sociedade do conhecimento ou sociedade das ilusoes

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  • Newton Duarte

    Sociedade do Conhecimento ou Sociedade das Iluses?

    quatro ensaios crtico-dialticos em filosofia da educao

    Coleo Polmicas do Nosso Tempo

  • Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SR Brasil)

    Duarte, NewtonSociedade do conhecimento ou sociedade das iluses? quatro

    ensaios crtico-dialticos em filosofia da educao/ Newton Duarte. -I. ed., I. reimpresso - Campinas, SP: Autores Associados, 2008. - (Coleo polmicas do nosso tempo, 86)

    Bibliografia.ISBN 978-85-7496-070-8

    I. Educao - Filosofa 2. Pedagogia crtica I. Ttulo II. Ttulo: Quatro ensaios crtico-dialticos em filosofa da educao III. Srie.

    03-1906 CDD-370.1 15

    ndice para catlogo sistemtico:I. Educao: Filosofia: Perspectiva crtico-dialtica 370.1 15

    Impresso no Brasil - Ia edio em agosto de 2003 Ia Reimpresso - outubro de 2008

    Copyright 2008 by Editora Autores Associados LTDA

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    Conselho Editorial "Prof. Casemiro dos Reis FilhoBern ardete A. GattiCarlos Roberto Jamil CuryDermeval SavianiGilberta S. de A4. JannuzziMaria Aparecida MottaWalter E. Garcia

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    RevisoValria Cristina da Silva Erika G. de F. e Silva Cleide Salme Ferreira

    Diagramao e Composio DPG

    Capa e Arte-final rica Bombardi

    Impresso e Acabamento Grfica Paym

    Sumrio

    Apresentao 1

    Captulo UmAs Pedagogas do Aprender a Aprender e Algumas Iluses da Assim Chamada Sociedade do Conhecimento 5

    Captulo DoisRelaes entre Ontologia e Epistemologia e a Reflexo Filosfica sobre o Trabalho Educativo 17

    1. O Interacionismo e a Biologizao do Processode Conhecimento 19

    2. Em Busca dos Fundamentos Ontolgicos: a Dialtica entre Objetivao e Apropriao como Dinmica Essencial

    da Produo e da Reproduo da Realidade Humana 223. A Apropriao da Cultura pelos Indivduos

    um Processo Educativo 304. O Que o Traballio Educativo 34

    Captulo TrsA Anatomia do Homem a Chave da Anatomia do Macaco: a dialtica em Vigotski e em Marx e a questoDO SABER OBJETIVO NA EDUCAO ESCOLAR 39

    1. A Dialtica em Vigotski 392. A Dialtica em Marx 54

  • 3. A Dialtica do Pensamento como Reflexo da RealidadeObjetiva e a Questo do Saber na Educao Escolar 76

    Captulo QuatroIdeal e Idealidade em Ilyenkov: contribuies para A REFLEXO FILOSFICO-EDUCACIONAL CONTEMPORNEA 85

    Referncias Bibliogrficas 103

    Sobre o Autor 107

    A P R E S E N T A O

    ste livro rene quatro artigos, trs deles publicados em peridicos da rea de educao e um publicado em CD-ROM.

    O primeiro artigo, intitulado "As pedagogias do aprender a aprender e algumas iluses da assim chamada sociedade do conhecimento", foi escrito em 2001, apresentado em uma seo especial realizada durante a 24a Reunio Anual da ANPED (Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Educao) e publicado no mesmo ano, no nmero 18 da Revista Brasileira de Educao, editada pela prpria ANPED, em co-edio com a Editora Autores Associados. Esse texto foi um dos resultados de uma pesquisa intitulada O construtivismo: suas muitas faces, suas filiaes e suas interfaces com outros modismos, a qual foi desenvolvida com apoio do CNPq (no perodo de agosto de 1998 a julho de 2002).

    O segundo artigo, intitulado Relaes entre ontologia e epistemologia e a reflexo filosfica sobre o trabalho educativo, foi escrito em 1997, apresentado no Grupo de Trabalho Filosofia da Educao, durante a 20a Reunio Anual da ANPED, e publicado em 1998, no nmero 29 da Revista Perspectiva, editada pelo Ncleo de Publicaes do Centro de Educao da Universidade Federal de Santa Catarina. Esse texto foi um dos re-

  • 2 SOCIEDADE DO CONHECIMENTO OU SOCIEDADE DAS ILUSES?

    sultados de uma pesquisa intitulada Elementos para uma teoria histrico-crtica do trabalho educativo, a qual contou com apoio do CNPq no perodo de agosto de 1996 a julho de 1998.

    O terceiro artigo intitula-se A anatomia do homem a chave da anatomia do macaco: a dialtica em Vigotski e em Marx e a questo do saber objetivo na educao escolar. Foi escrito em 2000, a convite do professor Angel Pino, da Unicamp, organizador de um nmero especial (nmero 71 ) da Revista Educao e Sociedade, editada pelo Centro de Estudos Educao e Sociedade (Cedes). Esse nmero especial da revista, no qual foi publicado esse artigo, reuniu trabalhos de estudiosos da obra vigotskiana e foi lanado durante um congresso internacional realizado na Unicamp em julho de 2000, no mesmo ano do lanamento, pela Editora Autores Associados, de meu livro Vigotski e o aprender a aprender": crtica s apropriaes neoliberais e ps-modernas da teoria vigotskiana.

    O quarto artigo intitula-se Ideal e idealidade em Ilyenkov: contribuies para a reflexo filosfico-educacional contempornea. Foi publicado no CD-ROM da 25a Reunio Anual da ANPED e apresentado, durante essa reunio, em 2002, no Grupo de Trabalho Filosofia da Educao. Meus estudos sobre alguns trabalhos do filsofo sovitico Evald Vasilyevich Ilyenkov ( 1924-1979) fazem parte de um projeto de pesquisa intitulado A teoria da atividade e a educao na sociedade contempornea, o qual conta com o apoio do CNPq no perodo de agosto de 2002 a julho de 2004.

    Como o prprio ttulo deste livro j indica, esses quatro ensaios tm em comum a adoo da perspectiva crtico-dialtica na anlise de questes educacionais postas sociedade contempornea. Ao reuni-los numa mesma publicao, minha inteno contribuir para os debates contemporneos sobre a educao e, em especial, para os debates travados no campo da filosofia da educao. Acredito que a maior contribuio que esses ensaios possam trazer filosofa da educao ser a de-

    APRESENTAO 3

    fesa explcita e sem rodeios da tese de que a reflexo filosfica crtico-dialtica no pode fazer qualquer tipo de concesso s concepes filosficas ps-modernas. A filosofia marxista tem consistncia e atualidade de sobra para fazer frente quilo que Maria Clia Marcondes de Moraes chamou de ceticismo epistemolgico ao analisar a epistemologia do filsofo neopragm- tico Richard Rorty. Alis, tal epistemologia tem muitos e fundamentais pontos em comum com o construtivismo radical deErnst von Glasersfeld, que foi objeto de artigo de minha autoria, integrante da coletnea Sobre o construtivismo: contribuies a uma anlise crtica (Duarte, 2000b) publicada na Coleo Polmicas do Nosso Tempo, da Editora Autores Associados.

    Diante das tragdias sociais que o capitalismo (sob a batuta do imperialismo beligerante dos Estados Unidos da Amrica) vem produzindo neste incio do to esperado sculo XXI, a filosofia marxista precisa repetir incansavelmente as palavras de Marx: conclamar as pessoas a acabarem com as iluses sobre uma situao conclam-las a acabarem com uma situao que precisa de iluses.

    Newton Duarte Araraquara, janeiro de 2003

  • C A P T U L O U M

    A s Pedagogias do Aprender a Aprender e Algumas Iluses da Assim Chamada

    Sociedade do Conhecimento

    niciarei este artigo defendendo a tese de que a assim chamada pedagogia das competncias integrante de uma

    ampla corrente educacional contempornea, a qual chamarei de pedagogias do aprender a aprender, j h algum tempo venho desenvolvendo estudos acerca dessas pedagogas, por meio de uma pesquisa de cunho terico-bibliogrfico que realizo com apoio do CNPq, pesquisa essa intitulada O construtivismo: suas muitas faces, suas filiaes e suas interfaces com outros modismos.

    Philippe Perrenoud, em seu livro Construir as competncias desde a escola, afirma que a abordagem por competncias junta-se s exigncias da focalizao sobre o aluno, da pedagogia diferenciada e dos mtodos ativos (Perrenoud, 1999, p. 53). Convm lembrar que a expresso mtodos ativos utilizada como referncia s idias pedaggicas que tiveram sua origem no movimento escolanovista. Alguns pargrafos mais adiante, nesse mesmo livro, Perrenoud afirma que a formao de competncias exige uma pequena revoluo cultural para passar de uma lgica do ensino para uma lgica do treinamento (coaching), baseada em um postulado relativamente simples: constroem-se as competncias exercitando-se em situaes

  • 6 SOCIEDADE DO CONHECIMENTO OU SOCIEDADE DAS ILUSES?

    complexas" (Perrenoud, 1999, p. 54). Esse aprender a aprender , portanto, tambm um aprender fazendo, isto , learning by doing, na clssica formulao da pedagogia de John Dewey. Perrenoud expressou-se da seguinte maneira na entrevista que deu Revista Nova Escola no ano de 2000:

    Para desenvolver competncias preciso, antes de tudo, trabalhar por problemas e projetos, propor tarefas complexas e desafios que incitem os alunos a mobilizar seus conhecimentos e, em certa medida, complet-los. Isso pressupe uma pedagogia ativa, cooperativa, aberta para a cidade ou para o bairro, seja na zona urbana ou rural. Os professores devem parar de pensar que dar aulas o cerne da profisso. Ensinar, hoje, deveria consistir em conceber, encaixar e regular situaes de aprendizagem seguindo os princpios pedaggicos ativos e construtivistas. Para os professores adeptos de uma viso construtivista e interacionista de aprendizagem trabalhar no desenvolvimento de competncias no uma ruptura [Perrenoud, 2000].

    Citei essa passagem de Perrenoud para mostrar que no se trata de uma rotulao apressada de minha parte, a incluso da pedagogia das competncias no grupo das pedagogias do aprender a aprender, com o construtivismo, a Escola Nova, os estudos na linha do "professor reflexivo" etc. Ao investigar em minha pesquisa as interfaces entre o construtivismo e outros modismos educacionais, tenho chegado ao estabelecimento de elos de ligao entre iderios pedaggicos normalmente vistos por boa parte dos educadores brasileiros como iderios pertencentes a universos distintos. Mas essa uma questo para outro momento. Tendo em vista os objetivos deste trabalho, passarei diretamente ao seu tema central, isto , as relaes entre as pedagogias do aprender a aprender e algumas iluses da assim chamada sociedade do conhecimento".

    AS PEDAGOGIAS DO APRENDER A APRENDER... 7

    Mas para estabelecer relaes entre as iluses da sociedade do conhecimento e as pedagogias do aprender a aprender necessrio que primeiramente eu analise, ainda que de forma breve, qual a essncia desse to proclamado lema educacional. Para isso retomarei aqui algumas das consideraes que teci sobre esse tema em meu livro Vigotski e o aprender a aprender crtica s apropriaes neoliberais e ps-modernas da teoria vigotskiana (Duarte, 2000a). Nesse livro analisei a presena do lema aprender a aprender em dois documentos da rea educacional: o primeiro, relativo educao em mbito mundial, o relatrio da comisso internacional da Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO), conhecido como Relatrio Jacques Delors, presidente da comisso (Delors, 1998); o segundo, o captulo Princpios e fundamentos dos parmetros curriculares nacionais, do volume I, Introduo", dos Parmetros Curriculares Nacionais (PCN) das sries iniciais do Ensino Fundamental (Brasil, 1997, pp. 33-55). Neste artigo no poderei, entretanto, deter-me nos detalhes daquela anlise. Focalizarei apenas quatro posicionamentos valorativos presentes no lema aprender a aprender.

    O primeiro posicionamento pode ser assim formulado: so mais desejveis as aprendizagens que o indivduo realiza por si mesmo, nas quais est ausente a transmisso, por outros indivduos, de conhecimentos e experincias. O construtivista espanhol Csar Coll um dos autores que explicitam esse princpio. Esse autor chega mesmo a apresentar o aprender a aprender como a finalidade ltima da educao em uma perspectiva cons- trutivista:

    Numa perspectiva construtivista, a finalidade ltima da interveno pedaggica contribuir para que o aluno desenvolva a capacidade de realizar aprendizagens significativas por si mesmo numa ampla gama de situaes e circunstncias, que o aluno aprenda a aprender" [Coll, 1994, p. 136],

  • 8 SOCIEDADE DO CONHECIMENTO OU SOCIEDADE DAS ILUSES?

    Nessa perspectiva, aprender sozinho contribuiria para o aumento da autonomia do indivduo, enquanto aprender como resultado de um processo de transmisso por outra pessoa seria algo que no produziria a autonomia e, ao contrrio, muitas vezes at seria um obstculo para alcan-la.

    No discordo da afirmao de que a educao escolar deva desenvolver no indivduo a autonomia intelectual, a liberdade de pensamento e de expresso, a capacidade e a iniciativa de buscar por si mesmo novos conhecimentos. Mas o que estou aqui procurando analisar outra coisa: trata-se do fato de que as pedagogias do aprender a aprender estabelecem uma hierarquia valorativa, na qual aprender sozinho situa-se em um nvel mais elevado que o da aprendizagem resultante da transmisso de conhecimentos por algum. Ao contrrio desse princpio valorativo, entendo ser possvel postular uma educao que fomente a autonomia intelectual e moral por meio da transmisso das formas mais elevadas e desenvolvidas do conhecimento socialmente existente.

    O segundo posicionamento valorativo pode ser dessa forma formulado: mais importante o aluno desenvolver um mtodo de aquisio, elaborao, descoberta, construo de conhecimentos, que esse aluno aprender os conhecimentos que foram descobertos e elaborados por outras pessoas. E mais importante adquirir o mtodo cientfico que o conhecimento cientfico j existente. Esse segundo posicionamento valorativo no pode ser separado do primeiro, pois o indivduo s poderia adquirir o mtodo de investigao, s poderia aprender a aprender por meio de uma atividade autnoma. Em uma conferncia proferida em 1947, intitulada O desenvolvimento moral do adolescente em dois tipos de sociedade: sociedade primitiva e sociedade 'moderna, Piaget defendeu tal idia ao contrapor a transmisso de conhecimentos existentes ao oferecimento de condies que permitam ao aluno construir suas prprias verdades:

    AS PEDAGOGIAS DO "APRENDER AAPRENDER... 9

    O problema da educao internacional , portanto, essencialmente o de direcionar o adolescente no para solues prontas, mas para um mtodo que lhe permita cons- tru-las por conta prpria. A esse respeito, existem dois princpios fundamentais e correlacionados dos quais toda educao inspirada pela psicologia no poderia se afastar: I ) que as nicas verdades reais so aquelas construdas livremente e no aquelas recebidas de fora; 2) que o bem moral essencialmente autnomo e no poderia ser prescrito. Desse duplo ponto de vista, a educao internacional solidria de toda a educao. No apenas a compreenso entre os povos que se v prejudicada pelo ensino de mentiras histricas ou de mentiras sociais. Tambm a formao humanados indivduos prejudicada quando verdades, que poderiam descobrir sozinhos, lhes so impostas de fora, mesmo que sejam evidentes ou matemticas: ns os privamos ento de um mtodo de pesquisa que lhes teria sido bem mais til para a vida que o conhecimento correspondente! [Piaget, 1998, p. 166, grifo meu],

    So, portanto, duas idias intimamente associadas: I ) aquilo que o indivduo aprende por si mesmo superior, em termos educativos e sociais, quilo que ele aprende por meio da transmisso por outras pessoas e 2) o mtodo de construo do conhecimento mais importante que o conhecimento j produzido socialmente.

    O terceiro posicionamento valorativo seria o de que a atividade do aluno, para ser verdadeiramente educativa, deve ser impulsionada e dirigida pelos interesses e necessidades da prpria criana. A diferena entre esse terceiro posicionamento valorativo e os dois primeiros consiste em ressaltar que, alm do aluno buscar por si mesmo o conhecimento e nesse processo construir seu mtodo de conhecer, preciso tambm que o motor desse processo seja uma necessidade inerente pr-

  • 10 SOCIEDADE DO CONHECIMENTO OU SOCIEDADE DAS ILUSES?

    pria atividade do aluno, ou seja, preciso que a educao esteja inserida de maneira funcional na atividade da criana, na linha da concepo de educao funcional de Claparde ( 1954).

    O quarto posicionamento valorativo o de que a educao deve preparar os indivduos para acompanharem a sociedade em acelerado processo de mudana, ou seja, enquanto a educao tradicional seria resultante de sociedades estticas, nas quais a transmisso dos conhecimentos e tradies produzidos pelas geraes passadas era suficiente para assegurar a formao das novas geraes, a nova educao deve pautar-se no fato de que vivemos em uma sociedade dinmica, na qual as transformaes em ritmo acelerado tomam os conhecimentos cada vez mais provisrios, pois um conhecimento que hoje tido como verdadeiro pode ser superado em poucos anos ou mesmo em alguns meses. O indivduo que no aprender a se atualizar estar condenado ao eterno anacronismo, eterna defa- sagem de seus conhecimentos. Uma verso contempornea desse posicionamento aparece no livro do autor portugus Vrtor da Fonseca, intitulado Aprender a aprender: a educabilidade cognitiva (Fonseca, 1998). Ao abordar as mudanas na economia global e suas implicaes para uma formao de recursos humanos que esteja altura dos desafios do sculo XXI, esse autor afirma o seguinte:

    A miopia gerencial e arrogante e a resistncia mudana, que paira em grande parte no sistema produtivo, devem dar lugar aprendizagem, ao conhecimento, ao pensar, ao refletir e ao resolver novos desafios da atividade dinmica que caracteriza a economia global dos tempos modernos. Tal mundializao da economia s se identifica com uma gesto do imprevisvel e da excelncia, gesto essa contra a rotina, contra a mera reduo de custos e contra a simples manuteno. Em vez de se situarem numa perspectiva de trabalho seguro e esttico, durante toda a vida, os empre

    AS PEDAGOGIAS DO "APRENDER A APRENDER" 11

    srios e os trabalhadores devem cada vez mais investir no desenvolvimento do seu potencial de adaptabilidade e de empregabilidade, o que algo substancialmente diferente do que se tem praticado. O xito do empresrio e do trabalhador no sculo XXI ter muito que ver com a maximizao das suas competncias cognitivas. Cada um deles produzir mais na razo direta de sua maior capacidade de aprender a aprender, na medida em que o que o empresrio e o trabalhador conhecem e fazem hoje no sinnimo de sucesso no futuro. [...] A capacidade de adaptao e de aprender a aprender e a re-aprender, to necessria para milhares de trabalhadores que tero de ser re-convertidos em vez de despedidos, a flexibilidade e modificabilidade para novos postos de trabalho vo surgir cada vez com mais veemncia. Com a reduo dos trabalhadores agrcolas e dos operrios industriais, os postos de emprego que restam vo ser mais disputados, e tais postos de trabalho tero que ser conquistados pelos trabalhadores preparados e diferenciados em termos cognitivos [Fonseca, 1998, p. 307].

    O autor no deixa qualquer dvida nessa passagem quanto ao fato do aprender a aprender" ser apresentado como uma arma na competio por postos de trabalho, na luta contra o desemprego. O aprender a aprender aparece assim na sua forma mais crua, mostrando seu verdadeiro ncleo fundamental: trata-se de um lema que sintetiza uma concepo educacional voltada para a formao, nos indivduos, da disposio para uma constante e infatigvel adaptao sociedade regida pelo capital. No demais aqui recorrer novamente quela mencionada entrevista dada por Perrenoud, na qual a certa altura ele afirma o seguinte:

    A descrio de competncias deve partir da anlise de situaes, da ao, e disso derivar conhecimentos. H uma

  • 12 SOCIEDADE DO CONHECIMENTO OU SOCIEDADE DAS ILUSES?

    tendncia em ir rpido demais em todos os pases que se lanam na elaborao de programas sem dedicar tempo em observar as prticas sociais, identificando situaes na quais as pessoas so e sero verdadeiramente confrontadas. O que sabemos verdadeiramente das competncias que tm necessidade, no dia-a-dia, um desempregado, um imigrante, um portador de deficincia, uma me solteira, um dissidente, um jovem da periferia? [Perrenoud, 2000],

    O carter adaptativo dessa pedagogia est bem evidente. Trata-se de preparar os indivduos, formando neles as competncias necessrias condio de desempregado, deficiente, me solteira etc. Aos educadores caberia conhecer a realidade social no para fazer a crtica a essa realidade e construir uma educao comprometida com as lutas por uma transformao social radical, mas sim para saber melhor quais competncias a realidade social est exigindo dos indivduos. Quando educadores e psiclogos apresentam o aprender a aprender" como sntese de uma educao destinada a formar indivduos criativos, importante atentar para um detalhe fundamental: essa criatividade no deve ser confundida com busca de transformaes radicais na realidade social, busca de superao radical da sociedade capitalista, mas sim criatividade em termos de capacidade de encontrar novas formas de ao que permitam melhor adaptao aos ditames da sociedade capitalista.

    At aqui, referi-me sociedade capitalista e no sociedade do conhecimento. Passo a tratar, em seguida, das relaes entre o aprender a aprender e algumas iluses da assim chamada sociedade do conhecimento. O que seria essa tal sociedade do conhecimento? Seria uma sociedade ps-ca- pitalista? Seria uma fase da sociedade capitalista? Nem sempre perguntas dessa natureza tm sido respondidas, sequer formuladas por aqueles que cultivam a idia de que estaramos vivendo na sociedade do conhecimento. Pois bem, de

    AS PEDAGOGIAS DO APRENDER A APRENDER"... 13

    minha parte quero deixar bem claro que de forma alguma compartilho da idia de que a sociedade na qual vivemos nos dias atuais tenha deixado de ser, essencialmente, uma sociedade capitalista. Sequer cogitarei a possibilidade de fazer qualquer concesso atitude epistemolgica idealista, para a qual a denominao que empregarmos para caracterizar nossa sociedade dependa do olhar pelo qual focamos essa sociedade: se for o olhar econmico ento podemos falar em capitalismo, se foro olhar poltico devemos falarem sociedade democrtica, se for o olhar cultural devemos falar em sociedade ps-moderna ou sociedade do conhecimento ou sociedade multicultural ou sei l mais quantas outras denominaes. Essa uma atitude idealista, subjetivista, bem a gosto do ambiente ideolgico ps-moderno.

    Reconheo, e no poderia deixar de faz-lo, que o capitalismo do final do sculo XX e incio do sculo XXI passa por mudanas e que podemos sim considerar que estejamos vivendo uma nova fase do capitalismo. Mas isso no significa que a essncia da sociedade capitalista tenha se alterado ou que estejamos vivendo uma sociedade radicalmente nova, que pudesse ser chamada de sociedade do conhecimento. A assim chamada sociedade do conhecimento uma ideologia produzida pelo capitalismo, um fenmeno no campo da reproduo ideolgica do capitalismo. Dessa forma, para falar sobre algumas iluses da sociedade do conhecimento preciso primeiramente explicitar que essa sociedade , por si mesma, uma iluso que cumpre determinada funo ideolgica na sociedade capitalista contempornea.

    Quando uma iluso desempenha um papel na reproduo ideolgica de uma sociedade, ela no deve ser tratada como algo inofensivo ou de pouca importncia por aqueles que busquem a superao dessa sociedade. Ao contrrio, preciso compreender qual o papel desempenhado por uma iluso na reproduo ideolgica de uma formao societria especfica,

  • 14 SOCIEDADE DO CONHECIMENTO OU SOCIEDADE DAS ILUSES?

    pois isso nos ajudar a criarmos formas de interveno coletiva e organizada na lgica objetiva dessa formao societria.

    E qual seria a funo ideolgica desempenhada pela crena na assim chamada sociedade do conhecimento? No meu entender, seria justamente a de enfraquecer as crticas radicais ao capitalismo e enfraquecer a luta por uma revoluo que leve a uma superao radical do capitalismo, gerando a crena de que essa luta teria sido superada pela preocupao com outras questes mais atuais, tais como a questo da tica na poltica e na vida cotidiana pela defesa dos direitos do cidado e do consumidor, pela conscincia ecolgica, pelo respeito s diferenas sexuais, tnicas ou de qualquer outra natureza.

    Para no me alongar, passarei diretamente apresentao de cinco iluses da assim chamada sociedade do conhecimento. Elas sero aqui apenas anunciadas e enunciadas. Seu detalhamento foge aos limites deste artigo.

    Primeira iluso: o conhecimento nunca esteve to acessvel como hoje, isto , vivemos numa sociedade na qual o acesso ao conhecimento foi amplamente democratizado pelos meios de comunicao, pela informtica, pela internet etc.

    Segunda iluso: a capacidade para lidar de forma criativa com situaes singulares no cotidiano, ou, como diria Perrenoud, a habilidade de mobilizar conhecimentos, muito mais importante que a aquisio de conhecimentos tericos, especialmente nos dias de hoje, quando j estariam superadas as teorias pautadas em metanarrativas, isto , estariam superadas as tentativas de elaborao de grandes snteses tericas sobre a histria, a sociedade e o ser humano.

    Terceira iluso: o conhecimento no a apropriao da realidade pelo pensamento, mas sim uma construo subjetiva resultante de processos semiticos intersubjetivos, nos quais ocorre uma negociao de significados. O que con

    AS PEDAGOGIAS DO APRENDER A APRENDER... 15

    fere validade ao conhecimento so os contratos culturais, isto , o conhecimento uma conveno cultural.

    Quarta iluso: os conhecimentos tm todos o mesmo valor, no havendo entre eles hierarquia quanto sua qualidade ou quanto ao seu poder explicativo da realidade natural e social.

    Quinta iluso: o apelo conscincia dos indivduos, seja por meio das palavras, seja por meio dos bons exemplos dados por outros indivduos ou por comunidades, constitui o caminho para a superao dos grandes problemas da humanidade. Essa iluso contm uma outra, qual seja, a de que esses grandes problemas existem como conseqncia de determinadas mentalidades. As concepes idealistas da educao apiam-se todas em tal iluso. Essa a razo da difuso, pela mdia, de certas experincias educativas tidas como aquelas que estariam criando um futuro melhor pela preparao das novas geraes. Assim, acabar com as guerras seria algo possvel por meio de experincias educativas que cultivem a tolerncia entre crianas e jovens. A guerra vista como conseqncia de processos primariamente subjetivos ou, no mximo intersubjetivos. Nessa direo, a guerra entre os Estados Unidos da Amrica e Afeganisto, por exemplo, vista como conseqncia do despreparo das pessoas para conviverem com as diferenas culturais, como conseqncia da intolerncia, do fanatismo religioso. Deixa-se de lado toda uma complexa realidade poltica e econmica gerada pelo imperialismo norte-americano e multiplicam-se os apelos romnticos ao cultivo do respeito s diferenas culturais.

    Rara concluir, esclareo que tenho conscincia das limitaes deste artigo. Afirmar que as idias acima enunciadas constituem- se em iluses da sociedade do conhecimento gera a necessidade de apresentar uma anlise detalhada, bem fundamentada

  • 16 SOCIEDADE DO CONHECIMENTO OU SOCIEDADE DAS ILUSES?

    em teorias e em dados empricos, de maneira a justificar tal afirmao. No difcil perceber que isso exigiria bem mais do que uma tarde de debates, por mais rica que ela fosse. Entretanto, mesmo tendo conscincia desse fato, optei por ao menos iniciar o debate, usando, para isso, o recurso da provocao. Essas idias, anteriormente apresentadas na forma de cinco iluses, tm sido to amplamente aceitas, tm exercido um tal fascnio sobre grande parcela dos intelectuais dos dias de hoje, que o simples fato de questionar a veracidade delas talvez j produza um efeito positivo, qual seja, o de fazer com que a adeso a essas idias ou a crtica a elas deixe o terreno das emoes que sustentam o fascnio e a seduo e passem ao terreno da anlise propriamente intelectual.

    E preciso, porm, estar atento para no cair na armadilha idealista que consiste em acreditar que o combate s iluses pode, por si mesmo, transformar a realidade que produz essas iluses. Como escreveu Marx: conclamar as pessoas a acabarem com as iluses acerca de uma situao conclam-las a acabarem com uma situao que precisa de iluses.

    C A P T U L O D O I S

    Relaes entre Ontologia e Epistemologia e a Reflexo Filosfica

    sobre o Trabalho Educativo1

    este texto apresentarei parte de um conjunto de estudos voltados para a elaborao de uma teoria do tra

    balho educativo2. Esses estudos podem ser considerados inter- disciplinares, na medida em que abarcam aspectos da filosofia da educao, da psicologia da educao e da didtica. Limitarei a reflexo aqui apresentada a uma questo do campo da filosofia da educao: a das relaes entre ontologia e epistemologia em uma perspectiva histrico-social e suas implicaes para a reflexo filosfica sobre o trabalho educativo.

    Vrios so os estudos que tm procurado analisar o trabalho de sala de aula e as concepes dos professores sobre o processo de conhecimento, luz do chamado modelo epistemolgico interacionista. Pode ser citado como exemplo o tra-

    1. Este texto foi apresentado no Grupo de Trabalho Filosofa da Educao, na reunio anual da Anped realizada em Caxambu (MG) em 1997.

    2. Os estudos nos quais este texto se apia foram realizados como parte de uma pesquisa de cunho terico, intitulada Elementos para uma teoria histrico-crtica do trabalho educativo, desenvolvida de agosto de 1996 a julho de 1998, com apoio do CNPq na forma de bolsa de produtividade em pesquisa e bolsas de iniciao cientfica.

  • 18 SOCIEDADE DO CONHECIMENTO OU SOCIEDADE DAS ILUSES?

    balho de Fernando Becker ( 1993), fundamentado na classificao epistemolgica piagetiana, que divide as concepes sobre o processo de conhecimento em trs grandes grupos: o inatis- mo ou apriorismo, o empirismo e o interadonismo.

    Essa classificao no tem sido, porm, adotada apenas por pesquisadores de fundamentao piagetiana. Vrios so os pesquisadores brasileiros que a adotam, considerando tambm como interacionista a concepo defendida por Vigotski e seus seguidores (Davis e Oliveira, 1990; Rocco, 1990; Oliveira,1993; Rosa, 1994; Rego, 1995; Palangana, 1994; entre outros).

    Em razo dos objetivos e dos limites deste artigo, deixarei de abordar aqui duas importantes questes: a primeira seria a de que essa classificao contm, implicitamente, uma psicolo- gizao da epistemologia, e a segunda, a de que discordo totalmente da classificao da concepo vigotskiana como interacionista, mesmo considerando-se os esforos de alguns dos autores citados para caracterizar as diferenas entre o que seria o interacionismo piagetiano e o que seria o interacionismo vigotskiano, sendo este ltimo normalmente denominado por tais pesquisadores como sociointeracionismo3. Concentrarei minha reflexo no argumento de que uma concepo histri- co-social do processo de conhecimento e do trabalho educativo precisa fundamentar-se na anlise das especificidades onto-

    3. Este artigo foi escrito para uma apresentao, em 1997, no Grupo de Trabalho Filosofia da Educao da Anped. Como os trabalhos inscritos para apresentao nas reunies anuais da Anped devem manter o anonimato do autor durante o processo de seu julgamento, nesse momento do texto deixei de fazer referncia ao fato de que em meus livros A individualidade para-si (Duarte, 1993) e Educao escolar, teora do cotidiano e a escola de Vigotski (Duarte, 1996) eu j apresentara uma crtica caracterizao da psicologia vigotskiana como socioconstrutivista ou sociointeracionista. Posteriormente essa crtica foi aprofundada no livro Vigotski e o "aprendera aprender" (Duarte, 2000a).

    RELAES ENTRE ONTOLOGIA E EPISTEMOLOGIA... 19

    lgicas do mundo social perante as caractersticas ortolgicas do mundo da natureza. Em outras palavras, pretendo argumentar que um modelo epistemolgico biologizante, como o caso do modelo interacionista, no compatvel com os fundamentos ontolgicos de uma concepo histrico-social da formao dos seres humanos.

    Convm esclarecer que no meu objetivo propor uma classificao das correntes epistemolgicas diferente da anteriormente mencionada. Meu intuito limita-se a uma tentativa de caracterizao do ncleo de uma concepo histrico-social do processo de conhecimento, com base em uma concepo tambm histrico-social do processo de produo e reproduo da realidade humana, isto , do mundo da cultura.

    1. O Interacionismo e a Biologizao do Processo de Conhecimento

    No pretendo analisar exaustivamente o modelo interacio- nista, mas sim evidenciar o que considero ser seu ncleo fundamental. Em primeiro lugar assinalo que tal modelo tem sua expresso maior na obra de Piaget, a despeito das j mencionadas tentativas de estend-lo para os trabalhos de autores de outras linhas tericas.

    Para efeito dessa anlise epistemologica, passarei a empregar como sinnimos os termos interacionismo e construtivismo, pois ambos seriam referentes a um mesmo modelo epistemologico, o qual denominarei modelo epistemolgico interacionis- ta-construtivista, apoiando-me no fato de que ambos os termos tm a origem de sua utilizao na mesma fonte, a obra de Piaget.

    So abundantes os trabalhos que fazem referncia s origens, na obra deste autor, do modelo epistemolgico interacio- nista-construtivista. Com pequenas variaes de terminologia, esses trabalhos mostram que o modelo interacionista-constru- tivista ope-se a dois outros modelos epistemolgicos: o em-

  • 20 SOCIEDADE DO CONHECIMENTO OU SOCIEDADE DAS ILUSES?

    pirismo e o apriorismo (tambm denominado inatismo ou ainda pr-formismo). Como explica Maria da Graa Azenha ( 1993, pp. 19,20 e 22):

    De um lado, o programa de pesquisa de Locke e seus sucessores, de Condillac a Skinner, conhecido como empirismo [...] A interpretao empirista do conhecimento supervaloriza o papel da experincia sensvel, particularmente da percepo, que inscreveria direta ou indiretamente os contedos da vida mental sobre um indivduo com extrema plasticidade. Essa plasticidade, por sua vez, seria decorrente de uma baixssima indeterminao mental por ocasio do nascimento. [...] Do outro lado, a segunda resposta clssica questo naufragaria no extremo oposto, admitindo, na origem, uma forte determinao ou dotao mental desde o nascimento. Dito de outra forma, outros programas de pesquisa partem de um compromisso ontolgico com o inatismo ou o pr-formismo. [...] A soluo da origem e processo do conhecimento, para Piaget, est numa terceira via, alternativa ao empirismo e ao pr-formismo. O Cons- trutivismo seria soluo para o estudo e desenvolvimento da gnese do conhecimento.

    No discordo da afirmao de que uma abordagem histri- co-social do processo de conhecimento se oponha tanto s abordagens inatistas como s empiristas. Ocorre que h algo que pode unir pr-formistas, empiristas e interacionistas: o modelo biolgico, naturalizante, com base no qual assumida uma posio perante essa questo. Em uma perspectiva histrico-so- cial, mais importante do que apenas superar os unilateralismos na anlise da relao sujeito-objeto buscar compreender as especificidades dessa relao, considerando-se que sujeito e objeto so histricos e que a relao entre eles tambm histrica. No possvel compreender essas especificidades quando

    RELAES ENTRE ONTOLOGIA E EPISTEMOLOGIA... 21

    se adota o modelo biolgico da interao entre organismo e meio-ambiente. Azenha (1993, p. 24) explicita que o interacio- nismo-construtivista de Piaget apia-se nesse modelo biolgico:

    [...] a concepo do funcionamento cognitivo em Piaget a aplicao no campo psicolgico de um princpio biolgico mais geral da relao de qualquer ser vivo em interao com o ambiente. Ser bem sucedido na perspectiva biolgica implica a possibilidade de conseguir um ponto de equilbrio entre as necessidades biolgicas fundamentais sobrevivncia e as agresses ou restries colocadas pelo meio satisfao dessas mesmas necessidades.

    A autora prossegue mostrando que nesse processo intervm dois mecanismos: a organizao do ser vivo e a adaptao dele ao meio. Explica ainda que a adaptao se realiza por meio dos processos de assimilao e acomodao (Azenha, 1993, p. 25). A biologizao contida na epistemologia gentica piagetiana destacada tambm por Brbara Freitag ( 1991, p. 35):

    Os mesmos mecanismos de assimilao e acomodao desenvolvidos pelos moluscos dos lagos, em termos puramente orgnicos, so desenvolvidos pelo homem no plano das estruturas cognitivas, destinadas afacilitar a adaptao do organismo humano ao seu meio.

    O estudo que venho realizando procura, entre outros temas de anlise, focalizar as implicaes pedaggicas da adoo do modelo interacionista como, por exemplo, a secundarizao do ato de ensinar e da transmisso de conhecimentos4. Entre-

    4. No Encontro Nacional de Didtica e Prtica de Ensino (Endipe) realizado em 1996 na Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianpolis, apre-

  • 22 SOCIEDADE DO CONHECIMENTO OU SOCIEDADE DAS ILUSES?

    tanto, quero frisar que considero existir uma grande diferena entre adotar-se o modelo interacionista e considerar-se a importncia das interaes no processo de conhecimento, sejam elas as interaes entre sujeito e objeto ou as interaes entre os sujeitos enquanto membros de uma cultura, ou ainda as interaes especficas ao mbito escolar, isto , as interaes entre professor, aluno e conhecimento, as interaes dos alunos entre si etc. O fato de alguma corrente educacional considerar a importncia dessas interaes no implica que necessariamente tal corrente compartilhe do modelo interacionista.

    A essa altura de minha argumentao inevitvel a pergunta: o que caracteriza uma abordagem histrico-social do processo de conhecimento, a qual se diferenciaria do modelo epistemolgico interacionista?

    2. Em Busca dos Fundamentos Ontolgicos: A Dialtica entre Objetivao e Apropriao como Dinmica Essencial da Produo e da Reproduo da Realidade Humana

    E necessrio explicitar, desde o incio, que minha reflexo filosfico-ontolgica transita no terreno de uma ontologia marxista do ser humano enquanto ser social. Um exemplo desse tipo de reflexo filosfica o livro de autoria de Gyorgy Markus (1974), intitulado Marxismo e antropologia", no qual o autor analisa a concepo de ser humano contida na obra de Marx. Gyorgy Markus apoiou-se, nesse seu estudo, nos ltimos trabalhos de seu mestre, o filsofo marxista hngaro Gyorgy Lukcs, como, por exemplo, em A esttica (Lukcs, 1982) e

    sentei um texto intitulado Concepes negativas e afirmativas sobre o ato de ensinar, no qual enfoquei a secundarizao do ato de ensinar. Posteriormente esse texto foi publicado na Cadernos CEDES (Duarte, 1998).

    RELAES ENTRE ONTOLOGIA E EPISTEMOLOGIA... 23

    Ontologia do ser social (Lukcs, 1976, 1981 a e 1981b). No Brasil, vrios autores tm realizado estudos dessa ltima obra, dentre os quais menciono, a ttulo de exemplificao, os trabalhos de Srgio Lessa (1995, 1996 e 1997).

    Defender a necessidade de buscar-se a compreenso das especificidades do processo de produo e reproduo da realidade humana, como realidade essencialmente social e histrica, no significa, se adotada a perspectiva de Marx, estabelecer uma rigida oposio entre o mundo da natureza e o mundo social. O homem antes de tudo um ser vivo, isto , um ser cuja existncia jamais pode transcorrer sem a indispensvel base biolgica. De forma alguma pretendo argumentar que a vida humana ou o processo de conhecimento se realizam de forma absolutamente independente dos processos naturais. Entretanto, o reconhecimento da prioridade ontolgica da relao entre natureza e sociedade deve ser acompanhado de igual reconhecimento da existncia de um salto na passagem da evoluo da vida sobre a face da Terra: o salto da histria da natureza orgnica para a histria social. Esse salto no estabelece uma ruptura total, mas configura o incio de uma esfera ontolgica qualitativamente nova, a da realidade humana, enquanto realidade scio-histrica.

    aspecto bastante conhecido da teoria de Marx que o processo pelo qual o ser humano foi se diferenciando dos demais seres vivos tem seu fundamento objetivo no trabalho: atividade pela qual o homem transforma a natureza e a si prprio. Marx e Engels (1979, pp. 39-40), em A ideologia alem, afirmaram o seguinte:

    [...] o primeiro pressuposto de toda a existncia humana e de toda a histria, que os homens devem estar em condies de viver para poderem fazer histria". Mas, para viver, preciso antes de tudo comer, beber, ter habitao e algumas coisas mais. O primeiro ato histrico , portanto, a pro-

  • 24 SOCIEDADE DO CONHECIMENTO OU SOCIEDADE DAS ILUSES?

    duo dos meios que permitam a satisfao dessas necessidades. [...] O segundo ponto que, satisfeita essa primeira necessidade, a ao de satisfaz-la e o instrumento de satisfao j adquirido conduzem a novas necessidades - e esta produo de novas necessidades o primeiro ato histrico.

    Essa passagem precisa ser analisada mediante a dialtica entre objetivao e apropriao como aquela que sintetiza, na obra de Marx, a dinmica essencial do trabalho e, por decorrncia, a dinmica essencial do processo de produo e reproduo da cultura humana. O processo de apropriao surge, antes de tudo, na relao entre o homem e a natureza. O ser humano, pela sua atividade transformadora, apropria-se da natureza incorporando-a prtica social. Ao mesmo tempo, ocorre tambm o processo de objetivao: o ser humano produz uma realidade objetiva que passa a ser portadora de caractersticas humanas, pois adquire caractersticas socioculturais, acumulando a atividade de geraes de seres humanos. Isso gera a necessidade de outra forma do processo de apropriao, j agora no mais apenas como apropriao da natureza, mas como apropriao dos produtos culturais da atividade humana, isto , apropriao das objetivaes do gnero humano (entendidas aqui como os produtos da atividade objetivadora).

    Para assegurar sua sobrevivncia, o homem realiza o primeiro ato histrico, o ato histrico fundamental, isto , ele produz os meios que permitem a satisfao de suas necessidades. Isso significa que a atividade humana, j nas suas formas bsicas, voltadas para a criao das condies de sobrevivncia do gnero humano, no se caracteriza, como a atividade dos animais, pelo simples consumo dos objetos que satisfaam suas necessidades, mas sim pela produo de meios que possibilitem essa satisfao, ou seja, o ser humano, para satisfazer suas necessidades, cria uma realidade humana, o que significa a transformao tanto da natureza como do prprio ser humano.

    RELAES ENTRE ONTOLOGIA E EPISTEMOLOGIA... 25

    Ao produzir os meios para a satisfao de suas necessidades bsicas de existncia, ao produzir uma realidade humanizada pela sua atividade, o ser humano humaniza a si prprio, na medida em que a transformao objetiva requer dele uma transformao subjetiva. Cria, portanto, uma realidade humanizada tanto objetiva como subjetivamente. Ao se apropriar da natureza, transformando-a para satisfazer suas necessidades, obje- tiva-se nessa transformao. Por sua vez, essa atividade humana objetivada passa a ser ela tambm objeto de apropriao pelo ser humano, isto , ele deve apropriar-se daquilo que de humano ele criou. Tal apropriao gera nele necessidades humanas de novo tipo, que exigem nova atividade, num processo sem fim.

    A diferena entre a produo animal e a produo humana evidencia-se claramente quando se analisa, por exemplo, a atividade de produo de instrumentos. Essa produo tanto um processo de apropriao da natureza pelo homem, como um processo de sua objetivao5. Um instrumento no apenas algo que o homem utiliza em sua ao, mas algo que passa a ter uma funo que no possua como objeto estritamente natural, uma funo cuja significao dada pela atividade social. O instrumento , portanto, um objeto que transformado para servir a determinadas finalidades no interior da prtica social. O homem cria novo significado para o objeto. Mas essa criao no se realiza de forma arbitrria. Em primeiro lugar porque o homem precisa conhecer a natureza do objeto para poder adequ-lo s suas finalidades. Ou seja, para que o objeto possa ser transformado e inserido na lgica da atividade humana, preciso que o homem se aproprie de sua lgica"

    5. Cumpre observar que a objetivao no se reduz objetivao stricto sensu, isto , objetivao objetual, produto de objetos, mas tambm se realiza sob outras formas, como a produo da linguagem, das relaes entre os homens, do conhecimento etc.

  • 26 SOCIEDADE DO CONHECIMENTO OU SOCIEDADE DAS ILUSES?

    natural. Em segundo, a transformao de um objeto em instrumento no pode ser arbitrria porque um objeto s pode ser considerado um instrumento quando possui uma funo no interior da prtica social. Isso vlido mesmo para o caso de certas invenes cujo uso s se torna possvel tempos aps sua criao, na medida em que, naquele momento, ainda no existiam as condies para que a prtica social incorporasse a inveno.

    Para poder transformar um objeto natural em um instrumento, o ser humano deve levar em conta, isto , conhecer as caractersticas naturais do objeto, ao menos aquelas diretamente relacionadas s funes que ter o instrumento. No importa aqui que tipo de conhecimento seja esse, podendo ser tanto um conhecimento cientfico das propriedades naturais do objeto, como um conhecimento meramente emprico, resultante de generalizaes baseadas na prtica. De qualquer forma indispensvel um certo nvel de conhecimento do objeto em si, isto , do que o objeto independente de sua insero na atividade humana. claro que tal afirmao s pode ser aceita enquanto um processo histrico, ou seja, como um processo em cujo incio esse conhecimento do objeto em si est indissocia- velmente ligado sua utilidade prtica para o ser humano. Ele tenta usar, por exemplo, um tipo de madeira para produzir uma canoa, mas a madeira utilizada acaba apodrecendo no contato constante com a gua. Esse resultado negativo fornece ao ser humano uma informao sobre as caractersticas do objeto, no caso, um tipo de madeira. S que essa informao aparece, de incio, em decorrncia da tentativa de insero do objeto em uma determinada ao humana, isto , da tentativa de apropriao do objeto.

    Com o desenvolvimento social, o conhecimento foi adquirindo autonomia em relao utilidade prtica dos objetos. A cincia, por exemplo, permite, cada vez mais, conhecer a natureza na sua legalidade prpria, interna, legalidade essa que,

    RELAES ENTRE ONTOLOGIA E EPISTEMOLOGIA... 27

    em sua origem, no resultado de nenhum tipo de ato consciente.

    Devo destacar que a apropriao de um objeto natural pelo ser humano, que transforma esse objeto em instrumento humano, nunca pode se realizar independentemente das condies objetivas originais desse objeto, ainda que estas venham a sofrer enormes transformaes qualitativas em decorrncia da atividade humana, gerando fenmenos sem precedentes na histria natural. O objeto, portanto, no totalmente subtrado de sua lgica natural, mas esta inserida na lgica da prtica social. O ser humano no cria a realidade humana sem apro- priar-se da realidade natural. Ocorre que essa apropriao no se realiza sem a atividade humana, tanto aquela de utilizao do objeto como um meio para alcanar uma finalidade consciente, como tambm, e principalmente, enquanto atividade de transformao do objeto para que ele possa servir mais adequadamente s novas funes que passar ater, ao ser inserido na atividade social. O objeto em seu estado natural resultante da ao de foras fsico-qumicas e, dependendo do objeto, de foras biolgicas. Como instrumento ele passar a ser resultante tambm da vontade e da atividade do ser humano.

    O ser humano cria uma nova funo para aquele objeto (tal criao realiza-se inicialmente de forma necessariamente intencional, sendo, muitas vezes, at totalmente acidental) e busca, pela sua atividade, fazer com que o objeto assuma as feies e caractersticas desejadas. Ou seja, existe a um processo no qual o objeto, ao ser transformado em instrumento, passa a ser uma objetivao (como produto da atividade objetivadora), pois o ser humano objetivou-se nele, transformou-o em objeto humanizado, portador de atividade humana. Isso no quer dizer apenas que o objeto sofreu a ao humana, pois isso em nada distinguiria esse processo do fato de que o objeto em seu estado natural resulta da ao de foras naturais. A questo fundamental que, ao sofrer a ao humana, o objeto passa a ter

  • 28 SOCIEDADE DO CONHECIMENTO OU SOCIEDADE DAS ILUSES?

    novas funes, passa a ser uma sntese da atividade social, sntese essa que dever ser apropriada portados os seres humanos que venham a incorporar aquele objeto sua atividade individual.

    Outra forma pela qual a relao entre objetivao e apropriao se realiza na incorporao de um objeto natural atividade social humana, a de que, nesse processo, surgem (obje- tivam-se) novas foras e necessidades humanas, graas s novas aes geradas pelo enriquecimento da atividade humana. E esse um ponto importante para entender-se o papel da dialtica entre objetivao e apropriao na determinao da historicidade do ser humano. Se o ser humano se apropriasse de objetos que servissem de instrumentos para aes que possibilitassem apenas a utilizao de um conjunto fechado de foras humanas e a satisfao de um conjunto tambm fechado de necessidades humanas, no haveria o desenvolvimento histrico. O que possibilita esse desenvolvimento justamente o fato de que a apropriao de um objeto, transformando-o em instrumento, pela objetivao da atividade humana nesse objeto e sua conseqente insero na atividade social, gera, na atividade e na conscincia do ser humano, novas necessidades e novas foras, faculdades e capacidades. Essa a razo pela qual considero a dialtica entre objetivao e apropriao como aquela que constitui a dinmica fundamental da historicidade humana. A apropriao de algo e a objetivao em algo geram a necessidade de novas apropriaes e novas objetivaes.

    Concentrei-me at aqui em um aspecto da relao entre objetivao e apropriao: a produo de uma realidade humana cada vez mais enriquecida por novas foras, novas capacidades e novas necessidades humanas. Seria, entretanto, equivocado concluir dessa anlise que a relao entre objetivao e apropriao s aparea quando o ser humano cria algo absolutamente novo. Na questo antes analisada, da produo de instrumentos, isso pode ser notado com facilidade. A repetio

    RELAES ENTRE ONTOLOGIA E EPISTEMOLOGIA... 29

    da produo de um tipo de instrumento j existente tambm um processo tanto de objetivao como de apropriao. E muito difcil, na histria, separar em absoluto a repetio e a criao do novo, porque muitas vezes, ao se produzir algo j existente, descobrem-se novos aspectos que levaro ao seu desenvolvimento. O mesmo pode acontecer com a descoberta de novas formas de utilizao de algo j existente, que acabaro exigindo sua adaptao a essas novas formas de utilizao. Isso j mostra que a objetivao e a apropriao como processos de reproduo de uma realidade no se separam de forma absoluta da objetivao e da apropriao enquanto produo do novo. A mesma idia pode ser expressa com outras palavras: a reproduo do ser social um processo dialtico no qual no se separam a criao do novo e a conservao do existente6.

    Essa caracterstica ontolgica da prtica social humana, a de ter como dinmica fundamental a dialtica entre objetivao e apropriao, constitui o necessrio ponto de partida para a reflexo epistemolgica em uma perspectiva histrico-social. Os processos de produo e difuso do conhecimento no podem ser analisados na perspectiva da existncia de um abstrato sujeito cognoscente que interage com os objetos de conhecimento por intermdio de esquemas prprios da interao biolgica que um organismo estabelece com o meio ambiente. Seja na produo de um conhecimento socialmente novo, seja na apropriao, pelos indivduos, dos conhecimentos j existentes, a anlise epistemolgica precisa caracterizar justamente os elementos que configuram a inevitvel historicidade da relao entre sujeito e objeto.

    6. Lukcs, em sua j aqui citada obra Ontologia do ser social, analisa o processo de reproduo do ser social. Lessa (1995 e 1996) realizou um estudo detalhado desse texto lukacsiano.

  • 30 SOCIEDADE DO CONHECIMENTO OU SOCIEDADE DAS ILUSES?

    3. A Apropriao da Cultura pelos Indivduos um Processo Educativo

    Cada nova gerao tem que se apropriar das objetivaes resultantes da atividade das geraes passadas. A apropriao da significao social de uma objetivao um processo de insero na continuidade da histria das geraes. Marx e Engels (1979, pp. 56 e 70), dizem que em cada uma das fases da histria

    [...] encontra-se um resultado material, uma soma de foras de produo, uma relao historicamente criada com a natureza e entre os indivduos, que cada gerao transmite gerao seguinte; uma massa de foras produtivas, de capitais e de condies que, embora sendo em parte modificada pela nova gerao, prescreve a esta suas prprias condies de vida e lhe imprime um determinado desenvolvimento, um carter especial [...] as circunstncias fazem os homens assim como os homens fazem as circunstncias. [...]A histria nada mais do que a sucesso de diferentes geraes, cada uma das quais explora os materiais, os capitais e as foras de produo a ela transmitidas pelas geraes anteriores; ou seja, de um lado prossegue em condies completamente diferentes a atividade precedente, enquanto, de outro lado, modifica as circunstncias anteriores por meio de uma atividade diversa.

    A relao entre objetivao e apropriao realiza-se, portanto, sempre em condies determinadas pela atividade passada de outros seres humanos. Nenhum indivduo pode se objetivar sem a apropriao das objetivaes existentes. E dessa forma que todo indivduo humano realiza seu processo de insero na histria. Entretanto, isso no pode ser compreendido como um ato de justaposio das circunstncias externas a uma pretensa essncia individual preexistente atividade so-

    RELAES ENTRE ONTOLOGIA E EPISTEMOLOGIA... 31

    ciai do sujeito. A apropriao das objetivaes do gnero humano uma necessidade do prprio processo de formao da individualidade, como analisei em meu livro A individualidade para-si (Duarte, 1993). O indivduo precisa apropriar-se dos resultados da histria e fazer desses resultados os rgos da sua individualidade (Marx, 1978, p. 177).

    O psiclogo russo Alexis N. Leontiev (1978), analisa o processo de apropriao da cultura pelos indivduos, explicitando as principais caractersticas desse processo. Uma das caractersticas do processo de apropriao seria, segundo esse autor, a de que se trata de um processo sempre ativo, isto , o indivduo precisa realizar uma atividade que "reproduza os traos essenciais da atividade acumulada no objeto" (idem, p. 268). A atividade a ser reproduzida, em seus traos essenciais, pelo indivduo que se apropria de um produto da histria humana, no necessariamente a atividade de produo desse objeto, mas muitas vezes a de sua utilizao.

    Outra caracterstica, analisada por Leontiev, do processo de apropriao, seria a de que por meio dele so reproduzidas no indivduo, as aptides e funes humanas historicamente formadas (idem, p. 169). Destaco aqui a importncia dessa caracterstica, pois trata-se justamente da mediao entre o processo histrico de formao do genero humano e o processo de formao de cada indivduo como ser humano. Enquanto nos outros seres vivos a relao entre a espcie e cada membro da espcie determinada pela herana gentica, no caso do ser humano a relao entre os indivduos e a histria social mediatizada pela apropriao das objetivaes produzidas historicamente.

    J analisei no item anterior o fato de que a atividade humana se objetiva em produtos, em objetivaes, sejam elas materiais ou no. Esse processo cumulativo, isto , no significado de uma objetivao est acumulada a experincia histrica de muitas geraes. Os instrumentos so novamente um bom

  • 32 SOCIEDADE DO CONHECIMENTO OU SOCIEDADE DAS ILUSES?

    exemplo. Um instrumento , em um determinado sentido, resultado imediato da atividade de quem o produziu. Nesse sentido, contm o trabalho objetivado da pessoa ou das pessoas que participaram de sua produo. Mas ele tambm objetivao da atividade humana num outro sentido, qual seja, o de que ele resultado da histria de geraes de instrumentos do mesmo tipo, sendo que durante essa histria, esse tipo especfico de instrumento foi sofrendo transformaes e aperfeioamentos, por exigncia da atividade social. Portanto, uma objetivao sempre sntese da atividade humana. Da que, ao apropriar-se de uma objetivao, o indivduo est relacionan- do-se com a histria social, ainda que tal relao nunca venha a ser consciente para ele.

    A terceira caracterstica, assinalada por Leontiev (1978, p. 272), do processo de apropriao, a de que tal processo sempre mediatizado pelas relaes entre os seres humanos:

    As aquisies do desenvolvimento histrico das aptides humanas no so simplesmente dadas aos homens nos fenmenos objetivos da cultura material e espiritual que as encarnam, mas so a apenas postas. Para se apropriar destes resultados, para fazer deles as suas aptides, os rgos da sua individualidade, a criana, o ser humano, deve entrar em relao com os fenmenos do mundo circundante por meio de outros homens, isto , num processo de comunicao com eles. Assim, a criana aprende a atividade adequada. Pela sua funo, este processo , portanto, um processo de educao.

    Essa passagem de Leontiev mostra que o processo de formao do indivduo , em sua essncia, um processo educativo, no sentido lato do termo. O indivduo forma-se, apropriando-se dos resultados da histria social e objetivando-se no interior dessa histria, ou seja, sua formao realiza-se por

    RELAES ENTRE ONTOLOGIA E EPISTEMOLOGIA... 33

    meio da relao entre os processos de objetivao e de apropriao. Essa relao efetiva-se sempre no interior de interaes concretas com outros indivduos, que atuam como mediadores entre ele e o mundo humano, o mundo da atividade humana objetivada. A formao do indivduo , portanto, sempre um processo educativo, mesmo quando essa educao se realiza de forma espontnea, isto , quando no h a relao consciente com o processo educativo que est se efetivando no interior de uma determinada prtica social.

    Cabe assinalar que o processo de apropriao no se apresenta como um processo educativo apenas no mbito da educao escolar. Isso no , porm, contraditrio com a tese que tenho defendido, a de que a educao escolar deve desempenhar um papel decisivo na formao do indivduo. O carter mediatizado do processo de apropriao da cultura assume caractersticas especficas na educao escolar, diferenciando-a qualitativamente das apropriaes que ocorrem na vida cotidiana7. Na realidade, a apropriao em qualquer uma das esferas da prtica social assume sempre a caracterstica de um processo educativo.

    Pelo espao deste artigo, no poderei abordar aqui um tema de fundamental importncia, decorrente das consideraes antes apresentadas. Trata-se do fato de que ao afirmar que o processo de apropriao sempre educativo, no estou desconsiderando que os processos educativos em sociedades divididas em classes sociais, como o caso da sociedade capitalista na qual vivemos, podem ser ao mesmo tempo processos de humanizao e de alienao8.

    7. Desenvolvi uma anlise filosfica do papel da educao escolar na formao do indivduo em meu livro Educao escolar, teoria do cotidiano e a escola de Vigotski (Duarte, 1996).

    8. Analisei esse tema mais detidamente no segundo captulo de meu livro A individualidade para-si (Duarte, 1993, pp. 57-97).

  • 34 SOCIEDADE DO CONHECIMENTO OU SOCIEDADE DAS ILUSES?

    Para concluir esse artigo, analisarei no prximo item, um conceito de trabalho educativo compatvel com a concepo j exposta.

    4. O Que o Trabalho Educativo

    A reflexo apresentada ao longo deste artigo, sobre a fundamentao ontolgica de uma concepo histrico-social do processo de conhecimento e do processo de formao dos indivduos, mostra-se compatvel com a definio de trabalho educativo formulada por Dermeval Saviani (1997, p. 17):

    O trabalho educativo o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivduo singular, a humanidade que produzida histrica e coletivamente pelo conjunto dos homens. Assim, o objeto da educao diz respeito, de um lado, identificao dos elementos culturais que precisam ser assimilados pelos indivduos da espcie humana para que eles se tornem humanos e, de outro lado e concomitantemente, descoberta das formas mais adequadas para atingir esse objetivo.

    Analisarei mais detidamente alguns aspectos desse conceito. O que o trabalho educativo produz? Ele produz, nos indivduos singulares, a humanidade, isto , o trabalho educativo alcana sua finalidade quando cada indivduo singular se apropria da humanidade produzida histrica e coletivamente, quando o indivduo se apropria dos elementos culturais necessrios sua formao como ser humano, necessrios sua humanizao. Portanto, a referncia fundamental justamente o quanto o gnero humano conseguiu desenvolver-se ao longo do processo histrico de sua objetivao. Est implcita nesse conceito a dialtica entre objetivao e apropriao.

    RELAES ENTRE ONTOLOGIA E EPISTEMOLOGIA... 35

    As foras essenciais humanas", para usar uma expresso de Marx, resultam da atividade social objetivadora dos homens. So, portanto, foras essenciais objetivadas. Assim, no existe uma essncia humana independente da atividade histrica dos seres humanos, da mesma forma que a humanidade no est imediatamente dada nos indivduos singulares. Essa humanidade, que vem sendo produzida histrica e coletivamente pelo conjunto dos homens, precisa ser novamente produzida em cada indivduo singular. Trata-se de produzimos indivduos algo que j foi produzido historicamente.

    Note-se que nesse conceito est formulada a necessidade de identificar os elementos culturais indispensveis humanizao do indivduo. Existe a um duplo posicionamento do trabalho educativo. O trabalho educativo posiciona-se, em primeiro lugar, em relao cultura humana, em relao s objetivaes produzidas historicamente. Esse posicionamento, por sua vez, requer tambm um posicionamento sobre o processo de formao dos indivduos, sobre o que seja a humanizao dos indivduos. A questo da historicidade faz-se presente nesses dois posicionamentos. Afinal, uma concepo historicizadora da cultura humana no se posiciona sobre aquilo que considera as conquistas mais significativas e duradouras para a humanidade? Igualmente, uma postura historicizadora do indivduo, no estabelece como referncia maior aquilo que historicamente j existe enquanto possibilidades de vida humana, para fazer a crtica s condies concretas da vida dos indivduos e estabelecer diretrizes para o processo educativo desses indivduos?

    Tal conceito do trabalho educativo, tendo como referncia o processo de humanizao do gnero humano e dos indivduos, aponta na direo da superao do conflito entre as Pedagogias da essncia e as pedagogias da existncia. O pedagogo e filsofo polons Bogdan Suchodolski (1984) defendeu a tese de que esse conflito seria o cerne das disputas histri-

  • 36 SOCIEDADE DO CONHECIMENTO OU SOCIEDADE DAS ILUSES?

    cas entre as vrias concepes de educao, de formao dos seres humanos. Saviani (1996), incorporando a contribuio do pedagogo polons, analisou o conflito entre a pedagogia tradicional e a pedagogia nova como um conflito entre pedagogia da essncia e pedagogia da existncia, interpretando esse conflito luz da passagem, da burguesia, de classe revolucionria classe consolidada no poder e defensora da ordem estabelecida. Meu objetivo aqui no o de entrar nos detalhes dessa anlise histrica, mas sim verificar quais as implicaes desse conceito de trabalho educativo para a construo de uma pedagogia que v alm das pedagogias da essncia e das pedagogias da existncia.

    O conflito entre as pedagogias da essncia e as pedagogias da existncia, traduzido de forma esquemtica, um conflito entre educar guiado por um ideal abstrato de ser humano, por uma essncia humana aistrica e educar para a realizao dos objetivos imanentemente surgidos na vida de cada pessoa, na sua existncia. Nas consideraes finais de meu livro A individualidade para-si, analisei esse tema na tica do conceito de alienao como distanciamento e conflito entre as foras essenciais humanas que vo sendo objetivadas em nveis cada vez mais elevados e as condies concretas da existncia da maioria dos individuos humanos (Duarte, 1993, pp. 203-208).

    O conceito de trabalho educativo formulado por Dermeval Saviani situa-se em uma perspectiva que supera a opo entre a essncia humana abstrata e a existncia emprica. A essncia abstrata recusada na medida em que as foras essenciais humanas nada mais so do que a cultura humana objetiva e socialmente existente, o produto da atividade histrica dos seres humanos. Produzir nos indivduos singulares a humanidade que produzida histrica e coletivamente pelo conjunto dos homens" (Saviani, 1997, p. 17) significa produzir a apropriao, pelos indivduos, das foras essenciais humanas objetivadas his-

    RELAES ENTRE ONTOLOGIA E EPISTEMOLOGIA... 37

    tortamente. Esse conceito de trabalho educativo tambm supera a concepo de educao guiada pela existncia emprica, na medida em que sua referncia para a educao a formao do indivduo enquanto membro do gnero humano. Ao adotar tal referncia, esse conceito de trabalho educativo est estabelecendo como um dos valores fundamentais da educao o do desenvolvimento do indivduo para alm dos limites impostos pela diviso social do trabalho. Valor que est explcito tambm nas crticas feitas por Saviani pedagogia escolanovista, pelo fato desta, em nome da democracia, do respeito s diferenas individuais, acabar por legitimar desigualdades resultantes das relaes sociais alienadas.

    Passemos agora a um ltimo aspecto desse conceito: a definio do trabalho educativo como uma produo direta e intencional. Decorre desse aspecto a afirmao de que concomitantemente" com o posicionamento perante os elementos da cultura humana historicamente acumulada, necessria a descoberta das formas mais adequadas de atingir-se o objetivo de produo do humano no indivduo.

    O trabalho educativo , portanto, uma atividade intencionalmente dirigida por fins. Da ele diferenciar-se de formas espontneas de educao, ocorridas em outras atividades, tambm dirigidas por fins, mas que no so os de produzir a humanidade no indivduo. Quando isso ocorre, nessas atividades, trata-se de um resultado indireto e no intencional. Portanto, a produo no ato educativo direta em dois sentidos. O primeiro e mais bvio o de que se trata de uma relao direta entre educador e educando. O segundo, no to bvio mas tambm presente, o de que a educao, a humanizao do indivduo, o resultado mais direto do trabalho educativo. Outros tipos de resultado podem existir, mas sero indiretos.

    Como explicitei no incio deste artigo, ele apresenta uma parte dos fundamentos filosficos dos estudos que venho rea-

  • 38 SOCIEDADE DO CONHECIMENTO OU SOCIEDADE DAS ILUSES?

    lizando, a fim de contribuir para uma teoria do trabalho educativo. Minha meta articular de forma coerente e consistente esses fundamentos filosficos aos nossos demais estudos, no terreno da psicologia da educao e da didtica, visando caracterizar os principais elementos que configuram o trabalho educativo.

    C A P T U L O T R S

    A Anatomia do Homem a Chave da Anatomia do Macaco

    A DIALTICA EM VIGOTSKI E EM MARX E A QUESTOdo saber objetivo na educao escolar

    O conhecimento o processo pelo qual o pensamento se aproxima infinita e eternamente do objeto. O reflexo da Natureza no pensamento humano deve ser compreendido no de maneira

    "morta", no "abstratamente, no se movimento, no sem contradio, mas sim no processo eterno do movimento, do nascimento das contradies e sua resoluo.

    Lenin (1975, p. 123)

    1. A Dialtica em Vigotski1

    N o quero saber de graa, escolhendo um par de citaes, o que a psique, o que desejo aprender naI. Em decorrncia do idioma russo possuir um alfabeto distinto do nosso, tm

    sido utilizadas muitas formas de escrever o nome desse autor com o alfabeto ocidental. Os americanos e ingleses adotam a grafia Vygotsky. Muitas edies em outros idiomas, por resultarem de tradues de edies norte-americanas, adotam essa mesma grafia. Na edio espanhola das obras escolhidas desse autor tem sido adotada a grafia Vygotski. Em obras da e sobre a psicologia sovitica publicadas pela ento editora estatal sovitica, a Editora Progresso, de Moscou, traduzidas diretamente do russo para o espanhol como, por exemplo, Davdov e Shuare (1987), Shuare (1990), adotada a grafia Vigotski. A mesma grafia tem sido adotada em publica-

  • 40 SOCIEDADE DO CONHECIMENTO OU SOCIEDADE DAS ILUSES?

    globalidade do mtodo de Marx, como se constri a cincia, como enfocar a anlise da psique2. Vigotski faz essa afirmao como parte de sua argumentao quanto necessidade de uma teoria geral da psicologia, uma psicologia geral, que possibilitasse a construo de uma psicologia marxista, superando a crise existente nesse campo da cincia, crise essa caracterizada pela contradio entre, por um lado, o acmulo de dados obtidos por meio das pesquisas empricas e, por outro lado, a total fragmentao da psicologia em uma grande quantidade de correntes tericas construdas com base em pressupostos muito pouco consistentes. A construo da psicologia marxista era vista por Vigotski no como o surgimento de mais uma entre as correntes da psicologia, mas sim como o processo de construo de uma psicologia verdadeiramente cientfica. Essa psicologia cientfica no seria, entretanto, construda, por meio da justaposio de citaes extradas dos clssicos do marxismo a dados de pesquisas empricas realizadas por mtodos fundamentados em pressupostos filosficos contraditrios ao marxismo. Vigotski entendia ser necessria uma teoria que realizasse a mediao entre o materialismo dialtico, como filosofia de mximo grau de abrangncia e universalidade, e os estudos sobre os fenmenos psquicos concretos. O autor fazia um paralelo entre essa teoria psicolgica mediadora e o materialismo histrico, pois este tambm tem o papel de estabelecer as necessrias media

    es recentes, no Brasil, de partes da obra desse autor. essa grafia que tenho adotado desde 1996, quando da publicao de meu livro Educao escolar, teora do cotidiano e a escola de Vigotski (Duarte, 1996). Continuarei adotando aqui essa grafia, mas preservarei, nas referncias bibliogrficas, a grafia utilizada em cada edio, o que me impede de utilizar uma nica forma de escrever o nome desse autor.

    2. Vygotski (1991, p. 391). Todas as citaes extradas da edio espanhola das Obras escolhidas de Vigotski foram por mim traduzidas do espanhol para o portugus.

    A ANATOMIA DO HOMEM A CHAVE DA ANATOMIA DO MACACO... 41

    es entre o materialismo dialtico e a anlise das questes concretas, neste caso, as questes concretas da histria das sociedades e de cada formao social especfica, como o capitalismo, estudado de forma cientfica por Karl Marx. Por essa razo, Vigotski afirma ser necessria uma teoria que desempenhe para a psicologia o mesmo papel que a obra O capital de Karl Marx desempenha para a anlise do capitalismo.

    E nesse contexto que Vigotski criticou aqueles que pensavam estar construindo uma psicologia marxista justapondo dados psicolgicos empricos a citaes dos clssicos do marxismo sem, entretanto, questionarem os pressupostos contidos na anlise dos dados e nos mtodos de obteno dos mesmos. Vigotski tambm criticou as tentativas de justaposio do marxismo a teorias psicolgicas estranhas ao universo marxista e incompatveis com ele. Essas tentativas seriam realizadas por meio de dois procedimentos:

    Se este primeiro procedimento de importao de idias alheias de uma escola a outra lembra a anexao de um territrio alheio, o segundo procedimento de associao de idias alheias se assemelha a um tratado de aliana entre dois pases, mediante o qual nenhum dos dois perde sua independncia, porm chegam ao acordo de atuarem conjuntamente, partindo da comunho de interesses. Este procedimento ao qual se costuma recorrer quando se quer associar o marxismo e a psicologia freudiana. Neste caso se utiliza o mtodo que por analogia com a geometria poderamos denominar "mtodo de superposio lgica de conceitos. Define-se o sistema marxista como monista, materialista, dialtico etc. Depois se estabelece o monismo, o materialismo etc. do sistema freudiano; ao superpor os conceitos, estes coincidem, e se declaram unidos os sistemas. Mediante um procedimento elementar eliminam-se contradies gritantes, bruscas, que saltam vista, excluindo-as sim

  • 42 SOCIEDADE DO CONHECIMENTO OU SOCIEDADE DAS ILUSES?

    plesmente do sistema, considerando-as exageradas etc. assim que se dessexualiza o freudismo, porque o pansexua- lismo no concorda de modo algum com a filosofia de Marx. "Bem", dizem-nos, "admitamos o freudismo sem os postulados da sexualidade. Mas ocorre que esses postulados constituem precisamente o nervo, a alma, o centro de todo o sistema. cabvel aceitar um sistema sem seu centro? Porque a psicologia freudiana sem o postulado da natureza sexual do inconsciente o mesmo que o cristianismo sem Cristo e o budismo com Al [Vygotski, 1991, pp. 296-297],

    Ao contrrio daqueles que, atualmente, identificam como dogmatismo a adoo firme e explcita de uma corrente terica e, por conseqncia, identificam como abertura de esprito a ausncia de posicionamento firme e explcito, Vigotski entendia que a clareza quanto aos fundamentos centrais do marxismo e a adoo firme desses fundamentos que pode possibilitar aos psiclogos marxistas no se fecharem s questes formuladas por correntes no-marxistas da psicologia.

    No enfoque no-crtico cada um v o que quer e no o que : um marxista encontra na psicanlise o monismo, o materialismo ou a dialtica que no aparecem nela [...] O que no significa, naturalmente, de modo algum que os marxistas no devam estudar o inconsciente pelo mero fato de que as concepes principais de Freud contradigam o materialismo dialtico. Pelo contrrio, precisamente porque a psicanlise estuda seu objeto com base em meios imprprios, necessrio conquist-lo para o marxismo, estud-lo empregando os meios da verdadeira metodologia. De outro modo, se na psicanlise tudo coincidisse com o marxismo, no haveria nada a mudar nela e os psiclogos poderiam desenvolv-la precisamente como psicanalistas e no como marxistas [idem, p. 302],

    A ANATOMIA DO HOMEM A CHAVE DA ANATOMIA DO MACACO... 43

    Quando Vigotski afirma querer apreender da globalidade do mtodo de Marx como se constri a cincia, isso no pode, portanto, ser interpretado num sentido pragmtico, como se Vigotski pretendesse adotar deste autor apenas aquilo que fosse imediatamente til pesquisa no campo da psicologia. Vigotski pretendia fundamentar nele a construo da psicologia, construir uma psicologia marxista e para isso fazia-se imprescindvel a adoo do mtodo de Marx em sua globalidade. No h margem para ecletismos nem para justaposies que desconsiderem o ncleo da concepo marxista de ser humano, de sociedade e de histria. Nesse sentido, dado o contexto ideolgico contemporneo, no demais ressaltar que, para Vigotski, o desenvolvimento da psicologia como cincia estaria condicionado ao avano do processo de construo de uma sociedade socialista:

    Nossa cincia no podia nem pode desenvolver-se na velha sociedade [a sociedade capitalista]. Ser donos da verdade sobre a pessoa e da prpria pessoa impossvel enquanto a humanidade no for dona da verdade sobre a sociedade e da prpria sociedade. Pelo contrrio, na nova sociedade [a sociedade socialista], nossa cincia se encontrar no centro da vida. "O salto do reino da necessidade ao reino da liberdade formular inevitavelmente a questo do domnio de nosso prprio ser, de subordin-lo a ns mesmos [Vygotski, 1991, p. 406].

    Em outros trabalhos tenho defendido reiteradamente a necessidade da obra de Vigotski ser lida mediante esse universo de referncia marxista e socialista (Duarte, 1996 e 2000a). Neste artigo focalizarei especificamente a questo das relaes entre o pensamento vigotskiano e o mtodo dialtico em Marx. O manuscrito Psicologia humana concreta, de Vigotski, contm vrias passagens com base nas quais pode ser abordado o tema

  • 44 SOCIEDADE DO CONHECIMENTO OU SOCIEDADE DAS ILUSES?

    deste artigo. Obviamente que esse manuscrito, para ser devidamente compreendido, precisa ser analisado luz do restante da obra vigotskiana. com esse esprito que tomarei como ponto de partida uma passagem do citado manuscrito:

    Parfrase de Marx: a natureza psicolgica da pessoa o conjunto das relaes sociais, transferidas para dentro e que se tornaram funes da personalidade e formas da suas estrutura. [...] Melhor - a transformao das estruturas de fora para dentro: outra relao da ontognese e filognese do que no desenvolvimento orgnico: l a filognese est includa em potencial e se repete na ontognese, aqui a inter-re- lao real entre filogenia e ontogenia: a pessoa como bitipo no necessria para o embrio no tero da me desenvolver-se em filhote humano, o embrio no interage com o bitipo adulto. No desenvolvimento cultural esta inter-re- lao a fora motriz bsica do desenvolvimento (aritmtica dos adultos e infantil, fala etc.) [Vigotski, 2000, p. 27],

    Nesse trecho, o autor faz uma diferenciao entre a relao filognese-ontognese no desenvolvimento orgnico do indivduo humano e essa mesma relao no desenvolvimento cultural, social desse indivduo. O desenvolvimento sociocultural do indivduo o desenvolvimento de um indivduo histrico, portanto situado na histria social humana. Para que esse desenvolvimento ocorra necessrio que o indivduo se aproprie dos produtos culturais, tanto aqueles da cultura material como aqueles da cultura intelectual. Essa apropriao da cultura pela criana mediatizada pelos adultos que j se apropriaram da mesma cultura, isto , o processo de apropriao um processo mediatizado, um processo que exige a interao entre adultos e crianas (cf. Leontiev, 1978). Vigotski, no trecho citado, bem claro ao afirmar que essa interao a principal fora impulsionadora de todo o desenvolvimento. A transmisso

    "A ANATOMIA DO HOMEM A CHAVE DA ANATOMIA DO MACACO... 45

    pelo adulto, criana, da cultura construda na histria social humana, no concebida na psicologia vigotskiana apenas como um dos fatores do desenvolvimento, ela considerada o fator determinante, principal. Nota-se a a grande distncia existente entre a concepo de desenvolvimento em Vigotski e em Piaget. Este entendia que a transmisso social seria um dos trs fatores clssicos do desenvolvimento, sendo os demais a hereditariedade e o meio fsico (Piaget, 1994, pp. 89-90); a esses, deveria ser acrescentado um quarto fator, o processo de equilibrao por auto-regulaes, mais geral que os trs primeiros, que poderia ser analisado de forma relativamente autnoma". Ao considerar esse processo como o motor espontneo do desenvolvimento intelectual, motor esse que no seria determinado pela transmisso social, mas sim, ao contrrio, seria aquele que determinaria a prpria possibilidade de algum xito nessa transmisso, Piaget acaba por transformar o social em algo externo ao desenvolvimento do indivduo ou, na melhor das hipteses, num componente secundrio desse desenvolvimento.

    Na passagem anteriormente citada, do manuscrito de 1929, Vigotski ressalta a importncia da interao entre o ser em desenvolvimento, isto , o ser menos desenvolvido, e o ser adulto, o ser mais desenvolvido. Afirma o psiclogo sovitico que essa interao no necessria para o desenvolvimento do embrio humano, mas ela fundamental para o desenvolvimento cultural do indivduo humano. Isso remete a um aspecto do mtodo dialtico de Marx que adotado por Vigotski, aspecto esse sintetizado na famosa metfora de Marx, adotada deste artigo, a de que a anatomia do homem a chave da anatomia do macaco. No texto O significado histrico da crise da psicologia: uma investigao metodolgica (Vygotski, 1991, pp. 257- 406) esse tema abordado por Vigotski no que se refere ao mtodo de investigao em psicologia. Ele defende a utilizao, pela pesquisa psicolgica, daquilo que ele chamava de mto

  • 46 SOCIEDADE DO CONHECIMENTO OU SOCIEDADE DAS ILUSES?

    do inverso", isto , o estudo da essncia de determinado fenmeno por meio da anlise da forma mais desenvolvida alcanada portal fenmeno. Vigotski chama a esse mtodo de inverso porque ele caminha na direo oposta da gnese do objeto. Note-se que, especialmente em psicologia, muito comum tomar-se como melhor mtodo o que caminhe do estgio menos evoludo ao estgio mais evoludo do objeto estudado.

    Mas h uma dificuldade no estudo do objeto em sua forma mais desenvolvida: a essncia do objeto em seu estgio de maior desenvolvimento no se apresenta ao pesquisador de maneira imediata, mas sim de maneira mediatizada. Essa mediao realizada pelo processo de anlise, o qual trabalha com abstraes. Trata-se do mtodo dialtico de apropriao do concreto pelo pensamento cientfico por meio da mediao do abstrato. O processo do conhecimento conteria trs momentos: sncrese, anlise e sntese. Sem a mediao da anlise o pensamento cientfico no seria capaz de superar a sncrese prpria do senso comum e, portanto, no seria capaz de alcanar a sntese, isto , alcanar a compreenso da realidade investigada em seu todo concreto3. Vigotski adota, assim, da dialtica de Marx, dois princpios para a construo do conhecimento cientfico em psicologia: a abstrao e a anlise da forma mais desenvolvida. Vejamos o que escreveu Vigotski sobre essa questo metodolgica:

    Tratei de introduzir a aplicao deste mtodo pessoalmente na psicologia consciente, tentando deduzir as leis da psicologia da arte mediante a anlise de uma fbula, um romance e uma tragdia. Parti para isso da idia de que as for

    3. Esse processo ocorre tanto na elevao do senso comum ao conhecimento cientifico como tambm na elevao do senso comum conscincia filosfica, conforme analisado por Dermeval Saviani (1993, pp. 9-18).

    a ANATOMIA DO HOMEM A CHAVE DA ANATOMIA DO MACACO... 47

    mas mais desenvolvidas da arte so a chave das formas atrasadas, como a anatomia do homem o em relao dos macacos; que a tragdia de Shakespeare nos explica os enigmas da arte primitiva e no o contrrio. Fao afirmaes, ademais, sobre toda a arte e no comprovo, todavia, minhas concluses na msica, na pintura etc. Ainda mais: no as comprovo sequer em todas ou na maioria das variedades de literatura; tomo somente um romance, uma tragdia. Com que direito? No estudei as fbulas nem as tragdias e menos ainda uma fbula dada e uma tragdia dada. Estudei nelas o que constitui a base de toda a arte: a natureza e o mecanismo da reao esttica. Apoiei-me nos elementos gerais da forma e do material inerentes a toda a arte. Escolhi para a anlise a fbula, o romance e a tragdia mais difceis, precisamente aqueles nos quais so especialmente patentes as leis gerais: selecionei os monstros dentro das tragdias etc.Essa anlise pressupe fazer abstrao dos traos concretos da fbula como um gnero determinado para concentrar o esforo na essncia da reao esttica. Por isso no digo nada da fbula como tal. E o prprio subttulo Anlise da reao esttica indica que a finalidade da investigao no consiste na exposio sistemtica da doutrina psicolgica da arte em todo seu volume e amplitude (todas as variedades da arte, todos os problemas etc.) nem sequer a investigao indutiva de uma srie determinada de fatos, mas sim justamente a anlise dos processos em sua essncia [Vygotski, 199I, pp. 374-375].

    Nessa passagem Vigotski refere-se a seu trabalho Psicologia da arte (1972). O objetivo dessa investigao foi descobrir a essncia da reao esttica. Para isso ele recorreu em primeiro lugar ao mtodo da anlise, buscando detectar aquilo que constituiria a unidade mais essencial da reao esttica, independentemente do fato de essa reao nunca aparecer de forma pura,

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    abstrata, mas sempre sob formas concretas, dependentes tanto do tipo de obra de arte como das relaes que se estabelecem entre um indivduo concreto e uma obra de arte concreta. Alm de recorrer ao mtodo da abstrao, Vigotski recorreu tambm ao mtodo inverso, isto , buscou analisar formas desenvolvidas de arte, pressupondo que seu estudo revelaria aspectos vlidos tambm para formas menos desenvolvidas. Note-se que a utilizao do mtodo inverso pelo autor implica que ele considerava existirem formas inferiores e formas superiores de arte. Por certo isso soa estranho queles que buscam nele apoio para posies pedaggicas que postulam um multiculturalismo relativista para o qual no existiriam saberes mais desenvolvidos que outros; existiriam apenas saberes diferentes.

    De minha parte, que no compartilho em absoluto com esse tipo de relativismo, avalio de forma bastante positiva o fato de Vigotski explicitar com bastante clareza sua posio quanto existncia de formas inferiores e superiores de arte. Alis, isso bastante coerente com as investigaes realizadas pelo autor acerca das relaes, no desenvolvimento do pensamento infantil, entre os conceitos cotidianos (tambm chamados por ele de conceitos espontneos ou conceitos empricos) e os conceitos cientficos. No livro Pensamento e linguagem, publicado em seu texto integral no volume II das Obras escolhidas (Vygotski, 1993), o psiclogo sovitico mostra que os conceitos cientficos, ao serem ensinados criana por meio da educao escolar, superam por incorporao os conceitos cotidianos, ao mesmo tempo em que a aprendizagem daqueles ocorre sobre a base da formao destes:

    O sistema primrio, surgido na esfera dos conceitos cientficos se transfere estruturalmente ao campo dos conceitos cotidianos, reestruturando-os, modificando sua natureza interna a partir de cima. Um e outro (a dependncia dos

    'A ANATOMIA DO HOMEM A CHAVE DA ANATOMIA DO MACACO... 49

    conceitos cientficos dos espontneos e a influncia recproca dos primeiros nos segundos) se depreendem dessa relao especfica que existe entre o conceito cientfico e o objeto, a qual se caracteriza, como dissemos, porque est mediada por meio de outro conceito e, por conseguinte, inclui, por sua vez, junto com a relao para com o objeto, a relao com outro conceito, isto , os elementos primrios do sistema de conceitos. Portanto, o conceito cientfico, pelo fato de ser cientfico, por sua prpria natureza, pressupe um determinado lugar dentro do sistema dos conceitos, o qual determina sua relao com outros conceitos. A essncia de qualquer conceito cientfico definida por Marx de um modo muito profundo: "se a forma de manifestao e a essncia das coisas coincidissem, toda cincia seria suprflua [...] Esse o quid do conceito cientfico. Seria suprfluo se refletisse o objeto em sua manifestao externa como conceito emprico [Vygotski, 1993, p. 216].

    Tanto no que se refere arte, como no que se refere relao entre conceitos cotidianos e conceitos cientficos, Vigotski dava grande valor, no processo de desenvolvimento humano, existncia das formas culturais mais desenvolvidas. Ora, essa uma questo fundamental para os educadores, pois ela toca nas questes do que ensinar, a quem ensinar, quando ensinar, como ensinar e por que ensinar.

    Retomando a questo metodolgica e epistemolgica neste autor, importante assinalar que, ao defender a necessidade da anlise para compreenso de determinado fenmeno psicolgico, esse pesquisador diferenciava claramente entre a anlise que se reduz descrio do mais imediatamente visvel e a anlise que vai alm das aparncias:

    Na realidade, a psicologia nos ensina a cada passo que duas aes podem transcorrer por sua aparncia externa de

  • 50 SOCIEDADE DO CONHECIMENTO OU SOCIEDADE DAS ILUSES?

    maneira similar e serem, todavia, muito distintas por sua origem, essncia e natureza. Em casos assim so necessrios meios especiais de anlise cientfica para descobrir por detrs da semelhana exterior as diferenas internas. Nesses casos torna-se necessria a anlise cientfica, o saber descobrir sob o aspecto externo do processo seu contedo interno, sua natureza e sua origem. Toda a dificuldade da anlise cientfica radica em que a essncia dos objetos, isto , sua autntica e verdadeira correlao no coincide diretamente com a forma de suas manifestaes externas e por isso preciso analisar os processos; preciso descobrir por esse meio a verdadeira relao contida nesses processos por detrs da forma exterior de suas manifestaes. Desvelar essas relaes a misso que h de cumprir a anlise. A autntica anlise cientfica na psicologia se diferencia radicalmente da anlise subjetiva, introspectiva, que por sua prpria natureza no capaz de superar os limites da descrio pura. Em nosso ponto de vista, somente possvel a anlise de carter objetivo j que no se trata de revelar o que nos parece o fenmeno observado, mas sim o que ele na rea-lidade[ Vygotski, 1995, p. 104, grifo meu].

    A compreenso dialtica e materialista que Vigotski tinha do conhecimento cientfico estava concretizada nessa adoo do mtodo de anlise