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A VIDA E A DOR - UM CASOAlfredo Mendes de Matos ............................................................................................................................................. 4

A DOR NOS FINAIS DO ANTIGO REGIMEAntónio Lourenco Marques .......................................................................................................................................... 7

A EMERGÊNCIA DA DOR NO CHÃO DAS PALAVRASFernando Paulo Louro das Neves .............................................................................................................................12

CATÁSTROFES NATURAIS NA VISÃO DE AMATO LUSITANOMaria Adelaide Neto Salvado .....................................................................................................................................16

AMATO, VESÁLIO, PARÉAlfredo Rastreiro ........................................................................................................................................................21

O SEGREDO NA IATROLÉTICARomero Bandeira Viana Pinheiro Mário Lopes ........................................................................................................23

PLANTAS USADAS POR AMATOA M Lopes Dias ...........................................................................................................................................................26

DESERTIFICAÇÃO E DESENVOLVIMENTOAntónio Maria Romeiro Carvalho ...............................................................................................................................32

V JORNADAS - CONCLUSÕES ................................................................................................................................. 38

NOTICIÁRIO ................................................................................................................................................................39

SUMÁRIO

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Page 4: SUMÁRIO - UBI

Medicina e mentalidades

A interacção entre a medicina e as mentalidades proporciona um fecundo campode investigação, susceptível de aclarar, de forma exemplar, as realidades maiscontroversas da história da medicina e mesmo das ciências humanas. Há matériasque reflectem a confluência de saberes diversos, desde o saber médicopropriamente dito, à cultura popular, à arte, à literatura, etc., e é esta naturezaprofunda que deve ser explicitada abertamente, quando se pretende usufruir oâmago das coisas.

Os saberes devem pois manifestar-se com o espírito do bom convívio, semvassalagens ou opressões entre eles, confiantes da riqueza que só esta posturapode engendrar. A interacção natural entre saberes diversos, eclodindo em pontosmarcantes da história das ciências e dos conhecimentos, é a raiz mais genuina demuitos desenvolvimentos científicos ou das práticas e dos ritos que enquadram aapresentação de inúmeras realidades.

“Medicina na Beira Interior-da Pré-história ao Século XX” publica mais uma sériede comunicações apresentadas na Escola Superior de Educação de CasteloBranco, durante os Encontros anuais, balizados por limites só aparentementeredutores, isto é, pela regionalidade, já que os temas aflorados ligam-seinevitavelmente às grandes questões do Homem e do Mundo. A Beira Interiorcomunga assim com o universal e é esta característica da nossa cultura que asJornadas de Estudo têm exemplarmente demonstrado.

As V Jornadas vêm a caminho. No Outono, novamente os investigadores . eestudiosos que têm, com persistência, dado realidade a este projecto da Medicinana Beira Interior, vão reunir-se para apresentar o resultado do seu trabalho. AmatoLusitano prolonga-se como referência maior da nossa cultura científica. E o corpo,que dá corpo às experiências mais autênticas do sofrimento e da dor, mas tambémàs da ventura, seguramente esplendorosas e eternas, congregará referências ediálogos que aguardamos com expectativa.

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A VIDA E A DOR - UM ESTUDO DE CASO

Por Albano Mendes de Matos*

A vida, como processo orgânico-existencial,desenha-se entre dois momentos. Por um lado, ummomento de criação, produto sexual do amor, umasituação absoluta do homem enquanto Ser. Por outrolado, numa perspectiva ontológica, um momento dohomem enquanto Nada, nos limites da Morte. Ambas,sob o ponto de vista antropológico, situações opostas,negando-se: a primeira inicia a presença daindividualidade de cadahomem, plena de signifi-cações biológicas e cultu-rais, a Vida; a segunda re-presenta a absoluta au-sência de significações,destruindo a individualidadedo ser humano, a Morte.

Todo o homem começapor existir como imediati-dade de si, porque se reali-za em si, num contínuo actode afirmação e liberdade,entre a dor e a felicidade,entre a dor e o prazer, nummundo de especificidadesnaturais e culturais, semprehumanas, vivências con-cretas que formam oconteúdo da sua identi-dade, percepcionando omeio envolvente nos seusritmos vitais, em situaçõesde plenitude ou de incom-pletude, como sujeito deestados afectivos, emformas de alegria, tédio,melancolia, angústia, ansiedade e dor, constituintesou apreensões da consciência, nas relaçõesestabelecidas com o real sensível ou com a super-realidade do imaginário.

A consciência da existência no mundo determinaa atitude do homem na vida. Ele é uma personalidadeque se torna coerente ou incoerente, tomandoposições consoante o que o mundo lhe apresenta,interpretando as vivências e as situações, enquantoSer desse mundo. Encontrando-se a si próprio,aceitando a vida como ponto de partida, perante o

qual não pode recuar, evidência envolvendo osentimento da personalidade, como realidadeparticipante do universo, o homem relaciona e inte-gra tudo o que percepciona, afirma-se na totalidadedos acontecimentos e das impressões recebidas,como forma de conhecimento. Esse conhecimentocondiciona uma atitude-tipo que exprime as posiçõesque o homem toma em face de si próprio e da vida,

definindo um dos temascentrais da antropologia cul-tural e da antropologiafilosófica: a concepção dapersonalidade. Personalida-de que se forma no decursodas experiências sofridas eassumidas e consolida-se navivência e na luta contra asdificuldades e os obstáculosencontrados, superando-ospor uma tomada de auto--confiança.

A vida humana é, então,todo o conjunto de experiên-cias, muitas vezes contradi-ções, determinadas pelosacontecimentos, entre osquais se podem contar, porexemplo, a dor causada pelaperda de um ente próximo, oupelo desconhecimento dospais, como no caso dos“expostos” ou enjeitamentode crianças que foi instituiçãooficializada ou tolerada atéaos princípios deste século.

O homem procura a felicidade, mas, algumasvezes, sofre uma luta interior, tragédia existencialincompreensível, nas raias da dor, quando nãoreconhece qualquer culpabilidade, insurgindo-se con-tra a vida, o destino, contra si próprio, sofrendo nasua condição humana. Diz Santo Agostinho que “serhomem neste mundo significa ser doente”, o quesignifica que ser homem é ser dor. Dor na afirmaçãodo “querer ser”, na procura de homem integral,realização suprema entre o “não-ser” e o “ser”, noencontro com o destino, com desejos de imortalidade,

O homemprocura afelicidade,

mas, algumasvezes, sofre

uma lutainterior,tragédia

existencialincompreensível,

nas raias dador, quando

não reconhecequalquer

culpabilidade,insurgindo-se

contra a vida, odestino, contra

si próprio,sofrendo na

sua condiçãohumana.

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na sua pequenez, entre o nascimento e a morte,átomo do universo, mas superior a qualquer outracriatura e personalidade única no “ser-em-si”.

Sob o ponto de vista psicológico, a dor é uma dasmais profundas motivações negativas docomportamento humano, como estado quepretendemos afastar ou destruir a sua causa, querseja a dor física, quer seja a dor moral.

É sobre a dor moral, causada pela negação derecompensas sociais desejadas ou por atentadoscontra a integridade psicológica do eu, quepretendemos tecer algumas considerações, referindoaspectos concretos do fenómeno social dos“expostos”, numa aldeia da Gardunha.

A dor só é possível quando se verifiquem,simultaneamente, três condições: existência de ummal em relação ao sujeito (condição referente aoobjecto); contacto do sujeito com esse mal (condiçãoreferente às relações entre objecto e sujeito);percepção do mal pelosujeito (condição referenteao sujeito).

Na percepção da dor, omal físico ou sensível rela-ciona-se com o corpo,enquanto o mal moral ousupra-sensível ataca aalma, sob a forma intelec-tiva, podendo ambos osmales apresentar umarelação de interdepen-dência. Podemos apresen-tar alguns exemplos da dor moral, enquanto fenómenopsíquico relacionado com o sujeito que sofre o malmoral e dele tem percepção, provocando-lhe tortura,angústia, desilusão, visões e sonhos. Em face da dormoral, são diferentes os comportamentos dos sujeitosque a sofrem, pois são condicionados pelas estruturaspsíquicas, força anímica e grau de sensibilidade, quelimitam as fronteiras da consciência perante o mundoe com a corrente dos acontecimentos.

Antero de Quental passa a vida envolvido por umador constante, desequilíbrio nervoso, perdida aesperança, sofrendo as torturas da solidão e dailusão, nada encontrando, como evidenciam osseguintes versos:

Abrem-se as portas d’ouro com fragor...Mas dentro encontro só e cheio de dor,Silêncio e escuridão - e nada mais!”

Florbela Espanca, em constante sofrimento senti-mental, angustraaa perante a felicidade perdida,sente a vida com exaltação mórbida, em evidentesolidão:

“Neste triste convento aonde eu moro,Noite e dia, rezo e grito e choro,E ninguém ouve...ninguém vê...ninguém!”

Frederico Nietzche fez gravitar todo o conjunto dasua obra em volta da dor, questionando os problemasda vida, por certo, doente de corpo e de espírito. Asua vida é um combate perdido com o sofrimento,reagindo de modo agressivo, tentando pregar asuperioridade do homem perante a dor:

A dor profunda torna nobre...Somente o grandesofrimento é o grande libertador do espírito!O super-homem atinge-se pela dor!”

Em Portugal, sempre existiram filhos gerados forado casamento, mercê de condicionalismoseconómicos, sociais e conjugais, como sempre severificou a existência de crianças abandonadas, comespecial relevo para os “expostos” ou enjeitados, atéaos princípios deste século, em actos dolorosos dedesespero e angústia, que muitos, hoje consideramdesumano, mas que doi comportamento insti-

tucionalizado. As crian-ças, à nascença ou tem-pos depois, fruto deamores recônditos, eramabandonadas nas portasdos conventos, nas“rodas” conventuais oudas misericórdias, nosadros das igrejas, noshospitais, ou às portasdas casas e emquaisquer outros locais.

A existência aos“expostos”, objecto de diplomas régios, ondeemergem as leis de Pina Manique, foi, numa grandeparte dos casos, obrigação dos Concelhos, atravésdas Misericórdias e dos Hospitais. Depois de seteanos, alguns “expostos” foram recolhidos na Casa Pia,especialmente quando não eram integrados nasfamílias acolhedoras.

Em pesquisa documental e entrevistas ainformadores, verificámos a existência de 54“expostos” na aldeia do Alcaide, na segunda metadedo século XIX, bem como a ocorrência de criançasdo Alcaide enjeitadas e expostas em outras terras,normalmente no “campo”, a Sul da Serra daGardunha, por certo, em circunstâncias assumidasdolorosamente pelas mães, mesmo que na origemdo nascimento não estivesse um acto de amor.

O acolhimento das crianças enjeitadas, segundo ocostume, por famílias adoptivas, quase sempre defracos recursos económicos, foi um acto dehumanidade para com um ser indefeso, que temnecessidade de relações autênticas com o pai, a mãee os irmãos. Embora integrado numa família deacolhimento, o enjeitado, quando desperta para a vida,sente a dor e, muitas vezes, é confrontado comsentimentos de vergonha, por não conhecer os

A consciência da existência no mundodetermina a atitude do homem na vida.Ele é uma personalidade que se tornacoerente ou incoerente, tomandoposições consoante o que o mundolhe apresenta, interpretando asvivências e as situações, enquantoSer desse mundo.

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verdadeiros pais, entrando no mundo com o ferrete de“exposto”, aposto ao nome, como era obrigatório nosregistos paroquiais, por não ter apelidos de família, oque levava a não ser considerado pessoa humana nasua totalidade, mas um ser social diferente.

Um “estudo de caso”, na aldeia do Alcaide,impressiona profundamente, por serum caso exemplar de vivência de umexposto. O enjeitado foi exposto àporta de uma família pobre, em 10 deNovembro de 1880. Filho do acasoou do infortúnio, este exposto singrouna vida, em virtude de uma lutaconstante: alcançou a patente dePrimeiro-Tenente, na Armada, foideputado, na Assembleia Nacional,em duas legislaturas e foi Chefe deGabinete de três Ministros,declinando e repugnando o trata-mento de “excelência”, mesmo quenão pudesse dispensa-lo, como refereem carta dirigida à Liga dos Amigosdo Alcaide, em 1960, comentando:“o nada que sou só o devo ao trabalhoe ao esforço de cada dia”.

Este alcaidense apresenta-se na vida com umcontínuo sentimento doloroso, a dor moral que jamaiso abandonou, por não ter conhecido o pai que orecusou e a mãe que o enjeitou, declarando na referidacarta:“Ainda não sei porque bulas fui parar ao Alcaide, istoé, se por intermédio da medieval Roda dasMisericórdias, se por desumano abandono paterno.Tendo já bem vincada na própria carne a escravidãoem que fiquei, chegado que fui à idade de tudoesclarecer e também de alguns direitos reivindicar,vencido mas não conformado com tamanhasmonstruosidades sociais, adaptei-me na tristepassividade dos desgraçados. Até aos dezanove anos,poucos sítios haverá na nossa aldeia em que existaum pouco de terra que não fosse remexida pela minhaenxada, uma pedreira, cujos blocos uniformes nãorecebessem também o meu fraco impulso para oarranque, um pedaço de mato, uma pequena seara,um caminho que não tivessem conhecido a debilidadedo meu braço, que manejava a foice, a podoa, a

picareta, a pá, etc., no mourejamento de um pedaçode pão, quantas vezes numa exaustão física de queainda conservo dolorosas lembranças. Os pobres paisadoptivos, que também não sei como o vieram a ser,esses procuravam minorar a minha triste sorte, massem o poderem.”

Desenhou-se, na consciência destealcaiense, a partir da tomada deconhecimento do mundo e da vida,algo de trágico, que jamais pôdeexpulsar e que determinou toda umaconcepção da própria vivência, nadimensão em que Miguel de Unamunorefere como o “sentimento trágico davida”, sentimento evidenciado de formadolorosa, ainda nos 80 anos deexposto, por quem, como alude nacarta, “por vezes macerou os joelhosna prática de uma pura religiosidade,penitentemente se confessou,comungou e ajudou à missa, até aosdezanove anos.”

O recolhimento de ser “exposto”,com a consequente percepção do mal

moral que acompanhou uma vida e do qual o enjeitadonão pode separar-se, constituiu o objecto da sua dor,tão pessoal como a sua identidade.

A ascenção social, o sucesso profissional e adistinção política, enquanto estímulos positivos, nãotiveram reflexos psicológicos ou psíquicos quepudessem eliminar a dor sentida, porque indelével,assumida enquanto criança, como sinal denegatividade. Estamos perante uma dor teleológica,acompanhando um destino, não como expiação depena, pois não houve qualquer culpabilidade, pecadoou crime próprios, por ter aparecido no mundo como estigma ou a marca de “exposto” ou de “enjeitado”,sem possibilidades de evitar que a acção da dordeixasse de sentir-se, porque a memória alimentoucontinuamente o pensamento, prolongando-se dopassado para o futuro.

* Licenciado em Antropologia. Investigador.

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Manuel Joaquim Henriques de Paiva e a literatura médica dos pobres

A DOR NOS FINAIS DO ANTIGO REGIME

Por António Lourenço Marques*

Os temas da vida e da dor na Beira Interiorescolhidos para polarizar as comunicações destasIV Jornadas, em conjunto com novos estudos sobrea obra e a personalidade de Amato Lusitano,sugerem-nos um olhar sobre o século XVIII, a partirda obra de mais um médicoalbicastrense que é justoevocar e assinalar. Referimo--nos a Manuel JoaquimHenriques de Paiva, nascidona rua do Relógio, em 1752(1),com uma obra vastíssima maspouco lembrada.

O esquecimento a que temsido votado, desde há muito,já Maximiano Lemos lamenta-va em 1916, ao fazer notarque, numa época em que opaís não tinha sido prósperoem “cultores das ciências”,este representante da ilustrefamília dos Henriques de Paiva“subscreveu uma infinidade detrabalhos de vulgarização”(2)

que se destacaram dentro dopanorama científico e culturalextremamente limitado de então. A sua bibliografia,que é extensa, inclui cerca de vinte obras originais,quase trinta trabalhos traduzidos e ainda uma dezenade outras “obras alheias que este Autor ordenou,corrigiu, aditou ou fez imprimir”(3).

Note-se que, no período em referência, circularamentre nós quase que exclusivamente obras traduzidasque, de certo modo, “desnacionalizaram” a medicina,sendo raríssimos os médicos, mesmo professoresuniversitários, que se impuseram pela originalidadeou que produziram obra própria. Não foi o caso deM. J. Henriques de Paiva que, nas obras originais,tratou de vários temas, como os do reconhecimentoe tratamento das mortes aparentes, as asfixias e osenvenenamentos, assuntos em voga na época, eelaborou outros trabalhos sobre farmacopeia ouainda sobre o tratamento de feridas, etc.(4)

Todas as épocas têm as suas vicissitudes. Asinvasões francesas, ao contagiarem o país com oimaginário da revolução e das ideias liberais,suscitaram sentimentos correspondentes emalgumas personalidades conscientes dos

constrangimentos que, entrenós, acorrentavam os espíritos,descrentes num projecto internoque edificasse a nação. J. M.Henriques de Paiva tambémnão foi insensível a esseencantamento. Tais “amoresproibidos” foram-lhe no entantofatais e o nosso médico, comuma carreira brilhante, veio aser preso em Almada, sendodepois proscrito para ascolónias e despojado de todosos seus cargos e haveres. Foio Brasil que o acolheu,mantendo aí a actividade degrande dinamizador científico.Ainda foi reintegrado nas suasdignidades, em 1816, masnunca mais regressou à pátria,vindo a falecer na Baía, em

1829, com quase 77 anos.Uma boa parte do acervo da sua obra pertence ao

que se convencionou chamar literatura médica popu-lar, muito desenvolvida no século XVIII. A escassezde profissionais titulados e a insuficiência dosconhecimentos dos médicos e cirurgiões que entãopraticavam favoreceram o florescimento de uma,chamemos-lhe assim, medicina doméstica, que, apar de alguns cuidados com valor na prevenção ecura de certas doenças, fazia fé também em muitosremédios e práticas de cariz charlatanesco ou natradição das origens mágica e de apelo aosobrenatural que caracterizaram os mais primitivosgestos da arte de curar.

Perante este quadro, houve necessidade dedesenvolver toda uma literatura cujo objectivo era adivulgação dos conhecimentos baseados na

As invasõesfrancesas, aocontagiarem o

país com oimaginário darevolução edas ideiasliberais,

suscitaramsentimentos

correspondentesem algumas

personalidadesconscientes

dosconstrangimentosque, entre nós,acorrentavamos espíritos,descrentes

num projectointerno queedificasse a

nação.

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medicina oficial, capazes de orientar as pessoas acuidarem com sucesso da sua saúde, quer tratandoquer evitando as doenças, mesmo ‘’sem a ajuda dosmédicos. Era em particular àqueles que mais longese encontravam dos locais onde havia médicos, emespecial aos camponeses e aos habitantes pobresdas cidades, que estes livros se destinavam.

Havia também uma grande desconfiança emmuitos dos que praticavam a medicina, mesmo comtítulos oficiais. A esta literatura cabiaassim uma outra função, a dedenunciar determinadas práticasaberrantes, pondo a população desobreaviso contra os curandeiros echarlatães que enxameavam o país.

Estas obras de divulgaçãoinserem-se assim num movimentode circulação das ideias médicas,que se desenvolveu até à situaçãoactual, em que são produzidostrabalhos com característicasdiversas. Aqueles que sãoestritamente técnicos, como asenciclopédias e os guias práticos; asobras que se inserem numa tradiçãohumanista (hipocrática ou cristã),destinadas a promover umadeterminada moral relacionada com a medicina;outras preconizam uma medicina do homem total,particularmente escritas por psicanalistas epsiquiatras, e finalmente há médicos que escrevemtrabalhos para o grande público em que criticam ofuncionamento interno da medicina contemporâneaou traduzem uma posição de plena ruptura com aformação tradicional universitária e hospitalar epreconizam soluções alternativas, como é o caso dasmedicinas paralelas.(5)

Vamos fazer as nossas reflexões sobre as ideiasrespeitantes à dor, nos forais do século XVIII,utilizando como referência o livro O aviso ao povoàcerca da sua saúde de Tissot, um médico deLausanne que viveu entre 1728 e 1797, traduzidoentre nós por M. J. Henriques de Paiva, que oacrescentou ainda com variadíssimas notas. A obrareflecte com muita fidelidade o estado deprimenteda medicina da época. No prefácio da autoria dotradutor, este, escandalizado com a opinião que porvezes vingava acerca dos médicos sábios, isto é“aqueles que estudam e querem ser esclarecidos”,denuncia o “rancor que os médicos de rotina,chamados práticos, têm aos verdadeiros médicos,àqueles que gastam o tempo sobre os livros e quesabem distinguir a verdadeira da falsa experiência”(6).

O Aviso ao povo, que o médico albicastrensedivulgou com muito empenho, era “destinadounicamente para aqueles que, por se acharem longedos Médicos, não podem gozar dos seus socorros”,

isto é, à população “mais numerosa e à mais útil,que morre mizeravelmente nas Aldeias, por moléstiasparticulares ou por epidemias gerais”(7).

A outra finalidade desta literatura popular, como járeferimos, era dar a conhecer “as curas que devemevitar-se”(8), nas próprias palavras de Paiva.

Juntamente com esta “literatura médica para ospobres” circulavam outras obras mais antigas,algumas com enorme sucesso, apesar de

profundamente desactualizadas. Foi ocaso do Thesaurus Pauperum dePedro Julião, o papa João XXI, natu-ral de Lisboa, onde nasceu cerca de1218. Aqui se compilava umaterapêutica extremamente rudimentar,que pouco se distinguia da “prestadaaos indigentes, no exercício dospreceitos cristãos”(9) e que sobreviviahá centenas de anos, pois o livro nãotinha parado de se editar. Só emEspanha, de 1705 a 1795, teve seteedições! A célebre obra de AndréTissot inseria-se no contexto daspreocupações sobre saúde colectivaque a consciência médica maisgenuína manifestava na altura, numquadro de penúria de profissionais

competentes para assistir e acompanhar directa ecorrectamente a maioria da população. Estasubsistia, regra geral, em condições profundamentedegradadas, onde as mais elementares exigênciasde higiene não eram sequer cumpridas.

No entanto, as ideias de Tissot despertarambastante interesse no Portugal da época, pois comonos informa Henrique de Paiva, “O aviso ao povo” jáantes por cá circulara, mas com uma tradução “cheiade infinitos erros” pelo que decidira fazer “novaversão, com algumas anotações e a descrição demuitas doenças que se não acham no original”, paraque “não apareça mais entre nós tão desfiguradocomo anda, nem as suas doutrinas e os seuspensamentos tão invertidos”(10). Estas palavrastraduzem essa outra ideia acerca da má qualidadede muita da nossa literatura “médica” do século XVIII,situação que felizmente alguns médicos, em espe-cial do último quartel, procuraram modificar. Paivadeve ser incluído no rol desses espíritos queprotagonizavam tal renovação indispensável. A sualigação, por laços familiares, a Ribeiro Sanches, dequem era sobrinho paterno, e que frutificou atravésdo intercâmbio de obras científicas e de diversacorrespondência, contribuiu certamente para estaatitude.

J. M. Henriques de Paiva justifica o seu interessepor Tissot exactamente porque este “observa comexactidão a Hipócrates, nesta obra e em todas asmais que publicou; como amigo sincero da verdade,

“A dorcontínua e a

vigíliadestroem a

saúde,produzem

comumentea febre e

debilitandoos nervoscausam deordinário

convulsõesou a histeria

nasmulheres e

uma afecçãohipocondríacanos homens”

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livre de preocupações e com juízo sólido, demonstraas mínimas circunstâncias da enfermidade eprescreve os remédios simplices, que a experiêncialhe mostrara: O seu modo durará sempre por nãoser fundado em suposições”(11). Ora este é overdadeiro pensamento de Hipócrates que noopúsculo Sobre a medicina antiga condena aquelesque “arrastam a medicina, longe do verdadeirocaminho, para a hipótese”(12).

De o Aviso ao Povo à História da Dôr

Estes livros de divulgação médica permitem-nospulsar algumas das ideias básicas que davam corpoao entendimento contemporâneo das realidades damedicina. É o caso da dor, uma queixa comum damaioria dos doentes e que suscita um discurso comvariações historicamente quase imperceptíveis, daparte daqueles que a sofrem,mas com um desenvolvi-mento apreciável quandoreferido aos interesses dainterpretação médica ecientifica.

É assim que verificamosque a dor, ao representar umsinal de alarme para o doentee uma chave de acesso aoconhecimento da doençapara o médico, tem já, naépoca a que nos referimos,uma definição a todos ostítulos dúplice. É por um ladouma sensação única, particu-lar, bem individualizada,reconhecida como dor pelodoente e por outro lado poderepresentar também “o conjunto de todos osfenómenos fisicos, psicológicos ou morais, sentidoscomo desagradáveis ou angustiantes”(13). É a duplateoria da dor, mecânica ou física e psicológia.

Embora esta literatura reflicta as ideias quecorporizaram as doutrinas espiritualistas, em particu-lar o vitalismo, na sua versão mais destacada daEscola de Montpellier, baseia-se também nasdoutrinas que atribuem aos tecidos vivospropriedades particulares.

O vitalismo da Escola de Montpellier muitodifundido então, em todos os meios médicos,baseava-se na admissão de duas causas superiores:uma delas, inteligente, que regulava as acções daconsciência e a outra de natureza experimental. Porum lado, a alma ou sentido íntimo e, por outro, aforça ou princípio de vida, que dirige os “actos dedesenvolvimento e de conservação do indivíduo, semque deles tenha consciência”.(14)

Esta Escola representava a tradição hipocrática,

cujas ideias fundamentais se inspiravam, por seulado, no pensamento de Pitágoras e de Platão.Reconhecia duas causas primordiais de todos osfenómenos do corpo humano: uma força superior,dominante, inteligente, comparada ao fogo, e umaoutra chamada natureza. A acção desta última forçadesempenhava um papel fundamental, porque“atenuava as causas nocivas favorecendo aseliminações e provocando a cocção, quer dizer umamodificação, uma elaboração dos humoresviciados(15).

A alteração dos humores era assim o outrocomplemento desta explicação das doenças, nadoutrina hipocrática. Isto é, o corpo humano possuíauma mistura dos quatro humores fundamentais: osangue, a pituita, a bílis amarela e a bílis negra eseria o desequihbrio destes humores, quedeterminavam a doença, que por sua vez se

apresentava, sob a forma defluxo, quente ou frio. “Háessencialmente saúde, quan-do estes princípios estãonuma justa razão de mistura,de força e de quantidade, eque a mistura é perfeita; hádoença quando um destesprincípios se encontra ou emfalta, ou em excesso, ou,isolando-se no corpo, não estácombinado com os outros”(16).

O vitalismo da Escola deMontpellier, já expurgado, emgrande medida, das doutrinasanimistas, favoreceu tambémo desenvolvimento do conceitode sensibilidade, conduzindo-o para um campo de natureza

mais estritamente fisiológica. Questiona-se então,relativamente à sensibilidade do corpo, quais asregiões com esta propriedade. “São unicamente osnervos que são dotados de sensibilidade(excitabilidade) ou bem é necessário conceber quecada parte do corpo tem o seu modo de sensibilidadeespecífica, o seu próprio sistema de reacção, os seuspróprios limiares?”(17). A teoria fisiológica da dor deBichat, o mais ilustre médico que investigou sobreesta realidade, no final do antigo regime, procuroudar resposta a estas duas questões. Existem já combastante clareza as ideias de topografia e dos limiaresda dor.

O capítulo VIII do “Aviso ao povo” é dedicado à dorde dentes. A primeira preocupação do autor é indicaras causas principais destas dores “cuja duração eviolência costumão ser tais que ocasionam vigíliasrebeldes, muita febre, delírio, inflamação, apostemas(abcessos), chagas, cáries, convulsões esíncopes”.(18) Assim, duas das causas principais da

“A paixão dacólera ou iraperturba a

alma,desfigura asfeições do

rosto,precipita a

circulação dosangue e

deforma asfunções

vitaise animais:

muitasvezes,

ocasionafebres ou

enfermidadesagudas e

algumas amorte

repentina

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dor de dentes são a “cárie ou podridão” e a“inflamação do nervo”(19). Como se vê, compreendia--se o papel dos nervos no fenómeno da dor. Segundoa teoria de Haller (1708-1777), que imbuiu muitosdos escritos médicos desta época com a sua teoriada irritabilidade, a sensibilidade pertenciaprecisamente aos nervos que transmitiam asimpressões ao cérebro originando a sensação. Omaior ou menor desenvolvimento destas teoriasestava evidentemente dependente do estado dosconhecimentos, quer anatómicos quer fisiológicos,vigentes quando foram formulados e o conhecimentodo sistema nervoso central era ainda muito primitivo.Foi Bichat quem na teoria da sensibilidade “animal”desenvolveu então a ideia da transmissão daimpressão ao cérebro para originar a sensação. Ador de dentes tem pois origem mecânica, na“inflamação” e na “podridão”, mas pode tambémresultar de um “humor catarral frio” ou por uma“acrimonia geral da massa do sangue”(20). Estes sãopuros conceitos hipocráfcos, como vimos, quepersistiram e que dominaram a medicina através detodos os tempos, até às versões, já contemporâneas,enriquecidas pelas noções da toxina e da antitoxinae do antigénio e do anticorpo.

Por sua vez, a dor podia deixar marcas profundasna própria personalidade, provocando oaparecimento de nevroses. “A dor contínua e a vigíliadestroem a saúde, produzem comumente a febre edebilitando os nervos causam de ordinárioconvulsões ou a histeria nas mulheres e uma afecçãohipocondríaca nos homens”(21). Esta relação da dorcom patologias da personalidade, de que se tinhaconsciência, era mais evidente com as formascrónicas ou contínuas, pelo que se alertavavivamente para o tratamento de todas as dores,tratamento esse que devia “atender à natureza domal”(22), isto, é estar de acordo com a sua causa.

A dor representa ainda um sinal que alerta para adoença. Ela obriga a tomar medidas que protejam asaúde do órgão em risco. “Importa pois muito, quandoas dores de dentes repetem com frequência,averiguar atentamente a causa, e destruí-la antesque a saúde se altere”(23). Observado desta maneira,o aparecimento da dor é um facto paradoxalmentede natureza positiva, porque pode ser a manifestaçãomais precoce de uma perturbação que pode pôr emrisco a própria vida.

Vamos ter agora presente a definição de dor daAssociação Internacional para o Estudo da Dor:“sensação e emoção desagradáveis, associadas alesões presentes ou potenciais, ou apresentadas emtais termos”. Para a Escola de Montpellierconsiderava-se como bem estabelecida a interacçãoentre o mental e o fisiológico. A dor pode “tomar onome de moral (...) se ela nasce por causa dasnossas paixões”(24). “A alma obra sobre o corpo”

verificando-se “uma recíproca conexão estabelecidaentre as partes corporais e as espirituais e que detodas as desordens ou indisposições umasparticipam as outras”(25).

Na dor moral, o coração, a circulação, etc, podemressentir-se. As paixões provocam muitas vezesestas alterações. “A paixão da cólera ou ira perturbaa alma, desfigura as feições do rosto, precipita acirculação do sangue e deforma as funções vitais eanimais: muitas vezes, ocasiona febres ouenfermidades agudas e algumas a morterepentina”(26). As outras paixões citadas no capítuloX são o medo ou temor, a tristeza ou pesar, amelancolia religiosa e ainda o amor.

Mas a dor moral pode produzir-se ainda de outramaneira: por sugestão. É uma dor imaginária, semcausa externa, mas tão real que pode inclusivamenteprovocar a morte.

É assim que “a constante aplicação de algum malfuturo, que se fixa na alma, ocasiona muitas vezes omesmo mal. Pelo que algumas pessoas morrem demoléstias que tinham vivido muito tempo temerosas,ou que lhes haviam feito impressão na alma, poralgum acidente ou louco prognóstico, como aconteceàs mulheres paridas... O método de amedromentaras mulheres com a apreensão das grandes dores eperigo do parto é pois prejudicialíssimo”.(27) As gravesconsequências que daí podem advir acontecem “porefeito unicamente da força da imaginação”(28). Temospois uma distinção entre a dor que é produzidaclaramente por uma causa externa, como a dor dedentes, e esta outra dor, que não tendo essas causasvisiveis, nem por isso deixa de ser bem real para odoente.

Esta influência das relações com os outros e como meio, na produção da dor, pode ser interpretadacomo inovadora. Assim, percebe-se que a dor nãodepende apenas do indivíduo, mas que pode serdeterminada pela sociedade e pela cultura. A respostaindividual terá em conta vários factores externos,como os ligados ao sexo, à idade, a certos estadosconcretos e à situação de lugar e de tempo presentesquando certos estímulos são desencadeados. Valea pena citar mais este trecho deste capítulo daspaixões:

“Algumas destas mulheres morrem também porefeito do contágio e supersticioso costume, quetodavia se conserva em muitas partes de Inglaterra(e em Portugal) de dobrar os sinos das Paróquiasquando morre alguém.(...) Este costume não é soprejudicial às paridas, mas o é também em muitosoutros casos. Nas febres malignas, em que édificultoso tranquilizar o espirito do enfermo, queefeito não produzirá nos seus ouvidos o dobrar dossinos funebremente, cinco ou seis vezes por dia?Ninguém duvidará de que a imaginação lhe traráideias que aqueles morreram da mesma doença que

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ele padece. E esta apreensão é mais poderosa paraabater as forças, do que todos os cordiais** que aMedicina subministra para recobrá-las. (Se o somdos sinos produz nas pessoas gravemente doentesefeitos tão funestos, que fará o aspecto de umcadáver estirado junto a elas como acontece noshospitais? O terror os acompanha sempre e a vistados seus vizinhos espirando, ou mortos jà, osmata)”(29).

Enfim, esta primeira abordagem sobre a dor nestaépoca em que o antigo regime desaparecia, a partirde literatura médica que circulou entre nós, graças aeste médico de Castelo Branco, permite-nosperceber como as ideias sobre a dor se encontravamem profunda renovação.

A dor dessacralizava-se, laicizava-se. Perdia a suaaura misteriosa, o significado quase invariavelmenteligado a efeitos expiatórios, punição no contexto dadoença, também ela fruto dos desajustes com adivindade. A dor passa a assumir-se como realidadeprópria, a suscitar o interesse pelo conhecimentoautónomo e transbordante no sentido doconhecimento do funcionamento do organismo. Poroutro lado, torna-se evidente a acção da própria dorsobre o sujeito que a sofre. Esta particularidade bemevidente nos textos que analisámos, aponta para umoutro caminho que a história da dor veio a registar.Referimo-nos a todo um conjunto de investigações,utilizando metodologias próprias que tentamdesvendar outros segredos relacionados com a dor.

*Assistente Hospitalar de Anestesiologia.

** Bebida ou medicamento que estimula oufortalece.

Notas...

1. José Lopes Dias, e Francisco Morais, Estudantes daUniversidade de Coimbra naturais de Castelo Branco,Livraria Semedo, 1955, p. 233.

2. Maximiliano Lemos, Estudos de História da MedicinaPeninsular, Porto, Tip. da Enciclopédia Portuguesa, 1916,p. 295.

3. José Lopes Dias, op. cit. p. 256.4. São vinte obras conhecidas. A sua lista pode ser

verificada na Bibliografia da op. cit. de José Lopes Dias,pp. 251. 252 e 253.

5. François Laplantine, Antropologia da doença, SãoPaulo, Martins Fontes, 1991, p.p. 23, 24.

6. Monsieur Tissot, Aviso ao povo àcerca da sua saúde,traduzido em português e acrescentado com notas,ilustrações e um tratado das enfermidades, maisfrequentes, tanto internas como externas, de que nãotratou Mr. Tissot na referida obra, por Manuel JoaquimHenriques de Paiva, Médico, Tomo I, Lisboa, Na offic, deFilipe da Silva e Azevedo, 1786, p. XXX.

7. Monsieur Tissot, op. cit., p. 15.8. Ibid. p.16,9. Ferreira de Mira, História da Medicina Portuguesa,

Lisboa, Empresa Nacional de Publicidade, 1947, p. 27.10. Monsieur Tissot, op. cit, p. XXX.11. Op. cit., p.p. XXIX, XXX.12. Robert Joly, Hippocrate Médicine grecque, De

l’ancienne médicine, Gallimard, 1964, p. 49.13. Docteur Marc Shwobe Marie-Claude Arrazau, Pour

vaincre Ia douleur, Paris, Bernard Grasset, 1987, p. 37.14. E. Boinet, Les Doctrines Médicales Leur evolution,

Paris, Flammarion, p. 80.15. Ibid. p.p. 25. 26.16. Hippocrate, De Ia nature de l’homme, op. cit, p. 5811. Roselyne Rey, «Le corps et la douleur au temps de

la revolution», in La douleur, Approches pluridisciplinaires,Paris, L’Harmattan, 1992, p. 49.

18. Tissot, op. cit., p.189.19. Ibid.20. Ibid.21. Op. cit., p.p., 199, 200.22. Ibid., p.198.23. Ibid, p. 200.24. Bichat, Recherches fisiologiques sur la vie et la

mort, Paris, 1803, citado por Roselyne Rey, op. cit., p. 55.25. Manuel Joaquim Henriques de Paiva, “Aviso ao

povo, ou Summário dos preceitos mais importantes,concernentes à criação das crenças, às diferentesprofissões e offícios, aos alimentos e bebidas, ao ar, aoexercício, ao somno, aos vestidos, a intemperança àlimpeza, ao contagio, às paixões, às evacuaçõesregulares, etc, que se devem observar para prevenir asenfermidades, conservar a saúde e prolongar a vida”, p.207.

26. Ibid, p.p. 207, 208.21. Ibid., p. 210.28. Ibid., p. 211.29. Ibid., p.p. 212, 213.

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A EMERGÊNCIA DA DOR NO CHÃO DAS PALAVRAS

Por Fernando Paulouro Neves*

Dois livros fabulosos regressaram ao prazer damemória quando, nas questões prévias que um temasuscita, reflectia sobre “a emergência da dor no chãodas palavras”. E porque esse chão por onde meproponho caminhar é lavrado de palavras, atrevo--me a chamar para a mesa do meu pão MargariteYourcenar e Herman Broch. Se a poesia e a escritasão um dom dos deuses, como um dia falando sobrepoetas me disse Eugénio de Andrade, então elesforam tocados por essa surpreendente magia quemarca certas obras com o sinal da perfeição.

Ao transporem para o domínio da ficção,interrogações essenciais sobre o destino do homeme da matriz civilazional que ele foi capaz de edificarno seu devir colectivo, Yourcenar e Broch criaramdois monumentos únicos na literatura universal. Umimperador e um poeta, dois homens sozinhos face à

perplexidade ontológica que a vida encerra, sãopercorridos pela fascinante aventura de tentaremdecifrar o tempo que foi a sua história - um tempofeito de muitos outros tempos - no arrastar de umaagonia que lhes perfila a morte no horizonte próximo.

Não é contingencial que, num e noutro caso, anarrativa tenha um instante-limite: o doloroso epílogoda vida. Porque é aí, nesse território inquietante, de

luz e de sombras, que a temporalidade ganha umacarga simbólica determinante onde se misturam oespaço poético e o espaço cósmico com os seusmistérios e os seus fascínios. Nas Memórias deAdriano, o imperador procura“entrar na morte de olhosabertos” e é dessa batalha, dessalonga despedida em que o tempo,todo o tempo, parece “eter-namente presente”, como diriaEliot, que é feita a substância doromance.

Como uma lenta despedida,escrevo eu agora indo aoencontro das palavras deAdriano: “...Veio-me esta manhã,pela primeira vez, a ideia de queo meu corpo, este fiel com-panheiro, este amigo maisseguro, melhor conhecido de mim que a minha alma,não passa de um monstro dissimulado, que acabarápor devorar o seu dono...”(1).

Em Herman Broch(2), Vergílio, o poeta, com toda asua força mítica, vive os últimos dias na angústia detentar destruir o manuscrito da Eneida. É uma longameditação lírica na ante-câmara da morte. O autorde Os Sonâmbulos, ele próprio sofrendo decerto nacarne as maldições da humanidade (o ódio nazi é jáentão um fenómeno dominante), faz na Morte deVergílio a projecção simbólica de uma interrogaçãointemporal: poderá a Cultura ser salva? E o Ocidente?

No espaço ficcional, o poema é salvo porque aperenidade da palavra se sobrepõe à realidadeficando a pairar sobre ela como fenómeno absoluto,numa paz serena e sem conflito. É esta tensão bipo-lar entre o nada e a plenitude do acto criador, é estepoder redentor do Verbo que estabelece a fronteiraentre aquilo que é efémero e aquilo que épermanente. Poderíamos aqui fazer nossas aspalavras de Maurice Blanchot, no notável ensaio OLivro por Vir(3), ao explicar estarmos perante uma dorque recusa toda a profundidade, toda a ilusão e todaa esperança, mas que, nesta recusa, oferece aopensamento “o éter de um novo espaço”. E Blanchotinterroga: “Será que o extremo pensamento e o

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extremo sofrimento abrem omesmo horizonte? Será quesofrer é, afinal, pensar?”Poderíamos acrescentar:Escrever?

Esta mesma interrogaçãofundamental podemos en-contrá-la na obra de VergílioFerreira. O problema da dor, énum sentido mais lato: o damorte, domina boa parte dasua produção ficcional. E numdos seus livros recentes, ParaSempre(4), notável construçãoromanesca, encontramosaquelas páginas maiores deque Carlos de Oliveira diziaporém no frémito da vida otoque do que é precário epassageiro. Entre o nascimen-to e a morte, a premonitóriabiografia de uma dolorosaexistência:

“Olho suspenso o pequeninorolo de carne avermelhada,tem a face distorcida num choro. Já? Tão cedo?Porque choras? Fizeram-te vir ao mundo, nãopareces muito de acordo. De qualquer modo é umpouco cedo para a lamúria. Está bem que vais sofrero teu bocado. Tanta chatice, has-de ver. Guardaalgumas lágrimas para depois. Sonhos paraengalanar o futuro e que depois não são. E traiçõesdos que hás-de amar. E sacanices quotidianas deamigos e mesmo dos mais chegados. Tu vais ver.Não chores. Como é que vais depois arranjar-te semlágrimas? Uma lágrima de vez em quando faz jeito.Desopila o sistema nervoso e a gente fica maisdisponível para a pulhice que se segue”(5).

Esta pungente amargura é uma longa memóriadolorida que perpassa por todas as páginas do queé, seguramente, um dos romances mais conseguidosda moderna ficção portuguesa.

Na explosão da dor, que é a antecipação da morte,Vergílio Ferreira diz o indizível e cedo à tentação deaqui deixar dois pedaços de uma das páginas,quando Sandra se aproxima da morte:

“...Foi um mês. Lenta, obstinada, trabalhando-lheo veneno todos os recantos do corpo, a corrupção.Meu corpo que amei. Corpo da minha alegria, do meuprazer, corpo delicado do meu encantamento. Dia adia ressequido, esvaziado do teu esplendor.

Face óssea, esverdeada de matérias repelentes,olhos baços de matérias viscosas. O asco, o asco -meu corpo lindo. Dias e dias de destruição implacávelaté ao nojo, atá à repelência - meu amor debrinquedo. (..)”

E mais adiante, prossegue o mesmo pranto:

“...Havia que remediar atéonde houvesse remédio,Sandra restabeleceu-se epôde continuar a sofrer.Agora era a dissolução e ohorror. Horror de te ver dia adia no escárnio de ti, quantotempo ainda? a descida àimagem do ultraje, putrefac-ção repelência, oculta nasraízes de um homem. Daí àsua figuração plausível, aficção da beleza, da simpatia,de tudo o que o disfarça paraa transacção da plausabili-dade - não o penses. Em péao fundo da cama, quantasvezes, olho-a. A roupaacama-se novo lume razo doseu corpo, em pé eu, meusolhos túmidos de sombra.Asco da tua face? onde tu?a graça, a fúlgida lumino-sidade dos teus olhosbreves, o teu sorriso de uma

ironia cerzida, onde tu? Escavada ósseaesverdinhada oca. Olhos mortos na figuração daterra. Estrume de ti, ó figura grácil da minha adoração.De vez em quando, as mãos encalvinhadas por cimada roupa, no ventre, no peito, na repugnância de todoo corpo apodrecido. Chamo a enfermeira, ela vem,arrasada pela fadiga, encolhe os ombros, olha-mepara eu entender - como vou eu entender?”(5).

Nesta página está toda a expressão patética deuma via dolorosa para a morte. Como vamos nósentender? Essa é que é a questão. Foi essesentimento absurdo, que de resto Camus e Kafkatão bem escalpelizaram, que levou há dias a escritoraOriana Falaci a dizer essa sua perplexidade a umjornalista do El Pais: “Se nascemos porque é quetemos de morrer?”

Por detrás das palavras estão “todas as dores domundo, desde que no mundo há escravos” porqueuma palavra, como Jorge de Sena escreveu, “é umabsoluto como um silêncio definitivo”. É então nessechão que se registam todas as peregrinatios ad locainfecta, todas as descidas aos infernos do nossoquotidiano, mesmo que às vezes - tantas vezes! - aexpressão dramática da história, no seu ritmo longoou apressado, coloque a evidência da incapacidadepara traduzi-Ia na escrita. Já muitos se deram contadessa impossibilidade face às Hiroshimas ou às valascomuns onde a história amima, em paz, os seusmortos. Eu próprio, em Oraniemburgo, como emAushwitz ou Struthof, redutos concentracionários daignomínia nazi, no confronto com a memória doridado crime, percebi a limitação da palavra, mesmo

É esta tensãobipolar entre o

nada e aplenitude do

acto criador, éeste poderredentor doVerbo que

estabelece afronteira entreaquilo que é

efémero e aquiloque é

permanente.

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molhada pelas lágrimas da dor, e ancorei no talsilêncio definitivo e absoluto.

A literatura portuguesa está cheia dessesdocumentos humanos excepcionais onde se vazamos grandes dramas colectivos ou se tipificamitinerários pessoais que, pela sua singularidade egrandeza, adquirem leitura universal. A crónica éextensa, o inventário longo.

O meu amigo Baptista-Bastos escreveu há tem-pos que o primeiro texto da língua portuguesa erauma cantiga de amor e o segundo um documentode partilhas, este seguramente gerador de violênciae morte. Unamuno, falando de nós e da nossaprodução literária, caracterizou-nos como “a pátriados amores tristes e dos grandes naufrágios”(6). E oautor do Sentimento Trágico da Vida não deixava deassinalar que o “culto da dor parece ser um dossentimentos mais característicos deste melancólicoe saudoso Portugal.”(7)

É verdade tudo isto numa pátria civicamentetutelada durante séculos, com fogueiras inquisitoriais,de lume vivo ou brando, com censuras,autoritarismos provincianos e diásporas de pobreza.A síntese desse caldo histórico traduz-se hoje aindana resignação larvar ou na ausência da própriarealidade, como diz Eduardo Lourenço, no Labirintoda Saudade, ausência que se tem reproduzidohistoricamente como doença congénita e fatal.

À poderosa ironia de Alexandre O‘Neill nãoescaparam essas contradições ancestrais da“comarca portuguesa”, quando a “pequena casalusitana” era remorso de todos nós”:

Não podias ficar presa comigoà pequena dor que cada um de nóstraz docemente pela mãoA esta pequena dor à portuguesaTão mansa quase vegetal

Somos hoje depositários de muitas vias sacras. Apartilha dos escravos, contada por Zurara, éarquetípica da dor descrita pelos cronistas daexpansão portuguesa. Os cortejos para a fogueira,fitualizados pelos “irmãos” do Santo Oficio, sãodescidas ao inferno mais profundo. As feridastrágicas de uma guerra colonial e os silêncios de umaemigração dramática reproduziram no tecido socialdemónios interiores que não gostamos de encararde frente.

No jornalismo, somos confrontados com orepositório essencial de aventuras épicasnaufragadas ou com histórias trágico-terrestres queemergem do nosso quotidiano. 0 silêncio não éapenas a melhor receita para ocultar um homem; é,também, a melhor técnica para ocultar a dor ou asdores, socialmente expostas, incómodas na suaacusação directa à sociedade onde são benzidas

com miragens de outros céus. Tudo isso adquireagora uma leitura mais inquietante pois impingem-nos um modelo de sociedade onde os gestossolidários e os valores humanos deixaram de tercotação no mercado.

O jornalismo fornece-nos essa realidade como

vivida através de uma experiência vivencial de granderiqueza.

Vivi, com o António Lourenço Marques, médico quefaz o favor de ser meu amigo, um desses casos-limite em que se desdobra o drama de um homematirado para os desvãos da indiferença, na sua longae lenta crucificação. Lembro-me bem, que essasimagens nunca mais nos abandonam e ficam parasempre reserva de uma angústia para o dia seguintee para todos os dias. O homem tinha o rostoapodrecido a desfazer-se, e assistia, abandonadopela medicina e pelos hospitais, à sua própriadevoração. Já não tinha rosto, perdera a fala porquea língua caíra aos bocados, a cara era um buracoenorme de carne morta. No cadáver adiado, só osolhos brilhavam, com um brilho intenso, e nesse olhar,onde já não morava a esperança, cruzava-se a tallenta despedida.

Foi possível sacudir, com a reportagem do caso, aletargia envolvente e o sono do senhor ministro daSaúde. E se alguma coisa ficou desse trabalho, emque se envolveram com idêntico entusiasmo, omédico e o jornalista, foi que, também na informação,a interdisciplinaridade é espaço de grandesvirtualidades.

Nojornalismo,

somosconfrontados

com orepositório

essencial deaventuras

épicasnaufragadas

ou comhistórias

trágico-terrestresque

emergem donosso

quotidiano

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Notas...

1) Yourcenar, Margarite, Memórias de Adriano, EditoraUlisseia, Lisboa, pág. 9

2) Broch, Herman, La Mort de Virgile, Gallimard, Paris3) Blanchot, Maurice, O Livro Por Vir, Relógio de Água,

Lisboa4) Ferreira, Vergílio, Para Sempre, Círculo de Leitores,

Lisboa, pág. 217 e seg.5) Ferreira, Vergílio, Ob. Cit. pág. 231 e seg.6) e 7) Unamuno, Miguel de, Por Terras de Portugal e

de Espanha, Assírio e Alvim, Lisboa, pág.4.

Para que conto eu isto?Para dizer que a obrigação de estarmos presentes

na realidade é uma tarefa colectiva.O jornalismo é, neste país de sofrimento moderado,

como recentemente Portugal foi catalogado, umespaço privilegiado onde se vaza a dor e ela setransforma, muitas vezes, em matéria

de inquietação comum. Bem sabemos que osécrans de televisão transbordam de violência e desangue, à escala planetária. Assistimos à morte emdirecto, os cadáveres caem-nos com abundância noprato de sopa doméstica. Bem sabemos que amorbidez comanda o gosto do público e a tentaçãodo sensacionalismo dá seguros dividendos. Há todoesse sub-mundo nos meandros da informação, éverdade, mas a maior parte dos jornalistas não adbicade emprestar à factualidade narrativa umapedagógica dimensão ética.

Não podemos ignorar que a dor vive à nossa volta,cerca o fait-divers, é um traço dominante darealidade.

Somos testemunhas selectivas de tudo isso. Deuma dor em que as Pietàs não são de pedra, mastêm rosto humano, e os Cristos revivem emcrucificações climatizadas. Uma dor em que osvelhos, como inelutavelmente vem acontecendo naregião de Castelo Branco, se suicidam porque nãosuportam mais viver numa sociedade que os condenaà morte a prazo. Uma dor que atravessa as pessoas,as cidades, os rios e as montanhas, porque tudo issodeixamos morrer também numa latente e gradualdestruição. Uma dor que é o subdesenvolvimentomatizado de fome, o atrazo e o analfabetismo, emsintese: as desigualdades fabricadas pelo poder.

É todo este território que nós lavramos compalavras. E é lá que sofremos pensando oupensamos sofrendo para voltar, uma vez mais, aMaurice Blanchot.

Mas é assim. Não há outro caminho.Porque, citando Álvaro de Campos, a espantosa

realidade das coisas é a nossa descoberta de todosos dias.

Fundão, 23 de Outubro 1992

*Jornalista. Chefe de Redacção do Jornal do Fundão

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CATÁSTROFES NATURAIS NA VISÃO DE AMATO LUSITANO

Por Maria Adelaide Neto Salvado*

Nem a inexorável roda do tempo que tudo apaga etudo desvanece, nem as mutações profundas destefim do segundo milénio, conseguem diminuir ofascínio que a multifacetada personalidade de JoãoRodrigues de Castelo Branco, Amato Lusitano, con-tinua fortemente a exercer.

Vivendo numa época e num tempo marcados, talcomo o nosso, por mutações profundas, váriasfacetas da personalidade de João R. de CasteloBranco e dasua actuaçãocomo médico,determinadasposturas epontos de vistasobre os serese as coisas,definem-no, domeu ponto devista, comoHomem beminserido nast rans fo rma-ções dessec o n t u r b a d omundo que foio do seu tempo.

“Siglos de enorme desrazón, de atroz inquietud’,(1)

chamou Ortega y Gasset aos séculos XV e XVI.A substituição da Revelação pela Razão como força

mediadora das relações do Homem com o Mundoestá na génese desse abalar de convicções e decertezas sobre o até então inquestionável Saberantigo acerca do Mundo e das coisas.

Como uma vaga de fundo, uma postura novaemerge, recolocando novas premissas quer nasrelações do Homem com o Mundo, quer nainterpretação dos fenómenos da grande MãeNatureza. As considerações de Amato na Cura 27da 7ª Centúria, intitulada “Da causa da Peste queatacou Scopium”(2), são prova evidente daemergência dessa atitude nova perante ascatástrofes naturais e os flagelos da doença e daDor.

Trata Amato nessa Cura de expor a suainterpretação acerca de dois males universais eterríveis, geradores, ontem como hoje, de cenáriosangustiantes de Dor: a Peste e os tremores de Terra.

Corria o ano de 1559. Era pelo tempo do Outono,possivelmente doce, sereno e luminoso, como o sãopor vezes os Outonos mediterrânicos, quando nessacidade da Macedónia a terra tremeu.

Escreveu Amato: “A terra expelia de si um ruidocomo de gritogemebundo e,em breve, to-da ela se mo-vimentava esacudia, nãocontudo deforma a quedeste tremorde terra ascasas e osedifícios caís-sem e ruís-sem, e as pes-soas ficassemem perigo”.Por esta des-

crição de Amato, penso podermos classificar estetremor de terra de Scopio como um sismo de grauIV da Escala internacional de Mercalli.

Esta escala pretende, em termos comparativos,definir a intensidade dos sismos com base no modocomo as vibrações são sentidas pelas pessoas e nasdestruições que ocasionam. Um sismo de grau IV(classificado de moderado), é assim descrito emtermos dos nossos dias: “Sentido no interior dascasas; a louça vibra, os soalhos e tectos estalam talcomo quando um camião muito carregado passa,numa rua pavimentada”.(3)

Não causou pois ruína em edifícios, nem pânicodespertaram esses “gritos gemebundos da terra”,nem o seu “movimento sacudido”(4).

Numa região de tão marcada sismicidade como aGrécia não é de estranhar este comportamento dasgentes de Scopio registado por Amato. Para além

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de grandes terramotos, cujas terríveis descriçõespercorrem desde muito longe a história grega, o solodas ilhas e o da península balcânica é, cada ano,sacudido centenas de vezes. Circunstância encaradacomo normal deveria ter sido pois, para os habitantesde Scopio o tremor de terradesse Outono de 1559.

Mas foi ele anunciador, oumelhor, precussor de um grandemal. Em breve tempo a pestedesceu sobre Scopio com talvirulência que, conta Àmato, 300pessoas morriam cada dia debulhões e carbúnculos.

Amato tenta explicar a “cruel emedonha fera” (expressão quedesigna esta peste) e nessaexplicação é a sua visão sobreas causas dos terramotos, é oseu esforço de compreensão dosfenómenos da Natureza, é esserepúdio das ideias medievais que encaravam asdoenças e a dor como castigos de Deus sobre ospecados dos Homens, o que ressalta e se evidencia.

Escreveu Amato: “Agora não nos referiremos aDeus, nem aos céus com seus astros, de que tantoos livros divinos como os astrólogos, atestam que apeste depende, pois estamos a perscrutar as coisasnaturais”.(5) E fiel a este propósito, aponta como causageral da peste a inspiração de ar infeccionado.Minuciosamente inventaria a multiplicidade de causasque, segundo o seu ponto de vista, podem estar nabase de um envenenamento do ar: “abundância decadáveres”, “imundícies de animais selvagens”,“grande mortandade de enormes animais no mar”,“lagoas e charcos pestilentos”,“ares pestíferos” do interior daTerra exalados através de grutase cavernas. É esta a últimacausa que Amato consideracomo razão quer da infecção doar que desencadeou a peste,quer do tremor de terra queabalou Scopio.

Escreveu Amato: “Causadesta peste são as exalações ouestados venenosos conser-vados nas cavernas e estranhosà natureza humana, os quaisestariam na origem da terra se movimentar”.(6)

Tremor de terra, infecção do ar e peste eram poisfenómenos intimamente relacionados. E precisa JoãoRodrigues de Castelo Branco esta interelaçãoescrevendo: “Daqui os observadores da Naturezaterão o motivo de, quando se dá um tremor de terra,aparecer a peste, e se espalhar”.(7)

Enraizada na Antiguidade, a explicação

apresentada por Amato acerca da origem dosterramotos remonta a Aristóteles. Difundida no séc.XIII no Ocidente medieval através da obra de S.Alberto Magno, a teoria aristotélica atravessouséculos e chegou ao Renascimento com todo o seu

prestígio. Segundo Aristóteles,um sopro (pneuma) e exalaçõesdesprendiam-se da Terra hume-decida pela chuva e aquecidapelo Sol e pelo Fogo do interiorda Terra. Eram as deslocaçõesdessas exalações que origina-vam os terramotos.

À tradição aristotélica há quejuntar a interpretação de Séneca.Adoptando a teoria pneumática,apenas transformando o soproem vento, Séneca, no seu livro«Quaestiones Naturales» concluiser o ar a causa dos tremores deterra. “Se uma causa exterior o

agita e encaminha e o mete por uma fenda estreitaaí vagabundeia se não encontrar entraves”, se, pelocontrário, “se se lhe tira a possibilidade de sair eencontra resistência em todos os lados, então indócil,roda e brama nos seus cárceres e faz mugirprofundamente a montanha”(8).

A «Historia Natural» de Plínio, o jovem, faz ecodesta teoria de Séneca. Obra muito utilizada noRenascimento, é possível que Amato fosseinfluenciado pela sua leitura. “( ... ) É necessário queum médico saiba adornar-se de muitas maneirassérias e dignas de um homem culto para se tornarbom e altamente proveitoso”, escreveu JoãoRodrigues de Castelo Branco nos comentários à Cura

V da Sétima Centúria.Não é de excluir, no entanto,

uma outra hipótese. Erasmo,grande admirador de Séneca,publicou, em 1515, uma ediçãocomentada da obra de Séneca.

Qualquer que tenha sido afonte de Amato sobre as causasdos terremotos, encarados comocausa natural, o que importasalientar é a sua visão acerca dasqualidades do ar que com elessaía das entranhas da terra. “Cor-ruptor e mortífero” era ele e,

misturado com o ar da superfície, envenenava-otrazendo a Peste, a Morte e a Dor.

A gravidade dos efeitos desse ar envenenado sobrea Humanidade dependia, segundo Amato, do seuestado de saúde: “Tanto pior quanto mais fracosestiverem os corpos”, escreveu. Fundamenta Amatoesta opinião nas afirmações de Hipócrates extraídasdo livro de Stabius - “o agente trabalha pela aptidão

“A terra expelia de si umruído como de gritogemebundo e, em breve,toda ela se movimentava esacudia, não contudo deforma a que deste tremorde terra as casas e osedifícios caíssem eruíssem, e as pessoasficassem em perigo.”

“Causa desta peste são asexalações ou estadosvenenosos conservadosnas cavernas e estranhasà natureza humana, osquais estariam na origemda terra se movimentar.”

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do doente”(9) - e na de Galeno de quem longamentecita uma passagem do livro 1º “De Different Febr.” eque assim termina: “Na origem das doenças temparte importante a constituição orgânica daquele quefor enfermo”(10).

Para corroborar a imputação da Peste de Scopiumàs exalações subterrâneas, João Rodrigues deCastelo Branco recorda a sua semelhança com umaoutra que se registara em Portugal na região deLisboa e Santarém (ano que ele não precisa e situaem 1527, 1528,1529). “Também ela se seguiu a umterremoto devastador”, são palavras suas.

Que razão teria levado JoãoRodrigues de Castelo Brancovivendo numa região geologica-mente tão instável e cuja posiçãogeográfica, impondo amplos econtínuos contactos comerciaisentre o W e o E, propiciava a difu-são de Peste e epidemias, arecordar uma Peste ocorrida àdistância de 30 anos em Portugal?

A tentativa de resposta a estainterrogação lançou-nos noutraspistas de investigação. Cremosque Amato se refere ao tremor deterra de 1531 e à peste malignaque se lhe seguiu.

Na proximidade das datasindicadas na Cura, só em 1531 severificou uma terrível pesteprecedida por um violento tremor de terra e quemergulhou numa onda de terror as gentes deSantarém.

De Santarém era natural o amigo íntimo de Amato,Luís Nunes, seu condiscípulo dos tempos de Sala-manca. Amato nunca esqueceu este amigo dajuventude, e na Cura 46 da I Centúria a ele se referechamando-lhe “doutíssimo médico”(11).

Segundo Maximiliano de Lemos, Amato ficou adever a Luís Nunes informações variadas acerca dasexóticas plantas trazidas do novo mundo descoberto.

Luís Nunes, de Santarém, foi professor em Sala-manca, lente contratado em Coimbra, no período de1541 a 1544, médico em Paris de Catarina deMédicis. Tendo-se radicado em Anvers, aqui morreuem 1588.

Ora, em 1531, Amato acompanhou Luís Nunes aSantarém, de visita a pessoas de família.

O tremor de terra tinha ocorrido a 26 de Janeiro de1531. A insegurança, o terror e o medo da mortedespoletaram uma forte onda de anti-semitismo. Osismo foi considerado como um castigo divino porcausa dos muitos descendentes de hebreus que, naépoca, viviam em Santarém. Impotente contra agrande catástrofe da Natureza e a doença, foi sobreos cristãos-novos que o povo de Santarém fez recair

a sua raiva. A esta circunstância não foram estranhasas pregações dos frades que não só atribuíam otremor de terra à ira de Deus contra os pecados queem Portugal se faziam, como comunicavam a vindapróxima de um terramoto mais devastador.

“À primeira pregação os cristãos novosdesapareceram e andavam morrendo do temor dagente”(12). Foi com estas palavras que o nosso grandedramaturgo Gil Vicente relata, em carta enviada a D.João II,I estes acontecimentos que de perto viveu.Gil Vicente encontrava-se em Santarém e curiosafoi a sua intervenção esclarecida contra a ignorância

dos frades. A defesa que publi-camente assume dos cristãos--novos e as normas de conduta quelhes aponta no relacionamento comos seguidores de uma outra fé,revelam toda uma faceta detolerância religiosa por parte de GilVicente.

Porque lhe “pareceu que estavaneles mais soma de ignorância queda graça do Spírito Santo”(13), GilVicente fez reunir os frades noclaustro do convento de S. Franciscoe aí esclarece-os da origem dosterramotos e do valor das profecias.

A distinção entre milagres e“acontecimentos que procedem daNatureza” foi por ele teologicamenteexplicada, esclarecendo (e são

palavras suas) não ser “este nosso espantoso tremorira Dei”, mas sim um dos tais acontecimentos queprocedem da Natureza. “Pregar não há-de serpraguejar”(14), afirmou Gil Vicente, lembrando aosfrades a louca pretensão dos Homens de adivinharo futuro e deitando por terra as suas aterradorasprofecias da repetição de um novo terramoto, emdia e hora determinados.

Importante foi a directriz de tolerância em relaçãoaos cristãos-novos apontada aos frades: “Parecemais justa virtude aos servos de Deus e seuspregadores animar a estes e confessá-los queescandalizá-los e corrê-los, por contentar adesvairada opinião do vulgo”.(15)

Válidas e convincentes foram, por certo, aspalavras de Gil Vicente. Nas pregações queposteriormente fizeram, os frades seguiram as suasdirectrizes, o que o levou a escrever na carta a D.João III: “Nunca cuidei que se oferecesse caso emque tão bem empregasse o desejo que tenho de oservir, assim vizinho da morte como estou”.(16)

Perante uma peste surgida num quadro decircunstâncias análogas às de Santarém em 1531,terá sido a comparação entre o comportamento deintolerância e anti-semitismo das gentes de Santaréme a tolerante liberdade da terra turca onde os judeus

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trabalhavam em paz e livremente podiam seguir oseu culto que avivou em Amato a dolorosa memóriado tremor de terra e da Peste de Santarém de 1531?

Outro aspecto curioso sobressai nesta Cura: oestabelecimento feito por Amato da diferenteperiodicidade dos surtos da peste em duas cidades:Salonica e Constantinopla.

Informa ele que em Salonica não se regista pestenos meses de Julho a Dezembro. No entanto, a partirde Dezembro eram violentos os seus efeitos. AcentuaAmato: “Chegado porém os fins de Julhoimediatamente começa a diminuir”(17). Este cíclicoressurgimento da peste levava auma forçada migração cidade--campo. De salientar que a fugadas cidades era o comporta-mento sugerido por Hipócratescomo medida de prevenção con-tra a peste, norma que duranteséculos perdurou como práticacorrente em toda a EuropaOcidental.

Chegado Dezembro, era pois,para a gente de Salonica do séc.XVI, o tempo da debandada parao campo. Vivia-se em quintas ealdeias durante todo o Inverno,mas retornava-se à cidadesistematicamente no fim deJulho e isto mesmo sabendo-seque por meados desse mêstivessem morrido 300 pessoasou mais pois era facto assente,conta Amato, que foi por essaaltura “a fera está domada e ficaadormecida até ao mês deDezembro”.(18)

Inverno e Primavera eram poisem Salonica as estações daPeste. Situação contrária seregistava em Constantinoplaonde os surtos da peste ocorriam sistematicamentedesde meados de Maio até finais de Novembro: nasestações do Verão e do Outono, portanto.

Incita Amato a investigação das razões destaoposta ocorrência estaciona) da peste nas duascidades nos seguintes termos: “Quem se dedica aprocurar as causas destas coisas ocultas faça a suainvestigação”.(19) No entanto, não se escusa deavançar uma explicação para a peste de Salonica:”Ogrande frio da Trácia que vigora nos meses deInverno”(20), acrescentando que quer num Invernorigoroso, quer num Verão áspero, os organismos nãotêm forças para resistiraos ataques mortíferos dapeste. Seriam epidemias de peste pulmonar a queatacava Salonica quando o fio da Trácia se faziasentir? Seria o tifo a peste bubónia a doença de

Constantinopla?Esta passagem da Cura 27 patenteia, penso, a

abrangência de significado que durante séculospossuía a palavra Peste.

Peste era um termo vago que designava todas asdoenças contagiosas de caracter epidémico.

Um sentido restrito atribui-se hoje à palavra peste.Apenas quando se identifica o bacilo Yersina pestise quando surgem certos sintomas clínicos (manchasenegrecidas e ulcerosas na pele e gânglios dolorososou bubões) se pode falar de peste.

Parece-me que a doença que grassou em Scopiodepois do tremor de terra doOutono de 1559 foi a peste nessesentido restrito que hoje atri-buirmos à palavra. João Rodriguesde Castelo Branco, ao descreveros sintomas dessa grandepestilência, fala de bubões ecarbúnculos que cada diaatacavam cerca de 300 pessoas.

No entanto, apesar de Amatodefender como causa dessa pestede Scopio as exalações corrup-toras das entranhas da Terralibertadas pelo tremor de terra,admite que a peste surja “semqualquer movimento brusco daterra se verificar”. Clarifica Amatoesta circunstância escrevendo:“Visto se ter movido tão lentamentee devagar que não chegou a sersentido pelas pessoas, ou a fugadas exalações corruptoras foi tãofácil que o ar se inquinou semtremor de terra, como muitas vezestem acontecido em sítios da Gréciachamados Turquia”.(21)

A crença de João Rodrigues deCastelo Branco na correlaçãoterramoto - ar infectado - peste,

fundamenta-se “em vários preceitos eesperimentações de homens sabedores”,(22) segundoafirma, e leva-o a expressar a sua estranheza e atecer uma crítica a Galeno pelo facto de, entre asmuitas causas da peste que refere nas suas obras,não ter o grande médico grego indicado, como umadessas causas, as exalações corruptoras saídas dointerior da Terra. Não se escusa também Amato emmanifestar a sua estranheza por, contrariamente aoprometido por Galeno, não surgir nem no seu livro«Ars Curandi» nem no «Methodus Medendi», qualquerpalavra sobre métodos de cura da peste.

E, partindo deste ponto, João Rodrigues de CasteloBranco, através de um diálogo, com um personagemchamado Angelo, à boa maneira renascentista, expõeos seus próprios métodos terapêuticos de luta con-

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tra a Peste. Considera-os como “antídotos que seopõem a esta gigantesca hidra e não raramente asuperam, vencem e dominam”(23), são palavras suas.Consistiam esses métodos essencialmente emfogueiras públicas e privadas de lenha, arbustos eervas suaves e aromáticas. Cedro, zimbro, cidreira,cipreste, pinheiro, terebinto, lentisco, murta e arbustoslandaníferos, rosmaninho, alecrim, poejos, orégãos,são apontados como elementos essenciais dessasfogueiras purificadoras. As virtudes terapêuticasdesses fumos, perfumados e salutíferos, residiam,segundo Amato, em duas circunstâncias: uma, a dereduzirem a «humidade podre das exalaçõespestíferas», absorvendo, destruindo e aniquilando aspróprias exalações; outra a de facilitarem a respiraçãopermitindo aos organismos a fácil libertação de«superfluidades».

Parecem ser prenominatórias as palavras deAngelo em resposta aos reparos de Amato a Galenoacerca do não cumprimento da promessa deste, deescrever sobre a peste. “Talvez porque não sabia(24)

que a peste podia ser dominada pelos médicos?” -foi a interrogação colocada por Angelo a Amato parajustificar Galeno.

Amato morre em Salonica a 21 de Janeiro de 1568,justamente vítima da peste, essa feroz hidra, que,segundo ele, despertava nessa cidade com osgrandes frios da Trácia.

Tinha 57 anos e foi, por certo, tratando dos seusdoentes sem cuidar “de saber se eram hebreus,cristãos ou maometanos” (norma entre muitas quenorteou a sua actuação como médico), que Amatoteve o seu encontro com a Morte.

O poeta Diogo Pirro, parente de Amato, quetambém vivia em Salonica traçou sobre a sua campaeste belo epitáfio donde se desprende um subtilsentimento de Dor igual ao que Amato deixatransparecer em certas passagens de muitas curas,a Dor do exílio: “Aquele que tantas vezes reteve aVida que fugia de um corpo doente ou a chamou daságuas letais, e foi querido tanto de pessoas comunscomo de príncipes, aqui jaz. Ao morrer, Amato ficouenterrado neste chão. Foi seu berço a Lusitânia, asepultura está na terra macedónia. Quão longe dosolo pátrio se esconde! Mas quando chegar a horaderradeira e o fatal dia, em qualquer parte se encontrao caminho que leva ao Estígio e aos Manes”(24)

“As plantas são o grande intermediário entre onosso mundo e o outro”(25), escreveu Lucieu Febvre.Mas a vegetação, revestindo as paisagens como ummanto, é dos primeiros traços a avivar-se no espíritoquando evocamos terras distantes. Amato corroboraesta primazia do manto vegetal como marcaevocativa das paisagens.

Ao referir-se, nesta Cura, à listagem das plantasperfumadas que devem ser queimadas nas fogueiraspurificadoras, escreveu Amato acerca dos arbustos

laudaníferos. “Abundam por toda a Hispânia,especialmente, em Portugal (Lusitânia)”(26).

E nesta simples frase transparece mais uma vez(como acontece em tantas passagens doutras Curase doutras Centúrias) a lembrança da sua pátriadistante. Seria a recordação das matas de estevas,de cheiro acre e folhas pegajosas que ainda hojecrescem nos arredores de Castelo Branco que surgiuno seu espírito ao escrever essas linhas?

Neste início de Outono, quando a chuva ou oorvalho das madrugadas acentuam o aroma dasestevas, recordar João Rodrigues de Castelo Branco,aqui na sua cidade, constitui uma sentidahomenagem a um Homem que os ventos daintolerância empurraram para lugares distantes deexílio, mas que a esta Terra ficou sempre ligado,talvez por um elo forte de uma dolorosa Saudade.

* Licenciada em Ciências-Geográficas. Docente naEscola Superior de Educação de Castelo Branco.

Notas...

(1) José Ortega y Gasset, História como sistema, Ma-drid, Colección Austral, 1971, p. 17.

(2) Sétima Centúria, (Centúrias de Curas Medicinais,vol IV, Lisboa, Universidade Nova de Lisboa) p. 242tradução do Dr. Firmino Crespo.

(3) Jean-Pierre Rothée, Sismos e vulcões, Lisboa,Publicações Europa-América, 1987, p. 34

(4) Sétima Centúria, op. cit., p. 243(5) Sétima Centúria, op. cit., p. 243(6) Sétima Centúria, op. cit., p. 244(7) Sétima Centúria, op. cit., p. 244(8) Séneca, Quaestiones Naturales, Liv. VI, XVIII, Ed.

1943, p. 799(9) Sétima Centúria, op. cit., p. 244(10) Sétima Centúria, op. cit., p. 244(11) Primeira Centúria de Curas Médicas, Lisboa,

Livraria Luso-Espanhola, 1946, p. 142(12) Gil Vicente, Obras Completas, vol.VI, Lisboa,

Livraria Sá da Costa, 1955, 2ª edição, p. 255(13) Gil Vicente, op. cit., p. 251(14) Gil Vicente, op. cit., p. 254(15) Gil Vicente, op. cit., p. 255(16) Gil Vicente, op. cit., p. 255(17) Sétima Centúria, op. cit., p. 246(18) Sétima Centúria, op. cit., p. 247(19) Sétima Centúria, op. cit., p. 247(20) Sétima Centúria, op, cit., p. 247(21) Sétima Centúria, op. cit., p. 245(22) Sétima Centúria, op, cit., p. 245(23) Sétima Centúria, op. cit., p. 245(24) Sétima Centúria, op. cit., p. 245(25) Tradução do Dr. Firmino Crespo in Estudos de

Castelo Branco, n°37 - 1/ Julho/1971, p. 55(26) Lucien Febvre, A Terra e a Evoluçdo Humana,

Lisboa, Edições Cosmos, 1991, p. 116 (tradução do Prof.Jorge Borges de Macedo)

(27) Sétima Centúria, op. cit, p. 245.

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AMATO, VESÁLIO, PARÉ E OS TRAUMATISMOS DA CABEÇA EM 1559

Por Alfredo Rasteiro*

No tempo em que Henrique II, rei de França,recuperou Calais aos Ingleses”, em 1558, na cidadede Ragusa, a martirizadaDubrovnik de hoje, certo dia emque um capitão de navios foiespancado e ferido na cabeça,o armador Gradi pediu aCeletano e Vanúccio, cirurgiõescontratados da sua frota, quebuscassem apoio, que oajudassem a procurar o médicoseu amigo Amato Lusitano(1511-1568), que estava pertoda botica do farmacêuticoGabriel e acudiu imediata-mente, esclareceu dúvidas,teceu comentários e recolheudados que lhe permitirão elabo-rar o caso clínico que figura como n° 100 no fim da SEXTACENTÚRIA, Salónica, 1559,com o titulo: “Deferimentos nacabeça, com o crânio desco-berto, e se é possível tratar-secom segurança por meio deremédios secantes ou porcataplasmas húmidas, como odigestivo de gema de ovo esemelhantes”.

Pela extensão da descrição,elaborada com especial cuida-do, com exaustivas referênciascríticas a autores que anterior-mente tinham discutido oassunto, pelas características egravidade de casos idênticos e que nem sempreevoluíram favoravelmente apresentados para ilustraro comentário, pela preocupação em informar queestava a par do que se passava nos melhorescentros, em Salamanca, Alcalá, Paris, Coimbra,Lovaina, Ferrara, Pádua e Bolonha e por apenas terdado conhecimento do assunto na centésima “Cura”da Sexta Centúria, em 1559, parece evidente que

terá sido esta a forma encontrada por Amato para,de alguma forma, manifestar a sua solidariedade para

com o já então muito conhecidoAndreas Vesal (1514-1564) quenão conseguira salvar Henrique IIrei de França, mortalmente feridonum torneio que teve lugar emParis no dia 30 de Junho de 1559,com desfecho fatal em 10 de Julho.Uma tal especulação, fundamen-tada no texto de Amato, concordainteiramente com a imagem quetemos da sua vida e obra, com averticalidade das suas atitudes e adignidade do seu carácter queigualmente o levavam a criticarVesálio quando julgava que odeveria fazer, por exemplo na CuraLII da Primeira Centúria, Áncona,1549 ou na Cura LXX da QuintaCentúria, Salonica,1561, emambas a propósito das doenças dapleura, discutindo qual o braçoonde se deveria fazer a flebotomia,apontando a sua descoberta daexistência de “ostiolos” ou válvulasna veia ázigos, como um argu-mento de muito peso que poderiavaler a Jacques Dubois, Sylvius(1478-1553) na controvérsia que oopunha a Vesálio.

Segundo informação transmitidapela Conservadora Chefe da Biblio-teca da Faculdade de Medicina deParis, Mme. P. Dumaitre, no

trabalho “AMBROISE PARÉ, VÉSALE, LA MORT DEHENRI lI” (L “Ophtalmologie des origines à nos jours,Tome 4, année 1983, pp. 29-36), em 30 de Junho de1559, em desafio amigável, num torneio, Henri II, reide França, fora atingido mortalmente por um capitãoda sua guarda escosesa.

Para os supersticiosos, cumprira-se a profecia deNostradamus:

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“Le lyon jeune le vieux surmonteraEn champ bellique par singulier duelle,Dans caige d’or les yeux lui crèverà:Deux classes une, puis mourir, mort cruelle”

O rei, atingido violentamente entre os olhos pelaponta de madeira da lança adversária, fora socorridocom prontidão e a notícia chegou a Bruxelas no dia2 de Julho tendo o rei de Espanha despachadoimediatamente o seu médico pessoal Vesálio, quechegou a Paris no dia 5. O marechal Vieilleville, nasMemórias redigidas muito mais tarde pelo seusecretário Carloix, diz-nos que o rei foi assistido pelomédico Jean Chapelain e que tudo se fez para osalvar, tendo sido cortadas as cabeças de quatrocriminosos para que os cirurgiões pudessem simularo traumatismo, não se atrevendo a utilizar no rei osconhecimentos assim adquiridos. Vesálio elaborouum relatório clínico de que se conserva cópia naBiblioteca Nacional Francesa (B.N. Ms. f. Fr. Vol.10190, F° 141) e Ambroise Paré (1510-1590), relataeste caso no seu livro La méthode curative des playeset fractures de la teste humaine, Paris, 1561.

Nos comentários ao caso clínico n° 100 da SextaCentúria de Curas Médicas, desenvolvidos em formade diálogo com os experientes e sabedoresCirurgiões Celetano e Vanúccio, de mistura comcasos clínicos reais, em certo passo Amato convidaos seus interlocutores a supor que um certo indivíduocaiu de um cavalo, ou foi ferido fortemente porqualquer objecto espesso e pesado, ou então quedo alto lhe tinha caído um peso sobre a cabeça, oque faria que esse indivíduo caísse por terra,acometido de perda de equilíbrio e perda da visão eque depois tenha vomitado e passasse a sentir-sebem mas que, passados três dias, tenha sidoacometido de febre e arrepios, a que se seguiramdores de cabeça, delírio, sede intensa, língua negrae vários outros sintomas que apontam para o fimpróximo.

Henrique II, após os dramáticos momentos que seseguiram ao acidente, parecia que iria sobreviver,mas no quarto dia foi acometido por febre elevada,suores e contracturas passageiras, embora tenharecuperado algum conhecimento. No dia seguintechegou Vesálio que, após exame sumário,

estabeleceu um prognóstico fatal. Pouco antes dofim o doente foi acometido de convulsões do ladodireito e paralisia à esquerda. O rei morreu aos 40anos, no 11° dia após o fatídico torneio que festejavao casamento de Filipe II com Elisabeth de Valois,filha de Henri II.

Segundo o relatório de Vesálio, o fragmento demadeira passou por detrás do olho direito e penetrouna cavidade craneana; Paré, que provavelmentetambém estaria presente, refere que os fragmentosde madeira se insinuaram no canto interno do olhoesquerdo e certamente que as duas descrições sãoconcordantes, tendo a lança actuado de diante paratrás e da esquerda para a direita, atingindo o cantointerno do olho esquerdo, a base do nariz e órbitadireita, onde passou atrás do globo ocular e penetrouno interior do crâneo.

Concluo com a observação de Amato: “Nesta nossaprofissão, como muito bem sabem quantos aexercem, podem acontecer milagres e até se diz quea Medicina tem muito de Divino, mas temos que estarsempre atentos a todos os pormenores e aos maispequenos sinais”.

* Professor da Faculdade de Medicina da Universidadede Coimbra

Bibliografia

AMATO LUSITANO (João Rodrigues de CasteloBranco): Centúrias de Curas Medicinais, volume IV,Tradução de Firmfo Crespo, Universidade Nova deLisboa, 1980

DUMAURE, P.: °Ambroise Paré, Vésale, la mortde Henri ]F’, LV phtalmologie des origines a nos jours(Annonay), T. 4, 1983, 29-36.

RASTEIRO, A.: Medicina e Descobrimentos,Livraria Almedina, Coimbra, 1992.

“Nesta nossaprofissão, como

muito bemsabem

quantos aexercem,podem

acontecermilagres e até se diz que aMedicina tem

muito de Divino,mas temos que

estar sempreatentos a todosos pormenores

e aos maispequenos sinais

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Evolução e conceitos revendo O Juramento de Amato

O SEGREDO NA IATROÉTICA

Por Romero Bandeira* José Viana Pinheiro** Mário Lopes***

Em 26 e 27 de Junho de 1989 quando decorreu oSeminário Luso-Norueguês por iniciativa doI.C.B.A.S. e do departamento de Clínica Geral doHospital de Stº António, houve um dia totalmenteconsagrado ao estudo da ética médica.

O professor Borchgrevink naabertura do Seminário, afirmouque os assuntos relativos àética, poderiam ser basicamen-te estudados de duas formas:ou estudando as doutrinaséticas com a respectiva aplica-ção à prática, ou analisando ediscutindo casos, esplanandoem seguida as respectivasconclusões éticas.

Estas ideias não são inovado-ras na medida que, em Portu-gal, já em 1911, foi criada umadisciplina, de História e FilosofiaMédicas e Ética Profissional, em que não sedissociaria a evolução do pensamento médico coma aplicação à prática médica das respectivassoluções éticas para os problemas apresentados.

Ao abordarmos o Segredo Médico revendo oJuramento de Amato, pensamos de igual modo namedida em que, não se nos afigura crível abordaresta matéria sem analisar, ainda que sumáfiamente,a evolução deste conceito através dos tempos.

Ao invés do que frequentemente se refere, oSegredo Médico não apresenta a perenidade quemuitas vezes se lhe atribui, “Ce que dans l’exercicetherapeutique ou même hors du traitement dans lecommerce de Ia vie humaine, j’aurais vu ou entenduqu’il ne faille pas répandre, je le trairai, estimant qu‘ilsagit de mystéres” (Hippocrate 460-377 A.C.) “Toutd’abord un point mineur:Le text grec utilise le termetherapeia pour désigner l’activité médicalae viséedans ce cas; il s’agirait donc du traitement et il pourraitêtre abusif de vouloir étendre ce terme a l’exercicede l’art dans toutes ces formes” (Mirko Grmek).

Ao olharmos para civilizações extra-europeias,podemos destacar que na China a noção de Segredo,sem nunca ter sido verdadeiramente adoptadaaparece esporadicamente na literatura médicachinesa a partir do séc. XVI.

Analisando a actividade dosmédicos gregos pós-Hipo-cráticos, notamos que o célebrejuramento e as concomitantesobrigações, foram por elespróprios obnubilados. O primeiromédico que se refere expressa-mente ao Juramento foi Scribo-nios Largus, médico romano dotempo dos impera-dores Tibérioe Cláudio (séc. I D.C.). É igual-mente de destacar o facto deGaleno não se preocupar com oSegredo Médico, nem nos seusescritos, nem nas suas acções.

Na Idade Média Ocidental é um facto histórico bemconhecido e, muitas vezes, estudada a atitude anti-individualista. Os interesses de grupo, prevaleciamsobre os interesses individuais.

Assim, não há menção ao Segredo Médico noJuramento da Escola de Salemo, na Oração deMaimonides (Séc. XII - Cordova) nem nasConstituições de Frederico II de Sicilia, redigidas em1231 que, pela primeira vez, sob o ponto de vistalegal, estabelece os deveres sociais dos médicos;no entanto, a noção de Segredo, nunca foicompletamente esquecida, sendo expressada maiscomo Regra de Silêncio. Assim, Assaph, médico judeudo Séc. VII D.C., exige dos seus discípulos:

“Não divulgarás nenhum dos segredos que vos foramconfiados”.

No Renascimento há uma alteração a estesprincipios e, comparando os Estatutos da Fac. deMedicina de Paris de 1598, com os de 1350,verificamos que só nos primeiros há alusão ao SegredoMédico.

Ao abordarmos o SegredoMédico revendo o

Juramento de Amato,pensamos de igual modona medida em que, não senos afigura crível abordaresta matéria sem analisar,ainda que sumáriamente, a

evolução deste conceitoatravés dos tempos.

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Amatus Lusitanus (1511-1568), que elaborou ummagnifico documento, autêntico reportório de virtudesmorais nas “Sete centurias de curas médicas”,expressa com todo o detalhe e clareza um semnúmero de informações clinicas, referenciando osdoentes pelo seu nome e, esclarecendo, que nadamais o guiou senão:

“a transmissão fiel em toda a sua integridade”.Esboça-se porém um movimento de tendência

Católica, equacionando uma similitude na acção en-tre o médico e o padre, tratando um das feridas docorpo e o outro das “ feridas da Alma”(1). Assim, oSegredo-Confissão seria sacramental e transcen-dente e, o Segredo Médico, natural e racional. OSegredo Médico não é poisabsoluto tendo-se introduzido naLiteratura Jurídica pelo juris-consulto de nacionalidade alemã,Ahasver Fritsh (1629-1701).

A leitura de obras de ética e dejurisprudência médicas deGirolamo Brasavola (1614), Rodrigode Castro (1614), Girolamo Bardi(1644), Gedeou Harvey (1683),Michael Alberti (1736) e de outrosautores, demonstra que a ideia deSegredo Médico não era nem fácilnem geralmente aceite.

De acordo com Mirko Grinek:“les sages-femmes devaientadvertir les autorités sur les casde grossesse chez des femmesnon-mariées” “en 1664 les dispo-sitons municipales de Strasbourgimpose aux chirurgiens I’obligationde dénoncer sous peine d’uneamende de cinq livres, toutes lesblessures provenant d’un crime”.“En 1668, Ia corporation des médecins de Bordeauxaccepte de se conformer aux ordres du Procureur duRoi commandant à tous les médecins et chirurgiensde cette ville de dénoncer leurs malades appartenantà Ia Religion Protestante”.

Sómente no Séc. XVII (1622-1628) surge um autor,Jean Bernier, defendendo que o Segredo Médicoabsoluto é a Alma da Medicina(2). No Séc. XVIII JeanVerdier (1735-1820) segue o mesmo pensamento,sendo para ele um princípio de Moral natural e deReligião(3).

Consequência de ampla discussão, aparece oCódigo Penal Napoleónico (1810), que no seu artigo378° dá fundamento legal ao Segredo Médico(4).

O Século XIX não deixa de imprimir ao SegredoMédico através da sociedade burguesa, oindividualismo liberal, a saúde considerada como umbem privado, a honra das famílias, a reputação, etc,e, neste ambiente social, o segredo absoluto é, não

só admitido, como acarinhado, sendo conhecido peloseu período burguês.

Com o inicio da I Guerra Mundial os avançoscientíficos e tecnológicos, a par das transformaçõessociais, obrigaram a que o Segredo Médico fossenovamente escalpelizado, nas suas vertentes, tendonós presentes ainda hoje as palavras de Marañon:

“assim sucede agora com a nossa ciência; depoisde um voo vertiginoso assenta sobre conceitos epontos de vista que foram actuais há vários séculos”.

A actividade médica torna-se quer neste âmbitoquer em termos gerais, cada vez mais espartilhada etutelada pelas leis, passando a existir uma correlaçãoentre Ética e Direito, progressivamente estruturada.

Não podemos pois, no presente,olvidar as leis que regem associedades, onde os doentes viveme os médicos se movimentam(4). Omédico tem deveres, o doente temdireitos!

O inverso é rigorosamenteverdadeiro, sendo o primeiro deverdo doente escolher livre e correcta-mente o médico em que confie. Narelação hinomial médico-doente, háuma vulnerabilidade permanente,mormente no que respeita aoSegredo, sem contudo esquecerque, na prática médica e na socie-dade Portuguesa, o consentimentoé um elemento fundamental do actomédico. Este, pode apresentardiversas facetas, algumas das quaisdirectamente relacionadas com oSegredo Médico, sobretudo noscasos em que a sociedade entendeque, o doente não tem que ser ouvidopara consentir a declaração obriga-

tória de alguns padecimentos(5), originando-se assimsituações inimagináveis relacionadas com o SegredoMédico(6 e 7).

Herdeiros de uma legítima tradição iatroética onde,entre outros nomes avulta o de Amato Lusitano, em1915, a Associação Médica Lusitana teve o cuidadode consignar no seu artigo 95°: “A revelação decrimes descobertos na qualidade de clínico, só podejustificar-se quando o silêncio comprometa a Vida ea Honra dos clientes que lhe cumpre proteger,conduza à condenação de um inocente, ou favoreçaum perigo social, mas só depois do médico terempregado, com a maior discrição, todos os meiosao seu alcance para a evitar” fazendo jus eactualizando para a época o célebre princípioAmatiano que nos diz dever ser feita:

“A transmissão fiel dos factos em toda a suaitegridade”. Trata-se,pois, de uma antevisão dequatrocentos anos, prevenindo-nos e ajudando-nos

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Notas ...

1 - Medicina católica ( SÉC XVI)* Noções Morais eJurídicas com as correspondentes explicações Teoréticas.

2 - Jean Verdier (1622-1698) “O segredo é a alma daMedicina” Jean Verdier (1735-1820) escreveu: “Essai surIa Jurisprudence de Ia medicine en France” (2 Tomus).

3 - Outros países: Aústria-Editos propostos por GerhardVan Swisten (1700-1772); Grã Bretanha-John Gregory(1740-1804), médico em Manchester.

4 - Direitos do doente: Verdade, Justiça, Dignidade.5 - Consentimento: Implícito/Expresso, Oral/escrito,

Conjugal, Idade 16 anos, Deficientes mentais-parentepróximo/entrada oficial, Exames médicos legais,Legislação do trabalho (18 anos e) 45 anos.

6 - Inimaginável: beneficio profissional, amparo dedelitos. Dever-se-á prevenir o acto delituoso, protegerpessoas em perigo

7 - Gregório Marañon:” Se hoje falamos de Hipócrates,não é, em resumo, porque descessemos até ele, masporque o fizemos subir até nós.

neste âmbito, a viver numa sociedade médicacomputorizada, onde o Segredo Médico deve sersempre relativo e nunca absoluto.

* Delegado Nacional da Sociedade Internacional deHistória da Medicina.

** Director do Centro de Saúde da Foz do Sousa.*** Director da Unidade de Cuidados Intensivos do Hos-

pital S. António - Porto.

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PLANTAS USADAS POR AMATO LUSITANO sua localização em solos aráveis do Distrito de Castelo Branco,

algumas em perigo de extinção

Por A. M. Lopes Dias*

1. Nas II Jornadas do ano passado, apresentámosuma listagem de plantas usadas por Amato nas suasCuras e que ainda hoje a maior parte das pessoasque viveram no campo ou o que o conhecem bemainda trazem na memória.

Tínhamos observado, devido a lata representação,que as suas receitas podiam seraviadas na natureza e cerca damaioria dos doentes.

Ainda hoje constatamos que,em muitos lugares e aldeias danossa região, muitas plantas sãoguardadas em casa pelos que lávivem, e são utilizadas comomedicinais.

2. Apresento agora uma sérieque é somada à inicial, menosreferenciada habitualmente. Anomenclatura botânica encontra-se permanen-temente emactualização e os nomes vul-gares que a designam por viapopular variam muitas vezes deregião para região e, frequen-temente, dentro da mesmaregião. Alguns investigadorestêm feito recolhas no Continentee consideramos importante a de Fátima Rocha,apresentada em Lisboa, na Sociedade Portuguesa deFitiatria e Fitofarmacologia em que propunha um úniconome vulgar para cada espécie, pois algumas delaschegam a ter seis e oito nomes(1 ). Embora exista adificuldade de ligar as plantas no seu nome vulgar aonome científico, com Ámato na maior parte dos casosisto não sucede, porque previu com grandeantecedência, mais de dois séculos, as dificuldadesdos seus alunos, e muitas vezes associou um ou maisnomes latinos, gregos e árabes que facilitam aconexão com o actual nome cientifico da espécie(7).As bases da moderna Taxonomia só foram criadasem meados do século XVIII, com a obra do naturalistasueco Carl Von Linné (1707-1778), mais conhecido

na versão latina de seu nome Linnaeus (Lineu).Estabeleceu em 1753, com a publicação da sua obra«Species Plantarum», o sistema da nomenclaturabinomial para as plantas - como Papaver rhoeas L. -para a Papoilas das Searas(7).

3. Através dos milénios de cultivo do solo, um grupode plantas que vulgarmente seapelidam de ervas têm acom-panhado as culturas normais.

As plantas espontâneas queinvadem os terrenos cultivados eque concorrem com as própriasculturas, no ciclo de ocupação dosolo, são chamadas ervas dani-nhas, invasoras ou infestantes.Estas têm ocupado a atenção dequem está ligado às culturasagrárias.

A sua morfologia e identificação,a sua distribuição, as relações decada uma e da comunidade emque se integram com o meioambiente, o grau de agressividadeou a força da concorrência queevidenciam para as culturas queinfestam, fazem parte de umconjunto de características cujo

conhecimento é da maior importância para a conduçãotécnica e económica dos cultivos.

A presença de uma planta pode fornecer dadosinformativos em relação aos solos e sua vocação epotencialidades ou até mesmo quanto à previsão deníveis económicos da produção(2).

Muitas destas ervas daninhas ou infestantes dasculturas actuais serviram ou servem de Aromáticase de Medicinais, que o desenvolvimento no Centro eno Norte da Europa vem distinguindo e rapidamenteacabarão por nos conquistar nos próximos anos. Asgrandes ligações económicas entre os países dasComunidades e agora com a EFTA, vão empolar onosso Turismo, chamando cada vez mais o interessepor muitas plantas de uso condimentar.

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Aconteceu que muitas ervas hoje denominadasdaninhas são de utilização aromática e terapêutica eforam empregues por Àmato nas suas célebresCuras. E hoje muitos ecologistas, nomeadamentealemães e ingleses, chamam a atenção parapopulações de muitas plantas, sobretudo desde aSegunda Guerra Mundial, entraram em declínio emuitas delas estão em vias de extinção ouinfelizmente já desapareceram. São muitoconhecidas e populares algumas, outras não, como,por exemplo, as papoilas bravas, a nigela, o pataiôco,o nariz de zorra e outras que indicamos adiante.

Geralmente são apontadas várias causas principaisdo desaparecimento das ervas que se enumeram:primeiro, o uso de pesticidas, quando são usados têmo maior inpacto no declínio das populações desementes. Em seguida, as apli-cações de azoto, porque muitasespécies entram muito pouco emcompetição com as variedades doscereais de grande produção,produzindo muito poucas sementesquando altos níveis de azoto sãoaplicados, e não só as leguminosascomo à priori se poderia prever. Asdatas de germinação das sementes,nomeadamente de espécies ani-mais, têm um breve período duranteo qual podem germinar. Muitasemergem na Primavera, geralmenteentre Março e Maio ou no Outono, de Outubro aNovembro, embora todas as épocas do anoapresentem germinação de plantas, ultrapassando osclimas e ambientes desfavoráveis. Outras aindaaproveitam as colheitas de cereais ou outras culturaspara poderem emergir(3) (4). Por último, a construçãotem delapidado muitas espontâneas.

De futuro, com a aplicação das políticascomunitárias com muitos solos fora da produção, eminglês o set-aside, para obstar ao excesso da produçãoeuropeia, virá favorecer-se a possibilidade deemergência de muitas ervas.

Pensamos e sugerimos que a maneira de reabilitarcondignamente plantas que embelezam a nossapaisagem é o seu cultivo ou a sua jardinagem, comose faz para muitas delas criadas com cuidados e porvezes com todo o requinte. Quando se vê umaespontânea cultivada num jardim, acaba-se porreconhecer que ela é tão bela ou mais que assofisticadas. Quantas ervas temos de tratar tão oumelhor que aquelas que as lojas debitam? E tambémcomeçaram por ser daninhas no habitat de origem.Temos que alterar o nosso ponto de vista para quecertas plantas nunca venham a sofrer extinção. Somosum país de turismo, poderemos aproveitar muitasplantas que já desapareceram noutros países daEuropa, pois é natural que muitos amigos da natureza

os queiram observar. E poderá sempre produzir-sesem delapidação do arsenal botânico. Outra grandelição de Amato Lusitano.

4. Das plantas usadas por este médicorenascentista, grande parte delas têm o seu solar nodistrito de Castelo Branco. Na zona desta cidade e anorte do Campo albicastrense em terrenos oriundosdo granito que vão até à Serra da Gardunha, passandoesta estende-se à Cova da Beira até à Serra daEstrela. Outras ervas vivem na área de Penamacor ouna área da fronteira (por enquanto) de Segura atéSalvaterra do Extremo. A sul desta cidadedesenvolvem-se muitas delas junto ao Rio Tejo oulimítrofes. Fazendo pensar que o grande rio ibéricoserviu de transporte a muitas sementes(7).

Quanto mais severa for a pressão de “selecção”sobre os indivíduos, mais restrita éa gama de possíveis sobreviventes.A selecção visa a sobrevivência,apresentando uma direcção parauma série ideal de característicase, uma vez estas alcançadasatravés da selecção natural, essasituação é mantida e denomina-seselecção de estabilização. Temosque pensar que uma selecçãoestabilizadora, demonstra ter sidobem sucedida ao longo de muitís-simas vegetações, não havendoalterações de organimos, através

de modificações do ambiente, por exemplo, detemperatura e de humidade. A que se chamavulgarmente uma selecção disruptiva.

Seguindo a ideia estabilizadora vemos populaçõesque definem botanicamente o ambiente que nosrodeia, no Tejo, no rio Ponsul, na Serra da Gardunha,no rio Zêzere que percorre a Cova da Beira e limita oPinhal, e a majestosa Estrela que se estende para oAtlântico e continua para Espanha ligada a outrasáreas planálticas, entre elas a de Penamacor com asua ribeira da Meimoa. Acreditamos que as manchasdas espécies no tempo do Amato eram maiores e emmaior número, pois devem ter sofrido da selecçãodisruptiva. No entanto, os caminhos de Salamanca,que Amato fez, concerteza muitas vezes e que o seuespírito inteligente e observador ajudou a conhecermuitas plantas e talvez também introduzisse algumas.

Como estas Jornadas permitem falar-se do amorna Beira Interior, para quem não é poeta, e só comervas, não poderia chegar lá de outra maneira.

5. Lista das ervas usadas por AmatoGenciana lutea L. = genciana das Boticas =

Argençana dos pastores. Pertence à Família dosgencanácias. São plantas de raiz vivaz.

É espontânea nos lugares elevados da Serra daEstrela e actualmente raríssima pela procura que temtido, podendo afirmar-se que a sua existência natural

Aconteceu quemuitas ervas hoje

denominadasdaninhas são de

utilização aromática eterapêutica e foram

empregues por Amatonas suas célebres

Curas

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no país tende a ser completamente destruída. NaEuropa Central aparece entre os 600 e os 2500 me-tros de altitude. Os seus constituintes são de naturezaglucosídica: A genciopicrina (existindo só na plantafresca), a genciocnarina (formando-se durante asecagem da raiz) e genciina. Além de outros açúcares,a gencianose tem ácido genciânico, tanino e outros.

É um excelente amargo vegetal estimulador dasfunções digestivas. Como tónico digestivo entra nacomposição de diversos aperitivos comerciais. NaEuropa Central fazem aguardente da maceração dasraízes frescas. Tem propriedades febrífugas edepurativas. Há uma espontânea da mesma família,a G. pneumonauthe L., que se desenvolve no litoralnorte e centro, mas as propriedades terapêuticasdesta são muito menos marcadas(8).

Agrostemma githago L. = Nigela dos Trigos =Axemuz = Saudades. Pertence à Família dasCariofiláceas, a mesma a que pertencem os cravos eas cravinas. Desenvolve-se de Abril a Junho. Éconsiderada em vias de extinção em Inglaterra. Aindacom alguma representação no nosso país, sobretudono interior. Na Beira Baixa, aparece mais no Campoalbicastrense, Serra da Gardunha e Cova da Beira.Actua beneficamente no reumatismo.

Silene gallica L. = Nariz de Zorra = erva-ovelha= erva de leite. Da mesma Família, que são asCariofiláceas. É anual, herbácea, desenvolvendo-sede Abril a Setembro. Está largamente representadaentre nós e em todo o país. Está em perigo no Centroda Europa.

Esta planta servia para tratar de mordeduras decobras, a partir da maceração de sementes.

Ranmcuhas arvensis L = Pataiôco. Pertence àFamília dos Ranmculáceas. Anual com o seu ciclode desenvolvimento de Março a Junho.

Tem na sua composição alcalóides e serve paraproduzir calmantes. Espécie em perigo na Alemanhae Grã-Bretanha. Tem entre nós larga representaçãona Extremadura, embora a construção venhareduzindo bastante as suas presenças. Encontra-seno Alentejo e Algarve. Marvão, no norte do Alentejo,costuma ter o pataiôco.

Papaver rhoeas L. ou Parietaria rhoeas L. =Papoilas das Searas

Papaver argemore L. =Papoila longa peluda

Papaver hyhridum L =Papoila peluda = Papoilabrava

Papaver dubium L = Pa-poila

Papaver somniferum Lvar. album D. C. = Dormi-deira

São da Família dasPapaveráceas e como tal são

ervas com vasos laticíferos. Erva anual a Papoila dasSearas, possui látex branco. As flores ou só as pétalascontêm um alcalóide, a readina, ácido readínico,mucilagens, tanino e açúcares. A droga tem aindavestígios de morfina e ácido mecónico. Actua comosedativo, ligeiramente narcótico. As preparaçõesfarmacêuticas destinam-se a atenuar as insónias dascrianças. A apanha das pétalas e flores faz-se de Abrila Junho(5).

Na Dormideira o latéx secodas cápsulas tem ópio. Temem vários graus todos osalcalóides do ópio (cerca devinte), tendo representadosos três grandes grupos destesector: a morfina, a papa-verina e a narcotina.

A indústria prefere diversosextractos de ópio, mais oumenos purificados com longoconsumo na Medicina. Sabe-se que um hectare de cultura chega a dar 25 Kg deópio. A geografia das Papoilas está largamenteespalhada entre nós e todas as Senhoras e Senhorestêm na memória os lindos campos que florescem naPrimavera. Estão a desaparecer da Europa nordestinae algumas das suas variedades, nomeadamente a P.argemore, têm vindo a desaparecer, embora nas Beirase em Trás-os-Montes se encontrem ainda, sendo maiscomum aqui na Beira Baixa na Cova da Beira. Já a P.hybridum é mais comumno sul, onde se encontra naárea de Castelo Branco.

Quem haveria de dizer que as Papoilas podem serum grande cartaz turístico? Ainda bem, pois são muitobelas.

Fumaria muralis Koch = Fumariadas dasparedes= Salta sebes = Sebestena

Fumaria capreolata L. Catarinas - queimadas=Fumária - maior

São também da Família das Papaveráceas. Aprimeira é anual e muito débil. Desenvolve-se de Ja-neiro a Agosto, e aparece mais representada no litoral.Na nossa região, aparece na Covilhã e em toda a Serrada Estrela. Geralmente as sumidades floridas têmacido fumárico solidificado.

Já a segunda, é pouco representada no nosso país,mas aparece na Beira mais a sul na Serra da Gardunhae a sul de Segura na área fronteiriça.

Têm aplicação como depurativo e sedativo.Psilurus incurvus (Gouan) Schinz e Thell = PsílioSendo uma gramínea é muito rara e muito escassa

no país. Aparece na área de Castelo Branco.Desenvolve-se de Maio a Junho, portanto na parte fi-nal das gramíneas cultivadas. Servia de substractopara diversas papas e misturas de remédios(2).

Nardus stricta L = Nardo dos Campos = Servum= Cervum

De futuro, coma aplicação das

políticascomunitáriascom muitos

solos fora daprodução, em

inglêso set-aside,

para obstar aoexcesso daprodução

europeia, viráfavorecer-se apossibilidade

de emergênciade muitas

ervas.

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Da Família das gramíneas, com 10 a 60 cm de alturae em que a semente é uma cariopse. A cultura emgeral não se pratica. Possui fraco valor forrageiro. Ervavivaz(6), aparece no norte do país e nas Beiras, nosarrelvados das altas montanhas, como a Serra daEstrela. A colonização de uma vasta área por meiosvegetativos é bastante lenta, visto que tem tendênciapara formar aglomerados, como é o caso desta planta,embora a concorrência seja minimizada, pois poucasdas outras plantas conseguem crescer dentro daquelesaglomerados. O pastoreio ou o incêndio nãoconseguem dizimar estes aglomerados pois sãoextremamente persistentes e capazes de renovaçãomesmo após a remoção da parte áerea da planta,aumentando assim as hipóteses de sobrevivência daespécie. A propagação vegetativa não implica trocasde matéria genética e assim, cada nova planta éidêntica à anterior.

Mentha maveolus Ehrh. = Hortelã -brava = Mentrasto

Menthapulegium L. = Poejo.Pertencem à Família das Labíadas.A primeira e a segunda são vivazes.

Utilizam-se as folhas de hortelã ainda hojeem culinária e em medicamentoscaseiros. O mentol ainda hoje éempregado como desinfectante das viasrespiratórias entrando na composição demuitos produtos farmacêuticos. A hortelã--brava tem menos mentol e tem mentona,o poejo tem uma acetina, a pulegona. Opoejo vive como condimentar e como tónico digestivoe emenagogo e emprega-se em saboaria. A culturafaz-se de Abril a Outubro na hortelã e de Maio a Agostono poejo. Ambas espalhadas no país, e no nossodistrito a hortelã-brava corre todo o eixo central aopasso que o poejo aparece a norte de Castelo Brancoe no lado sul da Gardunha, portanto mais localizado.

Arisarum vulgare Targ. - Tozz. spp. vulgare =Candeias = Capuz de Fradinho. Família dasAráceas a que pertence esta erva vivaz, herbácea comrizoma tuberoso. Vegeta de Outubro a Abril. Estálevemente dispersa pelo país; na nossa região só estárepresentada na área de Castelo Branco. Actua nosistema nervoso central.

Urtiga dioica L = Urtiga-maior = Urtigão. DaFamília das Urticáceas, esta erva vivaz com pêlosurticantes. Quando em contacto com a pele, a pontado pêlo, que é oco, quebra, deixando escapar umlíquido que contém um veneno irritante. Estes são osácidos gálhico e fórmico, a carotina, bicabornato deamónio, o tanino e uma resina. Muito acreditada comorevulsivo e anti-reumatismal de uso externo. De parteáerea extrai-se industrialmente a clorofila. Colhem-seas folhas no verão. Geograficamente encontra-se emtodo o país, nomeadamente nas zonas sombrias emontanhosas.

Viola arvensis Murray = Amor perfeito bravo.Desenvolve-se de Março a Junho, esta erva anual daFamília das Violáceas. Contém a violina, umaalcalóide, ácido salicílico e mucilagens. É empregadocomo peitoral, espectorante, emoliente, béquico ediaforético. A violina é sobretudo abundante na raiz enas sementes. Aparece no interior norte e centroalentejano. Aparece em todos os locais da Beira Baixa.Serve para doenças da pele, prisão de ventre ereumatismo.(9)

Centaurea pullata L.= Cardinho dasalmorreimas=Centaurea-menor =Padre-Nosso.Plantaanual da Família das Compostas com alturadesde os 5 aos 45 cms, e que tem o seu ciclo deFevereiro a Agosto. Aparece no litoral do Centro e Suldo país. Acima do Tejo e junto a ele na zona de VilaVelha de Rodão - Cedillo, a sul de Castelo Branco. A

planta é tónica, estomática e vermífuga. Nouso interno é utilizada contra a febre, osvermes intestinais, a anemia e a preguiçado tubo digestivo.

Geranium dissectum L. = Coentrinho.Anual, esta planta é da Família dasGeraniáceas e desenvolve-se de Março aJulho. Geralmente aparece junto ao Tejo aSul de Castelo Branco e leste de Vila Velhade Rodão, e também em Salvaterra doExtremo. Servia para gargarejos com umainfusão em dose forte no caso de anginas.Infusões fracas no caso de cistite, catarropulmonar crónico e enterite crónica. A planta

inteira era utilizada.Antragalus cymbicarpos Brot. = Alquitiva =

Alcativa. É da Família das Leguminosas, esta anualque se desenvolve de Abril a Junho. Geograficamentetodo o interior do país a apresenta. Entre nós desde oTejo até à Cova da Beira. É desta planta que se tira agoma-adragante que é a exsudação seca da Alcatina.A sua textura viscosa converte-a num excelente agenteaglutinador e espessante de pastilhas, comprimidose rebuçados.

Origanum Vulgare L.=Orégão. Amato falada flordo orégão, desta planta da Família das Labíadas. Assumidades florais contêm uma essência. Écondimentar e como terapêutica é um excitantecarminativo e vulvenário. Faz-se a cultura de orégãosem viveiros cobertos e com possibilidades detransplantação na Primavera. Colhe-se em Junho eJulho quando as plantas se encontram floridas. Temo sabor pronunciado. Pode-se fazer chá das folhassecas. Tem ainda aplicações contra o reumatismo,de uso externo. Como uso interno é utilizada na tosse,na asma, nas digestões difíceis e nas anemias.(8)

Raphanus raphanistrum spp. Microcarpus(Lange) Coutinho = Saramago = Cabrestos.Pertence à Família das Crucíferas e geograficamentemuito espalhado no país. Na nossa região no eixo

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norte-sul do Tejo à Serra da Estrela e ainda na zonade Penha Garcia. Plantas tipicamente herbáceas cujofruto é uma silíqua. Servia para o tratamento dereumatismo.

Solanum nigrum L. = Erva - moura - Erva doBicho = Erva Noiva. É uma erva anual ou bienal.Menos vivaz e erecta das Solanáceas. Está muitodistribuída pelo país e também na Beira Baixa, desdeCastelo Branco à Serra da Gardunha.

O fruto muito venenoso possui solanina (alcalóide),oxalato de cálcio, uma resina e substâncias pécticas.O fruto tem propriedades narcóticas, sedativas eemolientes. As folhas têm essas propriedades maisacentuadas e são utilizadas na preparação de umunguento. As bagas e as folhas são apanhadas deJulho a Agosto. O material colhido seca-se em localarejado. Usava-se nas hemorroidas, gretas dos seiose úlceras. O unguento sobre queimaduras, abcessos,fleimões, furúnculos e panarícios e também paraabluções vaginais.

Foeniculum vulgare Miller = Funcho. Plantarobusta vivaz da Família das Umbelíferas. Tem umálcool, o anetol, que é a essência principal e éacompanhado por fenona a que se atribuem hoje aspropriedades da droga. É usado como tónicoeupéptico vermífuga. Entra na preparação de diversoslicores. Reproduz-se por semente. Usa-se porsementeira directa da ordem de 7 Kg por hectare. Osfrutos colhem-se quando amarelecem. As raízesarrancam-se no Outono, de Julho a Agosto. Espalhadapelo país, no distrito de Castelo Branco, junto ao Tejoe no Rio Ponsul a leste de Castelo Branco.

Allium ampeloprasum L. = Alho de verão =Porros bravos. Planta bolbosa que se desenvolve deAbril a Agosto, é da Família das Liliáceas. As escamasdos bolbos são folhas carnudas e que armazenamaçucar ou amido para uso futuro da planta. Tempropriedades suavizantes, serve de aperitivo. Emprega--se numa mistura com leite, em loção, contra overmelhidão. O suco misturado com miolo de pão fazamadurecer os furúnculos e abcessos.

As folhas dos alhos-porros macerados em vinagreforte são aplicados em calos e calosidades. Para usointerno, o alho cozido e água de cozedura são laxativose diuréticos. Ainda as raizes trituradas com leite sãovermífugas.

Plantago lanceolata L. = Língua de ovelha =Corrijó.

Plantago afra L. = Zaragatoa = Diabelha.Plantago logopus L. = Olho de cabra.Plantago albicans L = Tanchagem - alvadia.Pertencem à Família das Plantagináceas. A primeira

é vivaz, a segunda anual, a terceira anual e vivaz, assimcomo a quarta. A língua de ovelha serve emconsociação de pastagens e costuma-se usar 1 Kgpor hectare. Em cultura estreme pode semear-se 15Kg/ ha de semente. São estas plantas consideradas

úteis fontes de cálcio, fósforo, sódio e ferro e contêmquantidades relativamente grandes de cobre e cobalto.A Diabelha desenvolve-se de Março a Agosto e estáespalhada por todo o país, com maior frequência nocentro e sul. Na Beira Baixa aparece mais nas áreasde Castelo Branco e Penamacor, ao passo que o Olhode cabra entre nós tem mais representação na Covada Beira.

Enphorbia Characias L = Trovisco = Titimalo -Maior

Enphorbia helioscopia L = Titimalo dos vales =Maliteira

Euphorbia exigua L. = Ésula - menor = Titímalo- menor.

Foram usadas por certos selvagens como venenode flechas. Delas obtém-se látex que contém ácidoeufórbico, euforbona e enforbol, irritantes dos olhos,da boca e das narinas. Tem aplicações só comovesicatório (que produz vesículas). Pertencem àFamília das Euforbiáceas, geralmente com vasoslactíferos com seiva geralmente venenosa. As formigassão atraídas pelos óleos odoríferos, apensos àssementes em pequenas estruturas (oleossomas) efacilmente separáveis e assim disseminam assementes.

Algumas têm o caule desprovido de folhas comranhuras longitudinais, que conservam a água e essasranhuras permitem que as plantas se expandam econtraiam conforme a quantidade de água contida.Vê-se por isso que são plantas de climas pobres edesertos. Existem na área de Castelo Branco e a E.heliscopia na área de Penamacor.

Hoje em dia, nas nossas aldeias e lugares servempara matar pessoas e os peixes nas linhas de água.(1)

Aristolochia longa L = Aristolóquia - longa =Erva - Bicha = Estrelamim. Planta vivaz que sedesenvolve geralmente de Março a Julho, da Famíliadas Aristoloquias. A sua geografia dá a planta comolargamente disseminada pelo país, o mesmo aconteceno distrito de Castelo Branco. Tem sido usado comoemmenagogos.

Trigonella foenum - graecum L = Fenacho =Feno - grego = Erisinha. Amato chama feno grego aesta planta da Família das Leguminosas, anual, comcorola branco - amarelada, tinta de violáceo na base.Desenvolve-se de Abril a Junho. A geografia indica-acomo mediterrânica. Em Portugal, aparece em Lisboae na linha do Estoril, Setúbal e área das Caldas daRainha. Aqui na Beira Baixa, no sul da Gardunha en-tre Alpedrinha e S. Vicente da Beira, sem maisindicações entre nós. As manchas no país,actualmente, são raras. Por outro lado, é cultivadapara feno ou para verde. Tem aroma almiscarado etransmite esse gosto à carne ou ao leite e seusderivados dos animais alimentados por esta erva. Porisso usa-se, normalmente, até 15 dias antes do abatedos animais. As sementes usam-se para despertar o

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apetite do gado. (6).Anchuza azurea Miller = Buglossa = Língua de vaca.

Planta vivaz da Família das Boragináceas que sedesenvolve de Abril a Agosto. Tem propriedadesexpectorantes, refrescantes e calmantes, sobretudoa raiz. Aparece em Vila Velha de Rodão, Monforte daBeira e junto ao Fundão.

*Engenheiro agrónomo

Bibliografia...

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Page 33: SUMÁRIO - UBI

DESERTIFICAÇÃO E DESENVOLVIMENTODemografia dos Concelhos de ldanha-a-Nova e Castelo Branco - 1989/1991

Por António Maria Romeiro Carvalho*

Introdução...

Para além de ser por si só fascinante, aproblemática desenvolvimento/subdesenvolvimentotem a haver com o fim da ruralidade; isto é, com o fimdaquele mundo no qual os nossos pais foram criados.

Um dos aspectos de maior realce neste problemaé o da desertificação populacional, que se assume,simultaneamente, consequente e condicionalismodesse mesmo subdesenvolvimento.

Com o objectivo de analisar essa desertfcação,debruçámo-nos sobre a população dos Concelhos deIdanha-a-Nova e de Castelo Branco, principalmentenos últimos três anos e utilizámos, como fontesprincipais, os Serviços Paroquiais, o Registo Civil eos Censos da População.

O autor agradece a extremosa amabilidade dossenhores párocos, bem como dos chefes efuncionários dos Registos Civis dos dois Concelhos.

1. Densidade populacional: (1864-1991)A densidade populacional de Portugal sempre foi

menor que as dos mais desenvolvidos países daEuropa e a do Concelho de Idanha-a-Nova sempreinferior à do Continente e à do Distrito de Castelo

Branco. Contudo, o movimento geral, progressivo/regressivo, é semelhante, em todos, até 1960. (Quadro1 e Gráfico 1)

A densidade populacional do Continente é o dobroda do Distrito e Concelho de Castelo Branco e maisdo triplo, e até do quádruplo, da do Concelho de

Idanha-a-Nova. Se a emigração da década de 60 sefez notar em todo o Continente, já a da década de 50se fez apenas notar a nível do Distrito. A década de

70 é mesmo de recuperação para o Continente.Facto interessante é o do Concelho de Castelo

Branco se distanciar dos seus dois parceiros a partirde 70 e se colocar ao lado do Continente. É a forçada cidade de Castelo Branco em as-censão que tomapeso no seu Concelho, face às grandes dificuldades

que atravessa o restante Distrito, seja ele agrícola,seja ele têxtil. Concluindo, o Concelho de Idanha foisempre de menor densidade populacional, massempre com o movimento progressivo paralelosemelhante ao Distrito e ao Continente. A partir dadécada de 50, inicia-se um movimento regressivo, queo Continente consegue inverter na década de ’70; oConcelho de Castelo Branco reduz a velocidade dessemovimento negativo, que não o Distrito ou o Concelhode Idanha-a-Nova. A emigração e o fim do peso daagricultura na economia nacional foram fatais aoConcelho raiano e ao Distrito. A cidade capital segurao seu Concelho.

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2. Variação populacional: (1981-1991)São claros os dados fornecidos pelos Fontes. São

poucas, mas firmes, as freguesias de variação positiva.Variação deveras superior à do Continente (0,2%). Amédia do Concelho de Idanha é de -15,07% e a do

Concelho de Castelo Branco de -1,03%, enquantotemos - 2,40% para a Região Centro e - 5,96% para aBeira Interior Sul.No Concelho de Idanha, só Aldeiade Santa Margarida viu a sua população aumentar8%. No Concelho de Castelo Branco, aumentou 8%em Alcains, 3% no Retaxo e 14% na cidade sededistrital. Centro industrial e/ou dormitório, para alémde uma enormidade de serviços - bancos, escolas,seguros, serviços estatais... - que possuem estas trêspovoações, sob a batuta de Castelo Branco, garantema irreversibilidade. Já omasmo não se passa naAldeia de Santa Margari-da, um fenómeno que nãocompreendemos.(1)

A segunda grande ima-gem, que se retém destasfontes, é de que muitassão as freguesias cujo fimimediato é o desapareci-mento e a sua transforma-ção em cemitérios. É ocaso de todo o Concelhode Idanha-a-Nova, salvoSão Miguel de Acha,Ladoeiro e a cabeça doConcelho. Isto é, umalocalização num importan-te eixo rodoviário, a sededo regadio e a sede dosserviços. A acrescentar aestas três, será de acres-centar a povoação dasTermas de Monfortinho,sede turística da região eaqui prejudicada por ainda

não ser sede de freguesia. Quanto ao Concelho deCastelo Branco, e para além das três povoações járeferidas, apresentam-se com -10% as freguesias deCaféde, Escalos de Baixo e de Cima, do Freixial doCampo, da Mata e da Póvoa Rio de Moinhos.

Concluindo, estamos perante adesertificação à volta da Sede Concelhia.Este movimento efectua-se a partir daszonas mais periféricas a caminho docentro. Senhores autarcas e cidadãos, éagora a vez de, num igual movimento, masde sentido contrário, replantar osConcelhos.

3. Taxas concelhias: (1989-1991)3.1. As Fontes...Para uma melhor análise, calcularam-

-se as taxas de Nascimento (baptizados),Casamentos e óbitos (funerais) para am-bos os Concelhos. Como fontes,utilizaram-se os Registos Civis dos

Concelhos e os Serviços Paroquiais de todas asparóquias, salvo oito do Concelho de Castelo Branco.

Dos dados fornecidos pelos registos, consideraram--se só os Nascimentos em que os pais residiam noconcelho; só os casamentos em que o marido temnele residência; só os óbitos cuja última residênciaera no Concelho. Isto, porque se pretendeu aquilatarquem reside, vive ou está ligado à sua terra. Por estarazão, do Serviço Paroquial tomaram-se como maisverdadeiros os óbitos, que os baptizados ou os

casamentos.

3.2. Registo Civil v.Serviço Paroquial...

Na relação entrenascimentos e baptiza-dos, no Concelho deIdanha-a-Nova, aquelessão 56% destes. No deCastelo Branco, acon-tece o contrário, isto é,os nascimentos exce-dem os baptizados em12%. Acontece noConcelho de Idanhauma mais acentuda ru-ralidade; isto é, vêmfazer mais baptizadosà terra, fazendo pa-drinhos os pais oufamiliares próximos,em virtude de umamaior ligação umbilicalà terra natal. Enquantoisto, no Concelho deCastelo Branco, aonde

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a cidade tem um forte peso (certamente mais de umterço do total), existirá já uma forte componente civil--profana no acto religioso--familiar do baptismo. Qua-dros 2 e 3.

Esta é uma ideia que seacentua fortemente nonosso espírito, quando seobservam relações seme-lhantes nos óbitos com osfunerais. Os óbitos sãocerca de + 33% em relaçãoaos funerais, no Concelhode Idanha-a-Nova, enquantoque, no de Castelo Branco, são os óbitos cerca de33% em maior número. Nascer e morrer, os dois actosprimordiais da vida humana. Dois actos tão naturais,tão iguais e ligados que o movimento da perpétua vidae reconstrução representam. Uma ideia reforçadaainda pelo facto de a taxa de crescimento natural

(nascimento-morte) ser semelhante, quer se trabalhecom R.C., quer com o S.P., conforme visível no Quadro4.

Quanto aos casamentos,(2) considerados os trêsanos, é quase nula a diferença entre as duasinformações. Haverá aqui que ter emconta a (relativamente) elevadapercentagem de casamentos pelo civil:12,2% e para os Concelhos de Idanhae Castelo Branco, respectivamente.Uma percentagem que vem confirmarum movimento direccionado à reduçãodo peso do religioso-terra natal na vidaindividual (e colectiva). Isto é poisvisível no casamento, um acto menor,quando considerados o nascimento ea morte. Haverá aqui razões para crernuma ilha urbana, que a cidadealbicastrense constitui num oceano deruralidade? Se não é verdade, apa-renta! Quando considerados os doiscomeço/fim da vida, essa rurali-

dade-sagrado vem ao de cima. Como refere oreverendo padre de Monsanto, Victor Vaz, “os

baptizados são, nagrande maioria, de paisque residem em Lisboae vêm à terra baptizaros filhos para fazerema festa com os avósque, normalmente, sãoos padrinhos”.

Os gráficos 6 e 7parecem-nos claros.Os casamentos emIdanha são “mais

religiosos” e até o chefe do Registo Civil casa aoDomingo. A sexta-feira, dia aziago, dia da morte deCristo, é muito menos utilizada na Idanha, tal como oDomingo, dia do descanso religioso, é aqui maisutilizado.

3.3 Taxa de Crescimento Natural...A taxa de crescimento natural, em ambos os

Concelhos, é negativa. A média dos três anos é de -11,2/1.000 para Idanha e de -3/1.000 para CasteloBranco.

Para além de negativa, os valores mantêm-sesemelhantes ano após ano, o que facilmente indica ocaminhar em direcção à breve desertifrcação. Asfreguesias em perigo de extinção são as mesmas quereferimos atrás, na variação populacional Idanha são“mais religiosos” e até o chefe do Registo Civil casaao Domingo. A sexta-feira, dia aziago, dia da mortede Cristo, é muito menos utilizada na Idanha, tal comoo Domingo, dia do descanso religioso, é aqui maisutilizado.

3.3 Taxa de Crescimento Natural...A taxa de crescimento natural, em ambos os

Concelhos, é negativa. A média dos três anos é de -11,2/1.000 para Idanha e de -3/1.000 para Castelo

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Branco.Para além de negativa, os valores mantêm-se

semelhantes ano após ano, o que facilmente indica ocaminhar em direcção à breve desertificação. Asfreguesias em perigo de extinção são as mesmas quereferimos atrás, na variação populacional (1989-1991).Esta inversãodá-se a partir dadécada de ’60-’70, pois que,nestes anos, ataxa de cresci-mento natural éainda positiva,se bem quecom valoresbaixos: o Con-celho de VilaVelha de Rodão,o de menortaxa, tem 0,Idanha-a-Nova,2,5/1.000 e o deCastelo Branco,6,4/ 1.000. OConcelho deIdanha é o pe-núltimo e o deCastelo Brancocoloca-se ameio da tabelade todos osConcelhos doDistrito.(4)

A saída contí-nua é de talordem em algu-mas povoaçõesque entra pelosolhos de todos.O pesar faceaos númerosdeste facto ébem elucidativo,como refere oreverendo padreFarinha: só12,5% dos bap-tizados e 8,7%dos casados,nestes trêsanos, residem na paróquia de Santo André das Tojeiras;só 36,8% dos Baptizados e 29,5% dos casadosresidem na paróquia das Sarzedas.(5)

O sul do Concelho não se apresenta diferente. Dosbaptizados em Malpica, 62% vieram de fora. Quantoa Monforte, 53% dos baptizados vieram de fora e, de

todos os casamentos, só uma noiva residia naparóquia.

Analisando a taxa de crescimento natural médio,freguesia por freguesia, confirma-se que todas asfreguesias do Concelho de Idanha-a-Nova estão emsituação difícil, exceptuando Aldeia de Santa

M a r g a r i d a ,Ladoeiro e SãoMiguel de Acha;em situaçãomais dificil ain-da, todas, comexcepção dasatrás referidas ede Idanha-a--Nova e PenhaGarcia.

Para o Conse-lho de CasteloBranco, confir-mam-se em si-tuação dificiltodas as fregue-sias, com ex-cepção de Alca-ins, CasteloBranco, Es-calos de Baixo eRetaxo; em si-tuação maisdificil ainda, to-das, com ex-cepção das an-teriores e deCaféde, Esca-los de Cima ePóvoa Rio deMoinhos.

4. Popula-ção activa ep r o d u ç ã o :1990

Através dográfico 2, épossível obser-var que a per-centagem dapopulação ac-tiva, só em Vilade Rei e Proen-

ça-a-Nova atinge os 40%; de qualquer modo, umapercentagem bastante inferior ao desejável numaeconomia e população saudáveis. O Concelho deIdanha-a-Nova é o que possui menor percentagem,29%; para Castelo Branco são 36,3%.(6)

No respeitante ao valor da produção anual per capita,

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aparece com valores deslocados o Concelho de VilaVelha de Rodão, 1.073 contos; o peso do centro deprodução da Portucel! Seguem-se-lhe Covilhã eProença-a-Nova (335 e 265). Castelo Branco vem noterceiro grupocom 206 anu-ais per capitae Idanha-a--Nova no grupodos últimoscom 22 contosanuais per ca-pita.(7)

ConclusãoO Concelho

de Idanha-a-Nova, à seme-lhança do queacontece, nogeral, comtodo o Interior,não resistiu àsdécadas de’50 e ’60. Paraalém da emi-gração, foi apartir destesanos que, ver-dadeiramente,Portugal en-trou no desen-volvimento in-dustrial. As-sim, um êxo-do rural comdois sentidos,Europa eGrande Lis-boa, coloca ad e n s i d a d epopulacionaldo Concelho aníveis inferio-res aos, de1864, afaman-do-se comoos mais bai-xos desde quehá dados.

No respeitante ao Distrito de Castelo Branco, asituação não é, no essencial, diferente: o Distritopermanece agrícola/rural e os têxteis da Covilhãentram em crise duradoira, não oferecendo alternativasa este êxodo.

O Concelho de Castelo Branco, sozinhoconsiderado, mantém um decréscimo, mas reduzido.

A forte concentração de serviços e indústrias na cidadede Castelo Branco, bem acompanhada pelasfreguesias suas satélites, Alcains e Retaxo, conseguesegurar o Concelho iludindo, assim, a sua fraca

d e n s i d a d egeral.

Pode-se en-tão estabeleceruma ligaçãodirecta entre ad e n s i d a d epopulacional eo grau de in-dustrializaçãoe concentra-ção de servi-ços.

Se o indica-dor densidadepopulacional és u g e s t i v o ,mais sugestivose torna quan-do adicionadoao da variaçãopopulacionalnos últimosdez anos e aoda taxa decrescimentonatural dos úl-timos trêsanos. Proença--a-Velha, Mon-santo, Idanha--a-Velha, Sal-vaterra do Ex-tremo, Tou-lões, Segura eRosmaninhalencontram-seem grave situa-ção de deserti-ficação. Menosgrave serão oscasos de Me-delim, Alca-fozes, Monfor-tinho e Zebrei-ra.

Para Castelo Branco, a situação é menospreocupante, porque menos freguesias estão nestecaso. Sobral do Campo, Sarzedas, Santo André dasTojeiras, Monforte da Beira, Malpica do Tejo e Lardosaestão em situação grave. Menos grave será a situaçãode Álmaceda, Benquerenças e Louriçal do Campo.

Colocados perante um mapa, verifica-se, para am-

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bos os concelhos, que o grau de desertficação éinversamente proporcional à proximidade da Sede.Pode-se então estabelecer uma ligação directa entreo grau de desertificação e a proximidade dos eixosrodoviários e a proximidade da sede concelhia.

O rendimento per capita, a par da percentagem dapopulação activa, tem os valores mais baixos noConcelho de Idanha-a-Nova, o que indica o peso dasfaixas etárias demasiado novas e/ou demasiadovelhas.

Fazendo depender a densidade populacional, apercentagem de população activa e o rendimento percapita da concentração industrial, da concentraçãode serviços e da rede viária, só a sede do Distritoconsegue impor-se de forma categórica. De tal formase impõe, ou parece impor-se, que a análise dos actosde nascimento, casamento e óbito leva à afirmaçãodo menor peso da ruralidade no Concelho de CasteloBranco através da sua cidade. Quanto mais longedela, mais deserto e menos riqueza.

Poder-se-ia pensar numa recuperação populacional,mas os dados para o País (e, logicamente, para osdois Concelhos considerados) não são optimistas: osaldo migratório da última década foi negativo e o casalportuguês tem, em média, 1,5 filhos, quando 2,1 é ovalor mínimo considerado para que a população serenove; Portugal é dos países europeus com menortaxa de natalidade e a Beira uma das suas regiõescom menor taxa.

Poder-se-ia pensar numa recuperação desenvolvi-mentista a partir dos investimentos, mas a situaçãonão é animadora: o P.N.B. da França, do Japão e dosEUA, só para dar três exemplos, está descendo desde1988-1990; em Portugal passou para quase metadede 1990 a 1991. O desemprego aumenta na França,Reino Unido, Estados Unidos e Japão; a descida doinvestimento é geral, como geral é a descida dorendimento disponível das famílias e o aumento dapobreza urbana.

Fontes...

“Diário de Notícias - Economia”, de 17-2-1992.M.A.I., Análise e Diagnóstico Geral da Regiõo,

Comissão do Planeamento da Região Centro, 1978.“Nova Realidade das Telecomunicações da Beira

Interior”, Telecom Portugal, 1990.Registo Civil de Nascimentos, Casamentos e

Obitos, 1989-1991, dos Concelhos de Idanha-a-Novae Castelo Branco.

Serviço Paroquial, 1989-1991, Paróquias dosConcelhos de Idanha-a-Nova e Castelo Branco.

Notas...

1- «As raparigas casam mais cedo». Estaremosperante uma conjuntural grande taxa de natalidade?!

2 - Para o estudo de nascimentos, casamentos e óbitosver os gráficos 3 e 4 (Idanha: meses), 5 e 6 (C. Branco:meses), 7 (C.Branco: taxas), 8 (Idanha: taxas), 9 (C.Branco: taxas) 10 (Idanha e C. Branco: taxa decrescimento natural a partir do R. C.e S. P.)

3 - Informações cedidas pelo Reverendo Padre VíctorVaz de Monsanto.

4 - M. A. L, Análise de Diagnóstico Geral da Região,Comissão de Planeamento da Região Centro, 1978.

5 - Informações amavelmente fornecidas peloReverendo Padre Farinha.

6 - Lembramos que esta percentagem está sujeita aonúmero dos reformados, que são recenceados comoprodutores.

7 - Dados fornecidos pela Telecom, Castelo Branco,«Nova Realidade das Telecomunicações na Beira Inte-rior», 1990. Da «Revista da Associação Portuguesa parao Desenvolvimento das Comunicações».* Licenciado em História.Docente e investigador.

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IV JORNADAS DE ESTUDO

1- Mais uma vez, se confirmou ointeresse que há em concretizarestes encontros de estudo numaperspectiva de interdisciplinaridade.A riqueza das comunicações e dosdebates que se lhes seguiram,protagonizados por estudiosos einvestigadores provenientes dediversas áreas do Saber, deixarammais claro o conhecimento de váriosaspectos que marcaram o perfil dohomem desta região, no decurso dostempos, e que se inseriram no âmbitoda temática orientadora:

1. “Facetas da personalidade e da obra de AmatoLusitano”:

2. “A vida e a dor na Beira Interior”2 -Quanto à interdisciplinaridade, considerou-se com

interesse promover, em Encontros futuros, o concursode mais especialidades, alargando quanto possível oseu leque, numa tentativa de abrangência de todasas Ciências Humanas.

3 -Reafirmou-se o grande interesse em desencadeariniciativas que permitam a elaboração de uma ediçãocrítica das Sete Centúrias de Curas Médicas de AmatoLusitano, e ainda a tradução das restantes obras, bemcomo as escritas por outros autores da Beira Interior,como as de Filipe Montalto, citado diversas vezesdurante os trabalhos.

4 - Considerou-se a importância em cometer àUniversidade Portuguesa a realização das traduçõesdos citados autores.

5 - Não existindo ainda um índice bibliográficoactualizado sobre Amato Lusitano, deve a ComissãoExecutiva das Jornadas continuar a diligenciar nosentido da sua concretização.

6 - A abordagem pluridisciplinar da dor demonstrou,mais uma vez, a sua realidade profunda que não selimita a manifestações de ordem física, mas implicamuitos outros aspectos, que caracterizam a suanatureza pluridimensional.

7 - Os trabalhos deixaram mais uma vez bem patentea importância em se persistir na investigação de umavasta documentação sobre a nossa região,

nomeadamente de naturezabibliográfica, arqueológica, etno-gráfica, monumental, artística, etc.,visando um conhecimento maisprofundo da cultura regional.

8 - Considerou-se com muito inte-resse promover iniciativas, no âmbitoda realização de futuras Jornadas,tendentes a atrair a colaboração deInstituições Universitárias estrangei-ras, nomeadamente de Salamanca eCáceres e ainda do Brasil, ondemédicos da Beira Interior viveram econtribuíram de forma notável para o

enriquecimento do seu património cultural. Foi o casodo médico Manuel Joaquim Henriques de Paiva,recordado durante os trabalhos.

9 - Foi novamente recordada a proposta, ainda nãoconcretizada, à Câmara Municipal de Castelo Branco,tomada pública durante as nossas II Jornadas, em1990, em atribuir o nome do Dr. José Lopes Dias,historiador médico e grande estudioso da obra deAmato Lusitano, a uma artéria da cidade de CasteloBranco. Ficou estabelecido diligenciar junto da CâmaraMunicipal no sentido de esta encomendar, a umescultor português, a confecção dum busto do Dr. JoséLopes Dias, a ser colocado em praça da cidade.

10 - Foi também avivada a sugestão apresentada àCâmara Municipal de Castelo Branco, na sequênciadas III Jornadas de 1991, no sentido de criar, na cidade,um Horto dedicado a Amato Lusitano, que inclua aflora da nossa região por ele referida e utilizada,devendo ainda guardar o material genética respectivo,que evite a sua extinção.

11 - Finalmente, ficaram marcadas as V Jornadasde Estudo “Medicina na Beira Interior - da pré-históriaao séc. XX”, a ter lugar nos dias 12 e 13 de Novembrode 1993, subordinadas à seguinte temática: 1- AmatoLusitano, na história da ciência e da culturaportuguesa: 2. O corpo - dor e esplendor.

As IV Jornadas de Medicina na Beira Interior, daPré-História ao Século XX, realizaram-se na ESCOLASUPERIOR DE EDUCAÇÃO DE CASTELO BRANCOa 23, 24, e 25 de Outubro de 1992.

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Sete Centúrias de Curas MedicinaisEsclarecimento de Firmino Crespo

Foi com muito agrado que lemos no “Reconquista” oesclarecimento que aqui reproduzimos do ilustre filólogo elatinista Firmino Crespo àcerca da tradução das Sete Centúriasde Curas Medicinais. È de toda a justiça realçar a grandeimportância da tradução do Doutor Firmino Crespo daquela obraímpar na história da cultura portuguesa renascentista. Só estatradução tem permitido que vários investigadores se venhamdebruçando, com significativo proveito, sobre a obra e apersonalidade de Amato Lusitano. Também a referência aonotável médico e erudito albicastrense José Lopes Dias, que em1940 sugeriu esta tradução, (de acordo com informação dopróprio Doutor Firmino Crespo), tem todo o cabimento.

“Na publicação Cadernos de Cultura (5 de Outubro de 1992)em que se incluiram vários artigos a propósito da reunião dejornadas médicas de Castelo Branco sobre a obra epersonalidade de Amatus Lusitanus, uma particular atenção foidada à obra fundamental de Amatus Lusitanus - As SeteCentúrias... Li com atenção e agrado os trabalhos escritos eopiniões dos ilustres signatários, tanto mais que nelas abun-davam transcrições de passagens do texto da traduçãoportuguesa dessas Sete Centúrias, escritas em latim doshumanistas do século XVI. E como me pareceu que, talvez porlapso, se omitiu a referência ao perfácio da edição integral dasSete Centúrias de Curas Medicinais onde se historia e esclarececomo e a quem se deve a tradução em língua portuguesa e aedição sucessiva das Centúrias, pareceu--me de justiça solicitara divulgação de parte do texto do meu perfácio que antecede o1º volume da minha tradução portuguesa das referidas Centúrias.Aqui incluo fotocópia da 1ª e 2ª páginas desse Perfácio. É que aobra é tão valiosa relativamente aos assuntos médicos e à his-tória da cultura portuguesa que a leitura desse perfácio mereceuma atenção especial a quem quer que esteja interessadosinceramente em conhecer uma obra tão importante, na suaépoca e ainda hoje”.

in “Reconquista” 23-12-92

A Vida e a Dor: debate a várias vozes

Um debate pluridisciplinar, que reuniu vários ramos do Saber,dominou as

IV Jornadas da Beira Interior realizadas no fim-de-semanapassado, em Castelo Branco, na Escola Superior de Educação.Amato Lusitano foi, uma vez mais, figura tutelar de umacontecimento que, como assinalou António Lourenço Marques,da comissão organizadora, “é procura de pontos de cruzamentodos Saberes” numa convergência que “ajudará a deixar maisclaro o conhecimento de aspectos que marcaram o perfil dohomem desta região, através dos tempos”.

in “Jornal do Fundão” 30-10-92

Jornadas percorrem caminhos da dor

Desvendar os caminhos da dor, a forma como se manifestana vida do homem

e ao longo dos tempos, e os meios de minorá-la foram osprincipais objectivos destas IV Jornadas de Medicina da BeiraInterior, que no passado fim de semana voltou a reunir dezenasde participantes, entre os quais investigadores e estudiosos.

in “Gazeta do Interior” 29-10-92

Um olhar sobre a vida e a dor dos Beirões

Amato Lusitano, figura mitica da literatura e cultura beirã, éum dos fulcros deste encontro, pelo que a organização lhededica uma exposição bibliográfica.

in “As Beiras” 22-9-92

IV Jornadas de Medicina da Beira InteriorAo serviço da cultura regional

Um conhecimento mais profundo da cultura regional é, nofundo, o factor primordial do Encontro que ficou bem patentenos trabalhos apresentados, revelando-se como importante acontinuidade e persistência na investigação da vastadocumentação sobre a Beira Interior, de natureza bibliográfica,arquitectónica, etnográfica, monumental e artística.

in “Reconquista” 30-10-92

Ribeiro Farinha

No “cruzamento de saberes” que marcou as IV Jornadas deMedicina da Beira Interior, houve tempo e espaço para umreencontro com a pintura de Ribeiro Farinha. Sempre ligado àsua Beira, a este chão agreste onde o pintor às vezes recolhea expressão de uma melancólica tristeza, a pintura de RibeiroFarinha é um universo de grande beleza plástica, repositório deum percurso criador inquieto e surpreendente. Se um poeta nãotem biografia, como ensinou Borges, porque a sua biografia sãoos poemas, então é também o mundo de Ribeiro Farinha, com asua dimensão de fantástico, com o seu imaginário pessoalissimo,que encontramos naquelas telas pintadas com amor.

in “Jornal do Fundão” 30-10-92

Amato Lusitano e a dor em debate

A dor, na perspectiva própria destes encontros de CasteloBranco, caracterizados pela interdisciplinaridade, isto é em quepromove um diálogo entre disciplinas diversas que se juntampara melhor produzirem uma concepção comum de conhecimentodo homem, partindo de testemunhos daquela região, é o outrogrande tema das IV Jornadas.

in “Notícias Médicas”

IV Jornadas de Estudo - “Medicina naBeira Interior - da Pré-História ao séc. XX

Reafirmou-se o grande interesse em desencadear iniciativasque permitam

a elaboração de uma edição critica das “Sete Centúrias deCuras Médicas” de Amato Lusitano, e ainda a tradução dasrestantes obras, bem como as escritas por outros autores daBeira Interior, como as de Filipe Montalto, citado diversas vezesdurante os trabalhos.

in “Notícias da Covilhã” 30-10-92

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