setor 27 - ameaÇa nuclear
DESCRIPTION
Um laboratório secreto no interior de Goiás é invadido por militares e seu principal cientista foge, levando consigo a chave para utilização de uma tecnologia cobiçada em todo o mundo. Muita ação e mistério em um thriller capaz de prender o leitor da primeira até a última páginaTRANSCRIPT
Daniel Pedrosa
Setor 27Ameaça Nuclear
S ã o P a u l o 2012
Este livro é uma obra de ficção. A participação de entidades
e personagens históricos, além de suas respectivas citações, são
criações da imaginação do autor e não podem ser comprovadas
ou encontradas em qualquer registro oficial. Quaisquer seme-
lhanças com eventos reais, organizações ou pessoas também são
descrições totalmente coincidentes.
13
O professor Montenegro corria pelo túnel úmido e escorregadio proje-
tado como rota de fuga para o laboratório de pesquisas nucleares sem sequer
imaginar que os homens que vira através da câmera de segurança poucos
minutos antes já estavam praticamente em seu encalço. Mesmo que conse-
guisse escapar com vida de seus perseguidores, o cientista sabia em seu íntimo
que jamais conseguiria esquecer a cena presenciada através da pequena tela
em preto e branco do sistema fechado de TV. Para sua sorte, após o término
do turno normal de trabalho, decidira permanecer envolvido com suas pes-
quisas, enquanto os colegas desfrutavam de uma pequena pausa no refei-
tório principal do primeiro pavimento. Exatamente no lugar onde foram
atacados. Era um procedimento comum revezarem pausas, já que sempre
estendiam o trabalho até a madrugada. Além de fortalecer o relacionamento
entre os cientistas, a prática acabava por minimizar o incômodo caracterís-
tico de quem passava horas trancado em um laboratório sem janelas, portas,
ou qualquer outra ligação com o mundo exterior. Fora quase sempre assim:
uma rotina monótona e estafante. Mas não naquela noite. Pelo sistema inte-
grado de segurança – uma inovação presente em todas as dependências do
centro de pesquisas – o professor pôde ver quando homens encapuzados
entraram armados com fuzis e baionetas. Pareciam soldados envolvidos em
um esquema estratégico de guerra. Chegaram silenciosos e, de forma banal,
tiraram a vida dos pesquisadores. Uma ação tão rápida que se não estivesse
com os olhos em frente ao monitor no exato momento do ocorrido, jamais
teria percebido a tempo.
Prólogo
14
E este era o motivo pelo qual corria através daquele caminho. Para
salvar sua vida e proteger seu mais importante segredo.
O túnel, com mais de quinhentos metros de comprimento e uma
iluminação precária, composta apenas por poucos e fracos pontos de luz,
era íngreme e dificultava a visibilidade. Perceber a presença de outras
pessoas, mesmo que estivessem a uma distância considerada próxima,
tornava-se difícil e por isso cada segundo era realmente precioso. Suas
pernas fracas, pouco acostumadas a esforços daquele tipo, já ameaçavam
ceder diante dos vários metros de subida que surgiam à sua frente. Os três
andares que separavam o laboratório da superfície se mostravam agora
ainda mais profundos do que quando chegara ao local pela primeira vez.
Já fazia sete anos desde que resolvera se dedicar às pesquisas milita-
res naquela unidade. Não parecia grande coisa de início. Talvez apenas um
delírio governamental motivado pela tendência mundial em desenvolver
energias alternativas como aquela. Quando foi convidado a integrar a
equipe, ninguém lhe havia informado ao certo o que pretendiam desenvol-
ver ou criar. Agora, anos depois, sabia até onde haviam chegado. Era algo
muito além do que um dia podiam imaginar, e muito além do que podiam
se permitir. As pesquisas, inicialmente voltadas ao desenvolvimento da
energia nuclear, haviam evoluído por dois caminhos: o primeiro se refletia
no sucesso total do projeto, naquilo que realmente estavam procurando, a
tecnologia de refinamento de urânio, um conhecimento até então desen-
volvido por pouquíssimos países ao redor do mundo – um benefício incal-
culável para a economia e a política da nação; e o segundo, em uma ameaça
sem precedentes. Algo que por certo despertaria a ganância de qualquer
um que soubesse de sua existência.
E foi exatamente o que aconteceu. Sem que ele soubesse, um dos pesqui-
sadores que integravam sua equipe comunicara a descoberta a uma comissão
de auditoria durante a visita ocorrida na última semana. Inocentemente, o
homem selara seu destino, e o destino de todos aqueles envolvidos no traba-
lho. Alguns militares sabiam que aquele grupo de cientistas jamais concorda-
ria com suas intenções e por isso haviam organizado a investida.
Na verdade, aqueles homens gananciosos estavam certos sobre suas
reações. No momento mais relevante de sua vida, e frente a algumas de
15
suas mais importantes descobertas, o professor de quarenta e sete anos
decidira agir com prudência e respeito. Não desejava ser conhecido
como alguém responsável por invenções capazes de ferir a humanidade.
Já ouvira no passado histórias sobre grandes decepções. Relatos sobre
gênios como Santos Dumont, que no final da vida se desesperou ao per-
ceber o poder destrutivo de sua invenção: Mas a guerra veio, apoderou-se
de nossos trabalhos e, com todos os seus horrores, aterrorizou a humani-
dade. Por um momento, as palavras do inventor vagaram tristes por sua
memória. Não queria tais lembranças para si. Não daquela forma. Por
isso carregava em sua mala o que restara de sua pesquisa. Papéis, discos
de dados e uma pequena e perigosa caixa de chumbo.
Assustado, mas sem se abater por seus pensamentos, o professor jun-
tou a mala sobre o peito e continuou avançando. Por mais que pudesse
conhecer aquele caminho, saber de sua existência através dos incansá-
veis treinamentos de evacuação, jamais se imaginara fugindo por ali. Não
por aquele motivo. O forte movimento que imprimia a seu corpo fez
com que derrubasse alguns dos papéis. Agachou para pegá-los e por um
breve momento pôde ouvir as passadas rápidas daqueles que o perse-
guiam através do túnel; estavam próximos, não podia perder mais tempo.
Levantou-se e continuou a correr o mais rápido que podia.
Números decrescentes, pintados em uma das paredes do corredor,
indicavam a distância que o separava da saída. O professor já havia passado
pela indicação de cem metros fazia alguns segundos, e sabia que em breve
chegaria ao galpão de isolamento. Tentava formular a melhor estratégia de
fuga, o melhor caminho a seguir, mas pensar se tornara difícil. Sabia que
os carros de fuga tinham combustível suficiente para duzentos e cinquenta
quilômetros; era pouco, mas o suficiente. Precisava chegar a uma cidade de
grande porte. Um lugar onde pudesse se misturar à multidão e desaparecer
por uns tempos. Era o que deveria fazer, até que a poeira baixasse e ele con-
seguisse uma brecha para se afastar o bastante do seu algoz.
Chegou à frente de uma célula de vidro, uma caixa transparente capaz
de reter qualquer radiação proveniente de vazamentos existentes no labo-
ratório. Um trabalho notável de engenharia, equipado com os mais moder-
nos sistemas de monitoramento. O professor entrou e imediatamente
16
fechou a porta. Um potente sensor, preso ao mecanismo de abertura, só
permitiria aos refugiados abrir a fechadura na total ausência de contami-
nações por radiação; era um mecanismo de segurança, criado para garantir
que a contaminação não saísse do laboratório. O professor acionou o botão
de varredura e o som semelhante ao sopro de um forte ventilador deu
início ao processo que durava cerca de quinze segundos. Ao fim daquele
tempo, uma espessa porta de aço liberaria seu acesso ao mundo exterior. O
desespero que o consumia trazia junto uma sensação de que aquela espera
seguiria pela eternidade.
Porém, exatamente dentro do tempo estimado, um sinal sonoro
indicou o fim do processo de varredura e a trinca automática liberou o
acesso ao armazém.
Automaticamente todas as luzes se acenderam. O armazém de quase
três metros de altura, vinte de comprimento e dez de largura surgiu diante
dele. O lugar abrigava vários recursos necessários para fuga, todos disponí-
veis e preparados para eventuais emergências. Dois jipes, roupas, medica-
mentos, mantimentos, mapas, rádios e procedimentos diversos poderiam
ser encontrados no interior da construção. Montenegro seguiu até um dos
armários, pegou um molho de chaves, deixou sua mala sobre o capô de um
dos jipes e seguiu até uma grande porta dupla que protegia o local. Abriu
o cadeado e arrastando uma das portas sentiu a brisa da noite tocar seu
rosto. O céu estava repleto de estrelas e algumas cigarras cantavam à luz da
lua; era uma noite perfeita para caminhar, mas péssima para acobertar uma
fuga. Mesmo cansado, o professor movimentou a pesada porta até que ela
se abrisse por completo.
De repente, o sopro do mecanismo de varredura iniciou novamente
seu ciclo de trabalho. Diferentemente de antes, o professor desejou que
o tempo excedesse o planejado. Rapidamente, correu até um dos jipes,
abriu o capô e retirou alguns fios do motor, pois não queria deixar para
seus perseguidores recursos para que o seguissem. Pegou sua mala sobre
o capô do outro jipe, abriu a porta e entrou. O som das trancas abrindo
indicava que seu tempo havia se esgotado. Sem perder nem mais um
segundo, ligou o motor. Dois soldados surgiram e, acompanhando o
17
ronco forte do veículo, perceberam rapidamente o paradeiro do fugitivo.
Armaram seus fuzis e dispararam à vontade.
O som dos vidros se quebrando e os estilhaços que atingiam o pro-
fessor formavam uma cena assustadora. O professor engatou a marcha
do jipe e, abaixado sob o painel, tentou partir em direção à porta. Aos
solavancos, o veículo seguiu em uma curva fechada à esquerda ras-
pando a lateral da porta no batente da entrada e seguiu em direção a
uma pequena estrada. O professor levantou o corpo. Precisava enxergar
o caminho para que pudesse seguir em frente. Mas sua vida ainda corria
perigo. Em menos de três segundos, uma chuva de balas voltou a atingir
o veículo. Os homens, parados em frente ao armazém, disparavam na
direção do jipe que sumia na escuridão. Antes que Montenegro pudesse
se considerar livre, um dos projéteis disparados pelos fuzis atravessou a
lataria traseira do jipe, venceu a resistência dos finos bancos de tecido e
atingiu suas costas, na altura do abdômen. O professor se curvou encos-
tando o antebraço no ferimento e seguiu em direção à cidade.
Em frente à entrada do galpão, os soldados observavam sua fuga:
– Me passe o rádio – disse um deles.
O mais novo dos dois pegou o aparelho que carregava preso à cintura
e o entregou ao outro homem:
– Comando? – disse ele levando o aparelho até o rosto.
– Na escuta – respondeu uma voz grave.
– Um deles conseguiu escapar.
– Como, ‘escapar’? – retrucou o homem. – Esta ação não foi autori-
zada e, por isso, não pode haver sobreviventes. Eles eram apenas cientis-
tas, deveriam ter sido eliminados, conforme ordens.
– Acho que ele descobriu quando chegamos, fugiu por uma das rotas
de emergência e está seguindo em direção à capital. Acho que consegui-
mos feri-lo, não deve fugir por muito tempo; teremos que colocar uma
patrulha para interceptá-lo no final da rodovia.
– Tudo bem. Pegue o que encontrar e lacre o local. Vou providenciar
a patrulha. Em que carro ele está?
18
– Em um jipe militar. Os vidros estão quebrados e a lataria está per-
furada por tiros de fuzil, vai ser fácil encontrá-lo.
– Ok! Acabem com o que foram fazer e voltem. Eu vou cuidar do
fugitivo.
Em poucos minutos o professor já havia deixado a pequena estrada
de terra batida que levava às dependências do laboratório e seguia em
direção à cidade. Uma mancha escura de sangue ocupava grande parte
do avental branco que cobria sua roupa. Seu rosto transpirava, mas seu
corpo parecia frio como mármore. Ele sabia que sua fuga havia falhado.
Os soldados haviam conseguido o que queriam e, por certo, ele não sobre-
viveria além daquele dia. As glórias, o reconhecimento nacional, o legado
acadêmico, tudo o que imaginava para si até aquele momento parecia
cada vez mais distante. Triste, o homem imaginava o futuro que ajudou
a construir, sem a lembrança de sua história. Lágrimas desciam por seu
rosto e seu coração; angustiado, já lamentava pelo que estava por vir.
Mas nada lhe faria desistir da missão que criara para si no exato ins-
tante em que deixara o laboratório. Precisava evitar que tudo o que cons-
truíra até aquele momento chegasse às mãos daqueles homens. Ao fim,
este se tornara seu maior objetivo. Para isso, tinha um último trunfo: um
obstáculo que os afastaria daquilo que despertara suas ambições. Mesmo
sob a pressão de, antes de sair do laboratório, tê-los visto assassinar seus
amigos, Montenegro conseguira esconder grande parte do que poderia
ser usado por eles como um caminho para o resultado de suas pesqui-
sas. Escondera quase todo o seu trabalho em um lugar onde somente ele
e os homens que haviam sido mortos poderiam encontrar. Aquela era
sua segurança, um esconderijo especial, algo que haviam projetado nos
últimos dois anos para situações deste tipo. Sua garantia. E mesmo que
encontrassem o esconderijo, de nada lhes serviria, agora levava consigo
a chave para este segredo, um enigma digno de um grande estudioso,
um de seus maiores orgulhos. Por isso precisava tirá-la dali e, de alguma
forma, ocultá-la de seus perseguidores.
O jipe em alta velocidade deslizou pelo acostamento de terra da BR-060,
levantando uma nuvem de poeira vermelha característica da região. Os
19
vinte e dois quilômetros que separavam o laboratório da capital goiana
pareciam mais distantes do que de costume. Os motoristas dos poucos car-
ros que passavam pela pista oposta se assustavam com o dançar do veículo
que parecia dirigido por um bêbado. O professor Montenegro cambaleava
sobre o volante, tentando se manter na estrada, em busca da única pessoa
em quem confiava.
Goiânia havia crescido muito desde que chegara. Uma cidade promis-
sora que havia dobrado seu PIB nos últimos dez anos e rumava segura a
uma participação mais ativa no cenário nacional. Em pouco tempo dupli-
cara seus rebanhos, triplicara suas colheitas, e isso se refletia nas novas ruas
e novas construções. Era nítido que a marcha do progresso estava chegando
ao estado. No início, o professor ansiava pelo dia em que tivesse tempo de
conhecer os projetos para seu futuro, mas com o trabalho e todo o resul-
tado que havia encontrado, como muitas outras coisas, era algo em que
deixara de pensar.
Abandonou a BR-060 em direção ao centro antigo da cidade; lá con-
seguiria encontrar quem procurava: um amigo que o ajudaria em seu
objetivo. Seguiu na avenida Anhanguera até próximo ao Bosque dos
Buritis, entrando em uma pequena rua repleta de árvores. Diminuiu a
velocidade e parou em frente a uma casa antiga. Desceu do carro com a
pequena caixa nas mãos. Um portão baixo, com pouco mais de um metro
de altura, protegia o quintal feito de ladrilhos. Montenegro transpôs a
entrada, deu uma volta pela casa e parou em frente à porta da cozinha.
Antes que pudesse gritar por ajuda, um homem baixo, magro e moreno
veio assustado ao seu encontro:
– Montenegro, o que aconteceu? – perguntou.
– Olá, Augusto! Há quanto tempo...
– Quem fez isso? – insistiu o homem que, amparando-o, tentava
mantê-lo de pé. Mas, percebendo que seu esforço era vão, carregou-o
para dentro da casa e o sentou numa cadeira na cozinha.
– Preciso de sua ajuda, amigo – falou Montenegro com a voz entre-
cortada.
– O que foi?
20
– Você tem que guardar isto – disse, entregando-lhe a caixa. – Precisa
escondê-la de todos. Não deve entregá-la a ninguém. – Sua voz rouca afli-
gia o amigo. – Preciso que me prometa que não vai entregá-la a ninguém.
– Claro, Montenegro! – respondeu o homem.
– Não! Preciso que me prometa, pela nossa amizade. Preciso que
me prometa.
– Eu prometo! – repetiu Augusto.
– Ótimo, agora eu tenho que ir.
– Como? Aonde você vai assim? – perguntou Augusto, assustado
com a rapidez com que tudo acontecia. Sabia da natureza do trabalho do
amigo, mas não acreditava que um dia algo como aquilo pudesse aconte-
cer. – Você precisa ir a um hospital!
– Não! Eu não posso arriscar que eles venham até aqui, tenho que
atraí-los para outro lugar, longe desta caixa.
– Mas, Montenegro...
– Augusto – respondeu o professor segurando seu braço –, não posso
mais mudar meu destino, mas posso evitar que encontrem o que fiz, e
para isso preciso de sua ajuda. Por favor, me deixe sair, enquanto ainda
tenho força para seguir em frente. Eu não tenho muito tempo.
Montenegro se levantou e atravessou a sala. Augusto o acompanhou
até o jipe sem acreditar no que estava acontecendo. A razão pedia para
que ele o segurasse, mas uma sensação mais forte lhe dizia para confiar.
Mesmo pressentindo que aquele seria seu último encontro com o amigo,
o homem preferiu deixar que ele se retirasse.
O professor entrou no jipe e, mesmo muito ferido, seguiu em direção
à estrada. Ouvira no rádio a comunicação sobre uma barreira montada
para prendê-lo e rumou decidido em sua direção. Sabia que seguir aquele
caminho seria seu fim, mas entendia que era a única forma de desviar
aqueles homens de seu verdadeiro objetivo. Estava decidido.
Era terça-feira, 11 de junho de 1978.
21
Capítulo Um
o JulgAmento
Enquanto seguia em direção ao seu primeiro objetivo, Cardoso relem-
brava o motivo pelo qual aceitara continuar naquela missão. Dentre todos
os integrantes de sua equipe, ele era sem dúvida a pessoa em quem mais o
major confiava. Um militar respeitado e dono de um status único, conquis-
tado com muito trabalho e muita dedicação. Desde que chegara ao Setor,
fazia mais de doze anos, ele já havia deparado com situações extremas, mas
nada se comparava à que tinha pela frente. Algo capaz de selar definitiva-
mente o futuro da organização: um segredo que estava prestes a ser reve-
lado. Uma história guardada por décadas e que viria à tona com ou sem sua
ajuda. Já fazia dois anos que toda a mudança havia começado. O estopim
que os fizera chegar até aquele ponto era lembrado como o começo do fim.
O dia em que o major estivera entre a vida e a morte.
O episódio que Cardoso conhecia apenas por meio de relatórios ofi-
ciais soava como o atravessar de uma flecha em seu peito. Exatamente no
período em que ele participava de um treinamento de elite, na região cen-
tral do país, seu comandante enfrentara o maior desafio de sua história. A
invasão ao depósito de Itaipu, uma perseguição implacável aos fugitivos
e, por fim, um confronto que quase tirara sua vida. Cardoso se dava conta
de que o caminho para o futuro se desenhara naquele momento, mas não
se perdoava por não estar ali presente para ajudar um amigo.
Porém, por obra do destino ou até mesmo por compaixão das pessoas
que ironicamente o perseguia, o major ainda estava vivo. Minutos antes
de pedir para que Cardoso o ajudasse, o antigo militar confidenciara a
22
verdade por trás da história descrita no relatório e isso fora talvez o que
ajudara em sua decisão. Não havia relatos oficiais que evidenciassem o
fato, mas o militar garantiu que devia sua vida à ação dos civis até aquele
momento considerados inimigos do Setor. Um fato inesperado que colo-
cara à prova toda a sua lealdade. Frente a isso, Cardoso sabia que a missão
designada para si o colocaria à mercê das leis que ele mesmo defendia.
Um crime consciente que a razão o impedia de evitar. Preparado como
poucos, o homem de trinta e seis anos era, agora, uma das peças mais
importantes da operação que em breve seria colocada em prática.
O Sedan preto que guiava fez uma curva fechada saindo da marginal
Pinheiros em um dos acessos da pista local. Seu destino era uma audiên-
cia pública, o julgamento de um caso típico dos bairros carentes da capi-
tal. De um lado, um homem de trinta e nove anos, acusado de assassinar
uma jovem de quinze. Sua vizinha, a quem vira crescer desde os sete e
pela qual manifestava um desejo enlouquecido. Segundo testemunhas, o
homem, que costumava cercar a jovem em seus retornos da escola, fazia
propostas indecentes e oferecia-lhe presentes para que saísse consigo. Sua
mãe, uma mulher sozinha e viciada em bebida, por algumas vezes tentara
defender a filha, mas sua vida miserável e angustiante não lhe propor-
cionava forças para ajudá-la. Personagens de uma sociedade indiferente
aos seus problemas, mãe e filha avançaram por meses sem que qualquer
instituição lhes prestasse apoio. Até o momento em que o pior aconteceu.
E a jovem, em uma tarde de inverno, apareceu estrangulada em um dos
terrenos baldios de um bairro pobre da região sul da grande São Paulo.
Do outro lado, o Estado, representado pela figura do agora promotor
Luiz Fernando de Oliveira Castro, o mesmo homem que havia dois anos
presenciara o tiro desferido contra o corpo do major, em frente a uma
casa no bairro de Santa Tereza, na cidade do Rio de Janeiro. A pessoa que
Cardoso procurava.
O militar parou o carro em frente ao Fórum Criminal Mário
Guimarães, um dos maiores da América Latina, e seguiu diretamente
para o salão onde transcorria o julgamento. A sala de audiências,
mesmo sendo uma das mais modernas do país, lembrava os antigos
cenários de julgamentos. Cardoso entrou em silêncio, preocupado em
23
não ser percebido, e sentou-se em uma das cadeiras vagas, destinadas
aos observadores. Alguns alunos de direito, professores, familiares e
vizinhos da vítima ouviam atentos o desenrolar do julgamento que já
se encaminhava para o final. Fernando acabara de se levantar da mesa
designada ao promotor e discursava efusivamente:
– Caros jurados – dizia ele –, este homem, de maneira inescrupulosa,
cometeu um crime bárbaro e assustador. Desde o dia em que conhecera
a vítima, havia mais de sete anos, o acusado com seu comportamento
demonstrava intenções maliciosas e imorais em relação à pequena jovem.
Intenções estas que, por muitas vezes, foram motivo de discussões e bri-
gas, chegando, por conseguinte, a resultar em denúncias formais junto
à autoridade pública. Porém, por um fato intrigante, talvez uma análise
errônea da qual se desconhece a origem, estes representantes da justiça
consideraram a denúncia apenas um corriqueiro registro de intriga social.
Não o bastante, frente a este episódio, um dos delegados que atendera à
mãe da vítima, sem se colocar a par dos fatos agravantes de um caso que
por certo culminaria em um crime de natureza repugnante, sugeriu que
a mulher não tornasse a procurá-lo sem provas concretas, já que a ausên-
cia destas faziam com que ele, um representante da justiça, perdesse seu
tempo com denúncias nada substanciais.
Todos ouviam atentos ao discurso final de Fernando. O promotor
que conseguira ganhar casos importantes nos últimos meses já se tornara
uma espécie de celebridade jurídica, um profissional respeitado pelos
colegas e admirado pelos jovens estudantes de direito. Sua fama corria
a cidade e todos esperavam que mais uma vez ele mostrasse seu talento.
Após longas horas de depoimentos, apresentação de evidências e conclu-
sões inquestionáveis sobre o caso, aquele parecia ser o momento em que
seria desferido seu golpe final.
Alguns centímetros acima do piso, em uma cadeira esculpida em
madeira maciça e em frente a uma elegante mesa de mogno, o juiz aguar-
dava a conclusão do promotor. A seu lado, poucos metros à direita, o acu-
sado. Um homem branco, muito forte, com os cabelos raspados e uma tatu-
agem que lhe cobria metade do pescoço, aguardava seu destino de cabeça
baixa, cercado por guardas fortemente armados. Do outro lado, como em
24
uma arquibancada, sete pessoas comuns, escolhidas por seu comporta-
mento exemplar junto à sociedade, ouviam atentas. Elas viviam ali uma
das experiências mais assustadoras de suas vidas. Aquele era um cenário
que levariam dias, até meses, para esquecer. Amedrontados, torciam para
que tudo acabasse de forma pacífica e que o homem que estavam prestes a
julgar esquecesse seus rostos assim que deixassem aquele local.
Fernando bebeu um pouco da água que estava no copo sobre a mesa,
terminou sua breve pausa e continuou:
– Pois bem, hoje, estamos frente a evidências que concretizam
os temores de uma mãe, sozinha, vítima de um sistema incapaz de
proteger sua família, mesmo depois de suas mais sinceras súplicas.
Surpreendentemente, por sugestões de alguns colegas, estas evidências
poderiam ser atenuadas, tendo em vista a postura questionável de uma
mulher vulnerável ao vício mais comum entre nós, brasileiros. Não, meus
caros jurados, afirmo que o assunto não pode ser simplesmente eviden-
ciado como um ato equivocado de um homem movido pela sua origem
animal; aqui, estamos falando de um crime bárbaro, sem possíveis atenu-
ações. Lembro que, assim como regem as mais antigas histórias da huma-
nidade, não cabe a nós julgar o perfil ou a personalidade de alguém, mas
sim a veracidade dos fatos trazidos a nosso conhecimento. E, para nós, os
fatos aqui apresentados são destroços de uma tragédia que não pode ser
mais evitada. São evidências incontestáveis de que o homem aqui pre-
sente, a pessoa sentada naquela cadeira – disse apontando para o acusado
–, o homem conhecido por muitos como “Alemão”, é o responsável pela
dor de uma família. Uma perda que nem mesmo o tribunal mais justo
poderá devolver aos braços dessa mãe.
As pessoas pareciam admiradas. Jamais haviam pensado ou se colo-
cado no lugar de vítimas daquela forma. De fato, aquele homem à frente
deles trouxera-lhes argumentos irrefutáveis. Atento, o acusado acompa-
nhava os passos do promotor. Mesmo com a cabeça baixa e o rosto virado
em direção ao chão, recebia cada palavra, cada frase, como um golpe des-
ferido em seu corpo. As mesmas palavras que encantavam a todos no tri-
bunal, a ele, pareciam feri-lo. Toda sua chance de liberdade parecia estar
25
sendo carregada por aquele discurso como folhas ao vento. Por dentro,
uma raiva muito forte o consumia.
Fernando continuou:
– Por isso, não devemos manter em nossa sociedade indivíduos que pos-
sam corromper a justiça que juramos defender. A mesma justiça pela qual
alguns de nós nos colocamos em risco a cada dia de nossas vidas. O que
peço a vocês é que imaginem uma parte de suas vidas, talvez a melhor parte,
aquela pela qual se dedicaram e na qual imaginaram um futuro, arrancada
em segundos de seus corações. Um pesadelo do qual todos os dias imaginam
acordar e com o qual deparam todas as manhãs. Nada no mundo pode ser
pior. Por fim, senhores, jamais poderemos esquecer que a ninguém pertence
o direito de interferir no curso natural da vida. Obrigado.
O tribunal foi tomado por alguns segundos de silêncio. Jurados, ofi-
ciais e visitantes refletiam por alguns instantes sobre o discurso do pro-
motor, até que o presidente da sessão os interrompeu:
– Senhores, peço a todos que aguardem; entraremos em recesso por
dez minutos e então retornaremos para divulgar a decisão final.
Acompanhado por alguns guardas, o juiz saiu da sala.
O homem acusado do crime, ainda mais tenso, aguardava pelo que
parecia ser a eternidade. As palavras de Fernando, as mesmas que haviam
instigado a reflexão de todos naquela sala, soavam-lhe como uma ofensa
e isso o incomodava. Para Alemão, o julgamento havia se tornado um
evento humilhante. Mesmo enquanto esteve preso, em seu entendimento,
jamais havia sido agredido daquela forma e jamais havia admitido tama-
nho desrespeito. Por um breve momento, seu pensamento estava distante
da absolvição, parecia convencido a ferir o promotor. Se fosse condenado,
conhecia pessoas capazes de ajudá-lo a agir contra homens como aquele.
Para ele, era evidente que qualquer resultado negativo daquele julga-
mento era fruto do discurso daquele homem. Ele piorara sua situação.
Do outro lado, Fernando aguardava, sentado à mesa da promotoria.
Ele organizava alguns dos documentos quando o juiz voltou, carregando
um pequeno envelope. Todos na sala aguardavam ansiosos pelo que
estava por vir e por isso o Magistrado não demorou em se pronunciar:
26
– Nem sempre conseguimos encontrar oportunidades de aplicar
a justiça sobre o que acontece em nossa sociedade. Muitos dos crimes
que se sucedem em uma grande cidade por vezes não chegam ao conhe-
cimento de tribunais como este, o que compromete em muito a ideia
de uma sociedade completamente amparada. Mas quando isto ocorre,
me orgulha julgar acontecimentos que revelam a verdade de forma tão
clara e límpida, através de teses tão bem elaboradas. Parabéns a todos
que compuseram este tribunal, pois talvez seja um dos melhores que já
presidi. E com um desfecho inquestionável, declaramos o senhor Valter
Silva Costa, conhecido como Alemão, culpado pelo crime de assassinato
da jovem Danielli Passos e consequentemente condenado a trinta anos de
reclusão em penitenciária de segurança máxima.
Em poucos minutos as pessoas mudaram seus semblantes e um sor-
riso, seguido de uma tímida euforia, envolveu toda a sala. Alguns se cum-
primentavam enquanto outros apenas se mostravam orgulhosos e satis-
feitos. Em meio ao clima festivo, um dos guardas se distraiu e o homem
que estava sendo acusado pôde sair da cadeira em direção ao promotor.
Ele estava transtornado, consumido por uma raiva ensandecida. Cardoso,
que estava bem ao fundo da sala, previu o ataque que estava para aconte-
cer, levantou-se e correu em direção a Fernando. O militar esperava que a
rapidez adquirida em seu treinamento fosse suficiente para evitar o pior.
Alemão, mesmo algemado, pulou sobre a mesa da promotoria, dire-
tamente ao encontro de Fernando. Em um único movimento, agarrou
fortemente o pescoço do advogado que caiu de costas no chão, já com a
respiração interrompida.
Sem entender, Fernando sufocava nas mãos de um assassino em
pleno tribunal. Ele tentava afastar o corpo, do homem, mas sua força,
potencializada pelo peso de seu corpo tornava qualquer reação impos-
sível. Foram vários segundos de desespero, até que Cardoso conseguisse
se aproximar. Vencendo o guarda-corpo que separava os advogados da
área para visitantes, o militar surgiu desferindo um golpe perfeito sobre
a nuca do criminoso. Imediatamente, Alemão soltou o promotor e caiu.
Fernando, que já havia sido ameaçado antes, mas nunca atacado dire-
tamente, levou a mão ao peito, tentando recuperar sua respiração. O
27
criminoso, mesmo momentaneamente ferido pelo golpe de Cardoso,
olhou-o nos olhos, com a nítida intenção de ameaçá-lo. Era uma cena
frustrante para o que parecia ser um de seus melhores trabalhos.
– Você está bem? – perguntou Cardoso tentando ajudá-lo.
– Sim – respondeu Fernando enquanto se levantava. – Obrigado!
– Não há de quê.
Os guardas se aproximavam, agitados, tentando proteger o promo-
tor, mas sua interferência já não mais era necessária. Com um aceno dos
braços ele fez com que recuassem.
– Se me dão licença – disse Fernando arrumando suas roupas. – Acho
que já passou da hora de sair.
Com o militar ao seu lado Fernando organizou os documentos do pro-
cesso em uma pasta preta e, entre uma multidão assustada, se dirigiu à saída.
Cardoso percebera que aquele não era o melhor momento para conversar,
mas não podia perder a oportunidade de abordar o promotor. Por isso o
seguiu até a porta. Seu tempo era pouco e precisava aproveitá-lo bem:
– Olha – disse Fernando enquanto caminhava. – Sei que me ajudou
e já lhe agradeci por isso, mas se continuar me seguindo, serei obrigado a
achar sua atitude preocupante.
– Me desculpe, senhor Fernando – respondeu Cardoso –, sei que não
é o melhor momento para conversarmos, mas o tempo está se esgotando
e preciso que ouça o que tenho a lhe dizer.
– E quem é você?
– Meu nome é Antonio de Lima Cardoso. Mas todos me chamam
de Cardoso.
– Desculpe-me, senhor Cardoso, mas não estou com cabeça para
conversar, acabo de ser ameaçado em um tribunal do Estado e, acredite
ou não, isto me incomodou muito. Marque uma hora com minha secre-
tária e quem sabe até o final da semana podemos conversar.
– Infelizmente o final da semana já será tarde. Tenho ordens expres-
sas do major para contatá-lo o mais rápido possível.
Por um momento, Fernando imaginou ter ouvido coisas. Havia
quase dois anos ninguém o abordava sobre o que aconteceu, e parecia
impossível que viessem a fazê-lo:
28
– Você disse ‘major’?
– Exatamente, senhor.
Depois de tudo, para sua própria segurança, ele e Gabrielle haviam
decidido manter segredo sobre o ocorrido. Fernando não sabia se aquele
homem realmente tinha as informações sobre as quais falava e por isso
precisava se prevenir:
– Não conheço nenhum major, não sei de quem está falando – res-
pondeu apreensivo. – Agora me deixe ir, tenho que me recompor para a
audiência de amanhã.
– Não se preocupe, senhor Fernando, o major me alertou que vocês
negariam conhecê-lo. Por isso me entregou isto – disse Cardoso, reti-
rando um envelope do bolso e entregando-o ao promotor. – O que tem
que fazer é seguir as instruções descritas no conteúdo deste envelope.
– Mas por quê?
– Não tenho detalhes. Tudo o que o senhor precisa saber encontrará
neste envelope – respondeu Cardoso. – E mais uma coisa.
– Fale.
– Tem que manter nossa conversa e tudo o que ler em segredo. Pelo
menos até encontrar o major. Ele esclarecerá todos os seus questiona-
mentos.
– É só isso? – perguntou Fernando, claramente insatisfeito.
– Sim, senhor. Desculpe-me por ser insistente, mas o assunto é de
suma importância.
– Claro!
– Até logo, senhor!
– Até logo.
Fernando abriu o envelope enquanto descia as escadarias do fórum.
Para sua surpresa, o papel continha um endereço e instruções para um
encontro. Não tinha a menor ideia de que se tratava tudo aquilo, mas sua
percepção aguçada lhe dizia que desde já deveria se preocupar.