ryngaert, jean-pierre - introdução à analise do teatro

100
I .. : I 1 i I Introdução à análise . do teatro Jean-Pierre Ryngaert Tr adu ção PAULO NEVES. Rev isã o d a t radu ç ão MONICA STAHEL r f i J Martins Fontes São Paulo 1996 Coleção Eudinvr Fraga

Upload: iago-luniere

Post on 29-Sep-2015

467 views

Category:

Documents


166 download

TRANSCRIPT

  • I ..

    - :

    I1i

    ~

    I

    Introduo anlise. do teatro

    Jean-Pierre Ryngaert

    TraduoPAULO NEVES .

    Rev is o da tradu oMONICA STAHEL

    rfi

    JMartins Fontes

    So Paulo 1996 ColeoEudinvr Fraga

  • ./ .' Esta obra foi publicada o,:iginalmellle em franc s com o ttulo INTRODUCTION A L'ANALYSE DU THTRE,

    por Bordas, Paris, em 1991Copyright Bordas, Paris, 1991

    Copyr ight Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,So Paulo, 1995. para a presente edio ndice

    1~ ediomaro de 1996

    TraduoPaulo Neves

    Reviso da traduoMonica Stahel

    Reviso grficaMaria da Penha Far ia

    Andr aStahel M. da SilvaProduo grfica

    Geraldo AlvesPaginao

    Studio 3 Desen volvimento EditorialCapa

    Kat ia H. Terasaka

    Prefcio ..o Q UE UM TEXTO DE TEATRO?

    Introduo .

    IX

    3

    ndlees para catlogo sistemtico:I. Teatro: Histria e crit ica 809.2

    Ttulo original : Introduction 11 I'analyse du th tre .ISBN 853360440-8

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Ryngaert, Jean-Pierre .. .Introduo anlise do teatro I Jean-Pierre Ryngaert : tradu- .

    o Paulo Neves ; reviso da traduo Monica Stahel, - SoPaulo : Martins Fontes, 1995. (Coleo Leitura e Critica)

    19

    192022 .2325

    5569

    1115

    I. Existe uma especificidade do textode teatro? ..1. Isso no teatro!. ; .2. Os gneros , .3. Imitar pessoas que fazem alguma coisa ..4. Origens de falas diversificadas e nomeadas ..5. Agir sobre o espectador ..

    11. O texto pode dispensar a representao? ...1. O equvoco da representao em socorro

    do texto , ,'..; '2. Diretamente do texto ao palco ..3. O teatro numa poltrona ; .4. O autor e a edio ..5. O texto como potencial de representao .

    CDD-8092

    I. Clica teatral L Ttulo, li . Sr ie.

    95-3036

    . "' :",~

    Todos OS direitos para o Brasilreservados irLivraria Martins Fontes Editora Lida.

    Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 01325-000So .Pau/o SP Brasil Telefone 2393677

    111. O teatro pode dispensar o texto? : ..1. O corpo contra '0 texto '..; ..

    . 2" A nostalgia de um teatro popular ~ ..3. O ator e o poeta ; : : .Leituras recomendadas ; : ,

    2727283031

    . , ;

  • I '

    ABORDAGENS METDICAS

    I~ Tentativa d e d escrio : .1. O texto como objeto material.. ..2. Organizao, estrutura o .

    O ttulo e o gnero: rtulos verdadeiros efalsos anncios - As grandes partes - Enca-deamentos e rupturas, vaz ios e cheios

    3. O material textual .Didasclias - Escrita falada ou fala escrita?- Leituras em voz alta e leituras silenciosas

    Leituras recomendadas ..

    11. A fi co e sua o r ga n iZa o .1. A noo de enredo ou fbula ~ ..

    Um reservatrio de mitos e invenes - Oenredo como seqncia de aes - Construiro enredo - Ter um ponto de vista sobre o en-redo - Limites do enredo

    2. A intriga : ..A mecnica da pea - Um conflito pode es-conder outro

    3. Apreender as estruturas profundas: o mo-delo atancial : .Em busca de um m odelo - O esquema' deseis casas- Problemas de mtodo- Limites

    Leituras recomendadas : ..

    m . o espao e O tempo ..1 . Um exemplo de escolhas espao-temporais

    opostas: sensibilidade barroca e gosto clssi-co .O mltiplo e o simultneo - As unidades e averossimilhana - Marcos tericos

    2. Anlise das estruturas espaciais .Os lugares nas indicaes espaciais - Os n-dices espaciais no texto - Fora de cena - Oespao metafrico . . .

    3. Anlise das estruturas temporais .

    Sobre algumas marcas do tempo no texto -O tempo metafrico

    35 Leituras recomendadas .... .. ... .. ... .... ....... .. .. .... ...... 983536 IV. Enunciados e enunciao ... ........... .......... .:..... 101

    1. O estatuto da fala .... .. .. .. .... ..... ... .. ... ............ ..... 101Dilogo e monlogo - A fala e a ao - E asdidasc/ias?

    43 2. Situaes de fala ....... .......... ........... .. ............... 105A anlise conversacional- O dilogo de tea-tro como conversao - Desvios - Interesse

    51 prtico desse modo de anlise3. Para um estudo do dilogo ...... ..... .... .. .. .... .... . 111

    53 Os temas do dilogo - O que est em jogo no54 dilogo - Estratgia de informao - A po-

    tica do texto de teatro - Hipteses sobre a es-crita de um autor

    4. Exemplo de anlise ...... ...... ... .. ..... .. ...... .. .......:. 119Mariuaux, A dupla inconstncia. Ato 2, ce-

    63 na2Leituras recomendadas ...... .... .. ... ..... .. ... .... ... ....... 122

    v. A personagem ..... ......... .. ... ... .. ... ...... ... ..... .......... 12567 - ')../~ 1. Debates em torno de uma identidade mvel.. . 125

    Confuses a propsito da identificao - Noque se refere histria: da abstrao ao n-

    74 divduo - A tradio psicolgica: a persona-gem como essncia

    75 2 . Apreender a personagem entre o texto e opalco ... .............. ... .. .. .... ... .... ... ........... ... ... .. ..... .. 128Pode-se dispensar a personagem? - Persona-

    75 gern a montante, personagem a jusante;;

  • COMENTRIOS DE TEXTOSI. Uma cena do DornJuan, de Molire 151

    1. Anli se rp lica po r rplica ............... ........ 1542. Repartio da fala 1613. O tempo 1624. O espao 1625. A fala e a ao .... ..... ........... ........ ...... .... ......... .. 1636. Os efeitos de mecanizao ,....... .. 1647. Implicaes e hipteses.. ...... ....... ....... ........ .... 165

    11. Fim dejogo, de SamueI Beckett.. .. .... .. ...... .... . 1691. Descrio ..... ..... ...... ... ....... ........ .... ........ ....... .. .. 1692. Enredo ....... ....... .... .... ............ ............ ............... 170

    Observa es3. Intriga ....... .... ..... .. ... ................ ...... .... .... ... ........ 1734. Esquema atancial 1745. Espao e tempo ; :....... 176

    Aqui - Em outro lugar, hoje - hora de-Ah, ontem! - Amanh - Centro - Geraes- Cena - Viagens - Hipteses

    6. Estudo de um trecho de dilogo...... .... ...... .... 182Impresses gerais - O implcito como regra- A informao - Cada fala conquistadaao silncio -

    7. Personagens 189Identidades - Enfermidades - Relaes -Humanos e inurnanos

    8. Continua 192

    Prefcio

    A prtica cnica moderna volta a conceder aos textosuma grande importncia . A prpria ed io ele teatro. emcr ise durante muito tempo, conhece uma at ivid ade ~aisint ensa e uma certa curiosidade pelos autores contempo-rneos . Apesar disso, os ensaios dramatrgicos j no des-pertam hoje o mesmo interesse que nos anos setenta. Cer-tamente foram vtimas de um excesso de confiana na efi-ccia dos procedimentos de anlise do texto, ou ento dasacusaes de dogmatismo. No entanto difcil nos ater-mos a uma abordagem impressionista dos textos, apelarmosape nas s reaes pessoais do leitor e, deste modo, re-cusarmos todae qualquer aprendizagem da leitura .

    O estudo dos textos de teatro .beneficiou-se ampla-mente com os avanos tericos do estruturalismo e da se-miologia. reconhecida a especificidade do texto de tea-tro, embora na prtica cotidiana sua abordagem continuea ser problemtica, como se fosse absolutamente necess-rio contar coma representao .para que o objeto sejacompleto e satisfatrio. Aquilo que chamam, por vezescom inteno maligna, "anlise literria do texto" assimrecusado de sada e seu discurso invalidado em conse-qncia de uma falta original, a competncia em matriade 'represen ta o . -

    Optamos aqui por jamais recorrer a representa esque existiram, por jamais invocar o palco para explicarou justificar o texto. Em contrapartida, todas as nossasanlises dos textos so consideradas como pistas que o

  • x INTRODUO ANLISE DO TM TRO

    palco ter de levar em conta ou recusar, e esto totalmen-te voltadas para a futura prtica cnica.

    Nossos comentrios no pretendem esgotar o textopor meio de uma abordagem cientfica, nem elaborar umdiscurso erudito que daria a espessura histrica desse tex-to . Encaramos a leitura como a explorao de diferentespistas, algumas das quais dizem respeito mais especifica-mente ao teatro. Por isso damos uma ateno especial aoesp.ao e ao tempo, a uma definio da personagem, contribuio recente da lingstica na abordagem do di-logo. Sempre que possvel, utilizamos amplamente. aspesquisas dos ltimos anos, com orisco de simplific-Iasou de remeter o leitor a estudos mais sistemticos.

    Os exemplos recorrem a autores tradicionalmenteestudados, portanto aos clssicos franceses , mas esten-dem-se amplamente aos textos contemporneos, aindaque isso obrigue a dar alguns saltos metodolgicos. Pen-samos que seria interessante confrontar os principios fun-dadores da dramaturgia e seus avatares mais recentes, re-metendo o estudo dos elos em falta a trabalhos histricos.

    Trata-se, em suma, de renovar o apetite pela leitura,apreendendo o texto teatral na sua especificidade, sem opalco, mas na tenso e no movimento que o projetamsempre para um palco futuro.

    o QUE UM TEXTODE TEATRO?

  • Introduo

    "O texto uma mquina preguiosa que exige do leitor umduro trabalho de cooperao para preencher os espaos do no-di-to ou do j-dito que ficou em branco (. ..), o texto no outra coisaseno uma mquina pressuposicional."

    Assim Umberto Eco define todo e qualquer texto, eno especialmente o texto de teatro. Ora, este tem re-putao de ser uma mquina ainda mais preguiosa queas outras, se assim se pode dizer, devido sua relaoequvoca com a representao. Anne Ubersfeld refere-seao "texto aberto'", sem dvida com mais brechas do queos outros textos por pressupor um conjunto de signosno-verbais com os quais os signos verbais se relaciona-ro na representao.

    Preguioso e esburacado, eis a dois adjetivos bas-tante pejorativos para designar o texto de teatro. No deespantar que o considerem difcil de ler. Esse estatuto de"mquina preguiosa" devolve a bola para o campo doleitor. Compete a ele descobrir a maneira -de alimentar amquina e inventar sua relao com O texto. Compete aele imaginar em que sentido os "espaos vazios" do textopedem para ser ocupados, nem demais nem de menos,para ter acesso ao ato de leitura, e mesmo para sonharcom uma virtual encenao.

    Ao colocar o problema do lugar do leitor em qual-quer texto, Umberto Eco lembra que a leitura exige sem-pre um trabalho de atualizao por parte do destinatrio.No caso de um texto dramtico, essa atualizao no seconfunde com a encenao, que uma tarefa concreta edatada .

    A expresso texte trou foi traduzida ora por texto aberto ora por"texto com brechas".

  • 4 IIVTRODUO ANLISE DO TEATRO

    o leitor imaginrio, assustado com o trabalho que oespera, corre o risco de ser tentado a tomar um atalho ru-mo representao, declarando-se espectador e no maisleitor. Mas as relaes que esta mantm com o texto, vari-veis segundo as pocas , no resolvem tudo. A representa-o no tem por objeto tapar os buracos do texto, e umarepresentao pode revelar-se to "pregu iosa" quantoum texto, apresentando outros vazios .

    _O texto e a representao esto ligados por relaescomplexas que a dramaturgia tenta deslndar, A partir dointerior do texto, esta procura considerar s possibilida-des da passagem ao palco e, a partir do palco, estudar asmodalidades de passagem ao pblico. Procura portantocompreender o estatuto de cada texto e com ele criar re-presentaes, reais ou virtuais.

    I. Existe uma especificidadedo texto de teatro?

    1. Isso no teatro!

    .:_Entre as exclamaes radicais ouvidas nos temposatuais sada dos teatros, h uma que deixa perplexo: "Is-so no teatro"; e uma outra, geralmente em forma depergunta: "Ser que um texto de teatro?"; ou ainda , emtermos mais diretos, "Voc acha realmente que represen-tvel?". Vem-nos ento a nostalgia das poticas dramticas,de Aristteles a Brecht, passando pelo abade d'Aubignac epor Lessing, e at o .desejo de um tratado normativo queresolvesse por uns tempos nossas incertezas contempor-neas. Pois, se difcil hoje propor um modelo de textoconstrudo segundo regras, continuam prevalecendo idiasaceitas acerca do que deve ser um texto de teatro.

    Quando ainda se acreditava na onipotncia do texto,"a pea bem feita" do sculo XIX (expresso atribuda aE. Scribe) propunha uma demonstrao de virtuosismobaseada ~uma arte da composio dramtica que deviamuito s receitas do ofcio e convico de que era pre-c so "funcionar" junto ao espectador. Mas a expressono est isenta de ironia. H peas muito bem feitas, as-sim como h receitas muito vistosas; cujos artifcios aca-.bam por se voltar contra seus autores.

    "Fazer teatro de tudo", de acordo com a bela frmu-la do diretor Antone Vitez, significa que o .material queantecede a cena, portanto o texto, transformve1. Noentanto, Vitez apreciava os "grandes 'textos". A frmula

  • 6 INTRODU o ANLISE DO TEA TRO O QUE UM TEXTO DE TEA TRO? 7

    foi interpretada de outra maneira: fazer teatro de tudo poder fazer teatro de nada, ou de pouca coisa. Quando aencenao se afirma todo-poderosa, a natureza do textoperde em importncia. Durante duas dcadas, grosso mo-do dos anos 60 aos 80, o espetculo prevaleceu sobre otexto; a teatralidade foi buscada fora da escrita teatral.No havl"" mais necessidade de responder a esta, j queaencenao declarava-se capaz de dissimular as carnciasdo texto e os diretores de transformar em espetculoqualquer escrita, fosse qual fosse sua origem.

    Sem dvida era saudvel, j que a idia de perfeio,ou mesmo de normas referentes ao texto dramtico, nadamais produzia de vivo. No entanto, o desejo ele definir deum ponto de vista terico uma espcie de princpio dotexto teatral retoma com a nostalgia dos textos " antiga".

    No se escapa perspectiva histrica, as definiesdo texto de teatro se estabelecendo em contextos estt-cos diferentes, em funo de novas idias que fazemosde sua prtica. Aqui nos limitaremos a colocar algunsgrandes eixos de reflexo que continuam a alimentar os'debates, uma vez que, como foi dito, no daremos defini-o normativa do texto de teatro.

    2. Os gneros

    A histria literria se interessa pela evoluo dos g-neros teatrais. A classificao das obras por gneros uma preocupao dos doutos do sculo XVII, muito ocu-pados em regulamentar a escrita. Em geral eles seguem asdefinies dadas por Aristteles em sua Potica.

    Assim, para a tragdia:"imitao de uma ao nobre, levada at o final e

    tendo uma certa extenso c. ..) e que, por intermdio dapiedade e do temor, realiza a purgao das emoes des-se gnero".

    Essas definies so suficientemente abertas e as tra-dues suficientemente imprecisas (por exemplo, purga-

    o por catharsis) para que todas as glosas sejam permiti-das. Autores e crticos apaixonam-se pelos debates teri-cos sempre que uma obra se afasta das normas fixadas.sobretudo quando elas permitema interpretao. Lem-bramo-nos da Querela do Cid e, por exemplo, da justifi-cao de Racine no prefcio de Berenice.

    No necessrio que haja sangue e mortes numatragdia: basta que sua ao seja grandiosa, que seus ato-res sejam hericos, que as paixes sejam excitadas, e quetudo nela reflita essa tristeza majestosa que constitui todoo prazer da tragdia. .

    Os grandes autores aparentemente respeitam os g-neros, mas gostam de explorar seus limites, como se a ca-da. vez reinventassem formas mais sutis ou jogassem coma liberdade da escrita. Um dos prazeres do classicismoconsiste em ordenar O mundo nomeando-o e depois se

    . interrogar se so bem fundamentadas as categorias adota-das. Corneille escreve em seu Premier discours [Primeirodiscurso], referindo-se tragdia e comdia, e nisto per-feitamente de acordo com Aristteles:

    A diferena dessas duas espcies de poemas consisteapenasha dignidade das personagens e das aes queelas imitam, e no na maneira de imit-las ou nas coisasque servem para essa imitao. -

    Os gneros no concernem apenas s formas. da es-crita mas tambm, por intermdio das personagens em

    \ ao, natureza dos temas tratados. impossvel falar detudo, em qualquer parte. A tragdia oficialmente o g-nero mais apreciado porque devolve aos espectadoresuma imagem nobre deles mesmos, A corte de Lus XIVfaz questo de esquecer Aristteles ao assistir s peascom maquinaria e bailados, aos espetculos barroquizan-tes nos quais triunfa o luxo decorativo.

    Nos anos 1630, os autores recorrem abundantemen-te a um "gnero mdio", a tragicomdia, muito em voga.

  • 8 INTRODUO ANLISE DO TEA mo O Q UE UM TEXTO DE TEA TRO? 9

    e , em menor medida, pastoral, importada da Itlia. Co-mo o seu nome indica, a tragicomdia autoriza urna .esp -cie de "m is tura dos gneros" avant la lettre, ao reunirpersonagens nobres e personagens inferiores na mesmaao ou em aes paralelas. A pastoral desenvolve nummodo lrico motivos amorosos, encontros e contendas depastoras e pastores demasiado ocupados em desenvolverseus estados de alma amorosos para se preocuparem comseus carneiros. Na-realdade, no que se refere estritamen-te 'd ram atu rg ia , l1Q....certo..que..os autores clssicos~c.~~

  • 10 INTRODUO ANLISE DO TEA TRO O QUE UM TEXTO DE TEA TRO? 11

    nas didasclias, quando necessrio, ' aes executadas pe-las personagens presentemente em cena, narrativas se en-carregam das aes passadas ou que devem se desenrolarfora do palco. Desde as origens, a noo de ao nemsempre facilmente identificvel, mesmo que se admitade um .ponto de vista terico que o teatro narra por meioda ao. Roland Barthes, ao analisar a estrutura da trag-dia grega , sublinha essa dificuldade:

    ...Esta estrutura tem uma constante, ou seja, um sen-tido: a alternncia regular do falado e d cantado, da nar-rativa e do comentrio. Com efeito, talvez seja melhor di-zer "narrativa" do que "ao "; na tragdia (pelo menos),os episdios (nossos atos) esto longe de representaraes, ou seja, modificaes imediatas de situa es , na

    .. maioria das vezes a ao refratadaatrav s dos modosintermedirios de exposio que , ao narr-la, a distanciam;relatos (de batalhas ou de assassinatos) C..) ou cenas decontestao verbal (...). Vemos aparecer aqui o princpioda dialtica formal que funda esse teatro: a fala exprime aao mas serve-lhe tambm de anteparo: "o que se pas-sa" tende sempre a "o que se passou". '

    (Le thatre grec, Histoire des spectacles)

    Veremos o interesse e a ambigidade desse duploestatuto da fala a propsito da enunciao no teatro. Mes-mo se distinguimos o mensageiro-personagem que ageao narrar, transmitindo sua mensagem, do recitante semestatutode personagem que se limita a dizer, sem "agir"no interior de uma fico, a fronteira entre os dois svezes frg il.

    A encenao moderna tem cada vez mais assumidoo que pertence ordem do "agir", fazendo com que apersonagem execute vrias tarefas na representao, mes-mo que estas no tenham ligao direta com o que dito.No raro vermos espetculos nos quais uma persona-gem se entrega a um longo monlogo ao mesmo tempoque executa trabalhos de limpeza ou de cozinha, semrelao visvel com o discurso. certo que h uma "ao"

    em cena, mas ela no decorre de uma necessidade evi-dente inscrita no texto. . ~: - /) :. . . ,~{ '':' o,." b- \ ~. ,~,~;

    A voga do teatro-narrativa dos anos 70 contribuiu pa-. ra diminuir a importncia da adaptao especfica de umtexto para o teatro. Com muita freqncia, trechos de ro-mances eram diretamente encenados, sem que houvesseuma adaptao, quer dizer, sem que marcas escriturais par-ticulares fossem previstas. Foi assim que Vitez encenou Ca-tberine, fragmento de Clocbes de Ble [Sinos de Basilia],de Aragon, utilizado tal e qual, em volta de uma mesa ondedecorria uma refeio. Interferncias criavam-se entre otexto do romance e a atividade dos atores que utilizavamo desenrolar da refeio para se entregarem representao.

    Essa dissociao entre o "dize r" e o "fazer", e a des-confiana para com qualquer redundncia, confirma queo -"faze r" sentido como pertencente ao palco, e que cada vez menos importante que o texto considere ou pro-grame aes, sobretudo se estas no criam nenhuma fra-tura entre o texto e a representao.

    O critrio da ao continua sendo pertinente de umponto de vista terico. Ele no permite distinguir com cla-reza um texto de teatro de um outro texto nas prticasmodernas da escrita e a preeminncia da ao cnica tor-

    .na ultrapassada a eventual boa vontade de um autor preo-cupado em prever, ' antes da representao, as aes desuas personagens. p-Q

  • 12 INTRODUO ANLISE DO TEAmo O QUE UM TEXTO DE TEATRO? 13

    Os historiadores situam as origens do teatro medie-val francs na incluso de, trop as, textos que se inseriamna liturgia desenvolvendo a passagem primitiva de acor-do com uma melodia prpria. O mais antigo seria de mea-dos d o sculo X e teria se juntado ao introito da missa daPscoa. Ao ver as santas mulheres se aproximarem do se-pulcro d e Cristo , o anj o dirigia-se a elas: "Q u e procu-rais?". Elas respondiam : "Jesus de Nazar"; o anjo retor-q uia: "Ele no est aqui, ressuscitou como havia profeti-zado ." H um cons enso em ver nesse tropo dialogado osinal de uma primeira dramatizao.

    Esses dois exemplos so confirmados pela idia de 'q ue o tea tro antes de tudo dilogo, ou seja, de que nelea palavra do autor mascaradaepartlhada entre vriosemissores . Essas pal avras em ao assumidas p elas perso-nagens co nstituem o essencial da fico .

    Vere mos; a propsito da enuncia o , que de fato q uase semp re ass im , e que o teatro as sume a falsa apa-rncia de conversao. No entanto, o dilogo no umcritrio absoluto do carter "dramtico" de um texto. Emtoda a histria do teatro, os autores utilizam o monlogocom abundncia , e , examinando algumas tragdias "d Renascimento ou determinadas obras clssicas, podemosnos perguntar, diante da extenso das falas, s~ possvelaind a falar de intercmbio verbal entre personagens cujas"r p licas" chegam a quase uma centena de versos,- Na realidade, todo o jogo do dilogo afetado peili.presena de um interlocutor considervel, o pblico, ao'qual muito tentador atribuir um lugar fundamental deparceiro mudo para quem, em ltima instncia e comove remos a propsito da dupla enunciao, todos os dis-cursos se dirigem.

    D iversas fo rmas te atrais a n tigas comprovam que ,com freqncia, os autores deixam de dirigir-se ao pbli-co indiretamente, privilegiando-o como interlocutor dire-to . o caso de tOas-s 'Tormsmnotogaas""dildadeMdia e das tradies populares das pantomimas, de to-d as as es critas que utilizam um recitador, dos usos diver-sos dos apartes e outras confidncias insinuadas mais oumenos discretamente para o pblico.

    .

    fj

    _ 0 O dilogo sobretudo menos considerado como in-dispensvel ao texto dramt ico desde que B;echt teorizous"formas p icas da escrita nas quais as personagens e osatores se di rigem regularmente ao pblico sob a forma de"songs", de sinais, de avisos, de narraes. Brecht queriaclarificar a oposio do dramtico e do pico pela intro-du o de uma linha divi sri a. Na forma pic a, comu mtomar diretamente a sala por testemunha sem pa ssar pelosimulac ro de um dilogo , sem fingir ignorar a p resenado pblico .

    Naquilo que poderamos designar por "dramtico pu-ro", a presena do pblico esquecida e negada, tudo oque dito e representado diz respeito apenas 's persona-gens e s a elas, sem a menor preocupao de uma infor-mao mnima ao pblico. Essa forma no concebveltal e qual no teatro, ma s podemos surp reender exemplosdel a na vida. Assim , uma discusso violenta que num res-taurante o pu nha duas mulheres e duas garonetes nadanos deixava ignorar do dilogo, mas este no nos fornecianenhuma espcie de informao sobre as origens do con-flito , os interesses em jogo e as responsabilidades de cadaum. Para as protagonistas, estvamos de fato ausentes.

    A forma pica pura escolhe como interlocutor nicoe privilegiado o espectador. Os recitais, os espetculos demonologuistas como Raymond Devos ou Gu y Bedos, ten-dem para esse modelo. No entanto, eles introduzem odramtico por efeitos de desdobramento daquele que falae que acaba, assim, por nos tomar por testemunhas deum dilogo, mesmo que tenha comeado por nos relatar .suas circunstncias; ou ento o ator escolhe como parcei-ro um espectador, permanecendo os demais como espec-tadores de um falso di logo totalmente conduzido porum protagonista.

    Na maior parte dos casos, O teatro oscila, em pro-pores variveis, entre o dramtico e o pico, conformeo estatuto do espectador. Ele jamais pode abster-se total-mente de narrar, mesmo por intermdio do dilogo.

    As formas de escrita p s-brechtianas abalam a antigacerteza que fazia do dilogo uma das chaves do teatro.

    .. . !

  • 14 IfvTROD UO ANLISE DO TEAmo O Q UE UM TEXTO DE TEAmo? 15

    Mesmo os autores cuja ideologia nada tem a ver com a deBrecht devem-lhe uma herana. Ao impor radicalmente apresena do espectador, dirigindo-se a ele' sem comple-xos, Brecht reabria a porta a todos aqueles que eram ten-tados pelo te atro sem quererem se submeter completa-mente escrita dialogada .

    A escrita moderna se interessa pelos limites. Do ladocio pico, os autores acolheram ou redescobriram a artedo contado r, as amigas tradies o rais que faziam do au-tor um recitador, as influncias orientais. Do lado do dra-mtico, os autores exploraram dilogos que mantinham oespectador em situ ao de subinfo rm a o, fingindo igno-rar s ua presena, d eixando-lhe a responsabil id ade derei nventar seu estatuto ao lhe fornecer uma parte de in -veno no imaginrio.

    Ain da a respeito dos limites, a escrita inte rroga a an-tiga rotina daquele que fala e daquele que escuta, perver-tendo os esquemas tradicionais da enunciao.

    Acrescentemos a isso as condies econmicas quefizeram os textos para um s ator se multiplicarem nos l-timos anos, a tal ponto que, em termos de criao con-tempornea, quase se trata de uma esttica, de um "teatroa uma voz" no qual uma personagem no cessa de confiar-se a todos os que querem ouvi-Ia.

    difcil , portanto, fazer do dilogo o critrio absolu-to da escrita teatral. Isso verdade em teoria, mas im-possvel excluir do campo do teatro um texto no dialo-gado. Nesse domnio, como no da ao, certos autorestal vez tenham deixado ao diretor, mesmo que inconscien-temente, a deciso de distribuir a palavra entre os prota-gonistas ou de dirigi-la ao espectador, pensando que acena, em ltima instncia, sempre daria um jeito de fazero texto falar a algum. uma responsabilidade exorbitan-te, como veremos, a de decidir definitivamente "q u em fa-la a quem e por que" , num sistema de escrita no qual to-da palavraest sempre em busca de destinatrio.

    5. Agir sobre o espectador

    Os grandes perodos da}listlri.? do te atro .d isti ngu i-rarn-se por um projeto deolgco defriido pelos au to re so u pelos tericos. J?;?_~ J?Eoj~to tem como fonte .a escrita ,

    .em bo ra a seguir o paJco..sejase u retransmissor, Aristtelesinsiste nesse ponto a propsito da catharsis egeralmentetraduzida por "pu rgao das p a ixes") q ue nasce do te-mor e da piedade:

    o temor e a piedade pod em , claro, nascer do espe-tculo, mas pod em tambm nascer da prpria organizaodos fatos consumados , o que prefervel e de um melhorpoet a. Com efeito , preciso organizar a histria de talmodo que , mesmo sem os ver , aquele que pretende nar-rar os atos que se realizam estremea e seja tomado depiedade diante dos acontecimentos que sobrevm C,.).Produzir esse efeito atravs do espet culo no pertenceinteiramente arte e requer apenas meios de encenao.

    Aristteles, que pormenoriza a seguir o ' que podeser narrado para "agrada r", sublinha os acontecimentosdo enredo e sua organizao tal como premeditada pe-lo poeta na maneira de agir sobre o espectador. Os meiossIe encenao em questo traduzem aq u i literalmenteuma "co regia" , o u se ja, as despesas que o corego 'assum iupara montar a pea.

    Em termos modernos, a dramaturgia' do texto incluias tcnicas da escrita e aqu ilo que contado, assim comoo efeito esperado sobre o espectador. .

    A identificao, indispensvel na catarse, enraza-sena escrita e principia com a credibilidade da obra teatral.Nenhuma imperfeio da "imi tao" deveria impedir o es-pectador de acreditar no que representado diante dele.

    A doutrina clssica refere-se a Aristteles. necess-rio 'ifrlstru ~r

  • 16 INTRODUO ANLISE DO TEATRO O QUE UM TEXTO DE TEAmor 17

    crita . Ao desenvolver a teoria do teatro pico, Brecht con-cede uni amplo lugar transformao das tcnicas cni-cas e ao trabalho do ator, em especial p ara obter o efeitode d istanciamento. difcil separar com rigor o que dao rd em do texto e o que do domnio cnico no pro jet obrechtiano. No entanto, nas grandes opo sies entre aforma dramtica e a forma pica do te atro, algumas d i-zem respeito diretamente escrita.

    Assim, a forma pica "narra o", procede por "ar-gumeritao" mais do que por "suges to". Na conduoda narrativa, Brecht procura "o. i n te resse ap aixo nado pelodesenrolar" mais do que pelo "d esfecho". ada cena trabalhada isoladamente, o efeito de montagem, o "d e -senrolar sinuoso " do enredo que se processa por "saltos"

    . tm por o b je to co locar o espectador perante a lgo e faz-lo reagir, mais do que deix-lo merc dos sentime ntos.

    A dramaturgia brechtiana busca a m aior coe r nciap o ssvel entre o texto e sua p assagem ao palco, de talmaneira que a relao com o esp ectador, que o objetivoessencial, jamais se perca d e vis ta .

    Em contrapartida, a escrita teatral con te m p ornea ex-prime uma desconfiana de todo e qualquer projeto did-tico, de toda e qualquer inteno declarada de ao sobreo espectador. A tendncia para as obras "abertas", a refle-xo sobre a liberdade do espectador e sobre seu processode recepo tornam os autores avaros de declaraes fir-mes sobre suas intenes. Praticamente no h mais es co-ls";'-i'em mesmo "p anelas", e raros so os m anifestos.

    As ideologias se exprimem menos e poucas pessoasde teatro, em nossos dias, pensam no pblico como umtodo homogneo. Alis, de preferncia fal a-se de pbli-cos, no plural. .De resto, no existem m ais vastas audin-cias comparveis s que o teatro grego e mesmo os m is-trios medievais reuniam. A escrita est demasiado sub-metida s vicissitudes da produo para que, de uma ma-neira geral , o auto r intente escrever para um pblico de-terminado e exercer sobre ele uma ao qualquer.

    Portanto, parece impossvel hoje definir caractersti-cas absolu tas da escrita teatral , pelo menos de maneira te - .

    rica . Mesmo assim, os critrios que abordamos permane-cem teis para avaliar as evolues dos textos e situ-losnuma perspectiva histrica. O teatro atual aceita todos ostextos, qualquer que seja sua provenincia , e deixa ao pal-co a responsabilidade de re velar sua te atralidade e , namaior parte do tempo, ao espectador a tarefa de encontrara seu alimento. A escrita teatral ganhou em liberdade eem flexibilidade o que ela perde, por vezes, em identidade.

  • 11. Q texto pode dispensara representao?

    1. o equvoco da representao em socorro do texto

    uma prtica comum atualme nte , no estudo do tex-to , referir-se representao como a um elemento faltan-te que viria explica r e escla recer o texto.

    Professores completam as anlises de textos dramti-cos com idas ao teatro ou , pelo menos, com gravaesem vdeo de encenaes ou documentos fotogrficos. Porreao contra a anlise literria tradicional, acentua-se le-gitimamente a dimenso visual que um espetculo teatraloferece.

    Tal prtica nem sempre isenta de ambigidades.Filmes propem Le Bourgeois gentilbornme [O burgus fi-dalgo) ou Les Fourberies de Scapin [As artimanhas de Es-capino), de Moli re , como se o texto fosse um roteiro e aobra autntica doravante se apresentasse sob .fo rm a cine-matogrfica. Nesse caso, aquilo que deveria ser, na faltade coisa melhor, apenas uma informao sobre o teatro,apresenta-se s vezes como teatro, e at como o teatro, con-tribuindo para manter o texto numa situao de depen-dncia e sustentando ao mesmo tempo o equvoco. Bas-taria, em resumo, fazer ver qualquer representao paraque ela surja como o elemento ausente esperado e o ob-jeto parea finalmente completo.

    Alguns espetculos realmente s fazem prolongaruma tradio discutvel da anlise do texto de teatro quese atribuiu a tarefa de mostrar um nico sentido da obra.

  • 20 IlV7RODUO ANliSE DO TEATRO o QUE U1'v! TEXTO DE TEATRO?21

    Uma vez trancadas as abordagens mltiplas, o interesseda ,rep reSentao m n rn zado a ponto de no ser maisque o prolongamento unvoco do estudo literrio, a ilus-trao inspida, a traduo corporal e visual que, por issomesmo, nada de novo acrescenta ao que foi dito. Nessecaso, o crculo se fecha . Por exigncia de modernismo, otexto se explica pela representao, mas esta nada expli-ca se seus cdigos convencionados so estabelecidos apartir de uma tradio antiquada.

    Lembremos, se necessrio, que a anlise do texto ea anlise da representao so procedimentos diferentes,

    - ainda que complementares. Nenhuma representao ex-plica milagrosamente o texto . A passagem do texto aopalco corresponde a um salto radical. Claro que o espec-tador experimenta a necessidade e o prazer de voltar aotexto, assim como o leitor de assistir a uma representa-o. Mas os numerosos laos existentes entre o texto e opalco no podem satisfazer-se com a' iluso mecanista deuma simples complementaridade. Como veremos, suasrelaes, os atritos entre a palavra e a representao, socomplexos e por vezes conflitantes.

    2. Diretamente do texto ao palcoo .

    \ O esrabelecmento da dramaturgia do texto constituiuma etapa comum do trabalho de encen~o)Hoje, noentanto, muitos diretores desconfiam dele. Na preparaoda passagem ao palco, as redes de sentido"que o trabalhodramatrgico estabelece, entre as' quais preciso esco-lher, surgem como um risco de fechamento, como uma li-mitao da representao futura devido instalao dedemasiados anteparos. ' ,

    (p trabalho no tablado implica um outro olhar sobre otexto, o de uma prtica imediatamente preocupada como espao e o corpo, uma mudana de dimenses cujasdescobertas remetem posteriormente ao texto.'iMuitos di-retores renunciam ao "trabalho mesa", a essas premissas

    .dos ensaios que consistem em leituras e reflexes drama-

    trgicas, em trocas de idias em torno das "intenes" dae ncenao .

    Assim , Antone Vitez, e no s ele, p ropunha que s~"pa ssasse imediatamente realiza o", ignorandAntoine Vitez era por demaisapaixonado pelos textos para que possamos suspei:ar quen o lhes desse a devida importncia . Nessa concepao mo-derna dos ensaios ~-'texto no minimizado nem rejei ta-

    ' 1 "do, mas imediatamente ligado ao trabalho do atsr;semque haja algo prvio a esses mltiplos ensaios.

    Peter Brook, em O espao vazio, relata com hum orco mo preparou com o maior cu idado sua p~~ ~-r: eira ence-nao , encarando os ensa ios , pa ra se tranqul hzar. .C011:0uma espcie de concretizao de seu caderno de d!reaoe de scobrindo a segu ir a realidade e as transfonnaoes dotrabalho coletivo.

    Claro que esses diretores leram os textos antes dos_en-saios e os conhecem perfeitamente! O que eles propoemno tablado uma espcie de outro modo de leitura, sessesde estudo e decifrao, tentativas e experimentaes.

    Essas prticas modificaram a idia que se ~azia daordem imutvel da abordagem do texto e subllOharamque existi uma' relao direta entre o texto e o palco, pe-lo menos que nem sempre o palco vinha depois do te~to ,

    ,como ilustrao ou prolongamento, mas que as tentatlva.sde .sua apreenso podiam ser feitas num mesmo mOVI-mento. Com o risca de que retornos ao texto e um traba-lho mesa durante os ensaios viessem a requere r de no-vo uma abordagem mais sistemt ica ou mais erudita .

    Essa evoluo do trabalho de ensaios dissipa umequvoco~hsaiar. no consiste realmente em :' repetir"~ ,ou seja, eR1 repisar de maneira imutvel um projeto conti-do no texto.rrnas antes em procurar, em entregar-se a mo-

    ,/

    A frase perde a fora em portugu s. Em franc s , "ensa iar" rpter .

  • 22 !J\TRODUA O A ANALISE DO TEA TRO O Q UE UM TEXTO DE TEA TRO? 23

    9 0S diversos de experimentar o texto a ser interpretado.A maior difi culdade ela encenao est no aprendizadoda s escolhas e sobretudo das renncias." Nenh uma encenao, por mais bem-sucedida que seja ,

    esgota o texto , e no raro encontrarmos atores que prefe-rem os ensaios representao, como se esta ltima impli-casse a perda ele toda uma gama de possveis. Um diretor deteatro abandona direes na medida em que as escolhe.Precisa renunciar a pistas encontradas durante o trabalho,fecha r cante iros de obras por muito tempo abertos, renunciara file s que o levam para muito longe de suas bases.

    3. O teatro numa poltrona

    Por essa frmula pro vocadora designamos um teatroque no se dest inaria representao mas leitura, e quede antemo se resigna a ser privado de qualquer prolon-gamento no palco.

    A expresso, que vem do teatro de Musset CSpectacledans u n fauteuil [Espetculo numa poltrona], de 1832),aplica-se historicamente a obras romnticas e, por exten-so, a todo teatro considerado "rrepresentvel", ou seja,cuja escrita no corresponde s normas de representaode sua poca. Uma obra longa , complexa, com muitaspersonagens, co ns tantes mudanas de cenrio e escritanum "estilo potico" assim remetida leitura e comoque proibida de representao.

    '- ., , Pradoxalmente, obras em ruptura com O cdgo c-nico de"seu tempo, nunca representadas, ou representa-'das de modo insatisfatrio, so muitas vezes aquelas cujasencenaes so hoje. as mais interessantes. Como se esses"monstros" que resistiam ao palco ou o desprezavam fos-sem o objeto de uma espcie de desafio. Lorenzaccio deMusset , Le soulier de satin [A sapatilha de cetim) de Clau-del , obras profusas e complexas, so hoje objeto de ence-naes apaixonantes -ou de redescobertas.

    A noo de teatro "pa ra ler" em razo de impossibili-dade cnica no mais existe. Maurice Blanchot, Edrnond

    d

    lI

    j ab s, apesar de no serem considerados dramaturgos,foram recentemente alvo de belos espetculos encenadospor P. A. Villemaine.

    O palco deixou de impor normas escrita ; pelo con-trrio, como veremos, qualquer escrita pod e tornar-sepretexto de representao, a mais resistente ou imprevistano sendo a menos procurada.

    4. O autor e a edio

    possvel conhecer um texto teatral no ap e nas pe-la letura.,epor. isso sua edio e difuso (quando edita-do) nem sempre seguem os circuitos comuns do livro.Pela mesma razo, e talvez tambm por causa de sua his-t ria-o estatuto do autor dramtico ainda hoje continuasendo especial.

    Durante muito tempo, a au sncia de impress o e atradio oral do texto fazem do autor uma entidade cole-tiva e indeterminada. No sabemos de fonte segura quemso os autores dos mistrios medievais nem de muitas dasfarsas que chegaram at ns . Revistas srias at se interro-gam periodicamente se Shakespeare era mesmo Shakes-peare, ou se Molire no teria subcontratado Corneille.Para alm das .polmicas que no nos interessam, h ns- .so um sintoma de crise de identidade do dramaturgo,personagem tanto mais equvoca quando desenvolve, co-ino Moli re, vrias aptides: as de autor, de ator e de. di-retor de cornparihia.iTeria ele tempo, perguntam hipocri-tarnente, para escrever obras-primas quando era obrigadoa representar com regularidade e a garantir a subsistnciade sua trupe? Em outras palavras, podia ocupar-se seria-mente do texto sendo ao mesmo tempo responsvel pelarepresentao?

    Um outro estatuto da poca o de "poeta assalaria-do", como foi por exemplo o caso de Jean Rotrou nosanos 1630 no Htel de Bourgogne. Nesse caso, o autortrabalha em grande parte por encomenda e com exclusi-vidade p~ra uma companhia que paga por pea. Escreve

  • 24 /lVTROD l ' O ANLISE DO TEA TRO O QUE U\1. TEXTO DE TEATRO? 25

    diretamente para o palco e muitas vezes s pressas, o queihe garante Ofato de ser .repres entado , mas no lhe d mui-ta autoridade sobre a durao e a pertinncia das represen-taes nem qualquer poder sobre ;1 edio de sua obra.

    Os textos s eram impressos depois de a companhiater obtido ganhos com as primeiras sries de representa-es, s vezes vrios anos mais tarde. O diretor da com-panhia protelava ao mximo o prazo, pois ento perdia oestatuto da exclusividade e a pea podia ser representadapor 'quem estivesse interessado.

    A obra no dispunha portanto de muitas o portunida-des para ser revelada independentemente de uma repre-sentao. O manuscrito era transmitido diretamente aosatores pelo autor. Compreende-se melhor por que flores-ceram na poca as ed ies piratas, impressas no estran-geiro e s vezes com e rros , estabelecidas a partir do textoouvido na representa o . Ao menos as peas publicadastinham leitores, as pessoas cu ltas da poca que se regozi-javam por ter acesso ao texto no cas o de n o terem podi-do ver o es petculo.

    Esse desvio pela histria le vanta algu ns problemasainda atuais . Ainda se distingue o ato de escrever para palco do ato de escrev er simplesmente, como se o autordramtico tivesse um estatuto diferente . A edio do textoteatral continua sendo um circuito especial, com divulga-o irregular, apesar dos recentes progressos e dos esfor-os dos autores e de alguns editores.

    - Por vezes, textos contemporneos no eram edita-dos por j terem sido representados, e porque a prticafrancesa os considera "gastos" por muito tempo no mer-cado profissional. A prtica contrria consiste hoje emeditar sobretudo os textos por ocasio de sua representa-o, o que garante um mnimo de vendas. Quanto im-prensa, ela se interessa pouco pela edio teatral e reser-va as resenhas para os espetculos.

    A situao para os autores de teatro muitas vez.esparadoxal , especialmente para aqueles que ainda no fo-ram representados porque sua obra no conhecida . Elesgostariam, bvio, que sua obra fosse divulgada atravs

    do circuito da edio, mas ela o ainda menos por noterem sido representados.

    As relaes complicadas entre o texto e o palco sefazem sentir tambm no domnio da edio. Ser precisolembrar que o teatro uma prtica social?

    5. O texto como potencial de representao'

    Um bom texto de teatro um formidvel potencialde representao. Esse potencial existe independente-mente"da representao e antes dela . Portanto, esta novem completar o que estava incompleto, tornar inteligvelo que no o era. Trata-se antes de lima operao de outraordem, de um salto radical numa dimenso artstica dife-rente, que por vezes ilumina o texto com uma nova luz,por vezes o amputa ou o encerra cruelmente. Uma ence-nao ruim de um texto contemporneo prejudica-o porlongo tempo, seno para sempre, por ele no gozar dareputao de obra-prima que o protegeria e por ser difcildeslindar as responsabilidades de um fracasso.

    Fixemo-nos em dois modos de abordagem do texto,nenhum deles totalmente satisfatrio. A representaoimediata do texto no espao revela dimenses que esca-pam abordagem analtica, mais sistemtica e menos in-ventiva . Esta, em contrapartida, revela redes de sentidos eparticularidades que no sero todas ativadas pela repre-seritao, seja porque esta no as escolheu, seja porqueno teve meios de perceb-las, pois s vezes o texto tam-bm foge ao palco. Essas duas abordagens se completamou se contradizem, e no obedecem forosamente a umaordem cronolgica exemplar.

    Ler o texto de teatro uma operao que se basta asi mesma, fora de qualquer representao efetiva, estandoentendido que ela' no se realiza independentemente daconstruo de um palco imaginrio e da ativao de pro-cessos mentais como em qualquer prtica de leitura, masaqui ordenados num movimento que apreende o texto "acaminho" do palco.

  • Ill. O teatro pode dispensaro texto?

    1. o corpocontra o texto

    Qs anos 60 assistiram ao regresso de uma utopia , ada preeminncia de uma teatral dade ancorada no corpoe na imaginao do ator. O "teatro de texto" ento sus-peito de propagar uma cultura morta e inerte, na linha di-reta de valores denominados ora literrios, ora burgueses. questionamento radical do teatro de repertrio e dos"clssicos" que constituem seu esqueleto tornou suspeito,ento , qualquer texto de teatro, mesmo contemporneo,a tal ponto que os autores vivos conheceram ainda maio-res ' dificuldades para ter su as peas representadas nesseperodo. So o corpo e suas foras secretas e profundasque devem governar o teatro, pensava-se. O_L.ipi11g]7;Jea-tre, nos Estados Unidos e depois na Europa, Grotowski naPolnia , e na este ira deles muitos dos partidrios da cria -o coletiva, entregam-se vertigem da improvisao,apelando por vezes a Antonn Artaud. Este ~ s:inhadocom uma ressacralizao do teatr, com uma eliminaodo texto em favor do gesto e do movimento, com umcontato direto entre o criador demiurgo e o palco:

    A meu ver, ningum tem o direito de se dizer autor,ou seja, criador, a no ser aquele a quem cabe lidar dire-tamente com o palco.

    ( O teatro e seu duplo)

  • 28 INIRODUO ANLI5E DO TEA mo O QUE UM TEXTO DE TEA 7RO? 29IO abandono do texto corresponde,nos anos 60, a

    posies ideolgicas., Na afirmao do corpo contra otexto (e s vezes tambm contra toda e qualquer palavra),reencontramos a velha desconfiana para com o intelectoe a nostalgia de um teatro popular desvencilhado do pe-so das palavras.

    Mas outros partidrios da criao coletiva na pocano tinham medo das palavras. Quando o Thtre du So-lei! encena 1789 ou L 'ge d'or [A idade de ouro], o grupoexprime a necessidade de criar um teatro do momento,atravessado pelas urgncias e necessidades do presente,independente das obrigaes do repertrio. No obstan-te, 1789 publicado na qualidade de texto e enquanto talreconhecido como autnomo. A dessacralizao do textonem sempre tem por conseqncia o abandono da escri-ta. Mas afirma-se que esta pode ser coletiva, fruto de im-provsaes, e sobretudo que o texto deve perder o car-ter solene e sagrado que a imagem escolar e universitria-.

    (-propaga. ,Artistas politicamente engajados reivindicam ~direito do texto de teatro fragilidade, urgncia, ne-cessidade de intervir num espao no teatral. Ele podeser produzido pelas pessoas do ofcio, atores e tcnicos, 'para o palco, e portanto ser flexvel, transformvel e facil-mente colocado em voz. Da desconfiana para com os"grandes textos" reivindicao de um teatro popular ha- ._.via apenas um passo, logo transposto.

    2. A nostalgia de um teatro popular

    Essas contradies dos anos 60 tm suas razes naessncia do teatro. Como se aqueles que o fazem tves-sem regularmente a' nostalgia de algumas de suas origens,dos rituais bqucos e festivos que no se incomodavamcom textos nem com eruditos. Tambm de suas origenspopulares, de uma palavra nascida da rua para a rua, aocontrrio da escrita solitria de um autor, suspeito semprede poder cultural ou de i~teligncia elitista.

    Pouco importa que essas origens sejam mticas ouque a histria modere os entusiasmos dos que procuramno passado reforo para seu desejo de teatro popular. Al-guns perodos-faris orientam assim a memria dos quedesconfiam do texto. Eles se voltam periodicamente paraa (esta antiga, os saltimbancos da Idade Mdia, os virtuo-ses da cornrnedia dell'a rte, os artesos do teatro de feirado sculo XVIII; nos nossos dias, para o teatro ele rua, oagitprop, ou as competies de improvisaes.

    provvel que existissem na Idade Mdia animado-res pblicos, arengueiros, malabaristas e monologuistas,talvez s vezes prximos ela mmica, s vezes de um tea-tro em estado bruto, parcialmente improvisado ou reno-vado no dia-a-dia. Seja como for, nossa memria transfor-ma os saltimbancos apreciadores de balbrdias e os bufesexercitados em fantasias verbais em antepassados dos im-provisadores.

    A fascinao pelos atores da commedia dell'arte, par-tilhada por muitos profissionais de teatro, talvez tenha ori-gem no sentimento de autonomia que eles transmitemquando representam. Libertos elo texto decorado, corremo risco mximo, o da inveno. Sabemos, claro, que es-sa inveno relativa. Os comediantes do Renascimentoitaliano dispunham de esquemas preestabelecidos, de si-nais de marcao, de um estoque de piadas, trocadilhos,truques, que os ajudavam a sair de uma situao difcil oude uma falha de inspirao. Mesmo assim eram eles queproduziam a representao e o texto na hora, sob o olharelo pblico e para a escuta deste.

    Nas feiras de Saint-Germain e Saint-Laurent, em Pa-ris, uma tradio que vinha de Henrique IV autorizava a'apresentao de exerccios ginsticas, pantomimas e m-gicas. Um privilgio da Academia de Msica impedia queos artistas de feira cantassem ou danassem a no ser so-bre uma corda, e um outro da Comdie Franaise' (1680)proibia-os de falar, o que provocou ento uma srie decuriosas invenes destinadas a contornar a lei. Privadosde textos dialogados, os comediantes inventavam jargesou utilizavam letreiros para se dirigir ao pblico, at a

  • 30 INTRODU~O AN.4U5E DO TEA TRO O QUE UM 7EXTO DE TEA mor 31

    proi b i o em 1719 dos teatros de feira . A partir dessesexemplos, compreende-se melhor como o teatro sem textos vezes foi considerado reduto do teatro vivole, em conse-qncia, da suspeita que continua pesando sobre o texto.

    3. O ator e o poeta

    Quando o teatro faz um retorno ao seu passado, muitas vezes para se perguntar se fez bem em se concederum poeta , se a percia dos atores na sua relao direta como pblico no teria sido prefervel s sutilezas deum texto,se a teatralidade "pura" no poderia facilmente dispensar opoder da escrita. Velha ruptura original entre os que fazemo teatro diante do pblico e os que o preparam na sombra,entre os atores na dianteira e o poeta a reboque. Velha lutade poder entre duasmetades inseparveis, o texto e o pal-co , qu e se procura dissociar sempre que uns passam a te-mer os "litera tos" e os outros os "histries".

    essa im agem do ator-rei , produtor do texto e dosentido, que nossa poca retm quando lhe acontece fa-zer o processo do texto. Como se libertar-se do texto, per-mitisse escapar rotina drepreseritaoe restabelecessea .capacidade do ator de inveno direta . A improvisao mitificada porque autoriza a cada momento a criaodo ator restabelece o contato ntimo entre o corpo doat or e se u imaginrio. No mais dizer as palavras de umo utro ofereceria uma sensao nica de liberdade.

    As criaes coletivas eas improvisaes pblicas nemsempre correspondem a essa viso otimista das coisas. Per-sonagens estereotipadas e dilogos rasos, uma expressocorporal convencionada so comuns nelas, pelo menos naperspectiva do espetculo, j que a improvisao encara-da tambm como trabalho de formao ou como treino co-tidiano do ator. Verdadeiros achados no dissimulam as di-ficuldades de um projeto de criao de fluxo contnuo.

    Existe portanto um teatro do silncio, um teatro docorpo e do grito, destinado a atingir mais profundamentea sensib ilidade do espectador. Essa utopia de um "p ara

    alm das palavras" mais poderoso que as palavras, ao seenraizar no indizvel, readqu re vigor sempre que o teatroperde o flego e se empoeira , sempre que o texto se limi-ta a ser o refgio de uma representao mecnica queperpetua rituais esvaziados de sentido, ou o lib i de umacultura que deixou de ser indispensvel.

    LEITURAS RECOMENDADAS

    ARISTTELES, Potique, Paris, Livre de Poche,1990.BRK, Peter, L'esp ace vide, Paris, Seuil , 1977.BRECHT, Bertold , crits sur le thtre (2 vols .) , Paris,

    L'Arche, 1979 .CORVIN, Michel, "Thtre/Roman, les deux scenes ele

    l'criture" , Entretiens de Saint-tierine, Paris, Thtra-Ies , 1984; Le Tb tre nouueau en France, Paris, "Quesais-je?", PUF, 1987.

    COUTY, Daniel e REY, Alain (direo), Le Tb tre, Paris,Bordas, 1980.

    DRT, Bernard, Lecture de Brecht, Paris, Seuil , 1960 .DOMUR, Guy (d ireo) , Hstoire des spectacles, Paris ,

    Encyclopelie de la Pliade, 1965.ECO, Umberto, Lector in fabula (Le rle du lecteur), Paris,

    . Livre de Poche, 1989.]OMARON, ]acqueline, Le tb tre en France (2 vols.), Pa-

    ris, Armand Colin, 1989.MOND, Richard, Les textes de tbtre, Paris, Cedic, 1977.PAVIS, Patrice, Dictionnaire du tb tre, Paris, d . Socia-

    les, 1980.:ROUBlNE, Jean-Jacques, Introduction aux grandes thories

    du tbtre, Paris, Bordas, 1990.SARRAZAC, ]ean-Pierre, L 'a ven ir du drame, Lausarme,

    ditions de l'Are, 1981; Tbtres intimes, Acres Sud,Arles, 1989.

    UBERSFELD, Anne, Lire te thtre, Paris, d. Sociales,1977.

    VINAVER Michel, Le compte-rendu d'Auignon. Des millemaux dont souffre L'dition tbtrale et les trente-septremdespour l 'en soulager, Arles, Actes Sud, 1987.

  • ABORDAGENS METDICAS

  • ,, -

    :L Tentativa de descrio

    1. o texto como objeto material

    .Toda obra dramtica pode ser apreendida , em pri-me iro lugar, na su a materialidade , no modo como a suaorganizao de superfcie se apresenta sob forma de obraescrita. No momento em que difcil ter lima id ia do quea pea significa e conta, esbocemos uma primeira aborda-gem interessando-nos apenas por suas marcas concretas,pelo sistema de cortes, de encadeamentos, de distribui-o de discursos que a organiza.

    O ttulo e o gnero da obra, a maneira como suasgrandes partes so nomeadas, como se articulam, os va-zios e os cheios da escrita, as marcaes, a existncia deindicaes cnicas, os nomes das personagens e o modocomo os discursos se distribuem sob esses nomes, eis asprimeiras revelaes que a leitura em sobrevo de umapea permite .

    Essas indicaes, por mais superficiais que paream,correspondem a um projeto do autor. No a mesma coi-sa escrever hoje uma pea em cinco atos e em alexandri-nos, com vinte personagens, intitulada "farsa", e uma obraem doze quadros, quatro fragmentos ou sete movimentos,para duas personagens sem nome e um saxofone.

    Quando tentamos compreender como se articulamas diferentes partes ou, pelo contrrio, por que no se ar-ticulam, quando identificamos as marcas espao-tempo-rais ou observamos mais de perto a d istribuio dos dis-

  • 36 INTRODUO ANLISE DO TEA TRO ABORDAGENS METDICAS 37

    cursos, lidamos, precisamente, com a organizao da fic-o. No fcil permanecer superfcie, tanto mais queas relaes entre as diferentes estruturas, entre enredo,intriga e discurso so difceis de deslindar. O interesse fu-turo est na confrontao dos diferentes estudos.

    Onde nos deter naquilo que foi definido como umsobrevo, quando nos sentimos j tentados a lhe dar umsentido? Interessemo-nos de incio unicamente pelos tra-os mais exteriores e mais evidentes do texto, cujo cresci-mento Michel Vinaver descreveu nos seguintes termos:

    No incio de uma pea no h qualquer sentido.Mas, uma vez comeada a escrita da pea, h um impul-so para o sentido, para a criao de situaes, de temas,de personagens. A partir de um ncleo indeterminado re-sultante da exploso inicial, a pea no cessa de se cons-truir. Ao final, se bem-sucedida, ela se apresenta comoum objeto to rigorosamete construdo como se tivessehavido um plano prvio.

    (crits sur le thtre) ,

    2. Organizao, estruturao

    O ttulo e o gnero: rtulos verdadeiros e falsos annciosDar um ttulo a uma pea , para o autor, uma forma

    de anunciar ou de confundir seu sentido. Para o leitor, ottulo uma primeira referncia. Muitas vezes, a pea temo nome de uma herona ou de um heri, de uma perso-nagem principal. o caso da maior parte das tragdiasantigas ou clssicas, francesas ou estrangeiras: Hamlet,Jlio Cesar, Andrmaca, Berenice, Polieuto. Nada mais dito e como se isso bastasse. O laconismo do ttulo cor-responde celebridade ou grandeza do heri.

    Os ttulos das comdias so um pouco mais elo-qentes. Quando se referem a um "tipo" (O avarento) oua uma condio social, adjetivos podem esclarec-los: Oburgus fidalgo, O mdico fora. O ttulo possui em si

    prprio uma dinmica, um embrio de narrativa (A meculpada: Arlequim, seruidor de dois amos), o .esboo deuma moral ou o anncio de um desfecho: Asfalsas confi-dncias, A dupla inconstncia. Por vezes o ttulo designaironicamente um perfeito desconhecido como um heritrgico: Tu rcaret, O senhor de Pourceaugnac, apelandoassim cultura teatral do espectador. Uma tradio dura-doura se estabeleceu, e encontramos como ttulos, no s-culo XIX, tanto Os caprichos de Mariana como Ruy Blas,tanto No se brinca com o amor como Os burgraves.

    O ttulo anuncia um projeto de acordo com a tradi-o cultural ou, pelo contrrio, manifesta uma ruptura:em A cantora careca, como se sabe, no h nenhumacantora, calva ou cabeluda, o que permite a Ionesco des-montar os hbitos e expectativas. O ttulo tambm pode,numa faccia inicial, manifestar de sada uma inteno debom humor: Ocupa-te de Arnlia, Limpa-se beb, Um pija-ma para dois. Pode ainda jogar com vrios registros edeixar-nos indecisos: Fim de jogo remete-nos literalmentepara o final de um jogo e metaforicamente para a morte.O caso da rua de Lourcine poderia designar uma intrigapolicial ou um acontecimento devasso. Mas EsperandoGodot revela-se, depois de conhecido, de uma tremendaobjetividade ,descritiva.

    Os contemporneos exploram s vezes a extensodo ttulo (As pessoas insensatas esto em via de extino)ou a sua ambigidade fontica (Nina c'est autre chose, ouNina outra coisa'), Demonstram uma aparente objetivi-dade (Combate de negro e ces) ou apostam na metfora(A solido nos campos de algodo). O respeito pelos g-neros impunha uma espcie de tradio dos ttulos. Hoje mais difcil adivinhar o que a denominao oculta, detal maneira as pardias e as piscadelas, que apelam cul-tura do espectador, modificaram seu uso.

    Na prtica, o ttulo nos interessa como "primeiro si-nal" de uma obra, inteno de obedecer ou no s tradi-

    Foneticamente, pode ser confurkdo com Nina sai! autre cbose,(Nina sabe outra coisa).

  • 38 INTRODUo ANLISE DO TEATRO ABORDAGENS METDICAS 39

    es histricas , jogo inicial com um contedo a ser reve-lado do qual ele a vitrine ou o anncio, o chamariz ouo selo de qualidade". As informaes que eie fornece , pormais frgeis que sejam, merecem ser consideradas.

    O mesmo se passa com o gnero da obra, cuja indi-cao segue-se em geral ao ttulo. Vimos que se trata his-toricamente de uma indicao ambgua , j que abrangeindiferentemente uma forma de fico, uma tcnica deescrita ou o efeito esperado sobre o espectador. Portantono podemos esperar muito dela, tanto mais que pratic -mente desapareceu. No mximo, quando reaparece a in-dicao do g n e ro , podemos deduzir que urn a formaque o auto r tem de colocar-se sob uma bandeira culturalo u de manifestar com ironia que no se deixou enganarpela sua rela o com a tradio . Um autor que se preocu-pa em anuncia r bufonaria no incio de seu texto desejaevitar qualquer equvoco ou , pelo contrrio, provoca-o.Lembremo-nos de que O jardim das cerejeiras intitula-secom dia, Tio Vnia tem como subttulo "ce nas da vida nocam p o" , e Um pedido de casamento, "brincad eiras em um 'ato". pouco, no entanto so pistas iniciais que entramem nossa relao com o texto.

    As grandespartes

    A maioria dos textos so organizados em diferentespartes. A maneira como estas so designadas remete j auma esttica . Na prtica tradicional fala-se em atos, ritual-mente cinco para a tragdia e a tragicomdia, trs para acomdia, mas h excees. Os atos so, por sua vez,divi-didos em cenas, de acordo com as entradas e sadas das

    , personagens. A partir do sculo XVIII os dramaturgos fa-lam s vezes de quadros, referindo-se assim a uma con-cepo pictrica da cena, a uma unidade obtida pela cria-o de uma atmosfera diferente a cada vez.

    Em francs , appellation contrle. Designao atribuda aos vinhosque ind ica sua origem e caractersticas de fabricao, rgdarnente controlada s.

    A prtica moderna hesita entre os costumes tradicio-nais e a instaurao de um vocabulrio inspirado no cine-ma ou lana mo de tudo o que h . Os autores falam deseqncias, fragmentos, movimentos (em referncia auma construo musical) , pedaos , jornadas , partes; o uento as divises eventuais no s o nomeadas, as "cenas"sucedendo-se, s vezes numeradas e com ttulos , comona prtica brechtiana, outras vezes sem nmeros. Para Vi-naver, Iphig rtie Htel uma pea em trs jornadas; LaDemande d'emploi [O pedido de emprego), uma pea emtrinta fragmentos , devidamente numerado s ; Nin a, c 'estalare chose, uma pea em doze fragmentos numerados ecom ttulos (A abertura do pacote de tmaras , O assadode vitela com espinafres, etc.) . Em Tte d 'or [Cabea d eourol , Claudel distingue trs partes; Jean Genet, em LesNgres [Os negros) , no indica qualquer int errupo; Ha-rold Pinter, em O amante, no nomeia as partes e s in-troduz como corte um sinal tipogrfico e a referncia c -

    -n ca a um "escuro". Quase clssico, Beckett separa Espe-rando Godot em dois 'atos.

    Esses diferentes sistemas de organizao classificam-se quer segundo uma esttica da continuidade (o desen-rolar previsto sem nenhum corte) , quer segundo umprincpio de descontinuidade (cortes freqentes, por vezessistemticos). Alguns desses cortes pertencem mais Or-dem do texto, como por exemplo os nmeros e os ttulosquando no so feitos para serem anunciados pelos ato-res e utilizados em cena. Outras vezes remetem prticacnica, como por exemplo a indicao de um escuro, em-bora essas marcaes de interrupo tenham um estatutoduplo e sejam tambm destinadas ao leitor.

    O que podemos esperar 'desse levantamento? As es-colhas dos autores indicam que eles se colocam implicita-mente numa tendncia da escrita, que organizam seu uni-verso mental e o estruturam em funo de ritmos quelhes so prprios, que se referem a outras artes (como pintura ou msica) no seu modo de pensar o texto porquadros, fragmentos ou seqncias, que sua escrita j determinada em fun o do palco ou que a ignoram deli- '

  • 40 INTRODUo ANLISE DO TEA mo ABORDAGENS METDICAS 41

    beradamente. A decupagem uma maneira de apreendero real, organizando-o. Essas escolhas tambm nos interes-sam, enquanto marcadores temporais, para o nosso pr-ximo estudo sobre a organizao da durao na fico ena representao.

    Encadeamentos e rupturas, vazios e cheios

    Examinemos agora como essas partes se seguem, seencadeiam ou se chocam, se distinguimos princpios uni-ficadores ou rupturas significativas no tecido textual.

    A continuidade linear da ao

    A continuidade de ao era uma preocupao togrande entre os clssicos, que o abade d'Aubignac escre-via em La pratique du tbtre (1657}

    por essa razo (a no-interrupo da ao) que osexcelentes Dramaturgos sempre se acostumaram a fazeros Atores dizerem onde vo, qual seu destino ao saremdo Palco, a fim de que se saiba que no ficaro ociosos eno deixaro de representar suas personagens mesmoque os percamos de vista.

    Isso significa que no s a ao, em nome da veros-similhana, deve ser contnua no palco, como o especta-dor deve encontrar no texto elementos suficientes paraimaginar como ela prossegue quando a personagem noest mais em cena. A decupagem em atos e em cenas queorganiza a ao e d ritmo ao texto corresponde ao que dado a ver. O que se passa alhures (fora do texto e forado palco) ou em outros momentos (intervalos) conside-rado como fazendo parte da ao. A verossimilhana de-cide tambm sobre as ligaes entre as cenas, justificadascomo "ligao de presena" (sadas ou entradas), "ligaode procura" (a personagem que entra em cena procura

    uma outra que sai), ligao pelo rudo (a personagem atrada por um rudo), ligao pelo tempo (quando no

    'h outra justificao a no ser uma necessidade horria).Exemplos podem ser vistos no livro de Jacques Scherer,La dramaturgie classique en France.

    Sem precisarmos entrar em pormenores, observe-mos os blocos textuais e sua organizao. A decupagemdo texto raramente independente de uma concepo dotempo e do espao. As regras de unidade de tempo eunidade de lugar dependem, assim como a continuidadeda ao, da verossimilhana.

    Reservando para mais tarde (captulos 2 e 3) um exa-me detalhado, interessemo-nos sobretudo pelos vazios,pelos momentos em que o texto se detm, e observemosse so providos de marcadores de tempo ou de espao,de informaes precisas sobre o modo de encadeamento.

    No. Dom juan de Moliere, cada novo ato indica umsalto no tempo e no espao: o Ato II abre-se com uma ce-na entre Carlota e Pierr; o Ato III apresenta Dom Juan"em trajes de campo" e Esganarelo "como mdico"; o AtoIV s indica as presenas de Dom juan e Esganarelo e oAto V comea por uma mensagem de Dom Lus a seu fi-lho. Nada de muito surpreendente, a no ser algumaselipses imediatamente comentadas (de que modo o se-nhor e o criado encontraram seus. trajes), e sobretudo aentrada dos camponeses no Ato lI, que denota uma mu-dana de ponto de vista e o aparecimento de um segun-do fio da histria. O que d'Aubignac admite, com a con-dio de que essas histrias secundrias estejam "de talmodo incorporadas ao tema principal que no se possamseparar sem destruir toda a obra".

    Entre os dois atos de Esperando Godot indicaescnicas aparentemente contraditrias: "Dia seguinte. Mes-ma hora. Mesmo lugar", e um pouco mais adiante: "A r-vore tem algumas folhas". Beckett "pensou" na ligaoentre os dois' atos e d uma informao muito clssica so-bre seu encadeamento. Depois cria a confuso, servindo-se de um velho truque teatral, a simbolizao de umamudana de estao atravs das folhas da nica rvore.

  • 42

    , ' -

    II'vTRODU10 ANLISE DO TEATRO ABORDAGENS METDICAS 43

    Impecavelmente "clssico" na aparncia , ele confunde noentanto todas as pistas. Toda reflexo sobre EsperandoGodot se detm nessa curiosa articula o e 'determina tu-do o que ela implica do ponto de vista dramatrgico.

    Impossvel ir mais longe sem entrar nos detalhes doenredo, na organizao da narrao, nas escolhas narrati-vas , nos vazios e nas lacunas.

    A descontinuidade afirmada

    Completamente diferente a organiza o de umapea como Santa Joa na dos Ma ta do u ros de BertoldBrecht. Ela compreende treze partes numeradas e subpar-tes que em geral correspondem a uma mudana de lugar.Uma frase resume a cada vez o desenrolar da ao . Assim ,(I) "O rei da carne, Piermont Maule r, recebe uma carta deseus amigos de Nova York", e uma outra determina os lu-gares: Chicago, os matadouros. A segu ir OI) , "Derrocada .das grandes fbricas de conservas de carne" e "Diante da 'fbrica de conservas de Lennox", depois, "Uma rua " e "Dian-te da casa dos chapus escuros". A ao salta de um lugara outro. Estamos num outro sistema dramatrgico baseadona descontinuidade e na elipse. A organizao estruturalno mais repousa sobre a interdependncia das p artesmas, pelo contrrio, sobre sua autonomia , cada parte de-vendo ser tratada "em si mesma".

    Desde Woyzeck de Bchner, e sem seguirem necessa-riamente ' todos os princpios da dramaturgia pica, algunsautores adotam uma escrita baseada na alternncia dos va-zios e dos cheios que pode se tornar, na prtica contempo-rnea, utilizao sistemtica do fragmento. Descontnua,elptica, aberta, ou seja, deixando ao leitor m~it? paraconstruir e imaginar, essa escrita, geralmente lacnica, or-ganiza o mundo segundo um princpio de falta. Nunca ~dito tudo, nem tudo para dizer, jamais tudo pode ser di-to . o caso de um autor alemo como Heiner Mller e , emdiversos graus, de muitos dramaturgos franceses contem-porneos.

    Essa oposio contnuo/descontnuo nem se mpre to radical e no corresponde de maneira absoluta a uma 'evoluo histrica. Os dramaturgos elisabetanos e os dra-maturgos franceses da primeira metade do sculo XVII(incluindo o jovem Corneille em algumas de suas primei-ras obras) utilizam o princpio de descontinuidade. Asce-nas e os atos no se encadeiam, as histrias comportamvrios "fios ", a ao e as personagens saltam de um lugarpara' outro. O mundo que nos dado a ver no obedecea uma construo harmoniosa e equilibrada.

    Nem todas as escritas contnuas ou descontnuasopem-sede maneira sistemtica e se relacionam de ma-neira absoluta 'a duas vises de mundo. No entanto, onosso objetivo, ao captar os princpios de construo deuma obra , aproximar-nos de seu ritmo prprio e ir almdo simples princpio descritivo. .Existem muitos textos, pu-ramente formais , que imitam princpios organizadores semproduzir grande coisa do ponto de vista do sentido e dosensvel. Nosso trabalho sobre as formas no poderia serperemptrio, pode apenas ajudar a formular hipteses.

    3. O material textual

    Ao folhearmos uma obra de teatro "pa ra ter umaidia dela", observamos muitas vezes uma organizao ti-pogrfica diferente daquela de uma obra romanesca, porexemplo. O texto teatral apresenta mais "brancos" quan-do dialogado e, geralmente, contm os nomes das per-sonagens encarregadas de dizer o texto. Ao primeiroolhar notamos os equilbrios e as distribuies das massastextuais. Um dilogo pode encadear-se de maneira cerra-da, segundo um princpio de falas alternadas (Woyzeck,Esperando Godot) ou manifestar uma evidente desigual-dade na extenso dos discursos. Os enormes "blocos" detextos assinalam as tiradas (longos discursos de uma per-sonagem sem que nenhuma outra reaja) ou os monlo-gos. Em casos excepcionais, o texto constitudo apenaspor vrios monlogos alternados, e mesmo por um nico

  • 44 IN7RODUO ANLISE DO TEAmo ABORDAGENS METDICAS 45

    monlogo (por exemplo, Discours aux animaux [Discur-so aos animais], de Valere Novarina).

    O texto propriamente dito se apresenta em forma deverso ou prosa, pontuado ou no de maneira ordinria .Por fim, alguns textos de teatro incluem, alm do textodestinado a ser pronunciado pelas personagens, um me-ta texto (ou texto sob re o texto), conjunto das didascliasfornecidas pelo autor, em alguns casos diferenciadas poruma tipografia especial.

    Didasclas

    Originalmente, no teatro grego, as didasclias eramd estinadas aos intrpretes. No teatro moderno, em quefalamos de indicaes cnicas, trata-se dos textos que nose destinam a ser pronunciados no palco , mas que aju-dam o leitor a compreender e a imaginar a ao e as per-sonagens. Esses textos so igualmente teis ao diretor eaos atores durante os ensaios,mesino que eles no osrespeitem. Distinguimos as indicaes que concernemapenas conduo da narrativa (do enredo, como vere-mos) daquelas que seriam estritamente cnicas.

    Inscritas geralmente margem do texto destinado aser representado, as didasclias so s vezes muito raras(o que acontece geralmente no teatro clssico) ou mesmoinexistentes. Os comentadores interessam-se especial-mente por essas notaes, como, por exemplo, quandoRacine determina que "Bere nice deixa-se cair numa ca-deira" (Berenice, v. 5) .

    Quando o autor no fornece nenhuma indicao porque deseja se abster. de dar outras pistas para a inter-pretao alm daquelas includas no texto das persona-gens. Ele mantm a abertura, at mesmo a ambigidade,de seu texto, e deixa o campo livre ao leitor, no impon-do de antemo qualquer interpretao que sirva de mo-delo representao. Com isso tambm mostra a impor-tncia que atribui s palavras pronunciadas pelos atores,mais que a qualquer quadro figurativo ou a qualquer sis-tema de desempenho.

    Inversamente, certos autores atribuem um lugar con-sidervel s indicaes cnicas, como se definissem ante-cipadamente a forma da representao ou como se nopudessem imaginar o texto das personagens independen-temente do contexto no qual este seria produzido. Escri-tores to diferentes como Feydeau , Jean Vauthier ou ain-da Samuel Beckett, por exemplo, redigem suas indicaescnicas com um cuidado quase manaco. Fim de jogo, deBeckett, comea por trs p ginas de indicaes cnicasque pormenorizam o espao e depois a representao,como se pode ver neste trecho:

    Ele (Clov) vai colocar-se sob a janela da esquerda.Andar ereto e vacilante . Olha a janela esquerda, a cabe-a jogada para trs. Vira a cabe a, olha a janela direita.Vai colocar-se sob a janela direita. Olha a janela direi-ta, a cabe a jogada para trs. Vira a cabea e olha a jane-la esquerda. Sai, volta em seguida com um banco , ins-tala-o sob a janela da esquerda, sobe nele , puxa a cort i-na. Desce do banco, d seis passos na direo da janela direita , volta para pegar o banco, instala-o sob a janela direita, sobe nele , puxa a cortina. Desce do banco , dtrs passos na direo da janela esquerda, volta parapegar o banco, instala-o sob a janela direita , sobe , olhapela janela. Riso breve. C .)

    Essas indicaes concernern ao. Embora sejamcasos excepcionais, existem obras, at, em que todo otexto constitudo por ind icaes cnicas que descrevemcom, exatido as aes que as personagens devem execu-tar. E o caso de Actes sans paroles [Atos sem palavras], deBeckett, de Concert la carte, de F. X. Kroetz, de O pupi-lo quer ser tutor, de Peter Handke. Esses textos, que nose destinam a ser ditos, constituem o principal material darepresentao.

    As pesquisas cnicas atuais confundem as pistas de-masiado simples de uma primeira distino sobre a natu-reza dos textos . Voltaremos ao assunto a propsito daenunciao, mas, assim como s vezes as indicaes cni-cas ocupam todo o texto , s vezes 'tamb m diretores fa-

  • 46 INTRODU o ANLISE DO re TRO ABORDAGENS Jt1ETDICAS 47

    zem com que elas sejam pronunciadas no palco, criandointerferncias entre a palavra e a ao. Mais .uma razo pa-ra introduzir distines claras ao nvel da anlise do texto.

    Escrita falada ou fala escrita?O texto de teatro tem o bizarro estatuto de uma es-

    crita destinada a ser falada, de uma fala escrita que esperauma voz, um sopro, um ritmo. Devido s suas origens, reaisou mticas , transmisso oral , a uma tradio da decla-mao, buscam-se nele ou ' atribuem-se a ele as virtudesparticulares das palavras adeq uadas boca . Ser que hvestgios desse estatuto nas escritas que imitam mais oumenos a oralidade?

    Todos entram em acordo quando se tratado teatroem versos. Comentam-se os ritmos , as transposies, asassonncias e a qualidade das rimas, e no estudo literriousual h um empenho em entender seu sentido. No en-tanto, antes do sentido, o que nossa memria retm 'muitas vezes "como as coisas so ditas". O moi, Comte,deux mots, de Corneille , uma tirada brilhante de Hugo,versos de Cyrano de Bergerac ou os ritmos estranhos deClaudel: o teatro extrai disso uma imagem sonora e inclu-sive um pouco tonitroante que s vezes encobre as mus -qu nhas .de outros textos.

    Tudo comea, porm, com o silncio, e, como vere-mos a propsito da enunciao (captulo 4) , quando "no

    .se fala" (ou no mais) s vezes to interessante comoquando "se fala". Mas isso tem mais a ver com os discursosdas personagens do que com a linguagem dos autores.

    O teatro recorre tanto s metforas do estilo grandio-so quanto gria, tanto ao lxico rigoroso de Giraudouxquanto s linguagens mais rudes das regies e dos diale-tos, reais ou imaginrios. Antes de triunfar, Michel Trem-blay escandalizou parte do Quebec ao escrever em joual(lngua popular do Quebec), enquanto as cenas passadas

    .em Montreal eram escritas geralmente em fran to cas-tio como a imagem que os canadenses fazem dos fran-

    ceses arredondando a boca para formar as voga is. Michelde Ghelderode um flamengo que escreve num francssp e ro e flamejante, de sintaxe entrecortada e ritmo im-previsvel. Valere Novarina alcanou verdadeiro xitocom um Discours aux animaux cuja escrita lan a mo daoralidade. O que nada tem a ve r com a harmonia racinia-na ora apreciada (a musicalidade no teatro) , ora temida(como dizer e representar Racinei'):

    Num ms , num ano , como suportaremos.Senhor, que tantos mares me separem de vs)Que o dia renas a e que o dia acabeSem que jamais Tito possa ver Berenice ,Sem que lodo dia eu possa ver Tiro!"

    . Afirmar que a lngua, no teatro, existe para se r ditapouco adianta , pois cada um coloca nesse "d ize r" quali-dades contraditrias , segundo critrios estticos e precon-ceitos evidentes. Foi assim que o teatro por muito tempoviveu na Frana sob a ditadura da "bela linguagem". Posi-es extremas em favor da linguagem rude, brutal o u emgria criam outras excluses.

    Examinemos portanto os textos com o mnimo poss-vel de preconceitos culturais e estticos. Interessemo-nospelo "como soa", pela qualidade da tess tura lexical e pelaorganizao do dilogo. A "lacun a" da personagem de Len-glum de Labiche pontua um texto aparentemente banal :

    Ser que comi salada? Ora, vejamos! No! H umalacuna em minha existncia! Ora essa! Como diabos vol-tei para c? Tenho uma vaga lembrana de ter ido passearpelos lados do Odon... e moro na rua de Proven ce! Eramesmo o Odon? Impossvel lemb rar! Minha lacuna ! Sem-pre minha lacuna!

    ( O caso da rua de Lourcine)

    Dans un rnos, dans un :10, cornment souffrrons-nous,Seigneur, que Iam de mers me s pa rent de vous?Que le [our recommence el que le [our finisse,Sans que jamais Titus puisse vo ir Brnice,Sans que de IOtIl le [ou r je r usse voir Titusl

  • ]V Enunciados e enunciao

    o teatro definido s vezes como um gnero emque "se fala" muito. O texto de teatro chega a ser identifi-cado com o dilogo, como se s retivssemos como textoa soma das interaes entre personagens por intermdioda fala , com o efeito de realidade que disso resulta , poisse elas se falam, pensa-se, como se fosse verdade.

    No interior do texto pronunciado pelos atores identi-ficamos em geral monlogos e dilogos. Mas, como emmuitos outros casos, essas grandes categorias , aparente-mente fceis de reconhecer, so confundidas pela diversi-dade das estticas e pelas pesquisas cnicas atuais, emque as prprias didasclias se fazem ouvir, embora origi-nalmente n-ose destinem a ser pronunciadas. til , por-tanto, identificar o conjunto dos enunciados do texto pararesponder a uma questo simples e fundamental: quemfala a quem e por qu?

    1. O estatuto da fala

    Dilogo e monlogo

    A distino entre monlogo e dilogo menos evi-dente do que parece, tanto mais que ambos assumem for-mas diversas conforme as dramaturgias.

    A "conversa entre duas pessoas", definio estrita dodilogo. nem sempre .adquire no teatro a forma animada

  • 48 IN7RODU O ANLISE DO TEATRO ABORDAGENS METDICAS 49

    Sua repetio no m enos intere ssante , tanto d op onto de vista lingstico com o do teatral , que a de "Ro-m a " na fala de Camila (Horcio, de Co rn eille) , que emba-lou classes inteiras e tirou o flego d os candidato s aoconservatrio!

    Portanto nos importa que Fim de jogo, de Beckett,co m e ce por "Acabou -s e, acabou , vai aca bar, talvez va ca bar", e que o Jean Genet de Les Ngres faa su a p e rso-rugem Ne ige dizer:

    Se eu tivesse certeza de que Vllag liquidou essamulher pa ra se torn ar com maior esta rdalhao um negromarcado, fedorento , beiudo , de nariz chato, comil o ,gluto, empanturrado, comedor de brancos e de tod as ascores , babando-se, suando, arrotando, escarrando , forni-cado r de bo des, tossindo , peidando , lam bedor de psbrancos , mandri o, doente, go tejando .leo e suor, flcidoe sub misso, se tivesse a certeza de que a matou para seconfundir com a noite ... Mas sei que ele a amava .

    No decidamos de antemo o que deve se r a lin gua-ge m teatral: Tomemos nos au tores as p articularidades ta is 'como elas aparecem, .tanto a acumulao dos adjetivos e .das metforas como as rplicas curtas , tanto o texto su pe- .ra bundante como o texto com brechas.

    Entre as particularidades con tem p o r neas observ-veis, vrios autores renunciam em seus textos pontua-o corrente e, limitam-se aos p ontos de interroga o e deexclamao . E o _caso , por exemp lo, d e Pierre. Guyotat ,Michel Vinave r, Daniel Lernahieu Va lere Novarin a demane iras diferentes m as com inte~es pr x imas, Maiscomo uma "to rren te verbal" em Gu yotat , uma avalanchade p alavras perfurando o silncio, mais como uma orga-nza o do nd feren c ado em Vinaver, que permite r-p lica entrar em confron to com rp licas vizinhas.

    O texto escrito ap resenta -se assim a o ator numa re-lati va indferencia o , sem que a sintaxe decida o sentidode man eira definitiva. a vo z do ator, seus ritmos pessoaisque o rienta m o texto escrito e decide m uma "pontuao

    oral" calcada na respira o . O texto pontuado pelo au torfecharia portas demais quanto maneira de dizer, o queexplica essa delegao ao at or. Lemahieu sublinha em sua san otaes de trabalho a rel ao que se estabelece entre oritmo ntimo da escrita e o ritmo ntim o vo ca l do ato r queelabora a personagem:

    Oposi o entre dito proferido, a fala da personageme sua colocao na boca (posio, voz, respirao) do ator.O texto de teatro falado-escrito ou escrito-falado? Ao qu ese acrescenta o problema dos ritmos prprios, da voz inte-rior do escritor que percebe muitas vezes .dferenternente aescanso do texto que ele prprio props, ao mesmo tem-po que deixa aos artistas dramticos cuidado de comple-tar o que comeou, do escrito imagem espetacular.

    (Prludes et f igures, notas para Usinage)

    curioso notar, no caso de um autor como Serge Valle -ni que durante muito tempo interpretou seus textos , as sur-preendentes diferenas rtmicas que surgem na representa-o quando so desempenhadas por outros. Tais fenme-nos n o podem realmente ser analisados com exat ido,eles so prprios do .encontro entre o texto e os atores nosprimeiros fenmenos de interpretao vocal. uma boarazo para darmos um espao s leituras sono ras.

    Leituras em voz alta e leituras silenciosas

    A Ieitura em voz alta uma abordagem do te xto ne-gligenciada nos hbitos universitrios, seja porque pensa-mos no ser capazes disso e nos sentimos desarmados,seja porque a abordagem intelectual privilegiada em de-trimento de experimentaes concretas. Trata-se no en-tanto de um exerccio precioso, mesmo que no nos con-sideremos em absoluto atores, sob a condio deque al-gumas regras sejam seguidas.

    O que est em jogo nada tem a ver com o sentido, aentonao, o "to m correto", a maneira certa de d izer o .

  • 50 J,\TRODUO ANLISE DO TEA77?O ABORDAGENS METDICAS 51

    autor ou qualquer preocupao de xito. Essas leiturasconstituem urna srie de tentativas de dizer, que privile-giam a materialidade do texto durante os primeiros conta-tos, em que convm ser srio sem se levar a srio e , porque no, encontrar prazer no que se faz.

    . Esses jogos e exerccios de "colocao na boca" par-tem seja de instru es mecnicas, seja do desejo de expe-rimentar particularidades evidentes do texto.

    Entre as instrues mecnicas , experimentam-se to-das as oposies de ritmo, de articulao, de nvel sono-ro : l-se muito depressa ou muito devagar, berra-se, sus-surra-se ou salmodia-se, procura-se terminar o mais rpi-do possvel ou, pelo contrrio, saborear todas asharrno-nias e asperezas; tentam-se acentos e acentuaes; l-sesozinho ou com vrias pessoas, passando o texto de umapara outra; variam-se os leitores e os enunciadores, como mnimo de a prioripssvel. At se parodia , talvez che-gando ao exagero.

    Quando um texto apresenta particularidades, ata-quemo-las de frente. Procuremos as variantes rtmicas deum texto no pontuado abrindo a cada vez caminhos di-ferentes entre as palavras; banalizemos o alexandrino aomximo, como se fosse uma conversa comum; ou tente-mos caminhar para o canto, escutando como os versosresistem a esses tratamentos. Se se trata de Claudel, lance-mo-nos nos versos at o flego nos faltar, para vermoscomo "falam". Encadeemos rapidamente dilogos frag-mentadosque talvez j se respondam. Faamos de todasessas leituras exerccios fsicos."

    Escapemos leitura cinzenta, triste e convencional,escolhida por receio de fracasso ou de no pegar o senti-do. No h fracasso possvel, j que o nico projeto "embocar" o texto e fazer com que seja ouvido.

    A leitura silenciosa nos mais familiar. Mas estare-mos seguros de que proveitosa se tambm estivermosobcecados pela urgncia de proceder a uma anlise e decaptar seu sentido? .

    Experimentemos portanto leituras desordenadas eimaginativas, que se intert:ompem, voltam atrs, correm

    frente. Demos instrues a ns mesmos, como por exem-plo ler o texto de uma s personagem em continuidade.Interessemo-nos exclusivamente pelas didasclias que, li-das de ponta a ponta, constituam de fato um "outro tex-to ". Encadeemos os incios e os finais de a to. Leiamosnum mesmo movimento o incio e o fim , a exposio e odesfecho. Detenhamo-nos para imaginar, ou seja, para so-nhar, e visualizemos o que descrito. Essas leituras erra-dias so ilimitadas, constituem "entradas" no texto e criamuma familiaridade com a escrita. Diz-se com freqnciaque o ato de leitura no obedece a uma continuidade

    . obrigatria, tiremos ento o melhor proveito disso.As proposies de descoberta do texto constituem,

    em seu conjunto, uma relao com a "superfcie" do tex-to . A identidade do texto tal como ele se apresenta lei-tura na sua materialidade privilegiada. Levemos emconta nossa "inocncia" de leitores, dispostos a tudo ob-servar porque dispostos a se espantar com tudo. Trate-mos cada obra como um territrio estrangeiro que seapresenta de forma original, com sua geografia, seus cos-tumes, sua lngua. Seja como for no escaparemos aosproblemas de sentido, nem talvez profundidade: ela jest na superfcie.

    LEITIJRAS RECOMENDADAS

    BARTHES, Roland, Essais critiques, Paris, Seuil, 1984, emespecial o captulo "Le bruissement de la langue".

    LEMAHIEU, Daniel, "Prludes et figures", notas sobre Usi-nage, Paris, Th. Ouvert/Enjeux, 1984.

    MILNER, ]ean-Claude, REGNAULT, Franois, Dire te vers,Paris, Seuil, 1987.

    MONOD , Richard, Les textes de tbtre, Paris, Cedic,1977.

    RYNGAERT, jean-Perre, foer, reprsenter, Paris, Cedic,1985.

    SARRAZAC, jean-Pterre, L'a uen ir du Drame, Lausanne,L'Aire Thtrale, 1981.

  • 52 INTRODC' o ANLl5E DO TEATRO

    PAVIS, Patrice, Dictionnaire du tbtre, Paris, d. Socia-les, 1980..

    Nmero especial da Retiue Pratiques dedicado "Escritateatral", n 41, 1984.

    VINAVER, Michel, crits SUl' te tbtre. Lausanne, L'Airethtrale, 1982.

    11. A fico e sua organizao

    A terminologia da fico varia conforme as pocas eatualmente usamos, s vezes, um lxico muito impreciso.Falamos do assunto de uma pea, do que ela conta (ahistria, a fico, o enredo), dos seus temas, da intriga, daao, misturando sentidos comuns e sentidos eruditos,empregos vulgarizados e empregos tcnicos.

    Se abordamos essas questes de terminologia, por-que so o sinal de dificuldades reais na abordagem efeti-va dos textos. Como apreender os diferentes nveis deuma fico, da sua expresso mais exterior (o que o textoconta) mais interior (as foras profundas que o texto opeou mobiliza)? A constituio do enredo, as referncias daintriga, a anlise da ao, a revelao das estruturas pro-fundas da obra so procedimentos complementares, porvezes contraditrios. As pesquisas contemporneas sobrea narratividade privilegiam alguns deles sem que sua ne-cessidade seja sempre explcita. Ora, til situarmo-nosnas diferentes estratgias de anlise.

    Um outro problema consiste em determinar o que,na fico, pertence ' ordem do texto e o que pertence ordem da representao. Aludimos a isso a propsito daconcepo brechtiana do enredo.

  • 54 INTRODUO ANLJSE D O TEA TRO AB ORDA GENS METDICAS 55

    1. A noo de enredo ou fbula

    Um reservatrio de mitos e in venes

    A fabula latina uma narrativa mt ica o u inventada .Podemos conceber uma fbula que existia antes da peade teatro , como um material de que o poeta s e apossoupara co nstru ir a sua o bra . Nesse caso, a fb ula faz partede uma espcie de reservatrio de histrias inventadas ,in scritas n a m emria co le tiva . Na prtica dramatrg icados a ntigos co mo na do sculo XVII , os autores com fre-qncia fazem aluso s suas fon tes, a um materialhist-rico d isposio d e todos e no qual el es se inspi ram li-vremen te. O s clssicos, p or exemplo , recorrem hi stri aromana , a Virglio, a Plutarco . Falam d eles tanto mais li-vreme n te quanto ce rto que suas noes de propriedadeliterria e de or iginalidade n o s o de maneira nenhumaiguais s n ossas . A in ventividade dos poetas dramticosmanifest a-se na recria o do material fabular.

    No segundo prefcio de Andrmaca, Racine cita o~versos de Virgli o do terceiro livro da Eneida, refere-se aAndrmaca de Eurpides e conclui:

    No creio que eu precisasse desse exemplo de EUIpi-des para j stifcar a pequena liberdade que tomei. Pois huma grand e diferena entre destruir a base principal de umafbula e alterar alguns de seus incidentes que praticamentemudam de rosto em cada uma das mos por que passam.

    . Termina citando um comentador de Sfocles , queobserva:

    No devemos divertir-nos em escarnecer dos poetaspor causa de algumas alteraes que tenham introduzidona fbula ; mas devemos dedicar-nos a considerar o exce-lente uso que fizeram dessas alteraes e a maneira enge-nhosa com que souberam acom odar a fbula a seu tema.

    Assim, poderamos dizer que, se buscamos a fbulao u o e n re d o de uma pea , fazemo s o trabalho inverso

    desses autores, isol and o o materi al narrat ivo das origens,despojado de qualquer arra njo dramti co . No e n ta nto es-se material no se co nfu nd e com as fontes da obra . Nessesentid o, diz Pavis , a fbula o u o enred o seria:

    o estabelecimento cronolgico e lgico dos aconte -cime ntos que constitue m o esque leto da histria repre-sentada, .

    Um projeto como esse dificilmente se realiza, poissu bente nd e uma espcie de neutralidade d a a n lis e , umtrabalho cirrgico de se p a rao e ntre o narrativo e o dra-mtico . Esse trabalho revela-se ainda mais difcil quandono se conhece a f onte do enredo , e no obstante pre-ciso reconstruir esse estado primeiro d a narrativa com osim p les a uxlio do texto dramtico .

    .Mas esse projeto releva-se apaixonante e til prti-ca , pois, como escreve Richard Monod, o enredo nos che-ga "em muito mau estado ", j que nos comunicado porintermdio das palavras e dos ges tos das personagens