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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO SÓCIO-ECONÔMICO DEPARTAMENTO DE SERVIÇO SOCIAL FABIANA MENDES DE CARVALHO O EXERCÍCIO PROFISSIONAL DO SERVIÇO SOCIAL NO SETOR DE CAPTAÇÃO DE DOADORES – HEMOSC DE FLORIANÓPOLIS: COTIDIANO E PROCESSO DE TRABALHO Florianópolis 2008/1

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO SCIO-ECONMICO

    DEPARTAMENTO DE SERVIO SOCIAL

    FABIANA MENDES DE CARVALHO

    O EXERCCIO PROFISSIONAL DO SERVIO SOCIAL NO SETOR DE CAPTAO DE DOADORES HEMOSC DE FLORIANPOLIS: COTIDIANO E

    PROCESSO DE TRABALHO

    Florianpolis 2008/1

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    FABIANA MENDES DE CARVALHO

    O EXERCCIO PROFISSIONAL DO SERVIO SOCIAL NO SETOR DE CAPTAO DE DOADORES HEMOSC DE FLORIANPOLIS: COTIDIANO E

    PROCESSO DE TRABALHO Trabalho de Concluso de Curso apresentado ao Departamento de Servio Social da Universidade Federal de Santa Catarina para a obteno do ttulo de Bacharel em Servio Social sob orientao da Prof. Dr. Simone Sobral Sampaio

    Florianpolis 2008/1

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    FABIANA MENDES DE CARVALHO

    O EXERCCIO PROFISSIONAL DO SERVIO SOCIAL NO SETOR DE CAPTAO DE DOADORES HEMOSC DE FLORIANPOLIS: COTIDIANO E

    PROCESSO DE TRABALHO

    Trabalho de Concluso de Curso aprovado como requisito para obteno do ttulo de Bacharel no Curso de Servio Social, do Departamento de Servio Social, do Centro Scio-Econmico, da Universidade Federal de Santa Catarina.

    BANCA EXAMINADORA

    _____________________________________________ Orientadora

    Prof. Dr. Simone Sobral Sampaio

    ______________________________________________ 1o Examinador

    Prof. Dr. Helder Boska M. Sarmento

    _________________________________________________ 2 Examinadora: A. S. Rosa Deola

    Florianpolis, agosto de 2008

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    Aos que desejam sempre discutir trabalho profissional Tudo est cheio desse algo que falta (M. Aydos, 1991).

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    Agradecimentos Antes de tudo, vida. Agradecimento carinhoso s pessoas que compartilharam comigo as suspenses do cotidiano nestes anos de academia: tais suspenses produziram em mim um retorno cotidianidade de uma pessoa modificada, por possibilitar o que descobri ser o alcance conscincia humano-genrica. Nos momentos de cincia: Aos professores que construram comigo o saber e o fazer profissional, bens preciosos que marcaram traos especiais na minha vida. Com um carinho especial para Prof. Maria Teresa dos Santos, Prof. Claudia Mazzei Nogueira, Prof. Queli Flach Anschau, Prof. Rosana Sarmento e Prof. Vnia Manfroi; s colegas, algumas agora Assistentes Sociais, que compartilharam comigo a descoberta de um outro mundo possvel: Jaqueline Meggiato, Patrcia Gasparetto, Diane Balbinot e Simone Dalbello; Com carinho mais que especial Francielle F. S. Felix, por compartilhar comigo tardes de estudo, regadas a muita psicologia e sono de nenm e admirvel Mailiz G. Lusa, exemplo a ser seguido; Simone Sobral por partilhar comigo o desafio de refletir sobre o cotidiano e o exerccio profissional; ao Prof. Dr. e Assistente Social Helder Sarmento pela disponibilidade em atender ao convite de participar da banca de TCC. Nos momentos de trabalho: s Assistentes Sociais do Setor de Captao de Doadores do Hemosc pelo partilhar e construir um trabalho rico em compromisso e carinho. Minha sempre presente admirao e meu agradecimento por serem parte fundamental desta construo; Leatrice Kowalski por ter cedido, carinhosamente, a imagem da descoberta da realidade expressa no miolo da flor; Rosane Pereima pelo convite, num momento de (in)deciso, para estagiar no Hemosc; Marins Leonel, agora nos vos para mais uma conquista expressa no curso superior de Direito e Rosa Deola, por fazer parte desta minha histria em vrios momentos; Aos profissionais do Setor de Cadastro de Doadores: Marilenes, Juara, Lourdes, Waldir e Pablo, pelo carinho de me receberem com admirao;

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    assistente social Flvia Maria de Oliveira, agora especialista em EaD Denise Bunn e ao meu eterno brao direito, ou esquerdo, Dilton Ferreira Jnior, por compartilharem comigo o prazer de trabalhar com a democratizao da educao. Nos momentos de arte: Aos amigos, prximos e distantes, que fazem parte da minha vida e fazem da amizade uma arte: Harumi, Cristina, Heloisa, Karina, Adriana, Aldo, Preta, Daniel, Cesar, Patrcia, Luciana Santos, Sandra e Patrcia, primas-amigas. Um agradecimento especial para Ana Maria, pela presena carinhosa nos momentos da nossa vida. Nos momentos de moral: Ao meu irmo Cassiano, por fazer parte da minha vida, compartilhar um amor incondicional e marcar com seu sorriso a nossa histria; Aos meus cunhados Elaine, Moiss e Mayara, pelo exemplo de unio, de luta pelos objetivos, superao das dificuldades e alegria de compartilhar conquistas; minha me, Maria do Carmo que, mais do que ningum, soube utilizar destas suspenses para me tirar da cotidianidade. Todos os dias voc consegue um pouco mais. Hoje voc esta pessoa linda. Ao Fernando pela descoberta de que o amor construdo no dia-a-dia e que vale a pena andar lado a lado. Ao Olavo, pequeno grande homem da minha vida, por renovar em mim o prazer da alegria simples, do chamego, da risada pura. Voc a descoberta da luz na minha vida! Vocs sempre estaro presentes no meu corao!

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    Se entendermos que o Servio Social uma especializao do trabalho, demarcamos que h uma estreita relao entre profisso e realidade. Nesta tica, a prtica profissional no algo que se coloca parte dos processos macroscpicos

    que atravessam a sociedade contempornea, seja em relao ao mundo do trabalho, a alteraes nas relaes Estado-sociedade-mercado, s novas

    expresses no campo da cultura e nas relaes de poder. Essas mediaes permitem compreender a prtica profissional inserida num processo de trabalho,

    bem como sua interconexo com a prtica da sociedade. (I. Simionatto, 1998)

  • 8

    RESUMO Este Trabalho de Concluso de Curso tem como objetivo refletir, no cotidiano, como se desenvolve o exerccio profissional das Assistentes Sociais no Setor de Captao de Doadores SCD do Hemosc em Florianpolis/SC, no intuito de contribuir para a discusso do processo de trabalho do Servio Social. Para tanto, se faz um breve resgate quanto politizao do sangue na sociedade brasileira e a contextualizao do Centro de Hematologia e Hemoterapia de Santa Catarina Hemosc, instituio em que as assistentes sociais trabalham com a captao de doadores. Na segunda seo, aborda-se o essencial em relao ao significado do sangue, a moral construda em relao doao e aponta-se, tambm, a idia de cotidiano como espao que possui um duplo sentido. A terceira seo aborda o processo de trabalho das Assistentes Sociais, as narrativas trazidas sob forma de textualizao e as reflexes acerca dos eixos propostos para este Trabalho. Finalizando, apresentam-se as consideraes finais sobre as possibilidades de tratar a doao de sangue como direito sade, pautado num compromisso de conquista da cidadania. Palavras-Chaves: Servio Social, doao de sangue, educao em sade

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    LISTA DE ABREVIAES CEPON Centro de Pesquisas Oncolgicas

    CHC Centro Hemoterpico Catarinense

    FAHECE Fundao de Apoio ao Hemosc e Cepon

    HEMOSC Centro de Hematologia e Hemoterapia de Santa Catarina

    PE Projeto Escola

    PNDVS Programa Nacional de Doao Voluntria de Sangue

    POP Procedimento Operacional Padro

    Pr-Sangue Programa Nacional de Sangue e Hemoderivados

    RDC Resoluo da Diretoria Colegiada

    SBHH Sociedade Brasileira de Hematologia e Hemoterapia

    SCD Setor de Captao de Doadores

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    SUMRIO INTRODUO .................................................................................................... 11 SEO 1 1.1 A POLTICA NACIONAL DE SANGUE .......................................................

    15

    1.2 O CENTRO DE HEMATOLOGIA E HEMOTERAPIA DE SANTA CATARINA HEMOSC ......................................................................................

    23

    SEO 2 2.1 O SIGNIFICADO DO SANGUE ....................................................................

    29

    2.2 MORAL EM RELAO DOAO DE SANGUE ...................................... 31 2.3 A COMPREENSO DO COTIDIANO........................................................... 38 SEO 3 3.1 O PROCESSO DE TRABALHO DAS ASSISTENTES SOCIAIS NO SETOR DE CAPTAO DE DOADORES SCD .............................................

    44

    3.1.1 Projetos do Servio Social no SCD do Hemosc .............................. 48 3.2 A TEXTUALIZAO COMO TCNICA DE PESQUISA .............................. 51 3.3 NARRATIVA DAS EXPERINCIAS PROFISSIONAIS DAS

    ASSISTENTES SOCIAIS NO SETOR DE CAPTAO DE DOADORES DO HEMOSC ...............................................................................................

    52

    3.4 REFLEXES SOBRE O TRABALHO PROFISSIONAL NO SETOR DE CAPTAO DE DOADORES ......................................................................

    74

    3.4.1 A compreenso da realidade ............................................................ 74 3.4.2 Reflexo e Planejamento das Aes ................................................ 79 3.4.3 Avaliao dos Servios Prestados ................................................... 83

    CONSIDERAES FINAIS ................................................................................ 87 REFERNCIAS .................................................................................................. 93 ANEXO ............................................................................................................... 99

  • 11

    INTRODUO

    O presente Trabalho de Concluso de Curso requisito obrigatrio para o

    encerramento do curso de Servio Social, bem como para conferir o grau de

    bacharel em Servio Social.

    O interesse em trabalhar a temtica do exerccio profissional do Servio

    Social no Setor de Captao de Doadores do Hemosc/Florianpolis, neste Trabalho,

    surgiu da curiosidade de entender o fazer profissional naquele espao, por ser um

    espao verdadeiramente da sade, mas que de educao e para a educao. O

    trabalho do assistente social, no SCD tambm cumpre um papel de buscar

    estabelecer um elo perdido, quebrado pela burocratizao das aes que podem

    desumanizar o doador de sangue, fazendo dele uma bolsa para transfuso. Essa

    ao, chama a ateno para o reconhecimento tcnico dessa prtica profissional

    pela Instituio, medida que qualificava as aes no processo de trabalho

    desenvolvido pelas Assistentes Sociais.

    Acompanhando a politizao da sade ocorrida na Dcada de 1980, a

    politizao do sangue trouxe conquistas, fruto de lutas e mobilizao dos

    profissionais de sade e da sociedade. Vale destacar que tambm nas Dcadas

    de 1970 e 1980 que se iniciou o processo de ruptura do Servio Social, em recusa e

    crtica ao conservadorismo profissional. Assim, vivenciamos nestas dcadas, a

    discusso tanto em relao Poltica Nacional do Sangue, da Poltica Nacional de

    Sade, como tambm do novo projeto tico-poltico do Servio Social, cuja

    construo pautada no compromisso com a autonomia e na emancipao dos

    sujeitos individuais.

    As transformaes socioeconmicas e polticas afetaram as relaes sociais

    e influenciaram o Servio Social nas suas intervenes, funes e fundamentos

    terico-metodolgicos. Assim, novas demandas emergiram e necessitavam de maior

    compreenso dos Assistentes Sociais da realidade, postas de forma a responder a

    essas novas expresses da questo social.

    O grande desafio presente no contexto da doao de sangue conseguir lidar

    com as crises advindas do prprio processo de mudana, j que a realidade no

    estanque e est sempre se modificando. Desenvolver aes que faam da doao

  • 12

    de sangue uma atitude cultural passa necessariamente pela percepo dos usurios

    sobre os seus valores enquanto direito sade, num contexto muito mais amplo de

    conquistas sociais. Est presente aqui, tambm, a ampliao dos espaos

    ocupacionais de atuao do Servio Social, avanando em direo legitimao da

    profisso por confirmar a utilidade social dessa especializao de trabalho em um

    espao ocupacional no privativo do Servio Social.

    Reporta-se a Sarmento (2002), para discutir que medida que a prpria

    sociedade sofre alterao no seu modo de organizao, o trabalho profissional do

    Assistente Social tambm precisa ser modificado, de forma a atender e responder a

    essas diversidades. Assim, a reconstruo tanto do sentido como da direo dadas

    prtica profissional implica em retraduzir os valores tico-polticos no

    relacionamento que estabelece com os profissionais, instituies/organizaes e

    populao. (SARMENTO, 2002, p.117,).

    O assistente social constitui-se nas condies sociais em que se d a

    materializao do projeto tico-poltico em contextos especficos, articulando um

    conjunto de condies que informam o processamento da ao e condicionam a

    possibilidade de realizao dos resultados projetados uma vez que estabelecem

    metas a atingir e define as relaes de trabalho nas condies para sua

    realizao.

    Inserido num espao de implementao de polticas pblicas como o

    Hemosc, o Assistente Social influencia nas relaes dos usurios do servio,

    principalmente atravs de aes scio-educativas que podem tanto assumir um

    carter conservador e moralizador destinado a moldar o usurio, seja no espao

    institucional, seja na vida social, como pode direcionar sua ao ao fortalecimento

    do atual projeto tico-poltico da profisso, revelado na opo terico-tico-poltica

    dos profissionais da categoria que contribuem para a divulgao do entendimento

    crtico dialtico da realidade social. Vale considerar que a insero do Assistente

    Social numa instituio estabelece condies e relaes de trabalho que influenciam

    no processamento da ao e nos resultados projetados, sejam eles individuais ou

    coletivos.

    Nesse sentido, o presente trabalho tem como principal objetivo contribuir para

    o debate sobre o exerccio profissional do Servio Social no Setor de Captao de

    Doadores do Hemosc, que tem sua ao pautada na busca por doadores

  • 13

    conscientes, saudveis e responsveis e que, mesmo por estar inserido numa

    instituio que impe limites ao profissional, busca estratgias para superar

    estas limitaes.

    Vasconcelos (2002) destaca que a realidade social precisa ser apreendida

    como uma sntese de mltiplas determinaes uma vez que, como objeto

    investigado, depois de um processo de abstrao que a realidade deixa de ser s

    o que aparenta para tomar outra forma no pensamento do investigador, pois j no

    mais a mesma e o investigador tambm no mais o mesmo.

    por compartilharmos a idia de que a questo social objeto da ao

    profissional precisa ser entendida e investigada como forma de embasar um

    trabalho profissional, garantindo o direito dos usurios, que a primeira seo deste

    trabalho traz um breve resgate da histria da hemoterapia que culminou na atual

    Poltica Nacional de Sangue e criou o Programa Nacional de Doao Voluntria de

    Sangue PNDVS. Nestes caminhos, foram institudos tambm os Centros

    Hemoterpicos que materializaram a criao do Centro de Hematologia e

    Hemoterapia Hemosc, enfatizando aqui o contexto atual de vinculao deste a

    uma Organizao Social e o espao onde se desenvolve o trabalho do Servio

    Social no Setor de Captao de Doadores.

    A doao de sangue que antes tinha poucas orientaes para acontecer, foi

    se estruturando nos ltimos 50 anos, e hoje orientada para ser uma atitude

    solidria e de cidadania. Desta forma, na segunda seo, h algumas referncias

    sobre o significado do sangue e a moral em relao doao de sangue presente

    hoje na cultura brasileira. Por entender que a solidariedade um fator fundamental e

    bastante evidenciado no que tange doao de sangue, buscamos justificar nas

    referncias encontradas o entendimento sobre ela. Apresenta-se tambm uma breve

    compreenso do cotidiano como um espao repleto de atividades rotineiras e por

    isso, possvel descobrir nele potencialidades a partir do ordinrio. Essas

    possibilidades ocultas, por nem sempre estarem explicitadas, podem apontar novas

    formas de ao.

    Na terceira seo apresenta-se o Servio Social no Setor de Captao de

    Doadores, enfatizando o exerccio profissional desenvolvido pelas assistentes

    sociais, suas narrativas, trazidas sob a forma do recurso de textualizao, e as

    reflexes dos eixos propostos para este trabalho.

  • 14

    Nas Consideraes Finais, procura-se recuperar algumas indicaes centrais

    dos resultados das reflexes sobre a prtica profissional do Servio Social no Setor

    de Captao de Doadores e pondera-se sobre as possibilidades de ao profissional

    na doao de sangue e o aspecto social.

    Por fim, atravs deste Trabalho de Concluso de Curso, por entender que

    no exerccio profissional a prioridade a ao projetada e realizada a partir da

    reflexo sobre o real (Vasconcelos, 2002, p.126), que pretende-se contribuir com a

    produo de material, visando agregar valor ao referencial utilizado pelos

    profissionais no Setor de Captao de Doadores.

  • 15

    SEO 1 1.1 A POLTICA NACIONAL DE SANGUE

    Para se chegar formulao da Poltica Nacional do Sangue, faz-se

    necessria uma contextualizao sobre os fatos que desencadearam esta

    necessidade. A histria da transfuso de sangue pode ser dividida em dois perodos

    que aqui apenas sero diferenciados por emprico, que vai at 1900 e cientfico que

    de 1900 em diante. No Brasil, durante o perodo cientfico, os pioneiros eram

    cirurgies do Rio de Janeiro que nos anos de 1920 j organizavam servios de

    hemoterapia, mesmo que de forma bastante simples. (JUNQUEIRA, et al. 2005)

    As atividades cientficas eram constantes e na Dcada de 1940 foi promovido

    o I Congresso Paulista de Hemoterapia, importante fato que forneceu bases para a

    fundao da Sociedade Brasileira de Hematologia1 e Hemoterapia2 SBHH em

    1950.

    Pimentel (2006) relata que, no Brasil, o surgimento da hemoterapia como

    questo de poltica pblica e interesse social foi motivada pela contestao do

    sistema de sade vigente em razo do aumento da contaminao sangnea, uma

    vez que as doenas transfusionais (na poca a Doena de Chagas) estavam

    vinculadas s doaes remuneradas. Sobre isso Junqueira (et al. 2005, p. 205)

    comenta que em alguns bancos de sangue, de tica questionvel, indivduos de

    camadas mais pobres da populao, que muitas vezes no tinham condies fsicas

    e mesmo nutricionais, eram estimulados a doar sangue.

    A primeira Lei Federal que trata do sangue data de 1950 (Lei 1.075 de

    27/03/1950) e incentivava a doao de sangue medida que determinava que todo

    funcionrio pblico, fosse ele civil ou militar, teria o dia de trabalho abonado caso

    doasse sangue voluntariamente. Os doadores que no fossem funcionrios pblicos

    teriam seu nome includo entre os que prestaram servios relevantes sociedade e

    Ptria. Nesta orientao, a idia de comrcio j aparecida na troca da doao

    pelo benefcio do abono do dia de trabalho e no a difuso da doao como ato de 1 Hematologia a cincia que estuda a estrutura histolgica, a composio qumica e as propriedades fsicas do sangue (GRANDE DICIONRIO LAROUSSE CULTURAL, 1999, p. 488). 2 Hemoterapia o tratamento de certas enfermidades pela administrao ou emprego de sangue ou de produtos do sangue, como o plasma sanguneo. (GRANDE DICIONRIO LAROUSSE CULTURAL, 1999, p. 489).

  • 16

    solidariedade. Mesmo assim, esta foi a nica lei que tratava do sangue at 1964. A

    proposta de um incentivo doao pelo benefcio do abono do dia de trabalho

    aparece como alternativa ao comrcio, mas ainda a vinculao clara da doao

    como ato de solidariedade no o discurso fundamental do estmulo doao de

    sangue. (BELLATO, 2001; PEREIMA, 2007).

    At o ano de 1964 o governo no mostrava preocupao em disciplinar e

    organizar o comrcio de sangue e hemoderivados no Brasil. A baixa qualidade nos

    servios de vrios bancos de sangue que se instalaram principalmente no Rio de

    Janeiro mostrava mais uma lgica de mercado em atender s necessidades de

    produo industrial de hemoderivados, do que de atender s necessidades dos

    pacientes com indicaes transfusionais. Sobre esta lgica de mercado, Bellato

    (2001, p. 38) aponta que a implantao do grupo multinacional Hoechst acentuou

    esta lgica [...] estimulando a cultura da subverso, do contrabando, coletas

    excessivas e sangue propositadamente vencidos para ser repassados indstria de

    hemoderivados.

    O Golpe Militar de 1964 trouxe ao governo a preocupao de manter um

    estoque de sangue para uma possvel necessidade, caso houvesse conflito armado.

    Assim, o Decreto Lei 53.988 de 30/06/1964 cria a Associao Brasileira de

    Doadores Voluntrios de Sangue e institui o dia 25 de novembro como o Dia

    Nacional do Doador de Sangue.

    Em 1965 o Ministrio da Sade, visando estabelecer normas para a proteo

    dos doadores e receptores de sangue, cria, atravs da Lei 4.701 de 28/06/1965, a

    Comisso Nacional de Hemoterapia, responsvel por grande parte da legislao do

    setor hemoterpico em vigor at hoje e que, por conseqncia, trouxe bases para a

    Poltica Nacional de Sangue. Ainda assim, nas Dcadas de 1960 e 1970, apesar da

    Hemoterapia ter legislao e normatizao adequadas, era evidente tanto a

    desigualdade da qualidade dos servios prestados como tambm a desorganizao

    do sistema, devido principalmente falta de fiscalizao das atividades

    hemoterpicas. Carecia, portanto, de uma poltica de sangue consistente que

    abarcasse estas necessidades. (JUNQUEIRA, et al. 2005)

    Entre as Dcadas de 1970 e 1980 importante pontuar que o interesse

    mercantil tambm caracterizou a questo do sangue e com isso a segurana

    transfusional no era direito da populao. Castro Santos (apud Pimentel, 2006)

  • 17

    relata que setores como a indstria de hemoderivados e a Sociedade Brasileira de

    Hematologia e Hemoterapia SBHH eram contrrios proibio do comrcio de

    sangue.

    Neste caso, alguns fatores determinantes que justificavam o posicionamento

    contrrio da indstria de Hemoderivados podem ser apontados pelas prticas

    hemoterpicas existentes no Brasil, por exemplo, a questo das bolsas utilizadas

    para a doao serem importadas devido qualidade que apresentam; sem

    regulamentao nacional para sua fabricao, empresas de pequeno porte

    passaram a fabricar e comercializar bolsas com qualidade questionvel e, devido ao

    baixo preo, substituram as importadas. J a posio contrria da Sociedade

    Brasileira de Hematologia e Hemoterapia SBHH era justificada pela dificuldade de

    obteno de doadores de sangue e [...] incapacidade da classe mdica em

    prescrever tica e tecnicamente a transfuso de sangue. No havia um controle das

    prescries devido falta de conhecimento cientfico [por parte da classe mdica]

    (PIMENTEL, 2006. p. 67)

    Mas a confiabilidade nos servios e o impacto com o surgimento da AIDS

    caracterizaram o que Pimentel (2006) chamou de medo do sangue e isso foi

    fundamental para uma gradual politizao da opinio pblica e dos movimentos

    sociais em torno das propostas desta poltica de sade. Toda a problemtica

    envolvendo a questo do sangue aprofundou e contribuiu para esta politizao em

    relao ao sangue e discutia-se qual o melhor modelo de sade a ser implantado.

    Distante de apresentar novidades em termos de posies e argumentao,

    voltaram as discusses referentes estatizao e a privatizao dos servios

    hemoterpicos. O sangue representava para os que defendiam a proibio da

    comercializao e a estatizao destes servios, a defesa dos ideais da Reforma

    Sanitria e dos direitos da cidadania. E aqueles que eram contra a proibio e a

    favor da privatizao dos servios hemoterpicos, argumentavam que o governo

    seria incapaz de organizar a atividade hemoterpica e garantir bons servios

    (SANTOS et al. 1992).

    Desencadeou-se o Movimento Sanitrio para a transformao do sistema de

    sade e das condies de sade da populao brasileira. A luta pela Reforma

    Sanitria partiu das classes trabalhadoras e populares, havendo adeso dos

    acadmicos de medicina das universidades, mdicos sanitaristas, profissionais da

  • 18

    sade, parlamentares, enfim, lderes polticos e sindicais interessados por um

    sistema de sade universal, equnime, acessvel e democrtico, impedindo a sua

    mercantilizao. (ESCOREL, 1989).

    Em 1980, numa articulao entre rgos dos Ministrios da Sade e

    Planejamento, foi criado o Programa Nacional de Sangue e Hemoderivados PR-

    SANGUE com o objetivo de planejar um sistema hemoterpico que oferecesse um

    produto final, dentro dos mais altos conceitos de segurana e qualidade. Para tanto,

    elencava como necessidades: 1) Sistematizar a doao voluntria como uma

    legtima finalidade social; 2) Organizar e definir a rede de instituies ligadas a

    prticas de hemoterapia; 3) Normalizar a distribuio de sangue e derivados; 4)

    Disciplinar a industrializao e a comercializao de hemoderivados; 5) Promover a

    pesquisa cientfica e o desenvolvimento tecnolgico; e 6) Instituir o controle de

    qualidade e a fiscalizao. Esta poltica pblica representou a primeira ao direta e

    coordenada para o setor hemoterpico por parte do governo. Foi a partir do Pr-

    Sangue que surgiram as propostas de centralizaes atravs dos Hemocentros e

    tambm a definio das normas nas atividades de prestao de servios

    hemoterpicos que os Hemocentros eram responsveis. (PIMENTEL, 2006;

    BELLATO, 2001).

    Muitos avanos tecnolgicos foram trazidos no decorrer da Dcada de 1980 e

    isso evidenciava a necessidade de normas tcnicas para disciplinar o funcionamento

    dos servios de hemoterapia. Mas, a realidade mostrava que at o perodo de

    1985/1987, a questo de sangue e hemoderivados no Brasil era mal gerenciada,

    sem normatizao e sem fiscalizao governamental. Foi em decorrncia do

    aparecimento da Sndrome da Imunodeficincia Adquirida AIDS, que as questes

    relacionadas ao sangue repercutiram e foram determinantes para a politizao do

    sangue e presso da sociedade civil para uma reorganizao da poltica nacional

    de sade e definio de polticas Nacional e Estadual de sangue. (BELLATO, 2001).

    Sobre isso, Bellato (2001) aponta ainda que devido ausncia de medidas do

    governo Federal no que refere situao da hemoterapia, estados como Rio de

    Janeiro e So Paulo definiram, entre 1985 e 1987, polticas estaduais para esta

    rea: proibio da doao remunerada e obrigatoriedade do teste anti-HIV no

    sangue utilizado com fins hemoterpicos.

  • 19

    A maioria dos bancos de sangue apresentava irregularidades que incluam

    desde a no realizao dos exames sorolgicos, ou a triagem inadequada dos

    doadores, at mesmo condies consideradas imprprias para o armazenamento do

    sangue e funcionamento sem o respectivo alvar. Estas situaes levaram

    interdio de vrios servios no decorrer daqueles anos.

    Com a politizao do sangue, foi grande a repercusso da problemtica

    envolvendo a questo hemoterpica que veio a ocorrer em meio s discusses

    prvias sobre a Reforma Sanitria e tambm na VIII Conferncia Nacional de Sade,

    realizada em 1986, onde compareceram representantes de diversos segmentos da

    sociedade. Nesta ocasio foi debatida a sade em um conceito ampliado e como um

    direito universal, sendo resultante das condies de vida, alimentao, lazer, acesso

    e posse da terra, transporte, emprego e moradia. (SCHUCH, 2006; PIMENTEL,

    2006).

    Foram incorporadas pela Constituio Federal de 1988 as propostas da

    Reforma Sanitria e as do relatrio da VIII Conferncia Nacional de Sade. No que

    se refere poltica na rea de sangue e hemoderivados definiu-se que dever do

    Estado prover os meios para atendimento hematolgico e hemoterpico de acesso

    universal e de boa qualidade e dever do cidado cooperar com o Estado na

    consecuo desta finalidade (BRASIL, apud DEOLA, 2004, p. 14), tendo como

    objetivos a doao voluntria de sangue, a formao de recursos humanos, o

    desenvolvimento tecnolgico, o controle de qualidade e a vigilncia sanitria.

    A Constituio Federal de 1988, no seu artigo 199 inciso 4, rege o seguinte:

    A lei dispor sobre as condies e os requisitos que facilitem a remoo de rgos, tecidos e substncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfuso de sangue e seus derivados, sendo vedado qualquer tipo de comercializao (BRASIL,1988).

    A Lei 7.649 de 25/01/1988 foi elaborada pela Diviso de Sangue e

    Hemoderivados do Ministrio da Sade e criou o Plano Nacional de Sangue e

    Hemoderivados PLANASHE, que articulava ao de quatro Ministrios

    (Previdncia e Assistncia Social, Trabalho, Educao e Cincia e Tecnologia) e era

    associado ao Banco Mundial como forma de garantir fundos. Com a finalidade de

    desenvolver um sistema hemoterpico eficiente, este Plano era mais complexo e

  • 20

    detalhado que o Pr-Sangue e propunha entre outras aes, a necessidade de

    garantir a autonomia ao sistema de sangue e a avaliao peridica do programa por

    parte dos coordenadores regionais e diretores dos hemocentros. (PIMENTEL, 2006).

    Sobre o PLANASHE, Bellato (2001) destaca que sua elaborao seguia

    influncia do modelo de organizao apresentada pelo Sistema nico de Sade

    SUS, uma vez que propunha a integrao dos servios oficiais e descentralizao

    das decises administrativas e financeiras. Assim, representou uma mudana radical

    nos servios de Hemoterapia no Brasil.

    Desde 1992 existe a Coordenao da Poltica Nacional de Sangue e

    Hemoderivados, ligada ao Ministrio da Sade. Desde ento, coordenaes e

    gerncias de sangue tm buscado aes que levem melhoria efetiva da poltica de

    sangue visando a segurana transfusional. (PIMENTEL, 2006)

    Pereima (2007) relata que a busca constante de qualidade nos servios

    hemoterpicos exigiu uma legislao mais rigorosa, trazendo para tanto a Portaria n

    1376/93 que determinava normas tcnicas para coleta, processamento e distribuio

    de sangue. Posteriormente, a Portaria n 121/95 respondia a necessidade de

    cumprir as etapas de controle de qualidade do sangue, introduzindo diversos

    exames sorolgicos na anlise de sangue humano para a doao.

    Em 1998 o Ministrio da Sade apresentou a Meta Mobilizadora Nacional do

    Setor Sade com o objetivo de impulsionar a hemoterapia brasileira em um modelo

    j alcanado pelos melhores servios do Pas, garantindo a transfuso de sangue

    segura e de indiscutvel padro de qualidade. O slogan era Sangue com garantia de

    qualidade em todo o seu processo at 2003 e entre os 12 projetos que compunham

    esta meta estava a formulao da Poltica Nacional de Sangue e Hemoderivados e a

    implantao do Programa Nacional de Doao Voluntria de Sangue, com objetivo

    de envolver a sociedade brasileira, por meio de aes educativas e de mobilizao

    social, a participar no processo da doao de sangue de forma consciente e

    responsvel, visando a garantia da quantidade adequada demanda do Pas e a

    melhoria da qualidade do sangue, componentes e derivados.

    Com atraso de 13 anos a Lei 10.205 de 21/03/2001 regulamenta o 4 do art.

    199 da Constituio Federal de 1988, relativo coleta, processamento, estocagem,

    distribuio e aplicao do sangue, seus componentes e derivados e estabelece o

    ordenamento institucional indispensvel execuo adequada dessas atividades.

  • 21

    Ainda por necessidades de atualizao da poltica de sangue, publicada em

    2003, cumprindo determinaes do Ministrio da Sade, uma Resoluo da Diretoria

    Colegiada RDC, e outra, mais recente n 153, de 14 de julho de 2004, que traz

    pela primeira vez a regulamentaes sobre o Transplante de Medula ssea (anexo

    1). Est em discusso agora o projeto de nova RDC que reorganiza as prticas da

    poltica pblica de hemoterapia brasileira (PIMENTEL, 2006).

    Sobre a RDC n 153/ 2004, Pereima (2007) explica que todos os profissionais

    que atuam na rea da hemoterapia devem ter suas aes norteadas pelas

    determinaes desta Resoluo, que traz o regulamento tcnico para os

    procedimentos hemoterpicos. Neste regulamento, so previstos procedimentos

    para a coleta, processamento, testagem, armazenamento, transporte, controle de

    qualidade e uso humano do sangue e seus componentes, obtidos do sangue

    venoso, do cordo umbilical, da placenta e da medula ssea.

    Ainda sobre a Lei 10.205, que considerada por muitos profissionais como a

    Lei do Sangue, dispe sobre o ciclo do sangue, considerando a captao de

    doadores, coleta, processamento, estocagem, distribuio e transfuso do sangue,

    de seus componentes e derivados e probe a comercializao do sangue e a

    remunerao da doao.

    Respaldando os princpios da Constituio Federal/88 e da Lei 10.205, foi

    elaborado o Programa Nacional de Doao Voluntria de Sangue PNDVS

    (BRASIL, 2000), que probe o comrcio de sangue e determina que a doao de

    sangue deva ser altrusta, voluntria e no-remunerada, direta ou indiretamente.

    Como estratgias para sua viabilizao, foram apresentadas, entre outras:

    viabilizar parcerias com entidades governamentais no mbito federal, estadual e municipal, ONGs e organismos internacionais;

    levantar dados referentes aos projetos realizados nos setores de captao de doadores dos hemocentros dos diversos estados e

    incentivar fruns de captao de doadores com tcnicos e

    representantes de diferentes segmentos sociais;

    apoiar a realizao de projetos educacionais relacionados doao de sangue;

  • 22

    desenvolver pesquisas sobre o perfil dos doadores de sangue com a finalidade de conhecer as percepes, em todas as regies do pas,

    dos grupos sociais a respeito da doao; e

    elaborar campanhas educativas e publicitrias e estreitar as relaes entre a imprensa e a hemorrede para disseminar informaes sobre a

    importncia da doao de forma consciente, habitual e voluntria de

    sangue.

    Sobre o PDNVS, Pimentel (2006) aponta que as fases em andamento so a

    realizao de oficinas anuais de avaliao, reviso e anlise de metas

    estabelecidas3, manuteno do oramento para investimento e campanhas e

    incentivo de coleta externa.

    Outra importncia da Lei 10.205 foi a definio da hemoterapia como

    especialidade mdica, estruturada e subsidiria de aes mdico-sanitrias

    corretivas e preventivas de agravo ao bem-estar individual e coletivo, integrando,

    indissoluvelmente, o processo de assistncia sade. Neste aspecto, aparece a

    preocupao em tornar explcita a integrao da poltica de sangue ao social.

    (JUNQUEIRA, 2006).

    Ao encontro da informao de que a doao de sangue passa a ter contornos

    sociais, Pimentel (2006) explicita a repercusso pblica pelo fato do sangue ser um

    possvel agente transmissor de doenas como hepatite e AIDS. Assim, a

    hemoterapia passa a ser preocupao do governo e se insere no contexto da sade

    pblica. O mesmo autor aponta tambm a doao de sangue no-remunerada como

    de significado mdico-social devido a necessidade de estmulo da criao de uma

    cultura em relao doao de sangue como ato altrusta, voluntrio e habitual.

    Segundo Pimentel (2006), o PNDVS est em andamento no que tange

    reviso e anlise das metas estabelecidas, oramento para investimento e

    campanhas e incentivo coleta externa. A evoluo da Poltica Nacional do Sangue

    se consolidou no Brasil e tornam-se necessrias novas discusses acerca da

    3 Para a definio das metas a serem propostas pelo Programa, buscou-se a relao do percentual de doao x populao: 1,20% em 1999; 1,67% em 2000; 1,73% em 2001 e 1,68% em 2002. Com base nestes dados, definiu-se a meta de 2% para a implantao do Programa. Para doaes espontneas que variaram de 34,34% em 1999 a 50,39% em 2002, a meta definida foi de 100%. Os doadores de repetio variaram de um percentual de 52,26% em 1999 a 42,32% em 2002. A meta proposta foi de 60%. As doaes femininas variaram de 23,33% em 1999 a 25,30% em 2002. A meta definida foi de 30%. Dados constantes do Programa Nacional de Doao Voluntria de Sangue PDNVS (Brasil, 2002).

  • 23

    captao de doadores, da definio de critrio de triagem, do uso das tecnologias,

    da auto-suficincia de produo de hemoderivados, da adequao fsica e da

    capacitao de recursos humanos.

    Constata-se que discutir sobre doao e transfuso de sangue tambm

    discutir Sade Pblica, j que o uso do sangue atinge um importante aspecto poltico

    da organizao da sociedade que, ao receber informaes, compreende melhor

    seus direitos e deveres. Estar corretamente informado fundamental para que as

    pessoas possam finalmente posicionar-se sobre determinada questo e, de forma

    consciente e autnoma, formar-se como cidados.

    Alm disso, a populao em geral, historicamente responsvel por grandes e

    importantes conquistas no que tange sade pblica, deve ter acesso garantido s

    informaes gerais pertinentes ao sangue, seja na doao, seja na transfuso, nos

    meios de comunicao, nos espaos de sade e na educao, enfim, ter garantido

    canal para sua participao4.

    1.2 O CENTRO DE HEMATOLOGIA E HEMOTERAPIA DE SANTA CATARINA

    HEMOSC

    O Centro de Hematologia e Hemoterapia HEMOSC uma instituio

    pblica, integrante da Secretaria Estadual da Sade que tem como objetivo prestar

    atendimento hemoterpico e assistncia hematolgica de qualidade populao.

    Foi criado atravs do decreto Governamental n 272 de 20 de julho de 1987, com

    base nas diretrizes do Plano Nacional de Sangue e Hemoderivados PLANASHE.

    Com atraso de dois anos em relao instituio do PLANASHE, o Decreto Lei

    3.015 de 27 de fevereiro de 1989 oficializa a implantao do Sistema Estadual de

    Hematologia e Hemoterapia. (MANUAL DE QUALIDADE DO HEMOSC).

    Mas a histria da hemoterapia em Santa Catarina comeou antes disso

    quando, no incio da Dcada de 1960, foi instalado o Banco de Sangue da

    Maternidade Carmela Dutra, em Florianpolis, que tinha como intuito a coleta e o

    armazenamento de sangue. Aps alguns anos, em maro de 1963, foi criado entre

    outros servios, o Centro Hemoterpico Catarinense CHC, que veio substituir o

    4 Participao, conforme Iamamoto (1998), como partilhamento de decises e de poder.

  • 24

    Banco de Sangue existente, com a finalidade de realizar atendimento em todo

    Estado, contando com a ajuda dos postos instalados nas principais cidades do

    interior (MANUAL DE QUALIDADE DO HEMOSC).

    Bellato (2001) aponta que o Centro Hemoterpico Catarinense CHC foi um

    projeto piloto bem planejado que serviu de referncia por ser, na poca, o nico

    servio de banco de sangue no Brasil a atender todo um Estado. Mas foi com a

    criao do PR-SANGUE que o CHC recebeu equipamentos do Ministrio da

    Sade e iniciou a transformao em Hemocentro.

    Atualmente, os principais servios prestados pelo HEMOSC so: captao de

    doadores; coleta, processamento, anlise, distribuio e transfuso de

    hemocomponentes; assistncia ambulatorial mdica especializada; servios

    laboratoriais especializados e complementares; servio de afrese; capacitao de

    recursos humanos, ensino e pesquisa; e campanhas sobre a doao de sangue.

    Captao de Doadores: No HEMOSC, o Setor de Captao de Doadores coordenado por profissionais de Servio Social e desenvolve atividades voltadas

    educao em sade com projetos que objetivam informar a populao quanto

    importncia da doao de sangue. O trabalho volta-se no apenas para assegurar a

    quantidade necessria de doadores, mas tambm para aprimorar o perfil das

    doaes, garantindo a elevao do padro de qualidade do sangue coletado e

    transfundido. Na seo 3 deste trabalho, trataremos mais especificamente do

    processo desenvolvido pelos profissionais deste setor.

    Coleta: realizada por tcnicos de enfermagem e supervisionado por um mdico ou um enfermeiro. Na doao de sangue, retirado aproximadamente 450

    ml de sangue, atravs da insero de uma agulha em um dos braos, utilizando-se

    uma bolsa plstica estril para seu armazenamento.

    Processamento: setor responsvel pela separao do sangue em seus componentes (plasma, plaquetas e hemcias) para transfuso. Os pacientes com

    indicao de transfuso, somente recebem a parte do sangue (hemocomponentes)

    que necessitam.

    Anlise: so realizados inmeros testes no sangue, podendo ser identificados a compatibilidade sangnea entre doador e paciente e deteco de

    doenas, entre elas: sorologia para Hepatite B e C, Doena de Chagas, Sfilis, HIV

    (vrus da AIDS), HTLV I e II, Eletroferese de Hemoglobina e TPG/ALT.

  • 25

    Distribuio e Transfuso de Hemocomponentes: os hemocomponentes do sangue so distribudos pelo HEMOSC atravs das Agncias

    Transfusionais presentes nas unidades hospitalares e/ou ambulatoriais.

    Assistncia Mdica Ambulatorial: setor do Hemosc com equipe mdica especializada que presta servios diversos, como consultas mdicas, consultrio

    odontolgico especializado para pacientes com distrbios de coagulao, coleta de

    sangue para exames de sorologia, imuno-hematologia, hematologia, medula ssea e

    hemopatologia.

    Servio de Afrese: um processo de doao especial com durao de aproximadamente uma hora e vinte minutos, em que ocorre a separao das

    plaquetas do doador pelo processo de afrese e o restante dos hemocomponentes

    devolvido veia do doador.

    O pblico alvo de atendimento do HEMOSC formado por clientes5 que so

    os pacientes com distrbios hematolgicos (considerados usurios) e pelos os

    doadores, tambm considerados clientes.

    Neste contexto, Silva (2000) destaca que o HEMOSC tem como

    responsabilidade o fornecimento de sangue, hemocomponentes e servios

    hemoterpicos e hematolgicos de qualidade atravs da hemorrede pblica

    estadual, visando assistncia e segurana comunidade. Desta forma, a referida

    instituio, atravs da sua equipe multiprofissional, busca garantir a qualidade dos

    servios oferecidos populao, fortalecendo a idia da doao voluntria e,

    informando a respeito da necessidade e importncia da doao de sangue e,

    tambm, ao que se refere segurana que a doao deve oferecer no processo de

    transfuso.

    O HEMOSC de Florianpolis o Hemocentro Coordenador de Santa Catarina

    e tem a responsabilidade de coordenar toda a Hemorrede6 pblica, respondendo

    pela normatizao, superviso e formao de recursos humanos para os

    hemocentros e servios de Hemoterapia do Estado. Os Hemocentros Regionais,

    5 Cliente: Pessoa que recorre aos prstimos ou servios de um homem de negcios, de um banco, de um mdico, etc. Fregus. (LAROUSSE CULTURAL, 1999. p 237). 6 Sobre o sistema de Hemorrede, Pereima (2002) aponta o controle de qualidade pelo estabelecimento de procedimentos padronizados, com atividades desenvolvidas conforme as normas de segurana e supervisionadas pelo programa de gerenciamento da Qualidade Total, implantado no HEMOSC em 1995 e fundamental para a conquista do certificado da ISO 9002.

  • 26

    subordinados ao Hemocentro coordenador, esto localizados em municpios plos

    de Santa Catarina: Lages, Joaaba, Chapec, Cricima e Joinville. Tambm h uma

    Unidade de Coleta localizada na cidade de Tubaro, sendo coordenada pelo

    Hemocentro Regional de Cricima e outra em Rio do Sul, coordenada pelo

    Hemocentro Regional de Joinville. Atualmente, a Hemorrede atende cerca de 90%

    das transfuses que ocorrem no Estado. Faz parte da Poltica Nacional de Sangue,

    Componentes e Hemoderivados que os hemocentros estaduais atendam toda a

    demanda transfusional, universalizando o atendimento populao.

    Ainda sobre o PLANASHE, importante lembrar que o Ministrio da Sade

    estimulou a viso de descentralizao administrativa nos Estados e o programa de

    interiorizao dos hemocentros (sistema de hemorrede) sofreu com a liberao

    parcial e/ou ausncia de recursos financeiros pelo Governo Federal de 1992 -1995.

    Assim, tanto a destinao inadequada de recursos, como tambm a falta de retorno

    das receitas geradas, trouxe dficit ao Fundo Estadual de Sade. (BELLATO, 2001).

    necessrio mostrar as implicaes do artigo n 5 do PLANASHE que

    recomenda como modalidade ideal de gesto a de Fundao7. Assim, em meio a

    esta realidade poltica e aos entraves burocrticos, em 4 de maro de 1994, o

    HEMOSC passou a ser gerenciado pela Fundao de Apoio ao HEMOSC e

    CEPON8 FAHECE, que uma entidade privada, sem fins lucrativos, criada para

    administrar e investir os recursos atravs da aquisio de equipamentos, remdios,

    reforma e construo de novas sedes, alm da capacitao dos funcionrios.

    Atravs de um contrato de gesto com a Secretaria de Estado da Sade, a

    FAHECE recebe e administra os recursos financeiros do SUS gerados pelas

    unidades. O convnio de dez anos e a cedncia de patrimnio e de recursos

    humanos j vigora h mais de 14 anos. (CARVALHO, 2007).

    Sobre isso, Bellato (2001) aponta que um diferencial do modelo de gesto

    administrativa adotada pela FAHECE est no fato de que os recursos obtidos

    atravs dos servios prestados pelo HEMOSC e CEPON no vo mais para o Fundo

    Estadual de Sade e so, agora, diretamente revertidos para estas unidades.

    7 O governo estadual catarinense, atravs do convnio NR 104/94 firmado pela Secretaria de Estado da Sade, estimulou a descentralizao administrativa permitindo Fundao o recebimento e administrao dos recursos financeiros do SUS, gerados pelo HEMOSC e CEPON. 8 Centro de Pesquisas Oncolgicas.

  • 27

    Entretanto, a mesma autora faz anlise contundente sobre a relao pblico e

    privado na perspectiva do interesse privatista neoliberal, tambm presente na

    questo hemoterpica e desta forma, [...] dificultam o controle social e continuam

    recebendo recursos, pblico e privado, e gerenciando-os segundo critrios

    independentes do SUS. (BELLATO, 2001, p. 60)

    Em 2002 o Estado de Santa Catarina aprovou junto Assemblia Legislativa

    a Lei n 13.720 trazendo disposies legais que institui o Programa Estadual de

    Incentivo s Organizaes Sociais9 (OS), permitindo que atividades pblicas, sem

    nenhuma licitao, sejam transferidas e desempenhadas por entidades de direito

    privado, que por iniciativa do Poder Executivo, obtm autorizao legal para celebrar

    contrato de gesto, com direito dotao oramentria, recursos financeiros

    provenientes de convnios, bens pblicos e cedendo funcionrios pblicos.

    Diversas discusses foram travadas ao longo destes anos e em vista desta

    possibilidade de tornar a FAHECE uma OS, em maro de 2006 foi criado o

    Movimento para Manuteno do Servio Pblico de Qualidade do HEMOSC e

    CEPON que tem como principal objetivo impedir a privatizao destes rgos.

    Este movimento pauta-se: no ferimento da Lei 8.080/90, uma vez que, cabe

    apenas iniciativa privada a complementao prestao de servios na sade; na

    inevitvel reduo dos atendimentos oferecidos aos usurios do Sistema nico de

    Sade; nos cortes de investimentos pblicos e sucateamento do patrimnio pblico;

    na queda na qualidade dos servios; na contratao de trabalhadores sem concurso

    pblico e aumento da terceirizao, etc. O Movimento entende que o desdobrar

    desse processo a privatizao e faz parte de um contexto geral que se vivencia no

    Pas.

    Foi a necessidade de informar sobre estas discusses que o Movimento criou

    um boletim que periodicamente circula entre os colaboradores do HEMOSC e

    CEPON e entre a comunidade. Atualmente, as discusses esto acirradas sobre o

    novo contrato de gesto entre a Secretaria Estadual de Sade/SES e a FAHECE. O

    9 Organizao Social uma qualificao dada s entidades privadas sem fins lucrativos (associaes, fundaes ou sociedades civis) que exercem atividades de interesse pblico dirigidas ao ensino, pesquisa cientfica, ao desenvolvimento tecnolgico, proteo e preservao do meio ambiente, cultura e sade. Este ttulo permite que a organizao privada receba recursos oramentrios, bens pblicos e administre servios, instalaes e equipamentos do Poder pblico, aps ser firmado um Contrato de Gesto com o Governo. LEI 9637 de 15/05/1998.

  • 28

    Movimento se mostra atuante e comprometido com o processo democrtico, com a

    garantia e a qualidade dos servios oferecidos populao do Estado.

    A transio da FAHECE para OS j foi publicada em Dirio Oficial, os

    funcionrios aguardam receber o termo de cedncia para decidir se assinam ou no

    o referido termo: assinar implica que sero cedidos para a OS e, no assinar, implica

    em se apresentarem para a Secretaria Estadual de Sade e serem disponibilizados

    para outra instituio.

    Percebemos o quo acirrado a questo da privatizao do HEMOSC, tanto

    para os funcionrios como tambm para a sade pblica de qualidade, seguindo

    uma poltica que oferecida pela instituio. As limitaes aparecem, por exemplo,

    na falta de colaboradores nos mais diversos setores, dificultando as aes e

    programas desenvolvidos no setor de Captao de Doadores.

    Cabe destacar que a ao do Assistente Social no HEMOSC, segue as

    orientaes da Poltica Nacional do Sangue e est inserido em um espao de

    atuao com condies institucionais postas que determinam orientaes para o

    desenvolvimento desta ao profissional. Contudo, necessria para a

    apresentao do exerccio profissional do assistente social, a busca do significado

    da moral que existe atualmente em relao doao de sangue.

    Contudo, antes de analisar o processo de trabalho da equipe de Assistentes

    Sociais do Hemosc, vinculado prioritariamente ao institudo no Programa Nacional

    de Doao Voluntria, prope-se buscar o significado da moral que existe

    atualmente em relao doao de sangue e sua relao como o ato consciente e

    responsvel, mas ao mesmo tempo aos preconceitos e medos que rondam esta

    ao. Esses aspectos culturais so determinantes, tendo em vista ser a cultura um

    sistema de valores e crenas herdadas, por meio das quais os homens comunicam,

    perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relao vida e,

    desta forma, a cultura contribui para regular e padronizar atitudes e emoes.

    (CASTELFRANCHI, 2008).

  • 29

    SEO 2 2.1 O SIGNIFICADO DO SANGUE

    Em diferentes sociedades o sangue possui diferentes simbologias e

    representaes e est associado principalmente ao conceito de vida. Os smbolos

    so imaginados e criados pelos homens a partir de suas vivncias individuais e,

    quando partilham e usam estes smbolos para se comunicarem, atribuem a eles

    determinados significados em relao ao contexto cultural em que vivem (BENETTI;

    LENARDT, 2006). Entender estas simbologias ligadas ao sangue representa

    fundamentar a ao para uma comunicao em relao doao de sangue.

    Pereima (2002) comenta que j na antigidade os povos primitivos untavam-

    se, banhavam-se e bebiam o sangue de jovens e corajosos guerreiros, esperando

    adquirir suas qualidades. Para eles, o sangue era concebido como fluido vital que

    proporcionava vida e juventude. Aponta tambm que na cultura de muitos povos,

    eram selados pactos de amizade, de amor, de vida ou mesmo, paradoxalmente, de

    morte com sangue e conclui que [...] o sangue expressa sentimentos e sentidos

    ambivalentes e at opostos: bem mal; vida morte; amor dio. (PEREIMA,

    2002, p. 37).

    Benetti e Lenardt (2006), em pesquisa sobre o significado atribudo ao

    sangue, levantaram que a vinculao da vida ao sangue foi feita antes mesmo da

    descoberta da circulao sangnea em 1628 por William Harvey.

    Esta ligao do sangue como fonte de vida foi incorporado culturalmente e, na

    referida pesquisa, aparece a compreenso dos entrevistados trazendo o sangue

    como origem e manuteno da vida e sua ausncia tem significado de morte. Para o

    homem moderno a transfuso tem significado uma das formas de preservar sua

    vida. A referncia ao sangue como fora vital faz com que os informantes

    incorporem o cuidado com a sade como condio para realizao da doao de

    sangue. A liberdade da escolha de ser doador implica no cuidado com a sua prpria

    sade, uma vez que ter sade condio para ser doador. (BENETTI; LENARDT,

    2006).

    Existem tambm os sentimentos de insegurana e incerteza que dizem

    respeito s dvidas do que pode vir a acontecer com ele aps o procedimento de

    doao de sangue. Na mesma pesquisa, as crenas religiosas conferem um sentido

  • 30

    de vnculo com o sagrado (entre o humano e o divino) uma vez que o sangue hoje

    leva vida a um desconhecido que est em risco de morte. (BENETTI; LENARDT,

    2006).

    Algumas representaes trazem articulaes com o saber mdico, pelo

    contato com os aparelhos mdicos e determinadas caractersticas, tais como os

    exames de sangue que podem mostrar um quadro de anemia ou outras doenas

    relacionadas ao sangue. Hoje em dia, as vitaminas possuem um grande valor na

    sociedade, pois elas so encaradas como fortificantes, j que contm ferro que

    considerado elemento de fortalecimento do sangue e, conseqentemente, do

    corpo. (SCHUCH, 2006)

    Outras representaes trazem o entendimento de sangue como fonte de

    impurezas ou como smbolo de sacrifcio em diversas situaes da vida. Douglas

    (apud SCHUCH, 2006) fez estudos antropolgicos e constatou que a maioria dos

    grupos humanos v o sangue como uma fonte de impureza, mesmo este sangue

    fazendo parte das secrees corporais. Para Leal (apud BENETTI, 2004), os fluidos

    corporais so substncias transmissoras daquilo que tanto pode ser poludo, quanto

    pode ser vida e emoo.

    Dantas (2002) conceitua o sangue como um produto natural indispensvel

    vida e que, apesar da evoluo da medicina, ainda no produzido artificialmente.

    Ele fonte de energia renovvel que podemos doar at 10% em dado perodo, sem

    causar danos para o organismo humano.

    Com estas informaes sobre a simbologia do sangue, reflete-se que as

    prticas de doao de sangue so orientadas pelo entendimento que cada indivduo

    tem da sua experincia cultural. O fato de existir hoje uma Poltica Nacional de

    Sangue que regulamente este setor, traz tambm a percepo das pessoas sobre a

    prtica da doao de sangue.

    A trajetria histrica da hemoterapia no Brasil mostra a busca de qualidade

    nos servios prestados populao, seja na satisfao dos receptores, como

    tambm em relao aos doadores. Assim, como forma de garantir a qualidade do

    sangue est a inteno da eliminao dos riscos de contaminao via transfuso

    sangnea. Para tanto, alm dos aspectos tcnicos, a forma como as relaes entre

  • 31

    profissionais e usurios so estabelecidas tambm influencia para que a doao de

    sangue seja um ato sistemtico e voluntrio, como ato de cidadania10.

    2.2 MORAL EM RELAO DOAO DE SANGUE

    Historicamente, as experincias de doao de sangue por pessoas que doam

    como ato altrusta, espontneo e no-remunerado, trazem menor prevalncia de

    infeces transmissveis por transfuso, pois geralmente, os doadores apresentam-

    se aptos a doar. E, tambm, os doadores voluntrios de repetio so geralmente

    mais seguros do que novos doadores, porque so regularmente informados sobre

    comportamentos de risco e sobrea a importncia da auto-excluso11 (JUNQUEIRA,

    1979).

    Hoje, seguindo determinaes da Poltica Nacional do Sangue, a Resoluo

    da Diretoria Colegiada RDC n153 preconiza diversos aspectos em relao ao

    doador, sendo que a doao deve ser annima, voluntria12, altrusta e no-

    remunerada, direta ou indiretamente.

    A explicao que Pereima (2007) faz sobre a doao annima refere-se

    garantia de que receptores no saibam o nome do doador do sangue que ele

    recebeu e nem doadores saibam o nome do paciente que foi transfundido com os

    hemocomponentes obtidos na sua doao, exceto em situao justificada

    tecnicamente na RDC n 153.

    Anterior a esse processo, doao remunerada marcou a doao de sangue

    no Brasil e estas eram provenientes de pessoas que buscavam recompensa em

    dinheiro ou mesmo o interesse no lanche oferecido. Neste perodo, os principais

    doadores eram mendigos, andarilhos ou portadores de algumas doenas e

    10 Para Weisshaupt (1988) cidadania procedente do uso efetivo e adequado dos aparelhos do Estado para a resoluo de problemas emergentes. 11 Esta ao de auto-excluso uma das etapas pela qual passa um doador de sangue. Aps o atendimento no setor de cadastro, o doador recebe um papel, identificado por cdigo de barras, no qual deve assinalar se seu sangue poder ser utilizado ou no para a transfuso. Esta etapa explicada na entrevista individual de triagem e visa garantir ao doador de sangue a possibilidade de auto-excluso caso tenha omitido informaes nas etapas anteriores. 12 Voluntria: Que se faz ou deixa de fazer, sem coao nem imposio de ningum. (LAROUSSE CULTURAL, 1999)

  • 32

    colocavam em risco a vida do receptor de sangue. Dessa forma, o rtulo que existe

    at hoje que doar sangue coisa de pobre. (DANTAS, 2002)

    Os doadores voluntrios entendem a doao como ddiva, altrusmo ou at

    mesmo por j terem sido transfundidos, apresenta a necessidade de agradecer e

    retribuir a doao recebida. So aqueles que no recebem gratificao em dinheiro,

    ou qualquer outra forma de benefcio, nem para si, nem para seus familiares ou para

    seus amigos, prestando somente um ato humanitrio de ajuda ao prximo,

    desconhecendo sexo, idade, religio, classe social ou estado de sade daquele que

    necessita receber sangue. (JUNQUEIRA, 1979; LUDWIG; RODRIGUES, 2005)

    Nessa perspectiva, entende-se que se pretende almejar a doao de sangue

    como um ato de cidadania13, sempre considerando a subjetividade dos indivduos

    em relao aos seus motivos para doar ou no doar sangue. As motivaes que

    desencadeiam as doaes so de origem pessoal e particular de cada doador,

    sendo necessrio considerar as influncias familiares e sociais.

    A doao de sangue considerada como uma ao de cidadania, na qual os

    seres humanos tm seus direitos e tambm deveres. Para tanto, precisam receber

    informaes sobre a doao de sangue e sensibilizar-se para depois entender-se

    como co-responsvel sobre todo esse processo. Segundo Boff (apud Schuch, 2006),

    a responsabilidade a capacidade de dar respostas eficazes aos problemas que

    nos chegam da realidade complexa atual. [...] expressa o carter tico do indivduo.

    importante apontar que existem motivos que levam as pessoas a doar ou

    no o sangue. Descobrir e entender os fatores apontados para a doao pode

    auxiliar os setores de captao a fidelizar este doador. J conhecer os motivos

    alegados para a no doao fundamental para o desenvolvimento de estratgias

    que possam mudar o imaginrio e a inteno destas pessoas.

    Pereima (2007) explica que mesmo com as atuais facilidades de comunicao

    e informao, a doao de sangue tem sua histria acompanhada por folclores, por

    mitos, preconceitos e tabus. Desta forma, muito ainda precisa e pode ser feito para

    desmistificar as falsas suposies que existem em relao doao para ento

    mudar essa cultura.

    13 Para ser considerado ato de cidadania, a doao de sangue precisa receber do poder pblico um tratamento diferenciado que estabelea a doao como ato consciente uma vez que est vinculada s polticas de sade e sociais e tem relao estreita tambm com a cultura.

  • 33

    Para Bellato (2001), a viso de mundo um fator que pode ser determinante

    na adoo ou no de um servio por condicionar os interesses, uma vez que estes

    devem ser legitimados pelos valores existentes na sociedade. A mesma autora

    aponta que a satisfao de uma coletividade pode ser reduzida a um plano

    individual, cujas condies sociais ou financeiras satisfazem as necessidades;

    entretanto, a satisfao atravs da implementao de polticas pblicas de sangue,

    fortalecem o doador-cidado com prticas de assistncia integral que partem

    principalmente da necessidade dos usurios.

    Ludwig e Rodrigues (2005) verificaram que as principais razes apontadas

    para a no doao de sangue so medo (de agulha, de contrair doenas), reao

    inesperada doao, apatia pelo ato, convenincia e falta de confiana na unidade

    hemoterpica.

    Arajo (1995) enfatiza que a falta de confiana no sistema hemoterpico

    deixa transparecer a atitude de receio com a doao, pelo entendimento dos

    possveis riscos que este ato pode trazer para a sade.

    Ludwig e Rodrigues (2005), em pesquisa sobre a viso de marketing da

    doao de sangue, trazem como fator decisivo no ato de doar sangue a confiana

    nos servios oferecidos pelas instituies e pelos colaboradores. Neste estudo,

    relatam que a necessidade de sangue tem despertado o interesse de pesquisadores

    sobre as razes que levam as pessoas a doar sangue. Breckler e Wiggins (apud

    LUDWIG; RODRIGUES, 2005) apontaram a contribuio da teoria de atitudes na

    compreenso do comportamento e razes para a doao de sangue, tambm

    apresentaram a existncia de um grande limite entre a atitude favorvel ou no para

    a doao: incluem respostas afetivas (emoes positivas ao ato de doar), cognitivas

    (crenas e percepes) e de procedimentos (recrutamento e o ato de doar em si).

    Assim, o ato de doar ou no muito complexo e leva em conta diferentes fatores.

    Sobre crenas14 e doao de sangue, Arajo (1995) pesquisou que as razes

    alegadas pelos entrevistados para doar ou no sangue dependem das experincias

    que as pessoas tiveram na vida e entre os fatores que podem influenciar a deciso

    14 Crenas colocadas aqui, segundo significado proposto por Arajo (2005), que se refere s percepes do sujeito em relao a algum aspecto existente em seu mundo e que dizem respeito compreenso do sujeito em relao a si e ao meio que o cerca. O processamento de uma crena se d atravs de observao direta, de informaes captadas de fontes externas ou por meio de interferncias feitas pelo sujeito.

  • 34

    esto diferentes elementos da vida social (sexo, escolaridade, religio, classe social,

    etc.). Desta forma, dividiu as crenas em comportamentais (negativas e/ou positivas)

    e normativas (grupos ou pessoas cuja opinio sobre o assunto importante),

    verificou quais delas influenciam a inteno de doar sangue e as caractersticas que

    apresentam. Entre as crenas comportamentais citadas esto: contaminao por

    doena, salvar vidas, ajudar pessoas que necessitam de doao, ter o sangue

    renovado, ter solidariedade com os outros e ser obrigado a doar sempre. J entre as

    crenas normativas, foram citadas: famlia, amigos (inclusive do trabalho), religio,

    entidades educativas. Como resultado, constatou que as crenas no diferem em

    relao ao sexo dos entrevistados e sim em relao escolaridade e que o ato de

    doar sangue associado a crenas positivas (salvar vidas, ter solidariedade com os

    outros, ter boa sade, entre outras) ou negativas (contaminao de doenas, passar

    mal ou sentir fraqueza, medo de agulha, entre outros) e influenciadas por instituies

    como a famlia e entidades religiosas ou grupo de amigos.

    A doao um ato social individual que responde a diversas motivaes

    pessoais, se expressa na/pela coletividade e apresentada em diferentes formas,

    dependendo do ambiente social em que est inserida. A solidariedade, a

    generosidade e o altrusmo podem servir de justificativa ao ato da doao pela falta

    de garantias do sujeito sobre o seu existir e o seu futuro. A partir dessa anlise,

    Lazaretti (2007) conclui que a ddiva mais importante para aquele que d, ainda

    que exista a necessidade por parte daquele que a recebe.

    Benetti (2004) aponta que as normas e padres da sociedade determinam

    tanto comportamentos como tambm aes do ser humano nas diferentes situaes

    do seu cotidiano. Assim, a doao de sangue est articulada a fatores emocionais e

    enfatizada como um gesto de solidariedade que se realiza mediante troca de

    experincias, exige ao e partilha de conhecimento e sentimento e, principalmente,

    requer conciliar objetivo entre os sujeitos envolvidos para aumentar o grau de

    satisfao e a valorizao da vida.

    Benetti e Lenardt (2006) trazem a interpretao de solidariedade para doao

    de sangue como sinal de sensibilidade com a dor e com o sofrimento alheio, num

    processo de construo gradual, que fortalece a convivncia e as relaes sociais,

    que compreende a reciprocidade e a disponibilidade, bases de sustentao das

    relaes de ajuda, de satisfao das necessidades e anseios do ser humano na

  • 35

    sociedade. Benetti (2004) destaca que a solidariedade praticada pelos seres

    humanos, uma vez que agem de acordo com aquilo que acreditam e so

    impulsionados pela forma como sero aceitos pelos membros da sociedade.

    Almeida (2007), em pesquisa sobre o conceito de solidariedade encontra

    significados de vnculos recprocos e condio de um grupo resultante da

    comunho de atitudes e sentimentos. Busca tambm o significado da palavra na

    histria e relata a popularizao da expresso a partir da Dcada de 1980 com a

    encclica Sollicitudo Rei Socialis, na qual a doutrina social da Igreja Catlica

    construda com o conceito de solidariedade como determinao pessoal de

    responsabilidade mtua.

    A concepo de solidariedade trazida pelo senso comum ligada s

    emoes, de sensibilidade com a carncia alheia e neste sentido, a falta de

    reciprocidade pode fragilizar esta concepo se colocada apenas no campo dos

    resultados, sem entender que para a ao acontecer, necessrio o ser e neste

    sentido [...] somente podemos tomar atitudes solidrias porque existe uma

    solidariedade essencial em nossa identidade humana. (ALMEIDA, 2007 p. 68).

    Este carter ontolgico da solidariedade pode ser explicado assim

    Antes de uma atitude desejvel em uma sociedade civilizada, a solidariedade parmetro mais profundo que define a individualidade humana como o resultado criativo da relao com outras individualidades. A realizao desta individualidade estimulada pela prtica da solidariedade. Ou seja, o humano solidrio tende a se realizar como pessoa. (ALMEIDA, 2007, p. 69).

    Assim, a solidariedade entendida como um processo que se realiza

    mediante a troca de experincias com o outro, que precisa de ao para se efetivar.

    Entretanto esta ao resultante de uma escolha moralmente construda, com

    normas e padres que a sociedade determina, e compreende um processo de troca,

    de receptividade e de aceitao do outro.

    Almeida (2007) considera presente no indivduo quatro vnculos de relaes

    recprocas, constitutivos do ser humano e responsveis por defini-lo como um ser

    solidrio:

  • 36

    1) relao com a materialidade: o corpo individual e as relaes com o

    coletivo, aliado ao entendimento que somos parte de uma materialidade maior que

    inclui pensar tambm a sensibilidade para com a natureza e as outras pessoas;

    2) relao com a interioridade: a conscincia, intimidade e interioridade que

    exprime desejos, vontades, razo, medo. Conhecer-se a si mesmo;

    3) relao com a alteridade: o encontro com o outro fortalece o eu e a

    insensibilidade a isso representa uma despersonalizao a este eu

    4) relao com a totalidade: a fragmentao fragiliza a constituio humana

    que no considera a necessidade de integrar diferentes partes numa identidade

    individual plural.

    na ligao com estas relaes que se d a formao da solidariedade como

    vnculo de responsabilidade mtua. Assim, a importncia do engajamento do

    indivduo no processo de socializao tambm constitutiva de sua identidade como

    ser humano, tambm com suas fragilidades e inseguranas.

    Benetti (2004) aponta que o doador de sangue um ser humano solidrio

    uma vez que se sensibiliza com o outro e, nesta relao, encontra sua prpria

    realizao. Oliveira (1993) refora esta idia quando apresenta que o engajamento

    do ser humano no processo de socializao condio fundamental para que se

    desenvolva o processo de formao do indivduo.

    Schuch (2007) e Deola (2004) relatam que a motivao para a doao de

    sangue pode vir tambm da inteno de receber algum benefcio em troca e est

    disposto na RDC n 153, que a doao de sangue deve ser realizada sem

    remunerao direta ou indireta. Entretanto, existe em Santa Catarina a Lei Estadual

    n 10.567 de 07/11/1997 que isenta do valor da taxa de inscrio dos Concursos

    Pblicos Estaduais o doador de sangue que tiver realizado trs doaes no perodo

    de 12 meses anterior ao perodo de inscrio expresso no edital do concurso.

    A deciso da doao pautada no recebimento de um benefcio pode

    representar a omisso de informaes importantes na triagem clnica (aumentando

    os riscos de transmisso de enfermidades infecciosas pela transfuso de sangue

    e/ou hemocomponentes, caso este doador esteja no perodo chamado de janela

    imunolgica15). Pode representar tambm um risco para a sade do doador que

    15 Janela Imunolgica perodo que leva para o organismo desenvolver anticorpos para determinada presena viral. Hoje os exames sorolgicos so capazes de detectar apenas o anticorpo e no o vrus

  • 37

    realizar a doao de sangue com freqncia e intervalos menores ao estabelecido

    na Resoluo n 153 (em diferentes bancos de sangue, cujos sistemas de cadastro

    no sejam interligados; neste caso o risco clnico para o doador, que no respeitou

    o limite mnimo de intervalo entre as doaes).

    Assim, refletimos a partir do exposto pelos trabalhos pesquisados que a

    doao de sangue pode representar neste sentido o recebimento de um benefcio.

    Deola (2004, p. 55) alerta que a referida lei pe em cheque a Sade Pblica por

    trazer no artigo 199 da Constituio Federal de 1988 a proibio de qualquer tipo de

    comercializao do sangue e seus derivados.

    importante apontar que a RDC n 153 determina critrios para a doao de

    sangue, alm dos apontados anteriormente, relativos a fatores que visam tanto a

    proteo ao doador (peso, jejum, alimentao, gravidez, uso de medicamentos,

    entre outros) como tambm a proteo ao receptor (vacinaes, transfuses, risco

    acrescido para AIDS, doena de Chagas, cirurgias recentes, entre outros).

    Outro dado importante refere-se aos critrios estabelecidos como

    determinantes para a doao de sangue uma vez que no qualquer pessoa que,

    mesmo solidria, consciente, responsvel e saudvel pode ser doador de sangue.

    Basicamente, o doador deve atender a trs critrios estabelecidos na Poltica

    Nacional de Sangue: ser saudvel, ter peso superior a 50 kg e idade entre 18 e 65

    anos.

    Sobre a exigncia do limite de peso, um critrio determinado na Poltica

    Nacional de Sangue que o indivduo pode doar at 8% do total do volume de sangue

    que tem, sem prejudicar sua sade. Assim, as bolsas coletoras j so fabricadas

    com a quantidade de anticoagulante necessrias para manter as propriedades do

    sangue. O volume de sangue coletado em cada bolsa de 400 a 450 ml.

    Existe atualmente na proposta da nova RDC a possibilidade de ampliar esta

    idade para 67 anos, tendo em vista o aumento da expectativa de vida por entender

    que o cuidado com a sade est mais presente na vida das pessoas, assim a

    expectativa de vida tambm aumentou. Isso demonstra que os critrios

    estabelecidos, mutveis, relacionados aos ganhos civilizatrios e processos polticos

    terminam, tambm, por envolver a complexa trama da doao de sangue.

    e, desta forma, uma pessoa pode j ter sido contaminada e ser portadora do vrus e os seus exames sero, ainda que por um perodo de alguns dias, negativos.

  • 38

    Desta forma fundamental pensar e lidar com o que est determinado e

    disposto em lei como algo provisrio e/ou inacabado, uma vez que as conquistas se

    processam na realidade. Entende-se aqui a realidade como dinmica e o que d

    respostas agora, pode no caber numa realidade futura. Ora, a realidade, por ser

    dinmica, processa e conforma mudanas que devem ser verificadas e entendidas

    no seu contexto. Cristalizar informaes parar no tempo e assim deixar de

    entender o cotidiano em toda a sua dinamicidade.

    Paiva (1996) destaca que o Servio Social uma profisso que trabalha

    diretamente com as questes sociais e em favor dos direitos humanos, assim

    evidente que precisa estar em total sintonia com as transformaes cotidianas tanto

    na produo como na reproduo social.

    2.3 O COTIDIANO COMO ESPAO

    Prope-se aqui a necessidade de entender a vida cotidiana16 como um

    espao que vai alm das atividades rotineiras de todos os dias e pensar tambm

    nela como um espao de resistncia com possibilidades transformadoras que

    podem partir do inesperado, da revolta e, a partir da, buscar transformaes e

    retornar para o cotidiano de forma modificada.

    Deusdedith Junior (2008) aponta que no cotidiano que se constri a

    existncia, devido s percepes que se tem da humanidade e da identidade17. Para

    o autor, no cotidiano que se produz modos de ser e de viver pelas interaes com

    tempo e espao, relaes sociais, saberes e desejos. Enfim, o cotidiano um

    exerccio dirio de realizao e vivncia de atos que formam a identidade e, a

    medida que interagimos, negociamos, propomos e impomos, formamos nossa

    individualidade e construmos a nossa histria.

    Falco (1989) expe que a vida cotidiana carrega em si o estabelecido para

    todos os dias, como um ritual mecnico do que deve ser feito e em qual momento.

    So caractersticas da vida cotidiana a rotina, o imediato, a funcionalidade e a 16 Heller (apud Falco, 1989. p23) define que A vida cotidiana a vida do homem inteiro; ou seja, o homem participa na vida cotidiana com todos os aspectos de sua individualidade, de sua personalidade. 17 Identidade aqui com base no entendimento de ... aquilo que concebemos como o modo de ser humano.Deusdedith Junior (p. 4, 2008).

  • 39

    sobrevivncia. Nele os atos so automticos e inconscientes e representa tanto a

    segurana do dever cumprido, como as insatisfaes e angstias que ficam

    esquecidas na cotidianidade.

    Para Falco (1989), a vida cotidiana moldada pelo Estado para criar o

    homem como uma mquina com eficincia produtiva e capaz de abdicar da sua

    condio de cidado. Se se permitir romper com o posto no cotidiano, experimenta-

    se a sensao e a conscincia do perceber-se, no tempo histrico, com a relao do

    humano e humanidade. Com isso, ultrapassa o singular e a individualidade e chega-

    se ao que a autora chama de unidade consciente do particular e do genrico

    (FALCO, 1989, p. 26), descrevendo-o como inteiramente homem. desta forma

    que o cotidiano sai da rotina como ato que simplesmente se repete e se revela

    como hbrido e complexo.

    Entretanto, para romper a cotidianidade posta, necessria a mediao entre

    coisas que normalmente no se misturam e este processo Falco (1989) define

    como homogeneizao, pois s ocorre quando o indivduo chega conscincia por

    ter concentrado sua energia numa atividade humana genrica e no mais particular.

    essa motivao de mudana de conscincia do homem inteiro para o inteiramente

    homem que resulta na suspenso do cotidiano.

    assim que se verifica que a vida cotidiana o centro da histria e imprime

    ao cotidiano uma essncia particular e fundamental. O cotidiano um espao de

    rotinas automticas, mas tambm fundamentalmente territrio onde age o

    indivduo, tornando sua vida humana e permitindo construir uma conscincia sobre

    ela, sobre si mesmo, sobre o outro e sobre o mundo. essa conscincia da doao

    de sangue como ato de responsabilidade e solidariedade que foco das aes

    desenvolvidas pelo Servio Social no SCD.

    Falco (1989) destaca ainda quatro formas de suspenso da vida cotidiana o

    trabalho, a arte, a cincia e a moral. Para Netto (1989), essas suspenses produzem

    um retorno cotidianidade de um indivduo mais aprimorado justamente por ter sido

    alcanado a conscincia humano-genrica; a vida cotidiana continua com suas

    caractersticas, mas o sujeito que regressa da suspenso, est modificado.

    Falco (1989) aponta tambm quatro questes determinantes para se pensar

    a vida cotidiana hoje, apontadas a seguir:

  • 40

    1a) A sociedade capitalista que se formou ps-guerra nos pases

    desenvolvidos resultou, dentre outras determinaes, das estratgias da classe

    dominante, que para no perder o poder, revoluciona mais uma vez suas prprias

    bases materiais e polticas, propondo uma nova perspectiva e formato de dominao

    baseado no pensamento Keynesiano. O modelo keynesiano trouxe novas bases

    tericas para este processo e introduziu contradies na prtica social e na vida

    cotidiana traduzidas no enfraquecimento da classe trabalhadora como sujeito poltico

    no no exerccio da cidadania e na perda de referncia para a reflexo e

    transformao da sociedade.

    Este Estado, chamado de Estado Providncia, marca a individualizao e o

    cidado deixa de ter significado uma vez que se torna um usurio. Essa revoluo

    passiva est mais evidente nos ltimos anos e a atual apatia e alienao so

    explicados pelo individualismo exacerbado, pela massificao, pelo no

    reconhecimento dos sujeitos coletivos, pela falta de inovao de modelos

    revolucionrios e pela falta de valores sociais fundamentais para a transformao da

    humanidade. O cidado foi substitudo pelo usurio no Estado-Providncia e a

    cidadania se tornou uma iluso devido s relaes sociais de dominao e o prprio

    cidado no se percebe como tal. O exerccio da cidadania foi abalado por estas

    transformaes e trouxe controle vida cotidiana

    2a) O progresso e o desenvolvimento tecnolgico imprimiram um ritmo vida

    cotidiana que nada de antigo se mantm e nada de novo se fortalece. Toda a

    complexidade, da informao e da informtica, afeta o comportamento dos

    indivduos e cria uma falsa conscincia da vida, que refora a solido e o

    isolamento, porque a vida permanece alienada. A modernidade refora uma

    esperana nas microdecises e, ao encontro disso, est a mxima de que a prtica

    social transformadora no pode ignorar o cotidiano.

    3a) A alienao est presente na vida cotidiana e, sob um olhar objetivo, ela

    um ingrediente na anulao do trabalho como atividade criadora e vital; na forma

    subjetiva, verifica-se a reduo das relaes sociais a instrumento de dominao e

    opresso. Ela responsvel por imprimir vida cotidiana uma vulgaridade,

    manifestada na padronizao dos desejos e no comportamento acrtico.

    4a) A existncia de um grande vazio na vida cotidiana uma vez que no se

    realiza atividades criadoras e, acrescentado a isso, est presente a desesperana

  • 41

    da vontade coletiva pela transformao do mundo. Esse vazio naturalizou a

    insatisfao e separou termos (como existncia e subsistncia, indivduo e cidado,

    local e global, parte e todo) que so interdependentes para a busca de sadas

    libertadoras.

    5) Espao e tempo: dada a separao que cria o vazio da vida cotidiana, o

    espao deixa de representar segurana e liberdade para representar confinamento,

    transformando o cotidiano em privado e opressor. O tempo, expresso no

    quantificvel e homogneo, tambm influencia o cotidiano medida que este se

    torna repetitivo e obscurece outras dimenses da vida cotidiana.

    6) Quebra do pacto de complementaridade expresso na intolerncia ao

    diferentes, na valorizao do singular e particular e no isolamento e solido dos

    indivduos.

    7) O sagrado e espiritual no cotidiano so vividos como um processo de fuga

    j que o comunitrio visto como apoio e no como jornada coletiva no processo de

    libertao. Mas o espiritual importante fora e precisa ser entendida como capaz

    de motivar o surgimento de valores de expresso social e transformao do

    cotidiano

    Desta forma, por entender a vida cotidiana como repleta de complexidade,

    contraditoriedade e ambigidade, ela no pode ser negada como fonte de

    conhecimento e prtica social e, nesta relao, que se pauta a prtica social dos

    assistentes sociais. Para Falco (1989), o cotidiano espao e territrio cujas

    relaes sociais se transformam, se concretizam e se perpetuam.

    Para Suguihiro, (1999), a prtica cotidiana dos profissionais de Servio Social

    pode revelar uma importante riqueza que se esconde sob a rotina das aes dirias.

    Isso quer dizer que no cotidiano da prtica profissional existem possibilidades que,

    se desvendadas, podem significar novas e efetivas formas de ao. Para tanto,

    necessrio que os limites encontrados para o desenvolvimento da prtica

    profissional no signifiquem apenas os condicionantes da ao. O desafio est em

    conhecer e trabalhar com as possibilidades que esto presentes na vida cotidiana

    profissional.

    No cotidiano, o Servio Social pode utilizar de conquistas singulares para

    imprimir uma direo social que se quer enquanto ao a suprimir a opresso e a

    desigualdade. Nesse processo de construir a prtica social, necessrio atentar

  • 42

    para a relao dialtica entre singular e coletivo e produzir reflexes na e para esta

    prtica, com todo o seu dinamismo e fluxo de relaes (FALCO, 1989). Para

    Vasconcelos (2002) na complexidade do movimento da realidade em que vivemos

    que esto assentadas para o assistente social as possibilidades de realizao do

    trabalho profissional. Complementando esta idia, Netto (1989) reflete que a

    realidade sempre ontolgica e representa uma totalidade, concreta, estruturada e

    dialtica, no qual um fato qualquer pode vir a ser compreendido, seja com maior ou

    menor grau de complexidade e se efetiva exatamente pelos processos de mediao.

    atravs desse sistema de mediao que o movimento dialtico se realiza e ocorre

    a elevao do abstrato ao concreto.

    Falco (1989) afirma que a prtica social no Servio Social se alia s outras

    prticas, articulada e embasada numa viso de mundo que fornea estratgias de

    ao com base num processo reflexivo partilhado, coletivo, consciente e criativo. De

    forma mais profunda e global, a prtica social18 figura-se em prxis social que supe

    um processo de reflexo/ao em espiral que se ampliou da viso comum da prtica

    pontual e utilitria e elevou o nvel de conscincia para uma ao transformadora,

    resultando em expresso de sujeito coletivo.

    Para Netto (1989), a prxis uma relao necessria na qual o sujeito que

    investiga, num processo cclico, pode reproduzir o processo do objeto investigado e

    imprimir um movimento constitutivo do ser social. Corroborando com isso, Barbosa

    (1990) aponta que a prxis um determinante na produo e autocriao do

    homem.

    Vale destacar o que para Netto (1989) uma problemtica na vida cotidiana

    contempornea, que est presente na coisificao das relaes que o indivduo

    desenvolve enquanto tal. medida que a ordem capitalista no ocupa todos os

    espaos da existncia individual, este indivduo busca como sada a manobra de

    exercitar sua autonomia minimamente e a dominao se escamoteia em

    administrao, sem que ele prprio e os outros percebam. Por fim, a vida cotidiana

    se torna uma justaposio de objetos, substncia e implementos. Acesso

    18 Prtica social aqui situada como possibilidade de compreenso e interveno na realidade, com vistas satisfao mais plena de suas necessidades e motivaes. determinada por jogo de foras, pelo grau de conscincia dos seus atores, pela viso de mundo que os orienta, pelo contexto onde se d, pelas necessidades e possibilidades prprias a seus atores e prprias realidade em que se situam. (FALCO, 1989, p. 58).

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    conscincia s se d quando o indivduo pode superar a singularidade e se

    reconhecer como portador de conscincia humano-genrica e neste espao de

    mediao entre singular e plural, ele se admite como inteiramente homem.

    Finalizando, o foco especfico no cotidiano mostra a compreenso que

    propomos fazer para a reflexo de como se desenvolve o processo de trabalho do

    Servio Social no SCD.

    A cotidianidade carrega em si uma complexidade heterognea pelo fato de

    refletir-se nos mais diversos aspectos da vida (as relaes familiares e de trabalho, o

    lazer e o descanso, as relaes de gnero, a educao, a sade) e nela, a relao

    presente de particularidade. Entretanto, a conscincia como a capacidade que o

    homem tem de conhecer valores e mandamentos morais e aplic-los em diferentes

    situaes e que se pretende verificar no processo que envolve a doao de sangue,

    existe quando rompida a cotidianidade e experimenta-se a suspenso do

    cotidiano.

    assim que partilhamos a importncia das assistentes Sociais do SCD

    entenderem o cotidiano, o significado do sangue e a moral em relao doao de

    sangue para fundamentar um trabalho pautado na educao e na informao como

    forma de conscientizar a doao de sangue.

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    SEO 3 3.1 O PROCESSO DE TRABALHO DAS ASSISTENTES SOCIAIS NO SETOR DE CAPTAO DE DOADORES SCD O Servio Social se insere na diviso social do trabalho coletivo e tem na sua

    trajetria histrica a caracterstica de trabalhador i