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    Notas para Literaturas Ps-autnomas IIIJosena Ludmer

    Em algumas escrituras latino-americanas dos anos 2000 trato de ver modos de imaginar e narrarque so modos de pensar e de ler, e, portanto, formas possveis de agitao cultural.

    Na literatura busco palavras, imagens e movimentos; instrumentos conceituais para pensar, etambm p ara imaginar e produzir afeces; procedimentos ambivalentes para fabricar a realidadee completar a volta. O instrumento conceitual (imaginrio e afetivo) poderia ser o instrumento crtico.

    Depois de escreverUna especulacin [Aqui Amrica Latina. Una especulacin] tenho mais oumenos claro como pensar ou imaginar em fuso e em sincronia. E no s na literatura.

    Em fuso

    A queda do mundo bipolar produz fuses de opostos e desdiferenciao entre os plos anteriores.Imaginar/pensar/sentir em fuso com palavras como intimopblico, realidadeco, dentrofora, abs -tratoconcreto.

    No caso da realidade e da co (uma oposio antes bipolar) poderia imaginar-se a fuso doseguinte modo: um plo come o outro, a co come a realidade. Na realidade, a co muda deestatuto porque abarca a realidade at confundir-se com ela. possvel que o desenvolvimento dastecnologias da imagem e dos meios de reproduo tenha liberado uma forma de imaginrio ondea co se confunde com a realidade (o que Beatriz Jaguaribe desenvolve em O choque do Real:esttica, mdia e cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 2007, p.119). O resultado a realidadeco,que no uma matria feita das duas, no uma mescla, uma mestiagem, um hbrido ou umacombinao, seno uma fuso onde cada termo , de modo imediato, o outro: a realidade, coe a co, realidade.

    Em sincronia

    outro modo-procedimento de imaginar e pensar que aparece na literatura e por toda parte: o su-cessivo se justape e o passado est no presente. Cada idia, cada imagem, cada momento, cadaterritrio, contm sua histria e seu passado. No trabalho de hoje esto todas as formas-trabalho dahistria: na famlia, todas as formas-famlia; na literatura, a histria da literatura.

    Para imaginar um territrio em sincronia, vejamos dois exemplos televisivos da dcada de 2000,um argentino e outro norte-americano. A ilha urbana de Okupas e a ilha martima, tropical, de Lost.A ilha um artefato conceitual, ou um instrumento crtico, diferente da nao.

    Em sincronia: na ilha de Lost esto todos seus passados, desde os mitos de fundao athoje; os personagens anteriores e os originrios coexistem no presente e se relacionam: todos

    so contemporneos. A histria da ilha seu presente e sua narrao. Em sincronia tambm seimagina a casa velha ou a ilha urbana de Okupas, que outro territrio dos anos 2000 que contemsua histria at hoje, e tambm (com os tneis subterrneos) a histria da cidade de Buenos Airesdesde a colnia.

    As ilhas no esto somente em sincronia com seus passados; tambm alojam um tipo de su-jeitos tpicos dos anos 2000: os dentrofora. Essa posio dos personagens o que desdobram osrelatos. uma posio que se dene territorialmente (na ilha) e por sua condio exterior-interiorem relao a alguma esfera ou idia: a cidade, a nao, a sociedade, o trabalho, a famlia, a lei oua razo. Os sujeitos da ilha esto ao mesmo tempo fora e dentro dessas divises: fora e amarradossimbolicamente em seu interior.

    As identidades destes personagens esto pluralizadas e multiplicadas para formar, na ilha, co-munidades (e guerras) de outros tipos: loiros, okupas, migrantes, gays, freaks, perdidos... As comu-nidades das ilhas, onde o passado coexiste com o presente, seguem sendo territoriais, mas agoraso provisrias e diaspricas.

    Os sujeitos transversais, dentrofora, plurais, provisrios e diaspricos das ilhas literrias mar-cam nitidamente a diferena (e a relao) com os sujeitos nacionais, vanguardistas e experimentais,das narraes clssicas do sculo XX latino-americano. A diferena com as formas dominantesentre os anos 1940 e 1970, que uniam experimentao temporal e narrativa, um tipo de co comotenso entre realidade histrica e subjetividade-mito, e um tipo de personagens, ou sujeitos uno,encarnaes (ou representantes) de alguma nao, alguma classe, algum povo e algum opressor.Esses personagens representavam um tipo de identidade territorial nacional. A nao, os sujeitosuno e a experimentao vo juntas e do forma aos clssicos do sculo XX: Pedro Pramo, Cemanos de solido, Eu, o Supremo . E no s os romances, tambm os ensaios que queriam deniridentidades nacionais eram vanguardistas e experimentais no sculo XX: Contraponto cubano dotabaco e do acarde Fernando Ortiz, de 1940 e O labirinto da solido de Octavio Paz, de 1950.

    Os sujeitos dentrofora de Okupas e de Lost, e de muitas escrituras do 2000, postulam uma posi-o transversal s divises e classicaes nacionais e parecem borrar a experimentao narrativa.Agora ler mais fcil, como ver.

    Os sujeitos dentrofora das ilhas dos anos 2000 se carregam de uma politicidade que, como acategoria de co, ou da realidade, se encontra em um estado de desdiferenciao: em fuso eem ambivalncia.

    Traduo de Flvia Cera

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    arquivoGastronomia mitolgicaFurio Jesi

    Incertitude, mes dlicesVous et moi nous nous en allonsComme sen vont les crevisses,

    A reculons, reculons.(Apollinaire, Le bestiaire)

    Chamei de maquina mitolgica um modelo que se assemelha, pelo menos em aparncia, queles

    usuais nas cincias naturais. Esse modelo deve servir para congurar seja os objetos historica -mente vericveis, seja os objetos historicamente hipotticos que esto sobre a mesa da assimchamada cincia do mito ou da mitologia. Congurar esses objetos signica coloc-los em relaoentre si e com o observador, com intento gnosiolgico. Mas, no mbito dos mitos e da mitologia,quem compe um modelo arrisca-se sempre a compor ou combinar entre mitos e mitologia mate-riais mitolgicos, isto , tornar-se mitgrafo mais do que mitlogo. De fato um lugar comum,um conceito bvio, para no dizer uma trivialidade , os materiais mitolgicos que se encontramna histria apresentam quase sempre uma tendncia vivssima para fazer-se modelos, imagensexemplares; e toda operao gnosiolgica que objetive coloc-los em relao entre si sem destruir-lhes as presunes pode conferir novo ardor a essa tendncia. Compostos, combinados juntamentenum modelo, os materiais mitolgicos cedero qualidade exemplar a que se arrogam ao prpriomodelo que os renem todos. Desse modo, o instrumento gnosiolgico que o modelo deveria ser,torna-se ele mesmo um material mitolgico. A mquina mitolgica acaba assim mitolgica porquereingressa entre os materiais da mitologia, no porque serve para conhec-los.

    Em alguns trabalhos precedentes1 propus o modelo mquina mitolgica como um mecanismoque produz materiais mitolgicos isto , que produz objetos historicamente vericveis ; meca -nismo que declara, entretanto (sem que necessariamente nele se deva crer), ocultar no seu interioruma cmara secreta com paredes impenetrveis na qual hospedaria o mito, seu centro motor invi-

    svel no vericvel na histria.Esse modelo pode ter certa utilidade, permitindo a resoluo de problemas epistemolgicos que

    dizem respeito relao entre o mito e os materiais mitolgicos: entre o objeto latente, que no vericvel na histria, que no predicvel de existncia ou de no-existncia histrica (isto , omito), e os objetos que chamei de materiais mitolgicos (isto , a mitologia ou as mitologias, a res-peito das quais encontramos testemunhos na histria). O modelo mquina mitolgica apresentaa vantagem de no colocar a pergunta o que o mito?, ou, ao menos, de declarar essa perguntacomo mal posta, falso problema, uma vez que no possvel dizer o que o objeto que se aniquila

    1 La festa e la macchina mitolgica. In.: Materiali Mitologici. pp. 81-120; Il Mito. Milano: Isedi, 1973.

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    por si s quando se declara a sua existncia ou a sua no-existncia.Dadas essas vantagens, no gostaria de renunciar ao meu modelo. No podendo, no entanto,

    esconder que esse modelo ele mesmo algo mitolgico, subitamente renunciei a consider-lo uminstrumento frio e lcido, e me proponho a reduzir, muito ou pouco, a margem de erro na sua apli-cao, sublinhando alguns aspectos propriamente gastronmicos do funcionamento da mquinamitolgica, vista como receita para satisfazer, no mbito da cincia, a fome de mitos. Um modelo sempre algo muito similar a uma receita. E no possvel separar o modelo mquina mitolgica,ou ainda, as palavras mquina mitolgica de uma outra cifra lexical. No se pode pronunciaraquelas palavras sem gerar nos ouvidos de quem escuta um fonema espectral e, talvez, tambmdiante dos olhos de quem escuta, uma espcie de ectoplasma: fonema espectral, ectoplasma, queos alemes chamam der Hunger nach dem Mythos, fome de mitos2. Evocar esse ectoplasma

    signica colocar-se no ponto de fuga em que aquela que foi chamada a cincia do mito ou a cinciada mitologia aniquila-se por si s.Quando li pela primeira vez esse ensaio, em francs, tive que agradecer lngua francesa, j

    que a sua fontica tornava-se veculo de uma apreciao preliminar do ectoplasma, no instante emque traduzia para o francs o nome do ectoplasma, der hunger nach dem Mythos. Em francs: lafaim de mythes. E no somente a minha duvidosa pronncia do fr ancs fez assim com que a faimse identicasse com a n, a fome com o m, Hunger com Ende. Ponto de fuga, certamente,mas tambm ponto de apreciao histrica de uma relao com o mito que imagino como uma bus-ca, no somente capazde destruir, mas obrigada a destruir o seu objeto: como uma cruzada queno poder conquistar o seu Santo Sepulcro sem o ter destrudo de antemo. O modelo mquinamitolgica , antes de tudo, a mquina de guerra que conquista enquanto destri, o artifcio queconhece o seu objetivo aniquilando-o. Ter fome de mitos quer dizer preparar-se para comer os mitosquando estes depuserem as suas armaduras. J que, de outro modo, no so comveis. Trata-sede descascar os camares, j cozidos no fogo da busca e to logo tenham assumido durante ocozimento a cor vermelha que o objeto da nossa fome. Essa cor vermelha a cor daquilo queest morto e, morrendo, assumiu a cor daquilo que vivo, maduro, agradavelmente comestvel. Analidade da moderna cincia do mito ou da mitologia, a nalidade dos mitlogos modernos, esta:ter sobre a mesa algo muito apetitoso que, sem hesitao, dir-se-ia vivo, mas que est morto e que,quando estava vivo, no possua uma cor to agradvel. A cor da vida no uma prerrogativa muitofreqente do que est vivo. O que est vivo freqentemente no muito comestvel para ns e a corda vida , aos nossos olhos, a cor do que comemos com viva satisfao.

    O modelo mquina mitolgica j disse uma receita til para tornar os materiais mitolgi-cos agradavelmente mortos, pulverizados pela cor da vida, esplendidamente comestveis. precisoacrescentar, de fato, que se o que est vivo freqentemente no muito comestvel para ns,

    2 Cfr. T. Ziolkowski. Der Hunger nach dem Mythos. Zur seelischen Gastronomie der Deutschen in den Zwanziger

    Jahren. In.: Die sogenannten Zwanziger Jahre. Organizao de R. Grimm e J. Hermand. Bad Homburg-Berlin-

    Zrich: Gehlen-Verlag, 1970, pp. 270 ss.

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    tambm o que est morto e aparece exatamente como morto no muito apetitoso. A mquinamitolgica a receita para preparar materiais mitolgicos a m de que apaream sobre a mesacientca bem mortos, mas tambm muito apetitosos. E para sublinhar os seus aspectos e as suasvirtudes gastronmicas permitam-me salientar que h uma coincidncia quase perfeita entre as re-gras que compem o modelo mquina mitolgica e aquelas que compem um outro modelo maisclebre: o trecho exemplar do Guide culinaire de A. Escofer a propsito da preparao dos cama -res3.Eis aqui o texto, dotado de todas as qualidades que deveriam fazer dele um texte de chevet4[livro de cabeceira] dos mitlogos: Quel que soit leur apprt, les crevisses doivent toujours trebien laves et chtres... [Independentemente de sua preparao, as lagostas devem ser semprebem lavadas e castradas...] Permitam-me aqui tirar a palavra do mestre da gastronomia por uminstante para salientar a exatido do seu ensinamento, no somente para esses crustceos, mas

    em particular para os mitos. Sobre a mesa do laboratrio da cincia do mito, os mitos, qualquer queseja a apprt que se lhes reserva, devem sempre ser bem lavados e castrados. Mas, ainda queno seja muito difcil compreender o que signica lavar, bem lavar os mitos, isto , submet-los gua do laboratrio, liber-los assim da lama das suas hipstases histricas, com reserva natural-mente de colocar mais tarde aquela ter ra em anlise lolgica , dito tudo isso, permanece a dvidasobre o que signica castrar os mitos. O mitlogo pod eria avanar hipteses pouco fundadas. Mash uma explicao precisa encontrada na explicao de Escofer: castrar os mitos quer dizer lesdbarrasser du boyau intestinal dont lextremit se trouve sous le milieu de la queue, ce qui sefait en saisissant cette extrmit avec la pointe dun petit couteau et en le retirant doucement pourne pas le briser [livr-los do tubo intestinal cuja extremidade se encontra no meio da cauda, issoque se faz apertando essa extremidade com a ponta de uma pequena faca e puxando-a delicada-mente para no o quebrar]. No somente isso. H coisas melhores, muito mais esprit de nesse,muito mais savoir faire metodolgico nas palavras do mestre Escofer. Ele especica, de fato, queLaiss dans les mythes, ce boyau risquerait, principalement au moment du frai, de leur donnerde lamertume [Deixado nos mitos, esse tubo arriscaria, principalmente nas pocas de desova, adeix-los amargos]. E notrio que os mitos esto quase permanentemente au moment du frai.Mestre Escofer enuncia ainda outra regra urea da metodologia da cincia do mito. Loprationde chtrer les mythes, diz, ne doit pas se faire quau dernier moment, et les mythes doivent tremis immdiatement dans la cuisson, sinon leur eau schappe par lorice de cette blessure, et ils

    se vident [A operao de castrar os mitos s deve ser feita no ltimo momento e os mitos devemser colocados imediatamente no cozimento, seno sua gua escapa pelo orifcio dessa ferida e elesse esvaziam].

    Evidentemente, no entanto, as palavras do mestre Escofer me deixaram de tal modo hipnotiza-do com a sua preciso, com a exatido das regras metodolgicas que prope, que me zeram cair3 A. Escofer, com a colaborao de Ph. Gilbert e E. Fetu. Le guide culinaire. Aide-mmoire de cuisine pratique.Paris: Flammarion, 1921. p. 372.4 Nota do tradutor: Optei por traduzir os vrios trechos que o autor cita em francs, porm, tambm mantendo

    o original no corpo do texto.

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    num erro, aos meus olhos muito grave. A competncia desse mestre me fascinou tanto ao pontode me fazer esquecer a minha norma metodolgica fundamental: eu disse mitos onde deveriater dito materiais mitolgicos. Ediquei conscientemente os muros que sempre deveria levantarentre o mito, no vericvel na histria e cuja existncia ou no existncia no predicvel, e osmateriais mitolgicos, vericveis na histria, materiais cuja existncia indubitvel. E disse umlapso talvez eloqente e revelador e de certo modo ambguo , disse que castrar os mitos, no osmateriais mitolgicos, quer dizer isso e aquilo etc. Muito provavelmente isso signica que a qualida-de mitolgica da maquina mitolgica assumiu e produziu essa ambigidade. Impossvel fugir pormuito tempo. Os escrpulos mais louvveis, a inquietude despertada pelo mximo sombreamentode conscincia epistemolgica, submergiram pela nossa gulodice. O rigor dura apena s uma manh.

    A guisa de exemplo de advertncia, gostaria de mostrar um s caso da aplicao da mquina

    mitolgica exatamente no mbito de um mito da mquina.Em um recente ensaio, que integra o seu livro sobre Mito da mquina, R. Tessari5[5] sugerereconhecer no aforismo do Manifesto futurista de 1909, Um automvel de corrida mais belodo que a Nike di Samotracia, a primeira linha dun surprenant roman damour: le conte courtoisdun hros moderne ls de la Desse-Usine, qui rend hommage au culte dune nouvelle Dame

    [o automvel] et compose pour elle des madrigaux passionns [de um surpreendente romancede amor; o conto corts de um heri moderno lho da Deusa-Indstria, que homenageia o cultode uma nova Dama [o automvel] e compe para ela madrigais apaixonados]. O amor do po-eta futurista e da mquina (automvel6), os quais semblent senfuir vers la fort enchante delArt et du Mythe, [parecem fugir para a oresta encantada da Arte e do Mito] seria um amorculpado de lesa vassalagem e adltero, nos confrontos de um sistema econmico soberano dopoeta e esposo legtimo da mquina. Um sistema econmico rei Marco, uma mquina-Isolda,um poeta futurista-Tristo, para seguir a interpretao de Tessari. Ele nota, no entanto, que a ve-nerao, pelos futuristas, da mquina, ao invs de romper com uma tradio literria secular, recaidans le plus caractristique des lieus communs de lerotisme occidental [no mais caracters-tico dos lugares comuns do erotismo ocidental]: o mito tristnico. Marinetti et ses disciples nesont pas les aptres dune dimension humaine rvolutionnaire, mais les pigones dune culturebourgeoise europenne qui, en afrmant de prfrence sous forme de mythologie rotique ses

    diffrents niveaux de conscience des contradictions historiques, joue constamment ses chancessur lantithse entre Eros et gape, passion manichenne et mariage catholique... [Marinetti eseus discpulos no so os apstolos de uma dimenso humana revolucionria, mas os seguidoresde uma cultura burguesa europia que, armando preferencialmente sob forma de mitologia erticaseus diferentes nveis de conscincia das contradies histricas, jogam constantemente sua sortesobre a anttese entre Eros e gape, paixo maniquesta e casamento catlico...]. Quando se tor-5 R. Tessari. Il mito della macchina. Letteratura e industria nel primo Novecento italiano. Milano: Mursia, 1973(em particular as pp. 211 ss., 222 ss., 264 ss.); Id. Le futurisme et la machine: un mythe damour tristanique, in

    Europe, ano VIII (1975), n. 551 (Les futurismes), pp. 48-53.6 N. T.: a palavra macchina, em italiano, tambm signica carro, automvel.

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    na Isolda, a mquina (automvel) aparentemente salva o homem moderno do inferno econmico;mas, na realidade, todas as virtudes das quais a mquina depositria no romance corts futuristacoincidem com les valeurs les plus chres chaque systme capitaliste [os valores mais carosa todo sistema capitalista]. Esses materiais mitolgicos podem somente enganar, ngir uma se -parao entre mquina e sistema econmico: lhistoire et le mythe (offenss, lune per loutrancede lidalisme, lautre par la grossire destitution de lidole fminine) se vengent des futuristesen dcevant toutes leurs vellits rvolutionnaires et en les entrainant dans les plus obscuresimplications de la logique industrielle bourgeoise et de larchetype tristanique [a histria e o mito(ofendidos, um pelo excesso do idealismo, o outro pela grosseira destituio do dolo feminino) sevingam dos futuristas decepcionando todos seus impulsos revolucionrios e levando-os s maisobscuras implicaes da lgica industrial burguesa e do arqutipo tristnico]. Ter-se-ia, assim, no

    apenas os desabrochamentos do nimo vulgairement tristanique do pequeno-burgus moderno(sentimentalismo e luxria frustrados) no culto do automvel ou da motocicleta, mas tambm osorescimentos daquelas tonalidades de maniquesmo e de religio da morte (horror pela mulhersmbolo da terra/natureza e sua substituio pela mquina (automvel); sofrimento pelo ciclo denascimento e morte que aprisiona o esprito; culto das armas e da guerra) que Tessari, com baseem Denis de Rougemont, declara presentes nas relaes entre o mito tristnico e as heresias daIdade Mdia.

    Mas, para quem quer recorrer ao modelo mquina mitolgica, esse autodenominado mani-quesmo dos materiais mitolgicos da Idade Mdia e do futurismo muda imediatamente de siono -mia. Se se considera a gnese do romance corts futurista e das interpretaes, muito duvidosas,de Denis de Rougemont como produes da mquina mitolgica, as paredes impenetrveis queocultariam o motor imvel da mquina surgem e nos obrigam a olhar de perto os produtos, o pro-dutor, no os movimentos mais misteriosos e duvidosos do suposto produtor remoto, mas aquelesexplcitos do produtor imediato. No o mito ou o arqutipo, no predicvel de existncia nem deno-existncia, que se pode tranquilamente colocar entre parnteses ou identicar com o vazio,mas as articulaes operativas da mquina mitolgica. Os elementos dos assim chamados mitosdo amor da Idade Mdia, que induziram Denis de Rougemont a ligar aqueles mitos com o mani-quesmo, so os produtos de uma cozinha no medieval, mas medievalizante [medievaleggiante].So alimentos preparados sobre a mesa do laboratrio lolgico do sculo XIX, segundo a receitada mquina mitolgica. As pginas de um grande chefcomo Gaston Paris nos permitem estudarin agrantiessas manipulaes. Gaston Paris e os seus ilustres colegas, compreendidos aquelesespecialmente gulosos por Realien, degustaram os textos e, aos mitos, deram uma interpretaomuito saborosa segundo a receita burguesa e maniquesta, j que burguesa. Mergulharam os ma-teriais mitolgicos no caldo fervente que tinham preparado e caram fascinados diante da cor rosaassumida por aqueles camares. Eis as palavras de Gaston Paris que so a receita perfeita e, aomesmo tempo, os seus resultados: Cette pope celtique, morte elle-mme en crant sa posterit,na pas seulement charm le moyen age: la posie moderne est encore imprgne de son esprit

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    et lui doit deux de ses lments essentiels: lavventure et lamour, cest--dire la recherche du

    bonheur sous les deux formes de la supriorit individuelle et de la possession absolue dun autretre7 [Essa epopia celta, que morre ao criar ela mesma sua posteridade, no encantou somentea idade mdia: a poesia moderna ainda est impregnada de seu esprito e lhe deve dois de seuselementos essenciais: a aventura e o amor, isto , a busca pela felicidade sob as duas formas dasuperioridade individual e da possesso absoluta por ou outro ser]. Note-se bem: la suprioritindividuelle, la possession absolue. A Idade Mdia est muito distante; prximo, o burgus dosculo XIX. E prximo est o perito em gastronomia. Gaston Paris disse: Cette pope celtique,morte elle-mme en crant sa posterit. Eu diria: esses materiais mitolgicos, bem lavados, cas-trados e mergulhados imediatamente na gua fervente no fogo: eles que, claro, no estavam vivos,mas que tinham ainda cor de argila e agora, imersos no ardor da busca, teriam assumido a cor bela

    e apetitosa da vida. Ou, pelo menos, da vida comestvel; j que no se trata sempre e nem mesmoda cor vermelha da vida ainda que presumida: vrias vezes trata-se apenas do rosa da possessionabsolue dun autre tre no nvel dos feuilletons que no apreciam brutalidade canibal. A mquinamitolgica funciona imperturbvel nos mais inspidos cabinets spars e nas trevas da Histoire dO.So covas e salas, manses e casas senhoriais. H, no centro da mquina mitolgica, um quartosecreto: o que se encontra nos sonhos e que muito provavelmente est vazio. Os garons que, semtrgua, vm e vo de l com as bandejas cheias, ngem no ser outra coisa que garons, aindaque sejam verossimilmente cozinheiros. E quando ns dizemos os mitos ao invs de os materiaismitolgicos ngimos acreditar em tal engano.

    Poder-se-ia agora perguntar se a mquina mitolgica pode verdadeiramente ser til, dado quenos impe um engano: engano no qual ngimos acreditar. Ainda responderei: sim, pode ser tilcomo modelo gnosiolgico, uma vez que transpe para o nvel do seu engano mecnico, do seu en-gano funcional, normativo da sua existncia, o engano que K. Kernyi chamava de tecnicizao domito. Assim fazendo, a mquina mitolgica coloca nas nossas mos, ao mesmo tempo, um modelognosiolgico e um espelho do nosso engano. Ambigidade, claro. Mas depois dessa forada am-bientao do leitor na linguagem da gastronomia, ser fcil lembr-lo de que em francs ambigu[ambguo] quer dizer tambm repas froid, ou lon sert la fois tous les mets et les desserts (La-rousse) [refeio fria na qual se serve ao mesmo tempo todos os pratos e sobremesas], refeiona qual les parfums, les couleurs et les sons se rpondent (Baudelaire) [os perfumes, as cores eos sons se correspondem]. Assim, o leitor perdoar essa irrupo doAmbigu cmico num mbitocientco, o qual usualmente distante da comdia.

    Traduo de Vincius Honesko

    Fonte: Furio Jesi. Gastronomia Mitologica. In.: Materiali Mitologici. Mito e antropologia nella culturamitteleuropea. Nuova edizione a cura di Andrea Cavalletti. Torino: Einaudi, 2001. pp. 174-182.

    6 G. Paris. Tristan et Iseut, publicado na Revue de Paris (1894) e depois retomado em Pomes et Lgendes

    du Moyen-Age. Paris: Socit dEdition Artistique s.d. (1900), p. 120.

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    arquivo verbeteA Cauda Luis Tejada

    Aquele sutil grego que amputou a cauda do seu cachorro arrebatado por irnico bom humor, talvez no adivinhasse

    em toda a sua magnitude o signicado profundo, com projees espirituais, que esse apndice carnoso e peludotem em relao com a vida dos animais superiores.

    Na cauda reside indubitavelmente o equilbrio fsico, e eu acredito que tambm o sentido do equilbrio intelectualdos mamferos. Dizem-me que um coitado cachorro sem cauda incapaz de passar por uma ponte estreita isto,embora no seja verdade, verossmil e lgico. A cauda para o animalzinho como a alavanca que o bailarinoleva na corda e que lhe ajuda a distribuir as foras e os pesos quando o corpo se inclina demais para um lado oupara o outro. A alavanca a cauda do bailarino infunde-lhe conana, acha-lhe no sei que pontos invisveis deapoio no espao e o guia ao longo da corda, sem que se interrompa essa sutilssima e matemtica situao quechamamos equilbrio.

    Ora, um cachorro sem cauda , ademais, o pequeno ser melanclico e maluco por excelncia; ambulante echeio de leves caprichos, parece que um eixo secreto se quebrou nele, que falta sua vida uma direo precisae ordenada, que a sua existncia no tem mais razo para ser porque perdeu seu m ideal. No me pareceria es -tranho que esse cachorro se zesse misantropo e at comeasse a elucubrar teorias metafsicas e a se perguntaro que pode haver mais alm da vida e qual o princpio e o m das coisas. claro: o infeliz perdeu o sentido doequilbrio intelectual, se desorbitou, quase um homem.

    E o homem? A falta, ou melhor, a perda da cauda tem inuenciado nele espiritualmente? Porque inegvelque o homem teve cauda: qualquer um pode se convencer pessoalmente, apalpando com discrio os vestgiosancestrais desse adminculo que levavam, completo e mvel, nossos remotos avs.

    No homem atual a falta de cauda um defeito verdadeiramente essencial, ao que eu no consegui ainda meresignar totalmente. s vezes na rua, penso que todos os que vo diante de mim, levam-na cuidadosamente enros-cada por baixo do palet, e me assalta a estranha presuno de que sou eu o nico que no a tem, transformando-me assim no homem mais desgraado da Terra.

    Mas enm, mesmo que ela tenha se extinguido lentamente ou que um deus caprichoso como Alcibades aoseu co a recortara de um golpe em alguma manh imemorial, o certo que essa decincia tem denitivamenteinuenciado o homem. Por que, ento, armava Pascal que o homem o nico ser imperfeito, e por que o doutorGaravito costumava dizer que o homem um animal louco? Rogo-vos que mediteis nessas duas frases, buscandoa sutil analogia que h nelas. Sim, o homem um animal louco e imperfeito; uma ruptura primordial descentrara-o,deixara-o sonmbulo e errabundo na eternidade; cheio de apetites incomensurveis, de estranhas aspiraes, detorturantes meditaes, o homem sempre tende a sair da rbita que lhe tem sido designada na natureza. A sabedo-ria e a perfeio dos outros animais, sobretudo dos que tm cauda, est na submisso inconsciente e maravilhosaao seu destino. O cavalo, por exemplo, nunca desejaria deixar de ser cavalo; tranqilo e feliz, vive sujeito ao seufado, e no procura sair do patamar que lhe corresponde na natureza: perfeito. O homem, ao contrrio, tentamodicar a si mesmo, cheio de nsias innitas, complicando a sua existncia cada dia um pouco mais s nele seencontra o desgosto metafsico, a inconformidade transcendental; s ele no feliz. Em relao aos outros animais,o homem como o cometa, ambulante e perdido, em relao aos astros que possuem rbita xa e a percorremequnimes, simples, humildes, do princpio ao m dos tempos.

    que ao homem lhe falta uma batuta, uma alavanca, um ndice que guie e sustente o seu equilbrio ao homem

    falta-lhe a cauda, um cabo exvel e prodigioso que amarra a inteligncia louca realidade da vida. (1924)

    Traduo de Luz Adriana Snchez Segura