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1Revista Observatrio da Diversidade CulturalVolume 01, n 01 (2014)
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Revista Observatrio da Diversidade CulturalVolume 01, n 01 (2014)www.observatoriodadiversidade.org.br/revista
I N D E X
........................................................................................................................................................... 0
Expediente ....................................................................................................................................... 04
Apresentao .................................................................................................................................. 05
Editorial ........................................................................................................................................... 06
CONTEDO
ARTE E ARTESANATO NO INSTITUTO CULTURAL INHOTIM: Construindo uma relao a partir dos princpios da nova Museologia SocialKeila Almeida Gonalves e Sofia Lorena Vargas Antezana ............................................................... 07
CULTURA, FESTA E CIDADE: TECENDO RELAESAriel Lucas Silva e Paulo Miguez ...................................................................................................... 19
A COMPLEXIDADE TNICA E OS DESAFIOS PARA O RELACIONAMENTO DAS ORGANIZAES TRANSNACIONAIS COM COMUNIDADES RURAIS NO SUL DE MOAMBIQUEEullio Feliciano Mabuie, Kenia Caroline Viera e Ratmir Flvio Cuna ............................................. 28
AES DE RUA COMO A BUSCA PELO ENCONTRO, PELA SUBJETIVIDADE E PELOS AFETOS Os artistas em contato com a sensvel humanidade dos transeuntesDavi Giordano .................................................................................................................................. 41
O CASO DO COOL JAPAN: A CONSTRUO DE UMA POLTICA CULTURAL PARA A PROMOO DE IDENTIDADE NACIONALPilar Luz Rodrigues .......................................................................................................................... 50
PLANOS MUNICIPAIS DE CULTURA E SUA IMPORTNCIA PARA A DIVERSIDADE CULTURALKtia Maria de Souza Costa ............................................................................................................. 64
A CULTURA COMO FERRAMENTA DE MANUTENO DAS RAZES CAIARAS DA JURIABernardo W. M. Baptista e Lys G. S. Vieira....................................................................................... 78
UMA TENTATIVA DE PERIODIZAR A EVOLUO DO ROCK NA BAHIADas imitaes dos anos 1950 Msica Digital dos anos 2000Fagner Dantas .................................................................................................................................. 90
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A NOVA AGENDA DA ELITE CULTURAL E OS ESTUDOS CULTURAIS Reflexes Sobre a Cultura PerifricaJocimara Rodrigues de Sousa ........................................................................................................ 102
DIVERSIDAD CULTURAL EN LA ESCUELA SECUNDARIA ARGENTINA Perfil de los estudiantes de intercambio 2012-2013Mara Isabel Pozzo y Carolina Jacob .............................................................................................. 117
A DIVERSIDADE CULTURAL E O DIREITO IGUALDADE E DIFERENAWeslaine Wellida Gomes ............................................................................................................... 141
POTENCIALIZANDO LEITURAS DE MUNDO E TERRITRIOS A PARTIR DE OFICINAS PEDAGGICAS, INSPIRADAS EM PAULO FREIRE:relato de uma pesquisa desenvolvida com educandos da educao de jovens e adultos e as suas contribuies para a promoo da diversidade culturalJos Pereira Peixoto Filho e Carolina Rezende de Souza ............................................................... 152
ALGUMAS REFLEXES SOBRE LEITURA DE IMAGENS, PRTICAS EM ATELIS. Um estudo de caso: Instituio Lar de MariaFlvia dos Santos Oliveira Gama e Samuel de Jesus Pereira ......................................................... 165
MANDALA DE SABERESSueli de Lima ................................................................................................................................. 1810O CINEMA E A DIVERSIDADE CULTURAL CAPIXABACharlaine Suelen Rodrigues Souza ................................................................................................ 194
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EXPEDIENTE
ISSN: em processo de registro
Editor: Jos Mrcio Barros - UEMG e PUC Minas http://lattes.cnpq.br/1604785658347017
Editora Associada: Raquel Salomo Utsch - Observatrio da Diversidade Cultural http://lattes.cnpq.br/2207126908579051
Projeto grfico: Richardson Santos Reviso: Alcione Lana
Conselho Editorial:
Giselle Dupin MINC http://lattes.cnpq.br/2675191520238904
Giselle Lucena UFAC http://lattes.cnpq.br/8232063923324175
Humberto Cunha UNIFOR http://lattes.cnpq.br/8382182774417592
Isaura Botelho - SESC SP http://lattes.cnpq.br/3961867015677701
Luis A. Albornoz - Universidad Carlos III de Madrid http://portal.uc3m.es/portal/page/portal/grupos_investigacion/tecmerin/tecmerin_investigadores/Albornoz_Luis
Nbia Braga UEMG http://lattes.cnpq.br/6021098997825091
Paulo Miguez UFBA http://lattes.cnpq.br/3768235310676630
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APRESENTAO
A cultura est no centro dos debates contemporneos sobre cidadania, desenvolvimento
e paz social. Parte desse debate est ancorado na perspectiva de reconhecer a diversidade
cultural como bem e como recurso, ou seja, expresso simblica de formas identitrias
simultaneamente singulares e universais, e fonte de dinamismo social e econmico,
associado criatividade e inovao.
Mas, para que a diversidade das culturas cumpra esse duplo papel, o desafio parece ser
o da transformao das diferenas de origem tnicas, religiosas, territoriais, de gnero
etc, em capital cultural que expressa diferenas, mas que tambm aponta para o dilogo
e cooperao entre as diferentes comunidades e povos.
Nesse contexto, a Revista Observatrio da Diversidade Cultural pretende ser mais um
instrumento para a promoo da diversidade, por meio da difuso de pesquisas, textos
acadmicos e no-acadmicos, estudos de casos, prticas de experimentao e inovao
e fontes informativas. Deste modo, ser possvel configurar uma efetiva contribuio para
qualificar quem trabalha com a proteo e promoo da diversidade cultural.
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EDITORIAL
PENSAR E AgIR COm A CuLTuRA
A Revista Observatrio da Diversidade Cultural passa a integrar as aes do ODC, nas reas de formao, pesquisa e informao, voltadas proteo e promoo da diversidade cultural. Associada defesa da cultura como direito, a ao comunicacional potencializa a convergncia de atores que se articulam, nesse novo espao de interao virtual, para reflexo e compartilhamento dos sentidos ligados s dimenses simblica, econmica e cidad da cultura.
Ao compreender a cultura, fundamentalmente, como processo de desenvolvimento humano, a publicao virtual refora, portanto, o compromisso com a criao de espao socio-comunicacioanal destinado troca e reflexo crtica quanto aos movimentos culturais contemporneos, que correspondem articulao de mediaes diversas e demanda abordagens transversais aos campos da educao, arte e comunicao, dentre outros.
Como princpio norteador que permeia as aes do ODC, a adoo de formas de pensar e agir com a cultura traduz-se, aqui, na promoo do intercmbio de ideias, como parte de uma rede de comunicao, de forte dimenso poltica, que atua em favor da prtica intercultural, demarcada por processos de tensionamento e convergncia entre as foras sociais.
A diversidade de temas e origens institucionais dos autores refora, especialmente, construo coletiva que tematiza as relaes entre arte, subjetividade e espao urbano, destacando a centralidade das dimenses esttica e poltica das aes culturais na contemporaneidade. Assim, tambm, os temas da economia da cultura e desenvolvimento humano; direito cultura, gesto e diversidade convocam, no conjunto, qualificao da anlise quanto aos desafios e possibilidades na rea.
Os processos de mediao, com nfase, tambm, diversidade em contextos globalizados, ampliam noes, borrando as fronteiras entre arte, educao e cultura. Ao abordar as dimenses tradicional, popular e massiva da cultura, os autores discutem cultura perifrica, por meio do movimento Hip Hop; produo cultural e manuteno das razes caiaras; rock na Bahia - dos anos 50 msica digital; cinema e diversidade capixaba.
Nesse contexto abrangente, compreender a cultura implica a abertura aos movimentos de permanncia e transformao social que operam, de forma indissocivel, entre o diferente e o universal; a experincia cultural revela-se, fundamentalmente, como descoberta do outro, bem como reafirmao de si, potencializando o humano em ns.
Finalmente, como ambiente sociocomunicacional destinado expresso da diversidade do pensamento, a Revista volta-se produo do conhecimento que confronta a concepo histrica da diversidade cultural como sinnimo de desigualdade econmica, noo contra a qual, precisamente, buscamos agir, ao promover a produo e difuso de informao, de forma a qualificar discusses, ampliar olhares, estabelecer trocas.
Jos Mrcio Barros e Raquel Utsch Editores
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ARTE1 E ARTESANATO NO INSTITuTO CuLTuRAL INHOTIm2: Construindo uma relao a partir dos princpios da nova Museologia Social
Keila Almeida Gonalves3
Sofia Lorena Vargas Antezana4
Resumo
Por meio da nova Museologia Social, altera-se a relao entre o espao museal e o territrio no qual este
encontra-se inserido. E, dentro desse cenrio, o foco de atuao do museu se desloca da conservao
para o indivduo e s comunidades, sendo a promoo social desses, seu maior objetivo. Analisar as
aes desenvolvidas pelo Instituto Cultural Inhotim junto ao Grupo de Artesanato, utilizando como
referncia a relao entre a Arte Contempornea e o Artesanato luz das novas atribuies museais,
o objetivo desse texto.
Palavra-Chave: Artesanato, Instituto Cultural Inhotim, Museologia Social.
Abstract
Through the New Social Museology, the relationship between the museum space and its territory
changes. And, within this scenario, the focus of the museum moves from conservation to the individual
and the communities, social promotion being its biggest goal. The goal of this article is to analyze the
actions developed by the Inhotim Cultural Institute with the Artisan Group, utilizing as a reference the
relationship between Contemporary Art and the Artisan inspired by new museum attributions.
Key-Words: Artisan, Inhotim Cultural Institute, Social Museology.
1 Embora a pesquisa integre outros movimentos de arte, para esse artigo, nos restringimos somente a Arte Contempornea, uma vez que o Inhotim possui em seu acervo, somente peas relacionadas a esse movimento.
2 Esse artigo restringe-se somente as observaes relacionadas s aes da Diretoria de Incluso e Cidadania junto ao Grupo de Artesanato.3 Graduanda do 8 perodo em Servio Social, com nfase em Arte e Cultura pela Pontifcia Universidade Catlica de Minas Ge-rais. Bolsista de pesquisa FAPEMIG no Instituto Cultural Inhotim, desde maio de 2013. E-mail: [email protected]
4 Mestre em Histria pela Universidade Federal de Minas Gerais. Analista de Projetos no Instituto Cultural Inhotim. E-mail: [email protected]
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1. INTRODuO
Esse texto integra a pesquisa, em fase de realizao, dentro do Instituto Cultural Inhotim, em parceria
com a FAPEMIG, tendo como tema A Arte do Artesanato para o Desenvolvimento Humano, Social e
Econmico. Portanto, as concluses apresentadas restringem-se a dois grupos de artesanato, dos 12
grupos/associaes que o Instituto Inhotim fomenta, na regio do Vale do Paraopeba.
Destarte, para esse artigo, propomos discorrer somente sobre alguns aspectos, restringindo-nos
a uma anlise preliminar acerca da efetivao dos princpios museais, tendo como recorte as aes
desenvolvidas pela Diretoria de Incluso e Cidadania junto aos artesos que integram o Grupo de
Artesanato5, apontando ento como esses sujeitos6 se apropriam e dialogam com o espao, no seu
fazer artesanal. Para que isso seja possvel, traaremos uma relao entre a Arte Contempornea e
o Artesanato, buscando elementos que podem fortalecer a prtica museal dentro desse cenrio, em
especial, no trabalho com os artesos.
A Diretoria de Incluso e Cidadania encontra-se inserida dentro do Instituto Cultural Inhotim, uma entidade
privada, sem fins lucrativos, situada na cidade de Brumadinho. Referncia em Arte Contempornea, o
Inhotim combina arte e natureza numa rea de 110 hectares de visitao, possuindo um amplo acervo
de obras de artes e botnica. Para firmar seu comprometimento com o desenvolvimento da cidade,
desenvolve aes sociais e culturais internas e externas comunidade. Essas aes so executadas, em
sua maioria, pela Diretoria de Incluso e Cidadania, em parceria com as demais diretorias, poder pblico
e privado em conformidade com a populao. Nossa proposta abordar, ainda que incipientemente, as
aes executadas no projeto desenvolvido com artesos de Brumadinho e seu entorno7.
O Grupo de Artesanato - como denominaremos neste artigo - composto em sua grande maioria por
mulheres, que trabalham elaborando peas artesanais, expresses significativas do artesanato no Vale
do Paraopeba. Esse grupo se rene no espao do Inhotim, onde so realizadas oficinas de capacitao
que buscam promover a formao humana, social, cultural e econmica, por meio de aes que
dialoguem com as especificidades culturais desses sujeitos.
Os argumentos apresentados neste trabalho, a ttulo didtico, esto organizados, primeiramente pela
concepo de desenvolvimento relacionado Arte, ao Artesanato e cultura. No segundo momento,
discorreremos sobre as novas atribuies museolgicas, luz da integrao dos sujeitos no espao
museal, sua participao na construo e no desenvolvimento local tanto no nvel restrito ao museu
quanto comunidade -, na preservao e difuso cultural.
5 Embora o Grupo de Artesanato seja composto por artesos residentes em outras cidades, para a anlise desse artigo, reali-zaremos nossas observaes no campo abrangente, onde alcance o grupo como um todo, alm de dar nfase ao Grupo Des-coberta, dado seus objetos artesanais possurem relao com a botnica do Inhotim e o fato de no terem aceitado a proposta do Inhotim, em se formalizar. O outro grupo que daremos nfase o Grupo Verde Marinhos, cuja produo expressa a identi-dade quilombola e foi acompanhado pelo Inhotim, onde foi desenvolvido um trabalho, capacitando-os e formalizando-os.
6 Para efeito de recorte, sempre ao citar sujeitos, consideramos os artesos inseridos nas aes desenvolvidas pela Diretoria de Incluso e Cidadania do Instituto Cultural Inhotim.
7 Nesse Grupo participam artesos das cidades de Brumadinho, Igarap, Moeda. Inclusive, comunidades rurais, como Marinhos.
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Dentro desse mesmo tpico, abordaremos o espao do Inhotim, como um lugar que promove o dilogo
entre a Arte Contempornea e o Artesanato por meio dos sujeitos que compe o Grupo de artesanato
-, observando como o grupo se apropria do museu, as relaes que so estabelecidas entre eles e o
Inhotim, sob a tica da nova Museologia Social.
A metodologia adotada para o presente artigo pauta-se na leitura de pressupostos tericos que versam
sobre os conceitos de Cultura, Desenvolvimento, Arte Contempornea, Artesanato e Diversidade
Cultural. Para alm da questo conceitual, adotamos a metodologia participativa junto aos artesos,
seguido de encontros e reunies que contaram com a presena do Grupo de Artesanato, poder pblico
local e demais agentes.
2. ARTE, ARTESANATO, CuLTuRA E DESENVOLVImENTO
Na contemporaneidade, impossvel nos referirmos ao conceito de desenvolvimento, sem associ-lo
as abordagens da pobreza e da desigualdade. Dentro dessa discusso, o economista indiano Amartya
Sen (2000) representa um significativo avano no debate, ao acrescentar a liberdade e as capacidades
no corpo da temtica. Seu conceito introduz variveis mais amplas, chamando a ateno para o fato
de que as pessoas podem sofrer privaes em diversas esferas da vida e, portanto, para o ganhador
do prmio Nobel de Economia em 1999, ser pobre no implica somente privao material, mas as
privaes sofridas determinaro o posicionamento dos cidados nas outras esferas.
No mbito dessa discusso, observa-se que o desenvolvimento humano apresenta-se de forma orgnica,
incorporando o todo humano social, econmico, cultural. Portanto, dentro desse trabalho, consideramos
o desenvolvimento humano essencial para traar a relao entre a Arte e o Artesanato, sob a perspectiva
da nova Museologia Social, concernente concepo de cultura8, compreendida como expresso da
diversidade cultural e imprescindvel na formao humana, seja individual e/ou coletiva.
Dentro desse universo, o acesso aos bens culturais9 pode ser considerado uma das principais ferramentas
da transformao humana, resultantes do desenvolvimento social de um povo e/ou nao. Inclusive, sua
contribuio envolve o reconhecimento da diferena como algo positivo; componente fundamental para
a construo da igualdade na diversidade. De forma que essa igualdade considere as caractersticas da
diversidade cultural sem sobrepor-se a ela. Nesse sentido, a cultura atua de forma dialtica, representando
a identidade dos sujeitos e promovendo seu desenvolvimento (MIRANDA, 2010).
Assim sendo, compreender o papel da cultura na formao humana de extrema relevncia e, para
que isso seja possvel, dentro do que nos propomos neste artigo, vamos conceitu-la. Afirmamos,
portanto, que o conceito de cultura dinmico, encontrando-se alicerado no todo social, no
cenrio das experincias materiais e concretas, na construo das subjetividades, podendo ser
8 Abarcamos todas as expresses de cultura, ou seja, a cultura popular, de massa, erudita, dentre outras.
9 Dentro da mesma perspectiva que nos referimos cultura. Nesse sentido, por bens culturais, compreendemos toda expres-so cultural produzida, consumida e reproduzida, independente de suas divises e peculiaridades.
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evidenciada no resultado do nosso trabalho, conforme j afirmaram Netto e Carvalho (1989) e que
fora retratado por Ferreira (1997).
Dentro dessa perspectiva, portanto, ao nos referirmos cultura, dentro dessa pesquisa, devemos levar
em considerao que, por cultura, entende-se todo (grifo nosso) processo humano que se constri na
prtica social. Consideramos assim, a cultura, em sua amplitude, como potencialmente construtora da
emancipao humana. Independente de que esta se d por meio de expresses artsticas, produes
artesanais, bens materiais ou imateriais.
Ao considerar ento, que a cultura permeia a existncia do homem, inclusive, dentro do universo
do trabalho - entendendo o Artesanato como um trabalho individual e coletivo, resultado de uma
produo, carregada de significaes simblicas e concretas, alm de saberes -, no seria equivocado
afirmar que o Artesanato, como expresso cultural e fruto do trabalho um bem cultural, permeado
pela historicidade e tradio, contribuindo para o desenvolvimento dos sujeitos.
Portanto, a dinmica das relaes sociais construdas entre os artesos, o Artesanato e o espao do
Inhotim nos permite afirmar que ele parte integrante da sociedade e que traz em si, elementos que
o habilitam a participar da tomada de conscincia das comunidades. Leiam-se os grupos de artesos,
produtores, trabalhadores, enfim, pessoas que compem o territrio em questo.
Tendo como referncia o papel da nova Museologia Social que consiste em integrar e aproximar os
sujeitos ao espao museal, considerando a diversidade cultural dos envolvidos, no tpico abaixo,
faremos uma breve reflexo acerca da relao entre a Arte Contempornea e o Artesanato, apontando os
possveis atravessamentos entre a teoria e a prtica sob a tica das novas atribuies museolgicas.
3. NOVA MUSEOLOGIA SOCIAL E INHOTIM: em busca da efetivao dos princpios sociais
A nova Museologia Social surge com propostas de atribuies sociais ao museu, acrescentando ainda
a ateno sobre o patrimnio cultural, onde o foco de atuao do museu se deslocar da conservao
para o indivduo, as comunidades e a promoo social desses. Sobretudo, propondo novas formas de
atuao dos museus e das prticas museolgicas voltadas para a interveno social. Sendo o principal
aspecto a mudana no modelo de gesto, que integra a comunidade na administrao e preservao
do seu patrimnio e da sua identidade cultural (DUARTE CNDIDO, 2007).
A partir dessa transformao, o museu passa a ser entendido como instituio capaz de promover
a preservao, a valorizao da histria, da memria e das tradies locais. Dessa forma, o museu
passa de espao de contemplao para um instrumento capaz de promover a incluso social e o
desenvolvimento individual e coletivo (DUARTE CNDIDO, 2007).
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3.1. Nova Museologia Social e Inhotim: Contrastes na integrao e promoo dos
sujeitos sociais
Considerando as caractersticas gerais da nova Museologia Social, temos como ponto de partida a
atuao do Inhotim junto aos grupos de artesos que integram o projeto Rede de Artesanato10, que
fazem parte das aes desenvolvidas pela Diretoria de Incluso e Cidadania.
Tendo como princpio promover o relacionamento com a comunidade e firmar seu compromisso
com o desenvolvimento social de Brumadinho, em 2007 a Diretoria de Incluso e Cidadania criada.
Desde ento, trabalha dentro de quatro perspectivas: Msica, Arte e Cultura no Vale do Paraopeba;
Desenvolvimento Territorial; Inhotim para Todos e Centro de Memria e Patrimnio Cimp.
Um dos principais objetivos dessa diretoria fortalecer o capital social do municpio, contando com
o apoio de lideranas e organizaes comunitrias ou de natureza social. Todas as aes visam
autonomia dos sujeitos, tendo as pessoas e os grupos sociais como centro e objeto de seu trabalho.
O grupo de artesos em questo est inserido na ao programtica Desenvolvimento Territorial
e conta com a participao de artesos residentes cidade de Brumadinho e seu entorno, inclusive
sujeitos que residem em comunidades quilombolas, como aqueles situados na comunidade rural de
Marinhos. A proposta de trabalho desenvolvido com este grupo visa promoo de direitos sociais, o
desenvolvimento humano, social e produtivo de Brumadinho e regio, caracterizando-se ainda como
uma forma de valorizar, respeitar e compartilhar o modo de vida de seus sujeitos, alm do patrimnio
cultural e natural da regio.
O Artesanato produzido pelas associaes e profissionais individuais representa uma forma de gerao de
renda, de socializao, de troca de saberes e experincias, sendo exposto nas associaes, nos espaos culturais
de suas cidades, em feiras ao ar livre, bem como durante as oficinas que ocorrem no espao do Inhotim.
Dentre as principais aes desenvolvidas pela Diretoria de Incluso e Cidadania junto aos artesos, as
oficinas Troca de Saberes, destacam-se seguidas por cursos de capacitao. Durante esses encontros,
os artesos trocam informaes, saberes e vivncias. Circulam pelo espao do museu, realizam visitas
mediadas ao acervo de Arte Contempornea, participam de atividades culturais que estejam ocorrendo
na data e expem seu Artesanato.
Nesse sentido, por meio dessas oficinas, realizadas a cada bimestre, percebemos que um dos
objetivos do museu fortalecer a relao entre esses sujeitos, possibilitar interao e socializao do
grupo. Dar oportunidade para que esses sujeitos expressem sua cultura, apreendam novas tcnicas
e saberes com o outro.
Porm, mensurar esses saberes torna-se algo complexo, pois cada grupo ali representado, possui
10 Anteriormente, o ajuntamento desse grupo era denominado como Rede de Artesanato, porm, a partir da reestruturao que vem ocorrendo desde a troca de diretoria, ocorrida em setembro de 2013, um dos pontos que vem sendo transformados a compreenso de que no podemos considerar esse ajuntamento como uma rede.
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singularidades, fragilidades e barreiras internas que referem-se s relaes estabelecidas com outros
sujeitos dentro de seu campo relacional no cenrio de produo artesanal. Assim, ao ultrapassar os
portes do Inhotim, as relaes j foram tecidas, construdas pelos prprios grupos seja em funo da
matriz cultural, das experincias individuais, coletivas ou da prpria representao simblica que os
grupos fazem de si mesmos e dos outros.
Dentro dessa perspectiva, torna-se fundamental refletir sobre como o espao museal do Inhotim,
orientado pelas aes da Diretoria de Incluso e Cidadania podem ampliar, renovar, reinventar as
relaes e representaes do fazer artesanal dos grupos. J que o espao do museu propcio reflexo
acerca da diversidade cultural, dos costumes, das tradies e das diferenas.
Para atingirmos as reflexes acima, faz-se necessrio conhecer como essas relaes so estabelecidas
dentro do mbito do Inhotim. Sero elas de aproximao ou de distanciamento com o espao? Como o
espao museal do Inhotim expresso e/ou refletido no objeto, no fazer artesanal? Essas so questes
que refletiremos dentro dos prximos subtpicos.
3.2. Identidade e pertencimento: distanciamentos na relao entre a Arte Contem-pornea e o Artesanato
Ao longo da pesquisa que vem sendo desenvolvida em parceria com a FAPEMIG, temos encontrado
algumas aproximaes e distanciamentos entre a Arte e o Artesanato. Dentro do recorte da Arte
Contempornea, partimos das caractersticas respectivas a identidade ou a falta dela para alguns ,
destacando o fato dela estar ligada aos elementos da vida contempornea, como aqueles provenientes
da tecnologia, da industrializao, do sistema capitalista e seus reflexos, bem como do perfil identitrio
de uma populao onde a diversidade e a pluralidade cultural podem ser visualizadas.
Constatamos ento, que a Arte Contempornea expressa as novas experimentaes, se
caracterizando por sua hibridizao e pela multiplicidade de expresses. E que, tais caractersticas
refletem o fato dela estar inserida num contexto globalizado, onde o diverso pode ser experimentado
por meio de trocas culturais facilitadas pela tecnologia, tecendo constantes dilogos que se unem
na teia da vida contempornea.
No que tange ao Artesanato, entendemos que assim como a Arte, ele expressa as caractersticas de um
povo, sua histria, memria e tradio, em prol do resgate, da afirmao e expresso da identidade
desses sujeitos. Nas palavras de Freitas:
Como materializao da forma de viver de um povo, o artesanato constitui-se num
objeto de pesquisa sociolgica, reforado tambm, pelo fato de ser uma tcnica
passada de pais para filhos, resistindo ao progresso material, ao desequilbrio
global (seja do ponto de vista ecolgico ou econmico), ou ainda, por representar o
sentimento de identidade e de pertinncia dos indivduos (FREITAS, 2004).
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Considerando as colocaes da autora, tendo em vista o contexto globalizado, podemos afirmar
que Arte e Artesanato sofrem o impacto da vida contempornea. Cabendo a cada um, segundo
suas especificidades, exprimir a complexidade e a ambiguidade de uma identidade em contnua
transformao. Nesse sentido, pode-se afirmar que a identidade expressa por meio desses objetos
artesanais e artsticos revela o desenvolvimento dos indivduos, seu posicionamento no espao em que
encontram-se inseridos.
Conforme discorrido anteriormente, a nova Museologia Social parte do princpio de que cada grupo
social possui sua identidade embora consideremos a identidade dinmica -, sendo expressa por
diversas formas de produo, dentre elas, Arte e Artesanato. Dentro desse universo, valoriz-las,
resgat-las, preserv-las e difundi-las, torna-se do interesse e da responsabilidade dos museus. Para
tanto, cabe a essa instituio integrar os sujeitos ao espao museal, de forma que esses indivduos
possam difundir a sua cultura.
Por meio do trabalho realizado pela Diretoria de Incluso e Cidadania, com o grupo de artess,
Verde Marinhos, identificamos a responsabilidade social do Inhotim em prtica, pois este grupo
foi acompanhado de perto, capacitado e formalizado por meio de uma associao. Essa associao
foi criada objetivando a produo de um artesanato identitrio, capaz de retratar as tradies
culturais, o sentimento de pertencimento e a identidade quilombola das artess da comunidade
de Verde Marinhos.
Numa anlise mais abrangente, ou seja, a partir das aes desenvolvidas junto ao Grupo de Artesanato,
percebemos a existncia de uma identidade plural no artesanato local. Mesmo assim, embora as aes
do Inhotim sejam desenvolvidas objetivando a interao entre esses sujeitos, a Arte Contempornea e
a botnica, at o momento, no apreendemos a efetivao dessas aes de forma abrangente.
Ademais, destacamos que a interao mais efetiva, ocorre em relao botnica, mas quanto
expresso de Arte Contempornea, se demonstra incipiente. Sendo assim, constatamos que h
uma interao, mas h tambm, a necessidade de que essa seja transmitida a eles de forma mais
compreensvel, reflexiva e, contnua, no sentido de possibilitar cada vez mais a aproximao entre o
espao e os artesos.
Como exposto, o espao museal do Inhotim permeado de complexidade, e desenvolver uma relao
entre os sujeitos e ele, exige continuidade, aes estratgicas no campo educacional e pedaggico.
Principalmente, quando considerada a necessidade de dilogo entre a identidade artesanal local e o
Inhotim, como expresso da Arte Contempornea e desta com a diversidade cultural.
Das observaes realizadas com os grupos nas oficinas, das conversas feitas com os mediadores de
Arte do Instituto e do Artesanato produzido, podemos pontuar que o caminho a ser percorrido longo,
no sentido deles se apropriarem e interiorizarem do acervo que o Instituto abriga, no fazer artesanal.
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Exceo para o Grupo Descoberta11 que por meio da Tcnica do Cobertor, desenvolvido em curso de
capacitao e design que o Inhotim promoveu, produz peas artesanais com elementos do acervo
botnico do museu. No entanto, ao retratar a Arte nos objetos artesanais, utilizam referncias da Arte
Moderna e no da Contempornea o que confirma nossa observao, quanto a necessidade de
promover a interao com o espao, aproximando esses sujeitos da Arte Contempornea.
Assim, compreendemos que os projetos desenvolvidos pela Diretoria de Incluso e Cidadania com o
grupo de Artesanato da regio do Vale do Paraopeba devem caminhar, objetivando cada vez mais aes
que possibilitem o seu desenvolvimento, o seu fortalecimento e concomitantemente, construindo
aproximaes do fazer artesanal com a Arte Contempornea e com os demais acervos do instituto.
3.3. Tradio na contemporaneidade
Tendo a preservao da memria cultural como objeto social, a nova Museologia Social abrange
um olhar sobre a tradio12 cultural, pois estas esto vinculadas. Segundo item analisado dentro da
relao entre Arte e Artesanato, encontramos aproximaes no sentido de que a tradio para ambas,
relaciona-se ao processo dialtico de rupturas e permanncias. Dentro desse universo, a tradio se
revela complexa, pois, ao manifestar a identidade desses sujeitos, ela no se encontra inerte, e assim,
moderniza-se, contextualiza-se.
Ao considerar a dialtica de rupturas e permanncias, deve-se esperar ainda sem reservas -, que as
rupturas possam sugerir de forma negativa retrocessos e quebras de identidade. Contudo, desenvolver-
se permitir o dilogo entre o tempo presente, passado e futuro e, logo, seu reflexo nas tradies. Isso
no mbito da Arte ou Artesanato.
E, embora expresse a tradio e a memria de um povo, o Artesanato tambm se insere no contexto
de concorrncia de mercado, vendo-se obrigado a adaptar-se s novas exigncias do mundo
capitalista. Uma resposta interessante a essa demanda, a introduo do design na elaborao das
peas (QUELUZ, 2005).
De acordo com Carmo (2011), a interferncia do design no artesanato, pode atuar no sentido de
valorizar e reforar as tradies regionais, a diversidade cultural, a identidade dos grupos sociais, a
habilidade dos artesos e a qualidade e funcionalidade dos artefatos artesanais. Considerando uma
perspectiva possvel e benfica para o universo artesanal, que possibilita sua existncia mercadolgica
de forma mais competitiva.
Portanto, podemos afirmar que assim como a Arte Contempornea, o Artesanato, ao longo da histria,
tem se apropriado de adaptaes, que englobam a utilizao de novas tcnicas, materiais e linguagens,
11 Associao de artesos residentes em Brumadinho. 12 No campo da arte, a partir do sculo XVIII, busca-se o rompimento com a tradio da tintura a leo, o naturalismo e a regra de perspectiva dimensional. A dialtica das rupturas e permanncias, durante o processo de construo dessa identidade ganha destaque no mbito da tradio.
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sem, contudo, romper com suas representaes e simbologias. No entanto, como apreend-las dentro
do espao do Inhotim, por meio de suas aes com o Grupo de Artesanato uma pergunta que perpassa
nossa pesquisa.
Para isso, temos que resgatar o cenrio apresentado no subcaptulo anterior, quando destacamos
o trabalho do Inhotim, desenvolvido com o grupo Verde Marinhos. Por meio dessa experincia,
percebemos que o Instituto desenvolve aes que visam resgatar a identidade e a tradio desses
sujeitos e que os cursos de designer, costura e de liderana desenvolvido tanto com a comunidade
de Marinhos como os demais grupos de Artesanato, entre eles o Grupo Descoberta, dialogam com a
proposta da nova Museologia Social, qual seja, a incluso dos grupos sociais na promoo e difuso
dos sujeitos no espao museal.
Para alm do que foi exposto, faz-se necessrio pontuarmos alguns elementos identificados durante
as oficinas. Em outras palavras, embora tenhamos encontrado objetos artesanais que expressem a
tradio da regio nesses encontros, as aes desenvolvidas, durante as oficinas presenciadas, ainda
devem abraar a pluralidade da tradio cultural dos grupos de Artesanato com o acervo de Arte
Contempornea e vice-versa.
E, em contrapartida, visualizamos uma tradio to arraigada e firmada nesses sujeitos artesos, que
se faz necessrio criar mecanismos que permitam aproximar e contextualizar a tradio local com a
Arte Contempornea, objetivando a integrao entre o sujeito e o espao. Ao introduzirmos o assunto
acerca da integrao ou interao entre o arteso e o espao, apresentamos nossas consideraes
preliminares acerca das aproximaes e distanciamentos entre a Arte Contempornea, o Artesanato e
o Inhotim, sob a perspectiva dos princpios museais.
3.4. Interao: Princpio que se encontra na Arte Contempornea, no Artesanato e
na museologia Social
Integrao. Relao. Interao. Sero palavras sinnimas? Consideraremos que essas palavras
ultrapassam o fato de serem sinnimas, pois traduzem princpios presentes na Arte Contempornea, no
Artesanato e na nova Museologia Social. Sobretudo, como princpio fundamental da nova Museologia
Social, que, ao atribuir funes sociais ao museu, visa inserir sujeitos at ento excludos, na produo,
promoo e difuso do espao museal, onde esses acrescentam sua cultura, incorporados de pluralidade
e especificidades, transmitindo-a por meio do espao museal.
A Arte Contempornea, por sua vez, busca promover a interao entre a obra, o espectador e o artista,
sendo essa caracterstica a que consideramos como destaque. Portanto, subjetividade, experimentao
e interao, so fundamentos essenciais desse movimento. Sendo assim, alguns artistas so conhecidos
por trabalharem a relao entre o objeto e o observador participante e, dentre os principais integrantes
desse movimento podemos citar alguns que esto presentes no acervo artstico do Inhotim.
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Lygia Clark, propulsora do objeto relacional13, que no conjunto de sua obra faz com que a experincia
ultrapasse o limite perceptvel, expandindo-se para as sensaes, uma dentre as artistas que possui
obras no espao do Inhotim. Inclusive, podemos perceber em sua obra que esta no se encontrava
finalizada, dependendo assim da relao entre o espectador e o objeto a partir das sensaes
produzidas. E, que nas palavras de Rolnik (2002):
um algo mais que captamos para alm da percepo (pois essa s alcana o visvel)
e o captamos porque somos por ele tocados, um algo mais que nos afeta para alm
dos sentimentos (pois esses s dizem respeito ao eu). Sensao precisamente
isso que se engendra em nossa relao com o mundo para alm da percepo e do
sentimento. Quando uma sensao se produz, ela no situvel no mapa de sentidos
de que dispomos e, por isso, nos estranha. Para nos livrarmos do mal-estar causado
por esse estranhamento nos vemos forados a decifrar a sensao desconhecida,
o que faz dela um signo. Ora a decifrao que tal signo exige no tem nada a ver com
explicar ou interpretar, mas com inventar um sentido que o torne visvel e o
integre ao mapa da existncia vigente, operando nele uma transmutao. Podemos
dizer que o trabalho do artista (a obra de arte) consiste exatamente nessa decifrao
das sensaes. talvez nesse sentido que se pode entender o que quis dizer Czanne
com sua idia de que a sensao o que ele pinta (ROLNIK, 2002).
Encontramos ainda, obra do artista Hlio Oiticica, que, assim como Clark prope que o espectador
torne-se participante e propositor da obra. Em anlise sobre as obras desse artista, Favaretto (1992)
coloca que as experincias no so meras obras, mas intervenes ativssimas. Vanguardista, Oiticica
inaugura em plena dcada de 1970, aquilo que viria se tornar conhecido como instalao.
Diferentemente, o Artesanato, desde sua gnese traduz a relao entre o arteso, o objeto e o
observador. Dessa forma, o Artesanato expressa uma interao que precede essa trade (arteso,
objeto e observador), isto , a relao que surge no ato da criao do objeto e que expressa a interao
entre o arteso e seu ncleo familiar, entre esse indivduo e seu meio, seja ele fsico, cultural ou das
relaes sociais.
A partir dessas relaes, ocorre a troca de vivncias e saberes, que so embutidas durante a construo
do objeto artesanal. Porm, durante esse processo outras relaes so impulsionadas, ampliando e
integrando outros sujeitos ao processo, como aqueles artesos inseridos na produo.
Por fim, na exposio do objeto pode-se perceber que este impulsiona a construo de outras pontes,
acrescentando novos olhares advindos do observador e/ou comprador da pea. Assim, ocorrem novas
interaes, com a presena de diversos personagens e suas subjetividades. Desde modo, no apenas
o objeto que desloca-se geograficamente, mas os prprios sujeitos.
No se trata de um produto finalizado, acabado, mas fruto de uma relao entre a identidade dos diversos
sujeitos que se desenvolvem continuamente, e que trocam experincias, dialogando por meio de um
13 Objeto Relacional a designao genrica atribuda por Lygia Clark a todos os elementos que utilizava nas sesses de Es-truturao do Self trabalho praticado de 1976 a 1988, no qual culminam as investigaes da artista que envolvem o receptor, convocando sua experincia corporal como condio de realizao da obra.
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espao que apresenta um objeto artesanal. O objeto ento poder servir no apenas como utenslio
de uso domstico, pessoal ou de alguma utilidade futura, mas, sobretudo, como uma pea agregada de
significados estticos, criativos e simblicos, elementos que nos remetem ao objeto de arte.
Considerando que as observaes, neste artigo, so preliminares, sendo que as pesquisas e entrevistas de
campo com os grupos citados, Verde Marinhos e Grupo Descoberta sero realizadas e analisadas sob a
tica da Museologia Social, destacamos que, somente a partir deste momento, teremos dados consistentes
para nos posicionarmos mais efetivamente, frente aos questionamentos apontados ao longo do artigo,
propondo, ento, estratgias que respondam as observaes e solues indicadas ao longo do artigo.
4. CONSIDERAES FINAIS
Encerrar nossas primeiras reflexes advindas das observaes cotidianas no Inhotim, tendo em vista
que a pesquisa est em andamento, dificulta-nos acerca de um posicionamento estratgico, onde
possamos acrescentar possibilidades que funcionem como resultado para as questes levantadas.
Para que essas aes tambm alcancem sua efetividade integral, deve-se ainda considerar as
caractersticas relacionadas trade inter-relacional. Tendo como base essa trade, novas aes devem
ser construdas, com vias a efetivao dos princpios museais, dentro da perspectiva da interao
e do observador participante, com vistas promoo dos sujeitos, da diversidade cultural e do
desenvolvimento humano.
Conclumos ento, que as aes realizadas com os grupos de artesanato devem ter uma interlocuo,
com outras reas do conhecimento do Instituto Inhotim, a fim de que o fortalecimento relacional entre
o espao e esses grupos acontea. Logo, o dilogo deve compreender a diversidade cultural, presente
no Artesanato local, bem como os elementos da Arte Contempornea e os sujeitos que habitam esse
territrio, em prol do desenvolvimento humano.
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FAVARETTO, Celso. A inveno de Hlio Oiticica. So Paulo: EDUSP, 1992.
FERREIRA, M. N. Cultura subalterna e o neoliberalismo: a encruzilhada da Amrica Latina. So Paulo:
Ed. CELAC: ECA/USP, 1997.
FREITAS, Katia Siqueira. Artesanato. Salvador: GERIR, v. 10, n. 35, p. 17-37, jan./fev. 2004.
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QUELUZ, Marilda Lopes Pinheiro. Design & Cultura. Curitiba: Sol, 2005.
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CuLTuRA, FESTA E CIDADE: TECENDO RELAES
Ariel Lucas Silva1
Paulo Miguez2
Resumo
Considerando sua irrupo na vida societal, insistncia e imposio como alma da cidade, o que
festa e qual seu lugar na vida coletiva? A pesquisa que deu origem a esta comunicao est apoiada na
compreenso conceitual e terica da festa e orienta-se a partir da busca pelas inflexes sobre o lugar
da festa e seu espao na vida coletiva. Sem a pretenso de alcanarmos respostas completas e/ou
definitivas, buscamos uma compreenso da relao festa e cidade tendo como ponto de partida que a
festa irrompe na cena societal, insiste e impe-se como a alma da cidade.
Palavras-chave: festa, cidade, Rosrio do Serro
Abstract
Considering his outburst in societal life, insistence and imposition as soul of the city, what is celebration
and what its place in the collective life? The research that lead to this communication is supported
by the conceptual and theoretical understanding of the celebration and is guided by the search of
inflections on the place the celebration and its place in the collective life. Without intending to achieve
complete and / or definitive answers, we understand the relationship celebration and city having as
starting point that the celebration erupts in societal scene, insists and imposes as the soul of the city.
Keywords: celebration, city, Rosario Serro
1 Mestre em Cultura e Sociedade (UFBA, 2013), pesquisador do CULT - Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (UFBA) e do GREC Projeto Memria social, comunicao e cidadania (UFBA), ambos vinculados ao CNPq. E-mail: [email protected]
2 Doutor em Comunicao e Cultura Contemporneas (UFBA, 2002). Professor do Instituto de Humanidades, Artes e Cincias da UFBA e pesquisador do CULT - Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (UFBA). E-mail: [email protected]
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1. INTRODuO
Este trabalho apresenta os resultados de uma pesquisa3 apoiada na compreenso conceitual e terica
da festa, do fenmeno festivo, sua estrutura, funo e significado, atravs da comparao de vises de
diferentes autores acerca desse tema.
A festa escolhida como objeto emprico deste trabalho foi a Festa do Rosrio da cidade do Serro, em
Minas Gerais. A cidade do Serro est localizada na regio central do Estado de Minas Gerais, ponto
alto da Serra do Espinhao, onde nasce o Rio Jequitinhonha, rio que percorre todo o vale que leva o
seu nome at desaguar no oceano atlntico, na cidade de Belmonte, no sul do Estado da Bahia. Com a
descoberta do ouro na regio, no final do sculo XVII e incio do sculo XVIII (1698 1702), escravos e
funcionrios da Corte Portuguesa chegaram regio onde hoje se localiza a cidade do Serro, trazendo
na bagagem suas culturas e suas crenas, dando incio ao processo de povoamento da regio.
Considerando a amplitude do tema e as diversas possibilidades de abordagens, optamos por uma
metodologia que, previamente definida, permitisse novos direcionamentos e caminhos a seguir. Ao
fazermos a opo por esse tipo de metodologia, ateno especial foi dada aos registros de cada novo
direcionamento, pois era importante entendermos que o processo de pesquisa tambm fruto da
centralidade que o objeto possua, portanto, a metodologia adotada deveria estar aberta s novas
possibilidades que surgissem.
A primeira etapa da pesquisa foi constituda pelo levantamento bibliogrfico e discusses dos principais
eixos temticos, quais sejam, cultura, festa e cidade, assim como um levantamento documental que
permitisse apresentar um quadro da corografia da regio do Serro, notcias da histria de sua ocupao
e aspectos da morfologia da sociedade local. Em um segundo momento, realizamos pesquisas de campo
na cidade durante a Festa do Rosrio (2011 e 2012). Usamos tambm o mtodo de Histria de vida,
registrando as falas dos que da festa participam atravs de entrevistas. Buscamos reunir conhecimento
(popular e cientfico) e o sentimento de uma cidade em torno da proposta de investigao da festa e o
lugar onde ela acontecia.
Inicialmente, recuperarmos alguns princpios conceituais sobre a festa e sobre a cidade - uma
comparao de vises de diferentes autores sobre esse tema apoiada numa construo terica sobre
o conceito de festa e cidade. Assim sendo, buscamos compreender a festa, o fenmeno festivo, sua
estrutura, funo e significado, localizando tal fenmeno do ponto de vista terico. Para isso, pensamos
ser importante a abordagem de dois componentes, quais sejam, o sentimento da festa seu carter
coletivo em primeiro lugar, e sua conotao simblica, em segundo lugar.
Em seguida apresentamos o objeto emprico da pesquisa, trazendo uma contextualizao histrica das
3 Pesquisa que resultou na Dissertao de Mestrado intitulada Cultura, festa e cidade: a festa do Rosrio do Serro (MG) con-textualizaes e inflexes apresentada ao Programa Multidisciplinar de Ps-Graduao em Cultura e Sociedade do Instituto de Humanidades, Artes e Cincias da Universidade Federal da Bahia como parte dos requisitos para obteno do grau de Mes-tre aprovada em defesa pblica em 08 de Abril de 2013. Disponvel em: https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/14289/1/Dissertacao_ArielLucasSilva_UFBA_2013.pdf Acesso em 28 de fevereiro de 2014.
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origens da Festa do Rosrio do Serro e a importncia histrico-cultural da cidade, o que possibilitou
um entendimento maior do objeto estudado. Esse estudo descritivo foi enriquecido com entrevistas,
depoimentos, mapas, alm de documentos histricos oficiais e extra-oficiais e fotografias. Material
que vem sendo reunido, estudado e analisado desde 2008.
Ao final da pesquisa, propusemo-nos a um exerccio de refletir sobre o lugar da festa e seu espao na
vida coletiva. Sem a pretenso de alcanarmos respostas completas e/ou definitivas, buscamos uma
compreenso da relao festa e cidade tendo como ponto de partida que a festa irrompe na cena
societal, insiste e impe-se como a alma da cidade (MIGUEZ, 2002). Uma busca pelo entendimento do
lugar que a festa ocupa onde ela realizada, fundamentando as relaes necessrias entre a cultura, a
festa e a cidade e procurando recuperar alguns outros princpios em relao festa e sua importncia
para as relaes entre os grupos sociais, seu espao e a construo de suas identidades.
No conjunto, produzimos uma pesquisa essencialmente qualitativa, apoiada, sobretudo, num conjunto
diversificado de fontes secundrias, ainda que, em muitos momentos, tenhamos recorrido a algumas
fontes primrias umas e outras sempre submetidas a tratamento descritivo-analtico, de modo a
permitir o seu cotejamento com a questo central proposta pelo trabalho.
Partimos da compreenso da festa (o fenmeno festivo, sua estrutura, funo e significado, localizando-a
do ponto de vista terico) e da compreenso da cidade (pensadas a partir de enfoques distintos,
somando-nos a outros esforos de compreenso da cidade e do urbano), buscando considerar uma
comparao de vises de diferentes autores acerca desse tema, apoiada no desenvolvimento terico
sobre o conceito de festa e cidade. As reflexes apontadas fundamentaram e justificaram a discusso
centrada em espaos cada vez mais mltiplos e com uma pluralidade de vozes cada vez maior e
justamente nestes espaos, mltiplos e plurais, que encontramos terreno frtil para as anlises a que
nos propusemos.
Avaliamos pertinente tambm, apresentar um quadro da corografia da regio do Serro, trazendo notcias
da histria de sua ocupao e aspectos da morfologia da sociedade local. Tudo isso para contextualizar
espacial, temporal e socialmente a Festa do Rosrio do Serro, conferindo mais profundidade
apresentao do tema/objeto e ampliando as possibilidades de anlises e inflexes acerca da relao
cultura, festa e cidade objetivo primeiro da pesquisa. Optamos, ento, por uma anlise a partir das
vilas e cidades mineiras acreditando que elas pudessem oferecer-nos um panorama da formao
histrico-cultural da regio. Esta anlise nos levou a caracterizar o urbano levando em conta tambm
os processos culturais e os imaginrios dos que o habitam.
A trade gente + cho + cultura se apresentou como um dos fios condutores de nossas anlises. Esta trade
pode ser tomada como uma coincidncia de fatores que, em seu conjunto, podem ser tomados como
constitutivos do processo de elaborao cultural que encontra nas vilas e nas cidades de Minas Gerais no
somente o documento material que lhes possibilita a anlise em profundidade, mas, alm disso, em virtude
do modo peculiar pelo qual o fazem, assume o sentido e a expresso de verdadeira experincia social.
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A cidade do Serro apresenta-se, hoje, como um importante municpio do Estado de Minas Gerais
por guardar e preservar um rico patrimnio histrico artstico e cultural. Ao apresentarmos a cidade,
optamos por uma descrio que contemplasse uma anlise desde sua ocupao no final do sculo
XVII e incio do sculo XVIII at os dias atuais, passando por anlises de variadas fontes, como cartas
de viajantes, testamentos, relatos orais e documentos oficiais. Esta contextualizao permitiu que
entendssemos que a Festa do Rosrio do Serro est intrinsecamente relacionada formao da cidade.
O Compromisso da Irmandade do Rosrio do Serro data de 1728, poucos anos aps a fundao do
Arraial que deu origem a cidade. Uma prova importante que a Festa do Rosrio est, desde sempre,
presente na vida do serrano.
Para a melhor compreenso da Festa do Rosrio do Serro, mergulhamos no universo simblico que a
constitui. A Festa do Rosrio um grande ritual em que cada um expressa uma maneira diferente de
perceber, interpretar e representar aquilo que se deseja construir como a realidade social tal como diz
Roberto da Matta, atravs de uma linguagem simblica.
O entendimento deste universo simblico, juntamente com a contextualizao histrica das origens da
Festa do Rosrio e a importncia histrico-cultural da cidade do Serro, possibilitou uma compreenso
maior do objeto estudado dando embasamento para as inflexes propostas.
A Festa do Rosrio do Serro revelou-se um rico campo de investigao para anlise das formas de
apropriao e compreenso dos hbitos e costumes da cidade. Pelo seu carter coletivo, a Festa do
Rosrio do Serro dilui, ao menos no plano simblico, a distncia entre os indivduos, rompendo suas
diferenas, o que possibilita a reafirmao de crenas grupais e o estabelecimento de novas regras
tornando possvel a vida em sociedade. Essa festa representa a reunio de diferentes grupos, com
caractersticas individualizadas e, neste sentido, assume a dimenso construtiva da vida social,
permitindo a apreenso das prticas exercidas para a manuteno do mito, seu objetivo maior. E como
cultura tambm sempre um espao de disputas e conflitos.
Sendo, portanto, um fecundo campo para se pensar a vida em coletividade, em seus diferentes regimes
de empirismo, a Festa do Rosrio do Serro opera ligaes as mais variadas, possibilitando a vivncia
(desdobrada em experimentao) de uma existncia outra que a do real socializado, prpria da festa.
2. TECENDO RELAES
Estas ligaes se apresentam de diversas maneiras, so as dimenses da festa das quais nos fala
Amaral (1998). Para compreender as relaes entre festa e cidade preciso, portanto, identificar e
refletir sobre algumas dessas dimenses. So mltiplas as dimenses festivas apontadas por Amaral
(1998) e algumas delas expressam com acuidade a Festa do Rosrio do Serro.
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2.1. Da dimenso da festa enquanto elemento de mediao cultural
Como colocamos, as festas ocupam um espao privilegiado na nossa cultura, adquirindo, no entanto,
significados particulares. A festa capaz, portanto, conforme o contexto, de diluir, cristalizar, celebrar,
ironizar, ritualizar ou sacralizar a experincia social particular dos grupos que a realizam. No caso em
questo, a Festa do Rosrio do Serro resolve, ao menos no plano simblico, algumas das contradies
da vida social, revelando-se como poderosa mediao entre estruturas econmicas, simblicas,
mticas e outras, aparentemente inconciliveis. Um olhar comunicacional sobre a Festa do Rosrio
foi fundamental para o entendimento de seus elementos identitrios e de mediao cultural. Era
preciso entender o significado das roupas, dos gestos, dos cantos, dos ritos e dos demais elementos
que compem a festa suas estruturas simblicas.
2.2. Da dimenso religiosa da festa
A Festa do Rosrio do Serro uma festa popular religiosa catlica organizada por uma Irmandade. Mas
percebemos na Festa do Serro uma religiosidade tanto atenta ao sentido ntimo das cerimnias quanto
s cores e pompa exterior, ou seja, voltada tanto para o concreto quanto para o abstrato, sempre
pronta a fazer acordos e conciliaes. Tanto f e religio, quanto a festa em si mesma so formas
fundamentais de ligar. So formas eminentes de socializao, por intermdio das quais se realizam
a troca e a comunicao, dois fundamentos essenciais da experincia humana em coletividade. A
religiosidade presente na Festa do Rosrio do Serro est associada ao prprio ato festivo em torno
da devoo, portanto, vinculada ao encantamento, ao domnio da rua e do espetculo da dimenso
espetacular da festa.
De modo geral, para alm da festa do Rosrio do Serro, a religiosidade brasileira parece ter retido da
religio, antes de mais nada, sua dimenso esttica e de recreao. Seu ponto forte e pedestal so a
efervescncia coletiva. Voltando Festa do Rosrio do Serro, essa efervescncia coletiva tambm
religiosa, no sentido daquilo que liga, aproxima, nos faz comum, apontando para uma recomposio/
renovao da sensibilidade religiosa e da experincia do sagrado.
2.3. Da festa como patrimnio cultural
Ao discutir a noo de patrimnio cultural, emergem algumas questes importantes enfrentadas pelos
antroplogos e outros profissionais das Cincias Sociais frente de agncias governamentais, conselhos
e pesquisas que tratem da eleio de bens de referncia. Como patrimonializar as diferenas sem trair
o prprio conceito de diferena? Como trabalhar com a diferena sem traduzi-la em hierarquizaes
e etnocentrismos? Como lidar com nossos prprios valores e gostos, quando nos dado o poder
de certific-los em detrimento de outros? Ser que no estaramos correndo o risco de engessar as
manifestaes culturais usando como base a imagem cristalizada do registro? As questes postas no
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so fceis de serem respondidas, no entanto, serviram como instrumento de reflexo quando nos
aventuramos no campo do patrimnio cultural.
O passado histrico da cidade do Serro e sua importncia como patrimnio cultural imaterial contribuem
para a riqueza da Festa e o sincretismo presente em suas projees e representaes culturais se torna
um expressivo representante do hibridismo cultural ali presente.
Trata-se de reconhecer um cenrio contemporneo que, cada vez mais, se apropria das formas de
produo de contedos, com o intuito de se manifestar culturalmente e de se identificar enquanto
prtica social e de registro do patrimnio imaterial. Com o passar do tempo, a cidade foi revelando
novos indcios dessa importncia e novos elementos culturais como as serenatas, as festas juninas e
principalmente suas festas religiosas, que hoje compem o conjunto de bens imateriais reconhecidos
como patrimnio cultural.
Ao tratar da cultura da cidade do Serro, optamos por um olhar que considerasse as recentes abordagens
sobre patrimnio, em particular pela noo de patrimnio imaterial. No caso da Festa do Rosrio do
Serro, a relao entre as vertentes da preservao e a vertente da criao uma relao prxima, pois as
festas, de modo geral, se caracterizam como processos, constantemente atualizados e recriados, e no
como produtos que cabe guardar, proteger, conservar e, quando for o caso, restaurar. Por esse motivo,
um dos critrios para a patrimonializao dos bens culturais de natureza imaterial a comprovao da
continuidade histrica desses processos, sua reiterao ao longo do tempo, e seu reconhecimento como
referncia identitria de uma coletividade. Por outro lado, a ideia de continuidade no se confunde com
a de imutabilidade, ou mesmo a de autenticidade, pois j se sabe atualmente que uma das condies
para que uma manifestao cultural sobreviva a sua capacidade de adaptao s transformaes
no contexto onde ocorre. Ou seja, nesse caso, evidente que a mudana/adaptao pode significar a
possibilidade de permanncia.
A Festa do Rosrio do Serro, mesmo no tendo sido, ainda, reconhecida como Patrimnio Cultural
Imaterial do Estado de Minas Gerais e do Brasil, apresenta estas caractersticas de patrimnio cultural
imaterial entendidas como sistema de prticas tradicionais, caracterizando identidades coletivas. Sua
autenticidade no est em uma data de incio pr-definida, mas, na recuperao, recriao singular e
expressiva das danas, msicas, indumentrias, artefatos e oraes de uma festa tricentenria. Existe
uma dificuldade em identificar a ideologia por trs da manifestao uma vez que, por se tratar de
uma forma de expresso da cultura popular, a tradio passada oralmente, fazendo com que o povo
misture fico e memria nos relatos que so transmitidos.
Cabe neste ponto esclarecer o que pode parecer uma contradio na base terica desse raciocnio,
cujas principais premissas derivam da concepo de que as identidades sociais e as fronteiras simblicas
so constantemente, abandonadas e refeitas. Deste ponto de vista, para compreender a construo
do patrimnio enquanto prtica social na Festa do Rosrio do Serro, importariam no os resultados
cristalizados nos objetos e calendrios festivos e a sua conservao, no a conservao dos usos e
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costumes, mas a dinamizao das condies sociais e histricas que configuram as suas condies de
reproduo. Sabemos, no entanto, que em situaes de crise e de rpidas mudanas sociais como a
em que vivemos o que, na festa do Serro, parece tornar-se mais vulnervel e passvel de ser relegado
ao esquecimento e ao desuso, no so tanto as coisas produzidas, elas mesmas, mas as competncias
e informaes que esses objetos consubstanciam.
Entretanto, esta a questo que pode ou no se tornar um ativo (simblico ou material) a partir do
qual exploram-se estrategicamente as possibilidades e oportunidades polticas, humanas e materiais
que podem se tornar acessveis atravs das polticas pblicas.
Contudo, de um ponto de vista interno cultura e experincia social, produto e processo so
indissociveis. A Festa do Rosrio do Serro testemunha o modo de fazer e o saber fazer. Ela abriga
tambm os sentimentos, lembranas e sentidos que se formam nas relaes sociais envolvidas no
fazer da festa e assim o fazer a festa realimenta a vida e as relaes humanas na cidade.
Diante dessas consideraes, cabe-nos, pontuar algumas ltimas concluses:
Certo, a festa transitria, efmera, todavia, como diz to bem Duvignaud, ela deixa sementes
que, mais ou menos tardiamente, agitam os espritos e perturbam a sonolncia da vida comum
(DUVIGNAUD, 1984, p.8). por isso que mais do que descrever a festa, como usualmente se faz, ou
mesmo explic-la, tal como j dissemos em outro lugar e repetimos aqui, parece-nos que o melhor
caminho compreend-la, talvez mais ainda apreend-la (PEREZ, 1999).
Como afirma com propriedade Sanchis, a festa constitui um campo fecundo para se pensar a sociedade,
sobretudo em suas instncias de transio, de osmose, de vaivm, de ruptura, de continuidade, de
apreenso pelo social das energias que lhe vm de outros lados e, constantemente, o alimentam e o
minam (SANCHIS, 1983, p. 36). O estudo da Festa do Rosrio do Serro permitiu que transitssemos
por territrios da vida coletiva que, dado seu carter extra-ordinrio, extralgico e extra-temporal,
revelam toda a complexidade do fato societal, uma vez que a festa faz entrar a sociedade em uma
relao consigo prpria diferente daquela de todos os dias. Para a infirmar ou para a confirmar, para
a fazer existir num duplo que poder ser ela prpria ou outra, ela prpria e outra (SANCHIS, 1983, p.
36). A Festa do Serro possibilita, assim, que visualizemos, sob um outro ngulo, o espetculo plurvoco
do elo societal, sobretudo no que tange acentuao do afetivo e do sensvel.
Este estudo da festa permite redimensionar essa discusso na medida em que, sendo um fenmeno
vindo do fundo da tradio, e ainda que possa sugerir alguma forma de arcasmo (de sobrevivncia,
de nostalgia, ou at mesmo de atraso), , no entanto, vivida por aqueles que dela participam como
exploso de vida e de revigoramento. Portanto, configura-se como uma espcie de renascimento pleno
de atualidade, de inovao, de ruptura.
Festa , portanto, consumao, dispndio, sacrifcio, troca-dom, reciprocidade, ou seja, o ato mesmo
de produo da vida. Essa virtualidade que a festa, essa experimentao do campo do possvel coloca
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em ao solicitaes que animam os sentidos que a vida cotidiana no utiliza jamais. A comea a
festa. E comea como libertao do social, como troca-dom, como um outro ns. Como menciona
Duvignaud: Ser preciso lembrar que o virtual , na vida social, to intensamente ativo quanto o
real? (DUVIGNAUD, 1984, p. 48 - 52).
Uma antropologia da festa , tal como a entendemos, uma antropologia das efervescncias coletivas,
no necessariamente sociais, das formas de socializao e de troca no necessariamente cristalizadas.
A Festa do Rosrio do Serro no um mero produto da vida social da cidade, muito menos um simples
fator de reproduo da ordem estabelecida pela via da inverso. Tal como o princpio de reciprocidade,
no custa repetir mais uma vez, a festa o ato mesmo de produo da vida da cidade.
E as cidades no existem s como ocupao de um territrio, construo de edifcios e de interaes
materiais entre seus habitantes. O sentido e o sem sentido do urbano se formam, entretanto, quando
o imaginam os livros, as revistas e o cinema; pela informao que do a cada dia os jornais, o rdio
e a televiso sobre o que acontece nas ruas. No atuamos na cidade s pela orientao que nos do
os mapas ou o GPS, mas tambm pelas cartografias mentais e emocionais que variam segundo os
modos pessoais de experimentar as interaes sociais. No possvel, ento, estabelecer com rigor o
que uma cidade, nem sequer o que so cada uma de suas representaes particulares: o que So
Paulo, ou Buenos Aires, ou Paris, ou Tquio ou Salvador? Buscamos inscrever nossas anlises sobre
os sentidos e os significados das cidades nesta corrente de pensamento urbano que v as cidades em
tenso entre o que so e o que queramos que fossem.
A cidade por suas origens, o espao prprio da mestiagem das pessoas e das coisas. certo que a
cidade moderna o lugar de mscaras, dos papis sociais vividos como representao teatral. Mas a
cidade brasileira, este fantstico hbrido sociolgico, funciona de uma maneira singular. Se ela divide
de um lado, une de outro. No somente um lugar frio e interessado. tambm o lugar de fazer festa,
momento onde as mscaras e a teatralidade dos papis sociais adquirem uma outra dimenso, a do
movimento, da alegria e, sobretudo, da mistura dos cdigos e das pessoas, criando um mundo virtual,
onde o gasto suntuoso e o consumo prprios ao dom e troca generalizada so as palavras de ordem.
Em uma palavra: a festa promove uma mstica do dom, um dom que provoca sua resposta e um
outro dom, uma troca que se intensifica num espao delimitado e concentrado, provocando em seus
participantes um conjunto de emoes, de vivncias que favorecem o desenvolvimento do sentimento
de participar de um corpo coletivo.
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REFERNCIAS BIBLIOgRFICAS
COMPROMISSO da Irmandade De Nossa Senhora do Rosrio na Freguesia da Conceio da Vila do
Prncipe do Serro Frio, ano de 1728.
DaMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heris: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de
Janeiro: Zahar, 4. ed. 1983.
DUVIGNAUD, Jean. Festas e civilizaes. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1984.
MIGUEZ, de Oliveira, Paulo Cesar. A organizao da cultura na Cidade da Bahia, tese de doutorado,
UFBA. 2002.
PEREZ, La Freitas. Por uma antropologia da festa: notas e reflexes, texto da palestra proferida no
Ciclo de colquios e palestras do Museu Antropolgico da Universidade Federal de Gois. 1999.
SANCHIS, Pierre. Arraial: festa de um povo: as romarias portuguesas. Lisboa, Publicaes Dom Quixote.
1983.
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A COmPLEXIDADE TNICA E OS DESAFIOS PARA O RELACIONAmENTO DAS ORgANIZAES TRANSNACIONAIS COm COmuNIDADES RuRAIS
NO SuL DE mOAmBIQuE
Eullio Feliciano Mabuie1
Kenia Caroline Viera2
Ratmir Flvio Cuna3
Resumo
Este artigo discute em primeiro plano a questo da comunicao e da transculturalidade como ambrela
para o entendimento do processo de adaptao das empresas transnacionais em contextos culturais
diferentes da matriz. Buscamos tambm fazer um estudo etnogrfico para perceber a complexidade
que norteia o processo de entendimento das culturas locais, tendo como caso concreto sete povoados
rurais do sul de Moambique.
Palavras-chave: Comunicao; Transculturalidade; Relacionamento de sentido.
Abstract
This article discusses, foregrounds, the issue of communication and transcultural umbrella as to adapt
them to the understanding of transnationals companies in different cultural contexts of the matrix. It
also makes an ethnographic study to understand the complexity of the process of understanding local
cultures, having as real cases seven communities in southern Mozambique.
Keywords: Communication; Transculturality; Relationship of sense.
1 Mestre em Comunicao Social- Processos Comunicativos e Prticas Sociais pela Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (FAFICH-UFMG); Professor da Escola Superior de Jornalismo (em Moambique). E-mail: [email protected].
2 Bacharel em Cincias Sociais (2008) formada no Brasil na Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais. Atua na rea de sociologia e antropologia h cinco anos, no Brasil e Moambique, com enfoque para estudos socioeconmicos e etnogrficos. E-mail: [email protected].
3 Especialista em Responsabilidade Social (2010) pelo Instituto de Educao Continuada (IEC) da Pontifcia Universidade Ca-tlica de Minas Gerais. professor na Escola Superior de Jornalismo (em Moambique) desde 2010 e, Gestor de Projetos na Diagonal em Moambique. E-mail: [email protected].
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1. A COmuNICAO NA PERSPECTIVA TRANSCuLTuRAL
O fenmeno da globalizao, com a abertura de novos mercados, a retirada de fronteiras e essa
convivncia praticamente inevitvel entre diferentes culturas leva-nos a questionar sobre a vivncia
das culturas nacionais, tentando perceber como elas se mantm numa situao em que este
fenmeno de per si acentua as desigualdades, acirra as disputas e leva as culturas a conviver de uma
forma global-local.
Autores como Ribeiro (1997) e (2009), Canclini (2005), Hall (2009), Barbosa e Veloso (2007), Korhonen
(2010), Baldissera (2008) e Jensen (2003) nos do subsdios para promover um debate sobre o
fenmeno da globalizao, da transculturalidade e suas implicaes nas culturas nacionais, convivncia
entre indivduos de diferentes culturas, ou seja, como perceber, conviver e dialogar com aquele que a
partida nos parece estranho.
De acordo com Hall (2009, p.56) a globalizao no um fenmeno novo e, remonta explorao,
conquista e colonizao europeia; por isto o autor a define como contempornea, pois na atualidade
ela se apresenta de uma nova forma. Segundo sua perspectiva ela est associada a novos mercados
financeiros, que acabam contribuindo para a desestabilizao das economias em processos de
crescimento. Ela est ligada a cultura de consumo, influenciada pelas novas tecnologias de informao
e comunicao.
Esta nova forma de globalizao, assim como a antiga (colonizao, expanso europeia, etc.)
discriminatria e muito desigual. Os seus discursos demonstram um falso bem-estar, e por vezes se
mostram animadores, mas, na prtica, acentuam a diferena e tentam homogeneizar as culturas.
Se olharmos a partir da colocao de Hall (2009) de que este fenmeno no natural, sendo um
sistema de confirmao da diferena, ento, significa que suscetvel de questionamentos, crticas
e mesmo rejeio. Mostra-se como um lugar onde as resistncias e contra estratgias podem se
desenvolver com sucesso. Isso significa, porm, olhar o fenmeno global como um lugar de ver os
embates, as disputas de sentido de indivduos na situao de interao, entre duas culturas diferentes
que entram em contato.
Ribeiro (2009, p.23) diz que os discursos globais so anunciados frequentemente como se fossem
universais, admirados e desejados por todos. Para o autor, este discurso , ainda, uma utopia, tendo
em vista as possibilidades que dela podem advir, baseado nos discursos com o tom de fraternidade
aqui trazidos.
Para falarmos de problemas de adaptao, interessa perceber, primeiro, a diferena entre
multiculturalismo e interculturalismo, e aspectos ligados questo da comunicao inter e transcultural
que as organizaes precisam levar em conta.
Para melhor entendermos esse aspecto recorremos a Canclini (2005, p.17) que definiu o
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multiculturalismo como justaposio de etnias ou grupos sociais que geralmente permitem que haja
a mistura ou diversidade de culturas, caracterizando-se por ter polticas relativas de respeito e que
acentuam e reforam a segregao. Enquanto que o interculturalismo est ligado ao entrelaamento
de grupos, onde os diferentes so diferentes pelas suas caractersticas, assim como, em relao de
negociao, conflito e emprstimos recprocos.
Recorrendo novamente a Ribeiro (1997), discutir a condio da transnacionalidade antes de tudo,
fazer um levantamento de possibilidades de ver de outra maneira, as nossas formas de conceber e ver
a noo de cidadania, o que nos levaria a ter uma clara sensibilidade em relao aos efeitos da ao
poltica e econmica numa situao de globalizao.
Tais questes sobre a comunicao intercultural nos levam a pensar e a refletir sobre as formas segundo
as quais, as organizaes transculturais e os indivduos de diferentes culturas se relacionam, quando
estes entram em contato, e como estas organizaes lidam em particular, com a questo de olhar a
diferena e lidar com ela do jeito como ela .
Vrios estudos foram e so feitos sobre a comunicao intercultural, porm, como afirma Jensen
(2003) muitos destes olhavam apenas para o paradigma funcionalista da comunicao, buscando
perceber apenas prticas comunicacionais interculturais, com o nico propsito de facilitar a vida das
organizaes que tm de lidar com este tipo de comunicao. Jensen enfatiza a crtica feita ao vis
funcionalista que sempre caracterizou a comunicao intercultural, que v a cultura apenas a partir das
experincias pessoais e focalizadas nas diferenas entre os indivduos, ignorando a interconexo com
as diferenas estruturais.
Para ns, a melhor forma de ver a comunicao intercultural, pautar pelo reconhecimento do outro,
reconhec-lo como diferente e aprender a lidar com essa diferena, criando deste modo dilogos
mais duradouros e aceitveis. Barbosa e Veloso (2007) corroboram esta viso quando salientam que
h uma necessidade de se evitar que o outro seja visto apenas como simples diferente, e sugerem
que se superem as diferenas em relao ao outro para criar um elo comum de uma sociabilidade,
que abrange tanto eu quanto o outro, procurando assim formas de tornar a comunicao
intercultural mais dialgica.
Quando falamos que a comunicao intercultural pode ser percebida luz dos trs princpios
bsicos da complexidade desenhados por Morin, citado por Baldissera (2008) que so: o
dialgico4, o recursivo5 e o hologramtico6, estamos considerando, na verdade, que esse processo
4 Princpio dialgico funda-se na associao complexa de instncias necessrias junto a existncia, ao funcionamento e ao desenvolvimento de um fenmeno organizado, de modo que a dualidade possa produzir a unidade, em que noes inimigas como ordem e desordem se articulam de maneira tensa colaborando entre si mesmos para produzir organizao e fazer sentido. (BALDISSERA. 2008, p.155)
5 Principio recursivo atualiza a ideia de que todo momento , ao mesmo tempo, produto e produtor que causa e que causa-do, e em que o produto produtor do que o produz, o efeito causador do que o causa. Idem
6 Principio hologramtico remete-nos a noo de que parte e todo so, ao mesmo tempo, mais e menos, isto , h caracte-rsticas das partes que no se manifestam no todo e outras propriedades que emergem no todo e no esto presentes nas partes. Idem
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de comunicao exige que os seus atores entrem em um processo de produo de sentido comum, e
que os indivduos em interao se encarem como interlocutores ativos, uma vez que um precisa do
outro, um pode aprender do outro e vice-versa. Mesmo que essa comunicao seja na sua essncia
voltada para criar sentido comum em contextos transculturais, no se pode olhar como consensual,
muitas vezes se apresenta como complexa e difcil de gerir devido s tenses que surgem e aos
embates culturais ali presentes.
A adaptao a uma nova cultura segundo Korhonen (2010) um processo dinmico e complexo,
que exige uma participao conjunta dos que chegam e dos que l esto. Deste modo, entendemos
que adaptao um processo recursivo7, pois afeta tanto os que chegam assim como os que esto
no lugar de chegada. Exige, assim, uma entrega mtua e por vezes igualitria entre as pessoas
envolvidas no processo.
Assim, acreditamos que importante que sejam construdos significados comuns para o grupo e para
as atividades que executam dotar de sentido a produo comum. na busca de certa unidade de
sentido que se mostra necessrio compreender a cultura das regies onde diferentes empresas se
instalam, independentemente das regies, dos lugares e dos contextos.
Para melhor elucidao, a prxima seo do presente artigo mostra a partir de um estudo etnogrfico
de sete povoados8 do distrito da Moamba, provncia de Maputo Moambique, como as lnguas, a
pertena tnica, o sistema de valores e crenas, bem como a estrutura de poder local, se configuram
como importantes elementos para se entender a cultura de um povo, de uma unidade social, sendo,
portanto, indispensvel conhec-los e entend-los para se traar estratgias de comunicao que
faam sentido.
2. A COmPLEXIDADE TNICA DAS COmuNIDADES RuRAIS NO SuL DE mOAmBIQuE
Etnicidade e lngua so importantes elementos para entendermos a cultura de um povo, de um grupo
e de uma unidade social. Segundo Cunha (2009) etnicidade linguagem na medida em que ela
entendida como uma categoria nativa onde cada grupo lana mo de determinados smbolos para se
distinguir um perante o outro, como tambm para estabelecerem comunicao e interao.
As lnguas nativas faladas pelos grupos tnicos de Moambique so de origem Bantu. Uma extensa
faixa9 do territrio de frica foi ocupada por povos que fazem parte desta grande matriz lingustica e
cultural, a qual se desdobra em uma diversidade de variantes, mais de quatrocentas. O termo bantu
7 Recursividade percebida segundo Morin (apud Baldissera 2008) como sendo atualizadora da ideia de que todo momento , ao mesmo tempo, produto e produtor do que o produz, o efeito causador do que o causa.
8 Foram estudados os povoados de Chanculo, Nhoquene, Movene, Incomati Estao, Incomati Rengwe, Mulambo e Condene, onde habitam um total de 518 famlias que possuem vinculos de sociabilidade e laos de parentesco.
9 A grande maioria das populaes ocupantes da tera poro meridional do continente africano, da fronteira martima nige-ro- cameruniana, no Oeste, at o litoral fronteirio somlio-queniano, no Leste, e a partir deste ponto at as proximidades de Port- Elizabeth, no Sul, fala lnguas estreitamente aparentadas, denominadas lnguas bantas. (LWANGA-LUNYIIGO & VANSINA, 2010, p. 169).
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significa pessoa, o qual utilizado de forma bastante similar entre os povos classificados dentro
desta matriz.
Segundo Ornellas (1901) Moambique possui quatro matrizes tnicas: Macua, Mocaranga, Tonga e Zulu-
ajau, estas por sua vez se subdividem em outros grupos. Os Macuas ocuparam de forma prevalecente
regies entre o Rovuma e o Zambeze e entre o Niassa e o ndico (regio Norte); os Mocarangas o
planalto central entre o Zambeze e o Save (regio Centro), os Tongas e os Zulus-ajau o sul do Save
(regio Sul), sendo que esta ltima considerada uma etnia originria da frica do Sul que invadiu o
territrio ocupado pelos Tonga.
O principal parmetro utilizado para esta classificao advm dos usos e costumes partilhados por
estes grupos, como tambm do padro lexical comum existente na lngua falada por eles. Contudo,
em meio a elementos comuns estes grupos conservam peculiaridades que os singularizam e so estes
elementos distintivos que provocam as categorizaes tnicas mais complexas chegando ao nvel das
linhagens e/ou cls.
Os povoados que fizeram parte do estudo encontram-se ocupados por famlias que pertencem a subgrupos
tnicos da matriz cultural Thonga ou Tonga, estes so os Machanganas, Rongas, Muchopes e Tsuas.
Nos ltimos 20 anos, houve uma intensiva movimentao desta populao para a rea em busca de
melhores recursos naturais, necessrios para as estratgias de sobrevivncia. Isto fez com que na
atualidade a regio combinasse uma estrutura sociocultural composta por linhagens que viviam ali
desde os tempos do perodo colonial10, mas que agregou linhagens externas.
A matriz lingustica correspondente a estes povoados, segundo a classificao de Sitoe (1991)
a Tsonga, sendo que esta composta por trs variantes: Xitshwa, Tsonga (Changana) e Ronga. 93%
destas famlias possuem como lngua principal ou que se fala em casa o Xichangana, sendo que sua
distribuio expressiva em todos eles.
O portugus apesar de ser a lngua oficial de Moambique possui pouca expressividade dentro do
quotidiano destes sujeitos. Isto porque a lngua funciona como um elemento distintivo, bem como
mantm o sentido de grupo, pois materializa a matriz cultural de que eles fazem parte.
A organizao poltico-territorial destes povoados segue uma lgica de governao local que combina
duas estruturas: uma que obedece a lgica administrativa estatal e outra regida pela lgica tradicional
das linhagens. De um modo geral, as comunidades rurais de Moambique conservam estes dois tipos
de estruturas governativas, as quais incidem sob a organizao territorial das mesmas, lembrando que
o Estado afere legitimidade s autoridades tradicionais por meio de dispositivos legais.
Em certa medida estas duas estruturas esto imbricadas e se interagem no que diz respeito gesto
territorial e social das com