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>7 pulsional > revista de psicanálise > número especial, maio de 2005 Tânia Maria de Oliveira Bertotti Quem sou eu? A angústia de uma adoção velada artigos > p. 7-13 O presente artigo aborda uma experiência terapêutica vivida na clínica-escola em que uma paciente questiona sua origem e sua história, trazendo a hipótese de uma adoção velada pela família, em um quadro de muita angústia e permeado por um sentimento de abandono. Dessa maneira pretende-se correlacwionar os afetos advindos dessa vivência com a indagação que a paciente realiza em termos da sua existência. > Palavras-chave: : : : : Angústia, adoção, sentimento de abandono, distúrbios respiratórios The present article approaches a lived therapeutical experience in the clinic-school where a patient questions her origin and her history, bringing the hypothesis of an adoption hidden by her family, in a picture of much anguish and permeated by the feeling of abandonment. In this way it is intended to correlate the affects which arose from what the patient has lived with the investigation that the patient carries about her existence. > Key words : : : : : Anguish, adoption, feeling of abandonment, respiratory disturbance Introdução O tema desse artigo científico pretende abor- dar a angústia vivida por uma paciente que sustenta a hipótese de uma adoção velada e que se questiona a respeito da sua origem e da sua história. A palavra “velada” tem a conotação de incer- teza, já que se trata de algo não revelado, podendo levar o leitor a se questionar do porquê da investigação. Contudo, no papel de terapeuta, devemos considerar o que nos mobiliza e o sofrimento apresentado pela paciente, uma vez que ao longo das sessões a narrativa da mesma ampara as suas sus- peitas. Desta maneira, abordo a angústia vivida por essa paciente na busca da sua história e da resposta à pergunta que não cala: “Quem sou eu?”. A proposta deste artigo se embasa na abor- dagem psicanalítica, tendo como eixo alguns conceitos do campo da psicossomática. Essas

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Tânia Maria de Oliveira Bertotti

Quem sou eu? A angústia de uma adoção velada

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p.

7-13

O presente artigo aborda uma experiência terapêutica vivida na clínica-escola em

que uma paciente questiona sua origem e sua história, trazendo a hipótese de uma

adoção velada pela família, em um quadro de muita angústia e permeado por um

sentimento de abandono.

Dessa maneira pretende-se correlacwionar os afetos advindos dessa vivência com

a indagação que a paciente realiza em termos da sua existência.

> Palavras-chave: : : : : Angústia, adoção, sentimento de abandono, distúrbios respiratórios

The present article approaches a lived therapeutical experience in the clinic-schoolwhere a patient questions her origin and her history, bringing the hypothesis of anadoption hidden by her family, in a picture of much anguish and permeated by thefeeling of abandonment. In this way it is intended to correlate the affects which arose from what the patienthas lived with the investigation that the patient carries about her existence.

> Key words: : : : : Anguish, adoption, feeling of abandonment, respiratory disturbance

IntroduçãoO tema desse artigo científico pretende abor-

dar a angústia vivida por uma paciente que

sustenta a hipótese de uma adoção velada

e que se questiona a respeito da sua origem

e da sua história.

A palavra “velada” tem a conotação de incer-

teza, já que se trata de algo não revelado,

podendo levar o leitor a se questionar do

porquê da investigação. Contudo, no papel

de terapeuta, devemos considerar o que nos

mobiliza e o sofrimento apresentado pela

paciente, uma vez que ao longo das sessões

a narrativa da mesma ampara as suas sus-

peitas.

Desta maneira, abordo a angústia vivida por

essa paciente na busca da sua história e da

resposta à pergunta que não cala: “Quemsou eu?”.A proposta deste artigo se embasa na abor-

dagem psicanalítica, tendo como eixo alguns

conceitos do campo da psicossomática. Essas

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questões serão tratadas por meio da articu-

lação entre o referencial teórico e os con-

teúdos obtidos durante o atendimento

clínico realizado na área de estágio: psicos-

somática.

Para discorrer a parte teórica do artigo recor-

ro aos seguintes autores: Sigmund Freud e

Franz Alexander.

Caso clínicoRessalto que os dados de identificação da

paciente foram alterados como forma de

preservar seu caráter confidencial.*

Ao encontrá-la pela primeira vez na recep-

ção, Helena estava sorridente e notada-

mente ansiosa pelo início do processo

terapêutico. A minha impressão foi de que

ela estava com o pescoço rígido como se es-

tivesse com torcicolo.

Helena se apresentou dizendo ter 35 anos,

solteira e com um filho de 12 anos. Trabalha

e é graduada em Letras. Pareceu-me ser

uma pessoa reservada, embora fosse muito

simpática e sorridente. Ela mora com a mãe

e o filho. O pai faleceu quando Helena tinha

15 anos.

Quando questionei sobre a sua expectativa

em relação ao atendimento, alegou ter pro-

curado auxílio para conseguir estabelecer

um relacionamento afetivo. Ressaltou seu

desejo em ficar com alguém, porém sente-se

insegura, com medo de ser abandonada.

Apresenta em sua biografia uma gravidez na

qual o pai da criança a abandonou durante

a gestação, fato que contribuiu para inten-

sificar sua insegurança em iniciar outro re-

lacionamento, sempre tendo como eco a

certeza do abandono, presente em seus vín-

culos afetivos. Ressalta que sentiu-se culpa-

da por não ter se cuidado mais para evitar

a gravidez.

Helena relatou que sofreu crises de apnéia

seguida de taquicardia. Chegou em alguns

momentos, a comparar a apnéia com crises

de asma.

Quando a paciente descreveu esse sintoma

eu o associei com a minha primeira impres-

são ao vê-la com o pescoço rígido.

A paciente alegou que algumas vezes acor-

dou durante a noite sem conseguir respirar,

sufocada, o que deixou sua mãe em pânico

porque não podia fazer nada para ajudá-la.

Até então nunca havia procurado um médi-

co, em razão desse sintoma.

Ao longo dos atendimentos, observei que a

paciente percebeu a gravidade dessas cri-

ses e o perigo que corria. Comunicou-me

que havia procurado um médico para inves-

tigar esse distúrbio, mas os exames não de-

tectaram nenhum motivo físico para esse

sintoma.

Helena relatou que a primeira crise ocorreu

há três anos e a última em fevereiro de

2004, tendo um total, segundo ela, de dez

crises de apnéia.

Quando questionada a respeito de ter ocor-

rido algum fato que acompanhasse o distúr-

bio, ela não fez nenhuma associação, porém

no terceiro atendimento, notadamente an-

gustiada, iniciou a sessão dizendo que pre-

cisava falar de um assunto que nunca havia

comentado com ninguém em sua vida e

relatou ter sido adotada, enfatizando não

ter dúvidas sobre essa hipótese, embora

*> O nome deste paciente e de todos os que aparecerem nos artigos subseqüentes são fictícios, para

preservar sua identidade.

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sua família negue qualquer alusão a isso.

Essa certeza é fruto das evidências colhidas

desde os seus nove anos. A paciente men-

cionou três situações significativas para ela:

a primeira foi uma conversa em família, em

que sua avó comentou, sem notar a sua pre-

sença, que a mãe de Helena nunca havia

engravidado, mas que o corpo havia muda-

do mesmo assim; em outro momento sua

avó comentou seu sofrimento na gestação

dos filhos e que por isso desejou que sua fi-

lha não sofresse quando tivesse um filho, o

desejo foi tão forte que ela nunca ... (a avó

não finalizou a frase) e na ocasião em que

a paciente fazia pré-natal, a sua mãe encon-

trou uma amiga que lhe perguntou “e aque-

la menina?”, a mãe, desconcertada, pronta-

mente respondeu abraçando Helena, “está

aqui”. A paciente questionou o porquê da

pergunta “e aquela menina?”, em vez de “e

a sua filha?”. Além disso, sua mãe nunca co-

mentou nada a respeito da sua gravidez, se

Helena nasceu de parto normal ou não, se

enjoou etc.

Baseada nessas evidências, Helena, em cer-

ta ocasião, questionou a mãe e a avó a res-

peito da adoção. As duas prontamente

negaram e não deram continuidade ao as-

sunto. Quando questionada da razão de tal

ocultação por parte da mãe, Helena relatou

que talvez sua mãe temesse ser abandona-

da por ela, para ir em busca da mãe biológi-

ca, uma vez que os cuidados maternos

foram realizados sem o pai, em virtude do

seu falecimento.

Helena demonstrou ressentimento ao re-

latar esse assunto, pois gostaria que ti-

vessem contado a verdade quando ela

perguntou e não negado um fato que ela ou-

viu claramente, pois considera essa versão

uma realidade que nunca lhe foi esclarecida.

Em várias sessões, Helena relatou com tris-

teza e incomodo que gostaria de conhecer

sua história, “Quem sou eu?”, dizia ela.

Helena ressaltou que era muito importante

para ela saber de onde veio para obter algu-

mas explicações. A paciente se questiona se

essa insegurança que sente, esse medo do

abandono, não teria ligação com o que a

mãe biológica sentiu na fase da gestação

passando esse sentimento para ela. Helena

tem curiosidades sobre a razão do abando-

no e mencionou três situações possíveis: que

a mãe morreu no parto, ou engravidou nas

mesmas condições que Helena e não pôde

criá-la ou realmente não a queria e a aban-

donou. Ela expressou de forma clara que

gostaria de ver sua mãe biológica, mesmo

que fosse à distância. Também gostaria de

saber como era o pai biológico.

Em sua narrativa percebo apenas a neces-

sidade em conhecer a sua história para ter

uma referência e sanar suas dúvidas, por-

que eu sinto que Helena fala da sua família

com muito amor e respeito, tanto que não

insistiu muito em esclarecer esse fato com a

mãe, guardando-o para si.

A paciente comenta que sua mãe precisou

ficar com ela na escola ao longo da primei-

ra série do primário, porque tinha medo que

sua mãe fosse abandoná-la no colégio, que

nunca mais fosse buscá-la. Na mesma ses-

são, a paciente relembra que quando era

criança, embora sentisse muita vontade, não

conseguia abraçar e beijar seus pais, como se

houvesse uma barreira entre eles.

No nono atendimento, ela comentou que

quando era recém-nascida ficou na UTI, por

um bom tempo. Disse que na ocasião tive-

ram que chamar o padre para batizá-la no

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hospital, porque os médicos achavam que

ela não sobreviveria.

O motivo da internação era uma desidrata-

ção grave. Essa história foi contada pela fa-

mília dela. Quando questiona a mãe sobre o

motivo da desidratação, essa desconversa

ou alega que ela nasceu fraquinha, sem

maiores detalhes.

Sua fala estava carregada de emoção que

aumentava à medida que contava a história.

Ela chorou a sessão toda. Comentou que to-

dos disseram que sua mãe não dormiu ne-

nhuma noite, sempre ficou acordada

aguardando a recuperação da filha. Quando

se recuperou, também o seu pai fazia ques-

tão de acompanhá-la ao médico e seguia as

instruções corretamente, tanto que aos dois

anos ficou uma criança bem gordinha.

Nessa sessão pontuei a Helena que ela fre-

qüentemente questionava-se a respeito da

sua origem, sobre sua história, sobre “Quem

era ela?”. Indaguei se ela já havia percebi-

do quanta história tinha para contar sobre a

sua origem, sobre a sua vida. Acrescentei

que se houve, de fato, um abandono, o aco-

lhimento veio e ela sempre teve ao seu lado

pessoas que lhe que r i am bem. Perguntei

novamente se ela ainda se sentia abando-

nada.

Helena continuou chorando com a cabeça

baixa. Verbalizou que vinha pensando mui-

to no que falávamos em nossos encontros e

que percebeu cada vez mais o quanto foi

amada por esses pais, considerando-se

abençoada por fazer parte dessa família.

Nesse dia, por meio desse relato, houve uma

descarga emocional vivida na sessão, pare-

cia ser algo semelhante ao que se entende

por “ab-reação”, definido por Zimerman

(2001) como

“uma descarga emocional de afetos ligados a

fantasias, desejos proibidos e lembranças pe-

nosas de fatos traumáticos que estão reprimi-

dos no inconsciente ou no pré-consciente,

através de uma irrupção no consciente, provo-

cada pela recordação e verbalização desses

acontecimentos”, desta maneira encaminhan-

do parte desse acúmulo de excitação que não

podia antes ser nomeado.

A partir desse momento, inaugurou-se um

movimento psíquico, uma nova etapa do

atendimento em que a paciente pareceu dar

novos significados aos acontecimentos de

sua vida.

Atualmente, observa-se que Helena de-

monstra estar mais livre em seus relatos,

apresentando igualmente mudança na

forma de se arrumar e no seu vestir. De-

monstra uma postura menos rígida, princi-

palmente no pescoço – região em que o

distúrbio respiratório surgia, parecendo que

“sua garganta está destrancada”.

Na transferência demonstrava estar vincu-

lada e confiante com o processo em anda-

mento.

Recentemente Helena relatou que concluí-

ra que em certas ocasiões sentia-se na po-

sição de “vítima do abandono”, depositando

no outro toda a responsabilidade por sua fe-

licidade, sem questionar a sua contribuição

na relação. Percebeu que realmente é im-

possível ter garantias de que um relaciona-

mento será para sempre. Nesse dia coloquei

para Helena, de forma humorada, que em

nosso primeiro encontro parecia que ela

queria um “vale-namoro com garantias de

casamento eterno”. Demos risada.

Em várias ocasiões pontuei que ela se co-

locava como a abandonada nos relacio-

namentos, sem notar que ela mesma já

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havia rompido namoros.

Pelo andamento do processo, Helena vem

demonstrando posicionar-se frente a situa-

ções do cotidiano, isto é, de forma sutil vem

falando o que realmente pensa sem ter o

medo da desaprovação ou do abandono.

Avalia o que realmente quer sem levar em

consideração tanto o que os outros dizem,

mas dando maior importância a seu próprio

desejo.

Em relação à gravidez, percebeu que não

poderia ter feito nada de diferente na oca-

sião. A culpa por não ter se cuidado mais e

evitado a gravidez cedeu lugar ao orgulho de

ter conseguido cuidar do filho sozinha e ao

amor existente entre eles.

Segundo a paciente, seu objetivo hoje em

terapia é conhecer-se mais para ser uma

pessoa melhor e viver bem, dentro do pos-

sível.

Eu percebo que houve uma transferência

positiva em sentimentos de afeição e con-

fiança da paciente para comigo. Helena

sempre colaborou muito com o processo,

empenhando-se em comparecer às sessões

e despertando curiosidades sobre si.

Esse “amor” à psicoterapia contribui para a

paciente expor questões mais árduas e ínti-

mas, auxiliando a aliança terapêutica.

Os assuntos tratados numa segunda fase da

terapia estão mais relacionados ao encami-

nhamento da sua vida atual e não estão gi-

rando em torno unicamente da questão da

adoção e do medo do abandono, sendo que

esses assuntos viraram pano de fundo.

Abordagem teóricaEm “Recordar, repetir e elaborar”, Freud

(1914) afirma que o indivíduo não lembra coi-

sa alguma do que esqueceu e reprimiu, mas

o expressa pela atuação ou o atua (acts itout). A pessoa o reproduz não como recorda-

ção, mas como ação, o repete, sem saber o

que está repetindo.

É freqüente o fato do paciente se recordar

de algo que nunca poderia ter esquecido,

pois, de fato, o acontecimento não foi notado

em ocasião alguma, nunca foi consciente.

Ao consultar o livro Medicina psicossomáti-ca, de Franz Alexander (1989), pesquisei o

capítulo sobre fatores emocionais nos distúr-

bios respiratórios. Embora aborde a questão

da asma brônquica prossegui com a leitura e

obtive as seguintes informações, muito es-

clarecedoras, se fizermos a correlação com

os sintomas respiratórios descritos pela pa-

ciente.

A função respiratória, além de ser um com-

ponente importante da fala, sofre a influên-

cia da emoção na vida diária, conforme

destaca o autor. Por conta dessa íntima cor-

relação entre as tensões emocionais e as

funções respiratórias é provável que fatores

psicológicos desempenhem um papel impor-

tante na maior parte das doenças dos órgãos

respiratórios.

Ao discorrer sobre a asma, o autor relata que

o fator psicodinâmico nuclear é o conflito

centralizado numa dependência excessiva e

não resolvida da mãe. A dependência repri-

mida da mãe é uma característica constan-

te, ao redor da qual podem desenvolver-se

diferentes tipos de traços de caráter defen-

sivos. Essa dependência tem uma conotação

não tanto de desejo oral de ser nutrido; é

mais o desejo de ser protegido – de ser cir-

cundado pela mãe ou pela imagem materna.

Tudo que ameaça separar a paciente da mãe

protetora tende a desencadear uma crise

asmática.

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Segundo as pesquisas do autor, a história de

rejeição materna é encontrada como uma

característica recorrente na vida de pacien-

tes asmáticos. A criança, que ainda neces-

sita do cuidado materno, naturalmente

responde à rejeição materna com o aumen-

to do sentimento de insegurança e um maior

apego à mãe.

O autor menciona que E. Weiss, baseado em

um estudo psicanalítico de um caso, desen-

volveu a teoria de que a crise de asma repre-

senta o choro reprimido, chamando a mãe.

Futuramente essa teoria será comprovada

pelo fato de que os pacientes asmáticos

sentem dificuldade para chorar. Observa-se

que há uma melhora após o paciente ter

confessado alguma coisa pela qual sentia-

se culpado e esperava rejeição. A confis-

são demonstra para o terapeuta a relação

conturbada entre os sentimentos de cul-

pa e conseqüente rejeição esperada pelo pa-

ciente.

DiscussãoCorrelacionando a leitura do texto “Recor-

dar, repetir e elaborar”, Freud (1914), com o

caso clínico, observa-se que ao longo dos

atendimentos lembranças esquecidas da in-

fância de Helena foram emergindo no en-

contro terapêutico. Helena, ao verbalizar a

respeito de sua internação, vivenciou uma

descarga emocional na sessão. A partir des-

se momento houve uma elaboração psíqui-

ca e inaugurou-se um movimento psíquico,

levando a paciente a dar novos significados

aos acontecimentos de sua vida.

De acordo com o texto seria possível levan-

tar a hipótese de que Helena, ao engravidar

e ser abandonada pelo namorado, estives-

se repetindo algo que pudesse ter aconteci-

do com a sua mãe biológica. Isto é, algo que

a paciente tenha reprimido expressando-o

por meio da atuação.

Prosseguindo com a reflexão, quiçá o mais

importante não seja o que a mãe biológica

sentiu quando estava grávida, mas as fan-

tasias construídas por Helena a partir da

idéia de que sua mãe “adotiva” temesse ser

abandonada por ela, por isso não lhe reve-

lou a “verdade”. Com isto, a paciente proje-

ta seu temor de ser abandonada na própria

mãe adotiva, ela parece construir uma fan-

tasia que dê conta de ser abandonada.

A apnéia está relacionada a um distúrbio

respiratório em que há perda do ar e morte

por não conseguir respirar. Como uma

angústia da separação, quando o cordão

umbilical é cortado e o bebê precisa acio-

nar os seus pulmões para sobreviver, isto

é, o primeiro corte que impulsiona para a

vida.

Percebe-se uma grande dificuldade da pa-

ciente em lidar com a questão do abandono,

da separação e da rejeição, o que leva a pa-

ciente a ter medo de se expor nos relacio-

namentos por considerar que a separação e

o abandono serão inevitáveis.

Como coloca Franz Alexander (1989) a

história da rejeição materna é encontrada

nos distúrbios respiratórios. Destaca que

a criança responde à rejeição materna com

o sentimento de insegurança e maior ape-

go à mãe. Observa-se essa insegurança e

esse apego, quando a paciente relata que

sua mãe precisou permanecer na escola

enquanto ela estava em aula, porque sen-

tia medo que sua mãe fosse abandoná-la.

Pode-se levantar a hipótese de que esse dis-

túrbio respiratório simbolize o ocorrido no

espaço de tempo entre a separação da mãe

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biológica e o encontro com a mãe adotiva;

de acordo com o autor a crise respiratória

representa o choro reprimido chamando pela

mãe. Talvez represente a falta de alimenta-

ção ou a falta de ar, o que justificaria a de-

sidratação grave que levou a internação de

Helena em uma UTI.

Considerações finaisA conversão, em sua definição psicanalítica

clássica de solução de compromisso para o

conflito desejo/repressão, se constitui no

aspecto central do sintoma histérico de base

simbólica e inconsciente, segundo Freud

(1896). Portanto, somatizar é exprimir o so-

frimento emocional sobre a forma de quei-

xas físicas.

Helena sofreu várias crises de apnéia e,

como já citado neste trabalho, chegou a com-

parar as sensações que tinha com a da asma

brônquica.

Ao analisarmos as teorias freudianas e as de

Franz Alexander (1989) é possível dizer que

a apnéia relatada pela paciente era um dis-

túrbio psicossomático, cuja raiz repousa na

sua suspeita de ter sido adotada, dúvida

essa que nunca foi esclarecida gerando uma

grande angústia na paciente. Essa afirmação

é reforçada pelo fato dos médicos de Hele-

na não terem encontrado nenhum motivo

físico para o seu problema.

Se considerarmos a interação do emocional

com os sintomas corporais de uma forma

mais ampla, podemos afirmar que não se

pode conceber o adoecimento desvinculado

da participação das esferas biológica, social/

cultural e mental/emocional.

A paciente aproveitou o espaço oferecido

a ela para verbalizar todas as suas angús-

tias e medos que estavam armazenados

há muito tempo e que tanto a mobiliza-

vam.

Ao longo dos atendimentos, as queixas ini-

ciais tornaram-se pano de fundo e atual-

mente os assuntos estão mais relacionados

ao encaminhamento da sua vida atual.

Helena conseguiu refletir a respeito de

“Quem era ela” e dos acontecimentos de sua

vida, atribuindo a eles um novo significado.

Os resultados dessa reflexão puderam ser

notados no seu modo de vestir, na sua pos-

tura física e na suavização da rigidez na área

do pescoço, apresentada no início do pro-

cesso terapêutico.

Vivenciar com a paciente a construção do

vínculo terapêutico, as descobertas feitas

pela paciente a respeito dela mesma, assim

como presenciar o seu movimento psíquico

representou uma experiência ímpar para a

minha formação.

ReferênciasALEXANDER, Franz. Medicina psicossomática –

Princípios e aplicações. Porto Alegre: Artes

Médicas, 1989.

FREUD, Sigmund. A etiologia da histeria. In: Edi-

ção Standard Brasileira das Obras Psicológicas

Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. III.

_____ Recordar, repetir e elaborar (Novas

Recomendações sobre a técnica da psicanálise

II). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psi-

cológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago,

1996. v. XII.

ZIMERMAN, David E. Vocabulário contemporâneo

de psicanálise. Porto Alegre: Artmed, 2001.

Artigo recebido em janeiro de 2005

Aprovado para publicação em março de 2005