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TEMAS DE REDAÇÃO EFOMM

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  • TEMAS DE REDAO EFOMM

  • 2

    SUMRIO Pg.3 ---------- 2010-2011 Pg.15 ---------- 2004-2005

    Pg.5 ---------- 2009-2010 Pg.17 ---------- 2003-2004

    Pg.7 ---------- 2008-2009 Pg.19 ---------- 2002-2003

    Pg.9 ---------- 2007-2008 Pg.21 ---------- 2001-2002

    Pg.11--------- 2006-2007 Pg.23 --------- 2000-2001

    Pg.13 ---------2005-2006

    COMO TREINAR

    Este documento traz os textos das provas de

    portugus da EFOMM, do ano 2000 at o ano

    2011.

    As provas de redao da EFOMM so

    conhecidas por seus temas abstratos, geralmente

    baseados nos textos das provas de portugus.

    Ento minha sugesto a seguinte: que

    voc interprete cada texto das provas e delas

    crie um tema, depois faa uma redao baseada

    nesse tema.

    Afirmo que essa apenas uma sugesto,

    cada um tem seu modo de treinar redao.

    Espero t-los ajudado,

    Henrique Audi Morokawa

  • 3

    2010-2011

    A ltima Crnica - Fernando Sabino

    "A caminho de casa, entro num botequim da Gvea para tomar um caf junto ao

    balco. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta.

    Gostaria de estar inspirado, de coroar com xito mais um ano nesta busca do pitoresco

    ou do irrisrio no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diria

    algo de seu disperso contedo humano, fruto da convivncia, que a faz mais digna de

    ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episdico. Nesta perseguio do acidental, quer

    num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criana ou num acidente domstico,

    torno-me simples espectador e perco a noo do essencial. Sem mais nada para contar,

    curvo a cabea e tomo meu caf, enquanto o verso do poeta se repete na lembrana:

    "assim eu quereria o meu ltimo poema". No sou poeta e estou sem assunto. Lano

    ento um ltimo olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crnica.

    Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das ltimas

    mesas de mrmore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na

    conteno de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presena de uma negrinha de

    seus trs anos, lao na cabea, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou

    tambm mesa: mal ousa balanar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de

    curiosidade ao redor. Trs seres esquivos que compem em torno mesa a instituio

    tradicional da famlia, clula da sociedade. Vejo, porm, que se preparam para algo

    mais que matar a fome.

    Passo a observ-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou

    do bolso, aborda o garom, inclinando-se para trs na cadeira, e aponta no balco um

    pedao de bolo sob a redoma. A me limita-se a ficar olhando imvel, vagamente

    ansiosa, como se aguardasse a aprovao do garom. Este ouve, concentrado, o pedido

    do homem e depois se afasta para atend-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a

    reassegurar-se da naturalidade de sua presena ali. A meu lado o garom encaminha a

    ordem do fregus. O homem atrs do balco apanha a poro do bolo com a mo, larga-

    o no pratinho - um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular.

    A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o

    garom deixou sua frente. Por que no comea a comer? Vejo que os trs, pai, me e

    filha, obedecem em torno mesa um discreto ritual. A me remexe na bolsa de plstico

    preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fsforos, e

    espera. A filha aguarda tambm, atenta como um animalzinho. Ningum mais os

    observa alm de mim.

    So trs velinhas brancas, minsculas, que a me espeta caprichosamente na

    fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fsforo e acende as velas.

    Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mrmore e sopra com

    fora, apagando as chamas. Imediatamente pe-se a bater palmas, muito compenetrada,

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    cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "Parabns pra voc, parabns

    pra voc..." Depois a me recolhe as velas, torna a guard-las na bolsa. A negrinha

    agarra finalmente o bolo com as duas mos sfregas e pe-se a com-lo. A mulher est

    olhando para ela com ternura - ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de

    bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se

    convencer intimamente do sucesso da celebrao. D comigo de sbito, a observ-lo,

    nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido - vacila, ameaa abaixar a

    cabea, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.

    Assim eu quereria minha ltima crnica: que fosse pura como esse sorriso."

    Crnica publicada no livro "A Companheira de viagem" (Editora Record, 1965)

  • 2009-2010

    Bruno Lichtenstein

    Foi preso o menino Bruno Lichtenstein, que arrombou a Faculdade de Medicina.

    O menino Bruno Lichtenstein no arrombador profissional. Apenas acontece que o

    menino Bruno Lichtenstein tem um amigo, e esse amigo um cachorro, e esse cachorro

    ia ser trucidado cientificamente, para estudos, na Faculdade de Medicina. O poeta

    mineiro Djalma Andrade tem um soneto que acaba mais ou menos assim:

    "se entre os amigos encontrei cachorros,

    entre os cachorros encontrei-te, amigo".

    Mas com toda a certeza o menino Bruno Lichtenstein jamais leu esses versos.

    Tambm com certeza nunca lhe explicaram o que vivisseco, nem lhe disseram que

    seu co ia ser vivisseccionado. Tudo o que ele sabia que lhe haviam carregado o

    cachorro e que iam mat-lo. Se fosse pedi-lo, naturalmente, no o dariam. Quem, neste

    mundo, haveria de se preocupar com o pobre menino Bruno Lichtenstein e o seu pobre

    co? Mas o cachorro era seu amigo e estava l, metido em um poro, esperando a hora de morrer. E s uma pessoa no mundo podia salv-lo: um menino pobre chamado

    Bruno Lichtenstein. Com esse sobrenome de principado, Bruno Lichtenstein um

    garoto sem dinheiro. No pagar a licena de seu amigo. Mas Bruno Lichtenstein havia

    de salvar a vida de seu amigo de qualquer jeito. E jeito s havia um: ir l e tirar o cachorro. De longe, Bruno Lichtenstein chorava, pensando ouvir o ganido triste de um

    condenado morte. Via homens cruis metendo o bisturi na carne quente de seu amigo:

    via sangue derramado. Horrvel, horrvel. Bruno Lichtenstein sentiu que seria o ltimo

    dos infames se no agisse imediatamente.

    Agiu. Escalou uma janela, arrebentou um vidro, saltou. Estava dentro do

    edifcio. Andando pelas salas desertas, foi at onde estava o seu amigo. Sentiu que o seu

    corao batia mais depressa. Deu um assovio, um velho assovio de amizade.

    Um vulto se destacou em um salto - e um focinho quente e mido lambeu a mo

    de Bruno Lichtenstein. Agora era fugir para a rua, para a liberdade, para a vida...

    Bruno Lichtenstein, da cabea aos ps, tremia de susto e de alegria. Foi a que

    ele ouviu uma voz spera e espantada de homem. Era o dr. Loforte. O dr. Loforte

    surpreendeu o menino. Um menino pobre, que tremia, que havia arrombado a

    Faculdade. S podia ser um ladro! Bruno Lichtenstein no explicou nada e fez bem. Para o dr. Loforte um cachorro no um cachorro um material de estudo como outro qualquer.

    Na polcia apareceu o pai do menino. O pai, o professor e o delegado

    conversaram longamente e Bruno Lichtenstein no ouvia nada. S ouvia, l longe, o ganir de um condenado morte.

    J te entregaram o cachorro, Bruno Lichtenstein. Tu o mereceste, porque tu foste

    amigo. No te deram nem te daro medalha nenhuma porque no h medalha

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    nenhuma para distinguir a amizade. Mas te entregaram o teu cachorro, o cachorro que

    reivindicaste como um pequeno heri. Tu s um homem, Bruno Lichtenstein um homem no sentido decente da palavra, muito mais homem que muito homem. Um

    aperto de mo, Bruno Lichtenstein.

    O texto acima foi extrado do livro "1939 - Um episdio em Porto Alegre (Uma fada no front)", Ed.

    Record - Rio de Janeiro, 2002 - pg. 37.

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    2008-2009

    Encontro na praa

    Jos Lus da Cunha Fernandes, morador no Saco de So Francisco, uma tarde

    dessas, teve um encontro singular. Ia voltar de barca para Niteri e portava sua mquina

    fotogrfica. Sua inteno era pegar o pr-do-sol no Rio de dentro da barca. Mas ali na

    Praa 15 de Novembro, em frente estao de embarque, deu-se o encontro de Jos

    Lus com uma rara personalidade.

    Ningum reparava nela, no inslito de sua presena, no inesperado de sua

    postura, em tudo que era de chamar ateno. Mas Jos Lus, que sabe ver, e no apenas

    olhar, maravilhou-se. Maravilhou-se e voltou imediatamente infncia, pois o ser que

    ali se encontrava parado em meio multido, ele o conhecera em menino, e desde ento

    nunca mais o vira. Nunca. E de tanto no o ver, por assim dizer se esquecera dele. As

    conversas, as leituras, as atividades de todo dia no costumam referir-se existncia

    dessa figura de repente desaparecida. Ento, ela ficara encaixotada num desvo da

    memria, mas to escondido estava o caixote que era como se no existisse. E assim se

    passaram anos.

    O que Jos Lus encontrou na Praa 15 foi uma esperana.

    E estava pousada no alto da caixa de correio. Estava pousada.

    Quantas crianas de hoje conhecem a esperana? Quantas ligam esse nome a um

    organismo vivo, que habita o folclore pela cor, que promessa de felicidade? Menino

    do interior ainda pode ver, um dia ou outro, a esperana. Menino da cidade, ter muita

    sorte se a encontrar no Alto da Boa Vista ou no Parque da Cidade. Mas no cotidiano dos

    bairros superpovoados, nas ruas inteiramente plantadas de edifcios secos e agrestes,

    quem j viu esse bichinho? Quem sabe de sua esperteza em imitar folhas de arbusto,

    iludindo no s os outros insetos, que ele deseja papar, mas at a gente?

    Pois em contrrio a todas as possibilidades, a esperana postara-se naquele

    trecho febril do Rio de Janeiro, no ligando para o tumulto, a pressa, o barulho, a poeira,

    o fumo de descarga dos veculos. Ele elegera o cocuruto da caixa da ECT para a

    habitao provisria. Ali estava, quieta, verde, ortptera, saltadora mas imvel,

    mimtica mas em sua cor natural, estridulante mas silenciosa, guardando todas as

    potencialidades: simplesmente esperana, esperana para servi-los.

    E em que servia a esperana ao povo que ia quase correndo e no lhe dava a

    mnima confiana? S Jos Lus era capaz de sab-lo, por ser o nico a tomar

    conhecimento do inseto em cima da caixa. Percebeu logo que a esperana cumpria

    delicada tarefa.

    Em primeiro lugar, oferecia ou tentava oferecer boas notcias nas cartas

    colocadas no interior da caixa. Palavras de carinho, promessas de emprego,

    reconciliaes, doente que ficou bom, dvida que se conseguir pagar, beijos. Talvez as

    cartas dissessem o contrrio disso, mas a esperana concentrava seu princpio influente

    nas prximas correspondncias, as definitivas. Bem que a ECT podia designar a

    esperana para seu logotipo. Inseto gil, pulando como ele s: imagem de velocidade,

    que se vem conseguindo implantar no trfego postal.

    Em seguida, a esperana dirigia-se a todos, que voltavam a Niteri ou vinham de

    l; e ainda aos avulsos, que ficam por aqui mesmo, e transitam na Praa. vs todos que passais, aqui estou (dizia a esperana em seu falar tetigondeo, que o vulgo

    infelizmente no capisca) para que repareis o meu verde e o guardeis na rotina pelo que

    ele vale. Vale o melhor. Vale a capacidade de transformar o real em transreal e usufruir

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    as coisas deleitveis que esse pode distribuir em forma de paz de esprito e corao

    sensvel. Nem tudo sujo na vida. H claridades. Mas a claridade comea dentro de

    voc, de vs mesmos... Depois que ela se espalha pela cidade e pela vida dos outros.

    Eu, a esperana, maneira dos reis antigos, vos envio saudar. Ningum ouviu, ningum traduziu. S Jos Lus, que documentou a presena da

    esperana, fotografando-a. Ia fotografar o crepsculo, mas antes teve a sorte de

    fotografar nada menos que uma virtude teologal em minscula forma vivente. Carlos Drummond de Andrade

  • 9

    2007-2008

    So Bernardo (Graciliano Ramos)

    Conheci que Madalena era boa em demasia, mas no conheci tudo de uma vez.

    Ela se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente. A culpa foi minha, ou

    antes, a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste.

    E, falando assim, compreendo que perco o tempo. Com efeito, se me escapa o

    retrato moral de minha mulher, para que serve esta narrativa? Para nada, mas sou

    forado a escrever.

    Quando os grilos cantam, sento-me aqui mesa da sala de jantar, bebo caf,

    acendo o cachimbo. s vezes as idias no vm, ou vm muito numerosas e a folha permanece meio escrita, como estava na vspera. Releio algumas linhas, que me

    desagradam. No vale a pena tentar corrigi-las. Afasto o papel.

    Emoes indefinveis me agitam inquietao terrvel, desejo doido de voltar, tagarelar novamente com Madalena, como fazamos todos os dias, a esta hora. Saudade?

    No, no isto: desespero, raiva, um peso enorme no corao.

    Procuro recordar o que dizamos. Impossvel. As minhas palavras eram apenas

    palavras, reproduo imperfeita de fatos exteriores, e as dela tinham alguma coisa que

    no consigo exprimir. Para senti-las melhor, eu apagava as luzes, deixava que a sombra

    nos envolvesse at ficarmos dois vultos indistintos na escurido.

    L fora os sapos arengavam, o vento gemia, as rvores do pomar tornavam-se

    massas negras.

    Casimiro! Casimiro Lopes estava no jardim, acocorado ao p da janela, vigiando.

    Casimiro! A figura de Casimiro Lopes aparece janela, os sapos gritam, o vento sacode as

    rvores, apenas visveis na treva. Maria das Dores entra e vai abrir o comutador.

    Detenho-a: no quero luz.

    O tique-taque do relgio diminui, os grilos comeam a cantar. E Madalena surge

    no lado de l da mesa. Digo baixinho:

    Madalena! A voz dela me chega aos ouvidos. No, no aos ouvidos. Tambm j no a

    vejo com os olhos.

    Estou encostado mesa, as mos cruzadas. Os objetos fundiram-se, e no

    enxergo sequer a

    toalha branca.

    Madalena... A voz de Madalena continua a acariciar-me. Que diz ela? Pede-me naturalmente

    que mande algum dinheiro a mestre Caetano. Isto me irrita, mas a irritao diferente

    das outras, uma irritao antiga, que me deixa inteiramente calmo. Loucura estar uma

    pessoa ao mesmo tempo zangada e tranqila. Mas estou assim. Irritado contra quem?

    Contra mestre Caetano. No obstante ele ter morrido, acho bom que v trabalhar.

    Mandrio!

    A toalha reaparece, mas no sei se esta toalha sobre que tenho as mos

    cruzadas ou a que estava aqui h cinco anos.

    Rumor do vento, dos sapos, dos grilos. A porta do escritrio abre-se de manso,

    os passos de seu Ribeiro afastam-se. Uma coruja pia na torre da igreja. Ter realmente

  • 10

    piado a coruja? Ser a mesma que piava h dois anos? Talvez seja at o mesmo pio

    daquele tempo.

    Agora seu Ribeiro est conversando com d. Glria no salo. Esqueo que eles

    me deixaram e que esta casa est quase deserta.

    Casimiro! Penso que chamei Casimiro Lopes. A cabea dele, com o chapu de couro de

    sertanejo, assoma de quando em quando janela, mas ignoro se a viso que me d

    atual ou remota.

    Agitam-se em mim sentimentos inconciliveis: encolerizo-me e enterneo-me;

    bato na mesa e tenho vontade de chorar. So Bernardo, Rio de Janeiro, Record, 1983.

  • 11

    2006-2007

    Seca

    Era hora do almoo dos trabalhadores. Enquanto os homens comiam l dentro, o

    fazendeiro velho sentava-se na rede do alpendre, frente de casa espiando o sol no cu,

    que tinia como vidro; procurando desviar os olhos da gua do aude, l alm, que dentro

    de mais um ms estaria virada de lama.

    Os dois cabras se aproximaram sem que ele pressentisse. Era um alto e um

    baixo; o baixo grosso e escuro, vestido numa camisa de algodozinho encardido. O alto

    era alourado e no se podia dizer que estivesse vestido de coisa nenhuma, porque era

    farrapo s. O grosso na mo trazia um couro de cabra, ainda pingando sangue, esfolado

    que fora fazia pouco. E nem tirou o caco de chapu da cabea, nem salvou ao menos.

    O velho at se assustou e bruscamente se ps a cavalo na rede, a escutar a voz grossa e

    spera, tal e qual quem falava:

    Cidado, vim lhe vender este couro de bode. Aquele cidado, assim desabrido, j dizia tudo. Ningum chega de boa ateno em terreno alheio sem dar bom-

    dia. E tratando o dono da casa de cidado. Assim, o fazendeiro achou melhor fingir que

    no ouvira e foi-se pondo de p.

    O qu? Que que voc quer? O homem escuro botou o couro em cima do parapeito e o sangue escorreu num

    fio pelo cal da parede:

    Estou arranchado com minha famlia debaixo daquele juazeiro grande, ali. Essa cabra passou perto no sei de quem era. Matei, e a mulher est cozinhando a carne para comer. Agora, o couro o senhor ou me d dinheiro por ele, ou me d farinha.

    E de quem essa cabra? minha? Quem lhe deu ordem para matar? O velho estava to furioso que o dedo dele, espetado no ar, tremia. E o loureba

    esfarrapado chegou perto e deu a sua risadinha:

    Ningum perguntou a ela o nome do dono... Mas o outro, sempre srio, olhou o velho na cara:

    Matei com ordem da fome. O senhor quer ordem melhor? Nesse meio, os homens que almoavam l dentro escutaram as vozes alteradas e

    vieram ver o que havia. Eram uns doze foram aparecendo pelo oito da casa, de um em um, e se abriram em redor dos estranhos no terreiro.

    A o velho se vendo garantido, comeou a gritar:

    Na minha terra s eu dou ordem! Vocs so muito atrevidos me matarem o bicho e ainda me trazerem o couro pra vender, por desaforo! Chico Lus, veja a de

    quem o sinal dessa criao.

    O feitor largou a foice no cho, puxou as orelhas do couro, e virou-se achando

    graa para um dos companheiros: era a sua cabrinha, no era mesmo, compadre

    Augusto? Est aqui o sinal...

    O Augusto veio olhar tambm e ficou danado:

    Seus perversos, a cabra era da minha menina beber leite, estava cheia de cabrito novo!

    Mas o olho do homem escuro era feio e, se ele se assustara vendo-se cercado

    pelos cabras da fazenda, no deu parecena. O loureba que virava a cara de um lado

    para outro, procurando sada; ainda levou a mo ao quadril, tateou o cabo da faca mas cada um dos homens tinha uma foice, um terado, um ferro na mo.

  • 12

    Nesse p o fazendeiro, para acabar com a histria, resolveu mostrar bom

    corao; e gritou para o corredor:

    Menina! Manda a uma cuia com um bocado de farinha! Depois, retornando ao homem:

    Eu podia mandar prender vocs, para aprenderem a no matar bicho alheio! Mas tm crianas, no ? Tenho pena das crianas! Leve essa farinha, comam e tratem

    de ir embora. Daqui a uma hora quero o p de juazeiro limpo e vocs na estrada. Podem

    ir!

    O homem recebeu a cuia, no disse nada, saiu sem olhar para trs. O outro

    acompanhou, meio temeroso, tirou ainda o chapu em despedida, e pegou no passo do

    companheiro. O velho reclamava em voz alta cabra desgraado, alm de fazer o malfeito, recebe o favor e nem sequer abana o rabo.

    Os trabalhadores, calados, acompanhavam com os olhos os dois estranhos que

    marchavam um atrs do outro, na direo do juazeiro, do qual s se avistava a copa alta

    ali no terreiro. Ningum sabe o que pensavam; o dono da cabra deu de mo no couro e

    foi com ele para trs da casa.

    A a sineta bateu e os homens saram para o servio. Passando pelo juazeiro, l

    viram a famlia ao redor do fogo, os meninos procurando pescar pedaos da carne que

    fervia numa lata. Mas o homem escuro, encostado ao tronco, via-os passar, de braos

    cruzados, sem baixar os olhos. Ainda foi o dono da cabra que baixou os seus; explicou

    depois que no gostava de briga.

    MORALIDADE: Este caso aconteceu mesmo. Faz mais de trinta anos escrevi

    uma histria de cabra morta por retirante, mas era diferente. Ento, o homem sentia dor

    de conscincia, e at se humilhou quando o dono do bicho morto o chamou de ladro.

    Agora no mais assim. Agora eles sabem que a fome d um direito que passa por cima

    de qualquer direito dos outros. A moralidade da histria mesmo esta: tudo mudou,

    mudou muito. QUEIROZ, Rachel de. Cenas brasileiras. So Paulo: tica, 1997, p. 14-17. (Para gostar de ler).

  • 13

    2005-2006 Texto 1:

    O Outro

    Na redao, o secretrio fazia sua cozinha, quando a senhora, no primaveril, mas

    ainda no invernosa, dele se aproximou timidamente. E sacando da bolsa um recorte de

    jornal, perguntou-lhe se sabia o endereo de Emlio Moura, autor dos versos ali

    estampados.

    O secretrio explicou-lhe que o assunto era de competncia do Silva, encarregado

    do suplemento literrio. O Silva no ia demorar, estava na hora dele. No queria sentar-

    se, esperar?

    Ela recolheu cuidadosamente o fragmento e disps-se a aguardar o Silva, que, como

    acontece nessas ocasies, tardou um pouquinho. Mas que tardasse dois anos, no fazia

    diferena, a julgar pelo semblante da senhora, de paciente determinao.

    Diante do Silva, exibiu novamente o papelzinho e fez-lhe a pergunta.

    Endereo do Emlio Moura? Pois no, minha senhora. Com licena, deixe ver aqui no caderninho: rua tal, nmero tantos, em Belo Horizonte ...

    O rosto da senhora se transfigurou:

    Belo Horizonte? O senhor tem certeza de que ele est em Belo Horizonte? Se est, no momento, no sei, minha senhora. Mas sempre morou l, isso eu posso

    lhe garantir.

    Nova mutao se operou na fisionomia da visitante, onde o desaponto parecia querer

    instalar-se, mas era combatido pela dvida:

    O senhor ... o senhor conhece pessoalmente Emlio Moura? Conheo, sim. H muitos anos. Muitos? Que idade tem ele, mais ou menos? Fez cinqenta h pouco tempo, a senhora no leu nos jornais a comemorao? Tem certeza de que no est enganado? Perdoe a insistncia, mas podia me fazer

    o retrato fsico de Emlio Moura?

    Perfeitamente. Trata-se de um senhor alto, magro, cabelos ainda pretos, pequena costeleta, bigodinho, usa piteira e fuma cigarro de palha. Que mais? Meio calado,

    extremamente simptico, muito querido por todos. Completo a ficha: professor da

    Universidade, casado, com filhos.

    A senhora olhava para o papel, dobrava-o, esboava o gesto de jog-lo fora, depois

    o desdobrava e alisava com carinho. E, na ponta de longo silncio:

    Senhor Silva, este pedacinho de jornal me trouxe uma grande esperana e agora uma profunda decepo. Muito obrigada. Desculpe.

    Ia retirar-se, sem que o Silva compreendesse nquel, mas voltou-se, e rapidamente

    desfolhou esta confidncia:

    H quatro anos ando procura de Emlio Moura. ramos muito amigos, ele fazia versos lindos, que eu, na qualidade de sua melhor amiga, lia em primeira mo. Um

    dia, contou-me que ia viajar para Montevidu, onde ficaria algum tempo. Escreveu-me

    de l duas vezes, e da segunda anunciava que seguiria para o Canad. Nunca mais

    recebi a menor notcia. Ningum sabe informar nada. Quando li no jornal esta poesia

    com o nome dele, fiquei cheia de esperana, mas agora no sei o que pensar. O senhor

    me diz que Emlio Moura tem cinqenta anos e professor em Belo Horizonte. O que

  • 14

    eu conheo tem trinta e dois anos e nunca morou em Minas, que eu saiba, mas como os

    versos dele so parecidos com estes que o seu jornal publicou! A mesma doura, uma

    sensao de fim de tarde, meio triste, o senhor no imagine ... Enganei-me. Desculpe

    mais uma vez, e passe bem, Sr. Silva.

    Saiu, levando nas mos o papelzinho, como uma flor. Carlos Drummond de Andrade

    Texto 2:

    Me responda, sargento

    Dez anos, sargento, apartada do Joo. Uma tarde, sem se despedir, montou

    no cavalinho pampa, em dez anos de espera nunca deu notcia. Com a morte do meu

    velho, que me deixou o stio, quinze dias atrs l estava eu, bem quieta, cuidando da

    casa e da criao, ajudada pelo meu afilhado Jos, esse anjo de oito aninhos. Quem vai

    entrando sem bater palma nem pedir licena? Chegou maltrapilho, chapu na mo me

    rogou para fazer vida comigo. Mais de espanto que de saudade aceitei, bom ou mau, eu

    disse, o meu Joo.

    Nos primeiros dias foi bonzinho, quem no gosta de uma cabea de homem

    no travesseiro? Logo comeou a beber, no me valia em nada no stio. Eu saa bem cedo

    com o menino a lidar na roa, o bicho ficava dormindo. Bocejando de chinelo e

    desfrutando as regalias, no quer castigar o corpinho, no joga um punhado de milho

    para as galinhas. S ento, sargento, burra de mim, descobri o mistrio: ele voltou por

    amor da herana. Na primeira semana vendeu o leito mais gordo do chiqueiro, no me

    deu satisfao, o sargento viu algum dinheiro? Nem eu.

    Ontem chegou bbado e de culos escuro, espantou o menino para o terreiro

    e, fechados no quarto, bradou que eu tinha um amante, o meu afilhado bem que era filho

    e, antes de contar at trs, eu dissesse o nome do pai. Por mais que, de joelho e mo

    posta, negasse que havia outro homem, por mim o testemunho dos vizinhos, ele me

    cobriu de palavro, murro, pontap. Pegou da espingarda, me bateu com a coronha na

    cabea. Obrigou a rezar na hora da morte e pedir louvado. Que eu abrisse a boca,

    encostou o cano, fez que apertava o gatilho. No satisfeito, sacou da garrucha, apagou o

    lampio a bala. Disparou dois tiros na minha direo, s no acertou porque me desviei.

    Uma bala se enterrou na porta, a outra furou a cortina, em trs pedaos a cabea do So

    Jorge.

    Cansado de reinar, deitou-se vestido e de sapato, que a escrava servisse a

    janta na cama. Provou uma garfada e atirou o prato, manchando de feijo toda a parede:

    Quero outra, esta no prestou. Deus me acudiu, ao voltar com a bandeja ele roncava espumando pelo dente de ouro. Agarrei meu filho, chorando e rezando corri a noite

    inteira, ficasse l no stio era dona morta. E agora, sargento, que vai ser da minha vida,

    que que eu fao? Dalton Trevisan. O pssaro de cinco asas. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1975.

  • 15

    2004-2005 Texto 1:

    Memrias da Casa Velha

    Vou subindo a ladeira calada de pedras velhas irregulares e escorregadias,

    ladeada de casas velhas, de paredes desbotadas. Tudo silncio e, no fosse aquela

    mulher, tambm velha e desbotada, que me espia triste do alto de uma janela, diria que

    ningum mora mais aqui, que todos se foram, que muitos morreram e que outros se

    mudaram.

    Quando chego ltima curva, a respirao se faz difcil pelo esforo da subida,

    mas sintome recompensado ao avistar o grande porto aberto em arco. Reconheo-o

    facilmente, embora suas grades estejam enferrujadas e no brancas, como antigamente.

    At h pouco chovia. Agora um sol alegre ilumina a copa das rvores, vence a folhagem

    e espeta seus raios na relva. Mesmo assim, quando entro, sinto a terra mida debaixo

    dos meus

    sapatos.

    H quantos anos entrei por esta mesma alameda? Vinte, vinte e cinco? Talvez.

    Lembro-me que ficara impressionado com a majestade do jardim. Seria ele mais belo

    ento? Mais tratado era, por certo. Agora, abandonado, tudo aquilo que perdeu em

    simetria, em colorido, ganhou em placidez, em santidade. Sim, penso que estou a entrar

    numa catedral vazia, enquanto caminho devagar, olhando em torno.

    Antes havia marrecos neste laguinho: agora, folhas mortas biam, sem pressa de

    chegar outra margem. Alis, no eram somente marrecos. Lembro-me de dois cisnes a

    me olharem espantados, sem compreenderem que aquele menino tambm os via pela

    primeira vez.

    Um dia um cisne morrer, por certo quando li o soneto de Salusse, numa antologia de

    parnasianos, lembrei-me imediatamente do casal de cisnes que vivia neste lago.

    Se o cisne vivo nunca mais nadou, no sei. Sei que os bichos se foram todos.

    Apenas os pssaros continuam a usufruir deste jardim. Oio o chilrear de centenas deles

    sobre a minha cabea e, sem me importar com isso, vou subindo na direo da casa.

    Foi o vento na minha nuca ou foi de pura saudade que me veio este tremor? L

    est a varanda grande, cingida de trepadeiras. Minha me me segurava pela mo e

    falava, mas o alvoroo das moas era mais alto que a sua voz. Uma delas (quem seria?)

    apaixonou-se por meus cabelos louros e, naquela tarde em que aqui estive, penteou-me

    tantas vezes!

    Quando minha me abaixou-se para me beijar e partir, quase chorei na frente das

    moas. Depois esqueci. Elas brincaram comigo, me deram lanche, me deixaram correr

    no gramado.

    Olho a casa e penso que a gente que mora l embaixo, na ladeira, deve andar a

    inventar coisas, a dizer que ela mal-assombrada. Triste, coitada. Triste o que ela .

    Sei que ningum mais vem c e esta roseira deve saber tambm, mas, sem

    qualquer vaidade, continua a expor as suas rosas. Quanto quele canteiro, que as

    rolinhas esto ciscando, era de crisntemos, mas no se usa mais essa flor.

    O casaro est em runas. Nada mais d idia de abandono do que esta janela de

    vidros quebrados ou aquela fonte sem repuxo. J no h os crisntemos de outrora, a

    fonte , as moas na varanda, seu riso.

    Tudo silncio, tudo quietude. Somente os pssaros. Os pssaros e as

    lembranas.

  • 16

    Pela tarde, hora do crepsculo (hoje todos os crepsculos terminam aqui)

    minha me veio me buscar. Quase a vejo caminhando, a sorrir para mim. To moa e

    to linda (conta-se que, no seu tempo, foi a mais bonita aluna do Colgio Sion), ela me

    acenava com um embrulho na mo; o presente que prometera, caso me comportasse

    bem.

    A alegria que senti ao rev-la! Lembro-me que corri em sua direo e to afoito,

    que ca de peito na relva, como um mergulho. O po com gelia que uma das moas me

    dera caiu tambm e l ficou esquecido.

    No chorei. Contive as lgrimas como contenho agora, enquanto vou descendo

    pelo mesmo caminho. Vou devagar, porm. J no h nem a pressa, nem a alegria de

    ento. (Srgio Porto, in Antologia Escolar de Crnicas)

    Texto 2:

    De volta casa paterna

    Como a ave que volta ao ninho antigo,

    depois de um longo e tenebroso inverno,

    eu quis tambm rever o lar paterno,

    o meu primeiro e virginal abrigo.

    Entrei. Um gnio carinhoso e amigo,

    o fantasma, talvez, do amor materno

    tomou-me as mos, olhou-me grave, terno,

    e passo a passo caminhou comigo.

    Era esta a sala! Oh, se me lembro! E quanto!

    Em que, da luz noturna claridade,

    minhas irms e minha me... o pranto

    jorrou-me em ondas. Resistir, quem h-de?

    Uma iluso gemia em cada canto,

    chorava em cada canto uma saudade. (Lus Guimares Jnior, in Antologia de Poetas Brasileiros)

  • 17

    2003-2004

    O canarinho

    Atacado de senso de responsabilidade, num momento de descrena de si mesmo,

    Rubem Braga liquidou entre amigos, h um ano, a sua passarinhada. s crianas aqui de

    casa tocaram um bicudo e um canrio. O primeiro no agentou a crise da puberdade,

    morrendo logo uns dias depois. O menino se consolou, forjando a teoria da imortalidade

    dos passarinhos: no morrera, afirmou-nos, com um fanatismo que impunha respeito ou

    piedade, apenas a sua alma voara para Pirapora, de onde viera. O garoto ficou firme

    com a sua f. A menina manteve a possesso do canrio, desses comuns, chamados

    chapinhas ou da terra, e que mais cantam por boa vontade que vocao. No importa, conseguiu depressa um lugar em nossa afeio, que o tratvamos com alpiste, vitaminas

    e folhas de alface, procurando ainda arranjar-lhe um recanto mais clido neste

    apartamento batido por umas raras rstias de sol, pois quase de todo virado para o Sul.

    Era um canrio ordinrio, nunca lera Bilac, e parecia feliz em sua gaiola. Ns o

    amvamos desse amor vagaroso e distrado com que enquadramos um bichinho em

    nossa rbita afetiva. Creio mesmo que se ama com mais fora um animal sem raa, um

    pssaro comum, um cachorro vira-lata , o gato popular que anda pelos telhados. Com os

    animais de raa, h uma afetao que envenena um pouco o sentimento; com os bichos

    comuns, pelo contrrio, o afeto de uma gratuidade que nos faz bem.

    Aos poucos surpreendi a mim, que nunca fui de bichos, e na infncia no os tive,

    a program-lo em minhas preocupaes. Verificava o seu pequeno cocho de alpiste,

    renovava-lhe a gua fresca, telefonava da rua quando chovia, meio encabulado perante

    mim mesmo com essa sentimentalidade serdia; mas que havia de fazer!

    Como nas fbulas infantis, um dia chegou o inverno, um inverno carioca, verdade,

    perfeitamente suportvel. Entretanto, como j disse, a posio do edifcio no deixa o

    sol bater aqui, principalmente nesta poca do ano. a gente ficar algumas horas dentro

    de casa e sentir logo uma saudade fsica dos raios solares. Que seria ento do canarinho,

    relegado agora rea, onde pelo menos ficava ao abrigo da virao marinha? s vezes,

    quando sinto frio, vou esquina, compro um jornal e o leio ali mesmo, ao sol, ao

    mesmo tempo que compreendo o mistrio e a inquietao dos escandinavos,

    mergulhados em friagens e brumas durante uma boa temporada de suas vidas.

    E o canarinho, pois? Lev-lo comigo dentro da gaiola, isso no, eu no tinha

    coragem. No devo ter reputao de muito sensato, e l se iria (como diz Mrio

    Quintana) o resto do prestgio que no meu bairro eu ainda possa ter. Assim, vendo o

    passarinho encorujado a um canto, decidimos do-lo a um amigo comum, nosso e dos

    passarinhos, dono de um stio. A comunicao foi feita s crianas depois do caf.

    Pareciam estar de acordo, mas o menino, sem dar um pio, dirigiu-se at a rea e soltou o

    canarinho. A empregada viu e veio contar-nos.

    Mas, cad o menino! Voara? Foi um susto que demorou alguns minutos, pois

    no o achvamos em seus esconderijos habituais, enrolado na cortina, debaixo da cama,

    atrs da porta. Restava um armrio muito estreito a ser investigado, e l estava ele,

    quieto e encolhido no escuro como no tero materno, com uma cara de expresso to

    dividida, que o choro da menina se desfez em uma gargalhada cheia de lgrimas.

    O canrio tambm tinha sumido e, embora fosse quase certa a sua

    impossibilidade de ganhar a vida por conta prpria, melhor assim, no voltasse nunca

    mais.

  • 18

    Mas voltou. Na hora do almoo, a empregada veio dizer-nos que ele estava na

    janela do edifcio que se constri ao lado, muito triste. verdade. L est o canarinho,

    sem saber de onde veio, sem saber aonde ir, sem saber ao certo se gostamos dele, triste,

    arrepiado e com fome. Um ponto amarelo no paredo esbranquiado, l est o nosso

    canrio-da-terra, a doer em nossos olhos.

    Vai-te embora, canarinho, que no te quero mais. Mas ele fica, brincando de

    corvo, dizendo never more. Este refro never more me deixa meio esquisito. Estou triste. Todo mundo aqui de casa est triste, ridiculamente triste, nesta manh luminosa

    de junho. Paulo Mendes Campos

  • 19

    2002-2003 Texto 1:

    rvores, mais rvores

    Conta-se que o velho Beethoven, j surdo e misantropo, numa das mltiplas

    ocasies em que mudou de domiclio em Viena, perguntou ao novo senhorio logo ao

    transpor a porta de entrada: O senhor tem rvores no seu quintal? E como o homenzinho respondesse com a negativa, resolveu logo: Ento no me serve, gosto mais de uma rvore do que de um homem.

    Mas no preciso ser surdo, nem misantropo, nem gnio, para pensar assim.

    Talvez que para tanto baste ser civilizado. o eterno ciclo que se repete. O homem

    transformou de tal modo a crosta do planeta com os cinco dedos da sua tcnica que j se

    aborrece da sua obra fria e acabada. E volta-se ento para a velha Natureza em busca de

    vida, de emoo, de sade.

    A gente comea com vasinhos de flores. Os holandeses, encurralados nos seus

    istmos, havia muito que no os dispensavam. Os americanos, encarrapitados nas gaiolas

    dos arranha-cus, tratam-nas at com harmnios e ultravioletas. Ns j vamos ficando

    um pouco assim. Entre ns h at quem goste de cactus, esses cactus que nos fazem tremer de calor distncia. Mas to pouco ainda! Como se haveria de trepar numa

    rvore, esse mais salutar dos esportes, na opinio do entendido professor Carrel?

    verdade que os ricos inventaram o stio, pedacinho bem educado da fazenda, com geladeira e rdio, aonde se vai de automvel, levando sempre muita comida,

    porque com a terra no se pode contar. E os que podem l vo, todos os sbados, no

    gozo requintado de uma natureza quase sinttica.

    Os menos ricos, que no tm stio prprio, j resolveram o problema a seu modo: fogem de quando em quando para um retiro qualquer improvisado em hotel. De

    qualquer forma um retorno salutar rvore. S os pobres das grandes cidades ainda

    no a compreendem, ainda no a estimam: passam 2 de 11 todos os dias por ela nas

    ruas, nos parques, no subrbio distante, e no lhe sabem sequer o nome, porque ignoram

    o consolo que h no seu aconchego e na sua sombra.

    Como triste uma criana que cresceu longe das rvores! Desconhece o encanto

    de folhear um livro de figuras sob a proteo matizada e fresca de uma fronde, no

    suspeita das vantagens que h em procurar um fruto reumante escondido no meio da

    ramaria, perde a melhor oportunidade de tonificar o olfato no convvio dos odores

    resinosos.

    preciso que a criana viva junto rvore, no campo, no jardim e sobretudo na

    cidade, cada vez mais monstruosa e implacvel. A rvore ir desenvolver nela uma

    sucesso de emoes, cada qual mais nobre; no princpio o respeito quase religioso

    ligado tambm idia de proteo; aos poucos se cria a noo de confiana e amizade; e

    donde vem os frutos, onde se pendura o balano; finalmente o amor verdadeiro,

    produto de tudo isso e muito mais ainda do germe do gozo esttico que existe nos mais

    brutos.

    O apartamento no mata a rvore, valoriza-a. O indispensvel que a infncia

    urbana no se escravize ao cimento armado. O arranha-cu, ganhando a altura, abre

    lugar aos parques. E para l que necessrio mandar as crianas, como obrigao

    quotidiana, para que sintam as rvores como coisa sua. No esquecer ento que as

    rvores devem ter nome. A nossa indiferena neste ponto to grande, que muitas

    delas, aclimatadas de longa data entre ns, so mais conhecidas por denominaes

    cientficas ou estrangeiras: eucalyptus, bougainvilleas, flamboyants.

  • 20

    J se disse que o poeta um homem para o qual o mundo exterior existe. Nesse

    mundo exterior o que h de mais belo a rvore. Ns temos cada vez mais urgncia de

    poesia neste mundo mecnico e desarticulado. Deixai que a rvore reconduza a criana

    s fontes da poesia perene e insubstituvel! REBELO, Marques , rvores, mais rvores. In: Antologia Escolar de Crnicas, organizada por Herberto

    Sales. Rio de Janeiro: Ed. Tecnoprint. S.A.

    Texto 2:

    Splica por uma rvore

    Um dia, um professor comovido falava-me de rvores. Seu av conhecera Andersen,

    um pequeno deus que encantou para sempre sua infncia, todas as infncias, com suas

    maravilhosas histrias. Mas, alm de conhecer Andersen, o av desse comovido

    professor legara a seus descendentes uma recordao extremamente terna: ao sentir que

    se aproximava o fim de sua vida, pediu que o transportassem aos lugares amados, onde

    brincava em menino, para abraar e beijar as rvores daquele mundo antigo mundo de sonho, pureza, poesia povoado de crianas, ramos flores, pssaros ... O professor comovido transportava-se a esse tempo de ternura, pensava nesse av to sensvel, e

    continuava a participar, com ele, dessa cordialidade geral, desse agradecido amor

    Natureza que, em silncio, nos rodeia com a sua proteo, mesmo obscura e enigmtica.

    Lembrei-me de tudo isso ao contemplar uma rvore que no conheo, e cujo

    tronco h quinze dias se encontra ferido, lascado pelo choque de um txi desgovernado.

    Segundo os tcnicos, se no for socorrida, essa rvore dever morrer dentro em breve:

    pois a pancada que a atingiu afetou-a na profundidade da sua vida. MEIRELES, Ceclia, Splica por uma rvore. In: O que se diz e o que se entende. Rio de Janeiro:

    Nova Fronteira, 1980, p. 63).

  • 21

    2001-2002

    Uma galinha

    Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque no passava de nove horas da

    manh.

    Parecia calma. Desde sbado encolhera-se num canto da cozinha. No olhava para

    ningum, ningum olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua

    intimidade com indiferena, no souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se

    adivinharia nela um anseio.

    Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vo, inchar o peito e,

    em dois ou trs lances, alcanar a murada do terrao. Um instante ainda vacilou o

    tempo da cozinheira dar um grito e em breve estava no terrao do vizinho, de onde,

    em outro vo desajeitado, alcanou um telhado. L ficou em adorno deslocado,

    hesitando ora num, ora noutro p. A famlia foi chamada com urgncia e consternada

    viu o almoo junto de uma chamin. O dono da casa lembrando-se da dupla necessidade

    de fazer esporadicamente algum esporte e de almoar vestiu radiante um calo de

    banho e resolveu seguir o itinerrio da galinha: em pulos cautelosos alcanou o telhado

    onde esta hesitante e trmula escolhia com urgncia outro rumo. A perseguio tornou-

    se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteiro da rua.

    Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida a galinha tinha que decidir por si

    mesma os caminhos a tomar sem nenhum auxlio de sua raa. O rapaz, porm, era um

    caador adormecido. E por mais nfima que fosse a presa o grito de conquista havia

    soado.

    Sozinha no mundo, sem pai nem me, ela corria, arfava, muda, concentrada. s

    vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava

    outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E ento parecia to

    livre.

    Estpida, tmida e livre. No vitoriosa como seria um galo em fuga. Que que

    havia nas suas vsceras que fazia dela um ser? A galinha um ser. verdade que no se

    poderia contar com ela para nada. Nem ela prpria contava consigo, como o galo cr na

    sua crista. Sua nica vantagem que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria

    no mesmo instante outra to igual como se fora a mesma.

    Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcanou-a.

    Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por um asa atravs

    das telhas e pousada no cho da cozinha com certa violncia. Ainda tonta, sacudiu-se

    um pouco, em cacarejos roucos e indecisos.

    Foi ento que aconteceu. De pura afobao a galinha ps um ovo. Surpreendida,

    exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade,

    parecia uma velha me habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou respirando,

    abotoando e desabotoando os olhos. Seu corao to pequeno num prato solevava e

    abaixava as penas enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. S a

  • 22

    menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal porm conseguiu desvencilhar-se

    do acontecimento despregou-se do cho e saiu aos gritos:

    Mame, mame, no mate mais a galinha, ela ps um ovo! Ela quer o nosso

    bem!

    Todos correram de novo cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente.

    Esquentando seu filho, esta no era nem suave nem arisca, nem alegre nem triste, no

    era nada, era uma galinha. O que no sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a me

    e a filha olhavam j h algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer.

    Nunca ningum acariciou uma cabea de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa

    brusquido:

    Se voc mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida! Eu tambm! jurou a menina com ardor.

    A me, cansada, deu de ombros.

    Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a

    famlia. A menina, de volta do colgio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida

    para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: E dizer que a obriguei a correr naquele estado! A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terrao dos fundos, usando suas duas

    capacidades: a de apatia e a do sobressalto.

    Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam t-la esquecido, enchia-se

    de uma pequena coragem, resqucios da grande fuga e circulava pelo ladrilho, o corpo avanando atrs da cabea, pausado como num campo, embora a pequena cabea

    a trasse: mexendo-se rpida e vibrtil, com o velho susto de sua espcie j mecanizado.

    Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se

    recortara contra o ar beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os

    pulmes com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado fmeas cantar, ela no cantaria

    mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a expresso de sua vazia

    cabea se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu luz ou bicando milho era uma cabea de galinha, a mesma que fora desenhada no comeo dos sculos.

    At que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.

    Fonte: Os Cem Melhores Contos do Sculo.

  • 23

    2000-2001 Quem carioca

    Claro que no preciso nascer no Rio para ser genuinamente carioca, ainda que

    haja nisto um absurdo etimolgico. notrio que h cariocas vindos de toda parte, do

    Brasil e at de fora do Brasil. Ainda h pouco tempo chamei Armando Nogueira de

    carioca do Acre, nascido na remota e florestal cidade de Chapuri. Armando conserva, de

    resto, a marca acriana num resduo de sotaque nortista, cuja aspereza nada tem a ver

    com a fala carioca, que no cospe as palavras, mas antes as agasalha carinhosamente na

    boca. Mas no a maneira de falar, ou apenas ela, que caracteriza o carioca. H sujeitos

    nascidos, criados e vividos no Rio poucos, verdade que falam cariocamente e no tm, no entanto, nem uma pequena parcela de alma carioca. Agora mesmo estou me

    lembrando de um sujeito ranheta, que em tudo que faz ou diz pe aquela eructao

    subjacente que advm de sua azia espiritual. Este, ainda que o prove com certido de

    nascimento, no carioca nem aqui nem na China. E assim, sem querer, j me

    comprometi com uma certa definio do carioca, que comea por ser no propriamente,

    ou no apenas um ser bem-humorado, mas essencialmente um ser de paz com a vida.

    Por isso mesmo, o carioca, pouco importa sua condio social, um corao sem

    ressentimento. Nisto, como noutras dominantes da biotipologia do carioca, h de influir

    fundamentalmente a paisagem, ou melhor, a natureza desta mui leal cidade do Rio de

    Janeiro.

    Aqui, mais do que em qualquer outro lugar, impossvel a gente no sofrer um

    certo afeioamento imposto pela natureza. A paisagem, de qualquer lado que o olhar se

    vire, se oferece com a exuberncia e a falta de modos de um camel. O carioca sabe que

    no preciso subir ao Corcovado ou ao Po de Acar para ser atropelado por um belo

    panorama (belo panorama, alis, um troo horrvel). Por isso mesmo, nunca um s

    carioca foi assaltado no Mirante Dona Marta, que est armadinho l em cima espera

    dos otrios, isto , dos turistas.

    Pois o que o carioca no , o que ele menos turista. O que caracteriza o carioca exatamente uma intimidade com a paisagem, que o dispensa de encarar, por

    exemplo, a Praia de Copacabana com um olhar que no seja o rigorosamente familiar. O

    carioca no visita coisa nenhuma, muito menos a sua cidade, entendida aqui como

    entidade global e abstratamente concreta. Ele convive com o Rio de igual para igual e

    nesta relao s uma lei existe, que a da cordialidade. O carioca est na sua cidade

    como o peixe no mar.

    Por tudo isso, qualquer sujeito que no esteja perfeita e estritamente casado com

    a paisagem ou, mais do que isto, com a cidade, no carioca um intruso, um corpo estranho. E isto o que transparece primeira vista, no adianta disfarar. O carioca

    autntico, o genuno mesmo, esse que chegou ao extremo de nascer no Rio, esse no

    engana ningum e nunca d um nico fora sua conduta cem por cento carioca sem o menor esforo. O carioca um ser espontneo, cuja virtude mxima a naturalidade.

    No tem dobras na alma, nem bolor, nem reservas. Tambm pudera, sua formao,

    desde o primeiro vagido, foi feita sob o signo desta cidade superlativa, onde o mar e a

    mata verde e azul so um permanente convite para que todo mundo saia de si mesmo, evite a prpria m companhia comunique-se. Sobre esse verde e esse azul, imagine-se ainda o esplendor de um sol que entra pela noite adentro um sol que se apaga, mas no se ausenta. Diante disto e de mais tudo aquilo que faz a singularidade da

    beleza do Rio, como no ser carioca?

  • 24

    Apesar de tudo, h gente que consegue viver no Rio anos a fio sem assimilar a

    cidade e sem ser por ela assimilada. Gente que nunca ser carioca, como so, por

    exemplo, Dom Pedro II e Vincius de Morais, autnticos cariocas de todos os tempos,

    segundo Afonso Arinos. A verdade que nem todo mundo consegue a taxa mxima de

    cariocidade, que tem, por exemplo, um Aloysio Salles. No extremo oposto, est aquele homem pblico eminente que vi passeando outro dia em Copacabana. Ia de

    brao com a mulher e, da cabea aos sapatos, como dizia Ea de Queiroz, proclamava a

    sua falta de identificao com o que se pode chamar carioca way of living. Sapatos, alis, que no eram esporte, ao contrrio da camisa desfraldada. Esse um que no

    precisa abrir a boca, j se viu que est no Rio como uma barata est numa sopa de

    batata, no mnimo por simples erro de reviso.

    Fonte: Antologia Escolar de Crnicas,.organizada por Herberto Sales.

    A ltima Crnica - Fernando SabinoO OutroNova mutao se operou na fisionomia da visitante, onde o desaponto parecia querer instalar-se, mas era combatido pela dvida:A senhora olhava para o papel, dobrava-o, esboava o gesto de jog-lo fora, depois o desdobrava e alisava com carinho. E, na ponta de longo silncio:

    2003-2004O canarinho