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SEMENTES DO AMANHÃ, ESPINHOS DE ONTEM! Romance Valentim Neto Revisão 04/2011 [email protected]

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SEMENTES DO AMANHÃ, ESPINHOS DE ONTEM!

Romance Valentim Neto Revisão 04/2011 [email protected]

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COMO CONTINUAR A SEMEAR ESPINHOS

Semeando para colheita posterior Pelo seu gigantismo era um castelo, mas pela sujeira deveria ser chamado de favelão. As paredes carcomidas pelas intempéries, as portas roídas e lambuzadas por mãos e ferramentas, os ambien-tes enegrecidos pela fumaça das tochas tremulantes que mal iluminavam as proximidades, dando aos locais um ar tétrico, lúgubre. No maior salão, antes usado por um rei qualquer, se realizavam os julgamentos. Seis cadeirões estavam colocados ao alto da escada, eram para os componentes magistrais; os julgadores. Na parte baixa, no salão, estavam quinze homens aguardando serem julgados, estavam amarrados, sujos, emagrecidos. Suas faces denotavam ódio, muitas cicatrizes pelo rosto e corpo testemunhavam as várias lutas em que estiveram. Eram guerreiros ou salteado-res? Não fazia a menor diferença; eram inimigos! Iones era o chefe magistral, sua palavra era a lei, o que ele dizia tinha que ser feito. De caráter arbitrário, extremamente egoísta, usava e abusava de seu poder! Estava com sua mulher Lécia, ele com os olhos esbugalhados e gestos nervosos apresentava sua resolução: — Mandei colocar mais uma cadeira e você será uma magistral; a primeira magistral de todos os grupos. Com essa decisão, quando eu não estiver aqui, você será a grande julgadora. Todos vão ter muito mais medo de nós. Seremos temidos por nosso poder. O julgamento de hoje mostrará o quanto somos implacáveis, os grupos ficarão admirados de nossa inteligência e poder. Com esta decisão certamente terei lugar no Conselho Grupal. Ainda serei o grande líder! Lécia tremia de medo, principalmente pelo estado emotivo de seu homem, sabia-o violento, mas sua vontade de afrontá-lo já vinha de longe; desde a agressão e o parto prematuro de Julet. Res-pirou fundo, de olhos fechados como a suplicar ajuda interior, e respondeu firme: — A minha saúde não permite que fique muito tempo sem descansar; tenho enjoo a todo instante e quase sempre vomito, minha barriga está constantemente em cólicas. Gostaria que eu des-maiasse ou vomitasse durante o julgamento? O que pensariam de nós? A expressão de Iones foi se transformando enquanto Lécia falava, a cada nova colocação seu rosto se tornava mais rubro, quase roxo! Ao término das palavras dela, ele resfolegava de ira, porém seu pensamento foi rápi-do e egoísta; se ela não quer azar dela! Colocarei Julet como meu substituto, será uma recompen-sa por eu tê-lo chutado quando ainda na barriga, tenho certeza que ele vai adorar! Retirou-se para o salão, mandou tirar uma cadeira alegando que Lécia estava doente. Que bom julgar... Com um canhestro soar de tambores Iones adentra na sala, dirige-se ao assento central, maior. À sua direita está Julet, com seu desajeitado modo e cabeça abaixada, olhando de baixo para cima, sentado de viés, sem qualquer postura mais altaneira, estava sempre mastigando, mesmo que na-da tivesse na boca! Logo a seguir Enes, simples e precocemente calvo, dir-se-ia que ali estava para olhar e não para julgar. Do lado esquerdo Bedres, seu olhar aquilino indicava a fera escon-dida, os tiques labiais demonstravam seu estado de tensão interior; um vulcão preste a explodir! Em seguida, ali estava Meres, seus olhos e cabelos negros, alto e macilento, todos os atributos visuais demonstravam a dureza de seus sentimentos. Iones tomando a palavra profere: — Anuncio que o meu filho Julet, aqui ao meu lado, será o meu segundo. Nas minhas ausências ele será o magistral principal, soem os tambores para saudá-lo! Os tambores voltam a soar canhestramente, porém com muito mais barulho. Julet estremeceu ao anúncio de seu pai, ele intimamente detestava tudo nele, não sabia a razão... Mas detestava! Detestou também o anunciado, mas como contrariar a vontade do pai? Sabia-o violento, prepotente e brutal, era melhor aceitar. Levantou-se, olhou para o pai, fez um meneio com a cabeça e tornou a sentar, numa atitude dúbia.

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Os prisioneiros ali, agora prostrados à força, pela entrada de Iones, são intimados a ficar de pé para ouvirem as penalidades. O primeiro a se manifestar foi Meres, levantou-se e exclamou: — Esses animais já deviam estar mortos! Não devemos fazer algum dos nossos perderem tempo com eles, a minha decisão é: joguem-nos para serem comidos pelos porcos, assim vão servir para alguma coisa! E tornou a sentar exibindo um largo sorriso. Os acusados urraram e vociferaram em uníssono: Nós nos vingaremos, nos vingaremos! Os que vigiavam passaram a chicoteá-los violentamente até Iones mandar que parassem. Enes só olhava os acontecimentos, poderia dizer-se que não estava ali. Com a sua displicência pronunciou: — Vão servir para aquecer, queime-os à vontade! Sentou-se como se não houvesse levantado. Bedres levantou-se como se ele fosse a figura principal do julgamento, esfregou as mãos, olhou para os acusados com desdém e falou: — Uma corja parece uma corsa... Como se parecem vamos executá-los a flechadas... Traspas-sem-nos à vontade! Com o mesmo porte que se levantou, tranquilamente sentou. Julet não se sentiu confortável, não queria, mas teve que fazer, pois tinha que demonstrar ao pai que era duro, então se levantou, olhou para o pai, virou-se para os acusados e disse: — Como estamos falando de malfeitores, devemos mostrar a eles que também sabemos ser duros e justos. Que sejam arrancados alguns pedaços deles e, no final, sejam degolados! É uma boa pe-nalidade... E sentou surpreendendo-se alegre e satisfeito. Iones levantou-se jovial e brincou: — Não deixaram nada para mim! Todos gargalharam a não mais poder. Os acusados falavam mal dos julgadores e rogavam pra-gas, mas ninguém ligava. Iones continuou: — Para que não digam que sou um magistral ingrato, vou agradar a todos. Que os acusados se-jam flechados nas partes não mortais, cortados nessas partes, degolados, cozidos e servidos aos porcos. Viram como eu sou justo! E caiu numa estrondosa gargalhada seguida por todos. Os acusados amaldiçoavam... Malditos!... Prometiam vingança... Vingaremos-nos!...

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ESPALHANDO SEMENTES E ESPINHOS Arbustos cruzados João e Júlia eram de famílias de classe média, ele se formara em engenharia civil e ela era nor-malista. Formavam um casal comum, com suas igualdades e diferenças. Ele trabalhava como au-tônomo e ela ministrava aulas na escola rural. Itabaté, com seus 20.000 habitantes, apresentava ares de cidade interiorana embora se localizasse no litoral. O que eles ganhavam era mais do que suficiente para levarem uma razoável vida mate-rial, a casa modesta, os móveis e o carro popular pagos, não tinham dívidas. Os dez anos de ca-sados apresentam um casal feliz. Os filhos foram acontecendo: Ana, Pedro, Maria e Lúcia. Ana, mirrada, lourinha de olhos negros, vivaz, inteligente. Pedro, ossudo, um escandinavo, seco e ru-de, muito inteligente. Maria, cópia de Ana, por isso - Nininha. Lúcia, comprida, magra, morena, muito esperta em seus primeiros anos. Com a chegada de Lúcia passaram a ocorrer alguns fatos estranhos que perturbaram a família. Era comum Lúcia ter acessos de raiva seguidos de febre, nestes momentos de febre a menina se transformava, passava a se comportar como um adulto masculino nas suas expressões vocais: xingava, pronunciava palavras de baixo calão seguidas de colocação da mão empunhada sobre o sexo, como se ali houvesse um membro. Nas primeiras vezes os irmãos se divertiram com as bravatas de Lúcia, embora João e Júlia tenham ficado aterrorizados. Com a sequencia do fato, o casal percebeu que os irmãos até colaboravam para que “a raiva” ocorresse, assim poderiam se divertir mais. A providência foi afastá-los quando a ocorrência se verificasse, é claro que não gostaram, mas atenderam. Eles decidiram levar Lúcia ao médico, um neurologista. Este, não conseguindo diagnosticar anomalia de ordem física, encaminhou-os ao psiquiatra. Durante as entrevistas não houve qualquer anomalia, as raivas e febres não ocorre-ram, nem no consultório ou em casa. Como todos os exames solicitados e feitos nada apresenta-ram de anormal e não existindo mais ocorrências, o psiquiatra dispensou Lúcia de qualquer tra-tamento. Foi só voltar para casa e recomeçaram os problemas. Como em todos os lugares; a rádio vizinha funciona. Dona Creuza, uma velha senhora, vizinha conhecida de tempos pelo casal, sugeriu a Júlia levar Lúcia para uma benzedeira, era para tirar o “mau olhado”, inveja plantada pelos que não suportavam a felicidade do casal. Júlia comenta o fato com João e decidem que não haveria mal algum em levar Lúcia para uma benzedeira: pior não poderia ficar. Dona Rosália, a benzedeira, nos seus setenta anos, não era simplesmente “benzedeira”, possuía uma sensibilidade mediúnica de visão que, aliada a sua capacidade magnética, tornava-a especi-al. Na juventude havia participado dos estudos doutrinários no Espiritismo, foi para um grupo de atividades mediúnicas e se desiludiu, pela constante indisciplina dos companheiros e, também, dela. A partir disso se afastou das atividades mediúnicas, casou, não teve filhos, enviuvou aos cinquenta anos. Com modesta aposentadoria vivia em casa própria, singelamente. Para os ben-zimentos nada cobrava, os “clientes” levavam alimentos e ela os destinava a pessoas necessita-das e carentes. Quando João e Júlia entraram na casa de Rosália, esta grudou os olhos em João. Embora eles fa-lassem dos problemas de Lúcia, ela parecia nada ouvir. Júlia parou de falar, João também, fica-ram olhando para Rosália, todos calados. Eles não faziam a menor ideia da visão que Rosália es-tava tendo; uma nuvem de espectros repugnantes envolvia João e lançava fios babujados sobre Júlia. As disformes figuras gargalhavam, grunhiam, se agitando freneticamente à volta de João. Uma luz brilhava no quadro visualizado: Lúcia. Era como se esta fosse isolada, não pertencendo ao evento. Como se despertasse de um sonho, Rosália tirou os olhos de João e, sorrindo, mirou Lúcia e disse: — Como é que uma linda menina dessas pode vir a ser perturbada. Os irmãos não acharam outro jeito de se comunicar. Precisavam atazanar a toda família através desse pequeno e frágil vasi-nho?

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João olhou para Júlia como se perguntasse: você está entendendo alguma coisa? Esta fez um me-neio negativo com a cabeça. Rosália sorriu e desviou o olhar para o casal, primeiro para Júlia e depois para João e afirmou: — Vocês estão com uma das mais belas crianças que já vi. Ela é forte e saudável, resistente e protegida. Chamou a atenção do casal a palavra “protegida”, o que será que queria dizer? — Vocês frequentam alguma religião? Perguntou Rosália de chofre. — Não, somos socialmente religiosos, mas não frequentamos. Afirmou João. — Minha família é Evangélica, mas eu não frequento nenhuma. Foi a declaração de Júlia. Rosá-lia tornou-se séria, fixando o olhar em Júlia disse: — A fé religiosa consciente é uma porta fechada contra os que querem nos prejudicar. A ausên-cia dessa fé escancara as barreiras que impedem os nossos cobradores de se atirarem sobre nós e saciarem sua fome de justiça material. Procure ir numa igreja que atenda suas vocações, estude bem o Evangelho de Jesus Cristo e aprenda a viver. Virou-se para João e, muito séria, discorre: — É difícil dizer certas verdades para quem não está pronto para recebê-las, embora se ache do-no da verdade. Você, meu filho, precisa se preparar para poder entender muitas coisas, que não são materiais e que irão ocorrer em sua família como um todo e em cada um individualmente. Duas palavras são importantes e devem ser bem aprendidas: livre-arbítrio e reencarnação. Se compreendidas atenuam-se os problemas, abrem-se os horizontes do amanhã, clareando o hoje de cada um. Lembre-se disto que vou dizer e grave bem: — Você tem muitos inimigos, mas quinze deles são infernais, não se esqueça disso. (A nuvem se agitava mais violenta ainda, comprimindo-se em torno de João) Rosália volta a sorrir, olha para Lúcia, que também sorri, e diz para João e Júlia: — Por enquanto a menina não terá mais esses problemas. Procurem se lembrar do que foi dito, depende de vocês o futuro da família e de cada um. Podem ir e levem Jesus Cristo no pensamen-to e no coração. João e Júlia se entreolharam aturdidos, tinham mil perguntas a fazer, mas como Rosália os havia despedido de maneira a encerrar qualquer conversa, aceitaram e saíram. Os desvios de rumo Após o jantar João e Júlia foram para a sala e, com as crianças dormindo, abordaram o ocorrido na benzedeira. Júlia iniciou: — O que você entendeu dos recados de dona Rosália? (Os espectros parecem grudar ao cérebro de João) — Júlia, lembre-se que esse pessoal é ligado a misticismo, nós podemos ficar, ou não, impressi-onados com o ocorrido. É condenado na Bíblia esse negócio de mexer com as coisas do diabo, e você sabe disso. Eu acredito que existam pessoas que encantam, como se pudessem hipnotizar, pessoas, animais e, até, plantas. Se você lembrar verá que existem pessoas carregando cobras, como se bichinhos de estimação fossem. Outras fazem secar plantas e falamos que é inveja. Também existem aquelas que exercem tal influência sobre os outros, como nos namoros e trai-ções, onde parece poderem cegar as pessoas. Tudo é explicado pela ciência psicológica, na maio-ria dos casos são meras coincidências. Vejamos agora o caso de Lucinha, como ela estava em tratamento médico, é bem possível que os remédios tomados, embora os médicos nada achassem de anormal, tenham acabado com o problema dela e dona Rosália apenas se aproveitou dessa coincidência. Eu a comparo com os padres e pastores, se a bênção dá certo; foi graça divina. Se não; faltou fé. E está tudo justificado. Os místicos, assim como os ledores de mão e demais vi-dentes, devem ter suas margens de erros, mas só se fala dos seus acertos. Tenha certeza minha querida esposa, é apenas misticismo, o tempo provará isto que estou dizendo. Foi a longa respos-ta de João. — Eu fico em dúvida a respeito disso. Já ouvi e vi muitas coisas inexplicáveis. Espero que você esteja com a razão e que Lucinha realmente esteja curada. Retornou Júlia. — Admitamos uma nova situação: Lucinha volta a ter problemas. Como é que fica toda esta nos-sa conversa e como fica a atitude de dona Rosália? Sempre haverá uma desculpa. É normal o fa-

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to de ela ter dito dos meus inimigos, todos nós temos inimigos, uns porque brigamos com eles, outros, em razão de inveja pelo nosso tipo de vida, aquele outro pela nossa felicidade. Como po-de deduzir; é fácil dizer de inimigos. Quanto a recomendar a religião, eu acredito no fato místico, se religião resolvesse; todos os frequentadores não teriam problemas, mas não é isso que ve-mos... Foi a colocação lógica de João. — João, embora eu veja de modo diferente, não tenho argumentos para derrubarem os seus. Va-mos aguardar e dar um tempo para que as coisas se aclarem. Estou cansada, vamos dormir. Fina-lizou Júlia. — Tem razão minha cara, é melhor descansarmos, não pensemos mais nisso. Vamos dormir. (Algazarra total dos espectros, eles pulavam de alegria pela vitória conseguida) Atração material Pedro entra correndo em casa, chama pela mãe: (Que horríveis fios negros o ligam a alguma coisa vaporosa!) — Mãe. Mãe! — O que você quer Pedro, aconteceu alguma coisa? — Sim mamãe. Ana está namorando o Fausto. Ele é um pé-rapado, não tem onde cair morto! Colocou raivoso Pedro. — Filho, eu não conheço esse Fausto, mas dizer que um rapaz, ainda menor de idade, é um pé-rapado, me parece pesado. Não existe um pouco de ciúme de sua parte? Será que, vendo sua ir-mã com um rapaz que você não aprecia, é suficiente para azedar seu humor? Vamos Pedro, sua irmã vai namorar, vai casar e ter filhos, ela terá a vida dela, e o gosto é dela, quer gostemos, quer não. É claro que o melhor é que gostemos do futuro companheiro dela, mas o principal é que ela e ele sejam felizes, se formos também; ótimo. Maternalmente falou Júlia. — Mamãe, eu desejo o melhor para Ana, ela é minha irmã, eu a amo, como amo as outras. Não penso que isso possa ser ciúme, não vejo o Fausto com bons olhos para ela, embora ele seja da minha turma e meu amigo. Respondeu firme Pedro. — Pedro, você colocou exatamente o que eu disse, embora você não perceba e nem concorde; é puro, mas muito puro ciúme. Irmãos terem ciúme é comum, entenda isso e aceite, dê um tempo para eles, você verá que as coisas irão mudando; para eles e para você. Meu amado filho, você verá o ciúme que suas irmãs terão quando você arrumar namorada, aí é que você entenderá esse seu sentimento. Aguarde mais um pouco, as coisas vão se aclarar e permitirão que você descubra a verdade. Continuou Júlia. — Tudo bem mamãe. Embora contrariado, vou aguardar, conforme o seu conselho. Atendeu Pe-dro. À noite, Júlia chama Ana para uma conversa e a inquire: — Filha, o Pedro me falou que você está namorando, é verdade? — Ainda não é namoro mamãe, estamos apenas conversando. O Fausto, que a senhora não co-nhece, é um bom rapaz e amigo do Pedro. Além de estudar ele está trabalhando com o pai, me disse que estão para fazer um grande negócio e vão ganhar muito dinheiro, portanto terá garantia financeira para casar. Ele tem me acompanhado, sido muito gentil e atendido meus “caprichos”. Gosto dele e vejo estabilidade nele, e este é um fator muito importante para um casal. Afirmou tranquilamente Ana. Júlia meditou nas palavras de Ana, considerou que eram muito equilibradas, resolveu encerrar a conversa: — Muito bom minha filha, mantenha-me a par dos fatos, qualquer problema pode vir conversar comigo, afinal, além de mãe, sou sua amiga. — Pode ficar tranquila mamãe, a senhora saberá de todos os acontecimentos entre eu e Fausto ou outros namorados. Eu confio na senhora e a amo muito. Disse alegremente Ana. Júlia abraça Ana e ambas sorriram à vontade. A matéria atrai

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Pedro está curtindo a festa, nela havia bebida à vontade e os que consumiam drogas se regala-vam. Ao seu lado, abraçados, Betinha, linda moça nas suas dezesseis primaveras, ruivinha, sar-denta, lábios finos, olhos esverdeados. Betinha estava com os olhos vazios, parecia perdida em sonhos; viajava. Bebidas e drogas, que belo par; principalmente para quem quer destruir sua vi-da! Pedro a conhecia da escola e sabia que era de família financeiramente bem situada, tinham mui-tas propriedades, carros, o negócio do pai era agiotagem. Havia se interessado por ela ao desco-brir essas virtudes financeiras, pois visava sua estabilidade futura, procurou se chegar a ela e... Ficou. Como suas notas na escola, por favorecimento dos mestres, estavam apenas acima do vermelho, acertaram de estudar juntos e, assim, na casa dela, passaram a se curtir. Ana estava de olho neles e em determinado momento resolve falar com o irmão. A oportunidade chega num fim de semana em que estão sozinhos em casa, os pais haviam saído com os irmãos. Chama Pedro e diz: — Caro irmão, eu estou acompanhando o seu namoro com Betinha, precisamos falar a respeito dela e de vocês. (Os fios vibraram, parecia que eram bridões a dirigir Pedro) — E não podemos falar de você e do Fausto? Respondeu Pedro. — Podemos sim, mas primeiro vamos falar de vocês, afinal fui eu que pedi a conversa. Colocou Ana. — Está bem, vamos conversar, mas, como terei a certeza de que você não fugirá após eu falar? Inquiriu Pedro. Ana percebeu que Pedro estava querendo fugir do diálogo, não poderia avançar abruptamente, decide mudar a estratégia: — Tudo bem irmão, já que você quer ter certeza vou dá-la e sem qualquer condição preliminar. Eu e o Fausto já estamos ficando e nós nos entendemos muito bem, a família dele me recebe com carinho e atenção, o nosso convívio é ótimo. Conversamos do nosso futuro, do casamento, dos filhos, também conversamos da nossa saúde, nós procuramos exercer um controle mútuo sobre o que e como bebemos. Procuramos informes a respeito de drogas, seja maconha ou as fortes, tro-camos informes sobre os amigos que usam drogas; para podermos evitá-los ou instruir. Já man-temos certo direcionamento econômico sobre as nossas finanças, em conjunto, embora ainda se-parados. Como pode sentir meu caro irmão, falei do relacionamento meu com o Fausto, sem qualquer problema. Você tem algo a perguntar? A conversa perigosa Pedro ouviu com atenção, seu sexto sentido atinou para os detalhes e previu para onde iria a conversa, tratou de mudar o rumo desta: — Minha cara irmã, eu não me interesso pelos detalhes íntimos e policiais do relacionamento seu com o Fausto, me interessa é o que se disfarça nessa lengalenga e quero ver a sua narrativa a respeito dos seus interesses imediatos, isto é, o dinheiro da família dele. Fale disto minha irmã. Ana sentiu que seu coração saiu do ritmo normal, viu que Pedro não queria saber das coisas pon-deradas, queria fofocar e sair do assunto principal, então optou por ir direto ao âmago da ques-tão: — Pois bem, só que antes do meu grande interesse por dinheiro, vou falar da minha principal preocupação; as drogas! — Muito bem. Finalmente vamos saber que o vício por dinheiro é a maior droga. Reagiu Pedro prontamente, cortando a narrativa de Ana. — Não faça de conta que a conversa é só para meus defeitos. Você sabe perfeitamente quais as drogas a que me refiro. Sabe também que estou preocupada com você usando bebidas, drogas, cigarros. O que você é; dependente? Traficante? Bobo da corte? Ou será que existem outras ra-zões? Vamos, fale! Replicou Ana com acidez. Pedro gargalhou esfregando as mãos nervosamente, e viu que ela fora direto ao assunto que ele procurava evitar, rapidamente desconversou: — Viu como você fugiu, sou eu que estou fazendo as perguntas. Perguntei da droga do dinheiro,

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e o que você fez: tentou me agredir. Vamos. Responda à minha pergunta. Não fuja do assunto! (Os espectros, agora, lançam raios negros sobre Ana) Ana teve ímpeto de abandonar a conversa, mas se o fizesse, não poderia tentar aprofundar o as-sunto das drogas com ele. Não percebera que Pedro já sentira onde ela queria chegar e que ele ocupara todo o espaço e direção da conversa. Tenta reassumir o assunto: — Tudo bem meu irmão, falarei da droga do dinheiro. Realmente você tem razão, eu fui atrás do Fausto por dinheiro, vi nele toda a realização de meus sonhos, sairia daquela vidinha de pobre e seria madame fulano de tal. Todos teriam que me respeitar. Não teria que obedecer; mandaria. Sabe irmão, a droga do dinheiro nos dá poder. Poder! Sabe o que é isso? Poder fazer o que quiser e realizar seus sonhos, comandar os outros, desfazer, enfim; tudo aos seus pés! Tudo. Tudo! E a sua droga, o que ela te dá? Pedro não perdeu o sorriso, olhou galhofeiro e mandou resposta: — Agora eu gostei, minha irmã se descobriu totalmente e revelou o seu íntimo, mostrou o que vai ao cerne da sua conduta; ambição. Cuidado irmã, a ambição destrói o sentimento de irman-dade. Em nenhum momento você disse que a nossa família seria beneficiada, apenas falou de você e das suas conquistas. O que você acha do sentimento dos outros a respeito da sua droga de dinheiro? Ana se irritou com a colocação e perdeu o equilíbrio, a resposta fluiu natural, sem qualquer raci-ocínio ou sensatez: — Eu quero mais é que todos se ferrem! Tenho que resolver o meu problema e não sou obrigada a resolver o dos outros, seja quem for. E mais, todo aquele que tentar me prejudicar agora; mais tarde eu o arruinarei. Não vou admitir que, seja quem for, tente arruinar minha vida. É isso que penso e é isso que farei. Os que não concordarem comigo podem ir se coçar em outro lugar! Pedro exultava por dentro, bateu palmas e pronunciou: — Muito bom minha irmã. Defenda os seus objetivos com unhas e dentes. Faça as coisas ocorre-rem a ferro e fogo. Seja feliz nas suas ambições, mas não conte comigo. Acho um monumental erro o que está fazendo. Pode ter certeza que farei tudo para que você seja feliz, porém do jeito correto. É isso tudo o que tenho a dizer! — Como assim; tudo o que tenho a dizer! Eu ainda não perguntei nada. De você apenas espero que não me atrapalhe, pois não preciso de sua ajuda para nada. Para nada, entendeu! Falou ríspi-da Ana. — Eu disse que farei tudo para sua felicidade, e farei minha irmã, pode crer nisso. Calmamente pronunciou Pedro. Se Ana estivesse calma teria notado algo diferente na entonação de Pedro, veria que a sua colo-cação implicava uma dubiedade perigosa, mas ela não atinou para isso e sofreu o revés na conti-nuação da fala de Pedro: — É uma pena minha irmã, certas atitudes devem ser tomadas quando está cega a pessoa envol-vida. Eu vou ajudá-la, mas você não achará isso, porém creia estou ajudando-a. Ana prevê alguma coisa estranha. Se tivesse olhado, no início, bem dentro dos olhos de Pedro, teria visto a imagem completa, mas como não fez, foi traída em suas pretensões. Pedro a olha e abaixando a cabeça diz: — É uma pena irmã, pensei que você acordaria para a verdade. Como não ocorreu isso, tenho que apresentar minha atuação para o seu bem estar; olhe para trás. Vamos Ana, olhe para trás! Ana virou para ver... Se o mundo acabasse naquela hora ela acharia melhor! Fausto ali estava, olhava sério para ela. Balbuciante ela diz: — Oi amor... Você está aí? Quando chegou? — Desde o início! Respondeu Fausto secamente. — Você não acreditou nas coisas que eu disse para agradar meu irmão. Colocou, tentando salvar a sua situação. Fausto não respondeu, ficou olhando tristemente para Ana, virou e saiu rapidamente. Ana ficou estática, não esperava nada daquilo que estava ocorrendo. Sua cabeça não conseguia achar uma solução... Explodiu... Levantou de um só movimento e grudou no pescoço de Pedro: — Seu desgraçado. Você destruiu a minha vida. Vou me vingar. Vou me vingar! Neste momento Ana irrompe num pranto sentido e, não podendo mais segurar, sai em disparada para o seu quar-

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to. Pedro sente-se aliviado por Ana ter largado seu pescoço e por ter resolvido o que achava ser um problema para a vida de sua irmã. Não ligou para o que ela disse nervosamente, atribuiu a um ar-roubo do momento. Com o tempo ela entenderia e agradeceria a atitude que havia tomado para o seu benefício. (Se Pedro pudesse ver a cena da nuvem ficaria terrificado: A nuvem parecia ter vida, era como se arfasse, balançava em todas as direções, crescia e diminuía. Os espectros saltitavam alegremente por mais uma vitória!) Diálogo infrutífero Júlia estava na cozinha preparando a feijoada. João saíra para buscar refrigerantes. Ana e Pedro ainda dormiam, Júlia iria chamá-los logo mais. Nininha e Lucinha estavam na sala vendo um programa de música caipira na televisão. Em dado instante Lucinha levanta e vai para a cozinha dirigindo-se à mãe: — Mãe, eu queria conversar com a senhora sobre um assunto delicado. Júlia logo pensou em namorado, afinal qual é o assunto mais importante para a maioria das jo-vens? Certamente namorado. Respondeu suave para Lucinha: — Muito bom minha filha, pode ir dizendo das suas novidades, eu estou pronta. Garanto que meu coração vai aguentar. Lucinha achou graça na resposta de sua mãe e emendou: — Vou morrer ontem. Júlia olhou séria para Lucinha, mas esta continuou: — Mamãe, a senhora acha que eu vou ter uma novidade de arrebentar o seu coração? Eu apenas quero conversar, preciso ser esclarecida em algumas coisas que não conheço bem, apenas isso. Desculpe-me pela brincadeira. Júlia se recupera e restaura a conversa: — Muito bem Lucinha, eu a desculpo, realmente achei que fosse algo do tipo; mãe, eu estou grávida! — Mãe, há muito tempo nós já devíamos ter conversado a esse respeito, eu me refiro ao que vejo muitas pessoas fazerem e nós não fazemos; não temos religião. Inicia Lucinha. — Filha, esse assunto eu já conversei várias vezes com o papai. Ele até se irritou pela minha in-sistência. A posição dele é que as religiões são entorpecentes do povo, inventadas pelos espertos e manuseada pelos poderosos. Ele me mostrou passagens da história da humanidade, onde as re-ligiões e suas igrejas só enganaram o povo. O exemplo mais marcante que ele me mostrou foi o das Cruzadas, onde duas religiões mandaram seres humanos se matar e matarem em nome de deus, com isso ele me mostrou que esse deus é de mentira e varia conforme o gosto dos mandan-tes e azar dos que acreditam nele. Também me contou, e eu vejo isso nos meios de divulgação, que as religiões só se interessam por dinheiro e, dizendo que são defensores dos pobres, vivem no luxo e no fausto material. Realmente, é só olhar e verá que é isso mesmo. Filha, essa a razão de não termos ligação com qualquer uma das religiões. Explanou Júlia. Lucinha franziu a testa, denotando contrariedade, como se a descrição a chocasse. Respirou fun-do e replicou: — Mãe, essa explicação não é de todo verdadeira. A ligação da religião com dinheiro é para atender necessidades materiais, tais como a construção de templos, manutenção da edificação, água, energia elétrica e demais despesas. Nós também temos essas despesas em casa, não é ver-dade mamãe? Júlia estava até distraída, pois o assunto para ela era resolvido e morto, e não percebeu a profun-didade da colocação de Lucinha. Ouviu a pergunta e respondeu por responder: — Então aqui também é uma igreja. Como vê minha filhinha, esse não é um argumento válido. Lucinha sentindo que com a mãe nada conseguiria, resolveu ampliar: — Mãe e se eu falar com papai. Será possível que ele conversaria a respeito? Preocupada com a feijoada e não com a conversa, Júlia diz: — Tudo bem filha, vá em frente. Aproveite e chame seus irmãos para o almoço, papai logo che-

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gará com os refrigerantes. (Os espectros batiam palmas) Estudando as oportunidades Durante a refeição Lucinha apenas observava sua família. Seu pai deglutia nacos de carne api-mentada, com ar de grande satisfação, sorvia goladas de cerveja, mal tinha tempo de falar qual-quer coisa, dava a impressão de ser um faminto frente a um primeiro prato de comida. A mãe comia aos trancos, pois atendia a todos, cobrava a todos o ‘comer bastante’ e voltava a comer, para ela parecia que o importante era a comida, as pessoas não contavam. Ana estava calada, da-va a impressão de estar em outro mundo, abatida com a ruptura do namoro e raivosa com Pedro, comia devagar, automaticamente, sua cabeça devia estar tramando algo, o que seria? Pedro esta-va alegre, brincava com todos, menos com Ana, para ele o mundo devia ser um lugar de diver-são, só diversão, realmente ele era inconsequente. Nininha se servia de pequenas porções, comia lentamente, como estivesse se deliciando com a comida. Por uns momentos Lucinha pensou em como se relacionava com a família. Tinha dó, é isso, ti-nha dó de seus pais, era um sentimento esquisito, devia naturalmente amá-los, mas tinha dó. Para com os irmãos tinha um sentimento estranho, gostava deles, mas não conseguia entendê-los e nem segui-los. Sentia-se muito bem quando eles permitiam que ela os ajudasse e esse sentimento parecia natural nela; ajudar a todos da família. Com a refeição indo para o final, Lucinha resolve fazer uma pergunta para o pai: — Papai, será que mais tarde, depois do senhor descansar, poderíamos conversar a respeito de um assunto importante? João, já um pouco alto pelas cervejas, pouco liga para a solicitação, até ouve mal, responde dan-do um final de assunto: — Tudo bem. Mais tarde, certo. (Mal se podia ver João tal o envolvimento pela nuvem) A difícil comunicação Enquanto lavam as louças, Lucinha e Nininha aproveitam para conversar. Lucinha tentando levar o assunto para um lado especial, pergunta: — Nininha, você tem esperanças? A expressão de surpresa no rosto de Nininha revela que, nunca alguém lhe havia feito esta per-gunta. Para de enxugar a louça, a olha e responde: — Sim. Eu tenho esperança nas coisas que faço, pois faço acreditando e isto é esperança, ou não é? — Não Nininha, isso não é esperança, embora sejam confundíveis representam coisas diferentes, elas se diferem por “crer ou acreditar” representarem algo que nós sabemos, e daí a expressão; ver para crer. Já no caso da esperança, é também crer, porém em algo que não sabemos ou não conhecemos. Por esta razão usa-se esperança, como na citação de Paulo no Evangelho; fé, espe-rança e caridade. Estas três palavras representam a realização da criatura para com o Criador. Duas delas seriam aparentemente similares; fé e esperança. Sem dúvida temos fé; é a confiança em si mesmo, esperança; é a confiança no Criador, portanto; tenho fé no que sei, tenho esperança em Deus e me esmero em praticar a caridade que, segundo Paulo, é a mais importante das três, sendo que a falta desta anula as outras duas em suas virtudes. Explanou Lucinha. — Tudo que você falou é muito bonito Lucinha, mas não vejo a coisa dessa maneira religiosa. Eu as vejo num sentido psíquico. O estado emotivo, não sendo racional, nos leva a desviar o foco das nossas potencialidades, passando o foco, por tradição, ao setor religioso, daí aparecer essa de esperança em coisas inexistentes. As religiões se aproveitam desse momento emotivo e impõem seus deuses tipo, a resolverem tudo, afetando as resoluções racionais. Concordo com papai quando ele diz que religião é puro negócio, e negócio que se aproveita do nosso emotivo, do nos-so estado de desequilíbrio psíquico. Respondeu séria Nininha. Lucinha ficou imaginando o quanto sua irmã estava ligada aos fatores materiais da existência.

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Tentou achar um modo de colocar valores transcendentais em contraposição aos materiais ime-diatistas dela. Como não chegou a um caminho inicial, resolveu deixar para outra hora, para ou-tra conversa: — Está bem Nininha. Por enquanto deixemos assim, mais tarde voltaremos ao assunto, o tempo é o nosso melhor amigo, ele nos mostrará os verdadeiros caminhos, as verdadeiras palavras. — Tudo bem Lucinha, a hora que quiser estarei pronta para conversarmos. Concluiu seca Nini-nha. (Qual a razão dos espectros estarem tão animados?) Outra conversa infrutífera Lucinha esperou que o pai tomasse tranquilamente o café, era bom que ele estivesse bem desper-to. Aproximou-se dele e perguntou: — Papai, agora nós podemos conversar? João denotou surpresa com a pergunta, não se lembrava de ter prometido nada e nem de que as-sunto se tratava. Para aclarar responde perguntando: — Podemos conversar sim filha, mas sobre qual assunto você queria falar? — Eu queria saber a posição do senhor sobre religião, das razões de nós não frequentarmos qualquer delas. Colocou firme Lucinha. — Minha querida filha, você nos seus dezoito anos e já se preocupando com isso. As religiões são negócios e todas querem dinheiro a troco de ilusões, de promessas que elas nunca irão cum-prir. Todas pregam o futuro e as benesses depois dessa vida; um lugar no céu, o perdão de culpas indesculpáveis e muitas coisas mais. Estas e outras são as razões para nos afastarmos das religi-ões, portanto, de não as frequentarmos. Falou com ênfase João. Lucinha, conforme previra sente que a conversa vai ser difícil. Resolve historiar: — Papai, o senhor se lembra de dona Rosália e do que ela disse? — Claro que me lembro dela, e muito bem, pois foi a primeira e a última trambiqueira mística em nossa vida, nunca mais permitirei que esse tipo de engodo ocorra conosco. Respondeu ríspi-do João. Lucinha sentiu que entrara em caminho pior que o anterior, decide mudar, abranda a voz e narra: — Papai, eu tenho uma história para lhe contar, é referente a mim e preciso de sua atenção e de seu conselho. Posso contar? — Qualquer coisa que lhe diga respeito e que a preocupe é de meu interesse, pode contar tudo fi-lha, estarei atento. Respondeu confiante João. Lucinha olha firme para o pai, fica sem acreditar que ele possa entender, mas, já que entrou por esse caminho, continua: — Desde os dez anos venho tendo sonhos esquisitos, muito esquisitos. Eu vejo e converso com pessoas que não conheço, como se as conhecesse. Elas me dizem que são antigos companheiros e que já estão mortos, eles estão aqui, não por minha causa, dizem que até atrapalho, mas por causa da minha família. Falam de dívidas antigas e de brigas sangrentas. Intitulam-se cobradores, mas não explicam bem do quê. Eu os vejo se aproximando de todos daqui de casa, fazem gestos com as mãos e delas saem raios negros, parecendo um líquido sujo. Tem noites em que ouço os risos deles e o tropel que fazem na casa. Não contei, mas acho que são aproximadamente quinze. O que o senhor acha disto papai? O rosto de João denunciava antecipadamente a sua opinião; alegre e debochado. A resposta con-firmou: — Filha. Minha filhinha. Nunca ouvi nada mais estranho e descabido. Nunca tivemos esses companheiros, nunca devemos nada e nunca brigamos com ninguém. Como você pode ver mi-nha queridinha, os seus sonhos não têm o menor sentido, pelo menos para mim. Lucinha ficou pasmada e sem qualquer ação. A resposta do pai foi fulminante para seus objeti-vos. O que faria agora? Como destruir esse ceticismo do pai? Como fazer para sensibilizar seu pai? Tentou mais um pouco: — Eu entendi perfeitamente a sua resposta papai e acredito em tudo que me disse, porém o se-nhor não disse da sua opinião a respeito desses sonhos.

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João foi rápido e direto: — Tudo que você narrou, e muito bem, bate com o que disse dona Rosália, e isso reforça ainda mais a minha conclusão; são recordações de seu subconsciente, projetadas no seu consciente quando você está dormindo. Durante o sono a atuação do subconsciente não é barrada e as recor-dações se projetam em formas que nos parecem sonhos reais, portanto concluo com a minha opi-nião; esses sonhos são recordações suas das palavras de dona Rosália. Se Lucinha tinha qualquer esperança, ali elas morreram. Resolveu não insistir e retornar em ou-tra oportunidade, em outra situação. Concluiu: — Obrigado papai. É um alívio saber a sua opinião. (Os espectros olhavam rudemente para Lucinha, mas não conseguiam que seus fios a atingissem. Em compensação vibravam mais fortemente aqueles que os ligavam a João) Quem sumiu? O dia não podia ser mais tétrico, as nuvens se apresentavam carregadas, escuras, o vento sibilava nas altas árvores dobrando-as com violência. Perto já espocavam os trovões e viam-se os relâm-pagos provocados pelos raios, a intensidade até fazia tremer o ar. Naquela latitude era comum essa entrada de tempo, ele sempre se apresentava precedido de uns dias de abafado e úmido ca-lor, era o “noroeste”, as pessoas sentiam-se cansadas, indispostas. Júlia espiou pela janela e pensou; ainda bem que o tempo vai mudar eu não aguentava mais o ca-lorão. A água fervia, ela preparou o café, aprontou a mesa e foi chamar aos outros, bateu nas por-tas chamando-os pelo nome. João foi o primeiro a chegar. Beijou Júlia e sentou-se para tomar o desjejum. Nininha cumpri-mentou-os e sentou-se, assim também fizeram Ana e Pedro. Estavam ao meio da refeição quando João pergunta para Júlia: — Você chamou Lucinha? — Sim. Eu chamei a todos, só ela ainda não veio ao café, vou até lá ver se dormiu de novo. Respondeu Júlia. A porta do quarto estava fechada, mas não trancada. Júlia bate e chama por Lucinha, aguarda um pouco e como não há resposta, entra. Lucinha não estava no quarto, sua cama estava arrumada e a janela fechada. Desconfiada, Júlia verifica o guarda-roupa e este se encontrava normal, visual-mente não notou a falta de nada. Volta para a cozinha preocupada e inquire João: — Lucinha falou alguma coisa com você? — A respeito do quê? Disse João. — Ela não está no quarto e não reparei qualquer falta de roupa, vi a janela e estava fechada. O que será que houve? Falou Júlia. — Não estou sabendo de nada. Afirmou João. E olhando para os filhos pergunta-lhes: — Vocês sabem de alguma coisa? A resposta negativa foi unânime. Todos pararam de comer e foram ao quarto de Lucinha para ve-rificar. Revistaram tudo e nada encontraram que desse alguma indicação do que ali houvera. Jú-lia começou a chorar, João tenta consolar: — Minha querida, não existe motivo para o choro, nada sabemos da razão de Lucinha não estar aqui, ela pode ter ido a um encontro, ou na farmácia, ou no hospital e não quis nos atrapalhar, talvez fosse tarde da noite ou madrugada. Pense em boas alternativas, não seja pessimista, por favor. Em vez de ajudar, esta tentativa piora o humor de Júlia e ela responde: — Como não pensar no pior. Se ela saiu, como você está dizendo, e ainda não voltou, é porque aconteceu algo. Vamos para o hospital saber se ela está lá. Se não estiver vamos para a polícia, pois ela pode ter sido atropelada e morta. Júlia parou de falar e irrompeu num pungente pranto. João, vendo que as consequências do ocorrido estavam saindo do equilíbrio, avisa: — Eu vou para o hospital e fazer todas as averiguações necessárias, vocês fiquem aqui com ma-mãe. Ninguém saia até eu voltar. E saiu apressado. Quando não existe motivo

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Horas depois João retorna, entra em casa e senta-se no sofá. Todos estão angustiados pelas notí-cias, ficam olhando sérias para ele: — Não consegui qualquer informação. Seja no hospital, na polícia, nos comércios que estavam abertos à noite, nada... Nada! Relatou cabisbaixo João. Nininha acredita que tem uma boa ideia e coloca: — Por que não pensarmos que Lucinha simplesmente fugiu de casa. Júlia olhou séria para Nininha e fulminou: — Fugir. Fugir! Nem estava namorando, ia fugir com quem e por qual razão? Ana foi ajudar: — Mãe, eu não tenho certeza, mas pode ser que ela tinha um namorado e nós não sabíamos. — Ela me contaria. Ela me contaria! Respondeu raivosa Júlia. João pensa e pergunta: — Algum de vocês não estranhou nada nela nestes dias? Pode ser um comportamento, ou um gesto, algo não corriqueiro. Júlia se lembra da conversa de religião e revela: — Ela me questionou sobre religião. Nininha interfere: — Comigo também ocorreu isso. João se lembra da conversa com Lucinha e fala: — Nós também conversamos sobre religião outro dia, não me parece que ela estivesse desequili-brada por este fato. E João completa sorridente: — Será que ela fugiu para um convento? Júlia fica irritada com o sorriso de João e ataca: — Nossa filha desaparece e você sorri do fato. Onde está seu sentimento paternal. Não podemos descansar antes de sabermos o que houve com Lucinha. E voltou a chorar. João resolve tomar uma atitude, avisa: — Vou às igrejas perguntar, tomara que tenham alguma informação. Volto logo que terminar. Será que foi por isso? Horas depois João volta, está confuso, apresenta para a família os resultados: — Fui a todas as igrejas daqui e ninguém sabe de nada. Ficaram de informar qualquer notícia a respeito dela. Não consigo imaginar nada mais a fazer. Júlia resolve penetrar mais nas conversas havidas e pergunta, dirigindo-se para João e Nininha: — Será que podem dizer dos detalhes da conversa que Lucinha teve com vocês? — A nossa conversa foi normal, ela queria saber das razões de não seguirmos qualquer religião. Quando coloquei os motivos ela os aceitou, contrariada, mas aceitou. Eu não diria que ela sumiu por causa dessa conversa. Respondeu tranquila Nininha. — Eu conversei bastante com ela a respeito da nossa posição com respeito a essas religiões. Não percebi qualquer reação adversa dela. Encerramos a conversa com muita calma, creio que ela concordou com os meus argumentos. Afirmou calmamente João. Júlia ouviu as duas explicações, olhou inquirindo visualmente Ana e Pedro. Ambos fizeram me-neios negativos com a cabeça. Ela desabafou: — Creio que Lucinha chegou a um ponto de resolução. Se nós pensarmos bem, veremos que ela sempre foi a diferente da casa. Lembremos que pequena tinha aqueles acessos de febre e dese-quilíbrio. Quando sarou, ficou sempre isolada como se não fizesse parte da família. Era uma fi-lha diferente das outras, nunca falou dos seus problemas, embora comunicasse tudo que estava fazendo. Será que mentia? Agora estou em dúvida a respeito dela. Não consigo pensar em nada que encaixe no seu proceder, pelo menos no que eu conhecia. Será que voltou o acesso e ela en-louqueceu de vez? Será que foi se afogar no mar? Será?... Será? Não sei mais em quê pensar! João ouviu atentamente Júlia, emendou: — Não há razão para ficar inventando situações. Embora terrível, devemos aguardar informes dela, seja pelos órgãos consultados, seja por ela mesma. Acredito que ela tomou uma resolução de tempo, isto é, afastou-se de casa para repensar as coisas e encontrar um ponto em comum co-

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nosco. Concordo com você Júlia, ela era diferente, mas todos nós somos diferentes, apenas não notamos isso até ocorrer um fato importante como este que hoje ocorreu. Não estamos prepara-dos para a situação formada, esta é a razão que uso para recomendar que aguardemos um tempo. O que vocês acham? — Papai, nós temos alguma alternativa? Perguntou Pedro. — Infelizmente eu não encontro outra filho. — Eu não consigo pensar em nada diferente. Disse Ana. — É papai, tenho que concordar com o senhor. Acrescentou Nininha. — Se todos estão de acordo, não serei eu a discordar, pois também não consigo imaginar nada diferente. Vamos aguardar um tempo. Falou tristemente Júlia. Ares diferentes João chega mais cedo em casa, beija e abraça Júlia. Ela estranha o horário: — O que foi? Está chegando mais cedo hoje, acabou o serviço? Ele sorri: — Não querida, é que a empresa conseguiu um grande contrato, um gerenciamento técnico da construção de uma hidrelétrica no rio Grande. Como é uma área em que eu sou especialista, nós vamos nos mudar para próximo do local das obras. Neste final de semana iremos ver as cidades mais próximas e suas condições de moradia e atendimento médico-educacional. — Eu não sei como as crianças vão receber essa notícia, elas estão acostumadas aqui e seus ami-gos são todos do bairro, acho que não vão gostar. Colocou Júlia. — Querida. Nossos filhos não são mais crianças, embora ainda usemos essa palavra para nos re-ferirmos a eles. Primeiro vejamos as cidades e seus recursos, depois discutiremos os detalhes com eles. Iremos amanhã cedo para São José do Rio Preto, de lá visitaremos as outras cidades mais próximas da obra. Emendou João. A viagem foi tranquila. A passagem por várias cidades que não conheciam tornou mais rápida e distraída as horas de volante. Júlia se divertia com as novidades contadas por João a respeito das cidades ultrapassadas na viagem. Ao entardecer chegaram a Rio Preto, se alojaram e saíram para um passeio no centro da cidade. Júlia se encantou com as árvores e pássaros da praça, pois nunca havia visto tanto pássaro junto. — Que encanto de cidade. Nesta eu gostaria de morar. O ar, o sol, a vibração que sinto das pes-soas, aqui tudo é lindo. Falou eufórica Júlia. — Sim Júlia, esta é uma bela cidade, pena que esteja longe da obra, se não fosse este óbice pode-ríamos nela morar. Você verá que outras cidades boas existem, amanhã iremos visitá-las. Cedo partiram para Jales, ali percorreram a cidade, tomaram informes, almoçaram e se dirigiram para Fernandópolis, onde repetiram os procedimentos de pesquisa e passaram a noite. — O que você achou destas cidades querida? — São mais simples, porém são muito acolhedoras e calmas. É claro que preferiria Rio Preto, mas quanto mais perto de você melhor e, assim sendo, podemos morar por aqui e se for necessá-rio as crianças irão estudar em outra cidade. Está bem assim? Disse Júlia. — Tudo bem. Amanhã iremos ver do lado paulista Indiaporã e do lado mineiro Iturama. Não as conheço, e por esta razão, esperemos para ver. A decisão será sua e também gostaria que ficas-sem pertinho de mim. Afirmou alegremente João. Concluídas as visitas obrigatórias, eles esticaram para uma noite em Santa Fé do Sul. No dia se-guinte partiram de volta e, para dividir o tempo da viagem, pernoitaram em Rio Claro. Júlia estava radiante, nunca havia saído de Itabaté, salvo rápidas viagens para cursos em São Paulo. Por ela mudariam ontem, mas... Era a opinião das crianças que ela mais temia; será que gostariam? E se não, o que fazer? Pensou e decidiu que João saberia lidar com isso. Os meus não são os seus Tendo reunido a família na sala, João coloca para os filhos os acontecimentos; a viagem, os le-vantamentos, as situações e alternativas. Destaca que essa posição de trabalho é o ponto vital de

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seu sucesso profissional. Em seguida inquire a opinião de cada filho. Inicia por Ana, a mais ve-lha: — Qual a sua posição filha? — Na atual situação emotiva em que me encontro é ótimo que mudemos para outro local. Como quase todas as cidades que visitaram possuem faculdades não vislumbro dificuldades, se não ti-ver vacância na escola da cidade estudo em outra próxima. Vou sentir a ausência dos amigos, mas acredito que lá arrumarei outros tantos ou mais. Deixo a escolha da cidade para vocês, papai e mamãe. Tenho certeza que a escolhida será a melhor para nós. — Muito obrigado. O que você disse filha é o que eu mais esperava. E você Pedro o que tem a dizer? — Nenhuma dessas cidades pode oferecer as oportunidades que vislumbro em São Paulo. Todas elas são muito distantes, nós estamos mais perto, eu serei grandemente prejudicado com essa mudança, gostaria de ficar, ou por aqui ou em São Paulo. Espero que possam entender essa mi-nha posição, assim como papai diz que lá é sua grande chance, eu afirmo que aqui está minha grande chance. Colocou vaidoso Pedro. João se irrita com a fala de Pedro e retruca: — Sua grande chance... Sua grande chance deve ser no tráfico de drogas! Realmente lá as suas chances devem ser muito menores. Como são cidades menores não possuem tantos esconderijos. Você pensa que somos todos uns tontos. Que não sabemos o vício de sua preferência. Você irá conosco para onde formos e será vigiado constantemente, somos seus pais e nossa obrigação é formar sua personalidade, dar-lhe educação e saúde. Faremos lá o máximo possível para acertar sua vida, para conduzi-lo ao bom caminhar. Você irá estudar, irá se formar e arrumar um bom emprego, isto sim é arrumar sua vida, esta sim é sua grande chance! Pedro tremia de ódio. Como podia ser tratado dessa maneira. Seu pai havia ultrapassado os limi-tes da responsabilidade paterna, sua dependência financeira era em razão de nunca permitirem que trabalhasse, pois só o mandavam estudar, e tome estudo. Agora jogam na sua cara que era um errado. Os culpados eram eles mesmos, pois foram por suas atitudes que foi parar nas drogas e agora era um dependente total, tanto financeiro quanto das drogas. Poderia ter discutido com o pai, mas convenientemente abaixou a cabeça e formulou: — Tudo bem. Assim seja feito. João gostou da atitude de Pedro, porém não conhecia o que ele pensava. Virou-se para Nininha e repetiu a pergunta da mudança. — Papai, mamãe, é claro que ficar aqui com os amigos seria bem melhor, pelos costumes e pela rotina. Acho que uma virada na vida é interessante, conhecer coisas novas e pessoas novas. Acho que vou gostar. Se puder ter um quarto com banheiro privativo, só para mim, vai ser ótimo. Res-pondeu Nininha disfarçando sua real posição. — Muito bem. Iremos para Fernandópolis. É o local com a casa que mamãe mais gostou. Não é verdade querida? Falou João e olhou para Júlia. Embora ele estivesse enganado, pois ela preferia Indiaporã, Júlia concordou: — Sim querido, é a cidade com a casa que eu mais gostei. Novos turbulentos ares Acostumados com a cidade a beira-mar, os jovens detestaram a nova morada, mas cada um por razões diferentes. Ana; por não vislumbrar um príncipe rico. Pedro; por estar por fora do círculo de drogas e longe de Betinha. Nininha; por estar longe dos amigos. Porém Júlia adorou; estava o mais perto possível de João. Pedro, ao frequentar a escola começou a ter atritos constantes. A falta das drogas aliada ao seu temperamento genioso o tornou irritadiço. Estes problemas começaram a fluir para dentro do lar trazendo constantes discussões com os pais e irmãs. Ana se envolveu com jovens tidos como ricos fazendeiros, passando a ser figura constante nas badernas por estes promovidas. Nininha se recolheu numa deprimente solidão. Sua dificuldade em arrumar novos amigos era manifesta.

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João, enterrado até o pescoço no trabalho, não atinava para os problemas que as diferenças com-portamentais dos filhos traziam para dentro de casa. Júlia é que recebia o impacto de todos os problemas e, para não preocupar João, mantinha-os em segredo para si. Com o passar do tempo e o avolumar dos atritos, ela não consegue mais contem-porizar, aproveita um fim de semana quando sozinha com João e revela-lhe: — João, eu tenho tentado de todas as maneiras não lhe preocupar, porém, não dá mais! As crian-ças estão tendo sérios problemas, estamos, eu e eles, quase a ponto de explodir. Como se nunca houvesse problemas na família, João recebe a notícia com surpresa. Num passe de mágica as preocupações com o trabalho desaparecem, seu foco de atenção, agora, é a situação apresentada por Júlia. Com ar de preocupação a questiona: — E porque você não me falou antes a respeito desses problemas. Eu os teria resolvido e não deixaria crescer qualquer preocupação como essa que vejo agora em seu semblante. Mas, já que assim está, vamos lá, conte-me todos os detalhes dos problemas. Júlia nervosamente relata a situação não omitindo nenhum detalhe. João ouve atentamente e per-cebe o nervosismo de Júlia. Ao final do relato, tomando as mãos dela, diz ternamente: — Minha querida esposa, obrigado por me poupar desses problemas durante todo esse tempo. Você teve a atitude das grandes esposas; a de ajudar os maridos. Eu irei tratar de cada um desses assuntos pessoalmente, falarei com eles e tentarei resolver ou amenizar as situações. Fique tran-quila. Procure não se desgastar com eles, vá ao médico e trate do seu nervosismo. Eu não gosta-ria que você ficasse doente minha doce companheira. Abraçou e beijou-a com muito carinho. — Faz um tempinho que você não me abraça e beija assim. Acho que vou arrumar muitos pro-blemas para você resolver dessa maneira! Reagiu sorridente Júlia, e sapecou vários beijos e carí-cias nele. Visões diferentes João chama Pedro para o terraço, quer conversar com ele a respeito dos problemas. Inicia o diá-logo: — Filho, por razão do meu trabalho eu andei um pouco afastado dos problemas de casa. Sua mãe veio me contar que você está tendo algumas dificuldades. Gostaria que me contasse dessas difi-culdades, é possível? Pedro, na sua irritação, acreditou que o pai iria pegar pesado com ele, colocou-se em prontidão mental, tenso, e respondeu: — Eu não tenho dificuldade alguma. Esta cidade é que tem dificuldade. Todos daqui são uns provincianos, atrasados, uns mentecaptos. O problema não sou eu, é esta cidade! Maldita a hora em que viemos para cá. João entendeu rapidamente a posição de Pedro e replicou: — Pedro, é evidente que temos dificuldades de relacionamento em novas moradas. Nós não co-nhecemos as pessoas, os costumes e os valores. Temos que aguardar um tempo para nos habitu-armos, para conhecermos e sermos conhecidos. Tenha um pouco de paciência, aguarde e verá que as coisas irão se equilibrando, você irá arrumar uma turma e, isto ocorrendo, verá que a ci-dade é muito boa. — O único tempo que vejo nesta cidade é o tempo de morrer. Morrer de tédio. De desgosto. De solidão. Isto aqui é o fim do mundo. Uma desgraça completa! Respondeu ríspido Pedro, se le-vantando e saindo. Júlia, que estava ouvindo a conversa, veio e falou com preocupação para João: — Eu falei que eram problemas. Viu o estado em que ele se encontra. O que faremos agora? — Nada. Não faremos coisa alguma, ele está desequilibrado pela falta da droga, logo o organis-mo reagirá e se estabilizará, é só aguardar. Disse friamente João e pediu: — Você pode me dar um café? Tomando seu café, João se colocou distante da conversa ocorrida com Pedro. Um barulho chama sua atenção; é Ana chegando. Ele observa que ela está muito alegre, alta, característica da pessoa que bebeu um pouco além da medida. Levanta entra na sala e vai até ela: — Como está Ana? Tudo bem?

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— Está... Tudo... Ótimo... Papai. Respondeu Ana com voz pastosa, denotando seu estado de em-briaguez. — Muito bom. Júlio falou seco e sendo ébrio o estado de Ana, desistiu de continuar. Saiu nova-mente para o terraço e sentou-se pesadamente. O sol da tarde incidindo no terraço mais a cálida brisa induzem João ao sono, e ele dorme. — Papai. Papai! João acorda com o chamado. Nininha, que estava na sua frente, diz: — A mamãe falou que o senhor queria conversar comigo, estou aqui. João ouve a frase da filha, espreguiça-se para espantar a modorra do sono interrompido e pro-nuncia: — Sabe filha, sua mãe me contou que você tem se isolado e que está triste. Conversando pode-mos achar uma maneira de ajudá-la, de fazê-la participar e sentir-se melhor. Você tem alguma ideia de como podemos ajudar? Disse João, ainda meio sonolento. — Não papai, eu não tenho a menor ideia de como podem me ajudar, talvez se soubesse teria di-to antes. Tudo por aqui é sem graça. Não tenho interesse por nada. Acredito que um dia iremos embora daqui e, então, tudo se modificará. Foi a resposta de uma Nininha indiferente. — Nininha, nós aqui temos vários locais para nos divertirmos, podemos passear de várias manei-ras junto ao rio Grande ou ao Paraná. Temos fazendas onde andaremos a cavalo, em galope pelo pasto, podemos ordenhar várias vacas, participar de churrascos e muitas coisas mais. Como você pode ver, há muitos tipos de diversão, é só você escolher e nós faremos. O que você escolhe? Colocou alegre João. — Nenhuma das coisas colocadas me atrai. Tenho medo da água. Os cavalos e bois me dão nojo. O cheiro do capim me provoca enjoo e o senhor bem sabe que não como carne. Papai pode es-quecer tudo isso, eu não tenho interesse em nada daqui. Estou muito bem assim e não preciso de nada! Respondeu rude Nininha. Coisas começam a ocorrer “Júlia procura se esconder e está tremendo de medo, olha para um lugar onde deveria estar a por-ta e nada vê. Fica atenta a qualquer barulho, sua respiração ofegante atrapalha um pouco, mas ela precisa prestar atenção, pois está sendo ameaçada! Ouve passos, vozes altas de pessoas brigando, ela se encolhe e procura alguma coisa para se agarrar; nada encontra, tudo é liso, úmido. Sente uma grande pressão sobre si, gira para o outro lado, batem nas paredes - é um barulho terrível! Agitam o local em que se encontra; será um terremoto? Aflige-se por estar sem qualquer apoio, sem lugar para se firmar. Sente uma grande e única vontade; quer ficar ali de qualquer maneira! Sente que sairá pela porta que ainda não vê. Ouve gargalhadas de muitas pessoas. O desespero diminui e parece que o barulho parou, ouve uma voz calma e carinhosa, suave. Sente que tocam o local onde se encontra, pelo calor gostoso que agora está sentindo”. Pensando no sonho que tivera, Júlia se preocupa; será que meus nervos estão me traindo? Sentir-se insegura não era nada agradável. Durante o jantar Júlia narra para João o sonho que tivera, conta as sensações que teve, diz das suas preocupações com os nervos e indaga: — João, você acredita que possa ser alguma coisa ligada aos meus nervos? Na sua praticidade João responde de imediato: — Pode ter a certeza que esse sonho está mais ligado ao estômago que aos nervos. Você esque-ceu que ontem jantamos um pernil assado que estava bem gordo, tomamos bebida alcoólica e fomos dormir mais tarde. Some tudo isso e verá se não resulta num belo pesadelo. — É você tem toda a razão. Abusamos das comidas, e o organismo reagiu. Concordou Júlia. “O palavreado era áspero, Ana tentava segurar na saia da mãe, era sacudida pelo tranco levado pela mãe. Vê sua mãe cair, está de costas, não vê seu rosto, mas percebe que a silhueta não é de Júlia. Seu pai xinga alto, fere seus ouvidos. Olha e vê João. Fica ali, grudada na mãe, trêmula. João a arranca da mãe e a leva para a cozinha, bate várias vezes nela, mas com pouca força. Ana chora o tempo todo, de medo, muito medo! Ouve gargalhada de muitas pessoas”.

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O suor cobria seu corpo ao acordar. Ana fica pensando no sonho, quem seria aquela mulher? Qual a razão de chamá-la de mãe? Qual o motivo da briga? Será que ela não era filha de Júlia e João? Acalmou-se e decidiu conversar com a mãe mais tarde, num momento oportuno. “Você é um pirralho encardido. Onde se viu tal porcaria, fazer essa sujeira nas calças. Não aprendeu que o cocô é para ser feito no penico. Menino mal educado! Pedro ouvia hirto todas es-sas reprimendas de João, acompanhadas de bofetadas. Não sabia o que doía mais; as palavras ou as bofetadas. Encolheu-se a um canto, tapou os ouvidos com as mãos, fechou os olhos e aguar-dou mais tapas. Sentiu que o tocavam, deu um chute e ouviu um gemido de dor, acertou na pes-soa, abriu os olhos e viu que a mulher caia, ele a reconheceu e gritou: Mãe. Mãe! Esta colocou a mão sobre o rosto, ele não distinguia de quem era, mas a mão não era de sua mãe Júlia. Ela san-grava no rosto, devia ser ali que acertara o chute, viu suas mãos e seu rosto ensopados de sangue. Apavorou-se e saiu correndo para chamar o pai, mas parou e pensou; papai vai me espancar ao saber que feri mamãe. Correu para um quarto e se escondeu sob a cama. Ouve gargalhada de muitas pessoas”. Pedro ao acordar, recordou do sonho detalhe por detalhe e, por incrível que possa parecer, ele se prendeu ao detalhe das gargalhadas. O que seriam aquelas gargalhadas. Estariam rindo de mim? Quem seriam essas pessoas? Embora ocupado com essas dúvidas, logo se esqueceu do sonho, ti-nha coisas mais importantes para fazer, logo mais iria conhecer uns novos amigos. Os elos vão encaixando Ana estava na sala lendo atentamente um livreto de um romance vulgar, não percebeu que Júlia adentrara. — Olá! Como está a leitora ávida. Assim Júlia saudou Ana. — Olá mamãe! Estou mesmo interessada neste livro e quero logo chegar ao fim, para saber co-mo as coisas vão ficar. Respondeu Ana alegre. — Você verá que, em todos os romances, uns acabam bem e outros nem tanto, pode até aparecer a tragédia. Não sei se a vida imita os livros ou vice-versa. Colocou Júlia a seguir. — Falando em tragédia mamãe, eu gostaria de contar um sonho para a senhora, foi muito esqui-sito, será que tem disposição para ouvi-lo? — Sou ‘toda ouvidos’ minha filha. Já estou curiosa para ouvi-la. Atendeu prontamente Júlia. Ana narra o sonho completo, detalhando os menores nuances. Fica olhando fixa para a mãe, quer perceber qualquer reação dela, porém nada percebe. Júlia ouve a narrativa e encontra detalhes que a lembram de seu próprio sonho. Conclusa a fala de Ana, profere: — O seu pai falou de pesadelos pela alimentação. Eu começo a acreditar que terei de mudar o nosso cardápio, tendo que optar por comida mais leve à noite. Quanto ao sonho que você me nar-rou Ana, eu posso lhe garantir totalmente o seguinte; somos seus pais! Eu a tomei nos braços ao nascer e memorizei a sua marca do quadril. Se você ainda tem essa marca, tenha absoluta certe-za; você é minha filha! Agora, se você quer outra mãe, eu vou ficar muito triste e decepcionada. Espero que não seja isso. — Não mamãe, eu a amo demais para imaginar algo desse tipo. Eu até posso dizer para a senho-ra que fiquei com medo de perdê-la, da senhora não ser minha mãe. Estou feliz com o que a se-nhora falou, ser sua filha é motivo de felicidade para mim. E Ana deu um abraço longo e emoci-onado na mãe. Júlia sai da sala, logo a seguir fica pensativa, analisa os dois sonhos e descobre coincidências; brigas, gargalhadas. O que seriam esses sonhos? Será que João tem razão ou é algo diferente? Vai para a cozinha preparar o almoço e tenta esquecer os sonhos. Pisando levemente, Pedro chega bem perto da mãe e grita: — Socorro. Estou morrendo de fome! Júlia leva um susto inicial, se recupera e passa uma reprimenda em Pedro: — Quer me matar do coração filho!

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— Não mamãe. Como posso matar a quem mais amo. Estou alegre, pois tive uma manhã muito ativa e agora já tenho amigos por aqui, conheci uma boa turma e é de gente legal. Marcamos pa-ra nos reunir depois da aula para fazermos uma pescaria no rio. É possível que eu volte tarde e peço para a senhora avisar o pai desse meu compromisso, não gostaria que ele ficasse preocupa-do se eu demorar um pouco. Falou Pedro com alegria. Júlia não desconfiou nada da súbita mudança, pois ela atribuiu esta aos citados novos amigos; fi-nalmente Pedro estava se adaptando à cidade, que bom. — Filho, vá sossegado, eu aviso papai de sua pescaria com os amigos. Aproveito para preveni-lo; não apareça com menos de dez quilos de peixe e de preferência Dourado! Respondeu Júlia com galhofa. — Sendo eu principiante na pescaria, a senhora não acha que está cobrando muito deste lava mi-nhocas? Disse Pedro aceitando a brincadeira. Júlia olha com ternura para o filho, abraça-o com efusão, beija-o várias vezes e diz: — Vá meu filho e procure se divertir muito. Esteja tranquilo quanto a nós, estaremos esquentan-do as frigideiras para quando você voltar. — Obrigado mãe. É muito bom vê-la alegre. Isto me anima mais ainda. Agora, por favor, cadê o almoço? Emendou Pedro. Júlia serve o almoço para Pedro, os outros tinham horários diferentes para a refeição, seja pela escola ou pelo trabalho. Pedro se atira à comida. Durante esta se lembra do sonho e resolve contá-lo para a mãe: — Tive um sonho interessante mãe, nele eu apanhava muito do papai e a minha mãe tentava me proteger, eu a agredi, mas não era a senhora, não consegui ver quem era e apenas sei que não era a senhora. Engraçado não. Júlia tenta não demonstrar surpresa ou afetação, apenas ouve e junta com os já conhecidos. Inda-ga: — Qual a razão de ter achado engraçado? Pedro responde, sem tirar o olhar do prato: — Achei engraçado, pois papai nunca me bateu e eu nunca bati na senhora. Os dois estavam bri-gando e eu nunca os vi assim. — E você tem alguma opinião de não ser eu a mãe do sonho? Perguntou Júlia. — A resposta é bem clara, pelo menos para mim; eu nunca bateria na senhora. Portanto a mãe te-ria que ser outra. Eu acho que é uma forma do subconsciente fazer aliviar a tensão em que nos encontramos sem ferirmos a quem amamos. Filosofou Pedro na resposta. — Mas no caso de papai, ele espancou você e aí como fica? Colocou curiosa Júlia. — É possível que seja por eu estar brabo com o papai, mas eu não liguei para isso. Foi a simples resposta de Pedro. Concluída a refeição, Pedro se arruma e sai. Júlia fica matutando na soma dos sonhos e na coincidência entre todos. Algo estranho estava ocorrendo; só faltava João ter um sonho desse tipo. Resolve que irá conversar com ele a respeito dessas coincidências. A escuridão não deixa pegadas Terminada a aula Pedro se encontra com seus novos amigos, todos se dirigem para a casa de Rui, que é o mais velho deles, onde farão o encontro muito esperado por Pedro. (Uma densa nuvem escura envolvia a todos) A casa era uma edificação com algumas décadas, possuía ampla varanda circundando-a, a esca-daria de madeira estava carcomida pelo tempo, mas denotava resistência. Amplas portas para a varanda desnudavam a enorme sala, a cozinha indicava claramente a idade do imóvel; ultrapas-sada. Os seis quartos espaçosos, mas na casa havia apenas um banheiro que, embora grande, con-firmavam a velhice da edificação. Esta era a casa dos encontros do grupo dos novos amigos de Pedro. Ali já se encontravam outros componentes do grupo, eram rapazes e moças, sendo que os mais velhos estavam na faixa de vinte e um anos, mas a maioria entre catorze e dezessete anos. Pedro

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vai conhecendo-os e se enturmando, entretanto começa a ficar ansioso no aguardo da melhor par-te do encontro, isto é, pelo embalo! Rui chama a atenção de todos para a curtição que virá. Indica os procedimentos e comunica que a graduação será feita de acordo com o costume de cada um, ninguém pode abusar, caso faça isto será expulso do grupo. Pedro recebe um pacotinho e seu conteúdo já lhe é conhecido. O compri-do canudo de taquara para ele é uma novidade, pois só conhecia o de plástico. Aproxima-se de uma jovem mulata, esbelta, olhos verdes, cabelos lisos. Apresenta-se e a convida: — Chamo-me Pedro. Gostaria de sentar ao seu lado, posso? Ela nem o examina, é rápida na resposta: — Meu nome é Rúbia, eu achei você legal. Vamos juntos? É impressionante quando duas pessoas perfeitamente identificadas, num ambiente e num com-portamento, se encontram. O sentar, o abraçar, o se beijarem e manusearem seus corpos com so-freguidão foi natural... Foi animal! Puramente animalesco. E ainda não estavam totalmente em-balados. Pedro acorda e procura pelo relógio, ele acende o lucivéu; três horas! Olha ao seu lado e, na ca-ma, Rúbia dorme profundamente, está nua, ele a acha escultural. Sua cabeça está pesada, não obstante está bem alerta. Levanta, se veste e vai para a cozinha, apanha os peixes na geladeira, esfrega-os na roupa e nas mãos, passa as mãos na cabeça, nos braços, no rosto e está pronto. Sai da casa e se dirige para a moradia da família. Como era seu costume, Júlia acordava cedo e, pronta, se dirigia à cozinha para preparar o café. Neste dia ao se levantar e se dirigir ao banheiro, depara com as roupas de Pedro, como seu cos-tume, estão jogadas no chão, porém hoje, cheirando a peixe. Júlia recolhe-as imaginando a pes-caria, vai para a cozinha e, na geladeira, tem uma grande surpresa; eram mais de dez peixes, to-dos Dourados e cada um com algo em torno de um quilo. Pensa; realmente uma bela pescaria. Será que ele pescou tudo sozinho? Não importa, vou preparar alguns para o almoço. E ficou toda feliz pela realização do filho. A aula poderia ser chamada de chata, aquela matéria teórica, a temperatura de 39 graus e a diges-tão, tudo colaborava para... Dormir! Ricardo, seu colega lateral, a cutuca, pronunciando num quase sussurro: — Acorda linda criança. Ana sai da modorra e sorrindo olha para Ricardo, ela nunca havia reparado muito nele; seu rosto é suave, cabelos loiros e de olhos castanhos, longilíneo, com um sorriso divinal. Ana responde delicada: — O calor me abateu fazendo quase dormitar, eu estou grata pela ajuda. Ricardo, que já fazia a corte à Ana sem ela notar ou corresponder, ficou encantado pela graça que ela demonstrara na resposta, aproveitou e continuou lisonjeiro: — Sempre estarei pronto para atendê-la minha caríssima colega. Ana sorriu, já fazia um bom tempo que não sorria e sentiu-se maravilhosamente bem com isso, aproveitou e irradiou seu estado de espírito, respondendo graciosamente: — O encantador colega está obrigado a me pagar um refrigerante no intervalo e não pode fugir, pois um cavalheiro nunca se furta a sua obrigação. A seguir olhou para ele toda sorridente. Ricardo não cabia em si de contentamento. Tanto trabalho planejado para chamar a atenção dela, e um simples tocá-la, numa modorra, fizera o milagre; ela existe para mim! Respirou fundo e disse: — Minha rainha, seu servo e vassalo Ricardo tudo fará de sua vontade. E a mirou nos olhos com um terno sorriso. — Ana aceita. Falou Ana automaticamente e sorrindo com graça. O intervalo foi aguardado por ambos com ansiedade, a descoberta mútua os transportara para ou-tro mundo; o mundo dos apaixonados! Saíram juntos da sala e ele fazia mesuras especiais, que ela aceitava alegremente. Acomodam-se na cantina e ele indaga: — O que a rainha Ana ordena ao vassalo Ricardo? Ana está inebriada, seus olhares se prendem, o tempo deixa de existir, suas mãos se tocam, a su-ave carícia dos dedos indica a amplidão da paixão que se inicia. A sineta avisa do término do in-

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tervalo, ambos despertam do sonho dos atingidos pelas flechas de Cupido, ela fala: — Nossa. O intervalo já terminou e ainda nem pedimos nosso refrigerante! — Eu a convido para o tomarmos depois da aula, minha amada rainha... Ana! Ricardo fez ques-tão de realçar o nome, pronunciando-o ternamente. Ana não precisou responder, seu largo sorriso disse tudo que era necessário neste momento. (Os fios negros que se ligavam a Ana ficaram tenuíssimos, parecia que iriam quebrar) Nininha estava absorta pela visão, os últimos raios solares pintavam faixas multicolores nas ralas nuvens do horizonte, o anil dominante ia sendo absorvido pelo maravilhoso laranja-doirado, formando uma transição colorida indescritível. Aquele maravilhoso espetáculo indicava um pró-ximo dia, também, quente. No lado oposto, as primeiras estrelas, a Dalva já se fazia bem visível. A visão do contorno terreno mostrava uma amplidão quase interminável. Lindo! Realmente lindo aquele pôr do sol, o oeste apresenta esta faceta naturalmente, principalmente, como estava Nini-nha, colocada à beira rio, o reflexo do horizonte nas águas dava uma dupla visão do espetáculo, era algo inesquecível. Tão fechada estava na ocorrência que não notou um acompanhante - ele teve o cuidado de se aproximar cautelosamente. Um inseto solitário roça seu rosto, tira-a do estado absorto e a faz virar para espantar o intruso, e dar de olhos com o acompanhante inesperado: — O que você está fazendo aqui? Diz contrariada Nininha. — O mesmo que você. Admirando os espetáculos. Respondeu naturalmente Alfredo. Ela o conhecia da escola, nada havia que chamasse a sua atenção para ele, pois era baixo e calvo, sendo desleixado com a roupa e corpo, andava sempre meio barbudo, voz esganiçada. Talvez a única coisa interessante nele fossem os olhos, duas pérolas negras! Sim, o que mais chamava a atenção nele eram os olhos. Não ficou irada pela presença dele, ao contrário, admirou-se pelo respeito dele para com a sua mudez durante o espetáculo. Pensou em algo para dizer, lembrou-se de ouvir, - os espetáculos, perguntou: — Você se referia ao reflexo na água? Alfredo não imaginava aquela situação, admirava Nininha na escola e queria conversar com ela, observara que ela se desguiava e fugia de qualquer aproximação com os colegas. Ele nunca ten-tara se aproximar e ia seguindo seus passos com muito respeito, um amante silencioso. Naquele dia, ao segui-la, viu que se dirigia para a encosta com visão do rio, ao se aconchegar de Nininha seu coração disparou, procurou ficar ali olhando para ela até quando pudesse. Aos seus olhos o maior espetáculo era ela. Quando ela virou e o viu ele teve medo de ser repreendido, mas ela não reclamou nada e, muito ao contrário, iniciou o diálogo. A sua resposta foi poética: — É claro que o reflexo na água dobra a visão deste magnífico entardecer. Eu não me referia a essa duplicidade, com todo o respeito eu me referia ao simples espetáculo da Natureza e do es-plendoroso perfil de alguém que idolatro com a máxima ternura e, repito, com o máximo respei-to! Nininha percebeu que os olhos dele pareciam brilhar mais ainda. Estava admirada de sua própria reação, calma e confiante. Sorriu da resposta e colocou: — Alfredo, eu estou passando por um grave momento da minha vida, a mudança para esta cida-de mexeu com meus nervos e com a minha estabilidade emocional. Você colocou o seu senti-mento à mostra, eu respeito e aceito com alegria, é muito gratificante saber-se notada. Não espe-re por continuidade nesta minha receptividade de hoje, talvez amanhã eu esteja diferente, distan-te e chata! Gostei da sua presença hoje. — Vou me lembrar do que você disse e respeitar seu estado, eu espero você. Está ficando fres-quinho, quer ir para casa? Disse atencioso Alfredo. — Sim, vamos. Respondeu ela secamente. (Os espectros estavam satisfeitos) Problemas não avisam Júlia está seriamente preocupada com os seus sonhos e dos filhos. As coincidências são visíveis e ela apenas não consegue entender o significado deles. A constância com que pensa neles torna-

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se uma fixação, os seus nervos começam a fraquejar e as noites já são longas pela constante in-sônia, o seu organismo reage com inapetência, em fim; tudo caminha para a exaustão física e psíquica. A irritação constante, por não contar nada para João, faz com que ele a leve ao médico e apenas calmantes são receitados, pois Júlia também não expõe ao médico que, as manifesta-ções nervosas poderiam ser provocadas pelos seus sonhos. A medicação hipnótica faz efeito para dormir e Júlia entra em sono profundo. “— Eu não quero saber, essa praga não deve vir ao mundo, trate de tirar isso senão eu mesmo ti-ro. Era a voz masculina que falava e era a voz de João! — Eu não permitirei que você mate esta criança. Mate-me antes disso seu insensível. Olhe para o que está querendo fazer. Isto, que está na minha barriga, é coisa sagrada. A criação é uma dádiva de Deus, não podemos afrontá-Lo assim. Pense um pouco mais, isso que está falando é pecado. Um grave pecado! A voz feminina era de... Lucinha! — Sou eu quem manda. Ou você tira ou eu tirarei. Não adianta vir com essa conversinha de pa-dre para o meu lado, eles que vão cuidar das suas freiras. Gritou João. — Pelo amor de Deus, não faça isso, você se arrependerá pelo resto de sua vida. Deus o castigará por matar uma vida nascente! Suplicou Lucinha. — Não me interessa nada e já está decidido, não viverá! Berrou João. Júlia ouvia tudo como se fosse por um tubo, as vozes eram metálicas e distantes, porém claras. Sentia-se encolhida a um canto, desprotegida e temerosa. Sente ondas de aflição, mas não são dela, a agitação é grande e em determinado momento tudo fica parado, sente que as ondas afliti-vas aumentam, ouve: “— não. Não. Não! A porta é aberta; um ar diferente, uma luz diferente, sente que a arrancam dali e mesmo no seu desespero nada pode fazer. Não há mais luz nem ar...” Acorda aos urros e sufocada. João, na cama, ao seu lado, acode: — Júlia. O que você tem? O pesadelo parece que foi horrível. Conte o que foi? Júlia se recupera um pouco, ainda tonta pelo sonho e remédio, olha para João, pensa no sonho, nas dúvidas que suscitou e apesar do seu estado, inventa: — Tive um sonho ruim, estava sendo sufocada. Nada mais que isso, vai ver que é efeito do re-médio. — Certamente querida. Vou buscar um copo de água com açúcar para você. Diz João. Ela fica sentada na cama, pensa muito a respeito de dizer, ou não, o sonho para João. Pega o co-po e toma lentamente seu conteúdo; não, não direi nada, devolve o copo e agradece: — Obrigada João, eu estou bem agora, vou continuar meu sono. — Pode dormir sossegada que eu estarei ao seu lado. Disse um preocupado João. Júlia se deita e vira para o lado de fora da cama, a sua cabeça era uma tormenta; será possível que Lucinha saiu de casa por isso? É possível que João tenha feito essa coisa tenebrosa? Onde estaria Lucinha agora? Saberia João do paradeiro de Lucinha? Como saber a verdade? O cansaço e o remédio a vencem e dorme. João viaja a serviço para São Paulo. Júlia e os filhos estão no terraço, situação incomum que ocorre pela viagem de João, pois os filhos não querem deixar a mãe sozinha. Pedro tenta animar a mãe: — Mamãe, a senhora sente que está melhorando? Pergunta com ar alegre. — Não. Eu não estou me sentindo melhor, vou aproveitar a ausência do papai e colocar algumas coisas que estão me preocupando. Responde Júlia muito séria. — A senhora pode desabafar com a gente mamãe. O papai é muito duro nas decisões e nós pode-remos ajudá-la, fale tudo que quiser, nós estamos prontos para ouvir. Uma meiga Ana se mani-festa. — Muito bom meus filhos. Eu acho que alguma coisa importante está ocorrendo. Vejam bem, todos tivemos sonhos esquisitos, estes sonhos foram muito parecidos e, se não for só cisma mi-nha, eu diria que estamos recebendo algum tipo de aviso ou sofrendo de algum mal estar comum. Acredito que a resposta para o que estamos passando esteja com Lucinha. Precisamos descobrir o paradeiro dela urgente. Colocou aflita Júlia. — Não estou entendendo nada mamãe. O que tem Lucinha com tudo que estamos passando? In-quiriu curiosa Nininha.

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— Como estamos bem à vontade vou detalhar e espero que vocês não percam a calma pelo que vou narrar, é a maneira que entendo e posso estar errada. Começo pelos sonhos nossos e eles mostram crianças sendo maltratadas, brigas de casal, até aí nada de estranho. Nos meus existe criança, acho que no útero, escutando essas brigas e as discussões atingem o auge com um abor-to, isto é o que eu entendo. Do modo como relato não há nada de estranho, mas... E aí vem o que acho importante... O casal é composto de João e... Lucinha. Por tudo o que ocorreu com Lucinha, só me resta concluir que algo existiu entre eles e isso provocou a saída de Lucinha de casa. Sei que é horrível, mas é o que acho e espero estar completamente errada. Essa é a razão de termos que achar Lucinha. — Mamãe. Eu não posso acreditar no que estou ouvindo. Exclamou Ana. — Também não posso crer mamãe. Somou Nininha. — Achando Lucinha podemos ter as respostas. Falou Pedro calmamente, e continuou: — como perdemos todo e qualquer sinal do paradeiro de Lucinha, teremos que procurar informações em todo e qualquer lugar. — A ideia é boa, pois teremos que descobrir alguma coisa, alguma informação ou pista. Interviu Nininha. — Meus filhos, apesar de tudo que aqui foi dito dessas nossas opiniões sobre os sonhos, não de-vemos informar o papai de nada, tudo tem que ficar em absoluto segredo. Disse Júlia preocupa-da. (Que pena os encarnados não sentirem o que ocorre na outra dimensão, se pudessem ver ficariam horrorizados. Várias figuras disformes, grotescas, gargalhavam a não mais poder! Saltitavam como animais e emitiam grunhidos histéricos. Estavam comemorando as decisões “materiais” de Júlia e família!) Começo de confusão Como já se tornara costumeiro Pedro ruma para aquela casa. Estava preocupado, pois as coisas não estavam bem e ele não conseguia manter em dia os pagamentos das drogas consumidas. O que faria para arranjar uma grana? Não tinha a menor ideia do que fazer e por mais que pensasse nenhuma solução conseguia. Resolveu que falaria com Rui para resolver esse problema. Ao che-gar naquela casa já o esperam: (Nuvens negras envolviam Pedro e várias se destacavam na casa, parecia um grande festival de espectros. As emissões de negros raios, quais relâmpagos, completavam o tenebroso espetáculo, mas ele não via nada... Nada!) — O Rui quer lhe falar. Disse um mal encarado sujeito. Pedro o acompanha e caminham para um aposento dos fundos. O sujeito indica a porta e Pedro entra. Ali estava Rui, Rúbia e mais quatro indivíduos corpulentos e sérios, que ele não conhecia. Rui indica uma cadeira à sua frente. Pedro vai e senta, percebe que o ambiente tenso não é nada agradável. Todos estão com as faces sérias, quase carrancudas. Rui, olhando fixo para Pedro, fala: — Muito bem colega Pedro. Hoje temos que resolver o problema dos pagamentos. O pessoal que fornece não vai mais esperar, quer tudo hoje mesmo e sem qualquer desculpa. Pedro percebe a ameaça, pois sabia que o mundo da droga era regido por marginais. Qualquer fa-lha eles eliminam o mau consumidor. Para eles o mau pagador é um potencial delator. Responde suplicando: — Rui, eu estou tendo dificuldades em obter a quantia necessária. Como não trabalho e só estu-do, o dinheiro que tenho é de uma mísera mesada que meu pai dá, eu preciso de tempo para jun-tar a quantia que devo. Por favor, peça a eles um tempo. Eu pagarei tudo, é só questão de tempo. Rúbia sorri sarcástica, olha com deboche para Pedro e dispara: — Coitadinho do Pedrinho. Tão bonzinho. Está com dodói queridinho? E levantando a voz de modo ríspido, continua: — Para os fornecedores não existem desculpas, se não pagar hoje é pum! Pum! Pum! Viu só como é! Pedro engole a saliva, pois seu estado emotivo provocava intensa salivação. Havia encontrado em Rúbia uma bela companheira e se amarrara nela, mandava vir droga para ela consumir junto

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com ele, os dois bebiam fartamente, mas à conta dele, ela até correspondia nas intimidades e ele nunca poderia imaginar que ela o tratasse assim. Olha para Rui e implora: — Por favor, Rui, me diga o que posso fazer para juntar esse dinheiro ainda hoje. Você tem al-guma coisa que eu possa fazer para isso? Rúbia faz cara de desdém para Pedro, envolve Rui num abraço e beija-o seguidamente, sempre com volúpia. Vai para Pedro e se coloca por trás, passa a mão, languidamente, em seus cabelos, rosto, pescoço, tronco, genitais e, neste ponto, segura forte e aperta muito; Pedro geme. Ela gar-galha e diz: — Está com dodói benzinho. Pensa que é só dar uma de gostoso e o mundo estará aos seus pés. O seu pai ganha muito dinheiro. Trate de dar um jeito na grana dele e traga para nós. Agora, se não quiser fazer isso, temos outro serviço para você; vai puxar uns carros por aí! O que você re-solve queridinho do papai? Pedro aclarou seu pensamento, sua amargura era intensa, Rúbia era a pior canalha que havia co-nhecido. Precisava resolver o assunto e este era caso de vida ou morte. Nunca havia roubado na vida, então, tirar dinheiro do pai, nem pensar. Puxar carro! Era o cúmulo, mas precisava enganá-los, diria que aceitava e veria como sair dessa. Levantou a cabeça, mirou Rui e afirmou: — Muito bem! Irei puxar carro, tantos quantos forem necessários para pagar a dívida. É só me indicarem quais e onde. Rui respondeu: — Está certo menino bonzinho. Vamos te orientar. Você vai ver como é gostosa essa tua... Rápi-da decisão. Tirou do bolso o saquinho, jogou para Pedro dizendo: — Este é por minha conta! E ficou olhando sério para ele. Pedro percebeu que Rui foi sarcástico na resposta, principalmente quando pronunciou - rápida decisão. Sentiu que ele desconfiara de sua decisão, precisava tomar muito cuidado, pois estava lidando com marginais. Ao se recuperar da droga Pedro recebe, de surpresa, a ordem de Rui: — Você vai com o pessoal, eles te deixarão num local já levantado e indicarão o carro a ser pu-xado bem como o local para onde deve ser levado. Faça rápido o serviço, senão - pum! (O quadro do outro lado apresentava uma terrível faceta. Eles eram envolvidos totalmente por entidades escuras, difusas, nojentas, gargalhando estrepitosamente) A rua estava deserta e haviam vários carros estacionados. Ali estava a sua presa - uma Brasília! Era ideal para ser transformada em um utilitário robusto para as areias das dunas do nordeste. Mais uma olhada para todos os lados e nada vê! Avança e examina o interior do veículo, não aparenta ter alarma. Força o vidro e abre a porta, entra, senta e procura com as mãos os fios, faz a ligação e... Nem sinal! Pensa; deve ter um interruptor. Procura avidamente por todo o painel e...: — O senhor perdeu as chaves? Pergunta firme um dos policiais. Pedro gelou. Na procura dentro do carro se distraiu e não vigiou. Pensa lépido e responde: — Eu estou tonto... Acredito que minha pressão caiu. Será que errei de carro? — Ah! O senhor está confuso. Saia do carro! Foi ríspido o policial. Pedro sai e diz: — É sério. Estou tonto. Estou vendo que me enganei de carro! Os policiais o seguram, viram-no e o colocam contra o carro: — Fique quieto. Abra as pernas e os braços! Fazem a revista em Pedro, examinam seus documentos e colocam-no de pé contra o muro, um deles diz: — Tonto? Enganou de carro? Interessante, não achamos nenhum documento de propriedade de carro e nem carteira de motorista. Você é um cara esperto. Vamos até a delegacia resolver sua... Tontura! Pedro entra em desespero e sai correndo desordenadamente. — Pare! Pare ou eu atiro! Grita um policial. Pedro não para e segue em disparada. Ouve o tiro... Sente o choque no joelho... Cai. Grita: — Socorro. Estou ferido. Acudam-me! Tenta se levantar e vê os policiais chegando, ouve um

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carro passando... Barulhos... Nada mais! Os policiais que vinham correndo para Pedro presenciam a cena; com os faróis desligados um carro passa junto a Pedro, pelas janelas saem labaredas de tiros em direção a Pedro e deles, eles se jogam ao chão! Protegidos pelos outros carros estacionados e atirando continuamente os meli-antes evadem-se. Os policiais caminham na direção de Pedro, porém nada mais podiam fazer, Pedro está crivado de balas, está morto! (Ainda bem que os policiais não viam o que estava ocorrendo com Pedro. Agarrado pelos espec-tros ele gritava apavorado e se debatia violentamente. Pedro era arremessado de encontro ao chão agora encharcado de impurezas e eles ainda tentam afogá-lo. Pedro nada enxergava naquela escuridão total e os gritos dos atacantes eram de um barulho infernal! Foi sendo levado... Leva-do... Levado!) João não quer acreditar nos ocorridos, pois não podia admitir que Pedro, mesmo nos seus desvai-rados comportamentos, chegasse a tais insanidades... Consumidor de drogas... Ladrão de carros... Assassinado... Como pode deixar as coisas chegarem a esse termo? Decidiu descobrir quem le-vou Pedro a essa situação, pensou em contratar um bom detetive para prender os culpados e mandá-los para a cadeia. Os miseráveis iriam apodrecer na cadeia e pagar muito caro pelo que fizeram com seu filho... (Os espectros gargalhavam a não mais poder...) Reunindo a família, João conta os fatos e decisões. Júlia teme represálias: — Eu acho que devíamos deixar tudo com a polícia. Esses marginais ligados com as drogas são violentos e vingativos. Também temos que pensar naquilo que dizem por aí; tem gente grossa metida com os negócios das drogas. Vamos cuidar de nós mesmos, talvez devamos mudar daqui e ir para bem longe. — Eu não concordo com você Júlia... Tenho certeza que devemos ficar aqui e enfrentar esses marginais. Nós não somos culpados para ficarmos fugindo. Eu não sou covarde. Eles vão ver com quem se meteram! Reagiu furiosamente João. — João, nós também não somos covardes e não estamos nos sentindo culpados para fugir. O que devemos pensar é nas nossas culpas pelo que aconteceu. Sabíamos que Pedro estava ligado a drogas desde Itabaté. Será que, por mudarmos para esta cidade, seria suficiente para ele abando-nar seu vício? Como foi que o vigiamos? Em qual momento desconfiamos se ele continuou a usar drogas? Esses marginais têm culpa, mas é só deles a culpa? Ou nós somos cúmplices dessa desgraça que se abateu sobre nosso filho? — Então é assim. Eu enterrado até o pescoço no serviço e tentando ganhar o futuro de todos nós, agora sou responsável pelo assassinato de nosso filho. Não... Eu não aceito esse seu modo de pensar. Se você quer se sentir responsável que o faça. Eu não me sinto e nunca me sentirei cul-pado pelo que aconteceu ao nosso filho! O predomínio material de João aflorou na resposta. Ana e Nininha trocaram olhares, um aceno com a cabeça foi como anuência de Ana para Nininha intervir: — Papai, o senhor está colocando a situação num enfoque muito particular. Nós todos sentimos a sua ausência em casa. Não podemos reclamar nada com respeito a dinheiro e temos quase tudo que desejamos. A presença do pai no lar, sempre representa uma garantia para os filhos, seja pela sua palavra, experiência ou modelo. Pedro deve ter sentido muito a sua ausência, foi procurar apoio em outro lugar e... Deu no que deu. Não acho que nos devamos sentir que sejamos culpa-dos ou sejamos vítimas por tudo que até agora ocorreu. Mas devemos tomar atitudes construtivas daqui para frente, sempre tentando evitar que novas tragédias possam vir. Essa é a nossa opinião. — Lindo! Estou desconfiando, para não dizer tendo certeza, que vocês já acharam o culpado de tudo; eu! Viram como é fácil descobrir os culpados de tudo; os outros! Façam como bem enten-derem. Eu vou continuar minha vida como a estou levando, pois não me sinto culpado de nada... Nada! João levantou e saiu rápido. (Seu cérebro não captou a vibração e a algazarra da turma do outro lado a envolvê-lo) — Parece que nossos sonhos quase viraram realidade, só falta o problema de Lucinha. Vocês não pensam assim minhas filhas? Inquiriu desapontada Júlia. — Sim mamãe, é verdade. Responderam Ana e Nininha em uníssono.

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A tarde é convidativa, pois os cálidos raios solares estimulam ao lazer. Ana e Ricardo saem para um passeio à beira-rio, sentam-se sobre um tronco e bebem a paisagem. Ricardo já notara a mu-dança de comportamento em Ana, ela estava mais triste e fechada. Olhando-a pensou; será que eu sou a causa? Esperou que Ana desviasse o olhar da paisagem e colocou: — Ana, eu estou te amando muito. Por esse motivo, estou preocupado com você. Tenho obser-vado uma mudança muito grande em seu semblante; você está terrivelmente triste! Por favor, me diga; sou o responsável por isso? Ana foca o olhar nele; um delicioso olhar. Pensa... E responde: — Ricardo, você é a única alegria verdadeira que tenho. Os problemas que estamos passando lá em casa é que estão me deixando fora de órbita. Mas você mudou, pois não usou os títulos que me conferiu e eu não gostei. — Minha amada rainha Ana. Eu pensei que os títulos poderiam estar irritando sua majestade e por esta razão não os usei. Perdoe-me terna rainha. Não aplique sobre minha pessoa nenhum ter-rível edito real. Não quero morrer. Deixe-me vivo minha rainha, para que eu possa servi-la e amá-la pelo resto de sua vida! Falou Ricardo, fingindo seriedade. Ana sorriu, com um sorriso luminoso e seu rosto desanuviou por completo. Ainda rindo disse: — Pois bem, assim sendo, eu a rainha da ricardolândia decreto e promulgo o seguinte: — Se o servo Ricardo não mais esconder sua reverência e amor para com a rainha estará perdoado! Ri-cardo também sorriu, tocou-a nas mãos e entrelaçaram os dedos, olhou-a bem nos olhos, percor-reu com as mãos os braços dela, envolveu-a num terno e apaixonado abraço, um beijo suave e longo determinou a amplitude do amor que os envolvia. Novamente segurando as mãos de Ana, pergunta: — Sendo possível, minha rainha, conte-me o que se passa, talvez seja possível que eu possa fa-zer alguma coisa para minorar o problema. Por favor, me conte. O seu segredo e de sua família, será protegido por nosso amor. Ana sentiu que poderia confiar nele, mas o problema de sua família era espinhoso, muito delica-do. Hesitou pensativa e decidiu; contaria! Se ele a amava verdadeiramente compreenderia o pro-blema e se nada pudesse fazer, pelo menos estaria ciente da ocorrência que a perturbava: (Os espectros próximos de Ana ficaram parados, como se não quisessem ser notados) — Ricardo, eu vou lhe contar tudo. Tenha bastante paciência, pois a história é longa. Tudo co-meçou... Como você pode perceber é muito delicado e complicado, até beirando o absurdo. Ricardo encheu-se de ternos sentimentos e até de alguma pena! Ana realmente tinha motivos de sobra para ficar traumatizada. Pensou numa maneira de ajudá-la e falou: — Eu não prometo nada e peço que mantenha entre nós isto que vou dizer: — Tenho um parente no alto escalão do governo, entrarei em contato com ele, acredito que se Lucinha estiver viva ou morta teremos respostas. Pelo nosso amor eu irei apressar o contato com ele. Ana o abraçou radiante. Durante um bom tempo não ouvia uma notícia positiva. Respondeu: — Sim. Eu sei que não devo esperar, mas aguardo a solução do problema Lucinha. Pode estar tranquilo, que isto ficará entre nós até a sua resposta definitiva. Ricardo aproveitou o abraço e beijou Ana, também comovido pela alegria dela emendou: — Declaro para minha rainha que tenho um importante pedido a fazer. — O meu maravilhoso servo tem todo o crédito: — Faça o pedido! Respondeu ela sorridente. Com o semblante sério, Ricardo faz seu pedido: — O tempo em que a conheço e principalmente em que estamos nos relacionando, me leva a este pedido especial ao qual peço sua colaboração integral. Notei que na sua casa a religião está au-sente. Como eu fui criado dentro de um princípio religioso notei que a falta dele em você provo-ca grandes transtornos comportamentais. Esses transtornos ocorrem em razão da falta de conhe-cimentos das suas possíveis razões. Como você me contou todos os problemas de sua casa, os que me chamaram mais a atenção foram os sonhos. Não vou agora falar deles. Peço que venha comigo em alguns atos religiosos, confiando nas minhas razões e, após estas frequências, con-versaremos a respeito. Por favor, minha amada rainha, me atenda. (Os espectros tremeram, sentiam que algo se intrometia entre eles e Ana, barravam suas emis-sões de vibrações desequilibradas, envolviam-na um manto claro e uma camada de luzes oscilan-tes que partia de Ricardo. Resolveram se afastar um pouco)

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— Sua rainha atende de bom grado e com confiança. Falou firme Ana. — Muito bom. Minha rainha deve reservar a noite de quarta-feira para esse ato, eu a pegarei pe-las sete horas da noite. Colocou entusiasmado Ricardo. Nininha observava a mudança que ocorria com Ana, realmente ela estava mais disposta, alegre! No momento em que está sozinha com Ana, indaga: — Vejo que você está muito bem Ana, gostaria de saber como pode ser isso, você pode me ex-plicar? — Nininha, eu estou amando. O Ricardo é um ótimo companheiro, ele me apoia e conforta. Até estou indo com ele ao Evangelho num Centro Espírita. Estou descobrindo um mundo novo Nini-nha. Muito diferente daquele em que estávamos mergulhados. A religião esclarece muitas coisas e eu estou aprendendo muito da vida. Respondeu Ana. — Deve ser bom mesmo. Pois estou vendo isso em você. Posso ir junto algum dia? Falou Nini-nha. — Sim Nininha. Você verá como isto é ótimo. Será bom para você e para o Alfredo. O Evange-lho é na quarta-feira às sete horas da noite. Afirmou Ana, abraçando com entusiasmo a irmã. Nininha ficou pensando no compromisso, iria falar com Alfredo a respeito. Alfredo ouve Nininha, em seu rosto demonstra a contrariedade. Ela acabara de falar e muito emotivo ele diz: (Movimentam-se os espectros sobre Alfredo, focam seu cérebro e projetam fanáticas sugestões) — Eu ouvi você com paciência e não cortei sua narrativa, agora, por favor, não corte a minha. Ricardo está enganando a sua irmã, pois esse lugar em que estão indo não é igreja. Logo ele esta-rá fazendo adivinhação e consultando os mortos, mas isso é proibido pela Bíblia. É pecado con-tra Deus. Você deve frequentar a minha igreja, nós da igreja dos eleitos de deus abominamos es-sas falsas igrejas, nós somos o povo eleito para a salvação. Venha comigo para a minha igreja e se salve eternamente! Trate de fugir desses diabos pintados de gente, eles serão a sua perdição! (Alguém mexe com Nininha, não deixando que as ásperas palavras a perturbem) Nininha se arrepia. Ela não estava acostumada com nenhuma religião e neste seu primeiro conta-to alguém já estava lhe falando de pecado. Ficou assustada. O que faria? Lembrou-se do pai e da mãe. O pai criticava a religião dizendo que eram mercenários. Comparou as falas deles e decidiu não seguir ninguém. Para não ferir Alfredo falou: — Eu vou pensar um pouco, preciso de um tempo para decidir. Não acho correto de minha parte ir a qualquer lugar em que desconfie. Quando me decidir eu irei para aquela que achar melhor. É melhor mudarmos de assunto, pois precisamos estudar para a prova de amanhã? Alfredo vendo a rigidez do rosto e a postura mental de Nininha resolve concordar: (Os espectros bufavam) — Está bem, vamos estudar. Na quarta-feira Ana chama Nininha: — Vamos lá Nininha, já está na hora. — Na hora do quê? Respondeu Nininha. — Vamos ao Evangelho, você não se lembra. Foi isso que combinamos, ou não foi? Colocou Ana. — Eu não estou me sentindo bem. Vocês vão, em outro dia eu irei. Friamente continuou Nini-nha. Ana percebe que algo mudou com sua irmã, aproxima-se bem dela e diz: — Ir ao Evangelho ajudará você a melhorar. Frequentar o Evangelho não quer dizer que você pertence a esta religião. Venha pelo menos uma vez e verifique por si mesma, se você não gos-tar, não será obrigada a ir outra vez. A decisão é toda sua e isto é exercício do livre-arbítrio! (Um bondoso “sopro” ajuda Nininha) Nininha apanhada desprevenida pelos argumentos de Ana aceita: — Muito bem, irei por seu pedido e depois verei o que farei. Vamos!

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Ricardo orienta Nininha dos procedimentos: — Será feita a abertura do Evangelho e o Pai Nosso será pronunciado. A seguir será feita a leitu-ra de um trecho do Evangelho Segundo o Espiritismo e haverá um explanador da leitura feita. Em continuidade será ministrado um passe, mas apenas aos que aceitarem. Este consiste na im-posição de mãos, assim como fazia Jesus, o Cristo, pois por Suas mãos corriam os fluidos bené-ficos. Ao final dos passes faz-se novamente uma oração e mentalização bondosa para os necessi-tados. Se não quiser o passe é só permanecer sentada! Nininha observava tudo, esta era sua primeira vez numa casa religiosa, numa comunidade religi-osa. Estava um pouco assustada, pois não conhecia o ambiente. Seus olhos percorriam a simples sala, sem qualquer ornato, sem imagens e sem fotos ou quadros. A mesa estava coberta por uma toalha bege com um vaso de margaridas ao centro, bandeja com recipiente d’água e copinhos plásticos no canto; para o quê seriam? As pessoas estavam quietas e sérias, mas não tristes. Pos-taram-se à mesa três pessoas, a postada no centro da mesa tomou a palavra: — “Boa noite! Caríssimos irmãos, mais uma vez estamos reunidos nesta casa Cristã, nas diretri-zes da Doutrina dos Espíritos. Peço licença aos bondosos irmãos do plano espiritual para início deste Evangelho fluidoterápico. Mentalmente me acompanhem na oração que o Mestre Jesus, o Cristo, nos ensinou: — Pai Nosso... Amém. Agora o nosso irmão Luiz fará a leitura e nosso irmão José fará a expla-nação”. Luiz procede à leitura: — “Boa noite! Hoje será abordado o capítulo XVII do Evangelho Segundo o Espiritismo, com o título ‘Sede Perfeitos’. A leitura enfocará o item 10, cujo subtítulo é ‘O humano no Mundo’. E Luiz passa à leitura: — Um sentimento de piedade... Que vos amam e vos dirigem”. Terminada a leitura, José levanta, vai para frente da mesa e inicia sua explanação: — “Boa noite irmãos! Vivemos no mundo material gozando das benesses que nós conseguimos ou das que nos são ofertadas. Não nos lembramos, nunca, de agradecer a Deus por todas elas. Já, quando a desgraça se abate sobre nós, o que fazemos? ... Que a paz do Cristo se abata sobre nós! Obrigado.”. Concluída a explanação de José, o sentado entre os dois anteriores fala: — “Agora estamos no momento do passe. Vamos dirigir nossos pensamentos para aqueles que assinalamos nos papéis. Para os ausentes... Para aqueles que prejudicamos... E, finalmente, para nós mesmos. Recebamos o passe com o pensamento de amor ao próximo”. Concluída a parte dos passes, retoma a palavra: — “Agradecemos por mais esta oportunidade de aprendizado e rogamos permissão para encerrar este Evangelho fluidoterápico. Que os bondosos irmãos do plano espiritual nos intuam e a luz do irmão maior Jesus, o Cristo se abata sobre nós. Deus nos abençoa eternamente. A paz do Senhor esteja com todos!”. Ricardo, Ana e Nininha dirigem-se a um restaurante para comer uma pizza. A curiosidade de Ni-ninha é apresentada na pergunta dirigida a Ricardo: — Por que as pessoas tomaram o copinho d’água depois do passe? — A água, conforme você viu, fica no vasilhame durante todo o Evangelho. Os Espíritos modi-ficam as características dessa água, introduzindo nela elementos diferentes e próprios para as ne-cessidades de cada um, seja no sentido físico, seja no psíquico. Embora você ainda não acredite, todos os que estavam no recinto, inclusive você, foram beneficiados pela fluidificação. Para os estudantes da Doutrina dos Espíritos, a parte mais importante do Evangelho é o esclarecimento das mensagens de Jesus Cristo. O entendimento e aceitação dessas mensagens nos levam a uma grande modificação e totalmente de sentido moral. Isto ocorrendo, transformamos nossa vida e mudamos nosso enfoque existencial, divisamos com mais clareza o horizonte espiritual, bem como o caminho evolutivo espiritual ao qual fomos destinados pelo Pai Eterno. Respondeu pau-sadamente Ricardo. — Mas eu não senti nada. Retornou Nininha. — É natural que não sinta nada. O sentir a que você se refere é puramente material. No nosso es-

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tágio evolutivo, extremamente egoístico, só ligamos para os efeitos materiais. Queremos sarar dos nossos dodóis. Mas o que são esses dodóis? Isto é importante, é o mais importante! Todos os nossos problemas carregam a marca da nossa trajetória evolutiva espiritual, marcas essas adqui-ridas pelo nosso comportamento em cada encarnação. Quando agimos corretamente estamos evoluindo, já quando agimos erroneamente, nos carregamos de dívidas, de cobradores ou inimi-gos, e teremos que consertar todos os nossos erros em encarnações futuras. Os nossos dodóis na-da mais são que essas dívidas. Vamos ter que pagá-las, quer queiramos, quer não... É da justiça da Lei de Deus. Quanto mais a demora em aceitar essa justa justiça de Deus, mais encarnações terão que enfrentar e mais doloridas serão essas encarnações. Não atingiremos a plenitude espiri-tual enquanto não trilharmos corretamente todo o caminho evolutivo que Deus nos destinou, ru-mo à pureza e perfeição total. Colocou calmamente Ricardo. — Eu não consigo acreditar nisso que você está falando Ricardo. Falou Nininha. — É claro que não pode acreditar. Você terá que ler os livros da Doutrina dos Espíritos e, se vo-cê aceitar essa filosofia religiosa, aí sim começará a acreditar! Portanto, nada conclua sem co-nhecer e esta é a recomendação da Doutrina, isto é; use integralmente sua razão! Veja bem que, a Doutrina dos Espíritos recomenda a isenção de emoção nas decisões importantes e, muito ao contrário, diz para usar todo o conhecimento e até a lógica, para não ser enganada por falsas as-pirações momentâneas e puramente materialistas. Emendou Ricardo. — Vou pensar em tudo isso. É muita coisa para a minha cabeça. Concluiu Nininha. (E lá se foi Nininha, agora com seu séquito tenebroso já próximo) Decisão difícil Alfredo decide convidar Nininha para o culto em sua igreja: — Gostaria que amanhã você me acompanhasse ao culto, o que me diz? Nininha se espanta com o convite, estava distraída e não esperava isso. Pensa e responde: — Alfredo, eu estou perturbada com esse convite e não estou acostumada com igreja, em casa meu pai nos colocou coisas com respeito a todas elas e eu não gostaria de ir à sua com preven-ção. — Pois esta é uma ótima razão para você ir comigo! Você verá que a minha religião é a certa e que seus problemas serão resolvidos, vamos lá! Garanto que nunca mais deixará de ir à minha igreja, pois ficará inscrita no número de eleitos para a ressurreição e viver eternamente na nova terra de Canaã! Nininha nunca houvera ouvido nada parecido com o que Alfredo estava dizendo, para ela isso era grego! Chateada, mas não querendo atritar, concorda: — Tudo bem Alfredo, eu irei! (Urros ecoaram na escura nuvem) Ao adentrar na igreja Nininha notou as pessoas, elas estavam vestidas de modo diferente; os ho-mens de terno, com gravata e chapéu e as mulheres com vestidos e cabelos compridos, sem ma-quiagem. Notou que havia separação entre homens e mulheres, eles se cumprimentavam uns aos outros e davam glórias, elas estavam mais discretas, apenas se entreolhavam. Era um ambiente bem diferente daquele que vira no centro espírita. Alfredo se aproxima dela com um senhor de meia idade: — Pastor Marcos, esta é a senhorita Maria, é a primeira vez que ela frequenta nossa igreja. — Você foi abençoada minha irmã! Nesta casa você será conduzida para a glória de Deus! As suas amarguras e as dores, as suas preocupações e as dificuldades, tudo isso será apagado de sua vida! Basta se entregar ao Senhor de todo seu coração, de toda a sua alma! Ele te elevará e alivi-ará! Seja bem-vinda! Aleluia Jesus! Falou o pastor num tom emotivo. Nininha ficou estática, não sabia o que fazer. Aquelas palavras, naquele tom, a fizeram assusta-da, nunca havia ocorrido nada parecido com ela. Olhou para Alfredo, como a pedir socorro. — Nininha, você pode se salvar, basta ter fé no que diz o pastor Marcos, ele nos guiará por ca-minhos puros, longe dos pecados do mundo, distante das provocações mundanas e separada dos imorais e sexólatras! Aceite esse Jesus e esse Deus que o pastor apresenta. Veja que pureza! Que

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perfeição! Venha fazer parte daqueles que herdarão a terra prometida, a terra de paz e amor, de justiça, governada por Jesus Cristo! Foi a resposta de Alfredo ao pedido de socorro de Nininha. Não entendendo, mas sentindo uma rara calma, olhou para os dois e sorriu levemente, neste momento sentiu que sua mão era segura por outra e foi puxada em disparada para fora da igreja. Correu para casa e, lá chegando, foi para seu quarto, deitou-se e ficou a pensar; o que houve co-migo? Qual a razão da calma estranha? Quem me puxou para fora da igreja? Não achou explica-ção alguma! Relaxou e dormiu. (Ainda bem que conseguimos tirá-la a tempo, pois os concorrentes sobrecarregariam nosso traba-lho se ela ficasse ali. E a turba sorriu). Outro dia Júlia nota que todos estão alegres à mesa, ela havia servido macarronada, nada havia de extraor-dinário, então qual seria a razão da alegria? Olha para Nininha, Ana e Ricardo, pergunta a este: — Será que pode me explicar esta alegria dominante? Ricardo sorridente mira Júlia, limpa os lábios lentamente e responde: — Onde a luz de Jesus Cristo penetra os problemas se afastam! Os bons companheiros do plano espiritual estão felizes conosco, estamos começando a trilhar um bom e correto caminho e a feli-cidade deles se irradia nos deixando alegres. — Mamãe! O que Ricardo está colocando é que, pelo fato de estarmos aprendendo sobre Jesus Cristo e estudando religião, os nossos problemas começam a ser aclarados e, assim sendo, pode-mos mais fácil resolvê-los! Emendou Ana. Júlia fitou Ana com atenção. Realmente ela estava diferente, estava... Radiosa! Desviou para Ni-ninha e a viu... Serena! Ricardo completava o quadro harmonioso. Resolveu: (A vibração dos companheiros era enorme, abria-se uma porta no coração de Júlia! A agitação dos espectros, ao longe, era tormentosa). — Acho que vou acompanhá-los nesses estudos... Posso? Ricardo sentiu que a oportunidade era essa e respondeu rápido: — É claro dona Júlia! Eu tenho certeza que todos a ajudarão! Já estou programando para quarta-feira a sua companhia a nós três. (Alguns raios são enviados pelos espectros, focam o cérebro de Júlia). — Eu esqueci que o João volta na quarta-feira, é bom aguardarmos a decisão dele. Colocou de modo esquisito Júlia. Sentindo que Ana e Nininha iriam intervir, Ricardo, tendo percebido a mudança em Júlia, abran-da a situação: — Está bem “mamãe” Júlia, sempre é bom estarem todos de acordo. A harmonia familiar é o sustentáculo de todas as boas iniciativas e, assim sendo, é de suma importância que o senhor Jo-ão esteja ciente dessa pretensão da senhora, espero que ele tenha um bom entendimento com res-peito a isso. Nuvens negras no céu azul Júlia ouve o barulho do carro chegando, sai correndo para receber João, envolve o seu pescoço num forte abraço, beija-o e diz: — Querido, estou morrendo de saudades! (Ela não consegue ver os fios negros que o ligam aos vultos sombrios). João recebe o abraço e o beijo, mas não corresponde ao calor dela: — Estou bem e espero que por aqui tudo também esteja tranquilo. Júlia percebeu a reação fria de João, sentiu que poderia representar problemas. Respondeu inqui-rindo: — Aqui tudo bom. Acredito que você não carrega notícias agradáveis, mas espero estar engana-da. — Não minha querida, está enganada! As notícias são ótimas, pois nós vamos embora desta ci-dade logo que terminarem as aulas, ou seja, dentro de três meses. As obras sob minha responsa-

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bilidade estão em fase final e já fui informado que serei transferido para a sede da empresa em São Paulo. Aproveitei esses dias para dar uma olhada em possíveis locais de moradia e visitei es-colas. Acredito que não teremos problemas ao nos mudarmos. Júlia tremeu, seu cérebro fervilhava; agora que está mais calmo por aqui vamos recomeçar uma nova adaptação. Como será que as crianças receberão a notícia? E Ana com Ricardo, como fica-rão? Será que Nininha aguentará mais uma vez? Mesmo com a mente em tumulto, raciocina e coloca: — Mas é definitiva a decisão? Será que não poderíamos, todos juntos, discutir esse problema? (Agitou-se violentamente o cortejo de espectros, os fios eram balançados com fúria). João avermelhou, seus olhos assumiram a feição de furiosos animais em luta mirando suas pre-sas. Tremendo até na voz, gaguejando, pragueja para Júlia: — Como você pode acreditar que eu tomaria qualquer decisão ruim para a família! Será que ago-ra são os filhos que dirigem esta casa! Será que eles sabem melhor do que eu o que é importante! A decisão é a melhor para todos nós e quem não gostar que se vire! A porta da rua é serventia da casa! Tudo está decidido e nada será mudado! Espero que agora tenha compreendido e não mais se discuta este assunto! Vou me trocar! Pegou suas malas e entrou rápido na casa. (A euforia dos espectros era indescritível, parecia comemoração de conquista de um troféu ex-tremamente importante). Júlia sentiu como se o firmamento houvesse caído sobre ela. O que fazer? Não conseguia atinar para qualquer solução. Resolveu dar um tempo para se acalmar e depois pensaria. Conforme as jovens foram chegando, Júlia pedia para que nada discutissem com o pai, depois, em outra hora, diria a razão. Ao jantar, com Ricardo presente, João comunica a decisão da mudança para todos. Conforme a mãe havia pedido ninguém discutiu, porém estranharam demais. Ricardo quer perguntar a respeito de seu relacionamento com Ana e como ficaria com a mudan-ça: — Senhor João... Mas por um brevíssimo momento vislumbrando os acompanhantes de João: — Eu... Gostaria de poder levar Ana ao cinema depois do jantar, espero que nada mais tenha de im-portante para avisá-la. João não estranhou a pergunta, achou-a até infantil e respondeu: — Nada tenho contra, pode levá-la, mas voltem tão logo termine a sessão! — Obrigado senhor João. Voltaremos rapidamente. E Ricardo, olhando para Ana, faz um meneio com a cabeça indicando a porta. Terminada a refeição Ricardo pega Ana pelo braço e, quase à força, a leva para fora: — Desculpe minha rainha, mas nada podia falar na frente de seu pai, por isso eu inventei essa de cinema. Nós iremos ao cinema, mas não para assistir ao filme e sim para conversarmos. — Tudo bem Ricardo, mas o que é que tem de tão importante com o papai? Perguntou Ana afli-ta. Já dentro do cinema, sentados nas últimas poltronas, Ricardo inicia a conversa: (Interessante observar os espectros: eles ficaram de longe, só espiando...). — Ana. Minha querida rainha. Nós ao nascermos, isto é, reencarnarmos, trazemos das outras en-carnações os nossos créditos e os amigos, mas também trazemos nossos débitos e os cobradores, ou seja, aqueles que prejudicamos. A família e o nosso círculo de relações, normalmente é o maior reduto desses amigos e cobradores. É comum que marido e esposa, irmãos e parentes ou amigos concentrem a maioria daqueles com os quais já estivemos em outras encarnações, sejam amigos ou cobradores. Os que não estão encarnados, mas ainda em desequilíbrio, ficam junto de seus devedores, podendo influenciá-los ou não, isto depende apenas e tão somente daquilo que estamos fazendo para o nosso crescimento espiritual ou para o nosso orgulho material. Se esti-vermos um pouco mais ligados aos valores espirituais; os nossos amigos desencarnados nos aju-dam, mas, se estivermos ligados ao atendimento puramente material; os nossos credores nos co-bram, atrapalhando nossa estabilidade e induzindo-nos a lamentáveis erros, o que nos precipita nas tramas da vibração desequilibrada, podendo, até nos levar ao suicídio.

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(Os espectros, ao longe, tremiam de ódio). Depois de uma breve pausa Ricardo prossegue: — No caso presente; a sua família, nela existe uma situação de muito desequilíbrio. Sua irmã Lúcia era sensitiva, ou como dizem; médium! Foi afastada em razão das vibrações trevosas do grupo. Pedro estava envolvido pelos cobradores desequilibrados e você viu no que deu! Nininha oscila entre ouvir os amigos e ouvir os cobradores. Sua mãe é o mesmo caso de Nininha. Seu pai é um enorme problema! Ele é um grande devedor e os cobradores o envolveram, ele aceitou mansamente esse envolvimento que o está cegando. Os credores dele, que são quinze e todos de-sequilibrados, sequiosos por vingança da forma que for, ou seja; da pior forma possível! Todos vocês estão envolvidos, de uma forma ou outra, nessa grande dívida. A sorte é que existe uma ajuda extraordinária a favor de vocês; Lúcia! (Os espectros tombaram, parecendo terem sido atingidos por uma grande pancada, a balburdia era grande. Afastam-se mais ainda). Ricardo continua: — Fazendo essa explicação, creio que você já pode ter uma ideia do que está se passando. Você conseguiu entender Ana? (Os espectros faziam a nuvem pulsar de forma violenta, se aproximam ao máximo, lançam fios negros contra Ana). Ana olha para ele pensativa e mil coisas passam pela sua cabeça. Sente que uma onda nervosa a invade, tenta se controlar e responde: — Eu ouvi tudo Ricardo. Muita coisa eu não entendi, pois você sabe que eu pouco conheço do Espiritismo. É difícil aceitar certas coisas quando não as conhecemos e principalmente quando atingem aqueles a quem amamos. Por mais que eu discorde de meus pais e irmãos, não consigo vê-los com as imagens que você pintou. Despreparada como estou, como eu poderia aceitar essas coisas que você disse de todos da minha família? Respondeu Ana, agora firme. (Bailam os espectros, gargalham de modo estridente). Ricardo sente a vibração presente, tenta mudar a abordagem: — Ana, eu... — Por favor, Ricardo, é melhor sair daqui, tomar um sorvete, mudar de conversa, pois já estou ficando irritada! Abruptamente proferiu Ana. Ao conduzir Ana para a sorveteria, Ricardo pensava numa forma de retomar a conversa com sua amada. Ele tenta: — Minha rainha deve perdoar o seu desastrado súdito. Devia tê-la ajudado, mas não do modo que coloquei, eu fui realmente infeliz. Por favor, me perdoe minha adorável rainha! Não foi o pedido que comoveu Ana, foi a ternura colocada nas palavras. Como a amorosa ternu-ra mexeu com o emotivo dela, dissipou-se a pesada vibração que a envolvia e eclodiu o suave sentimento que nutria por Ricardo. Olhou bem firme nos olhos dele, sentiu que choravam de dor, imbuiu-se de esquecimento e proferiu: — A rainha entende o cuidado que seu amoroso súdito teve, mas pede o esquecimento de tudo e voltemos aos tratos normais já que estes foram os que sempre nos aproximaram. A rainha deter-mina o rápido perdão pedido e taxa seu leal súdito com vários beijos de castigo! Ela agora já sor-ria para Ricardo. A resposta de Ana teve o dom de harmonizar o ambiente. Ricardo sentiu que clareavam suas ideias. Envolvido pela boa atmosfera passou a pagar a cobrança real, envolveu-a com carinho e beijou-a várias vezes até ficarem praticamente sem fôlego. Ao se apartarem estavam gargalhando de emoção e alegria. (Algo distante os espectros urravam de ódio. Uma barreira os impedia de se aproximarem do ca-sal). Ricardo não atinou bem a razão, mas algo lhe dizia para não permanecer na casa. Entrou, despe-diu-se de todos e abraçados, no portão, despede-se de Ana: — A minha rainha deve entender que tenho compromissos para amanhã cedo, esta a razão de já estar indo embora. Este súdito gostaria de ficar eternamente ao lado de sua rainha, porém o corpo

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está cansado de um dia cheio como este foi e que também será o de amanhã. Durma como um anjo minha rainha! Ana desconfiou da desculpa, mas não demonstrando essa desconfiança, o beija e despede: — Até logo mais meu amor! Ricardo vai embora sentindo que deixa um grande peso para trás, uma angústia se introduz em seu coração. (Grande algazarra de alegria se apresentava na nuvem espectral, agora envolvendo toda a casa de João). Ana adentra na sua casa e na sala estão todos reunidos num bate-papo. É saudada por João com um palavreado estranho: — O feiticeiro já se mandou? Ele sentiu que se daria mal com as suas conversinhas por aqui. Muita atenção filha, esse tipo de pessoa é pior que víbora peçonhenta! Ana sentiu uma agulhada em seu cérebro e seu coração acelerou, ficou com a mente confusa, mas mesmo assim respondeu: — Pai, eu não o vejo como feiticeiro, diria que Ricardo está muito confuso e suas ideias não são claras. Tomarei cuidado sim, pode estar tranquilo papai. (Na sala quase se podia apalpar a pesada vibração e todos estavam envolvidos pela escura nu-vem. Raios são dirigidos para Nininha). — Ainda bem que papai nos alertou do perigo desses fanáticos religiosos! Percebo agora que o meu e o seu tentam nos afastar de nossa casa e de nosso convívio familiar. O Ricardo não tentou isso irmã? Nininha falou sem a menor consciência da gravidade daquilo que pronunciava. Ana ficou extática e não conseguia raciocinar direito para responder à indagação de Nininha. Todos ficaram olhando-a e aguardando uma resposta. (Os raios agora se dirigiam contra Ana). — Pensando bem eu acho que você está com a razão minha irmã. Nós nos deixamos envolver e quase separamos a família, escapamos por pouco e ainda bem que papai sustentou fortemente a correta posição não permitindo que fôssemos enganadas. Ana vai ao pai e o abraça forte: — Estou muito grata papai, a sua orientação nos evitou graves problemas. (Alegria geral na nuvem, os espectros vibravam. Agora os raios eram para João). — Este é um momento muito importante na vida desta família. Eu sempre falei que religião era enganação, era só olhar nos representantes das várias que por aí estão; já viram alguns deles ma-gros? Esfarrapados ou mal vestidos? Com aparência de sofrerem? Sabem por que eles lutam tan-to para que as pessoas sejam das suas religiões? Ao entrar nessas religiões a primeira coisa que fazem é pedir dinheiro para o seu deus, dizendo que esse deus vai lhes devolver em felicidade, saúde, bom casamento, progresso etc. A única coisa que não falam é quem é esse deus! Ora, é só pensar um pouco e se descobrirá que esse deus se chama... Dinheiro! Posse, poder, política, mando, riqueza e tudo mais para eles e... Bananas para os que acreditam neles! Os bestas que acreditam neles esperam comprar um céu com esse dinheiro que dão para esse deus, e eu não acredito que exista nem o céu e nem esse deus. Como vocês podem ver, esse deus que se chama dinheiro é o foco principal desses espertalhões. Por mim não cairemos nessa, o meu dinheiro é ganho com muito trabalho e suor e esse deus, se quiser dinheiro e fortuna, que vá trabalhar, co-mo eu estou fazendo! Colocou João, sentindo um grande prazer em falar. “Ana se vira e vê Lucinha, uma alegria imensa a invade e seu coração parece que vai explodir de emoção! Tenta articular alguma indagação e sente que é extremamente difícil pronunciar algo, está oprimida pelo inesperado ocorrido. Pelos seus pensamentos correm mil indagações a serem feitas para Lucinha, mas nada consegue!”. E Lucinha fala: “Minha querida irmã, estou cheia de saudades de todos. Embora longe de casa, eu estou acom-panhando os problemas que os atingem e fico aflita pela dificuldade que vocês estão tendo para amenizá-los!”. “Vou tentar esclarecer alguns pontos para que possam melhor enfrentá-los”.

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“Começo pelo Pedro; ele se encontra em uma região própria para o tipo de morte que teve, mas está sendo observado com carinho”. “Quanto a Nininha vai um recado; a religião é o único caminho para o entendimento dos pro-blemas duvidosos e aflitivos”. “Para a mamãe, além do abraço carinhoso, digo que ela terá que tomar muito cuidado com a saú-de, as preocupações e a irregular alimentação poderão afetá-la gravemente”. “Ao papai, fortes abraços, procurem ajudá-lo muito, pois ele está desorientado e corre perigo. Orem muito, mas muito mesmo por ele. Diga que ele não deve se precipitar com a mudança, pa-ra pensar e pesar a todas as situações que ocorrerão com essa mudança”. “Para você minha querida irmã eu afirmo que, o modo como entenderam os sonhos não é o cor-reto, existe outra interpretação, mas só mais tarde vocês saberão, por enquanto só posso dizer; esqueçam as preocupações que estão tendo pela equivocada interpretação havida. O seu compa-nheiro é correto, salvo se não gostar dele procure conhecê-lo melhor”. “Eu não vejo a hora de encontrá-los e de abraçá-los, porém tenho certeza que será breve! Receba um afetuoso beijo desta sua irmã que muito a ama!”. Ana ficara imóvel, estava como que pregada ao chão, tentava se aproximar de Lucinha para abraçá-la e beijá-la, mas não conseguia se mover! A figura da irmã era radiante, de uma clarida-de argentina e transmitia paz, nunca havia visto ou sentido algo semelhante! Quando Lucinha terminou de falar Ana faz um enorme esforço para tocá-la, mas ela se desvanece... Ana sente um impacto e, acordando trêmula, rápido pensa; o que será que me aconteceu? Será real? Ao café matinal Ana fica olhando para as fisionomias dos familiares. Seu pai está sisudo, hirto. Sua mãe com rugas vincadas pela preocupação. Nininha estava ausente; onde estaria seu pensa-mento? Resolve que o momento é propício para contar o seu sonho e o faz sob os olhares estra-nhos dos outros. Terminada sua narrativa fez-se um grave silêncio! Seu pai foi quem fez a ruptu-ra: — Que coisa linda! Uma mensagem indicando que nossa amada filha está preocupada conosco e com nossos problemas, indicando soluções. É uma pena que não tivesse dito onde está, pois po-deríamos ir visitá-la, vocês não acham que seria ótimo isso? Minha Ana... Minha cara filha, quanto mais passa o tempo e quanto mais coisas acontecem, mais eu reforço minhas convicções; a religião e seus frequentadores são todos feiticeiros! Vou começar por mim; a mudança de local de trabalho é altamente vantajosa, tanto financeiramente como de ambiente e oportunidades, para mim e para vocês. Já pensei muito nas vantagens e possíveis desvantagens dessa mudança e con-cluí que lá é muito melhor para todos nós, em qualquer enfoque. Sua mãe está de saúde abalada por várias razões, pelos problemas dos filhos e em especial aquele do Pedro, mas está em trata-mento médico e eu não creio que o feiticeiro seja melhor em medicina que qualquer médico! E, finalmente, para você minha filha, o seu feiticeiro deve estar muito aborrecido por ter largado a igreja dele! Acredito que tenha feito você tomar ou comer alguma coisa hipnotizante, assim foi fácil induzir o seu sonho! Como vocês estão vendo, eles se aproveitam das dificuldades e dos de-sequilíbrios normais da vida das pessoas e famílias, infiltram-se sorrateiramente em nossas vidas e propagam seus misticismos apenas para angariar dinheiro para os seus deuses! Em conclusão a tudo; devemos deixar esta cidade o mais rapidamente possível e esquecer os problemas que aqui encontramos. Vamos nos mudar ainda esta semana! Irei a São Paulo amanhã e providenciarei o caminhão de mudanças, vocês vão providenciando os arranjos para a mudança o mais lépido que puderem, procurem não se encontrar com as pessoas daqui, elas podem nos influenciar negati-vamente, tomem extremo cuidado! Não falem para ninguém que vamos nos mudar! (Os espectros saltitavam de alegria!). Ana sentiu uma onda de frustração e num ato de desabafo raivoso profere: — Muito bem papai, nossas vidas estão em suas mãos e o senhor será responsável por tudo que nos acontecer! João olhou irado para Ana e retribuiu: — Já que vocês me atribuem todos os problemas que nós temos pelo menos me deixem aliviá-los, e que vão para o inferno todos os feiticeiros!

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(Os espectros se torciam de rir). À noite Ricardo vai visitar Ana, bate na porta, Júlia o atende: — Olá Ricardo, a Ana não está passando bem, pediu para você não ficar hoje e amanhã ela lhe ligará. Ricardo sentiu que uma turbação o atingia, ela provinha da casa. Sua sensitividade diagnosticou a vibração desequilibrada que ali estava presente, sorriu e respondeu: — Boa noite! Por favor, dona Júlia, diga para Ana que eu a amo sem qualquer restrição ou con-dição, quero a felicidade dela e espero pelo telefonema de amanhã. Era muito cedo quando João tomou o seu café, não havia conciliado o sono, fora uma noite inso-ne, cansativa. Mal ouve a pergunta de Júlia: — Você parece indisposto João, aconteceu alguma coisa? Sem atinar a pergunta João responde: — Estou bem, só quero chegar logo a São Paulo e resolver esta maldita situação! Júlia achou melhor calar. João se despede secamente dela e toca seu carro para a estrada. O tempo estava sombrio e uma frente chuvosa se armava no horizonte, esta devia estar próxima de São José do Rio Preto. O vento já sibilava forte e o carro balançava como se houvessem furados os pneus. Logo mais e al-guns pingos começaram a cair... Agora é uma tempestade violenta, o limpador não consegue executar plenamente a remoção do volume aquoso. Trovões e raios iluminavam a escuridão, Jo-ão mal distinguia a pista e os faróis mal mostravam a estrada, os faróis dos carros contrários, na outra faixa, só eram vistos quando próximos. João mantinha a velocidade do carro, pois não que-ria perder tempo parando ou andando devagar. Olhou no relógio; eram doze horas, pensou em parar para almoçar, mas a má visão das placas o atrapalhava em escolher o local de restaurante. Vislumbrou uma placa e fixou seu olhar nela, nisto não percebeu os faróis que vinham, ‘era uma ocorrência estranha’, quando viu o clarão dos faróis já nada podia fazer... Tudo escureceu... Abriu os olhos e viu aquela rua barrenta, sentiu que devia caminhar por ela... Escolhendo os pon-tos onde deveria pisar, os sem poças, e desviando dos mais barrentos, não conseguia fixar o pen-samento no que o conduziu até esta situação... Ana acorda sentindo uma grande angústia, não sabe a quê atribuir tal sensação, após se arrumar vai tomar o desjejum. Nininha já está à mesa conversando com a mãe: — O papai disse para não comentarmos a nossa mudança, mas como faremos isso se temos que pedir o trancamento da matrícula escolar, para depois fazermos a transferência? Como vamos negociar com a faculdade? Vamos perder esse resto de ano escolar? — Diga que estamos com dificuldades financeiras momentâneas e você já está em dúvida quanto ao curso, que precisa de um tempo para decidir o que vai fazer. Falou calmamente Júlia. — Bom dia mamãe! Bom dia Nininha! Cumprimentou Ana. — Eu acho que a sugestão da ma-mãe é boa, vamos apenas recolher nosso material na escola, arrumarmos as coisas da casa e aguardarmos o caminhão, pois eles encaixotam tudo com cuidado. Estas coisas não me preocu-pam, eu estou pensando agora no papai, a senhora já tem notícia dele mamãe? — Ainda não filha, é muito cedo e o papai ainda está na estrada, ele só chegará lá pelas três ho-ras da tarde, creio que tão logo possa telefonará. — Eu acordei com uma estranha sensação e estou preocupada mamãe! Falou tensa Ana. — É normal filha, principalmente após aquele sonho que você teve, mas creio que o papai dei-xou tudo bem claro, portanto deve ser a péssima impressão que ficou do sonho, procure se acal-mar e confie no papai. — Está bem mamãe. — Nininha, você pode ir até a faculdade agora cedo? Perguntou Ana. — Sim, já podemos ir, é só terminar o café e nos trocarmos. E Júlia as lembra: — Atenção meninas! Procurem se lembrar de fechar a boca quanto a mudarmos.

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Na secretaria da faculdade Ana e Nininha estão se informando das providências quanto ao tran-camento de matrícula. Em dado momento Ana se fixa num ponto fora da secretaria, Nininha ob-serva-a e pergunta: — O que foi Ana? — Olhe lá o Ricardo, o que farei, pois não conseguirei esconder nada dele, temos que sair es-condidas! — Não se preocupe Ana, se ele a encontrar faça-se de muda, eu direi que você está com uma grande infecção na garganta e que você não pode falar, eu falarei por você! — Está bem Nininha, espero que ele não me veja e nem me encontre hoje. Vamos aos armários buscar o nosso material, com isto feito poderemos ir embora para casa. — Vamos logo, é só tomar cuidado de não entrarmos na sala onde está o Ricardo. Com atenção e prudência as irmãs recolheram seus materiais escolares e se dirigiram para a se-cretaria a fim de conferirem o que elas estavam levando. Feita a conferência pela secretária, Ana e Nininha prometem voltar depois, para acertar contas com a tesouraria. Vão saindo e... É ele! — Como você está Ana? Perguntou suave Ricardo. — Olá Nininha! — Olá Ricardo! Estamos bem, apenas a Ana é que está com um grave problema na garganta e o médico até proibiu-a de falar por uma semana. Já viu a situação como está, pois nós duas gosta-mos muito de prosear e, agora, vamos ficar esse tempo sem falar, isto vai ser um castigo! Colo-cou Nininha, conforme o combinado. Mesmo desconfiando da conversa, da desculpa e dos desvios de olhar de Ana, Ricardo faz de conta que concorda: — Realmente Nininha, é uma pena Ana estar assim, temos que ter muito cuidado com ela e não devemos deixar que fale, é preciso que sare logo e bem, pois as provas orais estão próximas e se-ria horrível ela não poder fazê-las. — Pode ter certeza que ela não terá problemas! Respondeu sem pensar Nininha. — Como você pode ter essa certeza e essa confiança toda. Qual é o médico que a está tratando? Indagou Ricardo. — O médico da obra do papai. Foi rápida na resposta Nininha. — Mas ele é especialista no problema para dizer que é grave e não encaminhar a um hospital com médicos especialistas e aparelhagem própria? Tornou Ricardo. — A fama dele na obra é boa. Mentiu Nininha. Ricardo tenta aclarar suas dúvidas: — Tenho um parente médico especialista em otorrinolaringologia, gostaria de levar Ana até ele para examiná-la, ele nada cobraria e poderia, ou não, confirmar o diagnóstico do médico da obra. O que você acha? Nininha teve que pensar para responder e achou o caminho: — Vamos falar com mamãe a respeito, o que ela decidir faremos, eu te respondo depois, muito obrigada! Ricardo sentiu que “muito obrigada” era para encerrar a conversa e despedi-lo, se fez de desen-tendido: — Que bom, eu posso ir com vocês, assim, se sua mãe concordar, eu já levarei Ana ao médico. Nininha ficou hirta, a conversa já a estava irritando e, agora, essa oferta de Ricardo era difícil de evitar. Precisava que algo acontecesse para quebrar a sequencia da conversa... E aconteceu... Ana desatou a chorar. Nininha a consola e diz para Ricardo: — Veja o que você fez, deixou-a nervosa com a sua conversa, parece que você acha que ela está com uma doença contagiosa! Respeite o momento de fraqueza dela! Deixe-a tranquila e vá em-bora agora! Ricardo, sem mais ter o que dizer, resolve sair: — Está certa Nininha! Acho que exagerei, é por muito amar Ana que insisti, desculpem-me! Até outra hora! Ana e Nininha ficam a olhá-lo se afastando e uma imensa dor invade Ana, seu choro agora é convulsivo:

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— Eu o amo Nininha! Estou perdendo meu único amor, será que está certo o que estamos fazen-do? — Pode ter a certeza irmã que esta é a melhor coisa a ser feita, vamos esquecer tudo daqui, in-clusive nossos amores, outros acharemos... Vamos para casa, já se faz tarde, são mais de quatro horas e o papai já deve ter ligado de São Paulo... Vamos! Ao se aproximarem da casa ouvem os gritos de Júlia, correm, adentram e encontram a mãe esti-rada no chão da sala, convulsiva e exclamando: — Não! Não! Não pode ser assim! Isso não é justo, por qual motivo essas coisas ocorrem! Ana se precipita de encontro à mãe, abraça-a e inquire em alta voz: — O que está acontecendo mãe? Júlia se agarra em Ana, soluça forte e continuamente, com os olhos marejados e vermelhos de tanto chorar, olha para ela, vira o rosto olhando para Nininha e clama: — Aconteceu o pior, houve um acidente; o papai morreu! O papai morreu... Agora eram as três a chorar, abraçadas, e assim ficaram por um largo tempo. Foram se contro-lando aos poucos. Nininha, interrompido o pranto se refaz, acaricia a mãe e pergunta: — Como foi que aconteceu? Conte-nos mamãe, conte tudo o que ocorreu, onde foi e a que ho-ras? Conte mamãe... Conte... Júlia se acalma, enxuga os olhos, suspira forte, segurando nas mãos das filhas diz: — Por causa desse mau tempo, com o temporal contínuo, houve uma série de acidentes nas es-tradas... Tudo por imprudência... Foi perto de Americana, em torno do meio-dia, um caminhão vindo de São Paulo perdeu o controle, atravessou a pista e colidiu frontalmente com o carro do papai... As mortes foram instantâneas, tanto do papai como dos dois ocupantes do caminhão! O corpo do papai está em Americana e nós precisamos ir lá, eu já avisei a firma aqui na obra, eles estão providenciando tudo, logo mais virá um carro para nos levar até Americana, procurem se aprontar... Num ambiente de profunda tristeza, entrecortado por momentos de choro e lamentos, todos se aprontaram para a viagem. Enquanto a estrada passava e os ânimos calavam, Nininha pergunta para a mãe: — Onde nós o enterraremos? — Papai queria ser cremado e assim será feito, levaremos o corpo para o crematório de Vila Al-pina, em São Paulo, iremos acertar isso lá em Americana. — O que faremos depois mamãe? Onde iremos morar? Falou Ana. — Teremos que discutir tudo o que iremos fazer, primeiro vamos providenciar a cremação, de-pois conversaremos das demais coisas. Respondeu uma calma e lúcida Júlia. Ana e Nininha estavam olhando o salão do crematório; algumas linhas de poltronas, o som pró-prio para a cerimônia, o caixão cercado de flores, nada era triste, tudo era sóbrio. Júlia é chamada pelo funcionário do crematório e é instruída quanto ao botão que apertaria quando considerasse concluída a cerimônia. Júlia chama Nininha e Ana para se aproximarem do caixão, estando juntas ela diz: — Façamos nossas despedidas do papai, quando terminarmos, eu acionarei o botão e o caixão descerá para a sala do forno crematório, lá não iremos, outro dia viremos buscar a urna com as cinzas, você quer falar alguma coisa Nininha? Nininha, tentando gravar aquela cena para sempre e emotiva se despede: “Papai, é horrível o senhor nos ter deixado agora, eu não sei o que fazer... Sinto-me estraçalhada, toda em pedaços... Preciso recomeçar e juntar tudo de mim, eu não sei... Adeus... Adeus!”. Ana ampara Nininha em choro copioso e se dirige ao corpo hirto do pai: “Pois é papai... E agora? Como ficamos... Tudo é tão difícil... Tudo é imprevisível... Sinto-me queimar toda por dentro... Nada programamos por nós mesmos, estamos parados num local de escolhas, mas não sabemos o que escolher... Que falta o senhor faz... Adeus!”. Nininha e Ana estão abraçadas olhando para a mãe. Júlia, olhando fixamente o rosto de João, faz sua despedida:

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“O que faremos sem a sua presença João? Você nunca nos preveniu da possibilidade deste mo-mento... Estou com as meninas abaladas e não sei como resolver o amanhã? Você poderia ter nos preparado! Fomos abandonadas sem qualquer instrução e sem preparo! Você, que tudo sabia, devia ter previsto isto, devia... Você devia...”. Ana e Nininha abraçam e sustentam a mãe que desmaiava. Colocam-na numa poltrona enquanto o funcionário do crematório acionava o botão para descer o caixão. As irmãs se viram para o caixão, elas ficam de olhos fixos vendo-o baixar e as duas portas fecharem sobre ele, fazendo-o sumir. O tempo cura a maioria das feridas. As lembranças vão se apagando e as mágoas diminuindo, a vida não espera... Continua! Agora morando em Osasco numa modesta casa, produto da baixa aposentadoria deixada por Jo-ão e de suas imprevidências, Júlia, ao desjejum, conversa com Nininha: — Filha, já que você vai ver o emprego na loja do Shopping Center Solar, aproveite e traga as mercadorias desta lista, tome o dinheiro. Procure não demorar e telefone avisando se houver qualquer coisa diferente, está bem! — Pode ficar tranquila mamãe, eu não demorarei na entrevista, pois já deixei o currículo com eles, será só uma conversa final e eu acredito que conseguirei o emprego, nós estamos precisan-do aumentar os ganhos, eu vou fazer muita força para ganhar esse lugar na loja. — Tudo bem filha, tenha muita sorte! — Boa sorte mana! Disse Ana que estava chegando à cozinha nesse momento. — Obrigada! Sei que torcem por mim. Eu vencerei! E Nininha saiu. Ana toma sua refeição e conversa com Júlia: — Que coisa mamãe... Depois da morte do papai as decepções só se acumulam e as dificuldades aumentam. Olhe a casa em que moramos, comparada com as que morávamos é um lixo! As difi-culdades com dinheiro então, nem falo! Estamos numa miséria de dar dó. Se dependêssemos dessa mirrada aposentadoria morreríamos! Sorte eu ter encontrado emprego e se Nininha conse-guir este outro, tudo melhorará! Vamos torcer por ela e por nós! — É verdade filha... Vamos torcer! — Mãe, eu vou à Dona Marta buscar as roupas que mandei para consertar, volto logo. Até mais! — Tchau! Filha. Ana entra na casa e examina as roupas, fala: — Estão como nova dona Marta, muito bom! — São roupas de ótima qualidade e fáceis de consertar. Olha que horrível! Diz indicando para a televisão. — Nossa dona Marta, que incêndio terrível, onde será? Ficam ouvindo e num dado momento o coração de Ana dispara, o locutor informa que o incêndio é no Shopping Center Solar! — Minha irmã foi para lá, será que ela já saiu? Falou Ana gaguejando. — É melhor pensar que sim, Deus instrui seus filhos nessa hora, acredite que Ele é justo e que sua irmã já foi embora. — Crê a senhora que Deus é justo, eu estou magoada com ele, se é que existe! A desgraça se abateu sobre minha casa e Ele nunca nos ajudou! Não acho que vá ajudar agora e se ela saiu foi por conta própria! Respondeu irada Ana. — É melhor você ir para sua casa Ana, sua mãe pode estar vendo a televisão e precisará de você. — A senhora está certa dona Marta. Até logo! — Até logo filha! Que Deus te ilumine! Ana entra, vai até a sala e descobre a razão da casa estar silenciosa; Júlia está ressonando no so-fá. Vai até a cozinha e verifica que o almoço está pronto. Pensa; mamãe terminou de cozinhar e foi descansar, é bom ela ter conseguido dormir e deixarei que durma, pois assim evitarei da ten-são pela notícia do incêndio, logo que Nininha chegar nós duas iremos acordá-la. As horas custam a passar... A televisão com som bem baixo, no quarto, confirma as mortes e os

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nomes... Júlia acorda e vê Ana sentada ao seu lado, desconfia do modo como é olhada e correndo os olhos pela sala, pergunta: — O que aconteceu? Sinto algo diferente em você, em seu olhar! Ana desvia os olhos de Júlia, fixa-os no teto, suspira fundo, é o sinal que Júlia capta bem: — Diga logo o que tem para dizer! Houve alguma coisa com Nininha? Vamos... Diga! Os olhos de Ana enchem-se de lágrimas, os suspiros a sufocam, olha novamente para a mãe, ba-lança negativamente a cabeça e exclama: — Nininha se foi! Ela se foi para sempre mamãe! Júlia sentiu que tudo girou, enegreceu-se qualquer imagem, qualquer luz, ela foi caindo de lado, como se estivesse deitando novamente no sofá. Ana acode a mãe e ao tocá-la sente-a fria, toma o pulso, está batendo fracamente! Levanta e vai ao telefone chamar a ambulância. Volta e tenta re-animar a mãe... Mamãe! Mamãe! Acorda mãe! Ao desespero bate no rosto da mãe, mas nada ocorre, sente-se desequilibrar... Ouve o sinal de sirene da ambulância... “Júlia achou a situação bem estranha, via a movimentação da ambulância, a chegada ao hospital, os médicos conversando, darem-lhe medicação... Tentou falar e não conseguiu, pois o som não era expelido pelo corpo, ele ficava só no seu pensamento. Não sentia os braços e pernas, queria movê-los e não conseguia, alguma coisa parecia prendê-los, era como se mãos invisíveis segu-rassem! Não abria os olhos, mas como é que estava vendo? Era um martírio constante ver o que estavam fazendo e... Não poder fazer nada!”. Enterro da irmã. Hospital da mãe. Condução das coisas da casa e do trabalho... Ana estava fican-do exausta, nervosa e confusa. As coisas pioraram quando os médicos a avisaram do problema de sua mãe que, apesar de acordada, não estava recobrando a lucidez! Tinha um comportamento anômalo, era necessário interná-la em uma clínica psiquiátrica. Ela entendeu que os médicos es-tavam dizendo que sua mãe estava desequilibrada, em conclusão; louca! Não, não aceitava essa ideia, sua mãe estava apenas abatida pelas perdas do marido e filhos, seria necessário dar um tempo para ela se reequilibrar! Os médicos insistiram; ou internação ou remoção para casa! Ana não poderia atender sua mãe em casa, não teria tempo ou dinheiro para tal função, portanto a so-lução foi natural... Internação de Júlia! Conseguiu vaga em Itapira. Na ambulância que levava Júlia para Itapira, Ana ia olhando a paisagem e muitas lembranças passavam pela sua cabeça; Itabaté... Fernandópolis... São Paulo, como luzes piscando as imagens vinham e iam. Na recepção do hospital vai preencher o cadastro, entre vários informes a pergun-ta; qual sua religião? Ana achou estranha a pergunta desse tipo num hospital e inquire: — Qual a razão dessa pergunta? — Neste hospital temos atenções especiais, no sentido espiritual, de acordo com a crença do pa-ciente ou dos familiares, não há obrigatoriedade de ter uma religião, se a senhorita não tem é só informar, nós não fazemos qualquer diferença no tratamento médico por razões religiosas. (Quem estava cochichando ao ouvido de Ana?) — Eu estou interessada no assunto, poderia me explicar melhor essa “atenção” que o senhor fa-lou? — Este hospital pertence a uma instituição Espírita e por esta razão o tratamento do Espírito é considerado de suma importância! Porém esse tratamento deve ser feito de acordo com o credo do paciente, se ele não tem credo, nós faremos nosso trabalho sem o conhecimento e participação dele, apenas isso é o que justifica a declaração de ter, ou não, credo religioso. A senhorita enten-deu? (Quem continuava cochichando ao ouvido de Ana?). — Eu frequentei um pouco o espiritismo, isso vale? — Sim, vale muito! Respondeu alegre o atendente, anotou na ficha e chamou por outra pessoa do hospital: — Geraldo, por favor! — Sim Eduardo, em que posso ajudar! — A senhorita necessita ser informada dos procedimentos espíritas a um paciente, no caso pre-

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sente é a mãe dela. Com uma mesura Geraldo convidou Ana: — Poderia me acompanhar senhorita Ana. Ana seguiu Geraldo até uma sala, foi instalada numa poltrona e inquirida por Geraldo: — Gostaria de esclarecer qualquer ponto em que tenha dúvida, por favor, pergunte à vontade. Ana pensou no que poderia perguntar, pois pouco sabia do espiritismo, então fez a mais comum das perguntas: — O que vocês farão com minha mãe? — No sentido material sua mãe receberá o melhor e mais moderno dos tratamentos médicos, no sentido espiritual nós temos equipes especiais de tratamento fluídico. Faremos reunião dessa equipe e comunicaremos a você os resultados, não haverá contato físico com sua mãe, informa-remos quais os horários em que poderá nos ajudar e de um modo geral a sua ajuda será mental. Entendeu? — Como eu falei, sou novata de espiritismo, não sei o que representa a maioria das coisas que o senhor disse, porém tentarei colaborar e acredito que qualquer ajuda para mamãe é ótima! (Foi sentida uma brisa suave e balsamizante na sala). — Muito bem, a senhorita pode ir tranquila e nós a informaremos de tudo! Sentindo-se muito bem, como se renovada em suas forças, Ana se despede e volta para casa. O tormento da solidão se abatia sobre Ana, todos os pequenos problemas comuns, agora pareci-am intransponíveis e torturantes... Ana já não conseguia quase dormir... Ainda bem que o final da semana estava chegando, era sexta-feira e no sábado iria visitar a mãe. — Bom dia senhor Geraldo! Cumprimentou Ana. — Bom dia! Foi muito bom que veio, já temos alguns informes do estado de sua mãe. Respon-deu solene Geraldo. Ana percebeu que algo não ia bem com sua mãe, perguntou: — Algum problema com mamãe? — Sim e não senhorita Ana. O não se refere ao estado físico, ela se encontra estável, conforme os médicos lhe informarão em detalhes. Comigo é a parte espiritual e nesta temos dificuldades! — Quais são as dificuldades? Inquiriu Ana. (Que turma tenebrosa acompanhando-a). — Já fizemos uma reunião de consulta espiritual e temos uma longa história... — Pode me contar essa história, pois eu não tenho pressa alguma. Respondeu Ana com tom de-bochado. Percebendo a reação de Ana, Geraldo se precaveu: — Não tire qualquer conclusão antes de eu terminar de explicar e se não acreditar no que estou dizendo é só falar que interrompo. Está bem assim! Ana tentou ficar bem desperta. O cansaço tornava difícil coordenar as ideias, maquinalmente respondeu: — Sim, está! Geraldo iniciou a descrição: — Sua mãe está sendo espiritualmente bloqueada. Em vidas anteriores ela foi criando inimigos, ferozes inimigos! Ela e outros, abusando de suas posições de mando, cometeram muitas injusti-ças! Esses injustiçados, agora mortos, ou seja, desencarnados, estão como que “sugando” os flui-dos de vida da sua mãe e ela não consegue reagir. Tentamos ajudá-la com as reuniões, fizemos doutrinação e fluidificação, mas os laços entre ela e os cobradores é muito forte. A falta de rea-ção dela, pela fraqueza fluídica, permite que os inimigos levem toda a vantagem, estamos sem possibilidades de mais ajudá-la! Só podemos contar com a sua ajuda e a dos amigos espirituais. A sua ajuda seria no sentido de orações esclarecedoras para ela, se conseguirmos atingi-la nós a resgataremos, caso contrário nada adiantará a ciência médica! Concluída a explicação, Geraldo fita Ana e aguarda sua reação. Ana parecia estar em outro lugar, pois seus olhos estavam fixos num ponto inexistente da parede, ela nem não piscava.

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Tentando fazê-la retornar Geraldo a inquire: — O que a senhorita tem a dizer... Pode falar à vontade! Despertando de seu devaneio Ana olha assustada para Geraldo e profere: — Eu deixei de ouvir o seu relato lá nas “vidas anteriores...” Não acredito nem um pouco em vi-da depois da vida, portanto não acredito em nada do que foi dito. Eu já estou achando que os médicos daqui perceberam que não conseguirão curar a minha mãe e que vocês estão inventando essa desculpa de “vidas anteriores...” como cortina para essa incompetência! Nada da resposta de Ana abalou Geraldo, muito ao contrário, seu semblante se tornou mais bran-do... Mais sereno! Encarou Ana com olhos ternos e colocou: — Minha cara irmã nós não somos Deus! Só Ele é Todo Poderoso! A ciência médica tem seus limites, assim como a nossa fé está limitada ao nosso conhecimento. Respeito seu livre-arbítrio em decidir, mas lamento a sua decisão! Você pode trazer o médico que quiser para examinar sua mãe e levá-la para onde quiser, está livre para tomar a atitude que achar melhor! Enquanto aqui estiver, sua mãe será tratada com a máxima atenção e carinho, nós aguardaremos suas atitudes senhorita Ana! Ana desgostou da resposta, pois sentiu que estavam expulsando sua mãe dali! Retrucou: — Agora é fácil dizer para eu retirar minha mãe daqui, deviam ter me avisado antes das suas in-competências! Estou sozinha! Todos me abandonaram! O que vou fazer com minha mãe? Devo deixá-la morrer aqui? Talvez seja melhor morrer em outro local! E Ana cai num pranto copioso! Geraldo entrega um lenço para Ana e aguarda abrandar o choro. Ao vê-la ir se recompondo, com suavidade diz: — Ana, eu imagino o seu tormento por tudo que está acontecendo, mas todos nós temos limita-ções, a vida do corpo não é a vida da máquina, é a vida do Espírito! Os médicos podem curar os males físicos e os daqui já fizeram isso! Mas as doenças do Espírito estão na alçada de Deus e é isso que você precisa entender; a vida de sua mãe está na dependência de Deus! Ninguém daqui vai te abandonar, muito ao contrário, tudo faremos para orientá-la! Sua mãe pode ficar aqui pelo tempo que você quiser, nós apenas pedimos a sua ajuda para “falarmos” com Deus pedindo por ela! Confie em nós e nos ajude a ajudá-la, por favor! Algo mexeu com Ana, ela levantou os olhos para Geraldo e seus traços faciais denotaram ale-gria, pensou e afirmou: — Obrigada e me desculpe! Eu estava muito nervosa, agora estou melhor! Preciso de um tempo para pensar em tudo que o senhor me disse. Posso responder na próxima semana? — Sem dúvida senhorita Ana e fique tranquila, sua mãe será cuidada como se fosse a nossa pró-pria! Mas lembre-se; faça orações! Peça a Deus por ela e por você! O semblante de Geraldo ago-ra era triste. — Tentarei fazer o que o senhor me pede. Até a semana! — Ore bastante minha irmã! Ore bastante! “O rosto de Lucinha parecia uma bola de luz, era divinal! Ana não entendia os sinais que ela fa-zia, pareciam de rogativa, como se estivesse rezando. O que eram os sinais? Para quem ela esta-va rezando? Tudo escureceu... Não mais via Lucinha, agora sentia medo, estava trêmula, afunda-va num despenhadeiro sem fim, caia... Caia...”. Acordou sobressaltada. O que esse sonho representava? Amanhã pensarei nele, virou para o lado e retornou ao sono. No ponto do ônibus Ana se lembrou do sonho e que sonho mais estranho! Não consigo entender o seu significado! Será algum aviso? Na distração não escutou o grito; cuidado! Apenas sentiu que estava sendo arrastada... O dia estava bonito, os primeiros raios solares pintavam as ralas nuvens de variadas cores, o ar estava leve, ouvia-se o chilreio e o trinar, dentre eles o da Araponga, suas bigornadas pareciam anunciar algo... Júlia sente que a cercam, são espectros negros, fica tensa, sente que eles querem atormentá-la... Grita! Mas o seu grito não sai pelo corpo, está só na sua mente! Ela ouve e vê tudo; os médicos medicando-a e eles estão aflitos por ela! Vê um grupo de pessoas em oração... Parece que os es-

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pectros ficam parados, enche-se de forças e: — Saiam daqui, vocês estão me prejudicando, eu vou delatar vocês para a polícia, vão ver como eles os prendem numa cadeia imunda! Saiam daqui! Os espectros se aproximam e envolvem-na... O telefone toca na secretaria... A morte da mãe e da filha ocorreu quase na mesma hora. Onde foi Lucinha? Lucinha entrou no quarto e estava arrasada, sua família não compreendia as suas preocupações, ela pensava nos problemas familiares com outra visão, com uma lucidez diferente, eles só olha-vam o lado material e ela via o lado espiritual! Como ajudar se eles não admitiam a ajuda? Colo-cou-se em posição e passou a orar... Sentiu alguém ao seu lado... Terminou de rezar e se virou para o lado em que sentia a presença; era uma figura angelical! Prostrou-se aos pés da figura. Sentiu mãos segurando e elevando-a, ergueu a cabeça e ouviu: — Sou tua irmã, estou ao teu lado para ajudá-la Lucinha! Nós temos muitas dívidas a pagar, é certo que as principais estão em nosso lar, na nossa família humana, mas outras existem e tam-bém são importantes para serem resgatadas. Se não conseguimos com os irmãos próximos, va-mos aos irmãos distantes! Lembremos imitando Jesus: “Já que aqui não nos ouvem, vamos aos outros que querem nos ouvir!” Procure ir para a Bahia, tem o trabalho do Divaldo, muitos irmãos credores nossos lá estão e o resgate daquelas dívidas está num momento melhor que esta da sua casa, vá para lá tranquila, poderemos fazer mais por eles de lá, aqui estamos cerceados pelos dois planos; encarnados e desencarnados. Vá Lucinha! Eu irei junto! Vá com toda a sua fé! Lá ven-ceremos! Lucinha nem pestanejou, levantou-se, espiou a casa; ninguém acordado! Pegou dinheiro e saiu furtivamente. Na estrada arrumou carona para São Paulo, ainda no mesmo dia tomou um ônibus para Salvador. Realmente o trabalho era magnífico e quanta gente necessitando de ajuda! Lucinha se debruçou com tanto afinco no trabalho que chegou até a minimizar os problemas de sua casa. Nas saídas noturnas fazia visitas aos familiares dos necessitados, notou que estavam em outro lo-cal, os irmãos desencarnados que via acompanharem seus próprios familiares sempre a ameaça-vam, mas ela sabia que nada podiam fazer contra si. Eles envolviam seus familiares e se diverti-am com os tormentos que praticavam. Notava que os familiares não reagiam contra aqueles raios negros e asquerosos que eram lançados sobre todos. Tentava ajudar, mas não recebia qualquer resposta positiva de seus familiares, eles estavam envolvidos fortemente pelos raios negros! Acompanhou agoniada, porém impotente, os desencarnes dos familiares, se juntou com os que tentaram ajudar sua família, mas foi tudo em vão! Os familiares não reagiam favoravelmente, es-tavam acomodados num materialismo egoístico! Os trabalhos se tornavam cada vez mais gratificantes, ela via boas respostas na maioria dos ir-mãos, suas atenções, doutrinação e fluidificações aprimoravam-se a cada dia, ela sentia-se cada vez mais envolvida, mais disposta e leve!

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COLHENDO ESPINHOS SEM ENTENDER

Colheita da semeadura Escolhendo os pontos onde deveria pisar, os sem poças, e desviando dos mais barrentos, não conseguia fixar o pensamento no que me conduziu até esta situação. Estava atordoado, levemente atordoado, mas muito alerta para distinguir as ruas barrentas, ala-gadiças e sinuosas, que usava para chegar até a minha casa, uma antiga e grande edificação, que fora sede de fazenda no período áureo do café. Encontrava-me naquela situação, em meio a um temporal de ventos, trovões, relâmpagos e água gélida. Ensopado dos pés à cabeça, indo para a minha casa, mas não conseguia aclarar o; antes do aqui. Finalmente chego ao portão de casa, ensopado, gélido e sujo pelos tombos na rua de lama. Prevejo algo errado e não sei atinar bem o que é, mas que sei, sei. Existe algo de errado! Transponho o portão bem na hora de um belo relâmpago que ilumina a casa, vejo-a em todo o seu esplendor. A parte baixa, o porão, com suas aberturas gradeadas, isolando a moradia da umi-dade e servindo de ‘casa’ aos escravos. As escadas, em V invertido, dando acesso ao amplo al-pendre que circundava o térreo, aquela provida de mureta como guarda-corpo e este com larga mureta onde outrora existiram floreiras. Pilastras quadradas de madeira, interligadas por ripas xi-sadas em arco romano, sustentavam a meia-água inferior e cujas telhas descoloridas, gastas e muitas quebradas, formavam um visual nada agradável. Por sobre a meia-água apareciam as grandes janelas dos quartos, bem como a sacada quadrada, que seguia o acabamento do terraço. Como em todas as edificações de taipa de pilão, a madeira compunha a parte nobre, como a des-tacar a qualidade dos artesãos. Por sob as janelas as floreiras, agora sem uso, e por sobre as jane-las os encaixes escamados de telhas, tudo outrora bonito e bem acabado. A imponência da obra refletia o bom gosto e o poder do proprietário. Porém ali estava morando com minha família e, pensando nisto... Cadê o pessoal? Um silêncio contrastante com a tempestade ali reinava. Percorro os cômodos inferiores e não encontro nin-guém. Clamo os nomes: Júlia! Ana! Pedro! Nininha! Lucinha! Ninguém responde. Teriam saí-do? Apenas agora percebo que as luminárias estavam apagadas. Aquele bloqueio de lembranças me atrapalhava um pouco a decisão, estava demorando a perceber as coisas, não estava conse-guindo juntar os fatos. Fui para a escada e, apesar dos trovões e pela primeira vez, ouvi os rangidos e estalidos da ma-deira dos degraus, era um som esquisito e desconfortante. O barulho da escada não conseguiu abafar o gemido que ouvi, vindo de cima, e que me provocou arrepio e angústia; será que alguém se machucou? Subi o restante da escada aos pulos de dois espelhos e corri ao salão... Nada havia. Apesar de pulsar arritmado o meu coração... Tenso, procurei aguçar a audição, prestei atenção a qualquer barulho ou murmúrio; silêncio total. Os trovões espocavam mais violentos agora, aparentava o auge da tempestade, os relâmpagos tão sequentes que era dispensável a iluminação. Ouvi um respirar arfante, muito baixo, vinha do meu quarto. Com passos curtos fui ao quarto, a porta estava fechada, abaixei lentamente a maçaneta e fui abrindo a porta... Diacho... O rangido das dobradiças. Abri rápido e, naquela escuridão, ouvi o mais sinistro dos sons que já havia ou-vido; um lúgubre sorriso de escárnio. A primeira batalha A luminária foi acesa. A cena não poderia ser pior. Cinco homens cercavam Júlia, dois a segura-vam, amordaçada e nua, corpo todo ferido, o sangue vertia nos pontos machucados, seus olhos inchados denotavam a agressão sofrida. Corri os olhos para os agressores; rostos zombeteiros, olhos esbugalhados de ânsias prazerosas e munidos de facas e revolveres. Senti girar o mundo, ferveu o meu sangue, mesmo sem qualquer arma corri sobre eles, envolvi o que estava mais pró-

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ximo de Júlia e joguei-o contra a parede, ele não gritou; sorriu alto e debochado. Ia me atirar contra ele novamente quando os outros dois me seguraram fortemente, outro ficou a me cutucar com a faca, uma, duas, várias vezes. O sangue brotava das estocadas, mas no meu furor, nada sentia, reuni forças e arremessei contra a parede os que me seguravam, tirei a faca de um deles e aproveitei para estocar em seu peito, bem no coração. Com mais um golpe a cabeça de outro fi-cou pendurada pela espinha dorsal. Virei-me e encarei os outros três, ali estavam sorrindo para mim, como se nada houvera ocorrido. O mais magro e alto se adiantou, exibiu destreza com a fa-ca e apontou para mim em provocação. Os outros se postaram ao lado. Com o canto dos olhos vi Júlia se mexendo, ela me olhou suplicante, era um; salve-me, por favor. Mirei bem nos olhos do meu opositor, movi o tronco para a esquerda e avancei. Ele me atacou diretamente, desviei e ro-dei para a direita, levando o braço armado em direção ao rosto do opositor; um corte horrível se abriu exibindo a ossada e seus olhos cortados ao meio. Aguardei os gritos... Nada! Ele continuou a sorrir sarcástico, parecia um morto-vivo tal o estado de sua face, eu não titubeei; avancei fron-talmente e cravei no seu tórax, bem profundo, sentindo no cabo da arma o pulsar de seu cora-ção... Até ele parar! Fiquei ereto e encarei os dois restantes, sorriam para mim, como se nada representasse e como se eu não existisse. Apontei a faca para o mais corpulento deles, era um desafio. Ele aceitou e seu companheiro se afastou para o canto. Avancei em sua direção e mirei no abdome, com um gingar ele desviou e me cravou a faca na virilha, senti a dor e perdi a sensibilidade na perna direita, caí. Ambos se atiraram sobre mim e socaram até eu desmaiar de dor. A noite continua Retornei a mim pensando que estava cego, mas logo senti que o local é que estava escuro, nada via... Poderia ser noite. Era um cubículo com paredes de pedra, pois senti com as mãos, não al-cancei o teto; se é que tinha. A porta era maior que as normais, cravando as unhas eu descobri que era de madeira mole ou velha apodrecendo. Senti tremores de frio, estava só de cueca, mo-lhado e dorido das pancadas que levei. Fiquei silente e de ouvidos atentos, mas não ouvi qual-quer ruído. Sabia que não estava surdo, pois ouvia o próprio barulho que eu fazia. Tateei outra vez a porta e tentei roê-la com auxílio das unhas, aos poucos fui abrindo um buraco, farpas finas haviam penetrado nas gengivas e sob as unhas, a dor não era grande; o incômodo era muito mai-or, porém maior que tudo era minha vontade de sair daquele local. Não sei quanto tempo durou, até me alimentei daquela madeira, mas finalmente abri um buraco em que cabia a minha cabeça. Espiei para fora da porta e estava tudo escuro, enfiei a cabeça pelo buraco e olhei para a esquerda e direita; ainda escuro. Seria noite? Continuei a roer, agora com mais avidez, machuquei as mãos e boca várias vezes, a dor já não me incomodava, o meu objetivo era sair dali. Finalmente rompi o suficiente para me enfiar e passar pelo buraco, estava do lado de fora; de fora do que? Atinei para sons... Nada. Tudo era silêncio! Fui até o final do corredor do lado esquerdo; porque não fui para a direita? Sei lá, apenas fui. Com as mãos percorrendo as paredes senti duas portas de cada lado, em todas tentei ouvir algo e... Nada! Fui para a direita, havia apenas uma porta e, também sem sons. Resolvi entrar nesta da direita, procurei a maçaneta e girei. A porta abriu com um ba-rulho de mil dobradiças enferrujadas e secas, um maldito arrepio correu toda a minha espinha e disparou o coração, ate esqueci o frio, fome e dor. É interessante como a gente vai se acostumando com os ambientes, como tudo estava escuro, a minha percepção parece que ficou melhor e muito mais sensível... Mais perceptível. O local também estava escuro, mas senti e percebi que havia algo ali. Fui tateando as paredes e, de repente, bati com o pé em alguma coisa, recuei um passo e protegi os olhos, acendeu-se um holofote potente contra mim, ouvi risos, passos e gemidos, pareciam gemidos femininos. Al-guém me toca com um pedaço de madeira, um porrete, afasto-me, encostado na parede com as mãos sobre os olhos, percebo que, ao tentar piscar já vislumbro imagens, vou mantendo os olhos semi-abertos e acostumando com o holofote. Tiro as mãos de sobre os olhos e faço a concha con-tra o holofote, corro os olhos pelo ambiente e vislumbro um objeto vindo em minha direção, desvio instintivamente, me arremeto contra a posição do holofote e derrubo uma pessoa, caio so-bre ela. Agora sob luz vejo a figura de um homem desconhecido, barbudo e caolho, ele tenta re-

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agir e eu o soco seguidamente até ele ficar imóvel, paro ao ouvir um grito: — Papai. Os novos entreveros Era a voz de Ana, viro-me para o local de onde veio o grito, ali estava na penumbra, mas diviso os vultos, levanto e me projeto naquela direção sobre o vulto maior, nos atracamos e socamos várias vezes até que consigo dominá-lo. Pego Ana pelo braço e a levo pelo corredor. Pergunto como havia chegado ali, ela diz que não sabe. Na primeira porta da esquerda que encontro a abro e entramos... Estanco... Ali estava deitada no chão, toda manchada de sangue e parecendo mor-ta... Nininha. Corro para ela e a pego nos braços, ausculto seu coração e ele bate levemente, ela não está morta. Chamo-a: Nininha. Nininha! Ela abre os olhos e me olha com eles arregalados. Naquele instante, ao olhar em seus olhos vi um sujeito em posição de me agredir, me movi e re-cebi a pancada do porrete no ombro, a dor que senti foi tão horrível que até vi estrelas. Mas reagi e avancei contra o atacante, consegui tirar a arma dele e passei a atacá-lo, desferi incontáveis golpes, esfacelei sua cabeça, cai exausto e arfante, olhei para as meninas, elas estavam encolhi-das num canto. Ao ver que elas estavam bem, pergunto se sabem da saída do local, elas me respondem que não sabem e nem se lembram de como ali chegaram. Pego as duas e saio para o corredor. Agora já está visível todo o corredor. Ao fundo, pelo lado direito uma parede, pelo lado esquerdo um qua-dro ocupava todo o vão, me dirijo para o lado esquerdo, bato no quadro e ele está firme. Acredito que exista uma abertura e que só pode ser no quadro. Percorro o perímetro do quadro e toco nu-ma alavanca, o quadro se move para fora como uma porta. Saio com as duas e estamos num am-plo salão, pelas janelas laterais, enormes, posso ver o jardim e a mata próxima. Nós nos dirigi-mos até a porta de saída e não encontramos ninguém. Saímos correndo pelo jardim e adentramos na mata onde procuramos um local para nos esconder e abrigar. Encontramos uma gruta natural na encosta, entramos, camuflei a entrada da gruta, nos deitamos exaustos. Não sei quanto tempo dormimos. A luz que brilhava fora da gruta me fez acordar e nesta hora senti sede, apurei o ouvido e me veio o rumor de uma corrente d’água. Com prudência fui até a entrada da gruta e sem tirar a ca-muflagem, espiei para todos os lados; nada vi. Sai em direção do barulho, era um córrego na ver-tente, com água límpida, suguei avidamente litros, me lavei na cabeça inteira, os braços e pernas, a lâmina d’água avermelhou tal a quantidade de sangue que tinha em mim. Procurei e achei uma cabaça, limpei-a, enchi de água e me dirigi para a gruta. Ao me aproximar percebi que tinham mexido na camuflagem, recuei e me escondi atrás de uma árvore, ali fiquei a espiar os detalhes e nada estava diferente, nada ocorreu, o silêncio era total. Com a camuflagem não dava para ver dentro da gruta, a luz do sol brilhava nas folhas e galhos que fechavam a entrada. Pensei em ir lá, mas não fui. Pensei em chamar pelas meninas, mas não chamei, pois alguém poderia ouvir. Re-solvi aguardar alguém sair ou tentar entrar, apesar de isto me deixar aflito e terrivelmente agoni-ado. As horas foram passando e atingi o limite, decidi entrar lá. Com o máximo de cuidado e atenção avancei lentamente, atingi a entrada, prestei atenção a qualquer barulho dentro da gruta e nada ouvi. Entrei e... Nada, não havia ninguém. As meninas lá não estavam! Para onde teriam ido? Sai e procurei pegadas... Não encontrei nenhuma. O que teria ocorrido? Se elas tivessem sido leva-das dali haveria pegadas e se houvessem saído também teriam deixado no local as pegadas... Mas nada havia. No desespero que me apossou pensei em voltar ao local onde estivéramos pre-sos, mas como já estava anoitecendo, resolvi passar a noite ali mesmo, no alto de uma árvore até o dia clarear. O barulho de insetos, aves e animais noturnos era algo que eu não conhecia e isto, ligado ao meu desespero, não me deixava dormir. Um novo dia igual

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Com os raios matutinos desci e rumei para o local do cativeiro. Não estava acostumado com ori-entação na mata e me perdi. Não conseguia achar o local e me descobri dando voltas, pois havia quebrado galhos para marcar a passagem e os havia reencontrado. Abatido e cansado sentei próximo a um córrego onde abrandei minha sede, fiquei pensando em como resolver a situação em que me encontrava, distrai e... Um tênue silvo me alerta, tento le-vantar e fui envolvido, puxado e enrolado, era uma cobra pardo-amarelada de manchas claras, ela foi me apertando, um dos laços passou sobre meu rosto... Apertava... Apertava. Em desespe-ro, pois já mal conseguia respirar, abocanhei o corpo dela, mordi e arranquei um naco, tornei a morder, a morder, a morder, rompi o anel e senti que aliviara. Consegui respirar normalmente, me firmei nas pernas e projetei o corpo pela encosta, rolamos contra arbustos e pedras, finalmen-te parei numa árvore, apenas pedaços da cobra estavam ao meu lado, contorcendo-se em espas-mos, levantei e saí em disparada, apesar das dores das trombadas e dos ferimentos. Quando dei por mim já estava escuro, parei para descansar e colocar os pensamentos em ordem. Subi numa árvore e comecei o questionário: Onde me encontrava? Para onde deveria me dirigir? Tentando responder fui interrompido por gritos estridentes, reconheci o som como a voz de Ni-ninha, eu desci e corri desesperadamente para o local de onde provinha a voz e... Mais uma vez imprevidente... O primeiro aviso Dei de cara com os quatro mais feios sujeitos que vi em minha vida e todos armados com facões. Ao parar na frente deles senti os reflexos da corrida desenfreada e da noite mal dormida, meus movimentos já não eram perfeitamente lúcidos. O mais feio deles, de feições animalescas, avançou de arma erguida, escorei o impacto com o braço e... Lá se foi uma parte dele, pois eu senti que cortou no pulso. O sangue brotava no local, pulei para o lado e enterrei a ferida no solo para estancar o sangue. Todos ficaram parados me olhando e sorrindo com sarcasmo. Pude ver perfeitamente que esta-vam em andrajos, cabelos ensebados e compridos, barbudos malcuidados, olhos avermelhados remelentos, dentes sujos e baba escorrendo desde a boca até a ponta da barba, nariz e olhos exa-geradamente aquilinos. Toda esta visão ocorreu em fração de tempo, com a lucidez restante reagi contra aquele que me atacou e contra-ataquei, de um salto caí sobre ele, tomei sua arma e passei a brandir com violên-cia, com ódio. Ao primeiro golpe decepei o seu braço direito, com outro golpe decepo o seu cou-ro cabeludo e orelha esquerda, mais um e abro seu ventre para expor as tripas e as corto. Meu oponente está prostrado e dou o golpe final, com todas as minhas forças decepo sua cabeça com vários golpes seguidos. Mas não paro, aplico mais e mais golpes, vou retalhando-o até que caio de joelhos, cansado, procuro respirar firme e me recupero um pouco, já posso ouvir os outros gargalhando a não mais poder. Procuro mirar os restantes, vejo o do lado direito agachado e gargalhando distraído. É a minha chance. Corro em sua direção e aplico um golpe vital, abro sua cabeça ao meio. Pego o seu fa-cão. Os outros continuaram a gargalhar. Cada vez mais forte e mais alto. Empunhei os dois facões, estiquei os braços, alinhei as armas e me atirei contra os restantes, acertei em cheio na garganta dos dois, varou de lado a lado. Saciei meu estado emotivo trucidan-do-os com golpes até me exaurir. Fiquei olhando... Gozando... Os restos de corpos ali expostos, com sangue por todos os lados e sentindo-me satisfeito. Não pude descansar, gritos pungentes me chamaram a atenção, eram de Nininha e vinham de um casebre à minha frente, distante uns cinquenta metros. Tudo é igualmente diferente Corri e com um pontapé arrebentei a porta facilmente, a diferença de luz me atrapalhou, pois pouco enxergava no interior do casebre. Ouvi um clique de arma de fogo sendo armada, me mo-vi, mas... Senti a bala arrebentar a minha orelha direita com um barulho terrível. Projeto-me ao

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canto mais escuro querendo me esconder. Agora a luz me ajuda, vejo no oposto, ao claro, o ati-rador. Permaneço imóvel e vigilante aos movimentos, sinto que ele tem dificuldade de me locali-zar, aproveito e armo um impulso, estando mais próximo pulo sobre ele e nos engalfinhamos. Rolamos com minha mão agarrada à arma do adversário, com o facão livre estoco seu ventre e sinto que penetra fundo, fraquejam as forças do meu rival, aproveito e retiro a sua arma, procuro me levantar, agarro e arrasto-o para fora, para a luz. No claro, despejo sobre seu rosto todas as cápsulas restantes, os buracos vão se abrindo e o sangue vertendo. Sou chamado: — Papai. Papai! Nininha se atira em meus braços com soluços profundos, ela estava em estado lastimável, mas o importante é que estava viva. Pergunto por Júlia, ela diz que foram separadas e que eles a leva-ram para baixo. Saímos do casebre, havia vários caminhos, mas de todos existentes uma só trilha conduzia para baixo, então eles naturalmente deveriam ter ido para o sopé. Seguimos devagar pela trilha, pois Nininha estava muito cansada e ferida, paramos várias vezes onde havia alguns córregos para matamos a sede e nos limparmos. A trilha serpenteava pela montanha, pois a encosta era abrupta. Mais uma vez a noite... Malditas noites! Procurei outra vez abrigo para nós no alto de uma árvo-re. Desta vez deu para dormir, a noite foi silente e calma, com isto consegui recuperar boa parte das forças. A dor da perda e o segundo aviso Caminhávamos rápido, porém tranquilos, a mata fechada mantinha o solo úmido e escorregadio, em razão disso, nós tínhamos que tomar cuidado para não cair. Subitamente fomos apanhados... Uma rede caiu sobre nós e nos envolveu, tombamos e ficamos enrolados, presos na rede rente à trilha. Nininha chorava, ela havia levado uma pancada quando tombamos. Tentei livrar os braços, mas estava difícil, ouvi barulho... O que seria? Apurei os sentidos. Era um tropel confuso, não alto, parecia que algumas coisas mexiam nos arbustos e vinham em nossa direção... Estavam cada vez mais próximos... Os vi; uma vara de caititus composta de uns dez animais rosa sujo, grandes e ferozes. Vieram direto sobre nós e avançaram primeiro sobre Nininha. Eu nada podia fazer, esta-va ali, imobilizado... Vendo os animais destroçarem a minha amada filha, pedaço por pedaço e ela gritando... Papai! Papai... Cada vez mais baixo... Mais arfante... Até... Parar! Pensei; agora é minha vez. Os animais ficaram disputando os nacos de carne do corpo de Nininha, como eles arrancaram aos pedaços as partes que iam triturando, a rede folgou um pouco, foi o suficiente para que eu soltasse os braços, coloquei-os em posição de defesa e aguardei. Com o final da disputa, os animais se voltaram para a presa restante, esperei pelo ataque, pois tentaria pegar um e usar como escudo. O primeiro avançou contra a minha perna e senti seus dentes dilacerando a minha coxa, uma fe-rida profunda ficou ao ser arrancada a carne do local e nesse momento perdi a sensação da perna. Outro se atirou sobre meu peito, peguei-o pela boca, enfiei as mãos dentro da mandíbula do ani-mal e agarrei, não liguei para as mordidelas que o animal me dava, pois ele tentava se livrar de minha mão. Puxei-o contra mim e mudei uma das mãos para o outro lado da boca do animal, reuni todas as minhas forças e puxei até ouvir o estalar das juntas ósseas da face do animal, daí em diante passei a usá-lo como escudo. Ainda levei várias mordidas, mas nenhuma que me feris-se profundo. Os animais trucidaram seu companheiro e, junto dele, parte da corda da rede, apro-veitei e escapuli subindo pelo lado externo da própria rede. Eu fui me alojar num galho de árvore e desse local fiquei, lamentavelmente, só apreciando, por muito e muito tempo a terrível carnifi-cina verificada. De minha filha sobraram apenas ossos estraçalhados. Espalhados pela encosta... Ossos... Ossos. Cai num choro convulso, fiquei nesse estado de choque e adormeci, o clarão do dia me acordou. A jornada para algum lugar

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Com atenção redobrada vistoriei todo o campo de visão. Nada havendo que me despertasse cui-dado, desci e retomei a caminhada, mas não me recordo se vi ossos; será que os animais leva-ram? Ao longe, a talvez uns cem metros, avistei uma cabana, saí da trilha e cuidadosamente me em-brenhei na mata, por ela estaria mais protegido e não estaria exposto a surpresas. Lentamente fui me aproximando e vi que saía fumaça pela rude chaminé; portanto havia alguém lá. Furtivamente espiei pela janela e vi Ana amarrada numa cadeira, ela estava de cabeça baixa, co-mo se estivesse desmaiada, estava ensanguentada e de vestes sumárias rasgadas. A cena me en-cheu de furor, minha filha sendo violentada e maltratada por alguém ignóbil. O sangue ferveu em minhas veias, já havia matado e mataria tantos quantos afrontassem a minha família, a minha ra-zão de viver! Como não vi ninguém, encostei-me à porta e chamei baixinho por Ana; não houve resposta. Tor-nei a chamar, porém agora mais alto e vigiando as redondezas contra ataques; ainda desta vez nada. Será que ela está desmaiada ou... Morta. Abandonei os receios e pensei em arrombar a por-ta, mas... Ela estava destrancada, entrei e corri para Ana, ela respirava... Estava viva! Desamar-rei e a coloquei numa cama que ali estava, procurei roupas para vesti-la e só achei trapos sujos. Na cama só havia o colchão, nada de lençóis, preocupado com as vestimentas não percebi a che-gada de visitante... Cheio de animosidade! Parou na porta, o seu corpanzil ocupou todo o espaço, nas mãos trazia uma espingarda e um ma-chado, ao seu lado um mastim truculento para nós rosnando. O visitante ficou me olhando, como querendo ver o que eu faria, assumindo um ar de desprezo me disse enfático: — Também veio para morrer! Fiquei a fitá-lo sem nada dizer... Sem nada pensar. Armou a espingarda e mirou para o meu lado, só o instinto me fez mexer e senti o dorido impac-to. A bala arrebentara a minha clavícula e na mesma hora senti que perdia a sensação do meu braço, agora só me restava o esquerdo. Ele armou novamente e eu não esperei, numa fração de segundos me projetei, nem sei como, em direção dele, e não tive êxito... Fui recebido com uma coronhada na cabeça, vi estrelas de todo o firmamento e sumi! O calor da revolta Acordei amarrado na cadeira e vi Ana atada à cama na mesma situação dantes. Alguns passos me chamaram a atenção e eram dele. Andava pelo interior da cabana, estava com um vasilhame mo-lhando tudo e o cheiro de gasolina era forte, veio e derramou sobre Ana e em mim. Pensei inge-nuamente; será que esse doido vai nos queimar? Ficou claro que sim, pois ele tirou uma caixa de fósforos e se dirigiu para a porta, ali parou e olhou com desprezo para todo o interior da cabana, pegou um palito da caixa e riscou. A labareda correu célere e vi o fogo tomar conta de Ana. Ao me sentir em chamas, desesperado rolei com a cadeira em direção da porta e consegui sair rolan-do, eu fui aos tombos até parar numa árvore onde a cadeira quebrou. Corri em chamas para um córrego e me atirei nele, o ardor foi violento, sendo o choque térmico pior que a queimadura eu caí para o lado e desmaiei. Por quanto tempo fiquei desmaiado? Não faço a menor ideia. Sentei e pensei no fogo, me levantei e fui ver a cabana, ou melhor, o que restara dela. Cinzas, apenas cinzas. Suas paredes, o piso de madeira e a sua cobertura de sapé foram o melhor com-bustível para o fogo. Nada restara do casebre, apenas as cinzas, como eu poderia achar o corpo de Ana nesse monte? Assim sendo, achei melhor deixar como estava, pois coberta de cinzas Ana estaria melhor que enterrada em solo sujo. Fui embora, eu precisava achar o assassino brutal, precisava encontrar Júlia, enfim, precisava... Precisava... Precisava o que? Sem destino saí pela trilha da montanha. Andei... Andei e cheguei à ponta de uma ribanceira. Abaixo de mim, na beira do rio, vejo o as-sassino e ele não me vê. Procuro algo e encontro uma pedra solta, de uns vinte quilos e perfeita para o que pretendia. Pego a pedra a ergo e me aproximo da beirada, miro nele e atiro com fú-ria... Atinjo-o em cheio na cabeça esfacelando-a, ele cai de imediato. Vejo o cão próximo, agora alertado pelo cair do dono e para ele se dirige, corro e chego antes dele, pego na espingarda, ar-mo, miro e atiro firme, o animal emite um ganir pungente e cai, acertei bem na sua cabeça. Volto

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e olho o assassino, seu pescoço estava quebrado, eu ainda portava o machado, o peguei e retalhei seu corpo, cada machadada era uma desforra pela morte de Ana. Joguei seus retalhos no rio, eles serviriam para matar a fome de peixes carnívoros. Para alguma coisa prestava aquele monstro! Animais estranhos Segui a trilha que estava cada vez mais próxima do rio, atinjo uma planície e a mata torna a se fechar, a exuberância da vegetação beira rio era magnífica. O terreno foi ficando cada vez mais úmido, denunciando sua baixa altura em relação ao leito líquido. Agora já poderia dizer que pa-recia um pântano, pois os locais inundados aumentaram sua ocorrência e tive que fazer longos desvios em razão desses locais inundados. Seguia firme em frente e tinha certeza da direção, pois encontrara pedaços de tecido que reconheci como de Júlia. Ao olhar continuamente alguns pedaços de tecido, eu me descuidei do terreno, sinto que vou afundando na areia movediça. Procuro ver um galho para me firmar... Todos que vejo estão lon-ge! Pouco a pouco afundo, agora penso em boiar sobre a areia, como na água. Não consigo me curvar para frente, pois os pés estão presos. Para trás seria esquisito me lançar, mas mesmo assim pensando, largo-me de costas para o solo e afundo mais um pouco, meio corpo já afundara. Sinto a areia úmida penetrar no meu ouvido e isto me incomoda. Mais fundo e sinto que a areia está próxima dos olhos e do nariz. Será que o afogamento na areia movediça é mais rápido do que na água? Que pensamento mais estúpido! Tenho que pensar em como sair e não em como morrer! Agora os olhos já estão cobertos, fico com a boca está fechada, estico o pescoço e elevo o nariz, pois só este estava fora da areia. Sinto a areia ir penetrando nas narinas e descendo pela garganta, o gosto horrível de podridão me causava enjoo. É um contrassenso sentir enjoo nesta hora! A areia cobriu toda a minha narina, segurei a respiração até sentir o pulmão reclamar, tentei segurar mais e... Acho que desmaiei. Acordo dolorido e olho para os lados, mas nada vejo além da mata. Quem me tirou da areia mo-vediça? Como nada vi, procurei um lugar para me abrigar e nada melhor que uma árvore. O manto da noite agora já cobria aquele pantanal, os insetos haviam se fartado com meu sangue e várias empolas se formaram pela reação alérgica, procurava não coçar para não me ferir, a sen-sação era horrível, pois mesmo ali no galho alto da árvore me sentia inseguro. Com o andar das horas comecei a ouvir sons estranhos e não conseguia identificar os animais que os emitiam. Em dado momento sinto que alguma coisa enrola em minha perna, tento puxar e não consigo, aí sou arrastado violentamente para baixo e para dentro d’água, luto para respirar e escapar. Eu fui pu-xado para baixo da lâmina líquida por várias vezes, mas como era raso conseguia me empurrar para emergir e respirar. Com a sequencia de imerso e emerso acabei exausto e senti as forças me abandonarem, fui puxado e pressenti que ali seria o meu final, mas neste momento ocorreu um grande tranco. Vejo-me emerso, livre, o pulmão aproveita e restaura sua normalidade, nado e an-do para fora dessa água. Tateando acho outra árvore, vou subir, mas... Recebo uma bicada vio-lenta nas costas e a dor é aguda. Devia ser uma ave de grande porte. Sinto o calor do sangue es-correndo e ouço o bater das asas se aproximando... Nova estocada... Agora foi vital... Meu olho direito arde e sangra, vou para o outro lado da árvore e tento escutar algo, mas... Só ouço o silên-cio. Ali fico por certo tempo aguardando novo ataque, o que acaba não ocorrendo. Decido e subo na árvore, pois ali estaria mais bem abrigado e protegido, no chão estaria mais exposto. As dúvidas com dúvidas Passo a ouvir um respirar, parece humano. Diria que chegou ao pé da árvore e parou. Nada vejo no escuro e o olho ferido lateja a cada vez que mudo a direção do olhar. Fico quieto, só aguar-dando. Sinto que sobe pela árvore; será que é um humano ou um animal? Como estou num galho não próximo do tronco, pode ser que não me ache, continuo calmo e quieto. Percebo que o arras-tar já está acima de mim; será que ele passou sem me identificar? Agora ouço um barulho que é de machado, está cortando para cima de mim; em que posição cai-rá o que está sendo cortado? Procuro me firmar no galho em que estou, agarro com toda a força e aguardo o baque.

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O estrondo foi alto, o galho cortado era grande e pesado, na queda sobre aquele em que eu estava carregou tudo, senti uma carga do galho nas costas, porém amaciada pela folhagem. Com outro barulho, mas agora com um som de rachadura, tudo despencou, pois o meu galho não aguentara o peso e vergou rachando, o tombo foi imediato e tudo caiu no solo inundado. Eu fui carregado para o fundo e prendi o fôlego, como era madeira aos poucos foi flutuando, consegui tirar a boca para fora d’água e respirar, estava preso na galhada e nada podia fazer a não ser esperar, na noite nada via, ao claro poderia saber o que fazer. Por incrível que pareça... Adormeci! Fui acordado pelos trancos na galhada que estava sendo arrastada para fora dali, tentei virar e ver quem estava puxando e não consegui. Ao seco percebo que puxam o galho que caíra sobre o meu, eles estão me descobrindo e será que são amigos? Estando livre viro de lado para ver e... Com a virada me livrei de uma machadada que passou rente a mim, agora já sabia que não podia ser de amigos. Encaro a figura que parecia ser irmão daquele último que retalhei. Ele já estava pronto para outra machadada, pois a arma descia sobre mim, eu me esforcei para desviar e... Fa-lhei... Senti a lâmina decepar o joelho e separar a perna da coxa. Contorci-me em dores, o sangue jorrava pulsante e, ao virar, ainda me lembro da última imagem que vi, era uma enorme cobra toda cortada em pedaços. Foi um grande aviso O sol muito quente me desperta e retomo a jornada pela trilha visível, descubro que já não sinto as agruras da região pantanosa, pois caminho rápido pelos entremeios dos locais alagados. Com o sol já caindo, eu me sento para um descanso rápido e reconhecimento do local para um abrigo noturno, ali me acomodo na rala grama à beira de mais um alagado, o cansaço induz ao sono... Cochilo. “Na escuridão em que me encontrava só ouvia lamentos, eu sabia que uma multidão ali estava, porém não os via, mas... Sabia. Andava aos tropeços, de memória e passos, não atinava bem para onde queria ir, apenas andava para tentar chegar a algum lugar. Os encontrões e empurrões eram frequentes, as palavras de baixo calão imperavam e, era interessante, a cada pronúncia me era fá-cil saber de onde vinham, pois do local proferido se formava uma labareda negra, como uma lín-gua horrenda. O cheiro era nauseoso e mais fácil se viveria numa cloaca, não sei de onde vinha o cheiro, pois todo o ambiente estava impregnado. Tudo isto não era tão perturbador, o que me irri-tava era um piscar com constância metódica. Era um holofote que me cegava, que ia e vinha, era de uma luminosidade diferente, intensa, fulgurante. Por várias vezes coloquei a mão sobre os olhos e enfiei a cabeça no solo ou na água, cobri com a roupa e tentei me esconder, mas... Nada fazia esse holofote desaparecer. Comecei a me desesperar e corri feito um condenado, me atirei de encontro aos outros, bateram-me à vontade, mas... Nada. O holofote ali estava o tempo todo, comecei a me sentir sufocado, sugado”. Acordei imóvel. Estava envolto por algo parecido com um polvo, tinha vários membros e neles ventosas enormes. Não vi a cabeça do animal e apenas comecei a perceber que as ventosas esta-vam em ação quando iniciaram a sucção, aderidas ao meu corpo, aí senti que retirava o meu san-gue. Ali, impossibilitado de qualquer ação, apenas via e sentia o animal me sugar, foram horas e horas de desespero, a cada momento me sentia mais fraco e quanto mais drenava meu sangue, mais fraco me sentia. Como tudo tem um limite, em dado momento devo ter atingido o meu e sumi... Desmaiei. A surpresa imprevista O dia estava clareado por um lindo sol. Acordo com o cheiro do remédio e sinto que meu braço foi picado, olho bem e vejo a agulha, o tubo, o saco suspenso de sangue e ao lado dele mais sa-cos vazios, tudo indicando que alguém me medicara. Corro os olhos e vejo os retalhos a que res-tou o animal multimembrado e também a arma usada, esta era um machado. Aguardo o final e retiro a agulha, sento para me recuperar, levanto e sinto que estou bem, pego o machado e reto-mo a caminhada, pois preciso encontrar Júlia. O pântano agora me parecia leve e cubro uma longa distância em pouco tempo, olho e diviso

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uma fumaça acima das árvores, parece de uma vivenda. A aproximação é feita em alerta, como não vejo anomalias encosto na janela e espio... Ali está... Pedro. Por esta eu não esperava! Forço a janela, eu abro-a e desamarro Pedro dando-lhe um longo abraço. Pergunto de Júlia e Pedro diz que a levaram para outro local mais adiante. A porta é aberta com violência, dois indivíduos cor-pulentos entram armados com revolveres e disparam sobre nós. Só tivemos tempo de pular pela janela e correr para a mata, eu puxava Pedro pela mão, pois ele estava muito fraco, peguei-o e coloquei nas minhas costas, a partir daí senti que a minha corrida era mais lenta pelo peso adici-onado. Os barulhos dos perseguidores e de seus cães latindo, a cada momento estavam mais pró-ximos, ouvi vários tiros e nenhum acertou em mim. Correndo e arfando cada vez mais, senti um calor úmido escorrer pelos ombros e costas, e também que Pedro amolecera. Parei e coloquei Pedro no chão, ele estava hirto, senti seu coração e este não mais batia. Abri sua roupa... Vi vá-rias marcas de balas e elas o haviam atingido mortalmente. O ódio me invadiu! Retomei o ma-chado e corri para um alagado, esperando com isso enganar o faro dos cães, subi numa árvore e me escondi aguardando. Os cães pararam na borda do alagado aguardando os donos, pois fica-ram sem o cheiro da presa. Os perseguidores foram se aproximando e eu ouvia seus passos cada vez mais perto, até chegarem onde podia ouvir suas vozes perfeitamente, eles agora estavam sob a minha árvore: — Onde será que o maldito se escondeu? Perguntou um. — Sei lá, os cães perderam seu cheiro e não vemos rastros, vamos ficar aqui aguardando. Res-pondeu o outro. Fiquei no alto da árvore, escondido pela folhagem espessa e prestando atenção a tudo que fazi-am. Em dado momento um deles resolveu ir buscar alimentos, foi na cabana para este mister e levou os cães. Após um tempo e tendo ficado somente nós dois, espiei e vi que ele estava a pru-mo de onde me encontrava, era uma boa ocasião para agir, aprontei o machado e me deixei cair... Acertei-o bem no meio da coluna cervical. Ele tombou com um grito lancinante, tentou virar e pegar o revolver, mas fui mais rápido e cravei o machado em seu ombro. O grito agora foi apa-vorante, pois ele sabia que seu fim estava próximo. Tirei sua arma, olhei-o bem nos olhos, levan-tei o machado e cravei, decepei de um só golpe a sua cabeça. Impressionante era a cena, de um lado o corpo e de outro a cabeça, esta apresentava um sorriso zombeteiro. Os gritos foram ouvi-dos, pois o companheiro dele gritava: — Já estou indo. Aguente um só pouco. Pega Rex, Leão, Tigre! Ouvi-os perto, principalmente pelo ladrar dos cães, subi novamente e vislumbrei melhor a cena. Agora podia ver o opositor bem atrás dos cães, armei o revolver e mirei, atirei. O cão rodopiou e caiu sem um ganido, novamente armei e atirei, outro animal foi fulminado, me concentrei no úl-timo, armei e, com cuidado, atirei, ele caiu. Mas nesse momento senti no ombro uma atroz agu-lhada seguida do som do tiro que recebi, com o impacto desequilibro e caio da árvore, ao bater de cabeça no chão fico momentaneamente tonto, o suficiente para o outro chegar e me desarmar. Ele fica me olhando ali deitado, volteia, cospe, pragueja e insinua várias vezes com a arma di-zendo que vai atirar muito em mim, num determinado momento ele para, devagar abre um sorri-so zombeteiro exibindo seus defeituosos dentes, mira em minha cabeça e... Fecho os olhos aguardando o tiro... Ouço o estalido fatal e... Ouço o barulho de um corpo caindo ao meu lado, vou abrindo os olhos e vejo, então, que meu opositor ali jaz inerte, rosto virado para mim, os olhos bem abertos e entre eles uma perfuração, levara um tiro certeiro. Levanto para ver quem me ajudara, percorro o horizonte com olhar aguçado... Nada vejo, a ninguém vejo. Retomo minha caminhada, a negrura da noite me apanha antes de encontrar abrigo, outra árvore, outro galho, parece que já estou me acostumando com isso. Será sonho? “Pisava sobre algo grudento e o cheiro continuava horrível, me abaixo e passo a mão no solo, pois quero saber o que é. Levo ao nariz para sentir o cheiro e, com asco, esfrego a mão na roupa para limpar, este era pior que o maldito cheiro anterior, este cheiro é de uma carne podre mistu-rado com o de ovo estragado. Ainda no escuro ando e o mesmo holofote me irrita com sua cons-tância. Sinto sede e pelos pés percebo a mudança do piso que agora é líquido. Faço a concha com

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as mãos, recolho o líquido levando ao lábio e bebo, era agradável na boca, mas... Azedou ao pas-sar da goela, um azedo intenso seguido de amargo queimante, agora meu estômago parecia que-rer estourar... Vomitei várias vezes e isto trouxe o amargor queimante para a boca, agora eu que-ria desesperadamente lavar a boca para tirar aquele estorvo. Tropeço em alguém e caio, enfio a cara no solo agora arenoso, meus olhos são invadidos pela areia e a sensação horrível de lixar os olhos me desorienta. Tento achar algo para limpar os olhos e percebo que, mesmo com esse pro-blema, a desgraçada luz do holofote não sai de minha visão. Num determinado momento eu sinto uma mão, ela passeia em meu rosto, é suave e límpida, já não sinto a areia, mas nada vejo no es-curo. Por aquele momento a luz do holofote sumiu, porém agora retorna ao seu metodismo. Con-tinuo andando, procurando não sei o que.” Devia ser o final O canto agourento dos pássaros me acorda e recomeço a caminhada, agora já sei onde está Júlia. Ao caminhar penso nos que se foram e em Lucinha. Onde estaria ela? Em nenhum momento tive notícias dela, será que também estaria morta? A jornada foi breve, avisto uma barraca de lona ao relento, é um local aberto e bem visível, fácil de ser vigiado de longe. Como aproximar sem me expor? Penso na noite e aguardo em vigília. Anoitece rápido, já vou me esgueirando pela vegetação rasteira e fico próximo da barraca, presto atenção aos sons, baixo, muito baixo, ouço um chamado: — João... João... João! A voz de Júlia, quase sumida, repetia constantemente o meu nome, será que havia mais alguém lá dentro? Resolvi adentrar rápido, retesei os músculos e saltei para dentro da barraca, ainda no salto vejo Júlia amarrada, caio sobre ela e o piso cede, ali era um poço coberto com uma tábua apenas e, nesta estava amarrada Júlia. O baque foi forte, não sei Júlia, mas eu desmaiei. Outro sonho? “Interessante que, de uma hora para outra, passei a vislumbrar coisas, como exemplo: Tinha a vi-são de um abismo infindável de onde saiam algumas pessoas e outras caiam, todas em estado las-timável. Não conseguia ver o fim desse abismo, seja pela escuridão do fundo ou pela amplidão. Aquele holofote me castigava cada vez mais, era terrivelmente irritante! As lamúrias continua-vam e eu continuava caminhando, sem saber para onde e para que”. Acordo com as cutucadas e vejo que estou amarrado, olho e vejo Júlia amarrada ao meu lado, pergunto: — Você esta bem querida? Ela me olha diferente, eu nunca a vi com aquele olhar, parecia de desprezo e rancor, responde: — Como posso estar bem, você não vê o estado em que me encontro, eu fui magoada e ferida, violentada por várias vezes e sabe quem é o culpado? É você... Você... Você! Não podia acreditar que aquela era minha amada Júlia. Depois de tudo que estou fazendo, como podia ela achar que eu era o responsável. Acho que os agressores inventaram mentiras para ela, torno a perguntar: — O que você está dizendo Júlia? Quase fui morto por vir até aqui e você diz que sou o respon-sável, eu nem sei a razão pela qual raptaram vocês. Os nossos filhos estão mortos e diz que sou o responsável. Ela me olha de uma maneira mais ferina que a anterior e revida: — Eu não sabia da morte dos nossos filhos, pior ainda, agora é que você está perdido... Assassi-no... Assassino! Ia responder, mas chegou o malfeitor. — Os pombinhos estão se entendendo e isto é muito bom. João, você está vendo que ela está confusa, mas eu vou acalmá-la, veja como é. Ele se aproximou de Júlia e tirou da cinta uma faca, verificou seu corte com os dedos, sorriu para mim e apoiou o corte na orelha de Júlia. Olhando para mim ele pergunta com sarcasmo:

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— Será que ela aprova? Quer que eu faça? Júlia novamente me olhou, sentia o ódio verter em seu olhar, descontrolada gritou: — Isso, termine logo! Mande seu comparsa fazer o serviço completo... Mande... Mande logo, seu assassino! A lâmina desceu e a orelha de Júlia caiu. O sangue fluiu escorrendo pelo corpo dela. O sujeito pegou a orelha cortada e lambeu, estalou a língua como se gostoso fosse. Olhou para mim fir-memente, chegou perto e falou languidamente: — Sinta como é gostosa a carne dela. Esfregou em meu rosto, forçou-me a abrir a boca e colocou dentro a orelha cortada de Júlia, eu cuspi. Ele calmamente pegou a orelha caída e novamente colocou na minha boca, com a faca me ameaçou e eu tive que engolir! — Viu como é deliciosa. Disse sorrindo e concluiu dizendo: — Vamos ver como está outra parte dela? Caminhando sem fim Caminhou para Júlia, ela gritava, mas ele não ligou, empunhou a faca e decepou o nariz dela. O sangue brotou aos borbotões, Júlia estava toda atingida pelo sangue. Naquele momento não podia imaginar até onde iria esse atroz assassino, esse animal psicopata. Ele sorriu novamente para mim e sarcasticamente disse: — Acho que ela não vai mais precisar de lenços... Foi como ele concluiu numa cínica risota. — Não faça mais mal a ela, por favor! Foi o meu pedido. Ele me olhou sério, foi até Júlia e simplesmente cortou-lhe a outra orelha: — Não entendi direito, foi isto que você pediu? Disse ele me exibindo a orelha ainda sangrando. — Você é um animal da pior espécie, um sádico doentio. Se estivesse livre te esganaria sem qualquer remorso, maldito! Parecendo assustado, ele me olha, abaixa a cabeça e diz baixinho: — Já que é assim você quer; que assim seja feito. Vai e tranquilamente arranca com a faca o olho direito de Júlia. — Maldito seja! Grito. — Tudo bem meu amigo. Torna a ferir arrancando o outro olho de Júlia. Calo-me ao ver que pioro a situação, o meu coração queria pular do peito tal o ódio que sentia contra o canalha, mas fico no aguardo silencioso da atitude dele. — Como é não vai pedir mais nada? Será que já está satisfeito? Continuei calado. — Perfeito, já que quer assim, que assim seja. Ele foi até Júlia e lentamente, não ligando para os gritos dela e os meus, cortou o pescoço dela. Desviei o rosto da cena, pois aquilo era demais para mim, eu nunca havia visto tal atrocidade. Parecendo que o meu movimentar havia folgado a corda, experimentei forçar as mãos... O laço soltou. Mantive a calma, rosto virado e abaixado. — Como é, gostou? Falou ele arrogante. Resolvi provocá-lo: — Comigo vai começar nos fios da cabeça? Ele me olhou firmemente e avançou, empunhou a faca e correu a mesma pelos meus cabelos, ba-teu a faca na minha cabeça me fazendo cortes doídos, afastou e disse: — Já que atendi seus gostos com ela, agora vou atender aos meus, abaixou e pegou meu pé direi-to, passou a faca nele, colocou meu pé no chão, apoiou a faca no metatarso e... Senti os braços livres e, quando ele se abaixou, eu levantei os braços e os desci sobre ele, na altura do pescoço. Caiu ali mesmo. Rápido tomei sua faca e o amarrei fortemente. Ali estava ele, agora acordado, me olhando com desdém. Falei: — Parece que agora é sua vez. O que você acha disto? Animal doentio! Finalmente o recomeço

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Naqueles instantes recordo toda a trajetória de maldades que eles fizeram com minha família. O ódio não podia ser maior. Imaginei mil formas de fazer aquele último pagar por tudo e por todos. O faria sofrer em dobro todos os sofrimentos que passei e que os meus passaram. Ele ainda me olhava alegremente. Peguei a faca e fiquei brincando com ela bem próximo aos seus olhos, queria que visse e que an-tecipasse as minhas intenções. Peguei a pedra de amolar e passei a tratar do corte da faca, eu ex-perimentei se o corte estava bom por várias vezes nos pelos do rosto dele, me sentia realizado ao fazer toda aquela gesticulação. Pensei em qual método usaria para início da punição ao canalha. Havia lido dos suplícios aplica-dos aos prisioneiros de guerra, podia ser a madeira acesa sob as unhas, arrancar os dentes sem anestesia, riscar os olhos gradualmente, sangrar aos poucos... Como me era fácil imaginar tor-mentos para esse desgraçado. Afasto e dou as costas a ele, sorrio alto e continuamente, pois acho que isso o assustará, estou pronto, decidido a começar pelos riscos nos olhos. Viro e de cabeça abaixada, vou até próximo dele, ele deve estar apavorado! Levanto a cabeça para olhar nos olhos dele e... Estão fechados! Dou um bofetão em seu rosto... Nenhum movimento! Mais um bofetão e... Nada! Irrito-me e o pego fortemente pelo pescoço... Não sinto seu pulsar. Encosto o ouvido ao seu peito e ausculto seu coração... Parado! Ele estava morto. O miserável morreu antes que pudesse me vingar! Chutei-o por várias vezes, pois a minha decepção era total, eu não conseguira minha vingança. Apenas o retalhei e ali mesmo deixei, saí rápido e corri de-sesperadamente. Para onde? Não sei! Apenas corri até desmaiar de cansaço. “Qual a razão do holofote me perseguir? A cada vez o seu brilho é mais e mais forte, isto é irri-tante. Já não consigo imaginar como deixar de vê-lo. O ambiente se modificou e não é aquele an-terior, sinto que o solo está mais firme e seco. O cheiro está abrandado, agora é suportável. Ouço um gotejar, eu vou lá e experimento... É água... Que maravilha! Sinto presenças, viro e vislum-bro uma grande quantidade de pessoas, a negrura que os envolve é tenebrosa. Eles ameaçam avançar contra mim, o holofote aumenta seu brilho e eles se afastam”. Caminhando, caminhando! Acordo disposto e olho para a mata que me envolve, quero sair daqui, vislumbro uma trilha lim-pa e resolvo que vou segui-la. Realmente a trilha me leva para fora da mata, ao descampado, é uma límpida planície, ao longe diviso uma grande edificação, parece um galpão ou um silo e para lá me dirijo. A edificação imponente é diferente de um silo, deve ser um galpão especial. Deve ter uns mil metros quadrados, a porta de entrada é típica de residência de luxo, ampla e enfeitada com cape-las laterais dotadas de vitrais. Abro facilmente e entro, é apenas um amplo e único salão, vou ao fundo e não tem porta, verifi-co visualmente as sete simples portas de cada lado, fico pensando; qual seria a utilidade de tal edificação? Sento no chão, encosto na parede e tento relaxar, pois meus olhos ficaram pesados... Adormeço. Sou acordado por um grande estrondo e nada vejo, me levanto alerta e tento ouvir ou ver. Presto atenção para algum barulho ou movimento... Nada. Repentinamente todas as portas se abrem e ao mesmo tempo. O que vejo? Não deve ser verdade! Impossível isto estar ocorrendo! Em cada porta lateral um dos canalhas que matei, na porta da entrada o último e... Júlia. O ambiente se torna tenso e sinto vibrar novamente a ira contida. Verifico a minha situação, pois todos eles estavam com armas de fogo. Avançam lentamente em minha direção e não tenho para onde fugir, no fundo não tinha nem ja-nela. O que poderia ser feito? Pensei, pensei e... Não consegui atinar nada, só me restou aguar-dar, certamente vou morrer! Eles formam um círculo em minha volta e todos gargalham alto, debochadamente. Entro em desespero pela falta de alternativas. Meu coração dispara.

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Como se houvessem combinado, todos apontam ao mesmo tempo e disparam. Os tiros me atin-gem em vários pontos; orelhas, braços, pernas, pés, coxas, ombros, olhos e mãos, dizer da dor é dispensável, era indescritível. Caí extremamente dolorido, mas não desmaiei. Sentia a minha dor contrastando com a alegria debochada deles. Agora chegam mais perto e sinto que são dois; o último e Júlia. Ouço barulho de lâmina e sinto o corte nos dedos dos pés, um a um, falange a falange... Sinto realmente que é o fim, pois a dor já incontrolável e aguda me desequilibra, lembro de Lu-cinha... Lucinha. O corte nos olhos é culminante e não suporto mais, quero sumir! Morrer! Em descontrole total, sem nada a recorrer e sem qualquer esperança, grito desesperado: — Lucinha. Lucinha! Peça a Deus por mim! Peça ao seu Jesus por mim! O holofote voltou!... Sinto que ele me acalma... Balsamiza as dores e percebo que os meus oposi-tores estão parados... Desmaio de alegria...

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A LEI ETERNAMENTE AMOROSA

As limitações de ação pelo uso do livre-arbítrio Numa certa noite a figura angelical volta. Era Lucinha irradiando alegria pela sua presença: — Olá minha querida guardiã, minha amada irmã de luz! — Olá Lucinha, que bom vê-la satisfeita em seu trabalho, que linda jornada! — O que a minha luz me trás de novo? — Trago uma voz, você vai reconhecê-la e ela clama auxílio, é uma hora propícia para ajudá-la, ouça: “— Lucinha. Lucinha! Peça a Deus por mim! Peça ao seu Jesus por mim!”. Lucinha reconheceu de imediato: — É papai! Onde ele está agora minha luz? Quero ajudá-lo sem demora! — Vamos até ele, porém ele não nos verá. Veremos como ele pode ser ajudado! Vamos! Lucinha é tomada pelos braços e levada até o local onde seu pai se encontra; uma região umbra-lina! Sente toda a vibração tenebrosa ali reinante. Angustiada inquire: — Minha luz, porque me sinto impedida de ajudá-lo? — Lucinha, seu pai e seus familiares carnais estão envoltos pelos laços do cipoal de erros come-tidos por várias encarnações, todas as oportunidades concedidas não foram aproveitadas e novos erros foram cometidos. A perseguição dos prejudicados atingiu o limite onde ainda é possível uma suave ação dos amigos espirituais, a partir daqui eles deverão “sofrer” o resgate dos erros cometidos e irão sentir toda a perturbação vibratória que provocaram. Quando estiverem vibrato-riamente “castigados”, reconhecendo realmente seus erros, aí poderemos recolhê-los para trata-mento e preparação para novas encarnações, enquanto eles não sentirem que a Justiça Divina se cumpre sempre e que são devedores prontos a pagar o resgate de seus próprios erros, ficarão pe-rambulando em regiões umbralinas, isto é; faixas vibratórias desequilibradas. Como tiveram to-das as oportunidades para reajuste e não aproveitaram, é justo que sintam o peso de todos os er-ros que praticaram. Tudo tem seu tempo! Agora é o tempo de purgar, é da Lei Divina! — Mas eu quero ajudar minha luz! — Eu sei! Você poderá ajudar, porém de longe! Faça suas preces e vibrações para eles, procure não vir visitá-los, pois poderá ficar perturbada e, se ficar, não conseguirá ajudá-los, podendo até causar prejuízos! — Será difícil minha luz, pois morro de saudades deles! Mas farei todo esforço necessário para ajudá-los sem perturbar! — Muito bom Lucinha! Tenho certeza que vencerás. É só ter paciência e perseverança. Com amor, Jesus e Deus tudo pode ser conseguido! Vamos aproveitar esta nossa visita e vibremos por eles! Ali mesmo entraram em sentida oração. Filetes de alva luz eram emitidos e envolviam João, sua família e seus cobradores, mas eles nada sentiam, pois estavam envolvidos em vibrações dese-quilibradas de ódio e raiva! Por quanto tempo assim ficariam? Apenas o tempo suficiente para se reequilibrarem e vislumbrarem a Justiça Divina, de pleno acordo com o desequilíbrio de cada um. As Leis Divinas são justas; a cada um de acordo com suas obras! Na caminhada imortal do Espírito todos temos vários desses “tempos” perdidos em acertos com as Leis que desrespeita-mos e nos parecem “eternidades”, mas são apenas lapsos; similares ao transcorrido nas noites dormidas durante as encarnações. Usamos indevidamente o livre-arbítrio que Deus nos concede, portanto: — Colhemos obrigatoriamente tudo que plantamos livremente! As estrelas cintilavam na imensidão do espaço infinito. Assim como amanhã poderemos ver outro céu pelo surgimento e desaparecimento de astros e es-trelas, o nosso amanhã espiritual pode ser definido hoje pelo plantio de corretas sementes e bom enxerto nos espinheiros que plantamos ontem! fim