são são paulo - relatório tfg
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Relatório do TFG São São Paulo, de Luisa Amoroso Guardado (FAU USP junho 2012)TRANSCRIPT
SÃO SÃO PAULOTRABALHO FINAL DE GRADUAÇÃO
LUISA AMOROSO GUARDADOFAU USP 2012
SÃO SÃO PAULOTRABALHO FINAL DE GRADUAÇÃO
LUISA AMOROSO GUARDADO
ORIENTADOR LUIS ANTÔNIO JORGE
FAU USP 2012
4
Para Betânia, Marta, Paulo e Sérgio. Agradecimentos
Aos professores e amigos: Luis Antônio Jorge, pela orien-
tação paciente e precisa; José Lira, Luciano Migliaccio e
Odilon Moraes, pelos comentários cuidadosos e por com-
por a banca examinadora; Helena Ayoub Silva e Feres
Khoury, pelos comentários e pelo humor delicioso.
Aos amigos e professores, especialmente: Ricardo Gus-
mão, que acompanhou e participou carinhosamente desse
processo; Denise Yui e Marília Ferrari, que auxiliaram o
projeto gráfico; Hannah Machado e Marina Rago, que
me ajudaram a estudar e fotografaram as ilustrações so-
bre Alcântara Machado; Catarina Bessel e Sandra Javera,
que inspiram com seus trabalhos e compartilham genero-
samente seus talentos; Alexandre Gaiser, Maira Fernan-
des e Marina Smit, que se aproximaram desse trabalho
garantindo sempre ótimos pitacos.
5
ÍNDICE
1
2
3
4
5
6
7
06
07
10
16
17
22
24
26
29
30
33
38
41
44
46
Introdução
Espaço, Poética e Tradução
São Paulo
Artistas
Mário de Andrade
Antônio de Alcântara Machado
Adoniran Barbosa
Itamar Assumpção
São São Paulo
Interpretação e processo das ilustrações
Mário
Alcântara
Adoniran
Itamar
Conclusão
Bibliografia
6
7
São, São Paulo
Quanta dor
São, São Paulo
Meu amor
São oito milhões de habitantes
De todo canto em ação
Que se agridem cortesmente
Morrendo a todo vapor
E amando com todo ódio
Se odeiam com todo amor
São oito milhões de habitantes
Aglomerada solidão
Por mil chaminés e carros
Caseados à prestação
Porém com todo defeito
Te carrego no meu peito
São, São Paulo
Quanta dor
São, São Paulo
Meu amor
Salvai-nos por caridade
Pecadoras invadiram
Todo centro da cidade
Armadas de rouge e batom
Dando vivas ao bom humor
Num atentado contra o pudor
A família protegida
O palavrão reprimido
Um pregador que condena
Uma bomba por quinzena
Porém com todo defeito
Te carrego no meu peito
São, São Paulo
Quanta dor
São, São Paulo
Meu amor
Santo Antonio foi demitido
Dos Ministros de cupido
Armados da eletrônica
Casam pela TV
Crescem flores de concreto
Céu aberto ninguém vê
Em Brasília é veraneio
No Rio é banho de mar
O país todo de férias
E aqui é só trabalhar
Porém com todo defeito
Te carrego no meu peito
São, São Paulo
Quanta dor
São, São Paulo
Meu amor
São São PauloTom Zé, 1968
8
O presente trabalho pretende apresentar ilustrações com
o tema São Paulo, abordando a cidade a partir de olhares
poéticos que foram lançados sobre ela. Foram escolhidos
quatro artistas para compor esse conjunto: Mário de An-
drade, Antônio de Alcântara Machado, Adoniran Barbosa
e Itamar Assumpção.
São Paulo foi objeto de grande parte dos estudos reali-
zados na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP
no meu período de graduação. A aproximação teórica é
somada à própria vivência na cidade, que em si já coloca
o desafio da “cidade fragmentada, que aparenta não ser
fruto da ordem, mas sim filha do caos, da competição
mais selvagem e desgovernada de projetos individuais de
ascensão ou sobrevivência, do sonho de gerações sucessi-
vas de imigrantes que vieram em busca das oportunidades
distantes e da potência da grande cidade.”1 A aproximação
com a cidade dos artistas partiu da curiosidade de conhe-
cer trabalhos que tiveram essa mesma São Paulo como
inspiração de obras poéticas.
Dentre as obras dos artistas foram selecionadas aquelas
que se referiam diretamente a São Paulo, sendo a cidade
ora tema, ora cenário, ora ambos. A coletânea de obras
ilustradas varia na linguagem, no tempo e no próprio espa-
ço dentro da cidade, compondo um grupo heterogêneo de
visões sobre o mesmo objeto.
Neste trabalho a São Paulo de cada um dos artistas foi in-
terpretada e traduzida graficamente em ilustrações – cada
uma delas formando uma série, com um partido gráfico e
um caderno diferente.
Esse processo de transposição de linguagens é propositivo,
na medida em que enfoca um mote que não necessaria-
mente é principal na obra de origem, mas procura preser-
var o sentimento de cada uma das obras ilustradas – se
colocando assim como uma tradução vinculada à composi-
ção original. O resultado então é uma interpretação pesso-
al da cidade de cada um dos quatro artistas, que procurou
manter-se fiel aos elementos fornecidos pela obra.
1
Introdução
1 ROLNIK, Raquel. São Paulo. São Paulo: Publifolha,
2001, p. 10;
9
2
Espaço, poética e tradução
Na definição de Milton Santos lugares hoje são o suporte
de relações globais que sem eles não se realizariam. São,
portanto, partes funcionais de um todo, e a ele se reme-
tem. Segundo o geógrafo estamos acostumados à ideia de
região como um espaço elaborado, uma construção está-
vel. “Mas o que faz uma região não é a longevidade do
edifício, mas a coerência funcional que a distingue das ou-
tras entidades, vizinhas ou não”2. Todo o espaço, segundo
Santos, vive um processo de fragmentação e globalização,
individualização e regionalização.
Assim, enquanto a unidade é característica da História e
do Planeta, ambos totalidades em permanente transforma-
ção, a diversidade é própria dos lugares – esses também
em permanente transformação.
Milton Santos define também o subespaço: uma área con-
tígua que pode ser de diferentes categorias, de acordo com
as relações que estabelece, e tendo sempre presente o cará-
ter solidário – solidariedade no sentido de tarefas conjun-
tas ou comuns, sem conotação ética ou emocional - que
o define subespaço, região ou lugar. O autor coloca ainda
que hoje a relação menos hierárquica entre os subespaços
faz com que a distinção entre região e lugar seja menos
importante, ambos são subespaços cuja evolução depende
do tempo como possibilidade e da geografia como opor-
tunidade. Cada temporalização tem uma espacialização
prática que desrespeita as solidariedades e os limites ante-
riores e cria outros.
Em todos os tempos há um mosaico de subespaços co-
brindo o Planeta, e seu desenho é fornecido pela História.
Partindo da análise de Milton Santos é possível abordar a
cidade de São Paulo em seu caráter fracionário, em suas
constâncias e transformações. Ainda que os problemas
urbanos da cidade em grande medida acompanhem a es-
cala da metrópole – pensando em questões como infra-es-
trutura urbana, transporte e habitação, e suas respectivas
deficiências – e devam ser atacados na mesma escala total,
as leituras sobre a ocupação ou sobre a produção cultural
de São Paulo podem trazer a abordagem da cidade por
lugares, diferentes uns dos outros, e assim possibilitar a
comparação entre diferentes visões e usos dos diferentes
espaços da metrópole.
Em Saudades de São Paulo o antropólogo Claude Lévi-
-Strauss ao comentar o sentido de “saudade” no título de
seu trabalho explica: “não foi por lamento de não mais
estar lá. De nada me serviria lamentar o que após tantos
anos não reencontraria. Eu evocaria antes aquele aperto
no coração que sentimos quando, ao relembrar ou rever
certos lugares, somos penetrados pela evidência de que
não há nada no mundo de permanente nem de estável em
que possamos nos apoiar”3.
É com essa citação que Luis Antônio Jorge inicia o artigo
“São Paulo: transformação e permanências para uma
cultura cosmopolita”4, e coloca que o singular crescimento
da cidade nos seus três séculos de desenvolvimento urbano
aponta para o estado de permanente transformação que Lé-
vi-Strauss estaria colocando. “Se associarmos estes espanto-
sos números do crescimento demográfico às maneiras como
os grupos humanos ali se estabeleceram, relacionando-se
2 SANTOS, Milton. Da Totalidade ao Lugar. São Paulo:
EDUSP, 2005, p. 157;
3 LÉVIS-STRAUSS, Claude. Saudades de São Paulo.
São Paulo: Instituto Moreira Salles / Cia. das Letras,
1996, p.7;
4 JORGE, Luís Antônio. São Paulo: transformation and
preservation for a cosmopolitan culture. Area n. 114,
fev 2011, Milão;
10
num intenso intercâmbio de costumes ao mesmo tempo em
que construíam seus sistemas de valores e suas formas de
ocupar a cidade, poderemos nos aproximar de um sentido
da cidade que escapa aos seus visitantes.”5
Considerando a forte presença das correntes migrantes e
imigrantes na conformação dos espaços de São Paulo, An-
tônio Jorge coloca: “Em uma cidade historicamente cons-
truída por correntes migratórias internas e externas, por
uma urbanização e crescimento demográfico explosivos,
por um amálgama de costumes conviventes nos mesmos
espaços, indagar a presença persistente das representações
de identidades ‘estrangeiras’ é uma forma de entendimen-
to de uma relação singular entre espaço urbano e cultura.
São Paulo pode ser vista como um mosaico de lembranças
de outros lugares que cada imigrante ou cada grupo social
trouxe como valor de cidade ou de urbanidade.”6
O autor acrescenta que “tais temas são frequentes nas
crônicas da época, nas narrativas literárias, configuran-
do rótulos, estigmas, preconceitos, mas também, signos
privilegiados de natureza identitária.”7
É através dessa produção escrita e musicada que o pre-
sente trabalho procurou abordar diferentes visões sobre a
mesma cidade. As marcas de diferentes tempos e diferen-
tes apreensões de São Paulo podem ser resgatadas em suas
poesias, músicas e histórias.
Os personagens escolhidos para o conjunto aqui propos-
to são, primeiramente, figuras que falaram da São Paulo
através da poesia e da literatura, trazendo olhares sensí-
veis da convivência ou da contemplação desse espaço.
São falas poéticas sobre a dura cidade.
Sobre a poética e sua relação com a linguagem Roman
Jakobson coloca: “a poética trata fundamentalmente do
problema: que é que faz de uma mensagem verbal uma
obra de arte?”8. Dentro da Linguística, ciência global da
estrutura verbal, a poética aborda as questões da própria
estrutura verbal.
Ainda segundo Jakobson, muitos dos procedimentos es-
tudados pela poética não se confinam na arte verbal, vide
tantos exemplos de textos transformados em filmes, qua-
drinhos, danças ou artes gráficas. Essas versões podem ser
discutidas, mas em geral preservam traços estruturais do
enredo do texto original. E justamente porque discutimos
a validade de tais versões mostra que “as diferentes artes
são comparáveis”. “Numerosos traços poéticos pertencem
não apenas à ciência da linguagem, mas a toda teoria dos
signos, vale dizer, à Semiótica geral”9. Essa afirmação vale
para todas as formas de linguagem, não apenas a arte ver-
bal. Da mesma maneira, todas as relações entre a palavra
e o mundo dizem respeito não apenas à arte verbal, mas a
todas as espécies de discursos.
A intenção do presente projeto de ilustração é realizar
uma tradução das obras selecionadas, de uma estrutura
verbal para um discurso gráfico, tendo o objeto São Paulo
como foco central. A ilustração compreendida como
tradução se alinha à colocação de Jakobson, de que dife-
rentes artes são comparáveis e passíveis de transposição
de discursos. Assim, o processo de tradução não tem uma
perspectiva de neutralidade: é entendido aqui como ver-
são, que acarreta no refazer, como o reescrever do tradu-
tor. A transposição de discursos, do escrito ou musicado
ao gráfico, pressupõe um novo trabalho.
Um bonito exemplo da tradução como uma refeitura
é o poema The Tyger , de William Blake, na tradução
de Augusto de Campos, O Tygre10. O texto original em
inglês é um poema métrico, composto em 1794, com forte
presença estilística e intrínseca ao discurso verbal (sem
5 JORGE, Luís Antônio. Op. Cit. p.23;
6 JORGE, Luís Antônio. Op. Cit. p. 24;
7 JORGE, Luís Antônio. Op. Cit. p. 24;
8 JAKOBSON, Roman. Lingüística e Comunicação.
São Paulo: Cultrix, 2007, p. 118;
9 JAKOBSON, Roman. Op. Cit. p.119;
10 CAMPOS, Augusto. Viva Vaia – Poesia 1949-1979.
São Paulo: Ateliê Editoria, 2000;
11
elementos gráficos a princípio). A tradução de Augusto de
Campos, de 1975, analisa com complexidade a explora-
ção poética original, não se atendo à tradução da mensa-
gem apenas, mas trabalhando com todos os recursos em-
pregados na sua transmissão, como a rima ou a aliteração,
que são elementos tão importantes quanto o significado
de cada uma das palavras.
A tradução de Augusto de Campos traz apenas um trecho
do poema, reinventado: a tipografia desenhada especial-
mente para essa obra carrega parte da mensagem, junto
com os tigres espelhados desenhados que remetem a tipo-
grafias orientais – a simetria e a lembrança indiana sendo
aspectos importantes do conteúdo e do momento do texto
original – aspectos do discurso verbal que são traduzidos
em discurso gráfico.
A primeira dupla do trabalho de Campos explicita ao
leitor o processo de tradução escolhido, ao reproduzir o
texto original em inglês na primeira página. Tendo o meio
do livro como eixo de espelhamento, o reflexo em portu-
guês se remete ao original em inglês e escolhas do tradu-
tor, como a preservação da aliteração da primeira frase,
levando a tradução não literal de cada uma das palavras,
ficam registradas.
O Tygre é um caso de tradução como refazer e de transfe-
rência de discursos, onde original e tradução mantém uma
raiz comum – e demonstram diferentes obras compará-
veis, como coloca Jakobson.
12
11 ROLNIK, Raquel. São Paulo. São Paulo: Publifolha,
2001, p. 10;
Rua 15 de Novembro, 1892.
Vista de São Paulo, 1895 / Instituto Moreira Salles.
3
São Paulo
Cada um dos quatro artistas aqui ilustrados é um olhar
sobre uma cidade diferente: diferentes lugares, visões e
épocas ao longo do século XX. E todos eles trazem em seus
depoimentos íntima relação com os respectivos contextos
urbanos e históricos de São Paulo, que pretendo apresentar
junto a uma breve retomada da história da cidade.
Em um ensaio introdutório sobre São Paulo Raquel Rolnik
coloca as sensações de dureza e dificuldade na vivência de
seus moradores frente ao processo de grande crescimento,
que parece ser fruto da desordem absoluta, desvinculado
de qualquer diretriz ordenatória, política ou social. De-
fende que “longe de ser caótico, esse processo foi direta-
mente influenciado por opções de política urbana, tomadas
em períodos fundamentais de sua história”11. A autora
coloca que são sucessivos modelos de cidade colocados
para um lugar que cresceu de 30 mil para mais de 2,5
milhões de habitantes entre 1854 e 1954, e passou dos 10
milhões nas décadas seguintes.
Fundada em 1554, desde o século XVII expedições
bandeiristas saíam da Vila de São Paulo. Seu destaque
econômico começou com o comércio e cultivo de café,
iniciado no Vale do Paraíba em meados do século XIX,
a cidade sendo a primeira parada depois do porto
de Santos, estabelecendo fundamental ligação entre
produção e distribuição.
Em função da economia cafeeira a primeira ferrovia
foi implantada, Santos-Jundiaí, em 1867. Grande parte
da elite da época passou a convergir para São Paulo,
nascente centro econômico, e começou a imprimir seus
ideais na cidade. A economia em ascensão atraiu também
grandes fluxos imigratórios – entre 1888 e 1900 pas-
saram por São Paulo mais de 900 mil imigrantes, 70%
provenientes da Itália.
Em decorrência da movimentação econômica a partir do
café o Brasil vive seu primeiro surto industrial no começo
do século XX, grande parte dele se manifestando na cidade
de São Paulo. As indústrias têxteis e alimentícias foram os
primeiros gêneros e ocupavam principalmente as várzeas
e as áreas atravessadas pela ferrovia – caracterizando
ocupações de regiões como a Lapa, Bom Retiro, Pari, Brás,
Mooca, Ipiranga – onde também se instalaram as primei-
ras colônias de imigrantes.
Nessa fase São Paulo vive ainda o primeiro surto de
“urbanidade”: investimentos em infra-estrutura urbana
como sistema de esgoto, pavimentação de ruas e sistema de
transporte público, com os bondes elétricos, foram algumas
das grandes transformações da cidade. O centro histórico
recebeu especial atenção, com a implementação do conceito
francês de Boulevard no Vale do Anhangabaú, a consoli-
dação do triângulo São Bento-Rua Direita-Rua 15 de
Novembro, e o início da expansão para o Centro Novo (em
torno da Praça da República). A intenção da nova elite pau-
lista em formação se expressava com clareza na abertura
de ruas, implantação de equipamentos culturais e comércio
voltado ao consumo de alto padrão da época.
Formavam-se também os bairros populares, periféricos em
relação aos investimentos centrais, onde proliferavam as
chaminés industriais misturadas aos cortiços, tendo como
13
infra-estrutura urbana disponível praticamente apenas o
transporte por bonde.
Assim, nesse momento a oposição entre centro e periferia já
se manifestava na cidade de São Paulo, sendo uma área equ-
ipada e continuamente recebendo manutenção dos serviços
públicos de infra-estrutura urbana, e outras tantas respon-
sáveis por grande parte da produção da cidade mas restritas
a condições precárias de moradia e trabalho.
A esse contexto podemos aproximar a chegada da família
de Adoniran Barbosa, que se mudou para Jundiaí em 1918,
onde havia oportunidades de trabalho, e Adoniran ajudava
o pai como carregador de vagões da São Paulo Railway
(futura Santos-Jundiaí). É fácil cantarolar Aguenta Mão,
João ou Viaduto Santa Efigênia (ainda que sejam com-
posições posteriores)relembrando as condições de reno-
vação urbana e carência de infraestruturas do período, que
se estenderiam por mais algumas décadas.
A clara segregação espacial era manifestada também com a
criação de bairros voltados para a elite burguesa: em 1879,
é fundado o bairro Campos Elíseos, em 1890, Higienópolis,
em 1891, a Avenida Paulista. Junto com esses loteamentos
a ação discriminatória dos serviços públicos, que atendiam
tais localidades e o centro elitizado exclusivamente. A
Avenida Paulista nasce com uma legislação específica para
ela, obrigando largos recuos “a serem ocupados por jardins
e arvoredos”, medida que estabelece um modo de ocupação
relativo a apenas um segmento social. “Nesse período se
esboça o fundamento de uma geografia social da cidade, da
qual até hoje não se consegue escapar”12.
A possibilidade de participação política nesse momento
era também bastante restrita: votavam brasileiros, maiores
de 21 anos, alfabetizados, e o voto não era secreto. Em
uma cidade de imigrantes e analfabetos, apenas uma
pequena elite tinha direito ao voto - composta, no começo
do século XIX, basicamente por proprietários rurais,
negociantes ricos, banqueiros e profissionais liberais liga-
dos a esses grupos por vínculo familiar ou empregatício.
O processo eleitoral era, ainda, corrompido, controlado
pelos grupos que disputavam a governança e assim
configurando a eleição dada pelas articulações políticas
mais do que pelo número de votos em si. “Esse modelo
liberal e privatista, e toda construção de relações políticas
que lhe correspondia, entra em crise nos anos 20, vítima
da voracidade de sua criatura: uma cidade que em 1920
chega aos 600 mil habitantes, densa e concentrada como
um barril de pólvora preste a explodir”13.
Os anos de 1920 em São Paulo entram em uma cidade
em processo de modernização, se refletindo no projeto
estético lançado pelo movimento modernista nas artes
plásticas, inspirados pelas vanguardas europeias. Nesse
Porto de Santos, entre 1935 e 1937/ Claude Lévi-Strauss.
Avenida Paulista, 1902 / Instituto Moreira Salles.
12 ROLNIK, Raquel. Op. Cit. p. 19;
13 ROLNIK, Raquel. Op. Cit. p. 23;
14
Rua 15 de Novembro, 1920.
contexto Mário de Andrade é um protagonista fundamen-
tal: idealizador da Semana de Arte Moderna de 1922, seu
livro Paulicéia Desvairada, publicado no mesmo ano, traz
a tese de uma cidade arlequinal, composta por tantas cul-
turas diferentes, e que em um movimento antropofágico
digere e reinventa essas culturas, se constituindo como a
Paulicéia de que fala.
Os abalos na Europa, por conta da Primeira Guerra
Mundial (1914-1918), levam a um segundo grande surto
industrial paulista, iniciado com a substituição de impor-
tações – em decorrência São Paulo receberia ainda um
novo grande fluxo imigratório, levando a novo amplo
crescimento demográfico e a formação de um proletari-
ado urbano. Frente a essas mudanças a cidade viveria
ainda período de grande carência na produção tanto de
bens de consumo, como roupas e alimentos, quanto de
habitação e outras necessidades urbanas básicas, acar-
retando em uma disparada inflacionária. Assim, no final
da década de 1920 o cenário de São Paulo era de escassez
e inflação, somadas à epidemia de gripe espanhola, que
matou milhares de cidadãos.
O movimento sindical emergiu com força nesse momento,
inspirado pelos anarquistas da Itália e da Espanha. Frente
à insatisfação com a cidade os bairros operários foram
permeados por essa tensão social. Ao mesmo tempo a ci-
dade dos imigrantes nessa fase vinha constituindo mais um
grupo social, a classe média urbana, formada por comer-
ciantes, funcionários públicos, pequenos empresários, que
não tinham voz política. A aliança desses dois grupos foi
fundamental para o tom radical da revolução de 1930.
Com a Revolução de 1930 tem fim o período da Repúbli-
ca Velha, com a deposição de Washington Luis e im-
pedimento da posse de Júlio Prestes, colocando Getúlio
Vargas como chefe do “governo provisório”. O modelo
político da Primeira República é substituído por um
governo intervencionista, nacionalista, que dialoga com
as classes mais baixas.
Do ponto de vista urbano São Paulo foi marcada pelo
aumento de automóveis nos anos 20, assinalando o modelo
rodoviarista que persistiria, associado também à indús-
tria automobilística, e introdução dos primeiros ônibus.
Começara a era das grandes obras viárias, de maiores in-
vestimentos para serviços públicos e metas de “expansão da
periferia como estratégia de acomodação dos assentamentos
populares”14. – Dr. Washington Coelho Penteado, person-
agem de Alcântara Machado, exaltaria orgulhoso a quanti-
dade de automóveis que circulava rapidamente pela cidade.
Nesse período a Cia. Light, empresa de capital canadense,
atuava em São Paulo nas atividades de geração e dis-
tribuição de energia, transporte público com bondes e
negócios imobiliários. Com a crescente demanda de energia
a prioridade da Cia. era obter a concessão do rio Pinheiros,
para reverter seu curso e alimentar o reservatório Billings
(através das estações elevatórias de Traição e Pedreira), que
geraria energia através da usina Henry Borden.
A ampliação da rede de bondes não era uma prioridade
para a Light, diretriz que acirrou a insatisfação dos bair-
ros populares – em 1924 começam a circular os primeiros
ônibus clandestinos. Os ônibus ganhando espaço sobre o
bonde, e a corrente inflação, criavam uma situação cada
vez menos favorável à Cia. – vale lembrar do bonde abar-
rotado incomoda a personagem Platão Soares, no conto
O Filósofo Platão, de Alcântara Machado. A situação da
Light em São Paulo foi ficando cada vez mais delicada:
suas propostas encaminhadas ao poder público para reno-
vação de contrato foram negadas pelo Partido Democráti-14 ROLNIK, Raquel. Op. Cit. p. 23;
Largo de São Bento, 1920.
15
Praça da Sé com a Catedral em construção, 1938.
Bondes em São Paulo, entre 1935 e 1937/ Claude
Lévi-Strauss
co, que vinha se opondo à gestão Republicana anterior, e
a grande enchente de 1929, que atingiu pela primeira vez
bairros nobres e foi atribuída às suas ações. Estava criado
um cenário bastante desfavorável para a continuidade das
atividades da empresa na cidade. Como agravante final,
a proposta da Light não era compatível com o Plano de
Avenidas de Prestes Maia, assim o governo decide pela não
renovação do contrato com a empresa.
A proposta do Plano de Avenidas começa a ser implemen-
tada na cidade na década de 1940, quando Prestes Maia
assume a prefeitura de São Paulo. O plano é uma escolha
pelo modelo rodoviarista que viria a se estender até os dias
de hoje, com o ônibus como base do transporte público,
abertura de largas avenidas e a possibilidade de expansão
da cidade com base no deslocamento rodoviário.
É com o Plano de Avenidas que se caracteriza pela primei-
ra vez em São Paulo o padrão de rios enclausurados entre
grandes avenidas ou canalizados em galerias subterrâneas,
com avenidas sobre seu curso, como a Avenida do Estado,
locada sobre o rio Tamanduateí. Assim como o rodovi-
arismo, a relação entre o rio e a cidade que se estabelece a
partir do Plano de Avenidas é uma herança com a qual a
cidade convive nos dias de hoje.
Para atender às pressões sociais por serviços públicos era
necessário que a crescente periferia, que até então era colo-
cada como uma diretriz oficial do Estado para prover hab-
itação de baixo custo, com base na autoconstrução, fosse
agora incorporada à gestão urbana de maneira regular. Em
1932 foi acrescentado um dispositivo no Código de Obras
que dava a possibilidade de reconhecer loteamentos irregu-
lares, no entanto não estabelecia critérios claros para tal. O
reconhecimento das habitações, que significaria o acesso a
todos os direitos e obrigações do Estado para com a cidade,
dependia dos técnicos do próprio Estado. Rolnik coloca
que “inaugura-se, assim, a era da cidadania consentida: a
condição de legalidade urbana, fundamental para a incor-
poração de vastas massas urbanas como objeto das políti-
cas públicas, é uma concessão, seletiva, do Estado”15. A au-
tora explica que a ideia de ‘ideologia da outorga’ é fundada
a partir desse momento, “o ato fundador da cidadania é
uma relação de doação do Estado para o povo. Finalmente,
o termo que fecha e dá sentido à relação é ‘retribuir’. Quem
recebe um presente cria um vínculo, que leva naturalmente
a retribuições”16. No período Vargas o governante era a
figura do “doador”, e essa relação é perpetuada mesmo de-
pois da redemocratização, na prefeitura de Jânio Quadros,
e nos anos seguintes, com medidas que reforçam a relação
de direitos concedidos, e que não garante o estado de plena
cidadania a todos os cidadãos.
Na década de 1940 as zonas centrais de São Paulo são
verticalizadas e tem-se a consolidação do eixo centro-
zona oeste como regiões privilegiadas do ponto de vista
da infra-estrutura pública, configurando as áreas mais
elitizadas da cidade. Foi pavimentada a rodovia Dutra
(ligando São Paulo ao Rio de Janeiro) e implantada a
rodovia Anchieta (acesso da cidade ao porto de Santos) e
configurou-se um novo eixo de expansão industrial, com
base principalmente nas indústrias metalúrgicas, metal-
mecânica e elétrica.
O processo de crescimento e adensamento dos bairros
próximos às rodovias continuou na década de 1950,
quando São Paulo, que já era o mais importante centro
industrial do país, torna-se também o principal centro
financeiro e maior cidade do Brasil.
O grande crescimento econômico atrai migrantes de
todo país, em um período marcado pela diminuição da
15 ROLNIK, Raquel. Op. Cit. p. 36;
16 ROLNIK, Raquel. Op. Cit. p. 37;
Rua da Liberdade, 1930.
16
Barracas eleitorais, 1950.
imigração (ainda que a chegada de estrangeiros tenha
continuado). O movimento migratório é uma caracterís-
tica de São Paulo absolutamente evidente na realidade
urbana hoje: “Da estranha mistura de pastel, pizza,quibe
e cheeseburger obrigatória em qualquer lanchonete de
esquina às dezenas de sushiman nordestinos espalhados
pelos restaurantes da cidade, são muitos os sinais dessa
presença mesclada. De um bairro como o Bom Retiro da
década de 1950, onde se falava iídiche nas ruas, ficaram as
confecções e lojas populares de roupa, agora sob controle
coreano. (...) A sedução fácil de uma teoria de convivência
harmoniosa e divertida é negada, entretanto, pela geografia
socioeconômica das origens. (...) Quanto mais distante e
precária, mais negra, mulata e imigrante”17.
Na década de 1970 o consumo das elites foi deslocado
na direção da Avenida Paulista e Jardins. Até então a
elite divide o espaço mais equipado da cidade, o “Centro
Tradicional” e o “Centro Novo”, com habitações de renda
mais baixa, como os cortiços da região do Glicério e da
Bela Vista – “simultaneamente a boca do lixo e do luxo”18.
Ao longo dos anos 1960 as sedes de banco e grandes
empresas se mudam para a Paulista, e os equipamentos do
centro começam a apresentar sinais de deterioração. “Pela
primeira vez na história da cidade, o metro quadrado do
Centro Histórico deixa de ser o mais caro”.
Nesse momento pela tem-se também inédita diminuição
da ocupação dos bairros centrais como a Mooca e o Brás,
enquanto o centro se expandia em bairros adjacentes como
Higienópolis, Santa Cecília e Consolação.
Desde a década de 1950 edifícios modernos tomavam a
paisagem, muitos deles na Avenida Paulista. O Conjunto
Nacional, construído em 1956, foi o primeiro edifício de
uso misto – residencial e comercial – na avenida e inaugur-
ou o eixo de comércio que viria a se desenvolver na Rua
Augusta pouco depois. Em 1968 o MASP é transferido do
centro para o novo edifício de Lina Bo Bardi na Paulista,
com expressivo projeto moderno tanto em sua forma
quanto no projeto que o casal Bardi lançava à cidade, in-
cluindo educação e o projeto de cultura com maior acesso
para a população.
É nesse mesmo momento de expansão da cidade que
começam as primeiras leis de zoneamento. Com exceção de
alguns bairros, projetados pela Cia. City e exclusivamente
residenciais, poucas áreas de São Paulo tinham restrições
quanto a uso ou gabarito das edificações até meados da
década de 1950, quando o crescimento indeterminado
começou a ser questionado por um grupo de engenhei-
ros liderado por Anhaia Melo. As primeiras limitações de
gabarito são de 1957 e, em 1972 entra em vigor o zonea-
mento que limitava usos e formas de ocupação para toda a
área urbana do município. Ao zoneamento novas restrições
foram acrescentadas em 1981, definindo a ocupação de uma
faixa da zona rural para habitações populares.
Nas décadas de 1970 e 1980 a COHAB atuou com uma
política habitacional de conjuntos exclusivamente hab-
itacionais nas regiões periféricas da cidade. As áreas de
implantação dos projetos eram problemáticas, devido à
proximidade com os rios, canalizados ou não, levando a
terrenos com problemas graves de erosão e impróprios
para a permeabilização que sofreram. O modelo de im-
plantação isolava, ainda, os habitantes contemplados pelos
programas habitacionais nas áreas mais distantes do cen-
tro e carentes de infra-estrutura. “Não há dúvidas de que a
bomba-relógio da violência, que explodiu nos anos 90 na
cidade, guarda um nexo forte com a estrutura urbana que
acabamos de descrever.”19
17 ROLNIK, Raquel. Op. Cit. p. 45;
18 ROLNIK, Raquel. Op. Cit. p. 45;
19 ROLNIK, Raquel. Op. Cit. p. 51;
MASP em contrução, 1965.
Vista do Anhangabaú, década de 1950 / B. J. Duarte.
17
Inundaçao em São Paulo, 1970.
Vista do Parque do Ibirapuera, 1970. Vista do Parque do Ibirapuera, anos 2000 / SPTursm.
Vista da região da Sé, 1970.
18
4
Artistas
O primeiro esforço do presente trabalho foi a com-
posição de uma coletânea de obras a serem ilustradas.
O primeiro critério foi abordar trabalhos que expressas-
sem a cidade através da linguagem poética, e em seguida
sentiu-se a necessidade de trabalhar sobre obras que ex-
plicitassem São Paulo – a cidade ou seus lugares deveriam
ser diretamente mencionados, facilitando o enfoque que
este trabalho pretendia.
Como uma revisão completa da produção cultural sobre
São Paulo seria inviável nesse trabalho, o universo de obras
estudadas para compor a coletânea partiu da possibilidade,
os artistas que conhecia e que pude conhecer com essa in-
vestigação. Ainda outros agentes que poetizaram São Paulo
poderiam ser estudados no exercício aqui proposto.
A seleção dos artistas procurou trazer um conjunto com
diferentes linguagens – música, poesia e prosa – e diferentes
tempos – de 1922 à década de 1990. Assim a coletânea de
escritos e músicas aqui ilustrados tem como autores Mário
de Andrade, Antônio de Alcântara Machado, Adoniran
Barbosa e Itamar Assumpção.
19
20 “O modernismo dos anos 20, como um todo, foi
um manifesto fenômeno Pau(lista) Brasil”. PIGNATARI,
Décio. Sabiá sem Palmeiras. Introdução de Brás, Bexi-
ga e Barra Funda. Rio de Janeiro: Imago, 1997, p. 9;
21 LAFETÁ, João Luiz. Mário de Andrade, o arle-
quim estudioso. In: PRADO, Antônio Arnoni (org.)
A Dimensão da Noite e outros ensaios. São Paulo:
Editora 34, 2004;
22 LOPEZ, Telê Ancona. In De São Paulo – cinco
crônicas de Mário de Andrade, 1920-1921. São Paulo:
Editora Senac São Paulo, 2004, p. 10;
23 LOPEZ, Telê Ancona . Op. Cit. p. 14;
Mário de Andrade por Benedito J. Duarte.
Mário de Andrade
Mário Raul de Moraes Andrade (São Paulo, 1893-1945)
foi uma personagem complexa. Grande agitador e ator
do movimento moderno (“Movimento Pau(lista) Brasil”
como coloca Décio Pignatari20), foi um dos primeiros
musicólogos brasileiros, estudando principalmente ritmos
nordestinos, diretor do Departamento de Cultura da Pre-
feitura Municipal de São Paulo entre 1937 e 1938, fun-
dador da Sociedade de Etnografia e Folclore de São Paulo
e do Centro de Pesquisas Folclóricas (primeiro museu de
folclore em São Paulo) cronista, poeta. Teve larga atuação
na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro, da segunda
metade da década de 1910 a fevereiro de 1945, quando fa-
leceu. A obra Paulicéia Desvairada foi publicada em 1922,
composta por poemas livres que tratam São Paulo com a
liberdade que Mário propõe, na cidade natal do movimen-
to moderno que surgia.
Sobre sua biografia pessoal, João Luiz Lafetá21 conta que
foi um homem ligado à família, tendo na mãe uma figura
carinhosa e acolhedora, e no pai uma relação mais cinzen-
ta, como expressa em suas obras. Menino desinteressado
nos estudos, passou a jovem extremamente empenhado, es-
tudando especialmente música e literatura, mas sem perder
o gosto peculiar que o levou à fama de “louco” da família.
Mário começou sua carreira de escritor no Conservatório
Dramático e Musical. Segundo Telê Ancona Lopez, o Con-
servatório era, ao lado da Sociedade de Cultura Artística
e do Curso de Filosofia do Mosteiro de São Bento, um
“centro de irradiação na São Paulo que se industrializava,
metrópole do século XX. Apesar disso, essas instituições
não se mostraram suficientemente atualizadas e capazes de
desencadear reviravoltas na vida ainda bastante provincia-
na da cidade.”22 A partir do trabalho da autora, que aborda
Mário através de sua participação em periódicos, é possível
ter um esboço do pensamento do jovem poeta.
Em 1920 a Revista do Brasil publicou um primeiro con-
junto de ensaios de Mário, “A arte religiosa no Brasil”,
trabalho desenvolvido depois de uma viagem para pes-
quisar o barroco mineiro, e que já apresentava elementos
importantes na obra de Mário, como a presença da reli-
giosidade e a inclinação para historiador, segundo Lopez.
Nesta fase estarão presentes ainda a “defesa de um projeto
neocolonial para a arquitetura” e a “postura modernista de
primeira hora, sobretudo quanto ao uso da língua portu-
guesa no Brasil e à valorização do nacional.” Em termos de
arquitetura, interessava-lhe a pesquisa encetada por Gaudí
e outros europeus, mas refuta a imitação tácita da geome-
tria secessionista alemã ou do futurismo italiano.”23
A revista Papel e Tinta publicada de maio de 1920 a 1921
“congrega, em São Paulo, escritores e artistas plásticos
desejosos de renovar”. Um de seus colaboradores é Ivan,
provável pseudônimo de Mário de Andrade, que escreve
sobre Victor Brecheret no segundo número da revista. A
obra de Brecheret era nessa fase reconhecida pelo grupo
de artistas modernos em formação, e seu nome era levan-
tado para a execução do Monumento das Bandeiras: “Os
vanguardistas da Paulicéia consideravam o Monumento
das Bandeiras não apenas representação do desbravamen-
to heroico no passado, mas sinônimo de uma cidade e
20
um estado comprometidos com a modernidade, prontos
para proclamar essa sintonia nacionalmente do centenário
da Independência.”24 A escultura celebraria seus ideais à
semelhança dos monumentos públicos europeus, citados
nos artigos das revistas por Ivan. Mário defende nacional-
mente o valor da obra de Brecheret, como símbolo de toda
obra não acadêmica, e desafia o cenário de produção de
arte pública, que até então dava espaço à arte tida como
conservadora pelo grupo moderno.
A revista Illustração Brazileira foi mais um veículo das
ideias renovadoras do período. “Um exame que se detenha
em 1920 e 1921 detecta grande variedade de seções, uso
farto da fotografia, de vinhetas e ilustrações, muitos anún-
cios, alguns de página inteira, como o da revista infantil O
Tico-tico (...)”25 - as descrições aproximam a exploração
gráfica da revista Illustração Brazileira à Papel e Tinta,
inclusive a primeira reapresenta a fotografia da maquete
do Monumento das Bandeiras de Brecheret e trechos do
memorial divulgado em Papel e Tinta.
Na publicação são veiculadas as cinco crônicas da série “De
São Paulo”, que, segundo Lopez, apresentam linguagem
próxima à poética que seria explorada em Paulicéia Desvai-
rada pouco depois26. Nas crônicas, assim como no livro, já
está presente a sua postura de “tratar a Paulicéia como um
ser vivo. Esse tratamento implica a informação jornalísti-
ca, mas multifacetada no olhar que privilegia o prisma do
sentimento, das impressões, debruçando-se sobre a comple-
xidade e o mistério”. “Supõe, logicamente, a superação da
objetividade do ato de informar, arrastando o texto para o
campo da linguagem poética; amarra as pontas da crônica
como um gênero híbrido – jornalismo e literatura.”27
A narração que Mário assume tem a intenção de forma-
ção. Ainda que pudesse perceber criticamente a sua pró-
pria defesa – pensando no poema de Bilac, “O caçador de
esmeraldas”, que coloca a destruição das aldeias indíge-
nas pelos conquistadores europeus e a contradição da na-
cionalidade e da presença das bandeiras, a autora coloca
que a produção textual de Mário até 1920 ainda não tem
“a ironia amarga e moderna com a qual, poeta, moldará
os versos de ‘Tietê’ em 1922, derrubando a idealização
do bandeirante e vendo, no monumento de Brecheret, o
fecho do passado e o signo do presente na metrópole do
século XX, a desvairada Paulicéia.”28
Em dezembro de 1920 as crônicas de Mário em Illustra-
ção Brazileira ficam definidas no formato de cartas para a
publicação, e nesse momento “colocam-se claramente no
propósito de persuadir, na difusão do modernismo.”29 São
endereçadas a um leitor coletivo, como maneira de expan-
dir o alcance da mensagem - nesse período Mário ainda
trocaria extensas correspondências com intelectuais da
época. Sua escrita nesses textos traz as marcas da mudan-
ça, com a mistura da fala brasileira junto à linguagem do
passado, entre tantos elementos que trazem estranhamento
em seu texto, apontam para “a ausência de recursos para
flagrar as próprias contradições.”30
Seus textos de 1920-21 têm na arte as referências mais
importantes, usadas para sua defesa. Elege o instrumento
musical alaúde como imagem, instrumento dos trovadores
aludido por Musset e Gonçalves Dias. Ambos “haviam se
valido do alaúde para estabelecer os respectivos projetos
de atualização nacionalista”, sendo que Dias, em “Can-
ção” tem o eu-lírico separado em três partes simbolizadas
por instrumentos, assim a harpa correspondendo à poe-
sia religiosa, a lira à mulher amada e cabendo ao alaúde
simbolizar o Brasil. “O alaúde, tornado ‘vertiginoso’ como
o novo século, logo saltará para uma poética do fragmen-
24 LOPEZ, Telê Ancona . Op. Cit. p. 21;
25 LOPEZ, Telê Ancona . Op. Cit. p.19;
26 Grande parte do trabalho de Mário de Andrade
sustenta a defesa de uma linguagem mais próxima da
fala do povo, uma ruptura drástica em relação ao par-
nasianismo do meio acadêmico. “Cria, portanto, nova
linguagem literária, mais afeita ao vernáculo brasileiro.
Trabalha com a sonoridade das palavras e resgata um
vocabulário mesclado de termos oriundos de línguas
indígenas e dos neologismos e estrangeirismos dos
bairros italianos da capital paulista.” In: NUNES, Apare-
cida Maria. As andanças de arlequim e suas múltiplas
percepções na Paulicéia de Mário de Andrade. Univer-
sidade Vale do Rio Verde – Unincor, 2005;
27 LOPEZ, Telê Ancona . Op. Cit. p. 27;
28 LOPEZ, Telê Ancona . Op. Cit. p. 28;
29 LOPEZ, Telê Ancona . Op. Cit. p.29;
30 LOPEZ, Telê Ancona . Op. Cit. p.30;
21
to, arlequinal”31. Nesse momento o alaúde ainda “não
compõe a definição do poeta brasileiro moderno (...) Isso
ocorrerá na profissão de fé ‘O Trovador’, em Paulicéia
Desvairada, dois anos depois, sintetizada no verso final:
‘Eu sou um tupi tangendo um alaúde’”32.
No número 6 da revista Mário publica uma reflexão sobre
a arquitetura brasileira. Vale-se do vasto conhecimento so-
bra a arquitetura do passado para ironizar a nova sede da
Banca Francesa e Italiana e defende a arquitetura neocolo-
nial. A argumentação em favor do neocolonial se dá frente
a um contexto de produção arquitetônica específico, e a
posição de Mário parece se alinhar com clareza ao estilo
que, apesar de antigo, tinha afinidade nacional mais do
que as imitações de estilos europeus. Apenas em 1925, com
a arquitetura funcionalista de Gregori Warchavchik, Mário
encontraria a afinidade temporal e estética para a vanguar-
da da arquitetura. Lopez acrescenta que esse descompasso
de referências, que pode ser compreendido pelo momen-
to vivido mais do que acusado de simples contradição,
explica o descompasso entre a produção de artes plásticas
e a produção arquitetônica expostos na semana de arte
moderna de 1922.
Em março de 1921 Mário tematiza em sua crônica o
lançamento da edição de luxo da publicação As Máscaras,
ocasião que foi o lançamento público do modernismo. O
poema de abertura de Paulicéia Desvairada, “inspiração”,
retoma o encontro, trazendo o acontecimento celebrado
junto à crítica ácida de Mário. A figura do arlequim aparece
na obra As Máscaras, que é acomodada em lugar “seguro”
para a época, sem explorar outras posições da personagem,
como faria Mário: “tirar do arlequim novas e modernas
dimensões de busca e contestação”33. O poema “O reba-
nho” retoma também essa cena, assim como “Paisagem n°2”
e “Religião”. Na crônica de Illustração Brazileira “relata a
complexa afirmação do modernismo paulistano, o segundo
sentido que a cor verde ocupa na criação do poeta: corro-
são, azinhavre; metáfora da decomposição”34.
O livro de poemas livres Paulicéia Desvairada, segundo
Lafetá, causa estranhamento nos leitores até hoje, ainda
que diferentemente daquele dos contemporâneos à obra,
“o estranhamento é tomar contato, pela primeira vez,
com versos que ‘não foram escritos para leitura de olhos
mudos’, mas para serem cantados, urrados, chorados”35.
A poesia foi “baixando o tom” ao longo do século, de
maneira que nos acostumamos com a poesia branda, “à
força insinuante de Manuel Bandeira, ao poder suave da
fala de Drummond, ao encanto antidiscursivo de João
Cabral, é inevitável que tenhamos a estranha sensação de
deslocamento diante desse que foi o primeiro esforço de
se criar entre nós o verso moderno, capaz de representar
a agitação e o tumulto da vida nas grandes cidades –
agitação e tumulto que de resto, hoje em dia, também nos
parecem tão relativos.”36
O livro surtiu grande efeito na época, tanto para aqueles
que o repudiavam quanto para os que com ele viram novos
horizontes, como Oswald de Andrade, que depois de Pauli-
céia escreve “O meu poeta futurista”, ou Manuel Bandeira,
que foi “estimulado a modificar seus rumos criativos a par-
tir do impacto de Paulicéia.”37 - “sua novidade desarmava e
desconcertava as resistências”38. Para entender a influência
de Paulicéia nos poetas da época é necessário estudar sua
presença ao longo dos primeiros anos do Modernismo.
Mas estudando apenas o fenômeno desse livro, “veremos
que seu caráter de novidade desconcertante tem papel
decisivo na recepção entusiástica dos contemporâneos. O
charme da novidade tinha raízes num impulso profundo
31 LOPEZ, Telê Ancona . Op. Cit. p.33
32 LOPEZ, Telê Ancona . Op. Cit. p.33
33 LOPEZ, Telê Ancona . Op. Cit. p.42
34 LOPEZ, Telê Ancona . Op. Cit. p.47
35 LAFETÁ, João Luiz. A representação do sujeito lírico
na Paulicéia Desvairada. In: BOSI, Alfredo (org.) Litera-
tura e Poesia. São Paulo: Editora Ática, 1996. p. 53;
36 LAFETÁ, João Luiz. Op. Cit. p. 54;
37 LAFETÁ, João Luiz. Op. Cit. p. 54;
38 LAFETÁ, João Luiz. Op. Cit. p. 54;
Capa da edição fac-símile de Paulicea Desvairada.
22
das mudanças.”39 Precisava se apoiar no estímulo interior
que vinha do contato com as vanguardas européias assim
como com a própria cidade de São Paulo com suas agitadas
mudanças no começo da década de 1920.
Lafetá mostra que o contexto da criação de Paulicéia vem
com uma anedota: parece que Mário tentava escrever um
livro de poesias sobre São Paulo, sem conseguir faze-lo.
Quando procurou comprar uma obra de Brecheret, um bus-
to, sua família se opôs, gerando um conflito família tradicio-
nal x arte moderna, a partir do qual Mário teria se sentido
motivado e, de uma vez, escreveu Paulicéia Desvairada.
Na obra a personagem do Arlequim é recorrentemente
chamada pelos poemas. A figura ficou popularizada nos
carnavais de rua brasileiros no final do século XIX e co-
meço do século XX, como uma interpretação nacional do
bobo-da-corte, que contracena com o Pierrô, seu inimigo, e
com a Colombina, sua amada. O Arlequim se aproxima da
figura nacional do malandro, na medida em que é respon-
sável por contínuas peripécias. Assim como o personagem
original da Commedia Del’Arte, o Arlequim de Mário é
uma figura errante por São Paulo, em um nomadismo simi-
lar ao das trupes de artistas. Sua veste tradicional é uma
roupa feita de retalhos de panos coloridos na forma de
losangos, ideia de composição a partir do fragmento que
também é incorporada na exploração poética de Mário,
como metáfora da cidade de São Paulo.
Aparecida Maria Nunes analisa que “Paulicea Desvaira-
da40 funde poeta e cidade em Arlequim, mediante o traje
de retalhos metaforicamente apresentando São Paulo
como um conjunto de ‘losangos’, no mapeamento de ruas
e locais. A cidade, então, passa a ser descrita: uma polifo-
nia simetricamente saltitante, leve e reveladora. Mário de
Andrade representa a cidade sob vários lados, permitindo
visão do real estilhaçado. Do aspecto fortuito vai sendo
moldado o total. O instantâneo, ao passar pela ótica
marioandradina, pouco a pouco alinhava os pedaços de
tecido do traje do palhaço.”41
Ao longo das poesias de Paulicéia Desvairada o Arlequim é
chamado, e, por vezes, omitido. Segundo Nunes, “em senti-
do conotativo, extremamente amplo, o Arlequim é gerado
pela cidade, ele é uma necessidade da cidade. Por isso, suas
características de ora estar ausente (apenas observando) ora
agindo (interferindo na mutação do meio urbano). É desse
desempenho que Arlequim já não se configura como mero
habitante, uma personagem anônima tais quais os integran-
tes da massa populacional das metrópoles.”42
Para a autora, a cidade está impressa nas andanças, como
cenário, tanto quanto é agente ativo na cena em que o Ar-
lequim perambula: “Pelos aspectos escolhidos para compor
a Paulicea Desvairada, notamos que se trata de uma leitura
calcada no estranhamento que a cidade paulistana oferece
ao relacionamento humano das suas correlações intrín-
secas. O tecido urbano é flagrado pelo poeta, adquirindo
sentido camuflado por modismos e imposições, comodis-
mos e alienações. Mário de Andrade, a cada passo, des-
nuda essa cidade, mediante suas percepções, um Arlequim
andarilho, que com travessuras atribui significado à cidade
no seu aspecto contextual. Só que no mesmo instante em
que flagra, Mário de Andrade também é flagrado por essa
polifonia literário-urbana: som, festa, gesto, odor em toda
gama de sensações a que o ser humano está submetido. O
usuário de ator passa a autor, de espectador a diretor, de
agente passivo a ativo, e vice-versa. A arlequinada se faz
assim presente.”43
Lafetá comenta que o próprio Mário analisava sua obra
percebendo defeitos e qualidades. Em um texto de 1924
39 LAFETÁ, João Luiz. Op. Cit. p. 55;
40 A autora mantem em seu trabalho a grafia do
título original.
41 NUNES, Aparecida Maria.Op. Cit. p.13;
42 NUNES, Aparecida Maria.Op. Cit. p.5;
43 NUNES, Aparecida Maria. Op. Cit. p.10;
23
colocara que os sentimentos em Paulicéia são do tipo que
duram pouco, a cólera, a revolta, e que os poemas foram
muito corrigidos, mas ainda exprimiriam sentimentos pas-
sageiros. Nem por isso, ainda segundo Mário, deveriam ser
refeitos, já que não deixam de transmitir emoções sinceras:
“tudo quanto era representativo do estado da alma, e não
desfalecimentos naturais em toda criação artística, aí se
conservou. Uma obra de arte não é expressiva só pelas
belezas que contém. (...) Muitas vezes os defeitos são mais
interessantes e comoventes que as belezas. Direi mais: mui-
tas vezes o defeito é uma circunstância da beleza.”44
Sobre a questão do momento histórico, Lafetá cita Ador-
no: “Quase se poderia medir a grandeza da arte de van-
guarda com o critério de saber se os momentos históricos,
como tais, fizeram-se nela essenciais, ou, pelo contrário,
afundaram-se na intemporalidade”45. No caso de Paulicéia
Desvairada, “justamente o ‘momento histórico’ fez-se essen-
cial” a partir da frase de Adorno, o autor coloca que “ela
indica que o momento histórico moderno – a coisificação, a
prepotência do mundo, o esmagamento da subjetividade, a
negação do humano (vários os nomes do mesmo fenômeno
básico) – tornou-se essencial na arte moderna porque in-
corporou-se à sua linguagem, virou procedimento artístico,
foi integrado no coração da forma de tal modo que fez-se
‘representativo’. No caso de Paulicéia, como bem viu Mário
de Andrade, era preciso manter ‘exageros’, pois eles eram
bem ‘representativos’ do ‘estado de alma’ – (...) eles eram
marcas negativas (quase no mesmo sentido em que se fala
de negativo fotográfico) do momento histórico.”46
Lafetá busca mostrar como isso se dá em Paulicéia, foca-
lizando “o problema da representação do sujeito lírico,
como se sabe central na arte moderna desde Baudelai-
re, e que as vanguardas do começo do século tentaram
resolver em duas direções principais: ora equacionando a
relação sujeito/objeto em formas construtivas e objetivas
(na linha do futurismo, do cubismo e do abstracionismo),
ora invertendo a ênfase através da elaboração de formas
destrutivas e subjetivas (na linha do expressionismo, do
dadaísmo e do surrealismo)”47.
“Talvez esse seja o grande problema de linguagem de
Paulicéia Desvairada: equilibrar a notação objetiva dos
aspectos da cidade moderna com o tumulto de sensações
do homem moderno, no meio da multidão.(...) A delicada
cristalização do lirismo, que segundo Hegel consiste na
passagem de toda objetividade à subjetividade, é pertur-
bada pelo movimento incessante entre a Paulicéia e do
desvairado trovador arlequinal. Mas o fato de ter tentado
forjar essa modernidade da representação, foi o lance feliz
de Mário de Andrade: nesse instante, e retomando agora
a frase de Adorno, um momento histórico fez-se essen-
cial na sua obra.”48 Ou seja, a perturbação do lirismo na
poética de Paulicéia é também representação da pertur-
bação da vida moderna – e os defeitos reafirmados como
parte da beleza pelo próprio Mário estariam justificados.
“A subjetividade está ali submetida a grande pressão, que
estoura tudo – o eu, a linguagem, a cidade -, tudo subme-
tendo à fragmentação.”49
44 ANDRADE, Mário. In: LAFETÁ, João Luiz. Op. Cit. p. 58;
45 ADORNO, T. W. Lukács y equivoco del realismo. In
LAFETÁ, João Luiz. Op. Cit. p. 58;
46 LAFETÁ, João Luiz. Op. Cit. p. 59;
47 LAFETÁ, João Luiz. Op. Cit. p. 59;
48 LAFETÁ, João Luiz. Op. Cit. p. 62;
49 LAFETÁ, João Luiz. Op. Cit. p. 63;
24
Antônio de Alcântara Machado (1901-1935) nasceu em
São Paulo e descreve cenas da cidade nos anos 1930 muito
bem localizadas. A coletânea de contos Laranja da Chi-
na (1928) traz histórias curtas, intitulada pelos nomes de
seus personagens principais – figuras que conduzem, sob a
narração em terceira pessoa, a cena contada. A prosa ágil
e certeira, característica de Alcântara, conduz a narrativa
e pinta personagens complexos que em poucas páginas
sempre viram a opinião do leitor, revelando contradições
em suas essências dentro de pequenas cenas, como a ida de
um funcionário ao trabalho, de bonde, ou o passeio de uma
família em São Paulo para fazer compras.
Alcântara Machado faleceu com pouco mais de 30 anos,
deixando três obras “modernas e não apenas modernistas,
e por isso mesmo representativas como conteúdo artístico
desse mundo em ebulição”, como coloca Francisco de
Assis Barbosa50: Pathé-Baby (1926), Brás, Bexiga e Barra
Funda (1927) e Laranja da China (1928) “notícias do
cotidiano paulista, flagrantes da classe proletária e da bur-
guesia endinheirada, dos pequenos núcleos de imigrantes,
italianos na sua maioria, que vão adensar a classe média
ainda rarefeita de pequenos comerciantes e burocratas”51.
Barbosa realça a capacidade da obra de Alcântara de
incorporar as muitas mudanças tecnológicas e estéticas
que o mundo vivia no pós-Primeira Guerra Mundial. A
velocidade das informações vinha sendo acelerada, espe-
cialmente com o começo do rádio e do cinema na década
de 1920, e somadas ao olhar atendo de um jornalista,
segundo o autor, são o cenário e a disposição para compor
a “sua prosa ágil e flexível”.
Sobre a escrita jornalística de Alcântara Machado, Décio
Pignatari coloca: “Sua teoria da prosa não resulta simples-
mente da formulação idiossincrática de um jornalista mi-
litante. Espanca nuvens e deixa entrever novos horizontes
interrogativos: ‘E é ai que a porca torce o rabo desesperada-
mente. Creio mesmo que a superabundância de versos exis-
tentes no mercado se deve em grande parte à facilidade que
a poesia oferece (tal como é geralmente compreendida) em
comparação com a prosa. Esta é dura de se roer.’ Impressio-
nante oxímoro, cegante avesso. Raras notações da teoria e
da crítica literária atingem o instigante patamar da seguinte
afirmação: ‘A poesia vai evoluindo, vai abandonando certos
gêneros, vai se simplificando. A prosa é a mesma imensidão
desde que nasceu.’ Que a palavra ‘mesma’ esteja espalhada
dentro da palavra ‘imensidão’ dá a medida do calibre poéti-
co do homem que defendeu a prosa pura.”52
A agilidade da escrita e a qualidade dos tipos que Alcântara
compõe são também comentados na edição fac-simile de
Laranja da China, pela organizadora, Cecília de Lara, e
por críticos que esta edição traz, como Tristão de Athayde
(pseudônimo de Alceu Amoroso Lima) e José Lins do Rego.
Esse compara Alcântara aos dois Andrade, colocando que
Mário e Oswald travaram uma guerra contra os estilos an-
teriores, Mário tendo “alma de poeta”, e Oswald atuando
como um guerreiro nesta batalha (“Foi assim admirável na
derrubada, mas pouco plantou de grande.”53).
Localiza Laranja da China nesse tempo combativo, e
compara com Macunaíma, colocando que Alcântara supera
50 BARBOSA, Francisco de Assis. In: Comentários e
notas à edição fac-similar de 1982 de LARANJA DA
CHINA. LARA, Cecília de. São Paulo: Convênio IMESP/
DAESP, 1982, p. 07;
51 BARBOSA, Francisco de Assis. Op. Cit. p.07;
52 PIGNATARI, Décio. Op. Cit., p. 15;
53 LARA, Cecília de. Comentários e notas à edição fac-
-similar de 1982 de LARANJA DA CHINA. São Paulo:
Convênio IMESP/DAESP, 1982. p. 71;
Antônio de Alcântara Machado por Benedito J. Duarte.
Antônio de Alcântara Machado
25
Mário na linguagem: “A língua de Macunaíma é um fabu-
loso apanhado de modismos que chega a dar um dicioná-
rio. Mas às vezes a erudição embaraça o grande escritor. O
entusiasmo poético, a espontaneidade se perdem.(...) E a
língua se resseca, perde o cheiro e o gosto de terra molhada.
(...) A língua de Alcântara é livre, vem de dentro de seus
personagens, se articula com uma pureza admirável. Dele
podia ter saído o grande romancista de São Paulo, porque
Antonio de Alcântara Machado dispunha como pouca gen-
te do elemento essencial para o romance, que é a capacida-
de que tem o escritor de se encontrar em intimidade com a
vida e não balizar a vida.”54
Em Laranja da China as personagens falam muito alto.
Essa força dos tipos se desenrola, entretanto, em um cená-
rio preciso e também bastante típico: desde a linguagem do
texto até a caracterização das cenas remete intensamente a
hábitos, cacoetes, manias brasileiras ou paulistanas. Nessas
expressões encontra-se muito do entendimento de Alcânta-
ra Machado da cidade de São Paulo.
54 LARA, Cecília de. Comentários e notas à edição fac-
-similar de 1982 de LARANJA DA CHINA. São Paulo:
Convênio IMESP/DAESP, 1982. p. 71;
Capa da edição fac-símile de Larabja da China.
26
55 MUGNAINI Jr., Ayrton. Adoniran: Dá Licença de Con-
tar... São Paulo: Ed. 34, 2002. p. 30;
56 CAMPOS Jr., Celso de. O Palhaço Triste.In: KANZ,
Leonel e LODDI, Nigge (org.). Trem das Onze – A poé-
tica de Adoniran Barbosa. Rio de Janeiro: Aprazível,
2010,p.17;
57 CAMPOS Jr., Celso de. Op. Cit. P. 18;
58 Nome e sobrenome viriam de sambistas segundo
Ayrton Mugnaini Jr. Segundo Celso de Campos Jr, o
nome Adoniran era em homenagem a um funcionário
dos Correios, amigo do sambista. In: CAMPOS Jr.,
Celso de. Op. Cit., p.18;
59 CANDIDO, Antônio. Introdução. In: KANZ, Leonel
e LODDI, Nigge (org.). Trem das Onze – A poética
de Adoniran Barbosa. Rio de Janeiro: Aprazível,
2010;p.11;
60 MUGNAINI, Op. Cit. p.39;
61 MUGNAINI, Op. Cit. p. 43;
62 MUGNAINI, Op. Cit. p.62;
Adoniran Barbosa
Adoniran Barbosa (1912 - 1982) foi um dos personagens
de João Rubinato, um artista-ator -sambista, entre muitas
outras atividades que realizou, famoso pelo talento e pelo
humor. A data oficial de seu nascimento é 1910, como con-
sta na certidão de nascimento, mas o próprio a localizava
entre 1909 e 1912 – Ayrton Mugnaini Jr. relaciona a vari-
ação às frequentes brincadeiras de Adoniran (“levava a sério
suas brincadeiras”55 afirma) – em Valinhos, então bairro da
cidade de Campinas, filho de imigrantes italianos.
Na adolescência teve muitos trabalhos diferentes e morou
em diferentes cidades da grande São Paulo. A família se
mudou para a cidade de São Paulo em 1932, Adoniran
trabalhou no Liceu de Artes e Ofícios como metalúrgico, e
em inúmeros outros rápidos empregos. Segundo Mugnaini,
Adoniran se aproximara da música através das marchinhas
e dos bailes na época que residia em Santo André. Em São
Paulo conheceu grupo de artistas da rádio Cruzeiro do Sul,
onde começou a trabalhar em 1935 depois de um concurso
de talentos – surpreendentemente, segundo Celso de Cam-
pos Jr, e talvez para o próprio Adoniran, que teria confes-
sado “o homem do gongo devia estar dormindo”56.
O trabalho na rádio Cruzeiro do Sul durou pouco, e foi
depois de uma segunda negativa no rádio (“A culpa só
pode ser desse nome macarrônico”57)que João Rubinato
resolveu adotar o nome de Adoniran Barbosa, home-
nagem aos sambistas Luiz Barbosa e Adoniran Alves58 - “
A ideia foi excelente, porque um artista inventa antes de
mais nada a sua própria personalidade; e porque, ao fazer
isso, ele exprimiu a realidade tão paulista de cerne que
exprime a sua terra com a força da imaginação alimenta-
da pelas heranças necessárias de fora”59. Em 1940 passou
a trabalhar na a Rádio Record, “onde se firmou como
ator e humorista”60.
Lançou três meios discos na década de 1930: “Agora pode
chorar”, “Se meu balão não se queimar” e “Não me deu sat-
isfações”, só voltando a gravar sambas em 1951. Na década
de 1940 firmou seus personagens como ator, em diversos
tipos como Charutinho e Zé Conversa, e teve sua estreia
como ator de cinema na comédia musical Pif-Paf.
Até a década de 1960, Adoniran era conhecido como ator
e pelos nomes de seus personagens no rádio – matérias da
época e o próprio material de divulgação de seus sam-
bas traziam o espanto com o Adoniran “que também faz
samba”, como a primeira gravação de Samba do Arnesto
de 1951 “trazia um esclarecimento entre parênteses:
‘Adoniran Barbosa (Zé Conversa)’”61.
As diferentes experiências artísticas de Adoniran se
mostram muito próximas quanto aos temas abordados:
personagens vividos no rádio aparecem ou se parecem com
os dos sambas, assim como os temas, por exemplo, a malo-
ca, que além de ser mote de uma de suas mais conhecidas
composições, foi assunto de um dos programas de rádio
que participou, “Histórias das Malocas” - que se passava
na fictícia favela do Piolho, no bairro da Liberdade, e o
personagem principal era Charutinho, “um crioulinho
avesso ao trabalho”62, vivido por Adoniran.
A linguagem empregada em seus sambas é próxima à fala,
com forte presença do sotaque italiano, e os típicos “er-
27
63 CAMPOS Jr., Celso de. Op. Cit. p. 103;
64 CANDIDO, Antônio. Op. Cit. p. 11;
65 CANDIDO, Antônio. Op. Cit. p. 12;
Adoniran Barbosa no viaduto 9 de Julho.
ros”, sobre os quais o próprio Adoniran disse: “Escrever
errado é a coisa mais difícil que existe. Se não for feito do
jeito certo, vira piada, vira deboche”63. Cândido discorda
daqueles que colocam que a linguagem do compositor
é uma mistura do italiano com o português: “Adoniran
colheu a flor e produziu uma obra radicalmente brasileira,
em que as melhores cadências do samba e da canção,
alimentadas inclusive pelo terreno fértil das Escolas, se
aliaram com naturalidade às deformações normais de
português brasileiro”. “A fidelidade à música e à fala
do povo permitiram a Adoniran exprimir a sua cidade
de modo completo e perfeito. São Paulo muda muito, e
ninguém é capaz de dizer onde irá. Mas a cidade da nossa
geração (Adoniran é de 1910) foi a que se sobrepôs à
velha cidadezinha caipira, entre 1900 e 1950; (...) Nossa
cidade, que substituiu a São Paulo estudantil e provin-
ciana, foi a dos mestres de obras italianos e portugueses,
dos arquitetos de inspiração neoclássica, floral e neoco-
lonial, em camadas sucessivas. São Paulo dos palacetes
franco-libaneses do Ipiranga, das vilas uniformes do Brás,
das casas meio francesas de Higienópolis, da salada da
Avenida Paulista”64.
“Lírico e sarcástico, malicioso e logo emocionado, com o
encanto insinuante da sua antivoz rouca, o chapeuzinho de
aba quebrada sobre a permanência do laço de borboleta
dos outros tempos, ele é a voz da Cidade”65.
28
66 CHAGAS, Luiz. Ouvidos Atentos! In: CHAGAS, Luiz
e TARANTINO, Mônica (org.). Pretobrás por que que
eu não pensei nisso antes? – O livro de canções e
histórias de Itamar Assumpção. São Paulo: Ediouro,
2006, p.14;
67 AMOROSO, Maria Betânia Itamar Assumpção. In:
Música Popular Brasileira Hoje. NESTROVSKI, Arthur
(org.). São Paulo: Publifolha, 2002, p. 116;
68 CHAGAS, Luiz. Op. CIt..p.12;
Itamar Assumpção em frente à coluna do MASP/
Jairo Torres.
Itamar Assumpção
Francisco José Itamar de Assumpção (1949 - 2003) foi
um músico que nasceu em Tietê, residiu em São Paulo
na maior parte da vida, onde produziu sua extensa obra,
principalmente entre as décadas de 1980 e 2000. A person-
alidade forte, assim como o caráter “marginal” e inventivo
de seu trabalho e de sua figura foram traços marcantes de
toda a sua produção, assim como a presença da cidade de
São Paulo em suas composições.
Itamar foi considerado um dos líderes da chamada
Vanguarda Paulista, ao lado de Arrigo Barnabé, grupo
Rumo e grupo Premeditando o Breque, que segundo
Luiz Chagas pode-se definir “como a série de ocorrên-
cias na área cultural, gestadas e consumidas na virada
dos anos 1980, com o fim do regime militar, e concen-
tradas em volta do teatro Lira Paulistana, do bairro da
Vila Madalena e da USP, uma área de classe média na
Zona Oeste paulistana.”66
Atuando na época pré-internet, manter-se independente
das gravadoras significava tanto a liberdade de arbitrar
sobre a própria obra quanto a dureza de arcar com a
produção e distribuição dos próprios LPs. Mesmo tendo
conseguido trabalhar com gravadoras em parte de seus
discos, Itamar “mantém-se firme em seu projeto de inde-
pendência artística, que, para os desavisados, é resistência
turrona em não ceder ao canto da sereia da gravadora e à
vida do sucesso garantido – mas o sucesso não é a música,
dirá Itamar. Sua música subsiste pela experiência do
choque, que é de cada um de nós no desconforto da vida
em São Paulo, inquieta a cada esquina, surpreendente em
cada bairro, atordoante em todos os cantos.”67
“Atordoante” parece de fato uma adjetivação pertinente
quando se toma contato com a obra de Itamar. Chagas,
guitarrista da banca Isca de Polícia, comenta que “as
canções de Itamar soam complicadas porque vêm em
camadas. Suas bandas, notadamente a Isca de Polícia e as
Orquídeas do Brasil, têm por volta de oito elementos que
tocam e trocam informações o tempo todo e, o que é mais
comum, se privam de executar determinados componentes
que ainda assim parecem soar em sua ausência. É o que
Zé Natálio, baixista gaúcho e membro do trio PretoBrás,
outra agremiação Itamariana, chamou de ‘o suingue da
pausa’.” E completa: “(...) as canções apenas soam compli-
cadas, mas não são.”68
A “complicação” pode ser também na poética do artista,
em letras fortes que, junto à sobreposição de instrumen-
tos e vozes, sobrepõe imagens e ideias. Quando esquecida
parte de uma letra no show, ela era inventada teatral-
mente pelo seu intérprete autor, no mesmo movimento
que, como Chagas revela, estava presente nas transfor-
mações constantes dos arranjos e repertórios: “uma das
29
69 CHAGAS, Luiz. Op. Cit. p.13;
70 AMOROSO, Maria Betânia. Op. Cit. p. 115;
71 TATIT, Luiz. A transmutação do Artista. In: CHAGAS,
Luiz e TARANTINO, Mônica (org.). Op. Cit. p.21;
72 TATIT, Luiz. Op. Cit. p. 22;
73 TATIT, Luiz. Op. Cit. p. 23;
74 TATIT, Luiz. Op. Cit. p. 29;
características da música de Itamar era sua mutabilidade.
Ninguém nunca assistiu ao mesmo show duas vezes. Nem
na mesma temporada. Os espetáculos eram entremeados
por exaustivos ensaios com as músicas sendo constante-
mente reformuladas.”69
O primeiro disco, Beleléu (1980) lançava a personagem
“Nego dito beleléu leléu eu”- o caráter teatral de Itamar se
manifestava tanto nos palcos quanto nas gravações. “Tea-
tralmente, personagem e criador se fundem, nascendo para
a música brasileira o típico morador da periferia metropol-
itana, que circula pela cidade entregando ‘imposto predial’,
que ‘vai levar geral, mãos pra cima e coisa e tal, viaja de
camburão para averiguar, que decepção’”70.
Luiz Tatit coloca que “Itamar Assumpção pode ser com-
preendido como o artista que fez caber um ‘eu’ imenso
nos limites da canção”. Essa presença se manifestava na
criatividade que transformava cada caso, piada, história
em letra; na sobreposição de vozes; na presença da person-
agem Beleléu, sempre acentuada. “A pergunta essencial e o
grande desafio para quem quiser começar a refletir sobre o
fenômeno Itamar Assumpção podem talvez se resumir na
seguinte formulação: como esse ‘eu’, tão fecundo quanto
característico, acabou se alojando no cerne da canção bra-
sileira e se tornando marca de qualidade artística disputada
por grandes expoentes de nossa música?”71
Sobre essa presença do “eu” na música Tatit desenvolve:
quando há qualquer indício de que o emissor se dirige
a alguém, com o uso de vocativos, nomes próprios, etc.,
está colocada necessariamente a presença de um “eu” que
fala para alguém. E quando o texto é oral, seja falado ou
cantando, essa presença é física, nem que seja na memória
da voz em uma gravação. “Assim, toda canção tende a ser
a história do intérprete (...) o que temos, normalmente, é
um jogo de oscilações entre formas subjetivas e objetivas
de veicular a canção, de maneira que o ouvinte possa tanto
se encantar com a sinceridade do cantor quanto se divertir
com a ironia ou crítica velada ao conteúdo da letra. (...)
Itamar trouxe de sua vivência teatral de juventude um
personagem que sempre o acompanhou nas apresentações
musicais, como uma espécie de ‘eu’ absoluto, cuja história
só poderia ser desvendada pelas canções.”72
Assim, com a aparição da personagem Beleléu tem-se a
primeira íntima identificação entre personagem e artista.
Ela se manifesta com “a negritude, a marginalidade musi-
cal, a loucura descrita em muitas passagens das letras, tudo
isso convocaria a figura magra e enigmática do autor, o
qual, por sua vez, nada fazia para dissociar o personagem
do ser de carne e osso.”73
Sobre o andamento da personagem, Tatit descreve que
nos primeiros álbuns a presença do “eu” é bem marcada,
nos temas e na voz grave de Itamar. A partir de Intercon-
tinental! Quem Diria! Era Só o Que Faltava!!! (1988) Ita-
mar conseguiu maior sutileza no “eu” das canções, dentro
também da tentativa de fazer o disco funcionar do ponto
de vista comercial (este foi o primeiro disco de Itamar
que não era uma produção independente). Essa sutileza
marcaria a produção dos anos 1990, quando lançou a
trilogia Bicho de Sete Cabeças, acompanhado pelas oito
mulheres da banda Orquídeas do Brasil. Os três discos
contavam, cada um, com uma participação especial “cujo
timbre musical já denunciava a trincheira em que Itamar
se situava: Rita Lee, Tom Zé e Jards Macalé.”74 Os dois
primeiros participam de músicas que falam especifica-
mente de São Paulo, Venha Até São Paulo e É Tanta
Água, respectivamente, e nelas suas inconfundíveis vozes
e sotaques são fundamentais ao arranjo e ao comentário
Capa do volume 1 do Songbook PretoBrás - Por que
que eu não pensei nisso antes? O livro de canções e
histórias de Itamar Assumpção.
30
que as músicas propõem.
Em 1998 lançou PretoBrás, seu último disco em vida, so-
bre o qual Tatit coloca que “o ‘eu’ contraventor de outros
tempos encarnou-se definitivamente no significante da
canção e, como já vinha acontecendo desde Intercontinen-
tal, os conflitos subjetivos se transformaram em contrastes
entoativos de enunciação, em fricção entre as palavras, idi-
omas, nomes próprios, mas todos os choques de conteúdo
apaziguados por rimas, ressonâncias e sobretudo refrões
(básicos ou itinerantes). Não cessaram, porém, os pro-
nunciamentos em forma de manifesto criticando a cultura
de sua época (Cultura Lira Paulistana) ou a ironizando o
padrão de eficácia preconizado pelo capitalismo de última
geração (Reengenharia).”75
Para Tatit, a conclusão dessa presença do “eu” na obra de
Itamar se dá com a música Vida de Artista, com ela “Ita-
mar assinalou em tom discreto, apena com voz e violão,
o desenlace do seu processo de transmutação. (...) Aquele
personagem-réu, herói-bandido, que sempre estivera por
trás das próprias obras, garantindo-lhes motivação extra,
instalou-se definitivamente no interior das canções e passou
a adquirir as mais distintas fisionomias (no caso de Vida
de Artista, o autor assume 24 papéis sociais), todas elas
compatíveis com o canto de qualquer intérprete interes-
sado. O Itamar-Beleléu era o cantor quase exclusivo de suas
75 TATIT, Luiz. Op. Cit. p. 33;
76 TATIT, Luiz. Op. Cit. p. 35;
77 AMOROSO, Maria Betânia. Op. Cit. p. 117;
78 Cultura Lira Paulistana, Itamar Assumpção, Preto-
Brás (1998).
79 Queiram ou não Queiram, Itamar Assumpção,
PretoBrás (1998).
composições. O Itamar-PretoBrás se diluía em ‘passageiro’,
‘motorista’, ‘costureiro’, ‘datiloscopista’, ‘macumbeiro’,
‘adventista’, ‘mensageiro’, ‘pára-quedista’ e outras numero-
sas identidades que poderiam ser assumidas com facilidade
e entusiasmo por outros cantores. A marca do nego-dito
continuava presente, agora não tanto pelo inconfundível
timbre de voz, mas pelo engenho de construção da letra e
de adequação melódica, de tal maneira que por mais que os
novos intérpretes modificassem os arranjos, era inevitável o
comentário: ‘esta canção só pode ser do Itamar’.”76
Betânia Amoroso77 coloca que, nesse mesmo último
álbum que anuncia “a ditadura pulou fora da política/ e
como a dita cuja é craca é crica/ foi grudar bem na cultura/
nova forma de censura”78 Itamar relembrava: “queiram
ou não queiram/ coincidência ou não/ PretoBrás é o gi-
gante negão”79.
Vista de São Paulo, 2008 / Eduardo Pompeo.
31
5
São São Paulo Interpretação e processo das ilustrações
O objetivo central desse TFG foi realizar ilustrações que
pretendem, além da transferência de linguagem, da verbal
para a gráfica, uma mudança de enfoque: o discurso grá-
fico busca trazer em primeiro plano a cidade que os textos
descrevem mais do que cenas de suas histórias. Obra a
obra, vê-se que o sentimento dos personagens ou do eu-
lírico se confunde com a cidade por onde anda ou da qual
se fala. Assim o destaque da cidade não significou uma
negação da narrativa ou reinvenção livre sobre o conto –
procurou-se manter a emoção e o clima de cada uma das
narrativas nas ilustrações de suas cidades.
Cada um dos quatro artistas dessa coletânea fala a partir
de pontos de vista diferentes. Além relatarem diferentes
épocas de São Paulo, falam de diferentes condições, posi-
cionamentos e regiões.
Nesse capítulo pretendo trazer novamente as quatro perso-
nagens, enfocando a análise da cidade em suas obras, que
determinou as ilustrações, e os partidos gráficos escolhidos
para cada uma das séries.
32
Mário
Paulicéia Desvairada80 foi o meio escolhido no presente
trabalho para aproximação com a cidade de Mário de An-
drade. Lafetá destaca que o tema da obra está cristalizado
desde o título, com a definição de “Paulicéia”, e a cidade
moderna, vista como um ser vivo, é reforçada pela adje-
tivação que remete ao movimento – desvairada. Mesmo
a junção de São Paulo com a ideia de epopeia remete à
agitação do objeto.
Os sentimentos são a voz mais alta dos poemas. No
Prefácio Interessantíssimo, introdução do livro, Mário já
coloca: “Mas todo êste prefácio, com todo o disparate
das teorias que contém, não vale coisíssima nenhuma.
Quando escrevi ‘Paulicea Desvairda’, não pensei em nada
disso. Garanto porém que chorei, que cantei, que ri, que
berrei... Eu vivo!”81
Tanto a análise de João Lafetá, quanto a de Telê An-
cona82, colocam a oposição entre sujeito e cidade,
subjetividade e objetividade. Recurso recorrente nos
poemas, como “luz e bruma, fogo e inverno morno”83,
a contraposição é também sobreposição, a personagem
do arlequim sendo tanto metáfora do homem na cidade
quanto da cidade no homem.
A personagem do arlequim metaforiza também a ideia
de Mário sobre a composição da cultura brasileira, feita
a partir de retalhos de diferentes culturas, locais e imi-
grantes, reinterpretados. A trama de losangos do traje do
arlequim representa essa colcha de retalhos que é a person-
agem, o homem e a própria São Paulo.
Os sentimentos aparecem ligando figura e espaço – as
frequentes passagens sobre o clima, oscilando entre frio e
calor, são um exemplo de como sensações sobre o corpo
são características do espaço, e vice e versa. A cidade
não aparece nos poemas em descrições do que se vê, mas
através das sensações que provoca no eu-lírico.
A oposição/sobreposição entre cidade e eu-lírico pode ser
vista com clareza nos três primeiros poemas de Paulicéia
Desvairada: Inspiração, O Trovador e Os Cortejos. Esses
foram, então, os poemas selecionados para serem ilustra-
dos nesse trabalho.
O poema de abertura, Inspiração, coloca com clareza que
a cidade não é objeto de descrição, mas sim “uma es-
pécie de musa concreta moderna”, ser ativo, como expõe
Lafetá. O arlequim também é apresentado, com o mesmo
tom de exaltação que São Paulo é colocada. As oposições
também estão presentes, assim como sensações que mis-
turam corpo e espaço. Todos esses elementos fundamen-
tais ao conjunto do livro são apresentados em Inspiração
com emotiva exaltação.
No segundo poema, O Trovador, parece se voltar à apre-
sentação do eu-lírico, depois que a cidade já foi intro-
duzida em Inspiração. Há uma oposição com o primeiro
poema, quente, no segundo, mais frio. Ainda que haja
preponderâncias, em ambos o clima é oscilante.
Lafetá coloca que “estamos aqui [em O trovador] em meio
ao mais completo subjetivismo, e de tal modo que a cidade
nem é referida em seus versos. Sua presença, no entanto,
é determinante. Aliás, entre todas as composições do livro
(et pour cause...) parece ser o caso extremo de expulsão
80 No caderno ilustrado foi mantida a grafia original,
retirada da edição fa-símile de Paulicéa Desvairada.
81 ANDRADE, Mário. Prefácio Interessantíssimo. In:
Paulicea Desvairada, edição fac-símile, p.8. A ortogra-
fia não foi alterada.
82 Ver capitulo 3 deste relatório.
83 ANDRADE, Mário. Inspiração. In Paulicéia Desvaira-
da, Op. Cit.
Retrato de Mário de Andrade por Anita Malfatti, 1923.
Retrato de Mário de Andrade por Lasar Segall, 1927.
33
dos elementos descritivos e de pura expansão do sujeito.”84
Ao mesmo tempo o eu toma-se como objeto, falando de si
mesmo – ainda que a composição resulte subjetiva, é muito
pouco introspectiva. O sujeito não se parece com a ideia de
indivíduo, reforçando sua mescla com a cidade.
No terceiro poema, Os Cortejos, a oposição entre sujeito
e objeto aparece, ainda que não haja perda da identi-
ficação entre os dois. Segundo Lafetá a identidade, ou
fusão sujeito-objeto, se dá já no primeiro verso (“monot-
onia das minhas retinas” – metonímia) e os dois versos
seguintes correspondem à expansão do discurso, estando
o primeiro verso contido no segundo e no terceiro. A
linguagem se mantém metafórica, ainda que em algumas
passagens seja traduzida, como em: “Horríveis as cidades/
vaidades e mais vaidades”. Enunciada assim a subjetivi-
dade hermética se perde, compondo uma passagem mais
descritiva, mas que continua sendo metafórica – “a ótica
do emitente continua a afetar a mensagem e a atingir o
real representado.”85).
Em sua análise Lafetá comenta ainda a presença de dis-
sonâncias na obra de Mário. Em Paulicéia Desvairada,
coloca, parecem ser de dois tipos: desejadas ou involun-
tárias. As desejadas seriam como a oposição entre luz e
bruma, que se integram ao tom do poema; as involuntárias
seriam aquelas que escapam do domínio do sujeito lírico,
rompendo a unidade de tom, trazendo alguma explicação
mais clara, menos lírica (como a última estrofe de Os Cor-
tejos: “Estes homens de São Paulo/ todos iguais e desiguais,
/ quando vivem dentro de meus olhos tão ricos, / parecem-
me uns macacos, uns macacos.”86).
Esse segundo caso pode abrigar os “defeitos” que Mário
admite e escolhe manter, “testemunhas de sua tentativa de
representar em linguagem moderna a aventura do homem
na grande cidade”87.
As ilustrações dessa série começaram com estudos mais
próximos à representação dos losangos do arlequim.
Desde o princípio havia a intenção de, com as cores,
remeter aos sentimentos opostos dos poemas, frio e calor,
introspecção e exaltação.
A solução final adotada foi o livro mais próximo a um
livro-objeto, onde o próprio suporte pretende participar
da passagem da mensagem. A geometria do traje arlequi-
nal está no formato, de retângulos e triângulos, e esses são
compostos por diferentes estampas, que procuram trazer a
oscilação de sentimentos que os poemas colocam. Algumas
estampas são inspiradas em referências gráficas das culturas
de que Mário fala, da colonização, imigração e culturas na-
tivas – como forma sutil de introduzir diferentes linguagens
na composição desta colcha de retalhos arlequinal.
84 LAFETÁ, João Luiz. Op. Cit. p. 67;
85 LAFETÁ, João Luiz. Op. Cit. p. 69;
86 ANDRADE, Mário. Os Cortejos. In: Paulicea Desvai-
rada, Op. Cit.;
87 LAFETÁ, João Luiz. Op. Cit. p. 70;
Retrato de Mário de Andrade por Cândido Portinari, 1935.
Estudos para Arlequim.
34
Estudo de ilustração para o poema Inspiração. Estudo de ilustração para poema Paisagem no 1.
Estudo de ilustração para o poema Inspiração. Estudo de ilustração para o poema O Trovador. Estudo de ilustração para o poema Os Cortejos.
35
Alcântara
A cidade de Alcântara Machado foi investigada a partir da
coletânea Laranja da China. O livro, publicado em 1928,
traz contos curtos, intitulados pelo nome dos personagens
principais, que conduzem histórias em geral cotidianas
com a narração em terceira pessoa sempre muito próximas
dessas figuras. Essas personagens são tipos muito paulista-
nos ou brasileiros, e remetem, a partir de suas particulari-
dades, a um cotidiano mais geral de São Paulo nas décadas
de 1920/1930.
O primeiro dos artistas a ser ilustrado nos exercícios desse
trabalho foi Alcântara Machado, comecei a tentar ilustrar
Laranja da China conto a conto, tentando representar suas
personagens. Em seguida, tentando trazer as cenas descri-
tas. Nos dois casos a ideia de mostrar São Paulo estava se
perdendo, e essa análise motivou a mudança de enfoque
dos trabalhos gráficos.
Quatro contos da coletânea de Alcântara foram selecio-
nados para serem ilustrados: O Patriota Washington, O
Filósofo Platão, O Aventureiro Ulisses e O Tímido José.
Foram incluídas histórias que se desenrolavam, total ou
parcialmente, ao longo de um percurso pela cidade. Em
alguns deles, como em O Patriota Washington, através dos
pontos citados é possível imaginar com mais fidelidade qual
seria o caminho percorrido; em outros casos a trajetória é
menos clara, como por exemplo, o conto O Tímido José,
no qual só se compreende a região onde a história se passa,
sem dados claros dos pontos visitados.
Cada um dos contos de Alcântara traz uma sensação dife-
rente de São Paulo: as personagens têm vivências diferentes,
assim cada ilustração procurou trabalhar uma cidade dife-
rente, receptiva ou assustadora, transitável ou labiríntica,
conforme a interpretação de cada estória.
A partir dos percursos a unidade gráfica dos trabalhos foi
explorada pela técnica, colagens com volumetria, como
maquetes ou pequenos cenários, e pela presença de mapas.
A partir da base Sara Brasil tem-se o centro da cidade da dé-
cada de 1920, tanto na sua configuração urbana um pouco
diferente da atual, quanto o registro cartográfico da época,
um dado gráfico interessante de ser explorado.
As maquetes dessa série foram fotografadas , sendo esses
registros bidimensionais as ilustrações propriamente. As
fotografias acrescentam elementos às composições físicas:
a luz é um elemento central para o clima das ilustrações,
trabalhando sobre as cores dos objetos e assim reforçan-
do a sensação de cidade que se procurou transmitir; a
possibilidade de trabalhar o foco das imagens auxiliou a
compor atmosferas mais centradas – focadas – como, por
exemplo, a ilustração do conto O Patriota Washington,
ou a sensação de falta de sentido, como a que era buscada
para a ilustração de O Tímido José, onde a falta de foco
Bonde lotado, 1937.
Estudo para o conto o Revoltado Robespierre.
36
nas laterais trabalha junto com a confusão visual que o
próprio objeto procurava transmitir, com o mapa volu-
métrico que não permite a leitura habitual do mapa como
orientação geográfica.
Em O Patriota Washington a personagem Dr. Washington
Coelho Penteado passeia com a família de carro no feriado
de comemoração da República. Enquanto o doutor exalta
cada ponto turístico por onde passam a família manifesta,
sutilmente na narração onipresente, tédio com o passeio
ou aflição da velocidade do automóvel, em uma contrapo-
sição que garante a comicidade da cena. A cidade do Dr.
Washington é da exaltação, assim a ilustração reproduz o
trajeto percorrido e os pontos destacados com orgulho pela
personagem para sua aborrecida família.
O tom cômico também é presente no segundo texto da
coletânea, O Filósofo Platão. O conto acompanha Platão
Soares desde sua reticente saída de casa para provavelmen-
te procurar emprego no Serviço Sanitário. O personagem
transparece uma elegância que se confunde com a arrogân-
cia no diálogo com outros personagens, especialmente por
se mostrar falseada em várias passagens. A cidade impõe
dificuldades - desde o bonde abarrotado, a distância do
Serviço Sanitário, o sol e, finalmente, a grande fila de es-
pera que leva a personagem a desistir (pela décima vez) de
esperar para ser atendido - que se somam à hesitação que
parece própria de Platão, formando uma das cenas mais
divertidas da coletânea. A cena da escada foi destacada na
ilustração, sendo esse o elemento principal da ilustração,
junto com o trecho final do conto, que coloca as tramas
mentais que o filósofo desenvolve para justificar sua pró-
pria desistência.
No conto O Aventureiro Ulisses o herói é Ulisses Serapião
Rodrigues, um homem simples, provavelmente vindo da
roça e manifestando todo o desconforto com sua condição.
Ulisses se parece com um estrangeiro, além de estar sem
dinheiro, sem sapatos, sem rumo, demonstra dificuldade
com todas as poucas interações que faz com outros homens
na rua. O tom dessa estória é mais triste que os anteriores,
sendo a cidade muito pouco receptiva àquela figura que não
lhe pertence. A ilustração procurou transmitir a desorien-
tação do percurso pouco legível de Ulisses, com a frieza da
cidade com a qual parece mal conseguir conviver.
A coletânea de Alcântara é encerrada com O Tímido José,
talvez o conto mais triste. Nele José Borba espera o último
bonde para a Lapa quando passa uma mulher. Atraído por
essa figura ele começa a segui-la, sem ter coragem de falar
com ela. Percebe que outro homem também está segundo
a mulher, o que desperta a preocupação de José. Até que
entra em cena uma terceira figura masculina. Esse é clara-
mente violento, o que leva José da preocupação ao deses-
pero, mas mesmo assim o protagonista não consegue ter a
iniciativa de intervir – a mistura entre desejo e zelo sobre a
misteriosa personagem feminina, assim como a angústia da
vontade, mas incapacidade de interagir com ela, permeiam
os pensamentos de José ao longo de todo o conto. A cena
começa perto do vale do Anhangabaú, e depois a cidade
enevoada, labiríntica e sombria prevalece. A região é regis-
trada na ilustração, sem trajetos definidos e com a presen-
ça do emaranhado de névoa que é tanto o percurso quanto
o conflito da personagem.
Estudo para o conto A Apaixonada Elena.
Estudo para o conto A Apaixonada Elena.
37
Estudos para o conto O Patriota Washington.
Estudo de foto para ilustração do conto O Patriota Washington.
38
Estudo de ilustração para o conto O Filósofo Platão. Estudo de foto para ilustração do conto O Filósofo Platão/ H. Machado.
39
Estudo de ilustração para o conto O Aventureiro Ulisses.
Estudo de ilustração do conto O Tímido José. Estudo de foto para ilustração do conto O Tímido José.
Estudo de foto para ilustração do conto O Aventureiro Ulisses.
40
Adoniran
Do cotidiano nos bairros operários de São Paulo na
metade do século XX saíram os motes para grande parte
dos sambas de Adoniran Barbosa89. Por vezes são falados
lugares da cidade, e em outros momentos as histórias das
músicas, ainda que não localizadas, parecem falar da reali-
dade das ocupações desse período.
Seu olhar parte de um ponto de vista específico: do ile-
trado, do morador dos bairros operários, do desabrigado
na cidade crescente ou deslumbrado – e assustado – com
esse crescimento. “Adoniran se notabilizou por enxergar
a cidade invisível à maioria de seus habitantes. Sua ca-
pacidade de vislumbrar poesia nos cenários mais impro-
váveis – ‘fazer samba sobre Ipanema é fácil. O difícil é
fazer sobre Itapecerica da Serra’ – e nas situações mais
prosaicas o permitiu cunhar pequenas obras-primas sobre
o cotidiano de São Paulo”90.
Segundo Antonio Cândido, a cidade do bonde, do Triângu-
lo, do trem da Cantareira, que é a São Paulo de Adoniran
e também a dele próprio, não existe mais, mas foi imortali-
zada pela obra de Adoniran.
“A sua poesia e a sua música são ao mesmo tempo brasilei-
ras em geral e paulistanas em particular. Sobretudo quando
entram (quase sempre discretamente) as indicações de lugar,
para nos porem no Alto da Mooca, na Casa Verde, na Ave-
nida São João, na 23 de Maio, no Brás genérico, no recente
metrô, no antes remoto Jaçanã”91.
As letras trazem recorrentemente temas ligados à cidade
em transformação, como as reformas urbanas em anda-
mento ou a precariedade dos bairros operários. Ambos
são presentes tanto em histórias alegres quanto tristes: as
mudanças da cidade aparecem positivamente em Praça
da Sé, que ficou bonita e tão diferente que é melhor não
ir sozinho, “que o senhor vai se perder”92, assim como em
Venha Ver Eugênia “como ficou bonito o Viaduto Santa
Efigênia”93; por outro lado, a música Iracema coloca a
dificuldade com a crescente metrópole, relatando o atrope-
lamento da noiva do eu-lírico na Avenida São João – “eu
sempre te disse/ cuidado ao travessar essas ruas”94. Da
mesma maneira, a precariedade da vida na cidade é em
algumas cenas vista com humor e descontração, como em
Luz da Light (“Lá no morro quando a luz da light pifa/ A
gente apela pra vela/ que alumeia também (quando tem)/
Se não tem não faz mal/ A gente samba no escuro, que é
muito mais legal (e é natural)”95) e em outras com grande
pesar, como é o caso da letra de Saudosa Maloca (“Cada
tauba que caía doía no coração”96).
Sobre os sentimentos das composições, Campos coloca:
“Tal qual um palhaço triste, Adoniran Barbosa fez das
contradições a matéria prima de sua arte. O riso e a lágri-
ma que consomem e alimentam o grande astro do picadei-
89 Uma coletânea com as composições que mais
influenciaram as ilustrações deste trabalho está
anexada ao presente relatório.
90 CAMPOS Jr., Celso de. Op. Cit. p. 170;
91 CANDIDO, Antônio. Op. Cit. p. 12;
92 Praça da Sé, Adoniran Barbosa;
93 Venha ver Eugênia, Adoniran Barbosa;
94 Iracema, Adoniran Barbosa, 1956;
95 Luz da Light, Adoniran Barbosa, 1964;
96 Saudosa Maloca, Adoniran Barbos, 1951;
Adoniran Barbosa no Bexiga, 1970.
41
97 CAMPOS Jr., Celso de. Op. Cit. p. 16;Estudos de estampas para série do Adoniran.
Sede da Rádio Record, centro de São Paulo.
São Paulo, 1958/ Benedito J. Duarte.Feira de flores do Largo do Arouche, 1942 / H. Rosenthal. Fotografias
como essa inspiraram as personagens que estão nas ilustrações de
Adoniran desse trabalho.
ro desdobram-se, em sua vida e em sua obra, num perene
debate entre trágico e cômico, entre a boemia e a reclusão,
entre o lirismo e o sarcasmo, entre o moderno e o antigo,
entre a malandragem e a ingenuidade, entre o sucesso e o
fracasso.”97
Ainda que as letras de Adoniran frequentemente abordem
temas críticos, a leveza do samba e da sua personagem
bem humorada traz às composições em geral o clima
descontraído. Suas cenas são, ainda, cotidianas, contando
passagens de casais, grupos de amigos, famílias, reforçando
o clima íntimo e agradável de suas músicas.
Com a interpretação de uma cidade única na obra de
Adoniran, as ilustrações desta série procuraram transmi-
tir uma São Paulo agradável, aquarelada em tons pastéis,
povoada por figuras comuns em São Paulo nas décadas
de 1950/1960. As construções representadas foram ins-
piradas em casas simples da cidade nesse período, procu-
rando remeter aos bairros operários, principalmente o Be-
xiga – bairro frequentemente associado a Adoniran e que
conserva até hoje alguns aspectos físicos daquela época.
A composição conta ainda com estampas realizadas com
técnicas diversas, a sanfona final sendo uma colagem
composta po essas imagens, as construções, personagens
e, por fim, as letras de algumas das músicas de Adoniran
que inspiraram o trabalho.
42
Estudos de sobrados para série do Adoniran.
43
Itamar
Interpretando as músicas tendo em foco a cidade que
transparecem, a obra de Itamar Assumpção98 parece ter
uma ideia coesa quanto à São Paulo. Elementos como a
velocidade e a caoticidade são presentes em praticamente
todas as músicas que se voltam para a metrópole – ainda
crescente e atordoante na década de 1980.
Traz as “chuvas e trovoadas”, às quais é sujeito, e se
coloca como um sujeito da cidade – a São Paulo parece im-
pressa no corpo. É escancarada desde o título das músicas:
Sampa Midnight, Sujeito a Chuvas e Trovadas, Eu Persigo
São Paulo, Cultura Lira Paulistana, Outras Capitais, Venha
até São Paulo, Vou de Vai-vai.
Junto com a poesia cantada que sobrepõem lugares, os ar-
ranjos das músicas sobrepõem instrumentos e vozes nessas
composições. Com essa polifonia é criada uma atmosfera
sonora que transparece velocidade, caoticidade, na mesma
perspectiva quase surreal das poesias. Um exemplo é a
música É Tanta Água99, na qual o ritmo vai acelerando
conforme o coro de mulheres se sobrepõe, junto à fala
marcada pelo timbre inconfundível de Tom Zé que ex-
clama “É tanta água despencando lá do céu/meu Deus
do céu meu Deus do céu/ o que que está acontecendo?/
É São Pedro que ficou pinéu com raiva de São Paulo/ É
primavera é primavera só que só fica chovendo”. Betânia
Amoroso retoma os versos e coloca que “quando Itamar
recomenda, para os estômagos fracos, que procurem outra
capital – ‘venha até São Paulo ver o que é bom pra tosse’
– é porque, coisa de gente grande, seu experimentalismo
traduz a anomia de nossa vida social paulistana em melo-
dias e ritmos”100.
São Paulo é abordada recorrentemente na obra de Itamar e
esta mesma cidade desordenada de Bicho de Sete Cabeças
ou Sampa Midnight é retomada no disco póstumo Preto-
Brás III – Devia ser Proibido101 na homenagem Eu Persigo
São Paulo. Aqui o tom mais calmo102 coloca uma curta e
intensa declaração de amor (que não é amor exatamente):
“São Paulo é outra coisa/ Não é exatamente amor / É
identificação absoluta/ Sou eu/ Eu não me amo/ Mas me
persigo/ Bonita palavra perseguir/ Eu persigo São Paulo/
São Paulo sou eu”103.
O sentido “atordoante” da sua obra se manifesta também
na geografia dessas composições: não traz cenas figurativas
ou locadas, mas remete à cidade na escala total. Mesmo
quando menciona lugares específicos, o faz mais no sentido
de enumerações caóticas, como em Venha até São Paulo
(com sua profusão de lugares que são nomes de santos, no-
mes de santas, nomes divertidos, brincando com o sentido
dessas atribuições), sem trazer cenários específicos. A São
Paulo do Itamar é geral.
Nesse sentido os estudos gráficos não foram produzidos
98 Uma coletânea com as composições que mais
influenciaram as ilustrações deste trabalho está ane-
xada ao presente relatório.
99 Itamar Assumpção, PretoBrás, 1998;
100 AMOROSO, Maria Betânia. Op. Cit. p. 117;
101 Selo pelo SESC SP, disco integra a coletânea Caixa
Preta, 2010;
102 A produção desse disco é assinada Paulo Lepetit e
os arranjos foram compostos por ele e banda Isca de
Polícia.
103 Eu Persigo São Paulo, Itamar Assumpção, 2010;
Inauguração da estação República do Metrô, 1982.
Desenhos de Itamar Assumpção.
44
música a música ou exclusivamente relacionados a cada
uma delas. São ilustrações para a “São Paulo geral” colo-
cada por Itamar e elas próprios gerais, sem endereço.
A ideia de sobreposição de lugares e cenas, presente nas
poesias assim como nos arranjos de Itamar, somadas ao
caráter pouco figurativo de suas letras, levaram à ex-
ploração da colagem como solução gráfica para as ilus-
trações. Essa foi a técnica preponderante, desde os estudos,
até as ilustrações finais. Pretendeu-se remeter à imagem de
skyline, bastante conhecida, e desconstruir seus elementos
a partir da representação com formas simples, como retân-
gulos, preponderantes nas ilustrações. O uso de diferentes
materiais e camadas parece uma maneira interessante de
traduzir também a polifonia presente nos arranjos das
músicas do artista. Foram explorados poucos desenhos de
linha e mais massas dadas pelos recortes, sendo a diferença
de cores e texturas responsáveis pela variação gráfica das
composições. Procurou-se ainda usar materiais simples,
comuns, como maneira de remeter à cidade em escala,
velocidade e inconstância da metrópole de Itamar.
Estudos para ilustrações do Itamar Assumpção.
45
Estudos para ilustrações do Itamar Assumpção.
46
O trabalho se propôs a estudar, interpretar e traduzir a
visão de quatro artistas sobre São Paulo. A experiência de
abordar a cidade através de diferentes olhares, voltando-se
para a produção cultural de diferentes períodos, permitiu a
aproximação com personagens diversos e afastados daque-
les que produzem e criticam o desenho da cidade e de suas
construções diretamente, para perceber caso a caso como
esses outros agentes interagem, atuam e também modifi-
cam o cenário de São Paulo.
A sensibilidade e leveza dos artistas, que vivenciam e
poetam a “selva de pedras”, inspiram novas imagens e
críticas, trazendo a possibilidade de uma contribuição den-
tro da arquitetura a partir de composições fora da disci-
plina. Os quatro artistas aqui abordados, recorrentemente
tendo suas obras adjetivadas como “a cara de São Paulo”,
imortalizaram seus períodos e suas propostas estéticas,
também arquitetaram São Paulo e mostraram que a grande
metrópole teve e tem várias caras.
Ao mesmo tempo em que os artistas lançam olhares difer-
entes, há convergências, como, por exemplo, a perplexi-
dade frente a rápidas mudanças na cidade, que marca a
cidade arlequinal de Mário; os comentários sarcásticos nas
personagens de Alcântara; os sambas de Adoniran, ora or-
gulhosos da cidade que mal se reconhece, ora atropelados
por essa modernidade desenfreada; e a velocidade no ritmo
e na poesia da São Paulo caótica de Itamar. Esses vários
rostos se mostram aproximáveis, sem perder suas diferen-
ças. Da pluralidade exposta e reiterada também podemos
perceber, paradoxalmente, a emersão de uma São Paulo
que é única, desenhada por um sentimento que se esquiva
da multiplicidade para imaginar uma indefinível unidade.
São tantas e uma só cidade.
O exercício gráfico pretendeu revelar, a partir de uma
interpretação pessoal, rostos que me parecem afeitos à dis-
cussão do vasto tema. A exploração de diferentes técnicas,
tais como colagem, aquarela, nanquim, lápis, carimbo, foi
uma necessidade suscitada a partir das tão distintas lin-
guagens e posições dos artistas, constituindo uma primeira
diferenciação gráfica importante entre as inúmeras São
Paulo de cada um deles.
Os diferentes formatos dos cadernos ilustrados pretendem
expor que essas séries de ilustrações são diferentes e quase
independentes, porém reunidos em torno de uma mesma
questão central – São Paulo – criam uma correspondência
física com a análise que coloca cidade plural, que poderia
ser vista como uma grande colcha de retalhos de olhares,
agentes, tradições e reinvenções. Muitos e um só trabalho.
A pluralidade de olhares que esse pequeno universo aqui
6
Conclusão
47
proposto procurou trazer retoma a ideia da cidade em
permanente transformação colocada por Milton Santos
e Lévi-Strauss, assim como a cidade mosaical de que fala
Luis Antônio Jorge e que propõe Mário de Andrade com
sua metáfora do Arlequim.
Vista de São Paulo, 2010 / Larissa Guelman.
48
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2010.
Principais músicas: Sampa Midnight, Sujeito a Chuvas
e Trovoadas, Eu Persigo São Paulo, Cultura Lira Pau-
listana, Vou de Vai-vai, É tanta Água, Outras Capitais;
Adoniran BarbosaPrincipais músicas: Saudosa Maloca, Aguenta Mão,
João, No Morro da Casa Verde, Iracema, Samba
Italiano, Conselho de Mulher, Triste Margarida (Sam-
ba do Metrô), Viaduto Santa Efigênia, Despejo na
Favela, Vide Verso Meu Endereço, Luz da Light, Praça
da Sé;
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7
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