cientes da situao vigente, como tambm frente a tendncias desviacionistas,

    conformistas ou utpicas nas suas prprias fileiras.

    A figura tradicional da teoria, da qual a lgica formal uma parte, pertence

    ao processo de produo por efeito da diviso do trabalho em sua forma atual.

    O fato de a sociedade ter que se confrontar tambm em pocas futuras com a

    natureza no torna irrelevante essa tcnica intelectual; ao contrrio, essa tcnica

    ter que ser desenvolvida ao mximo. A teoria como momento de uma praxis

    que conduz a novas formas sociais no uma roda dentada de uma engrenagem

    em movimento. Se vitrias e derrotas constituem uma analogia vaga confirma

    o ou invalidao de hipteses na cincia, o terico da oposio nem por isso

    tem a tranqilidade de inclu-las na sua disciplina. Ele no pode fazer a si mesmo

    a exal tao que Poincar

    38

    fez acumulao de hipteses que tiveram que ser

    rejeitadas. Sua vocao a luta qual pertence o seu pensamento; mas no um

    pensamento como algo autnomo e separvel. No seu comportamento existem,

    sem dvida, muitos elementos tericos correntes: o conhecimento e prognstico

    de fatos relativamente isolados, os juzos cientficos e a formulao de problemas

    que se afastam dos elementos habituais devido aos seus interesses especficos.

    Contudo apresentam a mesma forma lgica. O que a teoria tradicional admite

    como existente, sem enganjar-se de alguma forma: seu papel positivo numa socie

    dade que funciona, a relao mediatizada e intransparente com a satisfao das

    necessidades gerais, a participao no processo renovador da vida da totalidade,

    inclusive as exigncias com as quais a prpria cincia no costuma se preocupar,

    37

    "foras violentas" passaram a ser"foras agressivas",na ed. de A. Schmidt. (N. dos T.)

    38

    Cf. H. Poincar,

    dent p.

    152.

    T E O R I A T R A D I C I O N A L E T E O R I A C R T I C A 1 45

    porque seu preenchimento identificado com a compensao e a confirmao

    atravs da posio do cientista, so questionados pelo pensamento crtico. A meta

    que este quer alcanar, isto , a realizao do estado racional, sem dvida, tem

    suas razes na misria do presente. Contudo, o modo de ser dessa misria no ofe

    rece a imagem de sua superao. A teoria que projeta essa imagem no trabalha

    a servio da realidade existente; ela exprime apenas o seu segredo. Por mais exata

    mente que os equvocos e confuses possam a qualquer momento ser mostrados,

    por mais desastrosas que possam ser as conseqncias de erros, a direo do

    empreendimento, o prprio labor intelectual, por mais repleto de xito que prome

    ta ser. no sofre sano do senso comum nem pode se apoiar nos hbitos. Outras

    teorias, porm, que testam a sua eficincia na construo de mquinas, inclusive

    nos filmes de sucesso, acabam tendo um consumo nitidamente definido, mesmo

    quando so elaboradas separadamente da sua aplicao, como a fsica terica, e

    mesmo quando esse consumo consiste apenas no manejo dos sinais matemticos,

    para com o qual a boa sociedade mostra, pela recompensa, o seu sentimento

    humani trio.

    Contudo, quanto ao consumo no futuro, o que assunto para o pensamento

    crtico, no existem tais exemplos. Apesar disso, a idia (Idee) de uma sociedade

    futura como coletividade de homens livres, tal como seria possvel em virtude

    dos meios tcnicos existentes, tem um contedo que deve manter-se fiel apesar

    de todas as transformaes. Essa idia se reproduz constantemente sob a situao

    vigente, na forma de uma inteleco a respeito da possibilidade e do modo em

    que a dilacerao e irracionalidade podem ser eliminadas agora. Mas os fatos

    nela julgados, as tendncias impulsionadoras no sentido de uma sociedade racio

    nal, no so produzidos fora do pensamento por foras exteriores a ele, em cujo

    produto pudesse reconhecer ocasionalmente a si prprio. Pelo contrrio, o mesmo

    sujeito que quer impor os fatos de uma realidade melhor pode tambm represen

    t-la. Desta coincidncia enigmtica entre o pensamento e o ser, entre entendi

    mento e sensibilidade, entre necessidades humanas e sua satisfao dentro da eco

    nomia catica atual, coincidncia que aparenta ser acidental na poca burguesa,

    vir a ser em pocas futuras a relao entre a inteno racional e a realizao.

    Na luta pelo futuro esta relao aparece de forma parcial, na medida em que

    uma vontade se relacione com a estruturao da sociedade como um todo e atue

    conscientemente na elaborao da teoria e da praxis que conduzem a este futuro.

    Na organizao e comunidade dos combatentes aparece, apesar de toda a disci

    plina baseada na necessidade de se impor, algo da liberdade e espontaneidade

    do futuro. Onde a unidade entre disciplina e espontaneidade desapareceu, o movi

    mento se transforma num assunto para a sua prpria burocracia, um espetculo

    quej entrou para o repertrio da histria recente.

    No entanto a vitalidade atual do futuro almejado no constitui uma confir

    mao. Os sistemas conceituais do entendimento ordenador, as categorias, nos

    quais so registrados o inerte e o vivo, assim corno processos sociais, psicolgicos

    e fsicos, a classificao dos objetos e juzos nas diversas disciplinas dos ramos

    particulares do conhecimento, tudo isso constitui o aparelho intelectual, tal como

  • 7/24/2019 Teoria Tradicional e Teoria Crtica

    12/20

    146

    H O R K H E I M E R

    comprovado e a justado em conexo com o processo real de t rabalho. Este uni

    verso inte lectual

    39

    constitui a conscincia geral; ele tem uma base qual os seus

    representantes podem recorrer. Tambm os interesses do pensamento crtico so

    universais, mas no so universalmente reconhecidos. Os concei tos que surgem

    sob sua influncia so crticos frente ao presente. Classe,

    4 0

    explorao, mais-va-

    lia, lucro, pauperizao, runa so momentos da totalidade conceituai. O sentido

    no deve ser buscado na reproduo da sociedade a tual , mas na sua t ransforma

    o . Por isso para o modo de julgar dominantewtroria'-xsritica aparece como sub

    jetiva e especulativa, parcial e intil, embora ela no proceda nem arbitrariamente

    nem ao acaso. Como ela contraria o modo de pensar existente que permite a

    continuidade do passado favorecendo os interesses da ordem ultrapassada, e se

    ope aos garantes de um mundo partidrio, a teoria crtica aparenta ser partidria

    e injusta.

    Mas antes de tudo ela no pode mostrar um rendimento material. A transfor

    mao que a teoria crtica tenta realizar no das que vo se impondo aos poucos

    de modo a ter um sucesso que, apesar de vagaroso, seja constante. O crescimento

    do nmero dos seus adeptos, a influncia de alguns deles sobre os governos, a

    fora daqueles p artidos que a vem >om,boas olho s ou que pelo menos no a

    proscrevem, tudo isto pertence aos reveses da luta para alcanar um grau mais

    alto de convivncia humana, mas no constitui ainda o seu comeo. Tais xitos

    podem revelar-se posteriormente, inclusive como vitrias aparentes ou erros. Um

    mtodo de adubagem na agricultura ou a aplicao de uma terapia na medicina

    podem estar longe de alcanar o efeito ideal, o que no significa que no possam

    ter algum resultado positivo. Talvez as teorias baseadas em tais experincias tc

    nicas em relao com a respectiva praxis e com as descobertas em outros campos

    tenham que ser aprimoradas, revisadas ou rejeitadas; com isso seria poupado

    um grandequantum de trabalho em relao ao produ to, e seriam curadas e alivia

    das mui tas doenas.

    41

    Ao contrrio, a teoria que impulsiona a t ransformao

    do todo social tem como conseqncia a intensificao da luta com a qual est

    vinculada. Tambm quando a lguns melhoramentos materia is ec lodem da e levada

    fora de resistncia de determinados grupos, que surgem indiretamente da teoria,

    no se trata de setores da sociedade, de cuja expanso contnua resultaria a nova

    sociedade. Todas as representaes sobre esse tipo de crescimento paulatino des

    conhecem a diversidade fundamental de um todo social dividido, no qual o poder

    material e ideolgico tem a funo de manter os privilgios contra a associao

    dos homens livres, na qual cada um tem as mesmas possibilidades de desenvolvi

    mento. Esta idia se diferencia da utopia

    42

    pela prova de sua possibilidade real

    fundada nas foras produt ivas humanas desenvolvidas.

    43

    Quantos esforos foram

    necessrios para se chegar a ela, quantas etapas foram ultrapassadas, e como

    39

    "este universo

    de conceitos",

    na ed. de A. Schmidt. (N. dos T.)

    40

    Na ed. de A. Schmidt foi introduzid o: "As categorias marxistas"'. (N. dos T.)

    De modo semelhante ocorre com as inteleces econmicas e tcnico-fnanceiras e seu aproveitamento

    pela poltica econmica. (N. do A.)

    42

    "utopia

    abstrata",

    na ed. de A. Schmidt. (N. dos T.)

    Na ed. de A. Schmidt consta: "fundada no estado atual das foras produtivas humanas". (N. dos T.)

    T E O R I A T R A D I C I O N A L E T E O R I A C R T I C A 1 47

    pode ter sido desejada e valiosa cada etapa em si o significado histrico desses

    esforos e etapas para a idia s ser conhecido depois de sua efetivao. Este

    pensamento tem algo em comum com a fantasia. Trata-se de fato de uma imagem

    do futuro, surgida da compreenso profunda do presente: determinar em tais pe

    rodos os pensamentos e aes nos quais o desenrolar das coisas aparenta afas

    tar-se dessa imagem; e antes justificar qualquer doutrina do que a crena na sua

    realizao. A arbitrariedade e a suposta independncia no so prprias deste

    pensamento, mas sim a tenacidade da fantasia. Cabe ao terico introduzir essa

    tenacidade nos grupos mais avanados das camadas dominadas, pois justa

    mente dentro dessas camadas que esses grupos se encontram ativos.

    44

    T a m b m

    no reina harmonia nestas relaes. Se o terico da classe dominante alcana,

    talvez, depois de muito esforo inicial, uma posio relativamente segura, o te

    rico que se encontra em oposio considerado s vezes como inimigo e crimi

    noso, s vezes como utopista e alienado do mundo, e a discusso em torno dele

    no ter um resultado definitivo nem aps a sua morte. O significado histrico

    do seu trabalho no se estabelece por si mesmo; ao contrrio, depende do fato

    de que atuem por ele e o defendam. Esse significado no faz parte da figura hist

    r ica acabada.

    A capacidade de pensar, na forma exigida na prxis cotidiana, tanto pela

    vida da sociedade como pela cincia, foi desenvolvida no decorrer dos sculos

    no homem por meio de uma educao realista; uma falha aqui traz sofrimentos,

    fracassos e castigos. Esse modo de comportamento intelectual consiste essencial

    mente em conhecer as condies para o surgimento de um efeito, que sempre

    surgiu sob os mesmos pr-requisitos que em algumas circunstncias podem ser

    provocadas de forma autnoma. Existe uma instruo intuitiva (Anschauungsun-

    terricht) atravs de experincias boas e ms e do experimento organizado. Aqui

    se trata da preservao individual e imediata da vida humana, e os homens tive

    ram oportunidade na sociedade burguesa de desenvolver uma sensibilidade para

    isso . A gnose, neste sentido tradicional, e inclusive qualquer tipo de experincia

    esto contidos na teoria e naprxis crtica. Mas, no que se refere transformao

    essencial, inexiste a percepo concreta correspondente enquanto essas transfor

    maes no ocorram de fato. S o teste do pudim com-lo, ento est claro que

    ainda est por vir.

    45

    A comparao com acontecimentos histricos similares s

    possvel de um modo muito condicionado. Por isso o pensamento construtivo

    comparado com a experincia emprica desempenha na totalidade dessa teoria

    um papel mais importante do que no senso comum. Este um dos motivos por

    que, nas questes que se referem sociedade como um todo, pessoas que nas

    cincias particulares e nos diversos ramos profissionais demonstram capacid ade

    de realizao, pod em, apesar da boa vo ntade, mostrar -se limitadas -e incapaz es.

    44

    Na ed. de A. Schmidt foi omitido : "das camadas dominadas porque

    justamente dentro destas camadas

    que estes grupos se encontram ativos". (N. dos T.)

    45

    Horkheimer faz aqui aluso ao provrbio ingls The proof of the pudding is in lhe eating, citado por

    Engels na Introduo l.

    8

    edio inglesa de

    O Desenvolvimento do Socialismo Utp ico ao Cientfico.

    (N. dosT.)

  • 7/24/2019 Teoria Tradicional e Teoria Crtica

    13/20

    1 4 8 H O R K H E I M E R

    Ao contrrio, sempre que transformaes sociais estavam prestes a ocorrer, as

    pessoas que pensavam "demais" foram consideradas perigosas. Isso nos leva ao

    ( problema da intelligentsia, na sua relao com a sociedade como um todo.

    O terico, cujo nico interesse consiste em acelerar o desenvolvimento que

    deve levar sociedade sem explorao, pode encontrar-se numa situao contr-

    ( ria aos pontos de vista que, como foi exposto acim a, predom inam justam ente

    entre os explorados.

    46

    Sem a possibilidade desse conflito no seria necessria

    nenhu ma teoria; ela seria algo espontneo naqu eles que dela necessitassem . O

    / conflito no tem necessariam ente nada a ver com a situao de classe individual

    do terico; no depende da forma da sua renda. Engels foi um businessman .

    (

    Na sociologia, que no retira o seu conceito de classe da crtica da econom ia,

    . mas das suas prprias observaes no a fonte de renda nem o contedo dos

    fatos da teoria que determinam a situao social do terico, mas o elemento for-

    ( mal da educa o. A possibilidade de uma viso maior , no como a dos magn atas

    industriais que conhecem o mercado mundial e dirigem pases inteiros por trs

    1

    dos bastidores , mas a viso de professores universitrio s, funcionrios pblicos,

    ( mdicos, advogados, e tc , deve const i tui r uma intelligentsia, ou se ja , uma camada

    social especial ou mesmo uma camada supra-social. O carter essencial desse

    ' conceito sociolgico ser o pairar sobre as classes, uma espcie de qualidad e

    ( excepcional da intelligentsia, da qual ela se orgulha;