rose, nikolas. inventando nossos eus

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ROSE, Nikolas. Inventando nossos eus. In.: SILVA, Tomaz Tadeu. (Org.). Nunca fomos humanos. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 137-204. Inventando nossos eus Nikolas Rose A idéia de "eu" 1 entrou em uma crise que pode muito bem ser irreversível. Os teóricos sociais têm escrito inúmeros obituários da imagem de ser humano que animou nossas filosofias e nossas éticas por tanto tempo: o sujeito universal, estável, unificado, totalizado, individualizado, interiorizado. Para algumas análises, particularmente aquelas inspiradas na psicanálise, essa imagem sempre foi "imaginária": os humanos nunca existiram, nunca puderam existir, nessa forma coerente e unificada- a ontologia humana é necessariamente a ontologia de uma criatura despedaçada no seu próprio núcleo. Para outros, essa "morte do sujeito" é, ela própria, um evento histórico real: o indivíduo ao qual essa imagem do sujeito correspondia surgiu apenas recentemente, em uma zona limitada de tempo-espaço, tendo sido, agora, varrido pela mudança cultural. No lugar do eu, proliferam novas imagens de subjetividade: como socialmente construída; como dialógica; como inscrita na superfície do corpo; [p.140] como espacializada, descentrada, múltipla, nômade; como o resultado de práticas episódicas de auto-exposição, em locais e épocas particulares. Deve-se assinalar, entretanto, que no mesmo momento em que essa imagem do ser humano é declarada passé pelos teóricos sociais, certas práticas regulatórias buscam governar os indivíduos de uma maneira que está, mais do que nunca, ligada àquelas características que o definem como um "eu". Da mesma forma, as idéias de identidade e seus cognatos têm se colocado no centro de muitas das práticas nas quais os seres humanos se envolvem. Na vida política, no trabalho, nos arranjos domésticos e conjugais, no consumo, no mercado, na publicidade, na televisão e no cinema, no complexo jurídico e nas práticas da polícia, nos aparatos da medicina e da saúde, os seres humanos são interpelados, representados e influenciados como se fossem eus de um tipo particular: imbuídos de uma subjetividade individualizada, motivados por ansiedades e aspirações a respeito de sua auto-realização, comprometidos a encontrar suas verdadeiras identidades e a maximizar a autêntica expressão dessas identidades em

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  • ROSE, Nikolas. Inventando nossos eus. In.: SILVA, Tomaz Tadeu. (Org.). Nunca fomos humanos. Belo Horizonte: Autntica, 2001. p. 137-204.

    Inventando nossos eus

    Nikolas Rose

    A idia de "eu"1 entrou em uma crise que pode muito bem ser irreversvel. Os

    tericos sociais tm escrito inmeros obiturios da imagem de ser humano que animou

    nossas filosofias e nossas ticas por tanto tempo: o sujeito universal, estvel, unificado,

    totalizado, individualizado, interiorizado. Para algumas anlises, particularmente

    aquelas inspiradas na psicanlise, essa imagem sempre foi "imaginria": os humanos

    nunca existiram, nunca puderam existir, nessa forma coerente e unificada- a ontologia

    humana necessariamente a ontologia de uma criatura despedaada no seu prprio

    ncleo. Para outros, essa "morte do sujeito" , ela prpria, um evento histrico real: o

    indivduo ao qual essa imagem do sujeito correspondia surgiu apenas recentemente, em

    uma zona limitada de tempo-espao, tendo sido, agora, varrido pela mudana cultural.

    No lugar do eu, proliferam novas imagens de subjetividade: como socialmente

    construda; como dialgica; como inscrita na superfcie do corpo; [p.140] como

    espacializada, descentrada, mltipla, nmade; como o resultado de prticas episdicas

    de auto-exposio, em locais e pocas particulares.

    Deve-se assinalar, entretanto, que no mesmo momento em que essa imagem do

    ser humano declarada pass pelos tericos sociais, certas prticas regulatrias buscam

    governar os indivduos de uma maneira que est, mais do que nunca, ligada quelas

    caractersticas que o definem como um "eu". Da mesma forma, as idias de identidade e

    seus cognatos tm se colocado no centro de muitas das prticas nas quais os seres

    humanos se envolvem. Na vida poltica, no trabalho, nos arranjos domsticos e

    conjugais, no consumo, no mercado, na publicidade, na televiso e no cinema, no

    complexo jurdico e nas prticas da polcia, nos aparatos da medicina e da sade, os

    seres humanos so interpelados, representados e influenciados como se fossem eus de

    um tipo particular: imbudos de uma subjetividade individualizada, motivados por

    ansiedades e aspiraes a respeito de sua auto-realizao, comprometidos a encontrar

    suas verdadeiras identidades e a maximizar a autntica expresso dessas identidades em

  • seus estilos de vida. As imagens de liberdade e autonomia que inspiram nosso

    pensamento poltico operam, da mesma forma, em termos de uma imagem do ser

    humano que o v como o foco psicolgico unificado de sua biografia, como o locus de

    direitos e reivindicaes legtimas, como um ator que busca "empresariar" sua vida e

    seu eu por meio de atos de escolha. A julgar pela popularidade das problemticas do psi

    na mdia, pelas demandas por toda espcie de terapia e pela enorme quantidade de todo

    [p.141] tipos de conselheiros, parece que os seres humanos, ao menos em certos locais e

    entre certos setores, acabaram por se reconhecer nessas imagens e nesses pressupostos e

    por se relacionar consigo mesmos e com suas vidas em termos anlogos - isto , nos

    termos da problemtica do "eu". A disperso conceitual do "eu" parece caminhar em

    paralelo com sua intensificao "governamental".

    Teremos ns, ento, apesar dos argumentos dos filsofos e tericos crticos, nos

    tornado "sujeitos psicolgicos"? hora de abordar a questo da "subjetividade" mais

    diretamente. No em termos dos efeitos da "cultura" sobre a "pessoa" ou em termos de

    uma "teoria do sujeito", mas buscando caracterizar, por assim dizer, o modo de ao das

    diversas tecnologias psi de subjetivao. Isso nos obriga a um desvio por alguns textos

    contemporneos sobre o "problema do sujeito", antes de retomar, em concluso, a uma

    anlise do tipo de criatura que ns nos tornamos.

    VOC MAIS PLURAL DO QUE PENSA

    Gilles Deleuze e Flix Guattari foram, provavelmente, os autores que

    formularam a alternativa mais radical imagem convencional da subjetividade como

    coerente, durvel e individualizada: "Voc longitude e latitude, um conjunto de

    velocidades e lentides entre partculas no formadas, um conjunto de afectos no

    subjetivados. Voc tem a individuao de um dia, de uma estao, de um ano, de uma

    vida (independentemente da durao); de um clima, de um vento, de uma neblina, de

    um enxame, de uma matilha (independentemente da [p.142] regularidade). Ou pelo

    menos voc pode t-la, pode consegui-la" (MP4, p. 49).3 Voc pode t-la - para Deleuze

    e Guattari, os humanos, ao menos ao longo de um determinado plano de existncia, so

    mais mltiplos, mais transientes e mais no-subjetivados do que somos levados a

    acreditar. Alm disso, podemos agir sobre ns mesmos para habitar essas formas no-

    subjetivadas de existncia. Eles chamam essas formas no-subjetivadas de

    "hecceidades" - modos de individuao que no so os de uma substncia, de uma

  • pessoa ou de um sujeito, mas os de uma nuvem, de um inverno, de uma hora, de uma

    data - "relaes de movimento e de repouso entre molculas ou partculas, poder de

    afetar e ser afetado" (MP4, p. 47). Entretanto, em oposio a essa dimenso ou a esse

    "plano de consistncia" - que no deve ser pensado como uma estrutura oculta, mas

    como um plano "imanente", formado apenas da distribuio e da relao entre seus

    efeitos - est um outro plano de organizao, estratificao, territorializao.

    De modo que o plano de organizao no pra de trabalhar sobre o

    plano de consistncia, tentando sempre tapar as linhas de fuga, parar

    ou interromper os movimentos de desterritorializao, lastre-los,

    reestratific-los, reconstituir formas e sujeitos em profundidade.

    Inversamente, o plano de consistncia no pra de se extrair do plano

    de organizao, de levar partculas a fugirem para fora dos estratos, de

    embaralhar as formas a golpe de velocidade ou lentido, de quebrar as

    funes fora de agenciamentos, de microageciamentos. (MP4, p.

    60). [p.143]

    Se a experincia e a relao que temos com ns mesmos no de movimentos,

    fluxos, decomposies e recomposies por causa da localizao dos humanos nesse

    outro plano, esse plano de organizao que tem a ver com o desenvolvimento de formas

    e com a formao de sujeitos, no interior de agenciamentos, 3 cujos "vetores, foras e

    interconexes subjetivam o ser humano, ao nos reunir - em um agenciamento - com

    partes, foras, movimentos, afectos de outros humanos, animais, objetos, espaos e

    lugares. nesses agenciamentos que so produzidos os efeitos de sujeito, efeitos do fato

    de sermos-reunidos-em-um-agenciamento. A subjetivao , assim, o nome que se pode

    dar aos efeitos da composio e da recomposio de foras, prticas e relaes que

    tentam transformar - ou operam para transformar - o ser humano em variadas formas de

    sujeito, em seres capazes de tomar a si prprios como os sujeitos de suas prprias

    prticas e das polticas de outros sobre eles.

    Existem, sem dvida, muitas dificuldades com essas hipteses, as quais eu retirei

    de seu contexto para utiliz-las em minha prpria teorizao.4 Estou menos preocupado,

    de qualquer forma, em ser "fiel a Deleuze e Guattari" - o que seria uma aspirao

    curiosa - do que em usar o que eles escreveram como uma plataforma de lanamento

    para minha prpria questo: como os humanos so subjetivados, em quais

    agenciamentos, e como podemos pensar as prticas psi como um elemento operativo no

    seu interior. Aqueles que utilizam uma "teoria do sujeito" - cujas condies mesmas de

  • possibilidade se situam no interior de um certo regime histrico [p.144] de subjetivao

    - para explicar esse regime de subjetivao encontram-se em uma situao contraditria.

    Essas teorias da subjetividade so desenvolvidas para explicar eventos que aquelas

    prprias teorias ajudaram a produzir, eventos que elas plantaram ao longo de nossa

    existncia, localizando-os em uma interioridade que elas prprias ajudaram a cavar. Em

    contraste com essa perspectiva, proporei, na discusso que se segue uma anlise da

    subjetivao que no utiliza uma metapsicologia para explicar como, em um momento

    histrico e cultural particular, nos tornamos o que somos.

    O eu no deveria ser investigado como um espao contido de individualidade

    humana, limitado pelo envelope da pele, que foi precisamente a forma como,

    historicamente, ele acabou por conceber sua relao consigo mesmo. "Por que nossos

    corpos devem terminar na pele? Do sculo XVII at agora, as mquinas podiam ser

    animadas - era possvel atribuir-lhes almas fantasmas para faz-las falar ou movimentar-

    se ou para explicar seu desenvolvimento ordenado e suas capacidades mentais. [...]

    Essas relaes mquina/organismo so obsoletas, desnecessrias" (HARAWAY, 2000,

    p. 101). De fato, a prpria idia, a prpria possibilidade, de uma teoria sobre um corpo

    separado e envelopado, habitado e animado por sua prpria alma - "o" sujeito, "o" eu,

    "a" pessoa - parte daquilo que tem que ser explicado, constituindo justamente o

    prprio horizonte de pensamento que esperamos ultrapassar. Se os seres humanos

    acabaram por se conceber como sujeitos, com um desejo de ser, com uma predisposio

    ao ser, isso no surge, como alguns sugerem, de [p.145] algum desejo ontolgico,

    sendo, em vez disso, a resultante de uma certa histria e de suas invenes (cf.

    BRAIDOTTI, 1994b, p. 160). Escrever no esprito de Deleuze significa formular nossas

    questes em termos daquilo que os humanos podem fazer e no daquilo que eles so.

    Nossas investigaes deveriam buscar as linhas de formao e de funcionamento de

    uma gama de "prticas de subjetivao" historicamente contingentes, nas quais os

    humanos, ao se relacionarem consigo mesmos sob formas particulares, dotam-se de

    determinadas capacidades, tais como: compreender a si mesmos; falar a si mesmos;

    colocar a si mesmos em ao; julgar a si mesmos. Essa "aquisio" de capacidades d-

    se em conseqncia das formas pelas quais suas foras, energias, propriedades e

    ontologias so constitudas e moldadas ao serem utilizadas, inscritas e talhadas por

    agenciamentos diversos e ao serem conectadas a agenciamentos diversos.

    Dessa perspectiva, a subjetividade no deve, certamente, ser vista como um dado

    primordial e nem mesmo como uma capacidade latente de um certo tipo de criatura. Ela

  • tampouco algo que deve ser explicado pela "socializao", pela interao entre, de um

    lado, um animal humano biologicamente equipado com sentidos, instintos, necessidades

    e, de outro, um ambiente externo, fsico, interpessoal, social, no qual um mundo

    psicolgico interior produzido pelos efeitos da cultura sobre a natureza. Ao contrrio,

    sugiro que todos os efeitos da interioridade psicolgica, juntamente com uma gama

    inteira de outras capacidades e relaes, so constitudos por meio da ligao dos

    humanos a outros objetos e [p.146] prticas, multiplicidades e foras. So essas variadas

    relaes e ligaes que produzem o sujeito como um agenciamento; das prprias fazem

    emergir todos os fenmenos por meio dos quais, em seus prprios tempos, os seres

    humanos se relacionam consigo prprios em termos de um interior psicolgico: como

    eus desejantes, como eus sexuados, como eus trabalhadores, como eus pensantes, como

    eus intencionais - como eus capazes de agir como sujeitos (ver ROSE, 1995a, 1995b; cf.

    GROSZ, 1994, p. 116). Uma forma melhor de ver os sujeitos como "agenciamentos"

    que metamorfoseiam ou mudam suas propriedades medida que expandem suas

    conexes: eles no "so" nada mais e nada menos que as cambiantes conexes com as

    quais eles so associados (MP1, p. 16-37). Sugiro tambm que a multiplicidade de

    linhas que tem reunido, em uma montagem, os seres humanos a diferentes relaes no

    sculo XX - os "rizomas" que tm conectado, apreendido, diversificado, expandido,

    divergido, formado pontos de entrada, pontos de separao e sada para os humanos -

    deve algo importante a esses conceitos, aes, autoridades, estratificaes e ligaes

    para os quais eu utilizei o termo psi.

    A psicologia, como um corpo de discursos e prticas profissionais, como uma

    gama de tcnicas e sistemas de julgamento e como um componente de tica, tem uma

    importncia particular em relao aos agenciamentos contemporneos de subjetivao.

    As disciplinas psi compreendem mais que uma forma historicamente contingente de

    representar a realidade subjetiva. As disciplinas psi, no sentido que lhes dou aqui, tm

    feito parte, de forma constitutiva, [p.147] de reflexes crticas sobre a problemtica do

    governo das pessoas de acordo com, por um lado, sua natureza e verdade e, por outro,

    com as exigncias da ordem social, da harmonia, da tranqilidade e do bem-estar. Os

    saberes e as autoridades psi tm gerado tcnicas para moldar e reformar os eus, as quais

    tm sido reunidas - em um agenciamento -com os aparatos dos exrcitos, das prises,

    das salas de aula, dos quartos de dormir, das clnicas... Eles esto presos a aspiraes

    sociopolticas, a sonhos, a esperanas e a medos, relativamente a questes tais como a

    qualidade da populao, a preveno da criminalidade, a maximizao do ajustamento,

  • a promoo da autodependncia e da capacidade de empreendimento. Eles tm sido

    corporificados em uma proliferao de programas, intervenes sociais e projetos

    administrativos. Dessa forma, as disciplinas psi estabeleceram uma variedade de

    "racionalidades prticas", envolvendo-se na multiplicao de novas tecnologias e em

    sua proliferao ao longo de toda a textura da vida cotidiana: normas e dispositivos de

    acordo com os quais as capacidades e a conduta dos humanos tm se tornado

    inteligveis e julgveis. Essas racionalidades prticas so regimes de pensamento, por

    meio dos quais as pessoas podem dar importncia a aspectos de si prprias e sua

    experincia, e regimes de prtica, por meio dos quais os humanos podem fazer de si

    prprios seres "ticos" e dotados de "agncia", definidos de modos particulares, como

    pais, professores, homens, mulheres, amantes, chefes, e por meio de sua associao com

    vrios dispositivos, tcnicas, pessoas e objetos. 8 [p.148]

    NARRANDO O EU

    Comecemos com a linguagem. Marcel Mauss, em seu famoso ensaio sobre a

    histria da noo ou concepo de eu, argumentava que essa categoria havia surgido

    apenas recentemente, ressaltando o associado culto do eu e o respeito pelo eu na lei e na

    moralidade. Ele advertia, entretanto, que no ia dis-cutir a questo da linguagem. Ele

    acreditava que no havia nenhuma tribo ou linguagem na qual a palavra "eu" no

    existisse, na qual ela claramente no representasse algo, e que a onipresena do eu se

    expressa tambm na linguagem, o que visvel na abundncia de sufixos posicionais

    que dizem res-peito s relaes no tempo e no espao entre o su-jeito falante e aquilo

    sobre o qual ele fala (MAUSS, 1979b, p. 61). Concedia-se, aqui, prpria linguagem,

    efeitos subjetivantes, mesmo que os sujeitos assim formados nem sempre refletissem

    sobre si mesmos como sujeitos no sentido que nossa cultura d a esse termo. Um

    argumento diferente, mas relacionado, com respeito s propriedades subjetivantes da

    linguagem, foi apresentado por mile Benveniste, o qual colocava uma grande nfase

    na capacidade de criao de sujeito que tm os pronomes pessoais. Para Benveniste

    (1971), o eu, como sujeito de enunciao, forma um locus de subjetivao, criando uma

    "posio de sujeito", um lugar no interior do qual um sujeito pode surgir. atravs da

    linguagem, argumentava ele, que os humanos se constituem a si prprios como sujeitos,

    porque apenas a linguagem que pode estabelecer a capacidade de a pessoa se colocar

    como um sujeito, "como [p.149] a unidade psquica que transcende a totalidade das

  • experincias reais que ela rene, produzindo a permanncia da conscincia". A

    subjetividade " apenas a emergncia, no ser, de uma propriedade fundamental da

    linguagem" (ibidem, p. 224). A linguagem tanto torna possvel que cada falante se

    estabelea a si mesmo como um sujeito, ao se referir a si prprio como "eu" em seu

    discurso, quanto tornada possvel por esse mesmo fato. As formas pronominais so

    um conjunto de signos "vazios", sem referncia a qualquer realidade, que se torna

    "plena" quando o falante introduz a si prprio em uma instncia de discurso. Entretanto,

    precisamente por causa disso, o lugar do sujeito um lugar que tem que ser

    constantemente reaberto, pois no existe qualquer sujeito por detrs do "eu" que

    posicionado e capacitado para se identificar a si mesmo naquele espao discursivo: o

    sujeito tem que ser reconstitudo em cada momento discursivo de enunciao (cf.

    COWARD & ELLIS, 1977, p. 133).

    Para o presente objetivo, entretanto, essa nfase nas propriedades subjetivantes

    da linguagem concebida como um sistema gramatical, como uma relao entre

    pronomes colocada em jogo em instncias de discurso, insuficiente. A subjetivao

    nunca pode ser uma operao puramente lingstica. Devemos concordar, aqui, com

    Deleuze e Guattari que a subjetivao nunca um processo puramente gramatical; ela

    surge de um "regime de signos e no de uma condio interna linguagem" e esse

    regime de signos est sempre preso a um agenciamento ou a uma organizao de poder

    (MP2, p. 85-6). A subjetivao, dessa perspectiva, deve referir-se [p.150], antes de tudo,

    no linguagem e s suas propriedades internas, mas quilo que Deleuze e Guattari

    chamam, seguindo Foucault, de um "agenciamento de enunciao". Em A arqueologia

    do saber, Foucault props o termo "modalidades enunciativas" para conceptualizar as

    formas sob as quais a linguagem aparece em espaos e pocas particulares, formas que

    so irredutveis s categorias lingsticas (FOUCAULT, 1986a). Quem pode falar? De

    qual lugar fala? Que relaes esto em jogo entre, de um lado, a pessoa que est falando

    e o objeto do qual ela fala e, de outro, aqueles que so os sujeitos de sua fala? Pode-se

    pensar, aqui, no regime que, em qualquer espao ou poca particular, governa a

    enunciao de um enunciado diagnstico na medicina, uma explicao cientfica em

    biologia, um enunciado interpretativo em psicanlise ou uma expresso de paixo em

    relaes erticas. Essas enunciaes no so colocadas em discurso por meio de "uma

    funo unificante de um sujeito", nem tampouco produzem esse sujeito como uma

    conseqncia de seus efeitos: trata-se, aqui, de uma questo dos "diversos status, dos

    diversos lugares, das diversas posies" que devem ser ocupadas em regimes

  • particulares para que algo se torne dizvel, audvel, opervel: o mdico, o cientista, o

    terapeuta, o amante (FOUCAULT, 1986a, p. 61). Assim, as relaes entre os signos so

    sempre reunidas no interior de outras relaes: "O agenciamento s enunciao, s

    formaliza a expresso, em uma de suas faces; em sua outra face inseparvel, ele

    formaliza os contedos, agenciamento maqunico ou de corpo" (MP2, p. 98). [p.151]

    Dessa perspectiva, a prpria linguagem, mesmo na forma de "fala", aparece

    como um agenciamento de "prticas discursivas", desde contar, listar, fazer contratos,

    cantar, passando pela recitao de preces, at emitir ordens, confessar, comprar uma

    mercadoria, fazer um diagnstico, planejar uma campanha, discutir uma teoria, explicar

    um processo. Essas prticas no habitam domnio amorfo e funcionalmente homogneo

    dc significao e negociao entre indivduos - elas esto localizadas em locais e

    procedimentos particulares, os afectos e as intensidades que os atravessam so pr-

    pessoais, elas so estruturadas em variadas relaes que concedem poderes a alguns e

    delimitam os poderes de outros, capacitam alguns a julgar e outros a serem julgados,

    alguns a curar e outros a serem curados, alguns a falar a verdade e outros a reconhecer

    sua autoridade e a abra-la, aspir-la ou submeter-se a ela.

    Logo retomarei a esse argumento. As a luz do que foi dito at agora, quero

    examinar alguns desenvolvimentos recentes na prpria psicologia, os quais consideram

    a subjetivao em relao linguagem e que buscam explicar o eu em termos de

    "narrativa": as estrias que contamos uns aos outros e a ns prprios.

    "No se trata apenas do fato de que dizemos nossas vidas como estrias: mas

    existe um sentido importante no qual nossas relaes mtuas so vividas de forma

    narrativa" (GERGEN & GERGEN, 1988, p. 18). Para aquelas pessoas que argumentam

    dessa forma, os eus so realmente constitudos no interior da fala. A linguagem, aqui,

    entendida como um complexo de narrativas do eu que nossa [p.152] cultura torna

    disponvel e que os indivduos, utilizam para dar conta de eventos em suas prprias

    vidas, para dar a si mesmos uma identidade no interior de uma estria particular, para

    atribuir significado sua prpria conduta e s condutas de outros em termos de

    agresso, amor, rivalidade, inteno, e assim por diante. Isto , falar sobre o eu tanto

    constitutivo das formas de autoconscincia e de autocompreenso que os seres humanos

    adquirem e exibem em suas prprias vidas quanto constitutivo das prprias prticas

    sociais, na medida em que essas prticas no podem ser levadas a efeito sem certas

    autocompreenses:

  • Em vez de supor que as relaes das pessoas com a natureza e com a

    sociedade so pouco ou nada afetadas pela linguagem no interior da

    qual elas so formuladas, descobrimos que essas mesmas relaes so

    constitudas pelas formas de fala que as inspiram, pelas formas de

    responsabilizao [accountability] pelas quais elas so, por assim

    dizer, mantidas em bom estado... Se nos descobrimos agora como

    vivendo a ns prprios como indivduos autocontidos,

    autocontrolados, no devendo nada a outros por nossa natureza como

    tal, acabamos por supor que esse um estado "natural" ou fixo das

    coisas. Em vez disso, trata-se de uma forma de inteligibilidade

    historicamente dependente, que exige, para sua sustentao

    continuada, um conjunto de compreenses partilhadas. (SHOTTER &

    GERGEN, 1989, p. x)

    A subjetividade e as crenas sobre os atributos do eu, dos sentimentos, das

    intenes, so entendidas aqui como propriedades no de mecanismos [p.153] mentais,

    mas de conversas, de gramticas de fala. Elas so possveis e, ao mesmo tempo,

    inteligveis, apenas em sociedades onde essas coisas podem, apropriadamente, ser ditas

    por pessoas sobre pessoas. "A tarefa da psicologia a de expor nossos sistemas de

    normas de representao... o resto fisiologia" (HARR, 1989, p. 34). As regras de

    "gramtica" que dizem respeito a pessoas ou ao que Wittgenstein chamou de "jogos de

    linguagem" produzem ou induzem um repertrio moral de caractersticas relativamente

    duradouras, as quais so atribudas, nos habitantes de culturas particulares,

    pessoalidade. "Nossa compreenso e nossa experincia de nossa realidade constituda

    para ns, em grande parte, pelas formas pelas quais ns devemos falar em nossas

    tentativas [...] para dar conta dela" (SHOTTER, 1985, p. 168) e devemos falar dessa

    forma porque as exigncias para cumprir nossas obrigaes como membros

    responsveis de uma sociedade particular tm uma qualidade moralmente coerciva.

    Essas noes de constituio das caractersticas da pessoalidade por meio da fala

    so frequentemente consideradas como exigindo uma anlise mais explicitamente

    "dialgica". Uma anlise desse tipo, argumenta-se, poderia, ela prpria, servir como

    uma espcie de crtica de certas formas de falar o eu; a referncia ao indivduo solitrio

    serve, de forma enganadora, para localizar no "eu" aquilo que , na verdade, o produto

    de um conjunto de relaes: "ns falamos dessa forma sobre ns mesmos porque

    estamos presos no interior do que se pode pensar como um 'texto', como um recurso

    textual desenvolvido de forma cultural - o texto do 'individualismo [p.154] possessivo' -

  • para o qual ns, aparentemente, deve-mos (moralmente) nos voltar, quando

    confrontados com a tarefa de descrever a natureza de nossas experincias de nossas

    relaes com os outros e com ns mesmos" (SHOTTER, 1989, p, 136). Procedimentos,

    prticas ou mtodos, histrica e culturalmente desenvolvidos, para a produo de

    sentido, "so colocados nossa disposio como recursos no interior das ordens sociais

    nas quais fomos socializados" (ibidem, p. 143) e ao lanar mo deles e ao us-los em

    seus encontros, as pessoas vm a conhecer a si prprias como pessoas de um tipo

    particular, por meio de um ato de reconhecimento mtuo. A anlise, aqui, toma, pois, a

    forma de uma espcie de "etnografia interacional" das "formas de falar" que so

    utilizadas pelas pessoas ao colocar em ao seus encontros sociais e nos quais elas

    mutuamente constroem-se a si prprias por meio do gerenciamento do sentido.

    Foi esse carter dialgico das autonarrativas, o fato de que elas so "sociais e

    no individuais", que recentemente acabou por se destacar (cf. HERMANS &

    KEMPEN, 1993). Por "social", como j se ter tornado evidente, esses autores querem

    dizer "interpessoal" e "interacional". Assim, Mary e Kenneth Gergen argumentam em

    favor da importncia do que eles chamam de "autonarrativas", estrias sobre os eus

    culturalmente fornecidas, as quais, na passagem por suas vidas, fornecem os recursos

    dos quais os indivduos lanam mo em suas interaes mtuas e com eles mesmos. "As

    narrativas so, na verdade, construes sociais, sofrendo alterao contnua medida

    que a interao avana [...]. A autonarrativa um implemento lingstico construdo

    pelas pessoas, em [p.155] relaes para sustentar, reforar ou impedir uma diversidade

    de aes [...]. As autonarrativas so sistemas simblicos utilizados para propsitos

    sociais tais como justificao, crtica e solidificao social" (GERGEN & GERGEN,

    1988, p, 20-1). Ao organizar, explcita ou implicitamente, suas relaes consigo

    mesmos e com outros em termos dessas narrativas, um eu , por assim dizer, "gerado

    pela estria", com o indivduo escolhendo entre as diferentes formas de narrativa s

    quais foi exposto.

    A "multiplicidade" do eu , aqui, compreendida como uma conseqncia da

    proposio de que "o indivduo aloja a capacidade para uma multiplicidade de formas

    narrativas" e domina uma gama de meios de se tornar inteligvel por meio de narrativas,

    de acordo com as exigncias feitas na negociao da vida social por exemplo, de que a

    pessoa se faa inteligvel como uma identidade duradoura, integral, coerente (GERGEN

    & GERGEN, 1988, p. 35). Mas "embora o objeto da autonarrativa seja um s eu, seria

    um engano ver essas construes como o produto ou a propriedade de eus isolados [...].

  • Ao compreender a relao entre eventos em nossa vida, apoiamo-nos no discurso que

    nasce da troca social e que inerentemente implica uma audincia" (p.37), Trata-se de

    uma socialidade que reforada pelas formas e respostas relacionais que certos modos

    de falar sobre o eu recebem em trocas contnuas entre as pessoas de vrios tipos, nas

    quais os indivduos negociam conjuntamente teorias particulares sobre si mesmos e

    sobre outros, negociaes que assumem, elas prprias, certas formas estoriadas

    culturalmente disponveis. [p.156]

    Esses estudos sobre o eu, que o tomam como sendo construdo em narrativas

    interacionais de acordo com os recursos culturais disponveis, certamente apreendem

    algo de importante. Se a subjetivao analisada em termos das relaes dos humanos

    consigo mesmos, os vocabulrios discursivamente estabelecidos exercem um papel

    importante na composio e recomposio dessas relaes. Mas as anlises conduzidas

    sob os pressupostos do "construcionismo social" so problemticas por causa da viso

    de linguagem que elas sustentam. A linguagem, nessas anlises, vista como "fala",

    como constituda de significados situacionalmente negociados entre indivduos. Como

    "fala", sua anlise segue o modelo banal da comunicao, ou da falta de comunicao,

    na qual as partes envolvidas, os indivduos humanos, utilizam vrios recursos

    lingsticos - palavras, explicaes, estrias, atribuies - para construir mensagens que

    transmitem intenes, ou para mutuamente afetar, persuadir, agir. Essas anlises

    inescapavelmente colocam o agente humano como o ncleo dessas atividades de

    produo de sentido, ao ativamente negociar sua trajetria atravs das teorias

    disponveis a fim de viver uma vida significativa. Portanto, o ser humano entendido

    como aquele agente que se constri a si prprio como um eu ao dar sua vida a

    coerncia de uma narrativa. Evidentemente, o eu, simplesmente em virtude de ser capaz

    de se narrar a "si prprio", em uma variedade de formas, implicitamente reinvocado

    como um exterior inerentemente unificado relativamente a essas comunicaes. Isso nos

    faz lembrar a observao de Nietzsche de que "um pensamento vem quando 'ele' quer e

    no [p.157] quando 'eu' quero [...]. Isso pensa: mas que este 'isso' seja precisamente o

    velho e decantado 'eu' , dito de maneira suave, apenas uma suposio, uma afirmao,

    e certamente no uma 'certeza imediata'" (NIETZSCHE, 1992 [1886], p. 23).

    Entretanto, o que nossos psiclogos radicais invocam , na verdade, o velho e familiar

    eu, aquele reconfortante "eu" da filosofia humanista, que o ator que interage com

    outros em um contexto cultural e lingstico, a pessoa em quem os efeitos de sentido,

    comunicao, assumem sua forma, com todos os pressupostos que o acompanham,

  • pressupostos que afirmam a singularidade e o carter cumulativo do tempo vivido da

    conscincia. Trata-se do eu da hermenutica, do eu da fenomenologia, agora sendo

    postulado aqui como a soluo para o problema de como poderia, ele prprio, constituir

    uma possibilidade.9

    Obviamente, seria absurdo colocar anlise produzida por lingistas como

    Benveniste nesse mesmo campo hermenutico. Seu trabalho refrescante como um

    copo d'gua tomado depois do adocicado humanismo dos "construcionistas sociais",

    exigindo uma ateno mais generosa e produtiva do que a que eu serei capaz de dar

    aqui. hora, entretanto, de questionar toda a tirania da "linguagem", da "comunicao",

    do "significado", desde h muito invocados pelas "cincias sociais", no curso de suas

    pretenses a se distinguirem das "cincias naturais", supostamente em virtude da

    natureza especial de seu objeto. Ao tentar explicar nossa histria e nossa especificidade,

    no para o domnio dos signos, dos significados e das comunicaes que devemos nos

    voltar, mas para a analtica das tcnicas, [p.158] das intensidades, das autoridades e dos

    aparatos. Anlises como as que estive discutindo aqui atribuem coisas demasiadas

    linguagem como comunicao e absolutamente nada linguagem como agenciamento.

    Pode ser "relativamente fcil no dizer mais 'eu', mas sem com isso ultrapassar o regime

    de subjetivao; e inversamente, podemos continuar a dizer Eu, para agradar, e j estar

    em um outro regime onde os pronomes pessoais s funcionam como fices" (MP2, p.

    95). Se a linguagem est organizada em regimes dc significao por meio dos quais ela

    se distribui ao longo de espaos, pocas, zonas e estratos, e se ela est agenciada em

    regimes prticos de coisas, corpos e foras, ento deve-se conceber a "construo

    discursiva do eu" de uma forma bem diferente. Quem fala, de acordo com que critrios

    de verdade, de quais lugares, em quais relaes, agindo sob quais formas, sustentado

    por quais hbitos e rotinas, autorizado sob quais formas, em quais espaos e lugares, e

    sob que formas de persuaso, sano, mentiras e crueldades? Em relao s disciplinas

    psi, esses so precisamente os tipos de questes com que devemos lidar: a emergncia

    de prticas, locais e regimes de enunciao que do poder a certas autoridades para falar

    nossa verdade na linguagem da psique; os regimes que constituem a autoridade por

    meio de uma relao com aqueles que so seus sujeitos como pacientes, analisandos,

    clientes, fregueses; as paisagens, os edifcios, as salas, os arranjos desenhados para esse

    encontros, desde as salas de consulta at as enfermarias dos hospitais; os vetores

    afetivos da compulso, da seduo, do contrato e da converso que fazem a conexo das

    linhas. [p.159]

  • Isto , no se trata de uma questo sobre o que uma palavra, uma sentena, uma

    estria ou um livro "quer dizer" ou o que "significa", mas, antes, sobre "com o que ele

    funciona, em conexo com o que de faz ou no passar intensidades, em que

    multiplicidades ele se introduz e metamorfoseia a sua [multiplicidade] (MP1, p. 12).

    Isso no significa voltar as costas para a linguagem ou para todos os instrutivos estudos

    que tm sido conduzidos sob os auspcios de uma certa noo de "discurso" ou que tm

    desenvolvido a analtica da retrica. Mas significa sugerir que essas anlises so mais

    instrutivas quando se focalizam no no que a linguagem significa, mas no que ela faz:

    que componentes de pensamento ela coloca em conexo, que vnculos ela desqualifica,

    o que capacita os humanos a imaginar, a diagramar, a fantasiar uma determinada

    existncia, a se reunirem em um agenciamento: os sexos com seus gestos, formas de

    andar, de vestir, de sonhar, de desejar; as famlias com suas mes, seus papais, seus

    bebs, suas necessidades e suas desiluses; as mquinas de curar com seus mdicos e

    pacientes, seus rgos e suas patologias; as mquinas psiquiatras com suas arquiteturas

    reformatrias, suas grades de diagnstico, sua mecnica de invenes e suas noes de

    cura.10

    Em qualquer circunstncia, devemos reconhecer que a linguagem no , de

    forma alguma, primria na produo de pessoas. Em primeiro lugar, a linguagem ,

    obviamente, mais que apenas "fala" - da a importncia, que bem reconhecida, da

    inveno da escrita pela qual os humanos so capazes de se tornar "mquinas

    escreventes" por meio do [p.160] treinamento da mo e do olho; por meio da fabricao

    de instrumentos tais como os estilos, os pincis, as penas; por meio de um certo

    conjunto de hbitos corporais; por meio de um modo de compor e decifrar; por meio de

    uma relao com a superfcie mais ou menos transportvel de inscrio. Ao escrever, o

    ser humano torna-se capaz de novas coisas: fazer listas; enviar mensagens; acumular

    informao, a partir de locais distantes, em um nico lugar e em um nico plano; e de

    comparar, tabular mudanas, diferenas e similaridades, estendendo novas linhas de

    fora (GOODY & WATT, 1968; GOODY; 1977, p. 52-111; ONG, 1982). A inveno

    da imprensa torna possvel a generalizao de "mquinas de leitura" e uma variedade de

    novas coisas se torna pensvel: novas formas de compreender o lugar dos humanos em

    uma cosmologia, por meio de clculo dos movimentos dos corpos celestes, por

    exemplo, ou novas formas de praticar a espiritualidade em relao ao "livro sagrado"

    (EISENSTEIN, 1979). A inveno de tcnicas por meio das quais os humanos

    desenvolvem a capacidade de calcular torna, similarmente, os humanos capazes de

  • novas coisas, disciplina o pensamento e as auto-relaes de uma forma distintiva

    (previso e prudncia, por exemplo, quando se calcula a situao financeira futura na

    forma de um oramento) e similarmente dependente de tcnicas e aparatos -

    agenciamentos maquinados nos quais as foras do humano so criadas e estabilizadas

    (CLINE-COHEN, 1982; cf. ROSE, 1991).

    Plato, como bem sabido, expressou reservas srias escrita, concebendo-a

    no apenas como inferior palavra falada, "escrita na alma do ouvinte [p.161] para

    capacit-lo a aprender sobre o certo, o bem e o bom", mas tambm como destrutiva das

    artes da retrica e da memria (PLATO, Fedro, 278a). Mas a memria no deveria ser

    contraposta escrita como algo imediato, natural, como uma capacidade psicolgica

    universal, mas vista em termos daquilo que Nietzsche chamou de "mnemnica"

    (NIETZSCHE, 1998 [1887], p. 51; cf. GROSZ, 1994, p. 131).5 Esse termo refere-se aos

    aparatos pelos quais se "marca a ferro em brasa" o passado em si prprio, tornando-o

    disponvel como uma advertncia, um consolo, um aparato de negociao, uma arma ou

    uma ferida. "Jamais deixou de haver sangue, martrio e sacrifcio quando o homem

    sentiu a necessidade de criar em si uma memria" (NIETZSCHE, 1998, p. 51). As

    preocupaes de Nietzsche so com as variedades histricas de punio cruel, como

    exemplos do preo pago pelos seres humanos para faz-los superar seu esquecimento e

    "reter na memria cinco ou seis 'no quero' [...] a fim de viver os benefcios da

    sociedade" (p. 52). No se trata de uma questo, para meus propsitos, da validade das

    asseres genealgicas especficas de Nietzsche - elas so certamente problemticas.

    Mas a noo de mnemnica abre um campo muito importante de investigao para o

    agenciamento de sujeitos. Frances Yates mostrou, de forma convincente, que a memria

    pode ser entendida como uma arte ou uma srie de tcnicas inculcadas na forma de

    procedimentos particulares: uma arte que foi revivida e ampliada na Idade Mdia e

    envolvia tcnicas tais como a inveno de lugares ou espaos nos quais itens de saber

    ou experincia eram "colocados" e que poderiam ser "recuperados" pelo [p.162] sujeito

    ao fazer um passeio imaginrio atravs deles (YATES, 1966; cf. HIRST & WOOLEY,

    1982, p. 39). As prticas da pedagogia tm, obviamente, inventado toda uma gama de

    outras tcnicas de memria, buscando inculc-las nas salas de aula, tendo proliferado ao

    longo da experincia de quase todos os humanos contemporneos e tendo sido das

    prprias alimentadas pelas disciplinas psi. Mas reconhecer o xito tcnico e prtico da

    memria apenas um primeiro passo: essas tcnicas da memria no so limitadas pelo

    envelope da pele do sujeito e muito menos pelo volume de seu crebro. No apenas os

  • golpes, a tortura, os sacrifcios que Nietzsche descobre como constituindo as razes

    impuras de nossos aparentemente blsamos morais puros, mas tambm juramentos,

    rituais, canes, escritas, livros, gravuras, bibliotecas, dinheiro, contratos, dvidas,

    edifcios, projetos de arquitetura, a organizao do tempo e do espao: tudo isso - e

    muito mais - estabelece a possibilidade de que um passado mais ou menos imaginrio

    possa ser re-evocado, no presente ou no futuro em locais particulares. Isto , a memria

    , ela prpria, agenciada. A memria que temos de ns prprios como um ser com uma

    biografia psicolgica, uma linha de desenvolvimento da emoo, do intelecto, da

    vontade, do desejo, produzida por meio dos lbuns de fotografia de famlia, a

    repetio ritual de estrias, o dossi real ou "virtual" dos boletins escolares, a

    acumulao de artefatos e a imagem, o sentido e o valor que lhes so vinculados.

    As disciplinas psi, obviamente, tm adotado e desenvolvido as tecnologias da

    memria desde ao menos a poca de Mesmer e tm-se envolvido em [p.163] toda uma

    histria de competio sobre o status das memrias assim produzidas (MESMER,

    [1799] 1957), A memria foi central s concepes de "desordem nervosa" antes que

    Freud anunciasse que a histrica sofria de reminiscncias e levantasse a possibilidade de

    que a memria podia no distinguir entre experincia e fantasia. Por pelo menos um

    sculo, as asseres das disciplinas psi sobre a memria tm sido controversas

    precisamente porque as memrias em questo pareciam ser o produto de suas

    "tecnologias" no-naturais - das quais a hipnose e a associao livre constituam apenas

    dois exemplos. As dificuldades contemporneas da mnemotcnica psi so

    exemplificadas naquilo que se poderia chamar de "crise de memria" em torno da

    produo, por meio das tecnologias da psicoterapia, das anteriormente ausentes

    memrias da violncia contra crianas - "memrias falsas", "memrias recuperadas.6

    As disputas sobre essa questo revelam, ao menos em parte, a dificuldade de reconhecer

    que aquilo que lembrado s o por meio do envolvimento dos humanos com as

    tecnologias da memria. Certas dessas tecnologias, que continuam estranhas e malignas

    a muitas culturas, tem sido "naturalizadas" em nossa prpria cultura - espelhos, retratos,

    inscries durveis (por exemplo, dirios, cartes de aniversrio e cartas, que servem de

    "substitutos" para eventos passados mas "no esquecidos"), romances narrativos,

    fotografias, agora talvez o vdeo da gravidez de nossa me e o momento de nosso

    nascimento. Muitas daquelas tecnologias inventadas na genealogia das disciplinas psi -

    embora, surpreendentemente no sejam aparatos [p.164] de memrias tais como a

    "histria de caso" da medicina - continuam tendo um status problemtico, ainda no

  • naturalizado, mas mesmo assim so vistas como suspeitas por causa de sua associao

    com a tecnologia aparentemente antinatural que as fizeram nascer. Mas me possvel

    ser "uma-pessoa-com-memria" to-somente em virtude de eu "ter-entrado-em-

    composio" com esses elementos heterogneos - a memria, no sentido em que faz

    uma diferena nas formas pelas quais os humanos agem e se relacionam consigo

    mesmos, uma propriedade de "mquinas de lembrar".

    A memria, a habilidade de clculo, a escrita simplesmente exemplificam o fato

    de que as anlises da linguagem que se centram na questo do significado concedem

    demasiada autonomia semntica e sinttica e do muito pouca ateno s prticas

    situadas que intimam, inscrevem, incitam, certas relaes da pessoa consigo mesma.

    Elas ignoram os aparatos de inscrio, desde livros de estria, tabelas, grficos, listas e

    diagramas, at vitrais e fotografias, desenho de salas e peas de equipamento, tais como

    aparelhos de televiso e foges. Esses aparatos consumem tecnologias culturais que

    funcionam como formas de codificar, estabilizar e intimar "seres humanos. Eles vo

    alm do envelope da pessoa, perduram em locais, prticas, rituais e hbitos particulares

    e no esto localizados em pessoas particulares, nem so intercambiados de acordo com

    o modelo da comunicao.

    Assim, embora as linguagens, os vocabulrios e as formas de julgamento sejam,

    indubitavelmente, de imensa importncia em intimar e estabilizar certas [p.165] relaes

    da pessoa consigo mesma, eles no deveriam ser entendidos como sendo primariamente

    intencionais e interacionais. Aquilo que torna qualquer intercambio particular possvel

    surge de um regime de linguagem, o qual est alojado em prticas que apreendem o ser

    humano sob variadas formas, que inscrevem, organizam, moldam e exigem a produo

    da fala - mdica, legal, econmica, ertica, domstica, espiritual. Mas essa referncia s

    prticas e aos agenciamentos dos quais a linguagem faz parte chama a ateno para

    outra das inescapveis debilidades das estrias "psicolgicas" do eu narrado. Quando a

    linguagem, nessas explicaes, vista como algo situado, ela o apenas ao modo

    wittgensteiniano vago de "formas de vida", nas quais a "responsabilizao"

    [accountability] funciona para tornar possveis as aes. Essas disponveis referncias a

    formas de vida so pouco adequadas tarefa. O que precisa ser analisado o modo da

    relao consigo mesmo que intimado nas prticas e nos procedimentos, nos vnculos,

    nas linhas de fora e nos fluxos definidos que constituem pessoas e as atravessam e as

    circundam em maquinaes particulares de fora - para trabalhar, para curar, para

    reformar, para educar, para trocar, para desejar, no apenas para responsabilizar

  • [accounting] mas para manter como responsabilizvel. No se trata de um apelo por

    uma localizao mais delicada e sutil da comunicao "em seu contexto social", mas por

    uma rejeio da forma binria que separa a linguagem de seu contexto apenas para

    reinseri-la contextualmente em um mundo que reduzido a uma espcie de pano de

    fundo cultural para o significado. [p.166]

    Uma vez tecnicizadas, maquinadas e localizadas em lugares e prticas, emerge

    uma imagem diferente do processo de "construo de pessoas". As pessoas funcionam,

    aqui, como uma forma inescapavelmente heterognea, como arranjos cujas capacidades

    so fabricadas e transformadas por meio de conexes e ligaes nas quais elas so

    apreendidas em locais e espaos particulares. No se trata, portanto, de um eu que

    emerge por meio da narrao de estrias, mas, antes, de examinar o agenciamento de

    sujeitos: de sujeitos combatentes em mquinas de guerra, de sujeitos laborais em

    mquinas de trabalho, de sujeitos desejantes em mquinas de paixo, de sujeitos

    responsveis nas variadas mquinas da moralidade. Em cada caso, a subjetivao em

    questo no um produto nem da psique nem da linguagem, mas de um agenciamento

    heterogneo de corpos, vocabulrios, julgamentos, tcnicas, inscries, prticas.

    ANATOMIAS IMAGINRIAS

    Sugeri, anteriormente, que podemos produzir mais em termos de inteligibilidade

    se consideramos a questo da subjetivao menos em termos de que tipo de sujeito

    produzido - um eu, um indivduo, um agente - e mais em termos daquilo que os

    humanos so capacitados a fazer por meio das formas pelas quais eles so maquinados

    ou compostos. Aquilo que os humanos esto capacitados a fazer no intrnseco

    carne, ao corpo, psique, mente ou alma: est constantemente deslocando-se e

    mudando de lugar para lugar, de poca para poca, [p.167] com a ligao dos humanos

    a aparatos de pensamento e ao - desde a mais simples conexo entre um rgo (ou

    uma parte do corpo) e outro em termos de uma "anatomia imaginria" at aos fluxos de

    fora tornados possveis pelas ligaes de um rgo com uma ferramenta, com uma

    mquina, com partes de outro ser humano ou de outros seres humanos, em um espao

    montado tal como um quarto de dormir ou uma sala de aula. Dessa perspectiva, as

    questes a serem tratadas tm a ver no com a "constituio do eu", mas com as

    ligaes estabelecidas entre, de um lado, o humano e, de outro, outros humanos,

    objetos, foras, procedimentos, as conexes e fluxos tornados possveis, as capacidades

  • e os devires engendrados, as possibilidades assim impedidas, as conexes maqunicas

    formadas, que produzem e canalizam as relaes que os humanos estabelecem consigo

    mesmos, os agenciamentos dos quais eles formam elementos, condutos, recursos ou

    foras (cf. GROSZ, 1994, p. 165; MP1, p. 91).

    Ao pensar dessa forma, podemos ler ao contrrio, por assim dizer, os muitos e

    recentes textos que buscam fundamentar sua analtica de relaes de poder e formas de

    saber sobre "o corpo". A corporeidade humana, como muitas vezes se sugere, pode

    fornecer a base para uma teoria da subjetivao, da constituio dos desejos, das

    sexualidades e das diferenas sexuais, dos fenmenos de resistncia e agncia. Os seres

    humanos so, afinal, como afirmam esses argumentos, corporificados, a despeito de

    todas as tentativas dos filsofos, desde o Iluminismo, para descrev-los como criaturas

    de razo e para afirmar que essa capacidade para raciocinar afasta os [p.168] humanos -

    ou ao menos os humanos masculinos - quase que inteiramente de suas caractersticas

    como criaturas. E embora aceitando que a corporeidade no d qualquer forma essencial

    ou estvel subjetividade, como poderamos negar a assero dessas anlises de que

    sobre esse material bruto do "corpo" que a cultura trabalha sua constituio da

    subjetividade? Embora abjurando todas as formas de essencialismo, como poderamos

    discordar da assero de que as formas da subjetividade so irrecuperavelmente

    marcadas pela facticidade biolgica de corpos sexuados, de corpos infantis que so

    incapazes de automanuteno, de todos os corpos que comem, bebem, copulam,

    defecam, deterioram e morrem (por exemplo, BUTLER, 1990,1993). Essa ambivalncia

    est resumida na assero de Braidotti de que "o ponto de partida para as redefinies

    feministas da subjetividade uma nova forma de materialismo que coloca nfase na

    estrutura corporificada e, portanto, sexualmente diferenciada, do sujeito falante"

    (1994a, p. 199, nfase minha). E tal a aparente compulso de uma tal forma de pensar

    que mesmo uma escritora antinaturalista como Elizabeth Grosz, que quer questionar

    todos os essencialismos e todos os binarismos, sugere que "o corpo" o material sobre o

    qual a cultura, a histria e a tcnica escrevem e, portanto, "a bifurcao de corpos

    sexuados um universal cultural irredutvel" (GROSZ, 1994, p. 160).

    Mas "o corpo" , ele prprio, um fenmeno histrico. Nossa presente imagem

    dos lineamentos e da topografia do "corpo" - seus rgos, processos, fluidos vitais e

    fluxos - o resultado de uma histria [p.169] cultural, cientfica e tcnica particular. As

    propriedades do corpo - andar, sorrir, cavar, nadar - no so propriedades naturais mas

    conquistas tcnicas (MAUSS, 1979a). Mesmo o carter aparentemente natural dos

  • limites e das fronteiras do corpo, que parece definir como que inevitavelmente a

    coerncia de uma unidade orgnica, um fato recente e pertence a uma cultura

    especfica (FOUCAULT, 1994; cf. GROSZ, 1994, sobre a histria da noo de

    "imagem do corpo"). E quanto aos "dois sexos", h tantos estudos histricos mostrando

    quo diversa essa aparentemente imutvel diviso, que trabalhos intelectuais

    estiveram implicados em estabiliz-la na forma da natureza duplicada do corpo

    masculino e do corpo feminino, em fazer de nosso desejo sexual nosso desejo secreto,

    conectando prazer, sexo, vontade, saber, reproduo e companheirismo em uma

    "sexualidade ciborgue" que acabamos por habitar como sendo nossa verdade (por

    exemplo, FEHER, NADAFF & TAZI, 1989; LAQUEUR, 1990; BROWN, 1989; cf.

    VALVERDE, 1995, sobre nossa fabricao como sujeitos sexualmente desejantes). Da

    que grande parte da recente nfase, na escrita feminista, sobre o corpo e sobre a

    corporificao, conserva a prpria analtica que busca subverter, deslocando a

    normalizao "iluminista" das propriedades da razo e da abstrao, ao simplesmente

    inverter o velho tropo de que as mulheres so mais corpreas, mais carnais, mas

    retendo, entretanto, a carne como a perspectiva governante da razo feminista. Mas os

    corpos so sempre "corpos pensados" ou "corpos-pensamento": algum dia, talvez, ns

    viremos a olhar retrospectivamente para o "sexo-pensamento-corpo" [p.170] que tanto

    tem afetado nosso prprio sculo, nossa prpria repetitiva e cansativa ansiedade sobre

    nossos corpos sexuais, nossos compromissos com a diferena de gnero que nos marca

    to indelevelmente, as foras transgressivas e os poderes restauradores do sexual e tudo

    o resto, com um certo deleite perverso (cf. FOUCAULT, 1985a).

    Abandonemos, pois, esse "carnalismo" do corpo de uma vez por todas. 10

    O

    corpo muito menos unificado, muito menos "material" do que costumamos pensar.

    possvel, pois, que no exista essa coisa de "o corpo": um envelope limitado que pode

    ser revelado para conter no seu interior uma profundidade e um conjunto de operaes

    que funcionem maneira de uma lei. Deveramos estar preocupados no com corpos,

    mas com as ligaes estabelecidas entre superfcies, foras e energias particulares. Em

    vez de falar de "o corpo", precisaramos analisar apenas como um particular "regime de

    corpo" foi produzido, descrevendo a canalizao de processos, rgos, fluxos, conexes,

    bem como o alinhamento de um aspecto com outro. Em vez de "o corpo", tem-se, pois,

    uma srie de "mquinas" possveis, agenciamentos - de dimenses variadas - de

    humanos com outros elementos e materiais: conectados a livros para formar uma

    mquina literria, a ferramentas para formar uma mquina de trabalho, a bens para

  • formar uma mquina de consumo... O corpo , pois, "no uma totalidade orgnica que

    capaz de expressar globalmente a subjetividade, uma concentrao das emoes,

    atitudes, crenas ou experincias do sujeito, mas um agenciamento de rgos,

    processos, prazeres, paixes, [p.171] atividades, comportamentos, ligados por tnues

    linhas e imprevisveis redes a outros elementos, segmentos e agenciamentos" (GROSZ,

    1994, p. 120). E os prprios rgos so "tcteis": o olho, o nariz, o ouvido, o tato,

    renem pensamento e objeto em sensuais relaes de contato, troca e interpenetrao,

    criando uma multiplicidade de novos sentidos atravs de cada qual "reluzem momentos

    de conexo mimtica, simultaneamente corporificados e mentalizados, simultaneamente

    individuais e sociais" (TAUSSIG, 1993, p. 23; embora o argumento seja de Taussig, ele

    est discutindo aqui o trabalho de Walter Benjamin).

    Nosso regime de corporeidade deveria, assim, ele prprio, ser "isto como a

    resultante instvel dos agenciamentos nos quais os humanos so surpreendidos,

    induzindo uma certa relao consigo mesmos como corporificados; tornando o corpo

    organicamente unificado, atravessado por processos vitais; diferenciando - hoje por

    meio do sexo, em grande parte de nossa histria por meio da "raa"; dando-lhe uma

    certa profundidade e um certo limite; equipando-o com uma sexualidade estabelecendo

    as coisas que ele pode e no pode fazer; definindo sua vulnerabilidade em relao a

    certos perigos; tornando-o praticvel a fim de amarr-lo a prticas e a atividades (sobre

    "o corpo da mulher", ver, por exemplo, LAQUEUR, 1990, DUDEN, 1991; sobre o

    corpo racializado, ver GILMAN, 1985). A questo de Deleuze, que para ele era a

    questo de Spinoza '' De que um corpo capaz?'' (o que ele pode fazer; que afectos ele

    pode ter; como esses afectos reforam, enfraquecem, capacitam-no de diferentes

    formas; como o multiplicam; como o [p.172] metamorfoseiam?) um ponto de partida

    (DELEUZE, 1992b, cap. 14). Mas isso apenas na medida em que concordemos que um

    corpo no "o corpo", mas apenas uma relao particular, capaz de ser afetada de

    formas particulares. Trata-se de uma questo de rgos, de msculos, de nervos, de

    aparelhos que so, eles prprios, enxames de clulas em troca constante entre si, ligando

    e separando, morrendo, reconfigurando, conectando e combinando, onde o lado de fora

    de um , simultaneamente, o lado de dentro de outro. Trata-se tambm de uma questo

    de crebros, hormnios, molculas qumicas, que conectam e transformam as

    capacidades das vrias partes - excitando-as, coordenando-as, fundindo-as ou

    desligando-as.

  • Esses agenciamentos no so delineados pelo envelope da pele, mas ligam o

    "lado de fora" e o "lado de dentro" - vises, sons, aromas, toques, colees - juntando-os

    com outros elementos, maquinando desejos, afeces, tristeza, terror e at mesmo

    morte. Consideremos as variadas maquinaes das quais o corpo capaz: a coragem do

    guerreiro na batalha, a ternura ou a violncia do amante, a resistncia do prisioneiro

    poltico sob tortura, as transformaes efetuadas pelas prticas da ioga, a experincia da

    morte vodu, as capacidades de transe que tornam os rgos capazes de suportar

    queimaduras ou de recuperar-se de feridas. No se trata de propriedades de "o corpo",

    mas de maquinaes do "corpo pensado", cujos elementos, rgos, foras, energias,

    paixes, temores so reunidos por meio de conexes com palavras, sonhos, tcnicas,

    cantos, hbitos; julgamentos, armas, ferramentas, grupos. [p.173]

    Isso no significa sugerir que os humanos possam ser anjos, que possam voar

    pelas janelas ou que possam movimentar-se como minhocas, mas que apelos

    "materialistas corporeidade como o "material" sobre o qual a cultura trabalha no so

    coisas "boas para pensar". Os corpos so capazes de muita coisa, em virtude, ao menos

    em parte, de "serem pensados" e ns no sabemos os limites do que essas mquinas-

    corpo-pensamento so capazes.11

    Se nos tornamos criaturas psicolgicas no foi por

    causa do carter dado de um interior, nem por causa dos significados de uma cultura,

    mas por causa das formas pelas quais, em tantos locais e prticas, os vetores psi

    acabaram por atravessar e por ligar essas maquinaes.

    Duas metforas para as maquinaes dos corpos-sujeito foram recentemente

    propostas: performatividade e inscrio. Judith Butler props a noo de

    performatividade ao desenvolver uma anlise da construo da "identidade de gnero"

    que no supe qualquer sujeito essencial ou pr-dado situado por detrs de suas aes.

    Para Butler, no precisamos "nenhuma teoria da identidade de gnero por detrs de

    expresses de gnero..." a identidade performativamente constituda pelas prprias

    'expresses' que se supe ser seus resultados" (BUTLER, 1990). Sua noo de

    performatividade baseia-se, aqui, em Austin e Derrida, para argumentar que o gnero

    o resultado de atos performativos. "Um ato performativo aquele que faz nascer ou

    coloca em ao aquilo que nomeia, marcando, assim, o poder constitutivo ou produtivo

    do discurso...Para que um performativo funcione, ele deve basear-se e [p.174] recitar

    um conjunto de convenes lingsticas que tm tradicionalmente funcionado para

    assegurar ou implicar certos tipos de efeitos" (BUTLER, 1995, p. 134). O gnero ,

    pois, uma fantasia "instituda e inscrita na superfcie de nossos corpos", constitudo por

  • meio dos efeitos de significao engendrados pelas perfomances da linguagem (1990, p.

    136). Mas essa noo de performatividade limita-se a si prpria ao manter a nfase no

    lingstico. Consideremos este argumento sobre a performance da feminilidade, o qual

    devo a Susan Bordo (BORDO, 1993, p. 19):12

    Sente-se em uma cadeira reta. Cruze suas pernas na altura dos

    tornozelos e mantenha seus joelhos pressionados um contra o outro.

    Tente fazer isso enquanto est conversando com algum, mas tente o

    tempo todo manter seus joelhos fortemente pressionados um contra o

    outro...Corra uma certa distncia, mantendo seus joelhos juntos. Voc

    descobrir que ter que dar passos curtos, altos...Ande por uma rua da

    cidade...Olhe, em direo reta, para a frente. Toda vez que um homem

    passar por voc, desvie seu olhar e no mostre nenhuma expresso no

    rosto.

    "Transformar-se em uma pessoa 'dotada' de gnero", como reconhece Butler,

    juntamente com muitas outras pessoas, significa seguir uma prescrio meticulosa e

    continuamente repetida da conduta, da aparncia, da fala, do pensamento, da vontade,

    do intelecto, na qual as pessoas so reunidas em uma montagem no apenas ao serem

    conectadas com os vocabulrios mas tambm com regimes de conduta [p.175] (andar,

    olhar, fazer gestos), com artefatos (roupas, sapatos, maquiagem, automveis, panelas,

    instrumentos para escrever, livros), com espaos e lugares (salas de aula, bibliotecas,

    estaes de trem, museus) e com os objetos que os habitam (mesas, cadeiras, livros,

    plataformas, vitrines). A performatividade, ao menos no sentido do modelo da

    enunciao lingstica, em que definida em termos de citaes e convenes, uma

    imagem bastante enganadora para pensar esse processo de montagem da pessoa:

    necessrio insistir que ns no somos "constitudos pela linguagem".

    Tampouco suficiente uma imagem lingstica diferente, a da escrita ou da

    inscrio. Essa noo utilizada tanto por Butler quanto por Grosz para descrever a

    relao entre, por um lado, o corpo e suas superfcies (concebidos como marcados,

    inscritos, gravados) e, por outro, "o traado de textos pedaggicos, jurdicos, mdicos e

    econmicos, de leis e prticas na carne a fim de entalhar um sujeito social como tal, um

    sujeito capaz de trabalho, de produo e manipulao, um sujeito capaz de agir como

    um sujeito e, ao mesmo tempo, capaz de ser decifrado, interpretado, compreendido"

    (GROSZ, 1994, p. 117). Em vez de pensar em uma analtica da inscrio, na qual a

    cultura seria escrita na carne, considero ser mais til pensar em termos de tecnologia.

  • Na verdade, como sugeri, a linguagem, a escrita, a memria podem ser, elas prprias,

    vistas como elementos de uma tcnica, cada uma delas implicando verdades, tcnicas,

    gestos, hbitos, aparatos, reunidos, por meio do treinamento, em uma montagem, e

    inseridos em associaes mais ou menos [p.176] durveis. Poderemos compreender

    melhor as prticas de subjetivao se as concebermos em termos das complexas

    interconexes, tcnicas e linhas de fora que se estabelecem entre componentes

    heterogneos, incitando, tornando possvel e estabilizando relaes particulares conosco

    mesmos, em locais e lugares especficos. As tecnologias da subjetivao so, pois, as

    maquinaes, as operaes pelas quais somos reunidos, em uma montagem, com

    instrumentos intelectuais e prticos, componentes, entidades e aparatos particulares,

    produzindo certas formas de ser-humano, territorializando, estratificando, fixando,

    organizando e tornando durveis as relaes particulares que os humanos podem

    honestamente estabelecer consigo mesmos.

    No existe nenhuma necessidade de supor qualquer "meio de propulso" por

    detrs de todas essas tecnologias, nem qualquer fora ou desejo primordial que circule

    por esses agenciamentos, fazendo com que seja possvel que eles se movam, ajam,

    mudem, resistam, sofram mutaes. A assim chamada "questo da agncia" coloca um

    falso problema. Para dar conta da capacidade para agir no precisamos de nenhuma

    teoria do sujeito que seja anterior e que resista quilo que a apreenderia - tais

    capacidades para a ao surgem dos regimes e tecnologias especficos que maquinam os

    humanos de variadas formas (nesse caso estou de acordo com BUTLER, 1995, p. 136).

    A heterogeneidade dessas prticas e tcnicas - seus mltiplos conflitos, divergncias,

    interconexes e alianas, as diferentes promessas que elas fazem e as variveis

    exigncias que elas representam para o ser humano - podem produzir todos [p.177] os

    efeitos de resistncia, apropriao, utilizao, transformao e transgresso que os

    tericos do ps-moderno tm ressaltado, sem a necessidade de invocar uma concepo

    unificante de "agncia humana". Para diz-lo de outra forma, a agncia , ela prpria,

    um efeito, um resultado distribudo de tecnologias particulares de subjetivao, as quais

    invocam os seres humanos como sujeitos de um certo tipo de liberdade e fornecem as

    normas e tcnicas pelas quais aquela liberdade deve ser reconhecida, agenciada e

    exercida em domnios especficos. Na verdade, as disciplinas psi tiveram, ao longo do

    sculo passado, um papel bastante particular na criao das condies para a

    emergncia da nossa capacidade de nos relacionar conosco mesmos como certo tipo de

    gente - como "personagens", por exemplo, com funes nervosas, as quais, quando

  • moldadas pelo efeito do hbito e da influncia sobre a constituio da pessoa, produzia

    a impulsividade ou o controle, dependendo do caso: se a pessoa era homem ou mulher,

    amo ou ama, trabalhador temporrio, funcionrio ou servo (cf. SMITH, 1992, cap. 1);

    ao longo do sculo XX, como "personalidades" como um tipo que estava em posse de

    certos traos, manifestados nas formas pelas quais a pessoa reagia experincia,

    expressava seus sentimentos e se associava a artefatos, gostos, formas de vestir, estilos

    de gesticulao e expresso; na segunda metade do sculo XX, como "agentes livres" de

    escolha e autodesenvolvimento, em guerra contra todas as mquinas que nos

    maquinariam como bons sujeitos da burocracia e do conformismo, que diminuiriam

    [p.178] nossa auto-estima e impediriam nosso autodesenvolvimento.

    Para nossa prpria cultura, a agncia , obviamente, parte de uma "experincia"

    de internalidade - ela parece acumular-se e emergir de nossas profundidades, de nossos

    instintos, desejos ou aspiraes interiores. No h dvida de que nem sempre foi assim.

    A clssica interpretao da Ilada e da Odissia, feita por E. A. Dodds, sugere que a

    descrio homrica dos humanos mais do que uma questo de conveno esttica: os

    humanos, para Homero, eram agenciamentos dispersas, cujos elementos eram a psyche

    (alma), a thumos (vontade) e o noos (intelecto), cada um deles com seu modo

    independente de operao. A ao era entendida no em termos de qualquer faculdade

    interna da agncia, mas em termos de foras tais como ate, que obrigavam a pessoa a

    um curso particular de ao, por meio da interveno dos deuses, das deusas do Destino,

    das Frias, de sonhos e vises (DODDS, 1973; cf. HIRST E WOOLLEY, 1982). Esses

    exemplos poderiam, obviamente, ser multiplicados: os poderes explicativos das vozes

    das deidades ou dos demnios, os efeitos motivadores dos xams e dos rituais, e mais

    prximo de ns, talvez, as conseqncias das multides ou bandos em arrebatar o

    indivduo em um novo e multicfalo agente com uma nica - ainda que maligna -

    vontade. A agncia , sem dvida, uma "fora", mas uma fora que surge no de

    qualquer propriedade essencial de "o sujeito", mas das formas pelas quais os humanos

    tm se reunido em um agenciamento.

    ALMAS DOBRADAS

    Se hoje vivemos nossas vidas como sujeitos psicolgicos que vemos como sendo

    a origem de nossas aes, se nos sentimos obrigados a nos colocar a ns prprios com

    sujeitos com uma certa e desejada antologia, uma vontade de ser, isso se deve s formas

  • pelas quais relaes particulares do exterior tm sido invaginadas, dobradas, para

    formar um lado de dentro ao qual um lado de fora deve sempre fazer referncia. Uma

    vez mais, Deleuze quem refletiu mais instrutivamente sobre uma filosofia da dobra

    (DELEUZE, 1992a, 1992b, veja especialmente o uso dessa noo em sua discusso da

    subjetivao em seu livro sobre Foucault: DELEUZE, 1988, p. 94-123). "O que

    importa, sempre, dobrar, desdobrar, redobrar" (DELEUZE, 1992, p. 137). O conceito

    de dobra pode fazer surgir um diagrama generalizvel para pensar as relaes, as

    conexes, as multiplicidades e as superfcies - sua formao de profundidades,

    singularidades, estabilizaes. Esse diagrama da dobra descreve uma figura na qual o

    lado de dentro, o subjetivo, , ele prprio, no mais que um momento, ou uma srie de

    momentos, por meio do qual uma "profundidade" foi constituda no ser humano. A

    profundidade e sua singularidade no so, pois, mais do que aquelas coisas que foram

    escavadas para criar um espao ou uma srie de cavidades, plissados e campos que s

    existem em relao quelas mesmas foras, linhas, tcnicas e invenes que as

    sustentam.

    As linguagens, as tcnicas, os locais institucionais e as relaes enunciativas da

    medicina clnica [p.180] introduziram dobras profundas no corpo, o lado de dentro do

    lado de fora, o lado de dentro como uma operao do lado de fora, como sugere Deleuze

    em sua discusso da arqueologia que Foucault faz do olhar clnico. Ou, de novo, em

    relao s tcnicas ticas introduzidas pelos gregos, essas devem ser entendidas "no

    sentido de que a relao consigo adquire independncia. como se as relaes do lado

    de fora se dobrassem, se curvassem para formar um forro e deixar surgir uma relao

    consigo, constituir um lado de dentro que se escava e desenvolve segundo uma

    dimenso prpria" (DELEUZE, 1991, p. 107). Uma vez que essa nova dimenso tenha

    sido estabelecida, o sujeito agenciado/montado de novas formas, em termos de um

    problema de "autodomnio", fazendo com que incida sobre si mesmo - aquele lado de

    dentro atuando sobre si mesmo - o poder que fazemos incidir sobre outros. Nesse

    mesmo processo, o poder que se faz incidir sobre os outros reconfigurado como uma

    relao de poder entre o lado de dentro da gente e o lado de dentro do outro.

    Esse lado de dentro singularizado e dobrado , assim, inevitavelmente

    estabilizado, no em relao a um domnio de processos psicolgicos, mas em relao a

    uma configurao de foras, corpos, edifcios e tcnicas que o mantm no lugar. Para os

    gregos, isso compreendia todo o aparato de formao tica estabelecido na cidade, as

    relaes de famlia, os tribunais, os jogos de poder e de lazer e as relaes erticas por

  • meio dos quais aqueles vares que exerciam o poder eram agenciados. "Eis o que

    fizeram os gregos: dobraram a fora, sem que ela deixasse de ser fora. Eles a

    relacionaram consigo [p.181] mesma. Longe de ignorarem a interioridade, a

    individualidade, a subjetividade, eles inventaram o sujeito, mas como uma derivada,

    como o produto de uma 'subjetivao'" (DELEUZE, 1991, p. 108). Essa relao consigo

    mesmo, esse dobramento que produz os efeitos de subjetivao, no algo passivo. De

    novo, como observa Deleuze, ela criada apenas ao ser praticada, ao ser levada a

    efeito, ao se envolver com as tcnicas de governo do corpo e de controle da dieta, com

    as tcnicas de sexualidade, com os estilos de jogo e esporte, com a oratria e a

    exposio em pblico... Embora tivessem inventado uma formulao particular dessa

    dimenso "da relao do ser consigo mesmo", os gregos no foram, de forma alguma,

    os ltimos - nem provavelmente os primeiros - a faz-lo; em vez disso, o que eles

    exemplificam uma forma particular de uma relao mais geral, uma relao na qual a

    subjetivao sempre uma questo de dobramento. O humano no nem um ator

    essencialmente dotado de agncia, nem um produto passivo ou um marionete de foras

    culturais; a agncia produzida no curso das prticas, sob toda uma variedade de

    restries e relaes de fora mais ou menos onerosas, mais ou menos explcitas,

    punitivas ou sedutoras, mais ou menos disciplinares ou passionais. Nossa prpria

    "agncia" , pois, a resultante da antologia que ns dobramos sobre ns mesmos no

    curso de nossa histria e de nossas prticas. Apesar de todos os desejos, inteligncias,

    motivaes, paixes, criatividades e vontade-de-auto-realizao que foram dobrados

    sobre ns mesmos por nossas psicotecnologias, nossa prpria agncia no menos

    artificial, menos fabricada, [p.182] menos no-natural - e, portanto, no menos real,

    efetiva, confusa, tcnica, dependente-da-mquina - do que a problemtica agncia dos

    robs, dos replicantes e das monstruosas simbioses que Donna Haraway utiliza para

    pensar nossa existncia: ciborgues, hbridos, mosaicos, quimeras (HARAWAY, 1991,

    p.171-2).

    Mas o que que dobrado? , sem dvida, verdade que para Deleuze o que

    dobrado sempre alguma "fora". Talvez para nossos prprios propsitos, devssemos

    tratar dessa questo de uma forma um tanto modesta. Em outros locais, utilizei o termo

    "autoridade" para os dobramentos que fazem diferena. Obviamente, isso simplesmente

    nomeia um campo, mas, em princpio, no o define ou o delimita; o importante que

    qualquer coisa pode ter autoridade. Mas, em qualquer poca e lugar, nem tudo a tem.

    Uma anlise a ser feita, aqui, seria a da raridade das autoridades na realidade e no a de

  • seus infinitos componentes e possibilidades. No como qualquer coisa que as pessoas

    podem ser agenciadas em qualquer poca e lugar particulares; alm disso, os vetores

    que so dobrados tm limites que no so ontolgicos mas histricos. O que

    invaginado composto de qualquer coisa que possa adquirir o status de autoridade em

    um agenciamento particular. As maquinaes da aprendizagem, da leitura, do querer, do

    confessar, do lutar, do andar, do vestir, do consumir, do curar invaginam uma certa voz

    (a de nosso sacerdote, a de nosso mdico ou a de nosso pai), uma certa invocao de

    esperana ou medo (voc pode se tornar o que voc quiser ser), uma certa forma de ligar

    um objeto com um valor, sentido e afeto (a "italianidade" que [p.183] Barthes to

    maravilhosamente revela nas massas Panzani ou talvez o "autocontrole" manifestado

    pelo corpo escultural da "mulher ps-moderna"), um certo pequeno hbito e uma certa

    tcnica de pensamento (morda a bala, olhe antes de saltar, autocontrole tudo, bom

    partilhar os prprios sentimentos), uma certa conexo com um artefato dotado de

    autoridade (um dirio, um dossi ou um terapeuta).

    Foucault, como vimos anteriormente, sugeriu que as tecnologias ticas podem

    ser analisadas ao longo de quatro eixos; Deleuze transcreve cada um desses quatro eixos

    por meio do conceito de dobramento (DELEUZE, 1988). 13

    O primeiro, sugere ele, diz

    respeito aos aspectos do ser humano que devem ser circundados e dobrados - o corpo e

    seus prazeres para os gregos, a carne e os desejos para os cristos, talvez o eu e suas

    aspiraes para nossa prpria poca. O segundo, a relao entre foras, diz respeito

    regra de acordo com a qual a relao entre foras se torna uma relao consigo mesmo -

    uma regra que pode ser natural, divina, racional, esttica... Est, pois, sempre associada

    com uma autoridade particular - a do sacerdote, do intelectual, do artista; em nossos

    prprios dias, talvez a regra oscile entre a teraputica e a estilstica, cada qual associada

    com diferentes autoridades. O terceiro, a dobra do saber ou a dobra da verdade, surge do

    fato de que cada relao consigo mesmo est organizada sobre o eixo da subjetivao do

    saber e, portanto, da relao de nosso ser com a verdade, quer essa verdade seja

    teolgica, quer seja filosfica, quer seja psicolgica. A quarta dobra (aqui Deleuze se

    refere noo de ''uma interioridade da expectativa", devida a Blanchot) a [p.184]

    dobra da esperana - da imortalidade, da eternidade, da salvao, da liberdade, da morte

    ou da separao. E a subjetivao , pois, a interao da mltipla variabilidade dessas

    dobras, de seus variados ritmos e padres. "E o que dizer, de nossos prprios modos

    atuais, da moderna relao consigo? Quais so as nossas quatro dobras?" (DELEUZE,

    1991, p. 112). Meu trabalho de anlise tem sido uma tentativa de responder a essa

  • questo. Concluirei com algumas reflexes sobre o papel que as psicocincias e as

    psicotcnicas exercem nesses dobramentos.

    PSICOLOGIAS DE SUBJETIVAO

    Sugeri que as disciplinas psi exercem um papel constitutivo em nossas "quatro

    dobras", obviamente em complexas e variveis relaes com outros vetores, mas mesmo

    assim sobrepondo-se a eles, infundindo-os, investindo-os, de tal modo que mesmo o

    "estilo-de-vida" esttico, espiritual, econmico, financeiro ou a tica ertica so

    saturados com as disciplinas psi em seus regimes enunciativos, em suas tecnologias, em

    seus modos de julgamento e em suas exibies de autoridade. Deixem-me esboar

    algumas das caractersticas desses dobramentos psi.

    O aspecto do ser humano que circundado e dobrado em tantos dos

    agenciamentos contemporneos de subjetivao no nem o corpo/prazer nem a

    carne/desejo, mas o eu/realizao. Passamos a ser habitados por uma ontologia psi, por

    uma inescapvel interioridade que escava, nas profundezas do humano, um universo

    psquico com uma topografia que tem suas prprias caractersticas - seus [p.185] planos

    e plats, seus fluxos e precipitaes, seus climas e tempestades, seus terremotos, suas

    erupes vulcnicas, seus aquecimentos e esfriamentos. Obviamente, o mapeamento

    desse universo psi incompleto e disputado; seus mapas lembram os de homens do mar

    de pocas remotas: onde alguns relatam terem visto instintos, caractersticas herdadas e

    predisposies, outros encontraram represses, projees e fantasias, outros ainda viram

    a internalizao de expectativas sociais e outros mais observaram apenas a inscrio de

    um regime de recompensas e punies comportamentais. As dinmicas dessa ontologia

    so contestadas, seja de uma forma ou outra: pelos processos da auto-estima e da auto-

    abnegao, do estresse e da realizao, do desejo e da frustrao, das ansiedades e das

    fobias ou das involues sadistas de objetos internos. Mas essas dinmicas so

    agenciadas por meio de vetores que atravessam o envelope da pele. Na verdade, "o

    corpo" agora, ele prprio, visto menos como um dado corporal do que como um

    complexo orgnico cujas propriedades so marcadas por esse psi interior - a imagem do

    corpo, a psicossomtica, a personalidade tendente ao cncer, a gordura ou a magreza

    consideradas como manifestando o desejo de amor e de um eu interior, a "boa forma"

    como uma espcie de economia psquica da auto-estima e de reforo do poder pessoal.

  • A inculcao, a emulao, a mimese, a performance, a habituao e outros rituais de

    autoformao escavam e moldam esse espao "interno" de uma forma psi.

    A antologia humana estabelecida, assim, em parte, por meio de conexes

    constitutivas com as tecnologias psi que a imaginam e que agem sobre ela. [p.186]

    Essas conexes ativam algo que Michel Taussig analisou, de forma reveladora, em

    termos de "mimese" - o devir colocado em ao na contnua interao entre a cpia e

    aquilo que copiado (TAUSSIG, 1993). A cpia compreende, aqui, tanto uma

    "representao" - gravura, artefato, objeto, gesto, dana, modelo, diagrama - quanto

    uma forma de ser. "Entre a fidelidade fotogrfica e a fantasia, entre a iconicidade e a

    arbitrariedade, entre o todo e a fragmentao, comeamos, pois, a sentir quo estranha e

    complexa se torna a noo de cpia" (TAUSSIG, 1993, p. 17). A multiplicidade dessas

    breves fulguraes que Taussig chama de "mimese" dobra certas "formas de ser" sobre

    ns - no apenas por meio de "estrias", no apenas por meio de "recompensas e

    punies" (como se jamais houvesse sido claro o que o qu), mas por meio da mmica

    e da imitao, por meio da emulao e da bricolagem, por meio tanto do copiar quanto

    do diferir. Para nossos propsitos, pois, a dimenso mimtica das disciplinas psi pode

    ser vista em aparatos tais como manuais de auto-ajuda centrados no auto-

    aperfeioamento, na auto-estima e no autoprogresso; nos padres psi forados a se

    tornarem visveis em todas as sesses que se passam nos diversos tipos de consultrios;

    nos modelos e simulacros de eus desejveis que servem como espelhos para reativar e

    refletir de volta fabricaes de subjetividade s quais se pode aspirar; as imagens do eu

    normal - a criana normal, a me normal, a garota normal, o adolescente normal, o

    paciente normal, o trabalhador ou o gerente normal - desenvolvidas em toda e qualquer

    prtica imaginvel; as conexes estabelecidas consigo mesmo por [p.187] meio das

    tecnologias culturais da fotografia, do filme e da propaganda: uma multiplicidade de

    mquinas mimticas. A exigncia para que a gente seja um certo tipo de eu sempre

    conduzida por meio de operaes que distinguem ao mesmo tempo que identificam

    (veja, outra vez, TAUSSIG, 1993, sobre esse tema). Para ser o eu que a gente , a gente

    no deve ser o eu que a gente no - no aquela alma desprezada, rejeitada ou abjeta.

    Assim, o tornar-se eu um copiar recorrente que tanto emula outros enquanto difere

    deles. Hoje, as caractersticas pertinentes da mimese e da alteridade so estabelecidas

    nos vetores dos estilos-de-vida, das sexualidades, das personalidades, das aspiraes.

    Falar do dobramento dessa antologia psi em humanos acenar - neste estgio

    no pode ser mais do que isso - para os processos que escavam um interior por meio do

  • dobramento dos componentes psi que tm sido distribudos atravs desses aparatos e

    dessas tecnologias. Esse espao psi composto de uma complexa mistura de elementos

    da pesquisa psicolgica nos humanos e nos animais, nas estrias e nas fabulaes, nas

    autobiografias e nas histrias de caso. Ele "ficcional" apenas no sentido de que o psi

    "inventa" e reinventa mundos imaginados em busca daquilo que toma como sua

    premissa: de que um mundo real habita nosso ser como humanos (cf. HARAWAY,

    1989). E embora seja, sem dvida, verdade que as caractersticas desse mundo dobrado

    so to amarrotadas, torcidas, esfarrapadas e pudas quanto os materiais de que feito,

    nossas relaes conosco mesmos tm sido, no obstante, por pelo menos um sculo,

    irrevogavelmente marcadas por nossa dobra do eu, pois esse nome que nossa poca

    [p.188] tem dado ao agitado universo no interior do qual todos os humanos sero

    registrados, localizados, explicados e afetados.

    Pelo menos uma dimenso-chave da dobra da autoridade, hoje, pode ser

    chamada de "teraputica": de acordo com uma regra teraputica que as linhas de fora

    so flexionadas para se transformar em um espao moldado de acordo com o eu em

    nossa existncia e experincia. "Teraputica", aqui, no no sentido de um privilgio

    concedido prpria "psicoterapia", ou mesmo apenas em termos da proliferao dos

    ramos e variedades de psi - psiclogos forenses com sua construo de perfis de

    criminosos e vtimas; psiclogos do esporte com seus exerccios mentais para se ter

    sucesso no campo ou na pista; consultores organizacionais com seus protocolos de uma

    crescente produtividade e harmonia, por meio de uma ao sobre as inclinaes de auto-

    realizao dos empregados e semelhantes. "Teraputica", em vez disso, no sentido de

    que a relao consigo mesmo , ela prpria, dobrada em termos teraputicos -

    problematizando a si mesmo de acordo com os valores da normalidade e da patologia,

    diagnosticando nossos prazeres e desgraas em termos psi, buscando retificar ou

    melhorar nossa existncia cotidiana por uma interveno em um "mundo interior" que

    temos dobrado como sendo tanto fundamental para nossa existncia como humanos

    quanto, entretanto, to prximo superfcie de nossa experincia do cotidiano. essa

    relao teraputica conosco mesmos e os componentes considerados autorizados dessa

    relao que tm se multiplicado em nosso presente, uma multiplicao dos [p.189]

    condutos entre as autoridades que falam as verdades de ns mesmos e as formas nas

    quais agimos sobre nossa prpria existncia, na compreenso, no planejamento e na

    avaliao de nossas paixes, nossos medos e nossas esperanas cotidianas. O eu

    produzido no processo de pratic-lo, produzido, portanto, como uma interioridade que

  • complexa e contestada. Essa interioridade fraturada - por meio da interseco da

    multiplicidade de atividades e julgamentos que fazemos incidir sobre ns mesmos no

    curso de relacionar nossa existncia sob diferentes descries e em relao a diferentes

    imagens ou modelos - as sanes, as sedues e as promessas pelas quais atribumos a

    essas formas teraputicas de praticar a subjetividade um valor e uma autoridade.

    E o que podemos dizer sobre a quarta dobra, o que podemos esperar dela? O que

    dobramos, o que nos dobra, uma aspirao to pattica quanto comovedora; no

    mais pattica e comovedora, entretanto, do que nosso esforo por maximizar nossos

    estilos-de-vida e nos realizar como pessoas por meio de nossas relaes com outras

    pessoas - nossos amantes, nossos filhos, nossas mes e nossos pais, nossas

    comunidades. A essa esperana demos o nome de "liberdade". Essa esperana no

    uma esperana de libertao para o mundo e seus cuidados, misrias e obrigaes

    urbanos - "ligue-se, sintonize-se e caia fora". No se trata, tampouco, de uma libertao

    dos laos da servido e da sujeio: "livre, finalmente, livre, finalmente, graas ao Deus

    poderoso, livre, finalmente". Em vez disso, os sinos de uma liberdade bem diferente

    ecoam em nossos sonhos: um modo de ser no mundo no qual atribumos valor s nossas

    vidas [p.190] na medida em que somos capazes de constru-las em termos que so

    simultaneamente polticos (livres para escolher) e psicolgicos (livres para escolher em

    nome de ns mesmos e no em nome de nossa subordinao autoridade de um outro,

    em relao sombra formada por nossos pais internalizados ou pelas restries

    impostas por nosso temor da prpria liberdade). Uma aspirao louvvel? Sem dvida,

    mas uma aspirao que no existe em uma relao de externalidade com nossas

    ansiedades e frustraes: esse sonho de liberdade constitui as prprias formas pelas

    quais ns codificamos e experienciamos ns mesmos e as formas pelas quais dividimos

    ns mesmos daquilo que, em ns mesmos, e daquilo que, nos outros, no est de acordo

    com esse sonho ou que fracassa por seus princpios.

    O EFEITO PSI

    Para investigar essas hipteses mais diretamente, podemos comear por

    estabelecer algum tipo de topografia dos espaos psi, das prticas ou dos agenciamentos

    pelos quais nossa subjetividade maquinada. Poderamos chamar isso de "o onde" do

    psi: sua territorializao. possvel identificar uma variedade de agenciamentos nos

    quais uma tal territorializao tem sido organizada: mquinas desejantes, mquinas de

  • trabalho, mquinas pedaggicas, mquinas punitivas, mquinas curativas, mquinas de

    consumir, mquinas de guerra, mquinas de esporte, mquinas de governo, mquinas

    espirituais, mquinas burocrticas, mquinas de mercado, mquinas financeiras. Isso

    no significa afirmar o domnio do [p.191] psi em nossa experincia, pois no se

    poderia dizer o mesmo, por exemplo, das linguagens, das imagens, das tcnicas e das

    sedues da economia? No significa tampouco identificar uma "causa" externa de

    todas essas transformaes e mutaes que vieram a permear to amplamente toda

    nossa existncia. Mas significa registrar esse "efeito psi" no sentido de "efeito" de

    Deleuze, no sentido de "efeito" do discurso cientfico, tal como no efeito Kelvin ou no

    efeito Compton, por exemplo: "Um tal efeito no em absoluto uma aparncia ou uma

    iluso; um produto que se estende ou se alonga na superfcie e que estritamente co-

    presente, co-extensivo sua prpria causa e que determina essa causa como causa

    imanente, inseparvel de seus efeitos (DELEUZE, 1998, p. 73, citado em BURCHELL

    et al., 1991, p. ix). Isto , o efeito psi no deve ser identificado com uma causa

    particular, mas, antes, delineado pela descrio das formas pelas quais a existncia

    humana se torna inteligvel e praticvel, sob uma certa descrio, em toda uma

    multiplicidade de pequenos "cenrios ticos" que permeiam nossa experincia.

    Por "cenrios ticos" quero significar os diversos aparatos e contextos nos quais

    uma particular relao com o eu administrada, forada e agenciada, e na qual pode-se

    prestar uma ateno teraputica queles que se sentem desconfortveis com