teatro pós-dramático e performance pós-dramática

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    Marvin C arlson - Teatro Ps-dramtico e Performance Ps-dramticaRev. Bras. Estud. Presena, Porto Alegre, v. 5, n. 3, p. 577-595, set./dez. 2015.D i s p o n v e l e m : < h t t p : / / w w w . s e e r . u f r g s . b r / p r e s e n c a >

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    E-ISSN 2237-2660

    Teatro Ps-dramtico e

    Performance Ps-dramtica

    Marvin CarlsonThe City University of New York Nova Iorque, Estados Unidos

    RESUMO Teatro Ps-dramtico e Performance Ps-dramtica1 Este ensaio inicia

    com o conceito de teatro ps-dramtico conforme formulado pelo terico alemo Hans-Thies Lehmann e nele se consideram as obras recentes de vrios diretores internacionaisrelevantes Ivo van Hove, Punchdrunk, Signa, entre outros como exemplos deperformance ps-dramtica. Argumenta-se que o ponto comum a essas obras desafia oconceito tradicional de mimese e do universo teatral como construto fictcio claramenteseparado da vida cotidiana e de suas circunstncias.Palavras-chave: Teatro. Performance. Ps-dramtico. Hans-Thies Lehmann. Artes.

    ABSTRACT Postdramatic Theatre and Postdramatic Performance Beginning withthe concept of a postdramatic theatre as articulated by the German theorist Hans-ThiesLehmann, this essay considers the recent work of several major international directors Ivo

    van Hove, Punchdrunk, Signa and others as examples of postdramatic performance. Itargues that what they have in common is a challenge to the traditional concept of mimesisand of the theatre world as a fictional construct distinctly separated from everyday lifeand its surroundings.Keywords: Theatre. Performance. Postdramatic. Hans-Thies Lehmann. Arts.

    RSUM Thtre Postdramatique et performance Postdramatique Cet essai parledu concept de thtre postdramatique, tel quil a t formul par le thoricien allemandHans-Thies Lehmann. Les exemples de performances postdramatiques tudies ici sontdes uvres rcentes dimportants metteurs en scne de divers pays - dont, notamment,Ivo van Hove, Punchdrunk et Signa. Il est avanc que le point commun ces uvres

    est de dfier le concept traditionnel de la mimsis et de lunivers thtral en tant queconstruction fictive clairement isole de la vie quotidienne et de ses circonstances.Mots-cls: Thtre. Performance. Postdramatique. Hans-Thies Lehmann. Arts.

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    provvel que nenhum outro termo da crtica desde teatro doabsurdo tenha-se mostrado to atraente para os tericos de teatroquanto teatro ps-dramtico, introduzido no vocabulrio da crticapor Hans-Thies Lehmann, em 1999 (Lehmann, 1999). Como comquase todos os termos da crtica, principalmente em tempos recentes,a ampla aplicao do termo um preo caro que se paga por suapopularidade, a ponto de qualquer coisa parecida com uma definioconsistente e coerente do termo ter-se tornado praticamente imposs-vel. No h, tampouco embora certamente seja possvel detalhar ouso histrico do termo , nenhum fenmeno teatral ao qual o termose refira que no possa ser identificado na prtica teatral em umapoca muito anterior ao termo comear a ser aplicado.

    No h prefixo mais popular do quepsque tenha surgido nodiscurso da crtica dos ltimos cinquenta anos. Alm de salientar ocarter contemporneo do fenmeno em questo, todos os termosformados com esse prefixo compartilham um sentimento de rejeiode certos elementos-chave de uma tradio j estabelecida. No raro,soma-se a isso a sugesto de que a tradio da qual se distancia erade natureza monoltica e consolidada, o que grande parte do movi-

    mento ps-dramtico procura desestabilizar. O des- de desconstruodesempenha funo semelhante. Provavelmente, mais til iniciaresta discusso considerando o que exatamente se implica pelo termodramado qual o ps-dramtico se distancia. Desde que os EstudosTeatrais se estabeleceramcomo disciplina acadmica no incio dosculo XX, estudiosos ingleses do teatro, em geral, fizeram claradistino entre teatro e drama drama como referncia ao textoliterrio e sua histria, e teatro, realizao desse texto no palco. Jnaquele perodo, h mais de um sculo, alguns tericos, mais no-

    tadamente Edward Gordon Craig (Craig, 1911), procuravam criaro tipo de clara separao entre os dois termos que fundamentalpara o conceito de ps-dramtico. Apesar disso, a ideia do teatro,sobretudo, como realizao visual de um texto escrito pr-existentepredominou durante a maior parte do sculo XX e ainda predominaem muitas culturas teatrais mais notadamente a dos Estados Uni-dos, os quais, ao contrrio da Frana e da Alemanha, testemunharampouqussimo do que se pode chamar de ps-modernismo em todosos seus principais teatros. At mesmo os semioticistas das dcadas de

    1970 e 1980, embora fizessem clara distino entre o texto literrioe o espetculo como texto, supunham, quase de forma absoluta, que

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    este derivou daquele em termos lingusticos, traduzindo o textopara outros cdigos lingusticos, os da encenao teatral.Pode-se argumentar que a emancipao da performance do

    texto literrio a principal preocupao do ps-dramtico, mas essaemancipao tambm implica outras rupturas. Do ponto de vistaliterrio, o texto dramtico tradicional como nos tem sido relatadodesde Aristteles (1968) uma narrativa unificada com incio, meioe fim. As relaes lgicas de causa e efeito so reforadas em umateleologia abrangente. Assim, cria-se o enredo da pea, que Arist-

    teles chamou de ao (Aristteles, 1968). A menos que se reconheaa centralidade dessa estrutura, possvel que se estranhe o fato deque dramaturgos podem criar, e de fato criam, os chamados textosps-dramticos sem sequer mencionar a questo da performance. Doponto de vista performativo, muitas vezes o termo ps-dramtico temsido aplicado igualmente a performances que, como Craig defendia,so criadas sem nenhum texto pr-existente e a performances prin-cipalmente no teatro alemo moderno cujo componente verbalprovm diretamente de Shakespeare, Schiller ou Ibsen.

    No mera coincidncia que o termo ps-dramtico e, alis,seu conceito tenham se originado na Alemanha, visto que o pasproduziu e ainda produz os exemplos mais variados e altamente de-senvolvidos desse fenmeno multifacetado. Embora menos central,o conceito tambm uma pea importante na cena contemporneado teatro de regies vizinhas da Alemanha Frana, Itlia, Polnia,Pases Baixos e Escandinvia. Nos teatros anglo-saxnicos da In-glaterra e dos Estados Unidos, ele praticamente desconhecido nomainstreamteatral, apesar de ambos os pases terem produzido, comseus teatros experimentais completamente fora da cultura teatral

    dominante , importantssimas contribuies para o ps-dramtico,como o Wooster Group, Richard Foreman, o Thtre de Complicite,recentemente, os processos colaborativos no Reino Unido (Lehmann,1999). Os poucos diretores americanos e britnicos que geralmenteso vistos como adeptos de um modo ps-dramtico e apresentadosem grandes teatros, como Robert Wilson e Katie Mitchell (Roesner,2014), conceberam a maior parte de suas obras recentes o que no de se surpreender no em seus pases nativos, mas na Alemanha,que dispe tanto dos recursos quanto do interesse do pblico fre-

    quentador de teatro em apoiar obras to alheias s convenes.

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    Parece-me que o teatro contemporneo alemo, por ser o beroe o auge do desenvolvimento do ps-dramtico, o melhor cenriopara considerar as atuais, e s vezes contraditrias, implicaes desseconceito no teatro e para procurar desfazer alguns dos fios entrela-ados, aqui e em outros pontos, que parecem estar envolvidos nessaaplicao. Talvez o ponto de partida mais bvio seja um termo funda-mental e muito discutido no teatro moderno alemo, o Regietheater,literalmente teatro de diretor. Utilizado durante o sculo XX, o termofoi aplicado ao trabalho de Max Reinhardt o primeiro diretor areceber tal classificao no incio do sculo. Apesar disso, passou aganhar ainda maior notoriedade a partir do f inal da dcada de 1960,quando uma nova gerao de diretores, liderada por Peter Stein, PeterZadek e Claus Peymann, rompeu com as produes que se prendiams convenes e respeitavam as obras clssicas preferidas dos diretoresda era Adenauer ps-guerra2em prol de obras mais politicamenteengajadas (Carlson, 2009). A gerao seguinte, com destaque paraFrank Castorf no Volksbhne3, apresentou reinterpretaes aindamais radicais e fez do Regietheaterum termo muito mais polmico, talcomo permanece hoje (Carlson, 2009). O termo desconstruo que

    desfrutava de aclamada popularidade na crtica do incio dos anos1990, quando Castorf assumiu relevncia geralmente se aplicavaa seu trabalho e ao de diretores semelhantes (Kennedy, 1993). Essetermo, assim como ps-dramtico hoje, significava vrias coisasdiferentes, de uma espcie de exposio e crtica dos pressupostossobre a estrutura e o contedo poltico velado da obra muitas vezesutilizando estratgias associadas a Brecht a aos olhos da crtica uma humilhao e ridicularizao obstinada e um tanto imaturada tradio artstica.

    Assim como Heiner Mller, muitas vezes considerado um lderentre os dramaturgos ps-dramticos, Castorf foi um artista da Ale-manha Oriental acolhido pelos vanguardistas da Alemanha Ociden-tal, mas que enxergava tanto o Oriente medida que se desenvolviasob o poder sovitico quanto o Ocidente sob o capitalismo comosistemas falhos, tendo ambos fracassado no cumprimento da promessaque um sistema socialista deveria proporcionar. Politicamente, ento,o ps-modernismo na Alemanha est claramente relacionado a umOriente idealizado, mas essa relao tendia a manifestar-se no na

    agenda positiva de algo como o agitprop, mas nas variaes de comen-

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    trios sobre a queda dos supostos sistemas racionais do Oriente e doOcidente, tendo o primeiro afundado em uma depresso irremedivele o ltimo se tornado devoto do materialismo selvagem. Atacar eexpor os pressupostos e as estratgias tradicionais dos textos clssi-cos, fortemente associados ao programa racionalista, era, portanto,realizar um ato poltico. Os membros do pblico que se opunham aessa viso fechada do mundo contemporneo ou que se chocavamcom essa irreverncia a Schiller ou Shakespeare condenavam comopura barbrie ou brincadeira adolescente a mistura que Castorf, suaaluna Andreas Kriegenberg e outros faziam de msicas dos Beatlescom pastelo, ao fsica violenta, culturaspop, quebra da iluso eat mesmo surtos histricos supostamente espontneos dos atores.Especialmente devido influncia de Castorf, esse tipo de teatro,a forma mais extrema do Regietheater, que caracteriza o que hojea maioria dos pblicos alemes chamaria de ps-dramtico. Nor-malmente, ele mistura textos clssicos com todos os tipos de outrosmateriais literrio, documental e comercial, mas principalmentecontemporneo e desconsidera, quase totalmente, a unidade ouconsistncia de estilo dramtico tradicional, seja este textual ou

    performativo.Fundamental para esse conceito a unio do ps-dramtico

    ao conceito de desconstruo teatral de textos clssicos, mas talunio desconsidera grande parte do ps-dramtico, que, seguindo oconselho de Craig, se distancia do texto dramtico tradicional porcompleto. Isso no significa que no exista um texto, mas que podemuito bem ser o que os semioticistas geralmente chamavam de textoperformativo, um texto que se cria na performance. Uma boa partedo teatro experimental dos anos 1960 e 1970 j era ps-dramtica

    trinta anos antes mesmo de o termo ser cunhado, partidria deuma rejeio generalizada de textos dramticos tradicionais e deestruturas narrativas e literrias convencionais em prol do visual edo performativo. Em termos muito gerais, pode-se dividir a experi-mentao ps-dramtica daquele perodo em duas categorias, estandoambas ainda muito presentes no cenrio atual e, em muitos casos,sendo exploradas pelos mesmos artistas e grupos. Primeiro, haviaos artistas individuais independentes os diretores mestres, comoidealizou Craig, eximidos, conforme tem prevalecido na tradio do

    Regietheater, de roteiros pr-existentes, mas criadores de seu prpriomundo teatral completo. O exemplo mais conhecido dessa categoria

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    certamente Robert Wilson, cuja obra Einstein on the Beach, de 1970,continua a ser um timo exemplo do teatro ps-dramtico quasetrinta anos antes da concepo do termo. Outro grande exemplo Richard Foreman, cujo primeiro trabalho, Angelface, surgiu quasena mesma poca em que o de Wilson, em 1968. Esses artistas aindaesto bastante envolvidos com a vanguarda contempornea, tendoambos iniciado novas produes dentro dos ltimos dois meses,Wilson em Berlim e Foreman em Nova Iorque.

    Nas dcadas de 1960 e 1970, entretanto, havia uma forma de

    teatro ps-dramtico ainda mais comum que era bastante compatvelcom o conceito de ps-dramtico em si em termos filosficos. Nocomeo, geralmente a chamavam de criao coletiva e, a partir doincio dos anos 1990, ficou mais conhecida como teatro colaborativo.Embora os dois termos tenham conotaes diferentes, eles comparti-lham uma estratgia bsica fundamental: a de que a performance sedesenvolve no por meio da viso artstica de um nico mestre, maspor meio do trabalho coletivo de um grupo, composto, em algunscasos, somente por atores e, em outros, por atores e escritores. Hojeesses grupos geralmente so ainda mais variados, reunindo atores edanarinos ou atores e vrios membros da produo, incluindo ostradicionais cengrafos, os criadores de vdeo e filme e os designersdecomputao. Esse tipo de trabalho foi liderado pelo Living Theatre,cuja influncia na Amrica e na Europa durante os anos 1960 foienorme. O Performance Groupde 1967, de Nova Iorque, que evoluiupara o Wooster Groupem 1980, foi o exemplo americano mais impor-tante, enquanto o People Show (1966) e o Welfare State(1968) foramos principais na Inglaterra. Entre as companhias mais importantes naFrana e na Alemanha desse perodo esto as de Ariane Mnouchkine

    e Peter Stein, ambas estabelecidas como coletivos, embora no finalse tenham transformado em teatros de diretor e se afastado de obrascriadas coletivamente, como 1789, de Mnouchkine, e The AntiquityProject, de Stein, encenadas em 1974.

    A partir da dcada de 1960, os teatros colaborativos baseados emgrupos e os coordenados por diretores que podem ser caracterizadoscomo ps-dramticos passaram a demonstrar extremo interesse emuma abordagem especfica de produo que parece estar diametral-mente oposta a um dos princpios bsicos do ps-dramtico, isto ,

    o foco no corpo performativo, mas no mimtico. A abordagem des-

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    construtiva de uma srie de tericos modernos encorajou a utilizaode outras mdias como estratgia de subverso de textos clssicos.Essa ideia no nada nova, claro. Imediatamente, vem mente autilizao de filmes e projees por diretores como Piscator e Brechtpara cumprir uma meta semelhante, subvertendo, assim, pressupostospolticos ao invs de estticos ou narrativos. O constante avano datecnologia visual do final do sculo XX contribuiu significativamente de novo, principalmente na Alemanha para a inspirao necessriapara romper com a performance teatral tradicional e seus mtodosmimticos ao introduzir dimenses visuais em alternncia, tanto emrelao ao tempo quanto ao espao. Embora se tenha continuado ausar trechos de filmes em larga escala no trabalho de vrios diretoresexperimentais do sculo XX, acrescentou-se ao campo visual umanova dimenso de grande destaque, a introduo de vdeos ao vivo.Castorf foi um dos primeiros a aplicar essa tcnica, a mostrar aopblico os bastidores ao vivo e, mais tarde, medida que a tecnolo-gia avanava, a projetar esse vdeo em telas grandes acima do palco,revelando a criao das imagens ao trazer para o palco cmeras devdeo portteis para que o pblico pudesse, ao mesmo tempo, ver a

    imagem e seu processo de captura. Ainda que essa espcie de misturade ao ao vivo com sua reproduo simultnea em vdeo estivesseassociada principalmente ao Volksbhne, em Berlim, e aos direto-res Castorf e Ren Pollesch do incio metade da dcada de 1990(Carlson, 2009), ela se tornou uma das formas mais conhecidas deteatro ps-dramtico.

    Um dos perigos inerentes ao emprego de qualquer termo dacrtica a apropriao deste por estudiosos, artistas e uma tendn-cia crescente hoje vrios interesses comerciais, dentre eles editores,

    produtores e publicitrios, com a consequncia de que, quanto maispopular se torna o termo, mais difcil se torna detectar um padroem meio a seus diversos usos. Essa lgica certamente se aplicou aochamado teatro do absurdo, aplicou-se tendncia passageira (pelomenos na Europa Continental) do conceito de teatro da desconstru-o e claramente j se aplica ao teatro ps-dramtico. Evidentemen-te, Lehmann via como aspectos fundamentais do ps-dramtico arejeio total do mimtico e a busca pelo puramente performativo.Em compensao, quando nos voltamos s produes multimdia de

    Castorf e Pollesch da dcada de 1990 ou s obras mais recentes deIvo van Hove e Katie Mitchell (Trencsnyi, 2015; Woycicki, 2014),

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    ambos figurando entre os atuais artistas considerados ps-dramticos, percebemos que, mesmo em exemplos to emblemticos, o centrocede.

    A ttulo de ilustrao, tomemos como exemplos obras recentesde dois importantes diretores europeus. Ambos iniciaram sua carreirano incio dos anos 1990, e, embora van Hove o que era tpico de di-retores da Europa Continental seguisse as convenes muito menosdo que Mitchell, que era famosa por suas produes cuidadosamentelapidadas e pela abordagem psicolgica stanislavskiana, nenhum dos

    dois contava como diretores ps-dramticos naquela poca. Eles to-maram esse rumo por volta de 2007, mais notadamente pelo amplouso de vdeos ao vivo, bem maneira de Castorf na dcada anterior,para oferecer ao pblico mltiplas perspectivas da ao. Em nenhumdos casos rompeu-se com o texto dramtico tradicional: a primeiraobra importante de van Hove nessa direo sua mais famosa athoje foi Roman Tragedies, de 2007, que uniaJlio Csar,Antnioe Clepatrae Coriolanoem uma produo de durao muito longaque se manteve to fiel ao original quanto a maioria das encenaesque se prendiam s convenes em termos de texto e performancemimtica. Desde ento, o espetculo tem realizado uma turn inter-nacional e, no ano passado, teve sua primeira produo americana,encenada na Brooklyn Academy of Music, em Nova Iorque, onde foiaclamado como um exemplo extraordinrio de uma nova subcategoriado ps-dramtico, o teatro imersivo, sobre o qual falarei mais adiante.

    A primeira grande incurso de Mitchell na produo com m-dias mistas tambm veio em 2007, com sua encenao deAs Ondas,de Virginia Woolf, a qual ainda considerada uma das produesmais inovadoras do teatro britnico atual. Desde ento, Mitchell

    trabalha quase exclusivamente com o estilo que estabeleceu em suaproduo, mais recentemente em Night Train, baseada em uma novelapotica alem que estreouem outubro de 2012, no Schauspielhaus deColnia, na Alemanha, alm de ter sido selecionada como uma dasmais extraordinrias produes alems para o Theatertreffen anual,em Berlim. Essas obras de Mitchell so desconstrues quase nosentido literal do termo no dos textos literrios ou dramticosencenados, aos quais ela foi rigorosamente fiel, mas do processo derepresentao em si. Sua tcnica, seja qual for a pea, permanece a

    mesma. O pblico assiste a um vdeo ao vivo sem interrupes

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    projetado acima do palco , que pode ser considerado uma filmagemum tanto convencional do texto em questo. Digamos que a cenamostre a herona preparando-se para dormir em sua cama em umvago de trem, com uma paisagem escura passando pela janela. Ofilme acima parece perfeitamente realista, enquanto no palco abaixovemos que o vago, na verdade, o corte de um set de filmagem aberto ao pblico e s cmeras e, ao mesmo tempo, a paisagem emmovimento projetada em uma tela atrs da janela do vago falso.Todo o nvel inferior do palco formado por pequenos cubculos querepresentam partes do trem e por pequenos elementos (paraflashbacksfora do trem) que so usados durante as produes. Quando estofora da tela, vemos os atores saindo da personagem, descansando oupreparando-se para entrar no local da performance. uma tcnicadiferente da de Castorf, que nunca procurou criar uma linha cont-nuarealistade performance em seus vdeos (embora, s vezes, tenhaestendido esse tipo de sequncia), mas os usou principalmente paraoferecer perspectivas alternativas ao pblico. Dessa forma, o trabalhomultimdia de Mitchell faz uma contribuio bastante questionvels ideias convencionais do ps-dramtico. O texto dramtico perma-

    nece totalmente intacto e, na verso em vdeo desse texto, totalmentepreso s convenes em termos de mimese. Ao mesmo tempo, naao simultnea abaixo, revela-se que ambos o texto e a mimese sototalmente construdos. A obra como um todo, portanto, no tops-dramtica, mas sim ps-ilusionista, que me parece ser um termomelhor para essa obra.

    Em comparao s tcnicas de Mitchell, as de van Hove somenos consistentes e mais diversificadas a cada produo. Em The

    Misanthrope, que estreou em Nova Iorque, em 2007, van Hove, assim

    como Mitchell, enfatiza a natureza construda da performance apre-sentada, mas ao avesso. Aqui, a produo no palco era tradicional nosentido mimtico embora criada em um cenrio moderno com ospersonagens de Molire, membros da sociedade moderna, falando aocelular , e o vdeo era usado como contraponto ao mundo mimtico,mostrando-nos, por exemplo, cenas dos bastidores em que os atores,fora da personagem, relaxavam ou se maquiavam, como o fazem noprprio palco nas produes de Mitchell. Novamente, nem o textonem a mimese, como afirma Lehmann, so abandonados, mas a

    iluso de realidade transparente que ambos assumem do teatro con-vencional exposta como uma construo. Sem muita dificuldade e

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    com bastante exatido, poderamos descrever a situao como umaalienao brechtiana ou uma desconstruo derridiana, expondocomo a iluso criada ao invs de cham-la de ps-dramtica, masisso simplesmente mostra o quo vago o termo.

    As Roman Tragedies do abertura para outra perspectiva dasconfiguraes contemporneas do ps-dramtico. Seu uso basilarde vdeo est muito mais prximo do que Mitchell faz do que nocaso de The Misanthrope, na medida em que apresenta uma narra-tiva visual uniforme e consecutiva, como a filmagem de uma pea

    shakespeariana convencional que s vezes uniforme , mas comoMitchell, mostrando como um efeito cnico especfico atingido demaneira mecnica. Uma caracterstica muito mais importante dessaproduo, entretanto, o modo como o pblico se envolve. Se a obrapode ser chamada de ps-dramtica, como geralmente acontece, no nem porque abandona a mimese ou a f idelidade ao texto literrio,como sugere Lehmann, mas porque desafia a relao espacial entreperformance e pblico que, por muito tempo, foi aceita na tradi-o do teatro dramtico. Durante as cenas de abertura das RomanTragedies, essa relao persiste, com o pblico sentado na plateia defrente para o palco, apesar de o palco tambm ter grandes telas devdeo mostrando a ao. No muito depois, o pblico convidado,se desejar, a subir no palco e a compartilhar o espao da performance(no literalmente, porm. Eles no podem, de fato, entrar diretamenteem uma cena em andamento, mas podem reunir-se ao redor paraassisti-la de ngulos diferentes, inclusive dos vrios sofs e cadeiras nopalco, que remetem a um espaoso saguo de hotel). Devido ao usode diversas partes do palco e aglomerao de espectadores em umcrculo ao redor dos performers, os que ficam na plateia geralmente

    no conseguem ver o que est acontecendo no palco, exceto pormeio dos monitores de vdeo. Alm disso, h bares abertos dos doislados na rea fora do palco, para que os espectadores possam fazerum lanche ou tomar uma bebida, ficando de costas para o palco,mas, novamente, os monitores acima do bar permitem que tenhama mesma viso do vdeo da performance que os membros da plateia.

    At onde sei, nos Estados Unidos, os pblicos, crticos e estudio-sos nunca se referiram a essa produo como ps-dramtica. Quasede forma universal, o termo usado era imersivo, que, no momento,

    de longe o desafio mais popular prtica teatral tradicional em Nova

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    Iorque. O termo imersivo chegou academia a partir do mundo datecnologia computacional, em que, por muito tempo, descreveu avisvel imersode um sujeito em um mundo digital virtual.

    No teatro anglo-saxnico, o termo ganhou notoriedade graas companhia britnica Punchdrunk, formada em 2000 especificamentepara criar um novo tipo de teatro em que se constroem ambientesmltiplos onde o pblico tem a liberdade de ir e vir vontade. Trata-se de um desenvolvimento mais evidente do estilo britnico inicialchamadopromenade theater,que tambm inclua cenas em inmeros

    locais, mas no qual os membros do pblico eram guiados de um localpara outro de forma preestabelecida.Sleep No More, a oitava produo da Punchdrunk, de 2003,

    um ambiente multiespao que usa motivos, personagens e algunsmateriais textuais deMacbeth, de Shakespeare, e Rebeca, de AlfredHitchcock. Ela se tornou, de longe, a produo mais influente ebem-sucedida da companhia. Foi reencenada em Boston, em 2009,e novamente em 2011, em Nova Iorque, onde ainda est em cartaze, sem dvida, permanece o espetculo de teatro experimental mais

    popular da cidade. De fato, ele se tornou praticamente uma produ-o-culto, com vrios membros do pblico retornando dezenas devezes, apesar de o ingresso custar US$ 95, preo que compete com odos principais teatros da Broadway. Desde ento, o termo imersivo,introduzido em Nova Iorque pela Punchdrunk, tem sido aplicado adezenas de produes experimentais alis, a praticamente qualquertipo de produo que rejeita a separao convencional entre palcoe pblico. H, inclusive, um guia virtual para o teatro imersivo emNova Iorque, o qual, no incio de junho, listou vinte produes quetomam essa descrio para si. Teatro imersivo4tambm comeou a

    circular na Frana, assim como imerso teatralna Alemanha, maspassou a ser visto, em grande parte, como o maior desafio ao teatrodramtico tradicional em Londres e Nova Iorque.

    Af irma-se, em grande medida, que o teatro imersivo inverteuas tradicionais relaes de poder entre o performer e o pblico,colocando este sob controle da produo. Dessa forma, o pblicoatende, ao nvel mximo, viso de espectador emancipado de Jac-ques Rancire, a qual surgiu em 2007 (Rancire, 2007), o momentoideal para que fosse utilizada como principal embasamento terico

    para produes como Sleep No More, da Punchdrunk. Alis, quase

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    nenhum teatro dito imersivo funciona desse modo. Geralmente, taisprodues tratam o pblico de uma das seguintes trs formas. Emprimeiro lugar, dentre as mais conservadoras, esto aquelas produesque, na verdade, deveriam ser chamadas de produes dopromenadetheater, em que um pblico pequeno levado a uma srie de salas normalmente em um nico prdio, em ordem preestabelecida ,nas quais se compartilha o espao com atores que encenam umapea com texto de um modo mimtico convencional. Em segundolugar, esto produes como Roman Tragedies, nas quais se realizauma performance mimtica com texto em um ou mais locais maisou menos contguos , e o pblico livre para transitar e observarou no a performance em andamento como desejarem. Em terceirolugar, esto produes como Sleep No More, as quais no dispemde nenhuma performance padro com texto, mas sim de uma cole-o de espaos decorados pelos quais o pblico livre para passearcomo quiser. Alguns espaos so vazios, mas outros contm atoresque oferecem fragmentos de material textual. Tais aes geralmentecontinuam como se os espectadores no estivessem ali, mas de temposem tempos um ator puxa um membro do pblico para um espao

    privado e os dois tm uma conversa ntima. Nem todos experienciamisso, e os que o fazem no podem nem iniciar nem mudar a experi-ncia. O ator segue sob controle total.

    Um dos principais grupos de performance europeus, o Signa,fundado por performers da ustria e da Sucia, aproxima-se muitomais de performances realmente emancipadas e, alis, de uma apre-sentao realmente ps-dramtica, vide produes como Ruby TownOracle, apresentada em Colnia e Berlim, em 2007 e 2008. Para isso,o Signa construiu um pequeno vilarejo em um pas supostamente

    fronteirio (o pblico precisava apresentar passaportes para entrar),com vinte e duas casas habitadas por cerca de quarenta atores. Em-bora os atores compartilhassem um histrico coletivo consensual civil e religioso , no havia histria nem texto, e os membros dopblico eram livres para perambular e interagir com os performers vontade, seguindo ou no a histriado vilarejo como quisessem.Em Berlim, o vilarejo ficou aberto por nove dias consecutivos, e osespectadores iam e vinham como desejassem, construindo sua prpriaexperincia a partir da matria-prima do local (Carlson, 2014). Na

    Alemanha, a obra no foi chamada de imerso teatral um termono muito empregado no pas , mas sim deperformance-instalao,

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    o que a situou como o equivalente teatral da arte de instalao ouenvironmental art, uma forma que se desenvolveu nos anos 1970 eque encorajava os espectadores a movimentarem-se no interior deobras artsticas tridimensionais para que pudessem experienci-las.

    Essas instalaes se aproximam do ps-dramtico tanto aoabandonar o texto convencional quanto ao conferir aos espectadoresum controle muito maior sobre a moldagem e a experincia da per-formance, mas ainda se atm como tem sido quase todo o teatrodito imersivo ao que alguns chamaram de principal inimigo do

    ps-dramtico, a representao em si. Desde Aristteles, a mimese vista como o centro da arte teatral, e a excluso do texto controladorno acarreta a excluso do mimtico tambm, como demonstra RubyTown Oracle, contanto que os arredores fsicos e, mais importantedo que isso, o corpo do ator ainda sejam interpretados de modomimtico. Para abordar o ps-dramtico devidamente, esclareceLehmann, o corpo deve libertar-se das amarras do personagem mi-mtico, tradicionalmente decorrentes do texto dramtico, e firmar-secomo puramente performativo.

    No teatro contemporneo, isso se manifesta de forma maisevidente, eu diria, atravs da crescente importncia principalmentena Alemanha, mas tambm nos Estados Unidos e nos demais pasesda Europa, em menor escala da incorporao de materiais, hu-manos e no humanos, da vida real na performance. Tire a mimesee um texto narrativo e tudo o que resta para impedir que o teatrops-dramtico se desfaa e vire a matria-prima da vida cotidiana o fato de que ele apresentado ao pblico em um paradigma te-atral ou performativo. Ele , adotando o termo que Umberto Ecosugeriu em um dos primeiros ensaios modernos sobre a semitica

    do teatro, ostentado (Eco, 1977). Alis, a teoria semitica j previagrande parte do que agora se prope como teoria ps-dramtica nadistino geralmente feita entre as aes performativas e narrativasdo teatro, como sugeriu Andre Helbo (Helbo, 1987), ou entre o se-mitico e o fenomenolgico, como Bert States denominou (States,1985), sendo este ltimo termo, em ambos os casos, equivalente aoque hoje, em essncia, o ps-dramtico. Ocorrida nos trinta anosde diferena entre esses tericos e Lehmann, a principal mudanadiz respeito ao fato de que, enquanto os semioticistas viam o teatro

    como o que States chamava de arte binocular, constituda por uma

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    mistura entre o performativo e o narrativo, o teatro ps-dramticode Lehmann procura abandonar por completo o mimtico em proldo estritamente performativo.

    Lehmann ainda se encontra muito sob a sombra da estticatradicional para sugerir que, quando ele fala da nfase na perfor-mance, no corpo vivo e no mimtico e de suas inter-relaes como material que o cerca, persiste a ntida impresso de que esse corpoest realizando algo especial, algo virtuosstico nesse caso, o teatrops-dramtico seria, de fato, essencialmente inconfundvel para adana tradicional. Grande parte da crtica formalista apoiaria essaopinio. Quase quarenta anos atrs, Eco (1977) e outros autoresapontaram, no entanto, que o que faz uma ao ser recebida comoteatro por um pblico no nenhuma caracterstica da ao em si,como o virtuosismo, mas simplesmente o fato de que ela rotuladaou ostentada como teatro. Um exemplo famoso (decorrente de C. S.Pierce) utilizado por Eco o de um beberro exposto em uma plata-forma prxima ao Exrcito de Salvao. Essa apresentao pode muitobem ser tomada como um exemplo puro do teatro ps-dramtico.O beberro o que assim, a mimese anulada e definitivamente

    no h narrativa nem texto. Eco afirma, no obstante, que o homem como uma semiose, argumentando que o fato de ter posicionadoo homem prximo ao Exrcito de Salvao converteu-o em um sm-bolo de embriaguez, suplicando por sobriedade. Um exemplo maispuro foi proposto por talvez o melhor fenomenlogo do teatro doltimo sculo, Bert States, em seu clssico ensaio The Dog on theStage(States, 1983). O canalha do palco, assim como Launce emTwo Gentlemen of Verona, est destitudo at mesmo da bagagemsemitica do beberro de Eco. Ele no s no mimtico, como

    tambm no semitico, ou seja, ele simplesmente faz seja l o quefizer completamente livre de texto, ou melhor, ele cria um tipo detexto a partir de qualquer coisa que fizer. Esse, eu diria, o teatrono dramtico em sua forma mais pura. Somente se tornou teatrodevido a sua rotulao como teatro.

    Essas incorporaes do mundo real, alis, datam de umapoca muito anterior na histria do teatro, mas, nos ltimos anos,testemunhou-se uma incurso sem precedentes do real no espaoteatral. Embora Lehmann no d muita ateno a esse tipo de per-

    formance, considero-a, como o canalha de Bert States, a forma maissurpreendente e completa de performance ps-dramtica no teatro

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    contemporneo. Nos Estados Unidos, o principal pioneiro na formade teatro que atualmente seria chamada de ps-dramtica foi certa-mente o Wooster Groupnos anos 1960, o qual desafiou a mimese, arepresentao e a textualidade tradicionais em prol da experinciafsica direta. Em suas turns europeias, o grupo mobilizou-se bastantepara encorajar obras desse tipo. Mais tarde, de forma muito diferente,o grupo explorou vrias preocupaes da performance semelhantes. Apresena fundamental de Spaulding Grey e suas performances auto-biogrficas foi especialmente importante para o desenvolvimento deuma tradio de performance ps-dramtica nos Estados Unidos dofinal do sculo XX, a qual foi fortemente associada aos teatros gay efeminista, em que os artistas rejeitavam a representao tradicionalao falarem sobre suas vidas em seus prprios corpos.

    No sculo XXI, as performances que utilizavam materiais nomimticos tornaram-se uma poro significativa da vanguarda emdiversos pases, mas talvez principalmente na Alemanha. Talvez ogrupo mais conhecido seja o Rimini Protokoll, formado em 1999e dedicado criao de obras baseadas em materiais no dramti-cos provenientes do mundo real que o cerca (Malzacher; Dreyesse,2008). Com exceo de suas fontes presas s convenes, o grupo conhecido, sobretudo, por colocar no palco no atores, mas pessoasde fora da cena teatral encontradas por meio de vrios e, muitasvezes, elaboradssimos processos de seleo de elenco. A apresen-tao dessas f iguras sofreu enormes mudanas ao longo do trabalhodo grupo, mas ela invariavelmente no mimtica e quase sempre faz uso, em larga escala, de histrias e experincias reais da vida dosperformers ao invs de qualquer texto pr-existente externo. Aqui,a performance quase nunca implica habilidade virtuosstica como

    geralmente se sugere quando Lehmann fala do lado fsico do ps-dramtico , mas, ao contrrio, implica a mera apresentao de umcorpo vivo. O verdadeiro inimigo do ps-dramtico o mimtico.

    Talvez as mais surpreendentes e, para alguns membros dopblico, as mais perturbadoras performances autobiogrficas con-temporneas levem o ps-dramtico em uma direo que Lehmannnunca previu. Refiro-me ao trabalho de performers com deficinciasfsicas ou mentais. O teatro com pessoas com deficincia surgiu noEstados Unidos no final dos anos 1970, com companhias tanto de

    dana quanto de teatro dedicando-se a buscar formas de incorporar

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    performers deficientes em suas obras. Com a ascenso da performanceautobiogrfica no final do sculo, um grande nmero dessas obraspassou a ser a apresentao dos prprios deficientes ao invs da incor-porao destes em outras obras. Um excelente exemplo atual disso a obra Disabled Theatre, de 2012, idealizada pelo coregrafo francsJerme Bel. Durante a dcada de 1990, Bel tornou-se um dos lderesdo movimento da nova dana na Frana, o qual, em muitos aspec-tos, o equivalente na dana do ps-dramtico no teatro, baseadona rejeio da mimese, de um texto pr-existente ou do vocabulriotradicional da dana. Desde 1999, Bel cria obras principalmente com

    performers deficientes. Sua explicao, dada em uma entrevista em2012, fundamentalmente ps-dramtica. Atores deficientes, disseele, [...] no tentam ser nada, eles so (Bel, 2012 apud Pawelke,2012, n.p.). Logo, so ideais para a meta estabelecida em todas assuas obras, que a de ir alm da representao. Criado juntamentecom onze atores de uma companhia de Zurique todos portadoresde sndrome de Down , seu Disabled Theatre, de 2012, na maiorparte, consiste na apresentao individual de cada ator para o pblicoe na discusso de sua vida e deficincia.

    Como j assinalei, no raro o Rimini Protokoll rene pessoasde vrios tipos em uma srie de produes que, como as de Bel, pro-curam ir alm das representaes. Hoje, na Europa e nos EstadosUnidos, obras semelhantes continuam a ser produzidas por algunsdos grupos experimentais atuais mais conhecidos, como o Gob Squad,o She She Pope o Nature Theatre of Oklahoma(Bogusz, 2007; Read,1993) tendo todos participado do Theatertreffenanual de Berlim, e a Alemanha mantm o ttulo de centro desse tipo de experimen-tao. Remote Berlin, recente produo ps-dramtica do Rimini

    Protokoll que estreou na primavera de 2013 , d seguimento aum tipo especfico de teatro ps-dramtico que o grupo, de vriasformas, havia utilizado anteriormente e que sugere como at mesmoo corpo performativo pode ser eliminado do teatro ps-dramtico.Em diversas produes, como Remote Berlin, os membros do pblicorecebem fones de ouvido e orientaes para perambular pelas ruas dacidade, sozinhos ou em grupos, guiados por instrues distncia.

    Evidentemente, quase todas as pessoas e objetos pelos quaiseles passam no so planejados como parte da produo (embora

    sempre haja a possibilidade de que alguns sejam); contudo, eles sorotulados ou teatralizados pela situao da performance. Em um

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    dos momentos mais memorveis de Remote Berlin, o pblico (cercade vinte e cinco pessoas) se rene no final de uma passagem no S--Bahn5e encorajado a assistir aos transeuntes nesse espao e noscorredores adjacentes, como se fossem atores em uma performance.Alguns desses atoresignoravam o pblico, enquanto outros acenavamou at mesmo tiravam fotos da multido de espectadores parados queusavam fones de ouvido conectados a seu celular. Lembrei-me de umaexperincia de performance do artista Robert Whitman, realizadaem Nova Iorque, em 1976, chamada Light Touch, em que o pblicose acomodava em arquibancadas em um armazm e depois se abriauma cortina que escondia uma porta de carga, revelando-lhe a rual fora, como se fosse um teatro.

    Mais recentemente, nos Estados Unidos e na Europa, vriascombinaes de environmental theater tambm chamado desite--specific,promenadee imersivo colocaram o pblico em ambientescalculadamente ambguos, que no eram seja parcial ou totalmente constitudos nem de materiais no mimticos aleatrios, como emRemote Berlinou Light Touch, nem de materiais no mimticos cui-dadosamente selecionados, como em Sleep No More. Ao invs disso,elas apresentavam misturas inseparveis dos dois conjuntos, comose pde ver na performance de Reza Abdoh, Father Was a Peculiar

    Man, realizada em vrios quarteires do Meatpacking District6deNova Iorque, em 1990, ou na performance de 2009 do The FoundryTheatre, The Provenance of Beauty, em que os membros do pblicopasseavam pelo sul do Bronx em um nibus turstico. No caso dessasltimas performances, algumas das pessoas e cenas que se observavameram, na verdade, planejadas como parte da experincia, enquantooutras no, e geralmente o pblico tinha pouca informao sobre

    qual era qual. No era tanto uma questo de ir alm da representa-o, mas sim de testar os limites entre a representao e a realidade,que penso ser uma melhor descrio da dinmica de tais obras. No mais suficiente, penso, dizer que o inimigo do ps-dramtico arepresentao. O verdadeiro inimigo a estabilidade do mimtico.O ps-dramtico, na verdade, no nem mimtico nem no mim-tico. o no mimtico rotuladocomo mimtico. Retire o rtulo eno s a mimese desaparece, mas tambm o teatro em si, e o queresta a vida.

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    Notas1Uma verso preliminar de outra traduo deste texto em portugus foi publicada coma autorizao do autor em: CARREIRA, Andr; BAUMGARTEL, Stephan (Org.). NasFronteiras do Representacional. Ref lexes a partir do termo ps-dramtico. Florianpolis:Letras Contemporneas, 2014. P. 24-36.2N.T.: Konrad Adenauer (1876-1967) foi chanceler da Alemanha Ocidental de 1949 a1963. Adenauer defendia que, para reconciliar-se com pases inimigos durante a SegundaGuerra Mundial, as naes europeias deveriam unir-se e cooperar nas relaes poltico-

    econmicas como garantia de paz no continente.3Literalmente, teatro do povo, o Volksbhne um dos principais teatros de Berlim, aclamadopela crtica e conhecido por colocar em cartaz obras provocantes e experimentais.4N.T.: no original, theatre immersive.5N.T.: sistema de trens rpidos que cruza toda a capital alem.6N.T.: no original, meat-packing district, bairro de Manhattan assim nomeado devido grande quantidade de matadouros e fbricas de processamento e embalagem de carnes noincio do sculo XX. Atualmente, um centro de restaurantes luxuosos, lojas de grife ecasas noturnas.

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    Universidade de Atenas e prmios como o Career Achievement Award, da Associaode Teatro no Ensino Superior (ATHE), o Distinguished Scholarship Award, da Socie-dade Americana de Pesquisa em Teatro (ASTR), o George Jean Nathan Awardporseu trabalho como crtico teatral e o Calloway Prizepor seus ensaios sobre teatro. autor de vinte e um livros na rea de Estudos Teatrais.E-mail: [email protected]

    Este texto, traduzido por Luiz Lendengues, sob a superviso de Valria Silveira Bri-solara, e revisado por Marcelo de Andrade Pereira, tambm se encontra publicadoem ingls neste nmero do peridico.

    Recebido em 23 de fevereiro de 2015Aceito em 30 de maro de 2015