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Vitória, 22 a 25 de julho de 2012 Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural 1 A VIDA NO MANGUEZAL, ALTERNATIVA INTEGRADA À LAMA VIVA. MANGROVE LIFE, MUD LIFE. Grupo de Pesquisa: Agropecuária, Meio-Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. Maviael Fonsêca de Castro (PPGExR/UFSM e IPA) Vivien Diesel (PPGExR/UFSM) José Marcos Froehlich (PPGExR/UFSM) RESUMO O homem rural das políticas públicas brasileiras foi percebido preponderantemente como agente econômico e, quando diferenciado, foi por sua condição econômica (pequeno, médio ou grande produtor). . Iniciativas recentes indicam que alguns setores reivindicam a utilização de novos referenciais teóricos para representação do homem rural; no intuito de considerar-se a dimensão sociocultural, com perspectivas de etnodesenvolvimento. O presente trabalho inscreve-se no esforço maior de avaliar os desafios colocados às políticas de desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades tradicionais mediante uma aproximação à realidade dos “povos do mangue” no litoral sul de Pernambuco, município de Rio Formoso. Num primeiro momento apresenta-se uma breve revisão sobre os povos e comunidades tradicionais. Após a breve revisão, realiza-se a aproximação à realidade dos “povos do mangue” no litoral sul de Pernambuco, município de Rio Formoso para, então, discutir questões relativas a aplicabilidade das políticas públicas. Palavras-chaves: Povos-do-Mangue, pesca artesanal, modos de vida, reciprocidade, Pernambuco. ABSTRACT The agricultural man of the Brazilian public politics traditionally was perceived as economic agent and, when differentiated, was for its economic condition (small, average or large producer). Recent initiatives indicate that some sectors demand the use of new theoretical approaches for representation of the agricultural man; in intention to consider it cultural dimension in developmental strategies. The present work is oriented to evaluate the challenges placed to the politics of traditional peoples and communities sustainable development by means of an approach to the reality of the “peoples of the mangroveat Rio Formoso city, in the south Pernambuco coast, Brazil. One brief revision on the traditional peoples and communities are presented, reality of the “peoples of the mangroveis described and then, questions about the applicability of the sustainable development public policies are proposed. Key Words: People of the Mangroves, artisanal fisheries, livelihoods, reciprocity, Pernambuco. 1. INTRODUÇÃO O Brasil é um país que se destaca internacionalmente por sua extensão territorial e riqueza de recursos naturais, condições essas que lhe assegurariam perspectivas promissoras de desenvolvimento.

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Vitória, 22 a 25 de julho de 2012

Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural

1

A VIDA NO MANGUEZAL, ALTERNATIVA INTEGRADA À LAMA VIVA.

MANGROVE LIFE, MUD LIFE.

Grupo de Pesquisa: Agropecuária, Meio-Ambiente e Desenvolvimento Sustentável.

Maviael Fonsêca de Castro (PPGExR/UFSM e IPA)

Vivien Diesel (PPGExR/UFSM)

José Marcos Froehlich (PPGExR/UFSM)

RESUMO

O homem rural das políticas públicas brasileiras foi percebido preponderantemente como

agente econômico e, quando diferenciado, foi por sua condição econômica (pequeno,

médio ou grande produtor).. Iniciativas recentes indicam que alguns setores reivindicam a

utilização de novos referenciais teóricos para representação do homem rural; no intuito de

considerar-se a dimensão sociocultural, com perspectivas de etnodesenvolvimento. O

presente trabalho inscreve-se no esforço maior de avaliar os desafios colocados às políticas

de desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades tradicionais mediante uma

aproximação à realidade dos “povos do mangue” no litoral sul de Pernambuco, município

de Rio Formoso. Num primeiro momento apresenta-se uma breve revisão sobre os povos e

comunidades tradicionais. Após a breve revisão, realiza-se a aproximação à realidade dos

“povos do mangue” no litoral sul de Pernambuco, município de Rio Formoso para, então,

discutir questões relativas a aplicabilidade das políticas públicas.

Palavras-chaves: Povos-do-Mangue, pesca artesanal, modos de vida, reciprocidade,

Pernambuco.

ABSTRACT

The agricultural man of the Brazilian public politics traditionally was perceived as

economic agent and, when differentiated, was for its economic condition (small, average or

large producer). Recent initiatives indicate that some sectors demand the use of new

theoretical approaches for representation of the agricultural man; in intention to consider it

cultural dimension in developmental strategies. The present work is oriented to evaluate

the challenges placed to the politics of traditional peoples and communities sustainable

development by means of an approach to the reality of the “peoples of the mangrove” at

Rio Formoso city, in the south Pernambuco coast, Brazil. One brief revision on the

traditional peoples and communities are presented, reality of the “peoples of the

mangrove” is described and then, questions about the applicability of the sustainable

development public policies are proposed.

Key Words: People of the Mangroves, artisanal fisheries, livelihoods, reciprocity,

Pernambuco.

1. INTRODUÇÃO

O Brasil é um país que se destaca internacionalmente por sua extensão territorial e

riqueza de recursos naturais, condições essas que lhe assegurariam perspectivas

promissoras de desenvolvimento.

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Em busca do desenvolvimento, o Estado brasileiro vem mantendo uma postura

intervencionista através da formulação e implementação de políticas públicas –

relativamente adequadas às variantes conjunturas sociais, políticas e econômicas.

Uma observação retrospectiva sobre a intervenção do Estado brasileiro no meio rural

revela que as políticas públicas de desenvolvimento se intensificaram após a década de

1950 orientando-se a promover o crescimento econômico pela via da modernização

tecnológica dos processos de produção agrícola e agroindustrial e articulação com

demandas de exportação e do setor urbano- industrial (GONÇALVES NETO, 1997).

Apesar da adequação das políticas públicas para o desenvolvimento rural às variantes

conjunturas sociais, políticas e econômicas constata-se que essas utilizaram-se de um

estereótipo simplificado de homem rural. O homem rural das políticas públicas brasileiras

foi percebido preponderantemente como agente econômico e, quando diferenciado, foi por

sua condição econômica (pequeno, médio ou grande produtor) 1

ou, mais recentemente,

pela lógica de gestão da unidade produtiva (base da distinção da agricultura familiar e

empresarial)2.

Iniciativas recentes indicam que alguns setores reivindicam a utilização de novos

referenciais teóricos para representação do homem rural no âmbito da formulação de

políticas públicas. Trata-se da reivindicação de considerar-se a dimensão sociocultural e, a

partir disso, realizar uma releitura das realidades e dinâmicas sociais e econômicas rurais

com vistas a favorecer processos de etnodesenvolvimento.

Little (2002), por exemplo, argumenta da necessidade de avançar na construção de uma

“antropologia da territorialidade” uma vez que observa que coexistem, no Brasil, territórios

sociais cujos regimes de propriedade fundiária são baseados em leis consuetudinárias que,

todavia, não são reconhecidos legalmente pelo Estado. A utilização dessa perspectiva

permite perceber o homem rural como gerador de cultura própria e também a origem

cultural de conflitos sociais no campo – sobretudo aqueles relacionados a ação de um

agente externo que não respeita esses direitos consuetudinários sobre o acesso a terra e

outros recursos.3

Uma retrospectiva histórica evidencia que a magnitude dos conflitos territoriais

explica a busca de soluções legais pela demarcação das terras indígenas, de remanescentes

de quilombos e criação de reservas extrativistas e de desenvolvimento sustentável

(LITTLE, 2002, CREADO et al., 2012). Compreende-se que além de constituírem

respostas aos conflitos resultantes da resistência dos afetados, muitos avanços políticos

observados recentemente no Brasil relacionam-se com normativas previstas em acordos

internacionais – os quais tem buscado assegurar a diversidade cultural.4 È nesse contexto

que, em 2007, apresenta-se um decreto lei preconizando a adequação das políticas públicas

1 Cabe acrescentar, com base em Neves (1987), a importância - para a atuação dos serviços de extensão rural - das

representações sociológicas do homem rural construídas pela teoria da modernização - baseadas no antagonismo

tradicional x moderno. 2 Referimo-nos aqui aos critérios de diferenciação de tipos sociais utilizados no relatório INCRA/FAO, de 1996, que

constituiu importante subsídio para discussão da condição da agricultura familiar no Brasil. 3 Relatório recente CPT mostra a indesejável atualidade e magnitude desse tipo de conflito no Brasil (CPT, 2011). 4Segundo Little (2002, p.21) “No nível internacional, nas últimas duas décadas, preocupação pelo respeito por parte dos

Estados-nação aos direitos diferenciados dos povos indígenas e/ou tradicionais cresceu de forma acelerada, notavelmente

em referência a questões fundiárias e territoriais. Um dos instrumentos mais importantes nesse campo é a Convenção 169

da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre “Povos indígenas e tribais em países independentes”, de 1989, que

estabelece no Artigo II, que os governos têm a responsabilidade de “proteger os direitos desses povos e garantir o

respeito à sua integridade”. Para uma identificação do conjunto de medidas referentes aos direitos dos povos e

comunidades tradicionais no Brasil ver Shiraishi Neto (2007).

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de desenvolvimento às especificidades socioculturais dos beneficiários quando esses são

“povos ou comunidades tradicionais” (Decreto Lei 6040 de 07/02/2007 que instituiu a

Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades

Tradicionais)5.

Do exposto percebe-se a emergência de uma nova conjuntura, que se distingue por um

conjunto de políticas públicas para o desenvolvimento rural que – para sua operação –

requer uma revisão na forma como convencionalmente se percebe o homem rural. Tal

perspectiva se aplicaria às políticas orientadas aos “povos e comunidades tradicionais” e

sua aplicação cria novos desafios, pois embora a diversidade do Brasil seja

reconhecidamente grande, não se dispõe de marco referencial consensual para a realização

de releituras que considerem adequadamente a dimensão sociocultural e, portanto, não se

conhece sistematicamente a diversidade sociocultural rural brasileira. Vive-se, então, um

contexto caracterizado pela necessidade de redescobrir o homem rural e, sobretudo, avaliar

a viabilidade da aplicação das novas políticas orientadas ao “desenvolvimento sustentável

dos povos e comunidades tradicionais”.

O presente trabalho inscreve-se no esforço maior de avaliar os desafios colocados às

políticas de desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades tradicionais mediante

uma aproximação à realidade dos “povos do mangue” no litoral sul de Pernambuco,

município de Rio Formoso. Num primeiro momento apresenta-se uma breve revisão sobre

os povos e comunidades tradicionais. Após a breve revisão, realiza-se a aproximação à

realidade dos “povos do mangue” no litoral sul de Pernambuco, município de Rio Formoso

para, então, discutir questões relativas a aplicabilidade das políticas públicas.

2 POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS E POVOS DO MANGUE

2.1 Povos e comunidades tradicionais

Diversos autores reconhecem que certos termos são melhor compreendidos se for

considerado seu uso político. Sob essa perspectiva os termos “povos e comunidades

tradicionais” podem ser compreendidos considerando-se a dinâmica de reconhecimento

político da diversidade cultural no Brasil.

Considera-se que um primeiro passo no reconhecimento político da diversidade

étnica se fez com reconhecimento dos indígenas. A diversidade entre os povos indígenas

brasileiros é muito acentuada, não obstante foram agrupados legalmente sob uma categoria

genérica. Segundo Little (2002, p.13)

“Terras indígenas” é uma categoria jurídica que originalmente foi estabelecida pelo

Estado brasileiro para lidar com povos indígenas dentro do marco da tutela. De todos

os povos tradicionais, os povos indígenas foram os primeiros a obter o

reconhecimento de suas diferenças étnicas e territoriais, mesmo que tal

reconhecimento tenha sido efetivado por meio de processos que, em muitos casos,

5 O respeito e a valorização da diversidade cultural como principio básico de cidadania esta garantido pela constituição

brasileira de 1988, e reforçado por meio da EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 48, DE 10 DE AGOSTO DE 2005, que

acrescenta o § 3º ao art. 215 da Constituição Federal, instituindo o Plano Nacional de Cultura; de duração plurianual, que

visa ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à: I - defesa e

valorização do patrimônio cultural brasileiro; II - produção, promoção e difusão de bens culturais; III - formação de

pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões; IV - democratização do acesso aos bens de

cultura; E finalmente..., V - valorização da diversidade étnica e regional (NR).

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prejudicaram seus direitos. Durante os 57 anos de existência (1910-1967) do Serviço

de Proteção dos Índios (SPI), 54 áreas indígenas foram demarcadas, a maioria delas de

pequeno tamanho e dentro de uma política em que cada terra era “muito menos uma

reserva territorial do que uma reserva de mão-de-obra”.

Um segundo grupo foi reconhecido como culturalmente diferenciado por ocasião da

elaboração da Constituição Federal de 1988 e foi denominado de remanescentes de

quilombos.

Com o surgimento de uma consciência negra, como parte de um processo maior de

organização política a partir da década de 1980, os quilombos rapidamente passaram a

gozar de uma nova visibilidade política − que também se refletiu no crescente

interesse pelos antropólogos. À formação de associações regionais, tais como a

Associação de Moradores das Comunidades Rumo-Flexal no Maranhão (1985) e a

Associação de Comunidades de Remanescentes de Quilombos do Município do

Oriximiná no Pará (1990), e à realização de eventos regionais, tais como o I Encontro

de Comunidades Negras Rurais no Maranhão (1986) e o I Encontro de Raízes Negras

no Pará (1988), seguiram-se eventos de ordem nacional, como o II Seminário

Nacional Sobre Sítios Históricos e Monumentos Negros em Goiás (1992) e o I

Seminário Nacional de Comunidades Remanescentes de Quilombos (1994),

culminando com os festejos, em todo o país, em 1995, do 300° aniversário da morte de

Zumbi dos Palmares.

Em meio a esse processo, a categoria de “remanescentes das comunidades dos

quilombos” ganhou reconhecimento formal por parte do Estado na Constituição de

1988. (LITTLE, 2002, p.14).

A partir do reconhecimento desses direitos inicia-se, conforme relata Chagas

(2001), uma significativa discussão acadêmica e jurídica em torno da identificação dos

titulares desses direitos pois que as condições históricas dos grupos sociais que reivindicam

esses direitos muitas vezes não correspondem aos estereótipos que embasam os preceitos

legais.

A partir de meados dos anos 2000 o termo “povos tradicionais” passa a assumir

maior peso político. Conforme Little (2002, p.22-23) trata-se de um termo que teve uma

história de utilização muito diversa:

No contexto das fronteiras em expansão, o conceito surgiu para englobar um conjunto

de grupos sociais que defendem seus respectivos territórios frente à usurpação por

parte do Estado-nação e outros grupos sociais vinculados a este. Num contexto

ambientalista, o conceito surgiu a partir da necessidade dos preservacionistas em lidar

com todos os grupos sociais residentes ou usuários das unidades de conservação de

proteção integral, entendidos aqui como obstáculos para a implementação plena das

metas dessas unidades. Noutro contexto ambientalista, o conceito dos povos

tradicionais serviu como forma de aproximação entre socioambientalistas e os

distintos grupos que historicamente mostraram ter formas sustentáveis de exploração

dos recursos naturais, assim gerando formas de co-gestão de território. Finalmente, o

conceito surgiu no contexto dos debates sobre autonomia territorial, exemplificado

pela Convenção 169 da OIT, onde cumpriu uma função central nos debates nacionais

em torno do respeito aos direitos dos povos.

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Entende-se que os termos “povos e comunidades tradicionais” se consagrarão com

o Decreto Lei n.6040 - Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e

Comunidades Tradicionais. Esse se refere às comunidades tradicionais, definindo-lhe uma

série de atributos característicos:

As comunidades tradicionais são grupos culturalmente diferenciados e que se

reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que

ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução

cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações

e práticas gerados e transmitidos pela tradição (DECRETO Nº 6.040, DE 7 DE

FEVEREIRO DE 2007).

Creado et al (2012) apresentam informações que contribuem para o entendimento

dos termos adotados no Decreto Lei 6.040:

O então secretário de Desenvolvimento Sustentável do Ministério do Meio Ambiente

(SDS-MMA) Gilney Viana, afirmou que o processo de elaboração dessa política

pública teve como alguns de seus resultados: (1) uma diversidade sócio-cultural

pronunciada; e (2) uma amplitude territorial imprevista.

Diante dessa proliferação de identidades, optou-se por uma abertura relativa aos

processos de auto-identificação, reconhecidos em outras leis e dispositivos, como o

decreto 4.887 sobre os quilombolas e a Convenção 169 da Organização Internacional

do Trabalho (OIT). Uma abertura relativa, pois, como afirmou o secretário: (1) deveria

respeitar‚ um limite de razoabilidade, como a inserção mínima nas relações de

mercado e um tipo de relação com o território, baseada em certa estabilidade de

permanência; e (2) a definição das populações tradicionais não poderia ser ampla em

demasia para não criar uma clientela muito grande para o governo.

Por fim, os termos povos e comunidades tradicionais assumiram caráter abrangente,

passando a incluir também os indígenas e quilombolas (CREADO et al, 2012).6 Assim, a

denominação de “povos e comunidades tradicionais” abriga grupos muito diversos, como

adverte Little (2002, p.2):

De uma perspectiva etnográfica, por exemplo, as diferenças entre as sociedades

indígenas, os quilombos, os caboclos, os caiçaras e outros grupos ditos tradicionais –

além da heterogeneidade interna de cada uma dessas categorias – são tão grandes que

não parece viável tratá-los dentro de uma mesma classificação.

Mesmo reconhecendo essa diversidade, para Little (2002) utilizar o termo “povos

tradicionais” tem sentido na medida em que esses apresentam semelhança quanto aos

processos de territorialização:

Acredito que os três elementos analisados dentro do que foi chamado aqui a razão histórica −

regime de propriedade comum, sentido de pertencimento a um lugar específico e profundidade

histórica da ocupação guardada na memória coletiva − mostram semelhanças importantes

6 Conforme Santili (2004 apud Creado et al. 2012) “Trata-se de uma meta-categoria, na qual as de quilombolas e a de

índios vêm cada vez mais sendo inseridas” .

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quando vistos da ótica do Estado brasileiro e sua divisão entre terras privadas e terras públicas.

(LITTLE, 2002, p.22 )

Num contexto de grande diversidade, uma maior aproximação às características de um

grupo social determinado requer previa consideração de sua especificidade.

Denominações identitárias mais restritivas podem ser acessadas para esse fim.

2.2 História e especificidades das populações costeiras do litoral nordestino

Desde a colonização, o povoamento do território brasileiro se deu fortemente nas áreas

costeiras; a priori pelo próprio processo de desbravamento do continente, mas

posteriormente como estratégia efetiva de domínio e defesa territorial. Boa parte da

população costeira; possivelmente a maioria do ponto de vista de acumulação de capital

cultural, vincula-se às antigas vilas - formadas ainda no processo de colonização. Estas

foram compostas por índicos brasileiros, europeus e africanos. Dessa miscigenação,

algumas mais ou menos acentuadas, se formaram as tais vilas de pescadores, que no início

do século XX foram inseridas, ou organizadas, em colônias de pescadores, mais como uma

forma política e militar de controle e defesa do território, do que de fato como uma

tentativa de organização e/ou representação de categoria ou modo de vida.

No ano de 1919, o comandante da Marinha, Frederico Villar, fez uma viagem ao

longo da costa brasileira, começando por Belém do Pará, com a finalidade de fundar

colônias de pescadores, com função de defender a costa nacional e industrialização da

pesca e da exportação do peixe, as colônias nestes períodos são consideradas “viveiros

da marinha”. Até o fim de 1920 já estavam fundadas colônias em toda Costa, de cima

para baixo, sem a participação dos pescadores (FIGUEIREDO, LEITÃO, 2009, p. 2).

Surgiam assim as populações costeiras, conceituadas como:

Comunidades pesqueiras, cultura marítima, comunidades humanas marítimas, gentes

do mar, comunidades tradicionais de pesca, comunidades costeiras ou, simplesmente,

povos do mar, representam, no Brasil, um contingente populacional de

aproximadamente 800 mil pescadores e pescadoras, envolvendo 2 milhões de pessoas

que produzem cerca de 55% da produção pesqueira nacional. (CALLOU, 2010, p.45)

Nota-se uma certa diversidade nos modos de vida das populações costeiras, o que,

para Diegues (1983), está relacionado à forte ligação dessa(s) população(ões) com o

contexto econômico e produtivo regional. Além disso, muitas mudanças ocorreram com a

introdução da pesca empresarial - que seria uma categoria produtiva resultante do capital e

de seu movimento. A emergência da pesca empresarial fez surgir no Brasil – por exclusão-

uma camada ou categoria social: a dos pescadores artesanais, que foi decisiva para a

consolidação do território e da cultura nacional..

Para Callou (2010, p. 45):

Habitantes tradicionais das áreas costeiras, os pescadores artesanais – também

chamados de praieiros, jangadeiros, caiçaras e açorianos, a depender da região onde

habitam e de seus artefatos socioculturais e técnicos, são reconhecidos como

“trabalhadores que se dedicam à” captura de pescado e que exercem as funções de

membros de tripulações dos barcos pesqueiros, executando diversas tarefas de pesca

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de altura – no caso dos pescadores marítimos – ou tarefas específicas da pesca de água

doce e águas costeiras. (CALLOU, 2010, p.45)

Em Pernambuco os pescadores artesanais tem presença significativa:

A Pesca Artesanal representa a maior parcela da produção pesqueira do Estado de

Pernambuco, é caracterizada pelo trabalho familiar e comunitário, utilizando técnicas

e tecnologias tradicionais, quer a pé ou com uso de embarcações, como: jangadas,

canoas, baiteras e barcos motorizados de pequeno porte. As artes de pesca empregadas

nesta modalidade para captura do pescado incluem: coleta manual, vara de pesca,

linha e anzol, tarrafa, redes de cerco, de emalhe, de arrasto e armadilhas, com fins

comerciais e/ou de subsistência (LIRA, 2010, p.16).

Do exposto observa-se que se mantiveram comunidades na costa brasileira ao longo

de, pelo menos, quatro séculos potencializando que, ao longo do tempo, se constituísse

uma identidade socioambiental especifica, agregando conhecimentos (antigos e novos) de

pelo menos três etnias: indígena (genuinamente brasileira), europeia (sobretudo a

portuguesa, mas também a holandesa, espanhola e francesa) e africana. Diegues (1999)

avalia a evolução dos estudos sobre pescadores nas Ciências Sociais - que levou a

configuração de um campo específico a “Antropologia marítima” e, para ele,

Em trabalhos anteriores (Diegues 1983, 1995), diferenciamos sociedade dos

pescadores e sociedade camponesa, apesar de ambas estarem inseridas na pequena

produção mercantil. Nesses trabalhos, foi ressaltado o particularismo da gente do mar,

seu modo de vida específico marcado por práticas sociais e culturais diferenciadas das

camponesas. Essas práticas e modos de vida se constroem em relação a um meio tanto

física quanto socialmente instável e imprevisível. O mar, espaço de vida dos

pescadores marítimos, é marcado pela fluidez das águas e de seus recursos, pela

instabilidade contínua provocada por fatores meteorológicos e oceanográficos, pela

variação e migração das espécies, seus padrões de reprodução, migração, etc. A vida

no mar é também marcada não só por contingências naturais, mas por temores e

medos, acidentes e naufrágios, pela flutuação dos preços e pela extrema perecibilidade

do pescado que, uma vez capturado, deve ser vendido rapidamente, o que obriga o

pescador a acertos particulares de comercialização que, usualmente, lhe são

desfavoráveis. (DIEGUES, 1999, p. 371)

Esses grupos sociais seriam representados predominantemente como “pescadores

artesanais” identificando-se, entretanto, diferenciações conforme contextos em que vivem

mas enfrentam desafios semelhantes no que se refere aos processos de territorialização.

Para Little (2002, p. 18-19)7:

7Em outro momento Little (2002, p.9) expõe: “Entre as comunidades de ribeirinhos da Amazônia e os pescadores

artesanais do litoral, existem formas de apropriação articuladas em função de seus usos, significados e conhecimentos das

águas. No caso desses últimos, o usufruto coletivo de áreas determinadas estendia-se para além da terra para incluir

‘territórios marinhos’. Para esses grupos, a marcação é “um elemento fundamental à apropriação e ao usufruto do mar

pelos pescadores. (...) A familiaridade de cada grupo de pescadores com uma dessas áreas marítimas, cria territórios que

são incorporados à sua tradição. Na mesma medida em que é um recurso ou um espaço de subsistência, o território

encompassa também a noção de lugar mediante a qual os povos marítimos definem e delimitam o mar (...)”

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Os povos tradicionais dedicados à extração de recursos pesqueiros – os ribeirinhos e

os pescadores – confrontam outro conjunto de obstáculos para o reconhecimento

formal de suas áreas de ocupação e uso, uma vez que, em muitos casos, não são

´terras` que estão em questão, mas seções de um rio, de um lago ou do mar, gerando

assim ´terras aquáticas ou marinhas` que não contam com uma legislação adequada

que reconheça as particularidades dessa apropriação.

2.3 “Povos do mangue”

O Brasil possui uma das maiores extensões de manguezais do mundo. O litoral de

Pernambuco, apesar de ser curto, com cerca de 190 km de extensão, possui 14 importantes

zonas estuarinas - onde se produz mais de 60% do pescado estadual (LIRA, 2010) e se gera

alternativa de trabalho e renda para milhares de famílias, que encontram no manguezal e na

plataforma continental fontes importantes de proteína.

O mangue se revela como ambiente de acentuada importância ecológica. 8

Se mostra

muito dinâmico e rico biologicamente em função de sua complexa cadeia trófica e das

influências das marés salinas que conferem características peculiares para a vida nesse

ecossistema. Muitos trabalhos indicam que o mangue funciona como verdadeiro berçário,

pois várias espécies costeiras (peixes, crustáceos, moluscos, quelônios e até alguns

mamíferos marinhos) bem como alguns pássaros e pequenos mamíferos terrestres se

refugiam ali para a sua reprodução, encontrando alimento em abundância e proteção

contra predadores naturais.

Os relatos históricos permitem depreender que ocupação humana da área do mangue

foi paulatina. Os pescadores artesanais estavam ligados, a princípio, ao meio rural, mas as

cidades e metrópoles foram avançando sobre os ambientes costeiros - reprimindo, ou até

mesmo expulsando, as populações que ocupavam historicamente ambientes peculiares

como baias, enseadas e praias. Uma parcela dessa população refugiou-se em áreas de

acesso mais restrito, próximas a locais que ainda não haviam despertado o interesse

imobiliário, ou ainda dentro de reservas legais e de proteção ambiental, como as áreas de

manguezais, o que lhes permitiu manter seu modo de vida.

Conforme reconhece Souto (2007) no Brasil a captura do caranguejo (Ucides

cordatus) é uma das atividades mais antigas e, acrescentaríamos, características, dos

manguezais. Realizando levantamento etnoecológico em área de manguezal nas

proximidades de Santo Amaro (Bahia), o autor identificou que os pescadores apresentam

apurado conhecimento sobre interações tróficas nas cadeias alimentares e do ciclo de vida

do caranguejo planejando estratégias de captura a partir desses e de seu conhecimento

sobre características e preferências do mercado local. Embora a extração do caranguejo

seja uma das atividades mais características do manguezal, os modos de vida daqueles que

residem ali podem incluir atividades produtivas das mais diversas, como demonstram

Furtado et al. (2006) em estudos conduzidos no Pará.

8 “Manguezal”: ambiente presente nas zonas costeiras sob a influência das marés, nas regiões intertropicais, formando

uma unidade faunística e florística de muita importância ecológica e socioeconômica (VANNUCCI, 2002, apud

CARNEIRO et al. 2008, p.149). Segundo Canestri e Riuz (1973, apud DA NOBREGA ALVES e KIOHARU NISHIDA,

2002) os manguezais são identificados como uma unidade ecológica da qual dependem dois terços da população

pesqueira do mundo. Constituindo, consequentemente base de sustentação ecológica de uma vasta e diversificada biota, e

de grande importância econômica.

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Apesar de sua importância ecológica e social, no século XX grandes áreas do bioma

manguezal foram devastadas no litoral brasileiro, sobretudo no Nordeste. Aí a expansão

urbana das principais cidades, como: Recife, Salvador e São Luiz, se deu em áreas de

aterro de manguezais. Além disso, esse ambiente tem sido frequentemente tratado como

verdadeiro depósito de esgoto não tratado e lixo doméstico, industrial e hospitalar. Além

disso, houve uma quase total devastação de alguns manguezais nos estados do Rio Grande

do Norte e Ceará em consequência da expansão desgovernada da carcinocultura marinha

empresarial no final dos anos 1990. Esse processo condenou a população local que vivia

de atividades extrativistas no manguezal ao trabalho pesado e mal remunerado nas enormes

fazendas de camarão. No estado de Pernambuco, apesar haver algumas fazendas de

tamanho expressivo, a expansão da carcinocultura de deu de forma mais modesta e tardia,

talvez pelo fato do estado possuir controle ambiental mais rígido para investimentos

privados em áreas de domínio público por meio da ação conjunta da Agência Estadual de

Meio Ambiente (CPRH) e do IBAMA – que, além das duras normas restritivas, mantinha

uma máquina burocrática enferrujada e de difícil acesso nos anos 90 e início dos anos

2000.9 Dessa forma, o empresário capitalista investiu nos estados mais receptivos para a

atividade, como o Ceará e o Rio Grande do Norte, mas também na Bahia e Sergipe. Este

fato; tenha sido ele proposital ou não, acabou evitando a degradação do “modo de vida” de

várias comunidades em manguezais pernambucanos. Entretanto, os diversos estudos de

caso conduzidos em áreas de mangue revelam que nesses ambientes as mudanças sociais

tem sido aceleradas e que se dão no sentido de ameaça aos modos de vida tradicionais (

TEIXEIRA, 2008, RELATORIAS NACIONAIS...., 2008, SOUZA, 2009).

A partir dessas considerações cabe conduzir a proposta avaliação exploratória da

potencialidade das políticas públicas na promoção do desenvolvimento sustentável desses

povos e comunidades tradicionais.

3. METODOLOGIA

O estudo de campo foi conduzido na zona costeira de Pernambuco, que é estreita em se

comparando com outros estados da federação, correspondendo a uma faixa de 187 km de

extensão, mas que, no entanto comporta 44% da população do estado segundo dados do

Instituto Brasileiro de Geografia e estatística- BGE (2010). Certamente essa concentração

urbana exerce uma pressão sobre o principal bioma encontrado nessa região que é o

manguezal. Apesar de sua estreita extensão litorânea, Pernambuco possui 14 importantes

estuários, dentre eles o estuário do Rio Formoso no litoral Sul.

Na Mata Sul de Pernambuco (entre as coordenadas 8º27’27.11’’S, 34°58’59.25’’O e

8°54’50.31’’S, 35°09’12.41’’O)10

, pode-se identificar cinco importantes áreas estuarinas, a

saber: estuário do rio Maracaípe, estuário do rio Sirinháem, complexo estuarino do Rio

Formoso, estuário do rio Mamucaba e estuário do rio Una e a existência de 16

comunidades que apresentam características de populações costeiras tradicionais: Porto de

9 Recentemente passou por uma renovação de quadro de recursos humanos e implantou novo sistema online para

informações e licenciamentos 10 Segundo dados publicados no Diagnóstico Socioeconômico da Pesca Artesanal do Litoral de Pernambuco (LIRA,

2010), considerando os municípios de Ipojuca, Sirinhaém, Rio Formoso, Tamandaré, Barreiros e São José da Coroa

Grande.

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10

Galinhas, Salinas, Maracaípe, Serrambri, Agrovila (de Sirinhaém), Barra de Sirinhaém,

Santo Amaro, Vila de Sirinhaém, Vila de Aver o Mar, Rio Formoso, Siqueira (comunidade

quilombola de Rio Formoso), Tamandaré, Barreiros, Várzea do Una, Abreu do Una e São

José da Coroa Grande. Três dessas comunidades encontram-se integradas no complexo do

mangue do Rio Formoso: comunidade quilombola de Rio Formoso e comunidade de Rio

Formoso e Vila de A-ver- o- Mar, (Figura 1).

Nesse estuário em particular, podemos destacar como atividade produtiva característica

a dos catadores de caranguejo. O trabalho se restringe, assim, ao estudo do caso de Rio

Formoso, localizado no litoral Sul e inserido nas APAS de Guadalupe (estadual) e Costa

dos Corais (federal).

Figura 1 – Complexo estuarino do rio Formoso (PE) com localização das comunidades.

Fonte: Esquema gráfico (CASTRO, 2005); foto (Google MAPS).

Do ponto de vida de operacionalização metodológica partiu-se do referencial de estudo

de modo de vida (CHAMBERS, CONWAY, 1992, SCOONES, 1998, 2009). Esta

abordagem foi escolhida por permitir uma primeira asproximação à diversidade social

local. Quando toma-se o modo de vida como ponto de partida para investigação, observa-

se o conjunto de capacidades e os bens (incluindo tanto os recursos materiais e sociais)

acessados para assegurar a subsistência familiar.11

A Figura 2 mostra um esquema gráfico

que sintetiza o referencial do estudo de modos de vida.

11 Chambers e Conway (1991, p.1) definiram o termo “modos de vida sustentáveis” da seguinte forma: A livelihood

comprises people, their capabilities and their means of living, including food, income and assets. Tangible assets are

resources and stores, and intangible assets are claims and access.

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11

Figura 2: Modo de vida rural sustentável: um quadro para análises

Fonte: Scoones (1998) modificado por Castro (2011).

No estudo dos modos de vida seguimos a opção pela observação participante,

realizando visitas periódicas ao local no período de outubro de 2011 a janeiros de 2012, e

uma travessia nas pricipais comunidades ao longo do manguezal em Rio Formoso. A

observação participante é uma das técnicas mais utilizadas pelos pesquisadores na

abordagem qualitativa e consiste na inserção do pesquisador no interior do grupo

observado, tornando-se parte dele, interagindo por um período com os sujeitos, buscando

partilhar o seu cotidiano para sentir e perceber o que significa estar naquele contexto.

Adicionalmente, realizou-se um levantamento mais sistematico da diversidade social

atraves da realização de uma travessia com realização de entrevistas abertas. O trajeto

percorrido na travessia está representado na Figura 3.

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12

Figura 3 - Complexo estuarino do rio Formoso (PE) com localização da cidade de Rio Formoso e o

trajeto da travessia nas comunidades da Rua da Lama, Rua do Pescador e Levada.

Foto: Google MAPS.

4. APROXIMAÇÃO AOS MODOS DE VIDA EM RIO FORMOSO

O levantamento dos modos de vida através de travessia e entrevistas abertas se

iniciou na ponte que corta o rio Formoso na PE 60, logo após o trevo de acesso a PE 073,

sob o arco de boas vindas da cidade onde se pode ler: “Bem vindo a Rio Formoso – cidade

dos manguezais”.

Do ponto de vista ecológico, esse é um local de inerente transição entre um

ambiente de água totalmente doce ao ambiente salobro (característico do mangue). Nesse

ponto a água é totalmente doce (0 ppt de salinidade) durantes a maré baixa, e salobra nas

grandes marés altas (preamar) - características dos períodos de lua cheia e nova. A partir

desse ponto – que será considerado como o marco zero – foi feita uma caminhada no

sentido a foz, atravessando localidades, bairros, ruas, vilarejos e povoados que se

formaram nas margens e dentro do manguezal na área urbana e rural do município de Rio

Formoso (percurso ilustrado na Figura 3). Em Rio Formoso, alguns povoados, vilas ou

ruas foram construídos dentro do mangue, com evidente desmatamento e aterro do mesmo,

e onde podemos ainda verificar a descarga direta do esgoto domiciliar no leito do rio. No

entanto, nas entrevistas, sobretudo com os moradores mais antigos de Rio Formoso,

verificou-se que as comunidades de pescadores originalmente formadas nas localidades da

Levada e Siqueira (comunidade quilombola), não “invadiram” o mangue para construção

de moradias; no entanto, os novatos que chegam “desesperados” com suas famílias

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acabam se alojando em casas da taipa12

construídas em pequenos aglomerados que se

instalam nas beiras do mangue. A maioria nem sabe andar no mangue, mas consegue

sobreviver aqui (depoimento de um morador da Levada, Rio Formoso,PE).

A primeira localidade encontrada nesse percurso é a Rua da Lama, onde segundo

dados da Secretaria Municipal de Ação Social, vivem cerca de 500 famílias. Verificamos

que parte dela localiza-se em áreas de desmatamento e aterro do manguezal; sem

saneamento ou pavimentação adequada. As casas foram construídas de forma irregular,

sem qualquer perspectiva de urbanização mais elaborada; muitas delas utilizam-se do barro

vermelho (casas de taipa), e estão muito próximas umas das outras. Não há sistema de

saneamento no local; as casas mais próximas ao rio canalizam seus efluentes diretamente

para o leito do rio, as que estão mais afastadas possuem fossas sépticas para os dejetos

sanitários e o esgoto doméstico corre por canais abertos nos becos que servem de ruas

entre as casas. A Rua da Lama é constantemente atingida por enchentes no período

chuvoso; e tem registro de alto índice de criminalidade, com ocorrências de tráfico de

drogas, furtos e homicídios. Não é uma comunidade que tem a interação direta com o

manguezal como base de “reprodução social” dos moradores; porém, muitos moradores

das margens do rio têm na atividade pesqueira uma fonte complementar de alimento; sendo

algumas famílias mais vinculadas e dependentes do manguezal para própria sobrevivência.

Após a Rua da Lama encontramos a Rua dos Pescadores; um aglomerado que se

estabeleceu recentemente (a menos de 15 anos) nas margens do manguezal. Assim como

na Rua da Lama, as casas foram construídas de forma irregular em terrenos de propriedade

da União. Também não há sistemas de saneamento básico. São cerca de 30 casas

(famílias), onde cada casa tem em média cinco crianças com menos de 12 anos. As

famílias vivem quase que exclusivamente da pesca de crustáceos, mais especificamente do

caranguejo e siri, já que são espécies de mais fácil captura. Poucos moradores possuem

embarcação, pois não sabem como a construir, nem tampouco dominam a arte de

confecção de redes e outros apetrechos de pesca.Mesmo sem acesso aos conhecimentos

tradicionais que possuem outras comunidades próximas na região, foi no mangue que essas

famílias encontraram um meio de sobrevivência; fonte de alimento, trabalho e renda. Os

depoimentos são ilustrativos: “Aqui tem muito caranguejo e siri, essa é a nossa valia”

afirmou o Sr. Antônio Soares, morador da Rua do Pescador que nasceu e cresceu na Rua

da Lama e por falta de oportunidade de trabalho, procurou – e encontrou – no mangue uma

fonte de vida: “Agente não é pescador; pescador, pescador mesmo agente não é, mas

desde menino que todo mundo aqui aprende logo a pegar caranguejo e siri; porque

quando a fome apertava mesmo, era pro mangue que a gente corria”.

Na Rua do Pescador se estabeleceu uma pequena cadeia produtiva comercial em

torno do extrativismo. O dono do bar do lugarejo se responsabiliza pela comercialização do

caranguejo e siri capturados pela comunidade. O ponto de venda do caranguejo e siri fica

as margens da rodovia PE-60, a céu aberto, onde uma amostra do produto fica exposta

amarrada em tripés de madeira. O produto é vendido vivo, amarrado na chamada “corda de

caranguejo”, que é formada por dez unidades - caranguejos e siris amarrados uns aos

12 A casa de Taipa é um processo milenar de construção. Os Portugueses trouxeram-na para o Brasil, quando só havia as

ocas dos índios, e a difundiram de norte a sul do país. Tornou-se assim uma das manifestações mais tradicionais de nossa

arquitetura, e teve seu período de excelência durante o ciclo do ouro em cidades como Ouro Preto, Congonhas e

Diamantina. Hoje [...] relegada como técnica primitiva, desprezada não só pelas elites mas até mesmo pelas camadas

populares, este tipo de construção ficou ligado à miséria e traz embutido um caráter de moradia provisória, um abrigo

passageiro contra a opressão da natureza (http://www.csaarquitetura.com.br/index3.htm).

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outros com “cordas” confeccionadas em fibra de bananeira. As cordas de caranguejo são

vendidas ao atravessador (dono do bar do lugarejo) ao valor de R$ 6,00, que revende a

mesma corda a menos de 200 metros dali, no “seu” ponto, nas margens da rodovia PE-060,

ao preço de R$ 10,00, R$ 12,00 ou até R$ 30,00 a corda. O sentimento de “abandono”

pelas políticas públicas aparece em falas como: “Aqui nós somos esquecidos, ninguém

lembra que estamos aqui, só chegam aqui na época de eleição. Era bom que tivesse aqui

uns cursos pra ensinar a gente a fazer rede e barco, mas nem isso chega aqui; o presidente

da colônia que podia tá ajudando a gente, agora virou vereador e não tem mais tempo pra

nada. Se a gente tivesse uns barquinhos, umas canoinhas, a gente podia pescar outras

coisas também e aproveitar mais a pescaria, porque a gente atravessa o mangue andando

e perde muito o tempo da maré” desabafou o Sr Antônio Soares.

Como se sabe, cada curso de maré dura seis horas; assim ocorrem quatro marés por

dia, duas marés enchentes e duas vazantes. A pesca do caranguejo é realizada com a maré

baixa, período em que a lama do mangue fica exposta entre as três horas finais da maré

vazante e três horas iniciais da maré enchente. Assim, um pequeno canal do mangue que

chega até a rua do Pescador é o meio de acesso ao mangue, seja a pé ou em pequenas

embarcações (canoas) na maré alta. Nessa época do ano (outubro e novembro), apesar de

ter muito caranguejo, ele não está bom de ser capturado, segundo informações do Sr

Antônio; pois ele está “de leite”, ou seja, com a carne leitosa. Essa é uma característica que

o caranguejo apresenta em sua época de reprodução, quando se diz que o caranguejo está

de andada, visto que ele passa a ser expor mais fora da toca, certamente em busca de pares

para a fecundação.

Saindo da Rua do Pescador, encontra-se o Sr Caetano, o dono do bar que estava em

seu ponto de comercialização de caranguejo. O mesmo confirmou as informações dadas

pelo Sr Antônio e completou que contrata um adolescente que fica no ponto vendendo as

cordas de caranguejo, e que paga pelo serviço R$ 2,00 por cada corda comercializada.

Segundo ele há boa procura pelo produto todos os dias, e em qualquer época do ano;

porém é nos fins de semana e feriados que a demanda se sobressai. “Muitos fregueses

querem comprar tudo, mas ai a gente perde os outros fregueses que sempre param aqui,

tem que agradar todo mundo né?” falou o comerciante. No verão, quando o movimento é

maior, o comerciante oferece degustação – “A gente sabe que não pode fazer isso na beira

da estrada, mas a gente deixa bem guardado, e oferece ao freguês quando ele insiste em

saber se o bicho tá bom mesmo”. É importante comentar que Rio Formoso fica em um

ponto estratégico para esse tipo de mercado, visto que a cidade se localiza no meio de dois

grandes polos de turismo praieiro da região, a 27 km Sul ficam as praias de Tamandaré e

Carneiros, de forma que todo fluxo que vem de Recife passa por esse ponto; e a 40 km

Norte fica o acesso a Porto de Galinhas, de maneira que todos que vêm de Maceió de do

interior do Estado passam por esse ponto.

Seguindo a travessia, encontra-se a Rua do Hospital, onde fica o Hospital da cidade

(às margens do rio Formoso, e do mangue). Nessa localidade já encontramos um grupo de

moradores que tem um modo de vida mais estritamente ligado à dinâmica do mangue;

muitos deles dominam as técnicas de construção e manutenção de pequenas embarcações,

confecções de redes e outros apetrechos, e conhecem- de fato- o mundo do mangue.

Muitos são pescadores profissionais, com o registro geral de pescador do Ministério da

Pesca e Aquicultura; e muitos vivem no, e do mangue, explorando adicionalmente o

turismo fluvial com os barcos adaptados para passeios e transporte de moradores e turistas

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para as praias da região. Nessa localidade o mangue é mais denso e o rio já apresenta uma

melhor condição de navegabilidade para embarcações de maior porte. Aqui funcionava o

porto da cidade, ainda no período colonial, sendo escoado pelo rio Formoso (antes

Iobuguaçu) grande quantidade de madeira (Pau Brasil). Atualmente, apesar da

precariedade da infra-estrutura de apoio, é nessa localidade o principal ponto de embarque

de turistas.

Por fim encontra-se Levada, onde se encontra a maior concentração de pescadores,

e de outras categorias profissionais que tem no mangue seu principal meio de vida. De

acordo com o Sr Joelington, morador de Levada, hoje boa parte dos moradores da

localidade que vivem do mangue são barqueiros durante o verão, ou seja, pescadores que

param as atividades de exploração do pescado e se dedicam exclusivamente as atividades

de turismo, oferecendo passeios e transporte fluvial; e alguns são apenas barqueiros. No

entanto, nem todos conseguiram barcos com infra-estrutura adequada para esse tipo de

serviço, e a capitania dos portos passou a fiscalizar a atividade com mais rigor em função

da dimensão que ela tomou na região nos últimos 10 anos. Só na Levada são 94

embarcações registradas na capitania dos portos; e são cerca de 250 barqueiros registrados

no município segundo informações do morador, que também é barqueiro. Logo se percebe

que a atividade de barqueiro atrai com mais facilidade o interesse dos jovens da

comunidade. O Joelington logo se antecipou em esclarecer que não é pescador; ”sou

barqueiro, trabalho com turismo ecológico”, afirmou com orgulho.

5. CONSIDERAÇÕES SOBRE A RELAÇÃO COM O MANGUE COMO BASE DE

SUBSISTENCIA E IDENTIDADE

A percorrida de terreno e visita às comunidades realizadas na foz do Rio Formoso

aponta para a diversidade de estratégias de sobrevivência acessadas pelas famílias que ali

residem. Revela-se uma diversidade de “ocupações”, que se mostram condicionadas às

capacidades, recursos e aos contextos sociais onde os grupos se encontram.

As populações que se organizaram de forma coletiva às margens das praias, estuários e

manguezais no Brasil, e que tiram desse meio ambiente o seu sustento e adaptam sua

estratégia de vida à ele são, talvez pela maioria das pessoas e suas instituições,

denominadas convencionalmente de pescadores; ou ainda, pra ser mais específico, de

pescadores artesanais. Mas pode haver uma outra designação local em função da atividade

especifica exercida no âmbito da pesca artesanal, onde encontramos: os barqueiros,

lagosteiros, marisqueiras, catadores (de caranguejo, siri, sururu, marisco, mexilhão, unha-

de-velho, aratu, guaiamum, ostra, tatuí, etc.), pescadores do mar de fora, pescadores do

mar de dentro, pescadores estuarinos, dentre outras modalidades. Apesar da grande

maioria da população dessas comunidades estar inserida em uma dessas denominações em

função de sua principal atividade produtiva corresponder ao extrativismo na pesca, há

também àqueles que praticam outras atividades produtivas/econômicas não extrativistas,

mas voltadas ao mundo das marés, como é o caso por exemplo, dos (as) artesãos, catadores

de coco-de-praia - típicos do litoral Norte de Pernambuco, os construtores artesanais de

pequenas e médias embarcações de pesca e recreação, donos de bares e pequenos

restaurantes locais, vendedores ambulantes de artigos de praia, rezadeiras, parteiras,

ambientalistas, líderes comunitários e religiosos, capoeiristas, pintores e desenhistas, e

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guias de turismo ecológico; além de outras atividades como pedreiros, marceneiros,

agentes de saúde, professores, instrutores e condutores. Todas essas categorias de

trabalhadores foram identificadas em visitas realizadas entre outubro de 2011 e janeiros de

2012 em comunidades do litoral Sul e Norte de Pernambuco.

Além da diversidade de ocupações, o caso estudado no litoral sul de Pernambuco

evidencia, sobretudo, que a diluição das fronteiras entre o rural e urbano pela facilidade de

comunicação e como a presença urbana no rural (com o turismo, por exemplo) torna a

pluriatividade um fato. Num quadro de diversificação das estratégias econômicas das

famílias se insere o extrativismo dos recursos do mangue. Ou seja, no conjunto das

estratégias de sobrevivência, ganha destaque o extrativismo de recursos naturais tanto

como base econômica de sustentação da família, quanto para geração de renda

complementar.

Tanto dados histórico-demográficos, as observações de campo quanto as condições de

infra-estrutura e os depoimentos de entrevistados revelam que uma parte da população

local recorreu recentemente ao mangue para buscar sua subsistência por falta de

alternativa, reforçando as representações de Josué de Castro do mangue como espaço de

vida para os excluídos. Deste grupo fazem parte famílias que recorrem ocasionalmente ou

sistematicamente ao mangue, mas que detém limitado conhecimento técnico e de meios na

exploração desse ambiente. Essa realidade contrasta com aquela de comunidades que se

organizaram há mais tempo de forma coletiva às margens das praias, estuários e

manguezais e que tiram desse meio ambiente o seu sustento e adaptam sua estratégia de

vida à ele. Nesses casos o mangue exerce um poder na vida dessas pessoas, assumindo um

papel que vai além de um meio de sobrevivência. Na visão da população mais tradicional

do manguezal do rio Formoso, como na Levada, o mangue é a casa, e a cidade o quintal.

Há um sentimento de pertencimento e resignação: “eu preciso de pouco pra ser feliz”. Um

“pouco” que na verdade é “tanto” que não há meios matemáticos ou estatísticos de avaliar

sua grandeza, ao não ser sentindo-a de perto. Com isso entende-se o que significa a

lógica de ajuda mútua ou de solidariedade do sistema de reciprocidade descrita por Eric

Sabourin (SABOURIN, 2009), em que esse processo “não visa a produção de valores de

uso ou de bens comuns a compartilhar, e sim a criação de ser, de vínculo social.13

De qualquer modo, mais do que uma dicotomia entre situações extremas, parece

predominar um “continuum” ao longo do estuário do Rio Formoso onde a diferenciação

das estratégias das famílias – e a forma de vinculação com o mangue- se faz segundo os

ambientes, que são variados quanto a recursos de flora e fauna (em qualidade e quantidade)

13 Outro aspecto a destacar quanto ao modo de vida refere-se a importância das relações de reciprocidade para essas

populações. Fazendo uma comparação com as características das comunidades camponesas descritas por Eric Sabourin

(2009) no sertão nordestino, podemos traçar um paralelo que descreva as comunidades tradicionais extrativistas na costa

de Pernambuco. O autor onde o mesmo destaca três características dos camponeses sertanejos: o parentesco, a localidade

e a reciprocidade; além da hospitalidade como uma das primeiras formas universais da reciprocidade. Nesse grupo

também se pode perceber as seis características da agricultura camponesa moderna descrita por Sabourin (2009) com

base em Ploeg (2006, 2008, apud SABOURIN, 2009): -A autonomia relativa ligada a uma dependência parcial, por um

lado, de mercados diversificados e, por outro, de recursos naturais escassos; esta situação de tensão obriga o camponês a

buscar uma eficiência técnica, enquanto deve preservar a qualidade de recursos naturais limitados; -A prioridade aos

recursos em trabalho (familiar) sobre os recursos em capital e, assim, à intensificação do trabalho; -A unidade orgânica

entre os recursos sociais e materiais: a produção e seu uso são governados por regras oriundas do patrimônio cultural e

por relações primordiais de gênero, parentesco e reciprocidade; -O caráter central do trabalho familiar e interfamiliar

(comunitário), tanto em termos de investimentos quanto de inovações adaptadas às realidades sociais; -A relação de

autonomia parcial perante mercados e, em particular, o mercado capitalista -A criação de valor agregado e de empregos

produtivos que diferenciem a unidade de produção camponesa da empresa agrícola capitalista.

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de forma que o que vai ser explorado por cada comunidade e família depende de sua

localização, acesso aos recursos (institucionalidade como direitos de propriedade e acesso,

por exemplo), bem como da disponibilidade de meios (embarcações, por exemplo) e

“conhecimentos técnicos” (de exploração de recursos). Tais observações indicam a

pertinência das abordagens de “modo de vida” para o entendimento da diversidade de

condições e estratégias encontradas no local.

De qualquer modo o mangue mostra-se como fonte de recursos tanto para assegurar

alimentação de familias em condição de pobreza quanto para manutenção do modo de vida

de populações tradicionais. Se observar-se a questao da sustentabilidade revela-se, numa

primeira análise, a permanente ameaça externa à base de recursos naturais da qual depende

essa população. Ao reconhecerem a importância do manguezal, essa população tem

reivindicado e protestado frente às autoridades locais e a sociedade em geral pela

preservação desses ambientes, bem como pelo direito de exploração prioritária e

sustentável de seus recursos naturais. Nesse contexto podemos citar o movimento dos

pescadores de Rio Formoso entre o período de 2001 a 2005, no litoral Sul, frente ao

Ministério Público e ao poder legislativo local pela adequação do sistema de saneamento

na cidade de Rio Formoso; sistema esse que não comportava o fluxo da rede municipal, o

que invariavelmente resultava em grandes descargas de matéria orgânica não tratada no

estuário, causando impactos ambientais de grandes proporções. A população que vive em

função do manguezal então passou a reivindicar uma intervenção mais forte do poder

público através dos meios legais convencionais (Ministério Público) e Câmara de

Vereadores e de manifestações pacíficas, como passeatas e barqueadas, mas também

adotando ações mais radicais, como o fechamento parcial da rodovia PE-60 em

decorrência da inoperância do poder público com relação às reinvindicações apresentadas.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa esteve motivada pela intenção de realizar uma avaliação exploratória da

potencialidade das políticas públicas de desenvolvimento sustentável de povos e

comunidades tradicionais, pois a revisão bibliográfica indicou que vem sendo enfrentadas

dificuldades de identificar quem são os beneficiários (legítimos) dos novos direitos.

Adams (2000) analisando o caso dos caiçaras, por exemplo, coloca que, em geral, os

estereótipos apresentam as comunidades tradicionais como dependentes de um número

limitado de recursos extrativistas, tradicionais, isoladas, auto-suficientes, primitivas e

dotadas de um referencial cosmológico muito particular e que estas características

dificilmente são encontradas nos grupos estudados empiricamente.

O grupo que tratamos nesse texto foi aquele especificamente indexado ao ambiente

manguezal no estuário do Rio Formoso, em Pernambuco, seja na sua vida cotidiana,

produtiva e/ou afetiva. Um grupo bastante expressivo no litoral nordestino do Brasil, onde

se encontram uma das maiores extensões de manguezal do mundo.

O fato mais evidente nos levantamentos empíricos realizados nessa pesquisa é que os

grupos que utilizam o mangue são diversos e mantém graus diferenciados de vinculação e

dependência com ele. A utilização de critérios restritivos na identificação do grupo

potencialmente beneficiário das políticas públicas orientadas ao desenvolvimento

sustentável dos povos e comunidades tradicionais, nesse caso, possivelmente excluiria do

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acesso aos recursos um número considerável de famílias que se instalaram recentemente na

região e que não compartilha do saber acumulado sobre sua exploração, mas que tem forte

dependência econômica do mangue.

Por outro lado, poderiam ser considerados beneficiários os grupos que tem ocupação

histórica estável desse território e compartilha do saber acumulado sobre sua exploração.

Entretanto, esses grupos podem não se auto-identificar como “povos do mangue” uma vez

que, como observado, muitos tem reagido criativamente ao contexto econômico passando a

desenvolver novas atividades e “identidades”. Assim, embora se reconheça a propensão a

formação de identidade coletiva14 – como povo do mangue-, ela está constantemente

ameaçada seja pelo avanço de ocupações não tradicionais (que acompanham turismo –

introduzindo modos de vidas diferenciados) seja pelo risco de comprometimento da base

de recursos naturais que sustenta as populações estabelecidas.

As tentativas historicamente implementadas para tornar essa população em um

grupo economicamente viável são diversas: modernização da frota pesqueira, aquisição de

tecnologias, investimentos em infra-estrutura de armazenamento e comercialização de

pescado, cursos profissionalizantes em diversas áreas de conhecimentos, etc.. Essa riqueza

de investidas e possibilidades se traduz em dois cenários possíveis: por um lado temos uma

ampliação de possibilidades de fontes de recursos e financiamentos, ações e estratégias

com o objetivo de melhoria geral das condições de vida dessa população; mas por outro

lado, esses “agentes de desenvolvimento” ao atuarem de forma isolada, sem integração,

remetem ao enfraquecimento de representatividade desse grupo, ou desse modo de vida,

que ora é considerado como uma comunidade tradicional através do Ministério do

Desenvolvimento Social (MDS), ora é enquadrado como categoria trabalhista pelo

Ministério do Trabalho e pelo Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA)15

, ou ainda se

desintegra ao ser incluído como agricultor familiar pelo Ministério do Desenvolvimento

Agrário (MDA)16

. Entretanto, nesses diferentes casos exemplificados perde-se a dimensão

sócio-cultural do homem num contexto em que as autoridades brasileiras, e a sociedade em

geral, continuam menosprezando tanto o ecossistema, quanto as pessoas que vivem dele, e

nele. Nesse contexto parece adequado considerar a singularidade e dinâmica dos processos

de etnogênese enquanto balizadores da compreensão das realidades de desenvolvimento

com valorização cultural no caso das comunidades e povos tradicionais.

14 Portanto a visão de identidades socioambientais, sobretudo de identidade que adotamos aqui se refere ao contexto em

que o perfil cultural das populações é construído, com base no uso de territórios e recursos naturais como condição

basilar para a reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica do grupo – como citado no texto do decreto de

lei sobre as Comunidades Tradicionais. Porém, não esquecendo que o conceito de identidade vai além de uma

representação de grupo em função de aspectos culturais e/ou tradicionais. Segundo Cohen-Scali e Guichard (2008): A

estrutura de identidade é o meio pelo qual as funções e os valores que definem a identidade são organizados. É o "filtro"

através do qual cada um recebe, mantém, manipula, avalia suas experiências de vida diferentes: Este filtro permite a

todos encontrar um sentido à sua existência. Estas estruturas aparecem sucessivamente. Eles formam uma seqüência de

desenvolvimento - a partir de uma identidade forclose a uma identidade accomplie através de uma moratória – traduzindo

formas mais complexas e diferenciadas para organizar os elementos de identidade. (COHEN-SCALI E GUICHARD,

2008, p.7, tradução livre) 15 A atividade produtiva pesqueira foi regulamentada no Brasil, nas últimas cinco décadas, pelo Decreto-lei n.221/1967

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AGRADECIMENTOS:

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)

Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuaria (Embrapa)

Instituto Agronomico de Pernambuco (IPA)

Centre de Coopération Internationale en Recherche Agronomique pour le Développement

(CIRAD)