rodrigo sanches pereira - … · palavras-chaves: análise crítica do discurso, ideologia,...

44
UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA CURSO DE LETRAS RODRIGO SANCHES PEREIRA (NOVI)LÍNGUA E PODER: UMA ANÁLISE DOS LEXEMAS POLISSÊMICOS DO VOCABULÁRIO B NA ESTRUTURAÇÃO DAS RELAÇÕES DE PODER E DELIMITAÇÃO DO PENSAMENTO CRÍTICO NA OBRA 1984 DE GEORGE ORWELL RIO DE JANEIRO 2016

Upload: buikiet

Post on 03-Oct-2018

224 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA

CURSO DE LETRAS

RODRIGO SANCHES PEREIRA

(NOVI)LÍNGUA E PODER: UMA ANÁLISE DOS LEXEMAS POLISSÊMICOS

DO VOCABULÁRIO B NA ESTRUTURAÇÃO DAS RELAÇÕES DE PODER E

DELIMITAÇÃO DO PENSAMENTO CRÍTICO NA OBRA 1984 DE GEORGE

ORWELL

RIO DE JANEIRO

2016

Page 2: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

RODRIGO SANCHES PEREIRA

(NOVI)LÍNGUA E PODER: UMA ANÁLISE DOS LEXEMAS POLISSÊMICOS

DO VOCABULÁRIO B NA ESTRUTURAÇÃO DAS RELAÇÕES DE PODER E

DELIMITAÇÃO DO PENSAMENTO CRÍTICO NA OBRA 1984 DE GEORGE

ORWELL

Monografia apresentada ao Curso de Graduação em

Letras da Universidade Veiga de Almeida, como

requisito obrigatório e necessário para a obtenção do

título de Licenciatura em Língua Portuguesa e Língua

Inglesa, sob orientação da Professora Claudia Cristina

Mendes Giesel.

RIO DE JANEIRO

2016

Page 3: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________________

Profª. Dra. Cláudia Cristina Mendes Giesel – Orientadora – UVA

________________________________________________________

Profª.Dra. Sabine Mendes Lima Moura – PUC

________________________________________________________

Profª. M.e. Graziela Borguignon Mota – UVA

Aprovado em _____ de ______________ de 2016.

Conceito: ______

Page 4: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha família, especialmente à minha avó por ter representado com maestria o

papel de mãe e avó ao mesmo tempo, por sempre ter me apoiado em todos os momentos da minha

vida e por toda sua preocupação com minha educação desde os anos elementares até a vida

acadêmica.

Agradeço à minha namorada Aline, por todo companheirismo e compreensão nos

momentos difíceis, por sempre ter lidado bem com meu estresse e ansiedade, pelos cuidados, por

todo incentivo e por ser o principal motivo dos meus sorrisos.

Aos meus amigos, especialmente ao Patrick Tavares por todo apoio e pelo auxílio com a

revisão. Aos amigos Alberto Oliveira, Laryssa Rodrigues e Júlio César por toda união em

momentos de sofrimento e desespero causados pela graduação, por terem sido fundamentais na

minha vida acadêmica e pessoal. Obrigado por cada momento extrovertido, cada comemoração

após entregas de pôsteres, artigos e resenhas, por tornarem as aulas no último tempo de sexta-feira

as melhores e fazerem com que o “Antes da Soleira” seja perpetuado em nossas vidas.

À minha orientadora, Cláudia Giesel, não somente por toda a paciência e suporte durante o

desenvolvimento desse trabalho, mas por todo o trabalho que tem feito, por toda influência positiva

que tem exercido sobre seus alunos, esse seu olhar crítico que tem propiciado um enorme

desenvolvimento meu como pessoa e como professor. Sou extremamente grato por tudo, pelas

milhões de resenhas, pôsteres e artigos pedidos, por ter me aceitado como orientando.

Por último e não menos importante, agradeço à mulher mais incrível e admirável da minha

vida, minha mãe Sandra. Apesar de não estar aqui fisicamente, sei que onde quer que esteja está

orgulhosa e comemorando mais essa etapa junto a mim.

Page 5: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

“Ao futuro ou ao passado, a um tempo em que o

pensamento seja livre, em que os homens sejam

diferentes uns dos outros, em que não vivam sós – a

um tempo em que a verdade exista e em que o que for

feito não possa ser desfeito:

Da era da uniformidade, da era da solidão, da era do

Grande Irmão, da era do duplipensamento –

saudações!”

George Orwell

Page 6: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Modelo da concepção tridimensional do discurso (FAIRCLOUGH, 2001)

Figura 2 – Organização Hierárquica da Oceânia

Page 7: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Número de Ocorrências

Tabela 2 – Significado-Potencial

Tabela 3 – Ambivalência-Potencial

Page 8: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

LISTA DE ABREVIATURAS

AD – Análise do Discurso

ACD – Análise Crítica do Discurso

TSD – Teoria Social do Discurso

Page 9: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

RESUMO

A língua, dentre as diversas técnicas e métodos de manipulação, exerce um papel imprescindível

na estruturação hegemônica de um Governo. Precisamos entender como as mais simples palavras

no discurso nos influenciam ideologicamente e atuam como chaves para a delimitação do

pensamento crítico individual e na consolidação das relações de poder. A novilíngua, comparada

por Orwell à um "esperanto ideológico" e definida como uma língua composta por palavras curtas

e apocopadas, provoca um mínimo de eco na mente daquele que fala o idioma apresentando uma

tentativa de utilização da língua como ferramenta de controle político-ideológico na obra 1984.

Portanto, a presente pesquisa tem por objetivo analisar e interpretar como as relações de poder são

sustentadas no discurso por intermédio de palavras que possuem um rico campo semântico como

as palavras polissêmicas do vocabulário B de novilíngua na obra 1984 (2009) de George Orwell

sob a ótica da Análise Crítica do Discurso e da concepção tridimensional da Teoria Social do

Discurso de Norman Fairclough (2001). Os resultados da análise apontam a ambivalência lexical

do discurso cotidiano como fator determinante na implementação ideológica e posicionamento do

Governo para a manutenção do poder na obra. Conclui-se que as estruturações das relações de

poder na obra são reforçadas por meio da implementação de palavras polissêmicas que corroboram

com a delimitação do pensamento crítico individual erradicando posicionamentos contrários à

ideologia pregada pela elite.

Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua.

Page 10: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

ABSTRACT

Amongst the variety of techniques and manipulation methods, the language presents itself as an

important role in the hegemonic organization of a ruling government. We need to understand how

the simplest words in discourse ideologically influence us and act as key points in the critical

thinking delimitation, especially in the consolidation of power. Newspeak, considered by Orwell

an “ideological Esperanto” and defined as a language composed by short words that echo in one’s

mind at the moment of speaking, incites an attempt of using the language as a political and

ideological tool in the novel 1984. Thus, this present work has as objective the analysis and

interpretation of how the power relations are sustained in the discourse by words that present a

plentiful semantic field such as the polysemic words from vocabulary B of newspeak in George

Orwell’s 1984 (2009). This analysis is based on the Critical Discourse Analysis and the three-

dimensional concept of the Social Discourse Theory supported by Norman Fairclough (2001). The

results of this analysis point to the lexical ambivalence in the everyday discourse as determining

factor to the ideological implementation and the government’s position to sustain and withstand

the power control. As a conclusion, the hegemonic relations are reinforced by the employment of

polysemic words in the discourse which corroborate with the individual critical thinking

delimitation, eradicating opposite thoughts to the elite’s ideology and principles.

Keywords: Critical discourse analysis, Ideology, Hegemony, 1984, Newspeak.

Page 11: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................................... 10

2 ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO .................................................................................... 14

2.1. O que é Discurso? ................................................................................................................ 14

2.2. Análise do Discurso x Análise Crítica do Discurso ............................................................. 15

2.3. Ideologia e Hegemonia ........................................................................................................ 18

3 A DISTOPIA DE ORWELL .................................................................................................... 22

3.1. George Orwell ...................................................................................................................... 22

3.2. Dois + Dois = Cinco ............................................................................................................ 24

3.3. (Novi)Língua e Poder .......................................................................................................... 26

4 ANÁLISE DOS LEXEMAS DO VOCABULÁRIO B ........................................................... 31

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................... 41

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................... 43

Page 12: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

10

INTRODUÇÃO

Ao ter acesso às informações para o desenvolvimento do artigo científico sobre línguas

artificiais me deparei com a novilíngua e a obra 1984. Optei, então, pela leitura da obra distópica

de Orwell por puro entretenimento e cogitei até uma possível análise do processo de construção

das palavras em novilíngua. Contudo, durante a leitura sobressaiu-se a geniosidade de Orwell

ao desenvolver uma língua ideologicamente essencial para a manutenção hegemônica do

governo totalitário da obra. A difusão de opiniões contrárias ao sistema seria disseminada por

conta da utilização de uma língua monossêmica que no contexto atual da obra delimita e

futuramente tornaria impossível a construção de pensamentos heréticos.

A leitura do romance 1984 traz à tona discussões sobre temas atemporais que são de

extrema importância para sociedade como a centralização da economia, divisão do mundo

superpotências, a opressão de um governo totalitário, líderes opressores e todo o poder de

manipulação da elite.

Como sabemos, o discurso é um dos meios mais eficazes de disseminação de ideias e

manipulação sendo possível o controle das massas pela simples escolha de palavras, palavras

essas que em sua maioria apresentam conceitos políticos e ideológicos. O idioma criado por

George Orwell em 1984 é um exemplo de como a língua é capaz influenciar o posicionamento

político-ideológico da população. A significação política-ideológica da língua/linguagem no

discurso é um importante fator a ser considerado no que se refere à organização hegemônica de

uma sociedade. Muitas palavras detêm uma enorme capacidade de influência ao estabelecer

posicionamentos políticos e ideológicos nas entrelinhas do discurso. Entretanto, nem todos são

capazes de perceber essa característica da língua, portanto esse trabalho visa trazer à tona a

importância da língua na estruturação das relações de poder.

A presente pesquisa tem por objetivo analisar e interpretar como as relações de poder

são sustentadas no discurso por intermédio de palavras que possuem um rico campo semântico,

as palavras polissêmicas do vocabulário B da língua artificial novilíngua, na obra 1984 (2009)

de George Orwell e da delimitação do pensamento crítico sob à ótica da Análise Crítica do

Discurso.

Tendo como base os conceitos da Teoria Social do Discurso de Fairclough (2001), faço

uso da concepção tridimensional do discurso para observar, definir o significado-potencial e

ambivalência-potencial dos lexemas da novilíngua, analisar a forma com que esses vocábulos

estão diretamente ligados à ideologia do Partido e como influenciam nas estruturações das

relações de poder e a delimitação do pensamento crítico na distopia de Orwell.

Page 13: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

13

Esta pesquisa está composta por cinco capítulos, sendo o primeiro para contextualizá-la

e o ultimo para concluí-la. Os outros capítulos representam respectivamente o embasamento

teórico, a contextualização do corpus, a análise das palavras selecionadas e por fim minhas

considerações finais.

No capítulo 2, inicio discorrendo acerca da importância da Análise do Discurso e a

diferencio da Análise Crítica do Discurso de acordo com teóricos como Fairclough (2001),

Resende e Ramalho (2009) e van Dijk (1998). Em seguida, menciono a importância dos

conceitos de ideologia e hegemonia segundo a visão de analistas do discursos e sua importância

para a concepção tridimensional da Teoria Social do Discurso de Fairclough (2001).

No terceiro capítulo, contextualizo a obra 1984 e o autor, principalmente sobre a relação

direta das experiências de Orwell para o desenvolvimento de sua obra distópica tendo como

base Neto (1984) e os posfácios de Fromm (1961), Pimloot (1989) e Pynchon (2003) presentes

no corpus e discuto brevemente acerca da polissemia lexical da língua de acordo com Birdarra

(2010), Fiorin (2011) e Rossa (2001).

No quarto capítulo, apresento a análise das palavras polissêmicas vocabulário B de

novilíngua sob à ótica da concepção tridimensional da Teoria Social do Discurso de Fairclough

(2001), tendo como prioridade a análise dos campos texto em três diferentes tabelas: (1) número

de ocorrências na obra; (2) significado-potencial; (3) ambivalência-potencial. Por fim, analiso

o campo da prática social interpretando como as palavras selecionadas são importantes no

discurso hegemônico do regime totalitário da obra.

Por último, no capítulo 5 apresento minhas considerações finais acerca da presente

pesquisa.

O propósito desse trabalho é refletir sobre o poder da língua/linguagem no discurso já

que a utilização de certas palavras não está sob total controle de seus interlocutores, mas muitas

vezes estão intrinsecamente ligadas à posicionamentos ideológicos mais complexos, defendidos

por uma elite para auxilia-la na busca pelo poder e na manutenção hegemônica. Ademais, essa

pesquisa não somente identifica a ideologia arquitetada por trás da novilíngua, mas constata

que tanto a língua planejada de Orwell como as línguas naturais apresentam um forte viés

político e ideológico em seu léxico que podem ser utilizados a fim de incitar diferentes

interpretações e manipular o discurso, delimitando o pensamento crítico graças a sua ampla

variedade semântica.

Page 14: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

14

2 ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO

A ideologia por trás de toda obra de Orwell e principalmente por trás da novilíngua

demonstrara ser primordial para a manutenção das relações de poder no mundo distópico de

1984 (2009) e faz-nos refletir acerca da relação intrínseca entre linguagem e ideologia, não

somente na obra mas também na vida real. Dessa forma, esse capítulo é dedicado a apresentar

a Análise do Crítica do Discurso, doravante ACD, e a Teoria Social do Discurso, TSD, sob a

ótica de Fairclough (2001) e Resende e Ramalho (2010) que são conceitos-chaves para análise

da novilíngua no presente trabalho.

2.1. O que é Discurso?

Logo ao nos afrontarmos com o nome Análise do Discurso prontamente identificamos

o objeto de estudo, contudo do que se trata o termo discurso? Antes de mais nada é necessário

responder a esse primeiro questionamento que vem à tona. Dessa forma, poderei discorrer e

clarificar qual das diversas interpretações de discurso a Análise do Discurso se apropria.

Melo (2009) menciona que a concepção de discurso conforme o estruturalismo baseava-

se no estudo da língua por ela mesma. Segundo as perspectivas estruturalistas, a noção de

discurso é estritamente conectada a um conglomerado de palavras ou sentenças; o sujeito do

discurso é um reprodutor de um sistema linguístico e um decodificador de uma mensagem e a

língua é uma estrutura invariável. Nesse caso, o discurso se confunde com texto. A partir da

década de 60, essa concepção de língua por ela mesma começa a se desestabilizar e assim é

aberta a porta para novas propostas teóricas. Surge, então, a preocupação com a linguagem em

uso, introduzem-se componentes pragmáticos e a dimensão social começa a fazer parte do

estudo da língua.

Fiorin (2010) define discurso como combinações de elementos linguísticos usados pelos

falantes com o propósito de exprimir seus pensamentos, de falar do mundo exterior ou de seu

mundo interior, de agir sobre o mundo.

Resende e Ramalho (2010) apresentam em seu livro duas definições de discurso

segundo as vertentes da linguística formalista e funcionalista. No paradigma formalista, o

discurso é definido como a unidade acima da sentença que segundo Schiffrin (1994 apud

RESENDE; RAMALHO, 2010) contém um problema imediato: o discurso não apresenta

características semelhantes às da sentença. Além disso, se sentenças são criadas no discurso,

parece contraditório definir o discurso como construído daquilo que ele mesmo cria. Por outro

Page 15: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

15

lado, o conceito funcionalista define discurso como a linguagem em uso, o que o torna aplicável

para os analistas de discurso, uma vez que o foco de interesse não é apenas a interioridade dos

sistemas linguísticos, mas, sobretudo, a investigação de como esses sistemas funcionam na

representação de eventos, na construção de relações sociais, reafirmação e contestação de

hegemonias no discurso.

Fairclough (2001, p.89, 90) menciona o uso do discurso em um sentido mais estreito:

Quero focalizar a linguagem e, consequentemente uso ‘discurso’ em um

sentido mais estreito do que os cientistas sociais geralmente fazem ao

se referirem ao uso de linguagem falada ou escrita. Usarei o termo

‘discurso’ no qual os linguistas tradicionais normalmente escrevem

sobre o uso de linguagem, parole (fala) ou desempenho.

Ao usar o termo discurso, Fairclough (2001) se propõe a considerar o uso de linguagem

como forma de prática social e não como atividade puramente individual ou reflexo de variáveis

situacionais. Ele mesmo afirma que isso tem várias implicações. Primeiro, implica ser o

discurso um modo de ação, uma forma em que as pessoas podem agir sobre o mundo e

especialmente sobre os outros, como também um modo de representação. Segundo, implica

uma relação dialética entre o discurso e a estrutura social. Por outro lado, o discurso é

socialmente constitutivo. O discurso contribui para a constituição de todas as dimensões da

estrutura social que, direta ou indiretamente, o moldam e o restringem. O discurso é uma prática,

não apenas de representação do mundo, mas de significação do mundo, constituindo e

construindo o mundo em significado.

Orlandi (2009, p. 17) também discorre acerca dessa relação entre discurso e ideologia

ao mencionar que o discurso é o lugar em que se pode observar a relação entre língua e

ideologia, compreendendo-se como a língua produz sentidos por/para os sujeitos.

Partindo da ideia que a materialidade específica da ideologia é o

discurso e a materialidade específica do discurso é a língua, trabalha a

relação língua-discurso-ideologia. Essa relação se complementa com o

fato de que, como diz Pêcheux (1975), não há discurso sem sujeito e

não há sujeito sem ideologia; o indivíduo é interpelado em sujeito pela

ideologia e é assim que a língua faz sentido.

2.2. Análise do Discurso x Análise Crítica do Discurso

Após discorrer sobre a definição de discurso para a Análise do Discurso, um segundo

questionamento vem à tona: do que se trata a Análise Crítica do Discurso (ACD) e do que difere

da Análise do Discurso (AD)?

Page 16: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

16

A linguagem pode ser estudada de inúmeras formas, assim como menciona Orlandi

(2009), podemos concentrar nossa atenção sobre a língua enquanto sistema de signos ou como

sistema de regras formais, e assim temos a Linguística; ou como normas de bem dizer, por

exemplo, a Gramática normativa. Orlandi (2009) também afirma que a própria palavra

gramática como a palavra língua podem ter significados muito diferentes, por isso as gramáticas

e a maneira de se estudar a língua são diferentes em diferentes épocas, em distintas tendências

e autores diversos. Pois é justamente pensando que há inúmeras formas de se significar que os

estudiosos começaram a se interessar pela linguagem de uma maneira particular que é a que

deu origem à Análise do Discurso.

Orlandi (2009) diz que a AD não trabalha com a língua enquanto um sistema abstrato,

mas como a língua no mundo, com maneiras de significar, com pessoas falando, considerando

a produção de sentidos enquanto parte de suas vidas, seja enquanto sujeitos seja enquanto

membros de uma determinada forma de sociedade. Orlandi (2009), como mencionado

anteriormente, também aborda a relação entre discurso e ideologia e menciona que o discurso

é o lugar em que se pode observar essa relação entre língua e ideologia, compreendendo-se

como a língua produz sentidos por/para os sujeitos.

Na década de 1970, segundo Magalhães (2005), na Universidade na Universidade de

East Eagle, Grã-Bretanha, um grupo de pesquisadores desenvolveu uma abordagem de estudos

de linguagem conhecida como Linguística Crítica. Em 1979, Fowler, Kress, Hodge, e Trew

publicaram Language and Control, um livro que teve repercussão entre linguistas e

pesquisadores de linguagem que se interessavam pela relação entre o estudo do texto e os

conceitos de poder e ideologia. Com isso, outros estudiosos na década de 1980 se dedicaram ao

desenvolvimento dessa abordagem.

Magalhães (2005, p. 2) diz que: “Fairclough, na Universidade de Lancaster, usou a

expressão 'análise crítica do discurso' pela primeira vez em artigo seminal no Journal of

Pragmatics (FAIRCLOUGH, 1985). A análise crítica do discurso (ACD) pode ser considerada

uma continuação da linguística crítica (WODAK, 2001).”

Martins (2005, p.2) faz uso das palavras de Fairclough (1992) para abordar como a ACD

surgiu:

A Análise Crítica do Discurso, como pode ser lido em Fairclough

(1992) surgiu como uma concretização do desejo de um grupo

específico de linguistas de criação de um método para analisar a

linguagem que aliasse as teorias lingüísticas, sociológicas e políticas, a

seu ver a única maneira adequada de tratar a linguagem, que é um objeto

essencialmente dinâmico. Esta abordagem do discurso e da linguagem

Page 17: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

17

que alia conceitos e métodos oriundos da Linguística e das Ciências

Sociais de forma satisfatória pode ser considerada inovadora.

Chouliaraki & Fairclough (1999:16) chegam a caracterizar a ACD

como "síntese mutante de outras teorias".

A ACD é “uma síntese mutante de outras teorias”, como mencionado por Chouliaraki e

Fairclough (1999), e isso apenas corrobora a característica multidisciplinar da ACD. Segundo

van Dijk (1993, p.1) a multidisciplinariedade da ACD propõe um amplo campo de estudo. A

ACD permite o estudo das relações entre discurso, poder, hegemonia e desigualdade social

tendo em foco o papel do discurso na (re)produção e luta contra dominação.

Os analistas críticos do discurso, de acordo com van Dijk (1993), visam estudar quais

estruturas, estratégias ou outras propriedades do texto, fala, interação verbal ou eventos

comunicativos trabalham nos modos de reprodução do discurso. Assim como van Dijk (1993),

Billig (2008) define que analistas críticos do discurso buscam analisar a língua de forma crítica

a fim de expor as ideologias e as relações de poder no uso da língua.

Magalhães (2005, p. 3) menciona que a ACD aborda o estudo do texto e eventos em

diversas práticas sociais, propondo uma teoria e um método para descrever, interpretar e

explicar a linguagem no contexto sociohistórico. Dessa forma, a ACD oferece uma valiosa

contribuição de linguistas para o debate de questões ligadas ao racismo, discriminação social,

à violência, à identidade nacional, à autoidentidade, à identidade de gênero, à exclusão social.

Martins (2005) discorre sobre o objetivo da ACD de apresentar o modo como as práticas

linguístico-discursivas estão ligadas às estruturas sociopolíticas mais abrangentes, de poder e

dominação. Martins (2005) novamente cita Fairclough (1981, p. 1) e menciona que a ACD

pretende também aumentar a “consciência de como a linguagem contribui para a dominação de

umas pessoas por outras, já que essa consciência é o primeiro passo para a emancipação”.

Tendo em vista as questões sociopolíticas e analíticas do discurso, Teun van Dijk (1993,

p.4) discorre acerca da preocupação da ACD com as dimensões discursivas do abuso de poder

que surgem ou são sustentadas, legitimadas ou ignoradas pelas elites que promovem injustiça

e desigualdade social.

Diferentemente de outros analistas do discurso, o analista crítico do

discurso apresenta um explícito viés sociopolítico (...) um dos critérios

do seu trabalho é solidariedade com aqueles que mais precisam. Seus

problemas são problemas ‘reais’ que ameaçam as vidas ou bem-estar de

muitos. (VAN DIJIK, 1993, p.4, tradução minha)

Portanto, as abordagens críticas (ACD) diferem das acríticas (AD), segundo Fairclough

(2001, p.31), não apenas na descrição das práticas discursivas, mas também ao mostrarem como

Page 18: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

18

o discurso é moldado por relações de poder e ideologias e os efeitos construtivos que o discurso

exerce sobre as identidades sociais, as relações sociais e os sistemas de conhecimento e crença,

nenhum dos quais é normalmente aparente para os participantes do discurso.

2.3. Ideologia e Hegemonia

É notório, não somente nos dias atuais, mas há tempos, o poder de manipulação que tem

a elite. Vivemos numa sociedade cujos problemas são inúmeros e que são atenuados por

intermédio de eufemismos, discursos arbitrários e falaciosos pela mídia. Não é interessante o

desenvolvimento de cidadãos críticos e reflexivos, pois somente assim serão capazes de

sustentar suas relações de poder por meio da ideologia pregada em seus discursos, sendo

desnecessário o uso de força, assim como Resende e Ramalho (2011, p. 46) mencionam em seu

livro: “uma vez que o poder depende da conquista do consenso e não apenas do uso da força, a

ideologia tem importância na sustentação de relações de poder”.

Segundo van Dijk (1998, p. 16), a ideologia é a base das representações sociais

compartilhadas por membros de um grupo. O autor menciona que o conceito ideologia serve

como uma interface entre estruturas sociais e a cognição social. Isso significa que ideologias

permitem que pessoas, como membros de um grupo, organizem uma magnitude de crenças

sociais, boas ou más, certas ou erradas, e ajam de acordo com elas, o que certamente influencia

na compreensão de mundo em geral.

Fairclough (2001, p.117) define ideologia como significações/construções da realidade

(o mundo físico, as relações sociais, as identidades sociais) que são construídas em várias

dimensões das formas/sentidos das práticas discursivas e que contribuem para a produção, a

reprodução ou a transformação das relações de dominação.

Fairclough (2001, p. 119) menciona outra questão importante sobre a ideologia:

(...) a ideologia diz respeito aos aspectos ou níveis do texto e do discurso

que podem ser investidos ideologicamente. Uma alegação comum é de

que são 'sentidos', e especialmente os sentidos das palavras (...), que são

ideológicos (...). Os sentidos das palavras são importantes,

naturalmente, mas também o são outros aspectos semânticos, tais como

as pressuposições, as metáforas e a coerência.

A concepção de ideologia segundo diversos estudiosos está intrinsecamente ligada às

relações de poder e a luta hegemônica. Segundo van Dijk (1998, p. 8), na maioria dos casos,

ideologias apresentam uma função material e simbólica dos interesses de um grupo. As

ideologias são utilizadas e modificadas por atores sociais em específicas práticas sociais,

Page 19: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

19

geralmente discursivas. Dentre esses interesses, o poder sobre outros grupos (ou resistência à

dominação) pode ser considerado como o papel central e o propósito para o desenvolvimento

de ideologias.

Chouliaraki e Fairclough (1999, apud RESENDE; RAMALHO, 2001 p. 47) consideram

que a hegemonia enfatiza a importância da ideologia no estabelecimento e na manutenção da

dominação baseadas mais no consenso que na coerção, a naturalização de práticas e relações

sociais é fundamental para a permanência de articulações baseadas no poder.

Assim como Chouliaraki e Fairclough (1999), van Dijk (1993) também associa a

importância da ideologia no estabelecimento e manutenção da dominação. van Dijk (1993)

define dominação como o poder social exercido por elites, grupos e instituições, o que resulta

em desigualdade de gênero, social, política, cultural e étnica.

van Dijk (1998, p. 30) também aponta o fato de que embora ideologias sejam

propriedades de um grupo social, membros individuais devem pessoalmente endossar, aceitar

e utilizar uma ideologia no seu dia-a-dia, comparando-as às línguas naturais por serem sistemas

essencialmente sociais e compartilhados por membros de um grupo, mas isso não quer dizer

que os membros dessas comunidades não sabem as utilizar individualmente. A partir do

momento que ideologias e crenças são socialmente compartilhadas, não significa que

indivíduos possuam cópias idênticas delas. Em vez disso, cada membro possui a sua própria

versão. Dentre as quais algumas pessoas apresentam somente uma versão limitada, as vezes

incoerente, enquanto outras uma mais consistente e detalhada. Assim, essas versões particulares

de ideologias e crenças permitem que diferenças individuais e até mesmo contradições surjam,

fatores que podem levar à luta contra a dominação, como o que ocorre com a personagem

Winston em 1984 (2009) ao começar a questionar a ideologia estabelecida pelo Socing.

É sob a ótica dessa relação entre hegemonia e ideologia por trás do discurso que

Fairclough (2001) menciona que o que busca em seu trabalho é uma análise de discurso que

focalize a variabilidade, a mudança e a luta; variabilidade entre as práticas e heterogeneidade

entre elas como reflexo sincrônico de processos de mudança histórica que são moldados pela

luta entre as forças sociais.

Page 20: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

20

Partindo desses pressupostos, Fairclough (2001, p. 89) desenvolveu uma abordagem

cunhada como Teoria Social do Discurso (TSD) cujo objetivo é reunir a análise de discurso

orientada linguisticamente e o pensamento social e político relevante para o discurso e a

linguagem. A TSD, segundo Resende e Ramalho (2010), trata-se de uma proposta com amplo

escopo de aplicação que constitui o modelo teórico-metodológico aberto ao tratamento de

diversas práticas na vida social, capaz de mapear as relações entre os recursos linguísticos os

atores sociais. Para tal, Fairclough (2001, p. 101) apresenta uma concepção tridimensional

(figura 1) do discurso que reúne três das tradições analíticas indispensáveis na análise do

discurso.

Essas três dimensões são a prática social, a prática discursiva e o texto. Resende e

Ramalho (2010, p. 28) definem a prática social e o texto como a dimensão do evento discursivo

e menciona que o texto e a prática social são mediados pela prática discursiva que focaliza os

processos sociocognitivos de produção, distribuição e consumo do texto, processos sociais

relacionados a ambientes econômicos, políticos e institucionais. Fairclough (2001) denomina a

parte que trata da análise do texto como “descrição” e as que tratam da análise da prática

discursiva e social da qual o discurso faz parte como “interpretação”.

Utilizaremos nesse estudo as dimensões texto e prática social, porém, priorizando as

categorias analíticas: vocabulário, ideologia e hegemonia. A primeira para análise das palavras

Figura 1 - Modelo da concepção tridimensional do discurso (FAIRCLOUGH, 2001)

Page 21: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

21

individuais do vocabulário B da novilíngua, ideologia (sentido) e hegemonia (orientações

políticas, sociais e ideológicas) para analisar como os lexemas polissêmicos do vocabulário B

em novilíngua atuam na construção e manutenção das relações de poder e delimitação do

pensamento crítico.

O vocabulário pode ser investigado de diversas formas e para Fairclough (2001) um dos

focos da análise recai sobre a criação de palavras e sua significância política e ideológica. Outro

foco é o sentido da palavra, já que as estruturações particulares das relações entre palavras e

das relações entre os sentidos de uma palavra são formas de hegemonia. Toda a palavra possui

uma gama de significados convencionalmente associados a ela que geralmente são

representadas nos dicionários. Essa gama de significados é classificada por Fairclough (2001)

como “significado-potencial”.

Fairclough (2010, p. 231) faz uso da menção de Pêcheux: “a variação semântica é uma

faceta e um fator do conflito ideológico” e diz que a relação palavra-significado pode mudar

rapidamente em processos de contestação e mudança social, portanto muitos significados

potenciais são instáveis. Além disso, menciona as ambivalências e ambiguidades de

significado, ambivalência-potencial, e o jogo retórico dos significados potenciais com os

significados das palavras.

As palavras têm tipicamente vários significados, e estes são lexicalizados (criados) de

várias maneiras. A relação de palavras com os significados segundo Fairclough (2001) é de

muitos-para-um e não de um-para-um.

Segundo Fairclough (2001, p. 230):

Isso significa que como produtores estamos diante de escolhas sobre

como usar uma palavra e como expressar um significado um significado

por meio de palavras, e como intérpretes sempre nos confrontamos com

decisões sobre como interpretar as escolhas que os produtores fizeram.

Portanto, para Fairclough (2001) essas escolhas e decisões não são puramente

individuais dos intérpretes, os significados das palavras e as lexicalizações de significados são

questões socialmente variáveis e socialmente contestadas por serem facetas de processos sociais

e culturais mais amplos.

Page 22: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

22

3 A DISTOPIA DE ORWELL

Distopia, na terminologia literária, é um gênero que comumente retrata sociedades

controladas por regimes totalitários, opressivos e que apresentam atmosferas profundamente

pessimistas acerca do futuro da humanidade. Essas sociedades distópicas são definidas por

Araújo (2008, p. 156) como “aquelas nas quais o Estado absoluto controla a vida e as mentes

de seus cidadãos”.

Para Araújo (2008) as distopias visam demonstrar tendências contemporâneas que

limitam a liberdade humana, já que invertem a perspectiva utópica, uma vez que o futuro é

descrito como pior do que o presente em decorrência de um projeto coletivo. Araújo (2008)

menciona que as distopias são frequentemente criadas como avisos, ou até mesmo sátiras, a fim

de apresentar as atuais convenções sociais e limites extrapolados ao máximo. Por conseguinte,

esse tipo de obra nos faz críticos por “explorar moralmente os dilemas presentes que refletem

negativamente no futuro”. Esses dilemas fazem parte de alguns dos traços característicos da

distopia consideradas por Araújo (2008, p. 200):

(...) explorar moralmente os dilemas presentes que refletem

negativamente no futuro, oferecem críticas sociais e apresentam as

simpatias políticas do autor, exploram a estupidez coletiva, o poder é

mantido por uma elite pela somatização e consequente alívio de certas

carências e privações do indivíduo, possuem discurso pessimista,

raramente “flertando” com a esperança.

As distopias sempre exerceram um papel de destaque na literatura, romances como A

Máquina do Tempo, escrito por H.G. Wells em 1895, o clássico Admirável Mundo Novo (1932)

de Aldous Huxley, que teve o romance de H.G. Wells como uma das inspirações, e uma das

mais famosas obras de Eric Arthur Blair, mais conhecido por seu pseudônimo George Orwell,

1984 (1948).

3.1. George Orwell

Eric Arthur Blair, mais conhecido por seu pseudônimo George Orwell, é o escritor da

sátira à revolução soviética A Revolução dos Bichos e ao líder supremo de um estado totalitário,

semelhante à Stalin, na distopia 1984 (2009).

Santos (2011) menciona que toda a vida de Eric Arthur Blair foi dedicada à luta

antisstalinista, anti-imperialista e a favor da liberdade. Segundo Neto (1984, p. 8) um artigo

escrito por Orwell pouco após a Segunda Guerra Mundial expunha claramente suas convicções

Page 23: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

23

políticas: “Cada linha de trabalho sério que escrevi desde 1936 foi escrita direta ou

indiretamente contra o totalitarismo e a favor do socialismo democrático, como eu o entendo”.

Antes mesmo de 1936, suas obras já mostravam grande preocupação na luta pelos

oprimidos. Neto (1984, p.11) diz que “sua capacidade de indignação face a uma injustiça o

levava às vezes a defender aqueles a quem previamente atacara, assim que sentisse que algo

injusto estivesse acontecendo com eles”.

Sua infância teve um papel importante no desenvolvimento de seu senso político. Orwell

frequentou colégios da elite britânica como bolsista e durante esse período percebeu o

preconceito, a humilhação e o tratamento desigual que sua condição econômica lhe impunham,

conforme mencionado por Santos (2011) e descrito por Neto (1984, p. 18):

Ele estava lá para ganhar bolsas de estudo e ganhar renome para o

colégio, e os diretores deixavam isto bem claro. Os alunos mais pobres

sofriam toda forma de pequenas humilhações, destinadas a lhes mostrar

seu devido lugar, só alunos ricos ou de origem nobre tinham privilégios

adicionais e, principalmente não sofriam castigos físicos, que eram as

punições, inclusive para notas ruins.

Orwell, segundo Santos (2011, p. 66), ainda jovem, decide não ir para uma das mais

renomadas universidades britânicas e opta pela carreira militar. Durante seu período a serviço

do império britânico na Birmânia1, Orwell presenciou injustiças “contra o povo birmanês que

resistia a invasão do império britânico e lutava por sua liberdade” como descritas na carta:

(...) o imperialismo era algo maligno e que o quanto antes eu

renunciasse ao emprego e saísse dali, tanto melhor. Na teoria – claro e

no íntimo – eu era a favor dos birmaneses e contra os opressores, os

britânicos (...) isso me oprimia com uma sensação de culpa

insuportável. (HITCHENS, 2010, p. 26 apud SANTOS, 2011, p. 66-67)

Esse período na Birmânia, de acordo com Santos (2011), mudou profundamente Orwell.

Neto (1984, p. 29) menciona que, de licença, em sua volta para Inglaterra em 1927, Orwell

decide largar o serviço militar pois sua consciência pesada “necessitava de alguma forma de

expiação, o que ajuda a explicar suas atitudes posteriores”. Era a vez então de passar para o

outro lado depois de tanto tempo identificado com os opressores.

Segundo Neto (1984, p. 33-34) Orwell confessa em uma carta para um colega que:

(...) sentia que teria que escapar não meramente do imperialismo, mas

de qualquer forma de domínio do homem sobre o homem. Eu queria me

submergir, descer junto aos oprimidos, ser um deles e estar ao seu lado

contra seus tiranos.

1 República da União de Mianmar, como consta na constituição do país, ou Birmânia, nome dado por seus

colonizadores no século XIX, país do sudeste asiático.

Page 24: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

24

Orwell sempre buscava estar o mais próximo possível do tópico que buscava escrever

para influenciar seus escritos, tanto que todas suas obras possuem relações diretas com suas

experiências pessoais e para Neto (1984, p. 12) Orwell “pertencia àquele gênero de autores para

quem o melhor tema para escrever é o que se conhece melhor”, se algo o interessava:

Ele mergulhava apaixonadamente, sem ligar para consequências – o

exemplo mais pitoresco foi sua tentativa em ser preso para poder

descrever a vida numa prisão. Seus primeiros livros tiveram a pobreza

como tema principal, e ele chegou a viver algum tempo como mendigo.

Contudo, talvez sua experiência mais marcante tenha sido no ano de 1936. Neto (1984,

p. 12) menciona que a participação de Orwell na Guerra Civil Espanhola ao lado dos

anarquistas, trotskistas e da esquerda antisstalinista acarretou em uma profunda “crença de

decência inata no povo comum”, e desgosto “com o papel da intelligentsia2” já que esta estaria

contagiada pela doutrina da adoração do poder típica de nossa época, esquecida dos valores

humanistas do passado”.

A Guerra Civil Espanhola, segundo Santos (2011, p. 69-70), serviu para que Orwell

conhecesse bem como as práticas e a política stalinistas eram e testemunhou a ameaça do

totalitarismo. A partir de então, Orwell percebeu que o stalinismo estava mais preocupado com

a formação do império russo do que com a libertação dos povos. Apesar de vestirem roupas

marxistas libertárias, suas práticas eram extremamente ditatoriais e repressivas. Santos (2011)

diz que “essa contradição fez com que Orwell centralizasse seus escritos tanto em artigos como

romances para denunciar a política adotada pelo governo russo e a figura de Stalin”.

Stalin era considerado um “assassino repugnante” por Orwell e um de seus objetivos

políticos era livrar o Ocidente do que chamou de “mito soviético3” e a forma mais prática de

disseminar essa ideia foi o que deu origem a A Revolução dos Bichos, uma das suas mais

relevantes obras no tocante à denúncia política juntamente com 1984.

3.2. Dois + Dois = Cinco

Impossível não associar esse simples erro matemático à uma das mais famosas

expressões que remetem diretamente à manipulação do partido totalitário da obra 1984 de

George Orwell. Onde quer que vejamos que dois mais dois é igual a cinco lembraremos

2 Conjunto de intelectuais que guiam ou buscam guiar o desenvolvimento político, artístico ou social de suas

sociedades. 3 Segundo Neto (1984, p. 72) “a crença de que a URSS é um estado socialista”

Page 25: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

25

automaticamente do mundo distópico de Orwell, talvez apenas a palavra duplipensar4 possua

uma associação mais forte com a obra do que 2+2=5, apesar de ser uma representação do

duplipensar.

A obra 1984 foi escrito por George Orwell em 1948, década inversa ao título do romance

o que ocasionou em diversos questionamentos como o quê Orwell pretendia com 1984, se

estaria ele prevendo um terrível futuro para a sociedade ou seria apenas uma crítica ao regime

stalinista?

Santos (2011, p. 73) menciona que a crítica existente em 1984 não somente denunciava

os expurgos stalinistas, mas também a “baixeza moral que sua época esteve mergulhada”,

devido ao fato de que “todo expurgo stalinista teria sido esquecido momentaneamente durante

o período que o ditador Stalin era considerado aliado”. Para Santos (2011) a publicação de 1984

também conseguiu lembrar que Stalin, então aliado da Inglaterra, era um tirano e que ao se aliar

a ele o império britânico não se faria mais nobre.

Silva (2010, p. 220) considera que a temática de 1984 relaciona a memória e a história

como arma de ação política, visto que parte dela foi concebida em meio a ascensão de regimes

totalitários como na Itália de Mussolini e na Espanha de Franco, o que era uma ameaça à

democracia. Considerando essa temática política e o “aviso” de Orwell, Neto (1984, p. 84) diz

que 1984 “é a descrição do mundo imaginado pelos neopessimistas. Para Orwell, eles

cometeram o gravíssimo erro de considerar o totalitarismo como inevitável(...)” e menciona

também que Orwell declarou que escreveu 1984 com isso em mente: “Eu acredito que ideias

totalitárias se enraizaram nas mentes dos intelectuais em toda parte, e eu tentei induzi-las às

suas consequências lógicas”.

Neto (1984) então considera que a repulsa provocada ao ler a obra foi planejada para

servir como um aviso do futuro terrível que poderia acontecer, assim como dito por Orwell.

O romance 1984 trouxe à tona discussões sobre assuntos atemporais que são de extrema

importância para sociedade. A centralização da economia, divisão do mundo em “zonas de

influência” das superpotências, a opressão de um governo totalitário, líderes opressores e todo

o poder de manipulação da elite.

4 Neto (1984, p. 78) define o Duplipensar como “a capacidade de guardar simultaneamente duas crenças

contraditórias na cabeça, aceitando ambas”. Sabemos que 2+2=4, contudo se o Grande Irmão diz que 2+2=5,

apesar de ser comprovadamente um resultado errôneo, temos que considerá-lo verdade absoluta pois o Grande

Irmão nunca erra e questiona-lo é crime.

Page 26: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

26

A divisão do mundo em zonas de influência é demonstrada por Orwell na obra com as

três principais potências: Oceânia, Lestásia e Eurásia, cada qual com seu sistema totalitário e

sempre em guerras entre si, já que a guerra era financeiramente interessante pois estimulava o

aumento na produção de armamentos e de outros materiais para guerra, consequentemente os

membros do partido trabalhavam mais e a guerra era um ótimo pretexto para economizar as

rações e reduzir outros “benefícios” dos membros dos partidos.

No fictício país da Oceânia o ser humano tem sua vida vigiada por um sistema de

câmeras onipresentes atentas a qualquer tipo de pensamento ou possível atitude herege e que

representam o Grande Irmão, Big Brother, o líder supremo do partido totalitário Socing, ou o

socialismo inglês de acordo com Orwell (2009).

O partido é divido em quatro ministérios distintos segundo Orwell (2009, p. 14): “O

Ministério da verdade, responsável por notícias, entretenimento, educação e belas-artes, O

Ministério da Paz, responsável pela guerra. O Ministério do Amor, ao qual cabia manter a lei e

a ordem. E o Ministério da Pujança, responsável pelas questões econômicas”.

O Socing estabelece um governo opressor e manipulador que tem contradições como

slogans: “Guerra é Paz”, “Liberdade é escravidão” e “Ignorância é Força”. Slogans que

remetem diretamente ao duplipensar e apresentam a clara intenção de delimitação de

pensamento crítico dos cidadãos por intermédio das contradições, influências como

manipulação da mídia e uma futura delimitação da língua por intermédio da utilização da

novilíngua como idioma oficial da Oceânia para impossibilitar que ideologias contra o partido

possam ser reproduzidas e as relações de poder sejam sustentadas.

3.3. (Novi)Língua e Poder

“Se o pensamento corrompe a linguagem, a

linguagem também pode corromper o

pensamento.”

(George Orwell)

A linguagem exerce um papel fundamental na sociedade desde a antiguidade e segundo

Fiorin (2010) é por meio dela que podemos nomear, criar e transformar o universo real assim

como a troca de experiências, falar sobre o que existiu e o que poderá a vir existir. Bem como

não há sociedade sem linguagem, não há sociedade sem comunicação. Ainda de acordo com

Fiorin (2010), a linguagem verbal é matéria do pensamento e veículo da comunicação social.

Dessa forma, tudo produzido como linguagem ocorre em sociedade e para ser comunicado

Page 27: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

27

constitui uma realidade material que se relaciona com o exterior. A linguagem é relativamente

autônoma como expressões de ideias, propósitos e emoções, no entanto, ela é orientada pela

visão de mundo, pelas injunções da realidade social, histórica e cultural de seu falante, portanto

por vezes é utilizada como poderosa ferramenta política, e assim é capaz de influenciar e causar

inúmeros impactos socioculturais, como citado por Orwell na epígrafe desse subcapítulo

Sendo a linguagem verbal materia do pensamento e veículo da comunicação social, não

seria ela carregada de ideologia? Fiorin (2010, p.61) afirma que nenhuma comunicação é neutra

ou ingênua no sentido de que nela estão em jogo os valores ideológicos dos sujeitos da

comunicação. Bakhtin menciona que diferentes classes sociais utilizam do mesmo sistema

linguístico, contudo, não produzem discursos ideologicamente semelhantes e com isso

instalam-se choques e contradições que fazem da língua “a arena onde se desenvolve a luta de

classes”. (FIORIN, 2010. apud BAKHTIN, 1981, p. 46)

As línguas artificiais também são orientadas por injunções da realidade social, histórica

e cultural, principalmente por terem sido criadas com um propósito específico e não como fruto

natural da comunicação de um povo. Isso é o que ocorre com o idioma artificial criado pelo

governo totalitário de 1984 (2009). O newspeak, também traduzido como novafala ou

novilíngua, é um idioma carregado de propósitos, lexicalmente pobre, porém destaca-se por

uma polivalência e ambiguidade semântica de certos vocábulos para que através do domínio da

fala a novilíngua seja mais um dos diversos meios de manipulação que proporcionariam a

consolidação e sustentação do Socing na obra. A novilíngua, depois de pronta, ocasionaria na

delimitação do pensamento crítico e consequentemente um maior controle sobre os indivíduos,

evitando assim a propagação de pensamentos heréticos e a luta contra a dominação.

Tendo em vista a importância da língua/linguagem para a manutenção do poder e

ideologia do partido. Santos (2011) discute o conceito de língua/linguagem em 1984 (2009) e

afirma que a linguagem é multifacetada e atravessada por diferentes vozes provenientes dos

discursos sociais tanto na vida como na arte. Dessa forma, Santos (2011) revelou ser viável

tratar a novilíngua como uma língua de fato e não como um sistema de códigos ou qualquer

outro meio de comunicação menos complexo ou inferior a língua humana, entendendo a língua

não somente como conjunto de regras gramaticais, mas como: “um conjunto difuso de

variedades geográficas, temporais e sociais(...) atravessado por índices sociais de valores

oriundos das diversas experiências sócio-histórica dos grupos sociais(...)” (SANTOS, 2011.

apud FARACO, 2009, p. 57)

Page 28: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

28

Assim como Santos (2011) que ao afirmar que o controle semântico da novilíngua está

atrelado a manipulação da mente do sujeito falante para que este coloque em funcionamento

apenas os sentidos autorizados, Garcia e Mozzillo (2010) afirmam que a novilíngua foi

construída a partir de uma “simplificação” radical do inglês, ou seja, uma diminuição proposital

do léxico a fim de reduzir as possibilidades de pensamento. Além de ressaltarem que por ser

um idioma proveniente de uma obra distópica, um gênero que trata o autoritarismo, a novilíngua

é apresentada como um meio de domínio sobre o indivíduo, diferentemente de outras línguas

artificiais, já que possui seus sentidos construídos sobre conceitos pré-existentes, ou seja, o

vocabulário da novilíngua é criado a partir de palavras da língua natural vigente, a anticlíngua.

Todavia, mesmo sendo estruturalmente e semanticamente dependentes da anticlíngua, as

palavras não apresentam um sentido único e que possam ser traduzidos para um termo de língua

natural, assim como mencionado por Garcia e Mozzillo (2010, p. 7): “Nem uma palavra da

novilíngua pode ser compreendida superficialmente ou sem algum significado político que não

remeta a uma reflexão sobre a situação real da coletividade humana”.

Neto (1984) descreve a finalidade da novilíngua como destinada a eliminar pensamentos

subversivos e que teve origem nos comentários que Orwell fazia sobre o papel da linguagem

na literatura e principalmente na política, pela forma que políticos e intelectuais corrompiam o

sentido das palavras e a maneira pela qual emitiam opiniões contraditórias, onde ambas eram

aceitas.

O próprio Orwell (2009, p. 68, 69) através da personagem Syme, uma das responsáveis

pela construção da décima primeira edição do dicionário de novilíngua na obra, explica o

objetivo da criação da língua:

(...) Você não vê que a verdadeira finalidade da Novafala é estreitar o

âmbito do pensamento? No fim, tornaremos o crimepensar literalmente

impossível, já que não haverá palavras para expressá-lo. Todo conceito

de que pudermos necessitar será expresso por apenas uma palavra, com

significado rigidamente definido, e todos seus significados subsidiários

serão eliminados e esquecidos. Na Décima Primeira Edição já estamos

quase atingindo esse objetivo. Só que o processo continuará avançando

até muito depois que eu e você estivermos mortos(...). A Revolução se

completará quando a língua for perfeita. A Novafala é o Socing, e o

Socing é a Novafala(...)

A novilíngua não era apenas mais uma das incontáveis ferramentas de manipulação do

partido, toda a ideologia e o intuito por trás dessa língua na obra de Orwell a coloca em um

patamar superior, tanto que o autor dedica um apêndice, “Os princípios da Novafala”,

Page 29: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

29

totalmente destinado à contextualização da língua e sua estrutura, o que reitera a importância

dessa ferramenta no contexto da obra.

A destruição lexical e a delimitação semântica das palavras em novilíngua reduziriam

de forma significativa o fluxo de pensamento humano, assim, a partir do momento que

pensamentos dependem de palavras para serem formulados, eles dificilmente poderiam divergir

dos princípios estabelecidos pelo sistema. O vocabulário da novilíngua, conforme Orwell

destaca no apêndice da obra (p.347), foi elaborado a fim de conferir expressões exatas e literais

a todos os significados que um membro do partido pudesse apropriadamente querer transmitir,

ao mesmo tempo que excluía todos os demais significados e inclusive a possiblidade de chegar

a eles por meios indiretos, restringindo e estruturando o vocabulário da língua em três classes

distintas. Para que tal feito fosse possível, a língua ganhou novas palavras, recorreu a

eliminação daquelas que consideravam indesejáveis, bem como à subtração de significados

heréticos e até onde fosse possível, de todo e qualquer significado secundário que pudesse

apresentar algum pensamento divergente. A novilíngua, então, viu-se estruturada em:

Vocabulários A, B e C. As três classes de palavras foram divididas de acordo com suas

peculiaridades, contudo, obedeciam às mesmas regras gramaticais.

O vocabulário A é composto por palavras destinadas exclusivamente a exprimir

pensamentos simples e de uso cotidiano. Os lexemas que compõem a classe A são palavras já

existentes na língua inglesa como: comer, beber, trabalhar, subir, descer, cão, árvore, casa, entre

outras. Todas as palavras do inglês que se enquadravam no vocabulário A e que apresentaram

qualquer tipo de polissemia semântica foram eliminadas, restando apena vocábulos

monossêmicos cuja sonoridade curta exercia outro fator importante: o conceito de simplicidade

e clareza que dificilmente os lexemas dos vocabulários B e C apresentavam.

O vocabulário C, segundo Orwell (2009), é composto por palavras científicas e técnicas

e, de acordo com Santos (2011) e Osike (2011) um número muito pequeno das palavras do tipo

C eram utilizadas no dia a dia, cada profissional estava limitado a palavras dentro do contexto

de sua especialidade.

No tocante ao vocabulário B, objeto de estudo desse trabalho, este grupo abrange

palavras compostas criadas para fins políticos. Orwell (2009, p. 352) afirma que sem uma real

compreensão dos princípios do Socing era difícil empregar tais palavras corretamente. Em

alguns casos, era possível traduzi-las para anticlíngua ou mesmo para palavras do vocabulário

A, porém isso em geral exigia longas paráfrases e sempre resultava na perda de certas nuances

Page 30: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

30

de sentido. Tratava-se de uma espécie de taquigrafia verbal, frequentemente resumindo grandes

extensões de ideias em poucas sílabas, mostrando-se, ao mesmo tempo, mais precisas e eficazes

do que o vocabulário empregado no dia a dia.

Santos (2011) destaca que o vocabulário B além de consistir em palavras que giravam

em torno de assuntos políticos, também visava impulsionar uma atitude mental sobre a pessoa

que estava usando esta classe de palavras. Osike (2011) atesta que a principal função das

palavras do vocabulário B é a destruição de significados. Osike (2011) diz ainda que cada

palavra tinha seu significado ampliado de modo a abarcar várias outras que, contidas em uma

só, acabavam por cair em desuso. Bem como o próprio Orwell (2009, p. 353) ao mencionar que

certas palavras da novilíngua possuíam seus significados ampliados até que elas pudessem

conter em si mesmas exércitos inteiros de vocábulos que, estando devidamente representado

por um único termo, podiam ser então eliminados e esquecidos.

Algumas palavras incluídas no vocabulário B possuíam significados

extremamente sutis, quase ininteligíveis para que os que não

dominassem o idioma de todo. Veja-se, por exemplo, uma frase típica

de um editorial do Times, como Pensocrépitos desventresentem o

Socing. A tradução mais sucinta disso em Velhafala seria: “Aqueles

cujas ideias se formaram antes da revolução não tem como alcançar

uma compreensão sensível dos princípios do Socing. Além disso,

apenas uma pessoa imersa no universo ideológico do Socing seria capaz

de perceber toda a força da palavra ventresentir, que implicava uma

aceitação cega e entusiástica, difícil de ser imaginada hoje em dia, ou

do termo pensocrépito, que estava inextricavelmente vinculado à ideia

de perversidade e decadência.

Por meio desse trecho supracitado de Orwell (2009), é notável como a polissemia

semântica do vocabulário B é peça primordial na destruição de vocábulos heréticos e

consequentemente na consolidação do poder do partido. Rossa (2001, p. 23) define polissemia

como a existência de mais de um sentido, estando os sentidos associados a um item lexical e

mantendo entre si algum tipo de relação semântica. Partilhando da mesma visão, Bidarra (2010,

p. 4) menciona:

Significados não guardam entre si qualquer tipo de relação (casos de

homonímia), mas quando, ao contrário, mantêm uns com os outros uma

ligação semântica intrínseca. Essa última, por isso chamada polissemia,

por suas características e comportamento(...)

Assim como Rossa (2001) e Bidarra (2010), Fiorin (2011, p. 130) descreve que a

polissemia está relacionada ao uso do discurso que se faz de uma mesma palavra, dessa forma

possui um único significante que corresponde à vários significados.

Page 31: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

31

4 ANÁLISE DOS LEXEMAS DO VOCABULÁRIO B

“Ninguém, não importa quão inteligente ou

habilidoso em pensamento crítico, está protegido

contra sugestões subliminares que se cunham no

nosso subconsciente (...)” 5

(bell hooks)

A metodologia utilizada para atingir o objetivo seguiu a respectiva dinâmica: foram

selecionados nove lexemas que compõem o vocabulário B presentes no corpus 1894 (2009),

posteriormente, sob à ótica da Teoria Social do Discurso de Fairclough (2001) e sua concepção

tridimensional do discurso, analiso os lexemas selecionados priorizando as dimensões texto e

prática social, dando um maior enfoque para as categorias analíticas: vocabulário, ideologia e

hegemonia. A primeira para análise das palavras selecionadas do vocabulário B de novilíngua,

ideologia para a análise dos sentidos dessas palavras e hegemonia para análise de suas

inclinações políticas, sociais e ideológicas.

Ademais, para a seleção dos lexemas a serem analisados, optei pela escolha dos

vocábulos cuja importância ideológica e polivalência semântica tendem a ser primordiais na

estruturação das relações de poder e delimitação do pensamento crítico na obra 1984 (2009).

As palavras selecionadas são: bompensar, ventresentir, duplipensar, sexocrime, benesexo,

crimepensar, pensamento-crime, crimeinterrupção, patofalar.

Os vocábulos supracitados são palavras compostas e, em sua grande maioria

substantivos-verbos, todas de fácil pronunciação. Essas palavras fazem parte do vocabulário B

de novilíngua e são utilizadas em alusão à pensamentos e ações de cunho político e ideológico.

Algumas delas, por apresentar um campo semântico muito amplo, acabam englobando termos

considerados contraditórios e ainda assim remetem ao que é proposto pelo partido totalitário da

obra, refletindo positivamente e/ou negativamente de acordo com a intenção do partido.

No que se refere à análise, as dimensões dos fenômenos da novilíngua que acarretam as

estruturações das relações de poder e a delimitação do pensamento crítico na obra são

analisados por diferentes fatores, dentre os quais os principais são: (1) o número de menções na

obra (2) os diferentes termos que podem ser englobados pela palavra; (3) sua significação

5 Tradução minha de: “No one, no matter how intelligent and skillful at critical thinking, is protected against the

subliminal suggestions that imprint themselves on our unconscious brain (…)”

Page 32: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

32

ideológica. Esses fatores estão organizados em uma tabela com a análise individual dos lexemas

selecionados.

A relação de palavras com seus significados é de muitos-para-um e não de um-para-um

como menciona Fairclough (2001). O campo semântico do vocabulário B da novilíngua é um

exemplo disso por possuir uma polivalência semântica bem mais abrangente do que as línguas

naturais, tal qual uma única palavra é capaz de expressar uma variedade de significados, muitas

vezes através de longas paráfrases, e dependendo dos interlocutores e do contexto que está

inserido, esses sentidos podem ser alterados de acordo com a ideologia pregada pelo Socing.

No entanto, certas palavras se apresentaram ideologicamente primordiais para a estruturação

do Socing e, portanto, foram as selecionadas para esse trabalho.

Abaixo apresento uma tabela com a frequência que as palavras bompensar, ventresentir,

duplipensar, sexocrime, benesexo, pensamento-crime, crimepensar, crimeinterrupção,

patofalar são mencionadas tanto no decorrer do romance quanto no posfácio escrito por Orwell

(2009).

Tabela 1 - Número de ocorrências

Palavras Número de menções

Bompensar 1 Posfácio

Ventresentir 2 Posfácio

Duplipensar 25 Obra e Posfácio

Sexocrime 1 Posfácio

Benesexo 1 Posfácio

Pensamento-crime 12 Obra

Crimepensar 1 Posfácio

Crimeinterrupção 6 Obra

Patofalar 2 Obra e Posfácio

Page 33: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

33

Como visto na tabela, algumas palavras apareceram poucas vezes no decorrer do

romance ou até mesmo somente no posfácio, isso ocorre porque a novilíngua ainda está em

desenvolvimento e, portanto, não está sendo usada por completo, apesar de já ser considerada

a língua oficial, somente algumas décadas mais tarde ela seria implementada e aboliria o inglês

comum. Além disso, optei pela inclusão dos vocábulos pensamento-crime e sexocrime que

apesar de poderem ser atribuídos ao campo semântico do vocábulo crimepensar, assim como

benesexo e duplipensar de bompensar, considero imprescindíveis para a estruturação

hegemônica por meio da língua.

Apesar de não ser um exímio linguista, Orwell foi capaz de criar palavras que

consolidariam a novilíngua como o projeto mais ousado e promissor de controle de pensamento.

Todos campos semânticos dos vocábulos listados acima corroboram com os princípios do

Socing. A significação política e ideológica, segundo Fairclough (2001) podem ser identificadas

por intermédio da análise do vocabulário e, nesse caso, da criação de palavras, além de

mencionar a importância do sentido que essas palavras podem exprimir.

Assim como mencionado no Capítulo 2, toda a palavra abarca uma gama de significados

convencionalmente associados a ela que geralmente são representadas nos dicionários,

classificada como “significado-potencial” por Fairclough (2001).

Partindo desses pressupostos apresento nas próximas páginas duas tabelas, a primeira

com o significado-potencial de cada um dos lexemas selecionados tendo como base o apêndice

de Orwell (2009), e a segunda com a representação das palavras correspondentes à sua gama

polissêmica, sua ambivalência-potencial, como classifica Fairclough (2001).

Page 34: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

34

Tabela 2 - Significado-Potencial

Palavras Significado-Potencial

Bompensar Pensar de maneira ortodoxa, seguindo

indiscutivelmente os princípios defendidos pelo Socing.

Ventresentir Aceitação cega e entusiástica.

Duplipensar

Capacidade de abrigar duas crenças contraditórias e

acreditar em ambas, levando em consideração o que o

Socing define como verdade.

Sexocrime Quaisquer pensamentos, tentativas ou ato sexual cujo

principal motivo seja o prazer.

Benesexo Sexo como algo desagradável, uma obrigação somente

com o intuito de procriar.

Pensamento-crime Pensamentos que divergem dos princípios do Socing.

Crimepensar Capacidade de considerar qualquer pensamento que

divirja dos princípios do Socing.

Crimeinterrupção Capacidade de estacar, como por instinto, todo

pensamento perigoso.

Patofalar

Substantivo-verbo que possui dois sentidos

contraditórios. Quando aplicada a um adversário, é uma

ofensa; aplicada a alguém que você concorda, é elogio.

Page 35: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

35

Tabela 3 - Ambivalência-Potencial

A polissemia semântica das palavras do vocabulário B de novilíngua impossibilita

traduções exatas, muitas vezes, somente por meio de longas paráfrases é possível definir o

significado-potencial desses vocábulos. Fairclough (2001, p. 231) menciona que em alguns

Palavras Ambivalência-Potencial

Bompensar

Totalitarismo, tradicionalismo, desigualdade, violência,

submissão, duplipensar, não questionamento aos

princípios do socing, castidade, sexo para fins

reprodutivos, idolatria ao Grande Irmão

Ventresentir Intrínseco, enraizado, determinado, profundo,

significativo

Duplipensar Duplicidade, dualidade

Sexocrime Homossexualidade, adultério, fornicação, sexo por

prazer

Benesexo Castidade, sexo para fins reprodutivos

Pensamento-crime Dúvida, inovação, ciência, razão, lógica, liberdade,

justiça, internacionalismo, igualdade, prazer, moralidade

Crimepensar

Dúvida, inovação, ciência, razão, lógica, liberdade,

justiça, internacionalismo, igualdade, prazer, moralidade,

homossexualidade, adultério, fornicação, sexo por

prazer.

Crimeinterrupção Interromper, estacar, deter o pensamento-crime

Patofalar Grandiloquente, eloquente, convincente, expressivo,

prolixo, confuso, ininteligível, impreciso, atrapalhado.

Page 36: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

36

casos os significados-potenciais são ilusórios, “especialmente onde palavras e significados

estão envolvidos em processos de contestação e mudança social e cultural”.

O objetivo da novilíngua é a consolidação da hegemonia por meio da imposição

ideológica, tendo o vocabulário B como o mais importante por controlar e manipular pontos-

chaves, por apresentar vocábulos que são utilizados para se referir à questões políticas e

ideológicas, além de possuir uma rica variação semântica que segundo Pêcheux (apud

FAICLOUG 2001, p. 232) “é uma faceta e um fator do conflito ideológico”. Desse modo, os

falantes de novilíngua estão diante de escolhas muito restritas sobre como e quando usar uma

palavra para expressar pensamentos políticos e ideológicos, além de como interpretá-las.

A utilização das palavras do vocabulário B, mais especificamente as analisadas nesse

trabalho, corroboram com o discurso hegemônico do partido. O discurso na obra é moldado e

restringido pelas relações de poder e classe social.

Na obra de Orwell, os habitantes da Oceânia são divididos em três classes sociais

distintas. O Partido, Socing, está dividido em duas classes sociais, uma elite na qual estavam os

melhores postos e importantes membros que possuem certas regalias, o Partido Interno, e o

Partido Externo que é formado por funcionários secundários, como a personagem principal

Winston, e por último os Proletas, a população comum que vivia sob condições precárias e não

tinham a capacidade de produzir qualquer tipo de pensamento-crime, eles não eram vigiadas da

mesma forma que os membros do Partido Interno, portanto não havia necessidade de se

comunicarem em novilíngua.

A ideologia defendida pelo Socing apresenta uma função material e simbólica dos

interesses do Partido, mais precisamente do Partido Interno, que prevalecem no discurso. As

escolhas e decisões não são puramente individuais dos intérpretes, como dito por Fairclough

(2001).

A novilíngua foi planejada para ser uma versão padronizada e manipuladora de idioma,

qualquer discurso mais complexo do que atividades cotidianas não é feito conscientemente

pelos membros do Partido Externo, visto que a ideologia e as crenças do Socing são socialmente

compartilhadas no discurso. Ademais, o objetivo de transformar a língua padrão em uma língua

monossêmica, o que de fato inviabiliza versões particulares de crenças e ideologias, erradicaria

contradições e questionamentos que levariam à luta contra a dominação, não sendo necessário

o uso de outros métodos como tortura e ameaças.

Page 37: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

37

O discurso dos membros do Partido Externo é aparentemente o mais manipulado pela

elite da Oceânia. As palavras analisadas nesse capítulo são pontos-chaves na coerção de

pensamentos divergentes ao Socing e são responsáveis pela manutenção da estrutura

hegemônica na sociedade da obra como representado na figura a seguir:

A figura onipresente, onipotente e onisciente do Grande Irmão pode ser considerada

como a personificação do Socing, portanto é posicionada no topo da tabela hierárquica. A

função ideológica da figura do Grande Irmão é servir apenas como uma representação simbólica

do Socing, que é controlada pela elite, o Partido Interno, que representa 2% da população da

Oceânia e é encarregado de suprimir a individualidade dos cidadãos e reforçar que destinem

toda suas vidas ao Socing. Para tal, o Partido Interno é responsável pelo desenvolvimento e

implementação da novilíngua, pelo controle da mídia, administração da mão de obra

trabalhadora e supervisão de todos os membros da classe mais baixa do Partido, o Partido

Externo que representa 13% da população, visando a manutenção das relações de poder.

Enquanto os Proletas, apesar de maioria, 85% dos habitantes da Oceânia, possuíam mais

liberdade por estarem longe do alcance das teletelas e da Polícia das Ideias6. Isso apenas ocorre

6 Polícia das ideias ou Patrulha do Pensamento, como o nome já diz é o órgão responsável pelo patrulhamento do

pensamento e atitudes dos membros do Partido.

Figura 2 - Organização Hierárquica da Oceânia

Page 38: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

38

pois são considerados inofensivos para o sistema, então os Proletas somente eram punidos por

crimes comuns e não por pensamento-crime, já que não existia esse perigo.

Os Proletas, assim como menciona Winston na obra, deveriam ser os principais autores

de uma futura revolução contra o Socing. A importância dada aos Proletas está diretamente

ligada ao fato de possuírem uma menor supervisão do Partido, por serem considerados como

inofensivos, incapazes de sustentar ou até mesmo imaginar uma revolução hegemônica e

principalmente pela não utilização da novilíngua, o que possibilitaria a disseminação de ideias

contrárias e propagação do posicionamento revolucionário que a novilíngua não é capaz de

permitir por todo seu controle ideológico.

Como mencionado por bell hooks na epígrafe desse capítulo “ninguém está protegido

contra sugestões subliminares” e isso se prova com o controle ideológico apresentado pela

novilíngua, os mais claros exemplos são as palavras do vocabulário B analisadas nesse estudo.

A palavra duplipensar e todas suas variações, por exemplo, estão estritamente ligadas

aos princípios de duplicidade e mutabilidade do passado, conceitos presentes em praticamente

qualquer referência ao Socing e ao Grande Irmão. Esse vocábulo encaixa-se nas entrelinhas dos

três principais lemas do partido “Guerra é Paz”, “Liberdade é Escravidão” e “Ignorância é

Força”, além do famoso 2+2=4.

O paradoxo do duplipensamento remete à ortodoxia, ao bompensar, é uma palavra

utilizada frequentemente por todos os membros do Partido, do nível mais baixo à elite para

reforçar os princípios do Socing, erradicar o pensamento-crime e qualquer dúvida quanto a

veracidade das informações providas pelo Grande Irmão.

Crimepensar, pensamento-crime e todas suas variações também estão diretamente

ligadas aos princípios do Socing, e têm como o intuito reprimir e erradicar o pensamento/atitude

herege. As palavras crimepensar e pensamento-crime talvez sejam as palavras mais utilizadas

no discurso recorrente na obra, cuja novilíngua ainda não fora totalmente implementada. Esses

vocábulos são utilizadas por todos os membros do partido, em especial pelas classes mais

populosas do Partido, o Partido Externo.

Outro fator importante ligado ao uso frequente da novilíngua e principalmente das

palavras crimepensar, pensamento-crime, duplipensar, bompensar e crimeinterrupção traz

uma referência ao papel do Governo na educação. A educação das crianças é exclusivamente

feita por órgãos do Partido, os pais não possuem a mínima participação no processo. Os órgãos

do Partido são responsáveis por doutrinarem essas crianças com os ideais do Socing, o que

Page 39: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

39

ocasiona numa diminuição dos laços afetivos entre as família, tendo o amor ao Grande Irmão

acima de tudo. À essas crianças e jovens são atribuídas grandes responsabilidades junto ao

Socing e eles servem como uma ramificação da Polícia das Ideias que além da utilização das

teletelas7 possuem o auxílio constante da Tropa dos Espiões8.

Muitos jovens também participam da Liga Juvenil Antissexo, organização responsável

por pregar a castidade, utilizando constantemente os vocábulos benesexo e sexocrime em seus

discursos. O sexo em 1984 é proibido pelo Partido, o sexo só é feito como uma contribuição ao

Grande Irmão, apenas para fins reprodutivos. O discurso sexual na obra é extremamente restrito

a benesexo e sexocrime visto que a liberdade sexual pode ocasionar paixões e desviar os

membros do Partido do amor ao Grande Irmão cujas consequências poderiam ser um estopim

para a revolução, como demonstrado no romance entre Winston e Júlia.

Quanto aos vocábulos patofalar e ventresentir, eles são aparentemente utilizados por

um extremo conhecedor da novilíngua, talvez por serem palavras recentes no contexto atual da

obra.

O vocábulo patofalar é encontrado no discurso da personagem Syme para descrever os

avanços da novilíngua e como essa delimitação de palavras é fundamental na manutenção do

Socing. Esse lexema demonstra claramente o totalitarismo e a preocupação do Partido com as

definições de aliados e inimigos. Numa sociedade como a Oceânia, onde o totalitarismo do

Socing e a figura do Grande Irmão não permitem a escolha de quem é inimigo ou aliado, um

vocábulo cujos sentidos variam de acordo com os interpretes e à quem são deferidos demonstra

uma visível relação de poder existente no discurso. Não existe livre escolha ao utilizar a palavra

patofalar e suas variações, todos os posicionamentos já estão predefinidos pelo Socing, porém

podem ser mudados a qualquer momento pelo Grande Irmão.

Dizer que alguém patofala é uma forma de reforçar os princípios do Socing e refutar

posicionamentos opostos à ideologia do Partido. Um exemplo seria a frase: Os líderes da

Eurásia patofalaram sobre as técnicas de guerra do Grande Irmão. Nessa frase, os líderes

Eurasianos podem ter falado inteligivelmente e elogiado o posicionamento do Grande Irmão,

7 Teletela é um tipo de supertelevisão instalada em todas as moradias e lugares de convivência dos membros do

Partido. Ao mesmo que transmite informativos e ordens do Partido, a teletela também vigia cada centímetro do

local, os sons, expressões faciais e qualquer atitude que possa se enquadrar em um pensamento-crime. 8 A Tropa dos Espiões pode ser considerada como uma tropa de “escoteiros” cuja função é que as crianças que são

espiões delatem qualquer atividade suspeita de pensamento-crime.

Page 40: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

40

caso sejam aliados, tanto como podem ter mencionado falácias, posicionamentos errôneos e

absurdos referente as técnicas do Grande Irmão caso seja considerado inimigos.

Ventresentir, por outro lado, não possui um valor ideológico tão importante quanto os

vocábulos anteriores, mas remete ao extremo conhecimento de algo, um domínio tão profundo

que alguém que ventresente os ensinamentos do Grande Irmão domina os princípios do Socing

com maestria e é tido como um exemplo a ser seguido. Seu antônimo, desventresente, refere-

se a incapacidade de atingir tal ponto essencial para a compreensão de algum princípio. A

palavra ventresentir e suas variações provavelmente devem ser sucedidas pela palavra Socing

ou quaisquer outras que remetem à ideologia e a ortodoxia do Partido.

Com a consolidação da novilíngua como idioma oficial da Oceânia, todos os lexemas

do vocabulário B seriam utilizados por todo Partido Externo, o principal alvo de manipulação

da elite. O alto escalão do Partido não é mencionado na obra, o mais próximo de um membro

do Partido Interno que conhecemos é O’Brien, que aparentemente não seria afetado pela

implementação da novilíngua, não é interessante para a classe dominante que seus membros

possuam seu pensamento crítico delimitado por conta da língua falada, portanto uma parte da

elite, não todos os membros do Partido Interno, ainda teriam o inglês antigo como língua

principal para que assim sejam capazes articularem seus pensamentos políticos e ideológicos a

fim de manter as relações de poder e erradicar a mínima faísca que possa acarretar em revolução

das classes oprimidas.

Page 41: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

41

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa teve como objetivo compreender os processos ideológicos na estruturação

hegemônica da sociedade de 1984 (2009) e analisar as palavras polissêmicas do vocabulário B

de novilíngua que contribuem para esse fator. As palavras analisadas à luz da Teoria Social do

Discurso de Fariclough (2001) demonstram a preocupação ideológica na escolha de vocábulos

cujo campo semântico apresentasse amplitude suficiente, juntamente com a destruição do léxico

do inglês antigo, para levar o pensamento crítico individual à delimitação desejada. Assim,

provocando o apoio e legitimação dos posicionamentos defendidos pelo Socing, a língua pode

então ser considerada a principal ferramenta para a consolidação do poder.

A elaboração desse trabalho gerou uma preocupação maior acerca dos discursos

ambíguos e falaciosos propagados pelos meios de manipulação da elite. Diferentemente da

análise de uma língua já estabelecida e completa, a análise crítica do discurso da obra foi mais

complicado do que esperado por impossibilitar a análise dos vocábulos polissêmicos dentro de

sentenças em novilíngua, o que talvez resultaria numa análise mais coerente e precisa dessas

palavras em seu contexto político-ideológico no romance.

Durante todo o processo de pesquisa a intenção desse trabalho foi de apresentar o papel

da língua na estruturação hegemônica de um Governo, permeando a importância da

interpretação dos mais simples discursos e das palavras que exercem posicionamentos políticos-

ideológicos a favor de uma elite. O produto da análise crítica desse trabalho aponta a polissemia

lexical como fator determinante para a delimitação do pensamento crítico e consolidação do

poder na sociedade, apesar de ter analisado o discurso presente numa língua artificial e num

romance, esse controle ideológico não está restrito à língua planejada de 1984, mas é algo

presente nas línguas naturais.

A novilíngua, por estar presente numa obra distópica, deve ser considerada um aviso de

como a língua sob fortes posicionamentos políticos e ideológicos e reforçada pelo uso de

vocábulos polissêmicos é capaz de estruturar as relações de poder na sociedade e erradicar

posicionamentos contrários à ideologia pregada pela elite.

É fundamental que analisemos os discursos propagados pela mídia e figuras influentes

cuidadosamente, nossos discursos muitas vezes são meras representações e reflexos de

discursos opressores planejados a influenciar e controlar os nossos posicionamentos políticos e

ideológicos para que tenhamos a falsa sensação de termos livre escolha. Somente por meio

Page 42: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

42

dessa preocupação seremos capazes de apresentar posicionamentos opostos ao que nos é

estabelecido e assim pararemos de cultuar os Grandes Irmãos do mundo real.

Page 43: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

43

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARAUJO, Rogério Bianchi de. Utopia e antiutopia contemporânea: a utopia da cidadania

planetária e a antiutopia da sociedade de consumo. 2008. 271 f. Tese (Doutorado em Ciências

Sociais) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2008. Disponível em:

<goo.gl/B2GJCV> Acesso em 14 de out. 2016

BIDARRA, Jorge. Polissemia, vagueza e ambivalência: Os intrigantes meandros da

interpretação. In: II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: Diversidade, Ensino e

Linguagem UNIOESTE. Cascavél Paraná. Disponível em: <https://goo.gl/cb5mrZ> Acesso

em: 06 de jun. 2016.

BILLIG, Michael. (2008) The language of critical discourse analysis: the case of

nominalization. Discourse & Society. Sage Publications. 2008. p. 783-800

FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social / Norman Fairclough: Izabel

Magalhães, coordenadora de tradução, revisão técnica e prefácio. Brasília: Editora

Universidade de Brasília, 2001.

FIORIN, José Luiz. Introdução à Linguística II: princípios de análise. 5 ed. São Paulo:

Contexto, 2010. p. 131-135.

GARCIA, Karol; MOZZILLO, Isabella. Facecrime, impessoa e Ingsoc: A língua artificial

enquanto elemento condicionante do sujeito na distopia 1984. In: Encontro do CELSUL, IX,

2010 Palhoça, Santa Catarina. Anais, Universidade do Sul de Santa Catarina, out. 2010. p. 1-

14. Disponível em: <goo.gl/7zXTC7> Acesso em: 25 de maio. 2016.

MAGALHAES, Izabel. Introduction: critical discourse analysis. DELTA, São Paulo, v. 21,

n. spe, p. 1-9. 2005. Disponível em: <goo.gl/QYLLT3>. Acesso em 23 de Set. 2016.

MARTINS, Izabella dos Santos. Reflexões sobre a análise crítica do discurso. DELTA, São

Paulo, v. 21, n. 2. p. 313-321. 2005. Disponível em: <goo.gl/gXKrBH>. Acesso em: 23 de

Set. 2016.

MELLO, Ian Ferreira de. Análise do Discurso e Análise Crítica do Discurso:

Desdobramentos e Intersecções. REVISTA Disponível em: <goo.gl/kWEH1V> Acesso em:

19 de Set. 2016.

NETO, Ricardo B. Orwell: A busca da decência. São Paulo: Brasiliense, 1984.

Page 44: RODRIGO SANCHES PEREIRA - … · Palavras-Chaves: Análise crítica do discurso, Ideologia, Hegemonia, 1984, Novilíngua. ABSTRACT Amongst the variety of techniques and manipulation

44

ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de Discurso: princípios & procedimentos. 8 ed.

Campinas: Pontes, 2009.

ORWELL, George. 1984. Trad. Alexandre Hubner; Heloisa Jahn. 26ª reimpressão. São Paulo:

Companhia das Letras, 2009.

OSIKE, Desirrê Parzianello. Relativismo linguístico em 1984 de George Orwell. 2011. 53 f.

Monografia (Graduação em Letras) – Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes.

Universidade Federal do Paraná, 2011. Disponível em: <https://goo.gl/T5Q0os> Acesso em:

18 de ago. 2016.

RESENDE, Viviane; RAMALHO, Viviane. Análise de discurso crítica. 2 ed. São Paulo:

Editora Contexto, 2011.

ROSSA, L. Indeterminação semântica: ambiguidade, vagueza e polissemia na teoria da

relevância. 2001. 172 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Curso de Pós-Graduação em

Letras. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis. 2001. Disponível em:

<goo.gl/bAFRFO> Acesso em: 04 de jun. 2016.

SANTOS, Rodrigo F. A. dos. O conceito de língua/linguagem em 1984 de Orwell. 2011. 193

f. Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem). Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo. São Paulo. 2011. Disponível em: <goo.gl/FOF1DW>

Acesso em: 01 de jun. 2016.

SILVA, Matheus Cardoso da. O último homem da Europa: A luta pela memória no universo

não ficcional da obra de George Orwell, 1937-1949. 2010. Dissertação (Mestrado em História

Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São

Paulo, 2010. Disponível em: <https://goo.gl/8JxJxr> Acesso em: 06 de set. 2016.

VAN DIJK, T. A. Ideology: A multidisciplinary approach. London: Sage Publications, 1998.

Disponível em: < https://goo.gl/mf7Km7> Acesso em: 04 de set. 2016.

VAN DIJK, T. A. Principles of critical discourse analisys. Discourse & Society. Sage

Publications, 1993. p. 249-283. Disponível em: < https://goo.gl/KQRSvC> Acesso em: 04 de

set. 2016.