revista antropofÁgica 01_completo.pdf

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7/28/2019 REVISTA ANTROPOFÁGICA 01_COMPLETO.pdf http://slidepdf.com/reader/full/revista-antropofagica-01completopdf 1/9 ANNO I - NUMERO I 500 rs. MAIO - 1928 Revista de Jfatropofa|ia Direção de ANTÔNIO DE ALCÂNTARA MACHADO ENDEREÇO: 13, RUA BENJAMIM CONSTANT - 3.° PAV. SALA 7 - CAIXA POSTAL N.° 1.269 Gerencia de RAUL BOPP SÃO PAULO ABRE-ALAS Nós éramos xifópagos. Quási chegamos a ser deródimos. Hoje somos antropófagos. E foi assim que chegamos á perfeição. Cada qual com o seu tronco mas ligados pelo figado ( o que quer dizer pelo ódio) mar chávamos numa só direcção. Depois houve uma revolta. E para fazer essa revolta nos unimos ainda mais. Então formamos um só tronco. De pois o estouro: cada um de seu lado. Viramos ca nibais. Aí descobrimos que nunca havíamos sido outra cousa. A geração actual coçou-se: apare ceu o antropófago. O antropófago: nosso pai. principio de tudo. Não o índio. O indianismo é para nós um prato de muita sustância. Como qualquer outra escola ou movimento. De ontem, de hoje e de amanhã. Daqui e de fora. O antropófago come o índio e come o chamado civilizado: só êle fica lambendo os dedos. Pronto para engulir os ir mãos. Assim a experiência moderna (antes: con tra os outros; depois: contra os outros e contra nós mesmos) acabou despertando em cada con viva o apetite de meter o garfo no vizinho. Já começou a cordeal mastigação. Aqui se processará a mortandade (esse car naval). Todas as oposições se enfrentarão. Até 1923 havia aliados que eram inimigos. Hoje há inimigos que são aliados. A diferença é enorme. Milagres do canibalismo. No fim sobrará um Hans Staden. Esse Hans Staden contará aquillo de que escapou e com os dados dele se fará a arte próxima futura. E' pois aconselhando as maiores precauções que eu apresento ao gentio da terra e de todas as terras a libérrima REVISTA DE ANTRO POFAGIA. E arreganho a dentuça. Gente: pode ir pondo o cauim a ferver. Antônio de Alcântara Machado. ,— MANHÃ O jardim estava em rosa, ao pé do Sol E o ventinho de mato que viera do Jaraguá Deixando por tudo uma presença de água Banzava gosado na manhã praceana. Tudo limpo que nem toada de flauta. A gente si quizesse beijava o chão sem formiga, A bocea roçava mesmo na paisagem de cristal. Um silêncio nortista, muito claro! As sombras se agarrando no folhedo das árvores Talqualmente preguiças pesadas. O Sol sentava nos baricos, tomando banho-de-luz. Tinha um sossego tão antigo no jardim, Uma fresca tão de mão lavada com limão Era tão marupiara e descansante Que desejei... Mulher não desejei não, desejei... Si eu tivesse a meu lado ali passeando Suponhamos, Lenine, Carlos Prestes, Gandhi, um desses !... Na doçura da manhã quasi acabada Eu lhes falava cordialmente:—Se abanquem um bocadinho E havia de contar pra eles os nomes dos nossos peixes Ou descrevia Ouro Preto, a entrada de Vitoria, Marajó, Coisa assim que puzesse um disfarce de festa No pensamento dessas tempestades de homens. MARIO DE ANDRADE "ftli vem a nossa comida pulando" (V. Hans Staden - Cap. 28)

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AN NO I - NUM ERO I 5 0 0 r s . MAIO - 1928

R e v i s t a d e J f a t r o p o f a | i aD ir eç ão d e A N T Ô N I O D E A L C Â N T A R A M A C H A D O

E N D E R E Ç O : 1 3 , R U A B E N J A M I M C O N S T A N T - 3 . ° P A V . S A L A 7 - C A I X A P O S T A L N . ° 1 . 2 6 9

G e r en c i a d e R A U L B O P P

SÃO PAULO

ABRE-ALAS

Nós éramos xifópagos. Quási chegamos aser deródimos. Hoje somos antropófagos. E foiassim que chegamos á perfeição.

Cada qual com o seu tronco mas ligadospelo figado ( o que quer dizer pelo ódio) m ar

chávamos numa só direcção. Depois houve umarevolta. E para fazer essa revolta nos unimosainda mais . Então formamos um só tronco. Depois o esto uro : cada um de seu lado. Viramo s canibais .

Aí descobrimos que nunca havíamos sidooutra cousa. A geração actual coçou-se: apareceu o antropófago. O antropófago: nosso pai .principio de tudo.

Não o índio. O indianismo é para nós umprato de muita sustância. Como qualquer outraescola ou movimento. De ontem, de hoje e deamanhã. Daqui e de fora. O antropófago come oíndio e come o chamado civilizado: só êle fica

lambendo os dedos. Pronto para engulir os i r mãos .Assim a exper iência moderna (antes: con

tra os outros; depois: contra os outros e contranós mesmos) acabou desper tando em cada conviva o apetite de meter o garfo no vizinho. Jácomeçou a cordeal mastigação.

Aqui se processará a mortandade (esse carnaval) . Todas as oposições se enfrentarão. Até1923 havia aliados que eram inimigos. Hoje háinimigos que são aliados. A diferença é enorme.Milagres do canibalismo.

No f im sobrará um Hans Staden. Esse HansStaden contará aquil lo de que escapou e com osdados dele se fará a ar te próxima futura.

E ' pois aconselhando as maiores precauçõesque eu apresento ao gentio da ter ra e de todasas te r r as a l ibér r ima REVISTA DE ANTROP O F A G I A .

E ar r eganho a den tuça .Gente: pode ir pondo o cauim a ferver .

Antônio de Alcântara Machado.

,— M A N H Ã

O jardim es tava em rosa , ao pé do Sol

E o ve nt inho de ma to que v ie ra do J a ra guá

Deixando por tudo uma presença de água

Ba nz a va gosa do na ma nhã pra c e a na .

Tudo l impo que nem toada de f lauta .

A gente s i quizesse be i java o chão sem formiga ,

A bocea roçava mesmo na pa isagem de cr is ta l .

Um si lêncio nort is ta , muito c laro!

As sombra s s e a ga r ra ndo no fo lhe do da s á rvore s

Ta lqua lme nte pre guiç a s pe sa da s .

O Sol sentava nos bar icos , tomando banho-de- luz .

T inha um sos se go t ã o a n t igo no j a rd im,

Uma fresca tão de mão lavada com l imão

Era t ã o ma rupia ra e de sc a nsa nte

Que de se je i . . . Mulhe r nã o de se je i nã o , de se je i . . .

Si eu t ivesse a meu lado a l i passeando

Suponhamos, Lenine, Carlos Prestes, Gandhi, um desses !. . .

Na doçura da manhã quasi acabada

Eu lhes fa lava cordia lmente :—Se abanquem um bocadinho

E havia de contar pra e les os nomes dos nossos pe ixes

Ou de sc re v ia Ouro Pre to , a e n t r a da de V i tor i a , Ma ra jó ,

Coisa ass im que puzesse um disfarce de fes ta

No pe nsa me nto de s sa s t e mpe s ta de s de home ns .

M A R I O D E A N D R A D E

" f t l i v e m a n o s s a c o m i d a p u l a n d o "(V. Hans Staden - Cap. 28)

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Revista de Antropofagia

RESOLANA P o e m a

O mormaço é a fumaça da macega.Treme o longe diluído na quentura.O boi desce a recosta em procura da somb ra

mas pára logo, abombado.Lá no alto, voando, voando, bebendo o azul,

subindo sempre — urubu.F e l i z . . .O calor queima a terra, ferve no ar.(Memória de marulhos

gosto de espuma l imo areia branca)A cabeça do alazão é uma chamma esbelta

cor tando o campo a trote largo.Vejo as orelhas agudas que se movem,

sinto o corpo fremente do cavallo.E ha tanta harmonia entre o choque dos cascose o meu tronco agitado na vibração febril,que eu compreendo a gloria animal da carreira:vou!

enrolado na força do sol.

(Rio Grande do Sul)Do livro "Giraluz"

A U G U S T O M E Y E R

Estão no Pre lo

LARANJA DA CHINAD E

A n t ô n i o d e A l c â n t a r a M a c h a d oE

M A C U N A I M ADE

M a r i o d e A n d r a d e

A s a i r b r e v e m e n t eM a r t i m - S e r e r ê

V E R S O SDE

C a s s i a n o R i c a r d o

E

Republica dos E. U. do BrasilP O E M A S

DE

M E N O T T I D E P I C C H I A

Ella vae sozinha, tropeçando nas colheitas.Bate-lhe o sol nos hombros. Ella sente que um gosto.

humanodeflora-lhe a bocca e illumina-a de absurdos.

Parece que um choro quer sorrir dentro de si.Parece que o sangue dentro de si quer matal-ae jogar-lhe clarões por cima.

Aquillo é o universo que se despenha dos seus cabellos.

(Pará) ABGUAR BASTOS

URA,o s f i lm s q u e a s s o m b r a m o m u n d o

REPRESENTANTE

G u s t a v o Z i e g l i t z

RUA DOS AND RADAS, 42

SÃO PAULO

V a c c a C h r i s t i n a

A vacca Chr is t ina, de madrugada,Vem de belengue no longo da rua.Uei ,Olha o lei te da vacca Chr is t ina!

No Bango lambido de luzes escassasEstira-se a larga madrugada molle.Amontoa-se a garoa miúda. E lá adeante.Roda a carroça do lixo da noite.Uei ,Quem quer lei te da vacca Chr is t ina?

E a vacca bohemia, de pata pi toca,Vae toda faceira, enfeitada de fitaVae ver as comadres atraz dos tabiquesUei,Viva as tetas da vacca Chr is t ina!

E passa a patrulha noturna da zona.E' a hora em que o Bango cansado cochila.Somente enche o resto da noite deser taO belengue molango no longo da rua:Uei ,Quem que o lei te da vacca Chr is t ina?

Jacob Pim>Pim.

Do l ivro a sahir : "Ai, seu Mé".

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R e v i s t a d e An t r o p o f a g i a

M A N I F E S T O A N T R O P Ó F A G OSó a antropofagia nos une . Socia l

me nte . Ec onomic a me nte . Phi loso-phic a me nte .

Únic a l e i do mundo. Expre s sã omascarada de todos os individual is -mos, de todos os col lec t ivismo. Detodas as re l igiões . De todos os t ra tados de paz .

pobre dec laração dos dire i tos doh o m e m .

A edade de ouro annunciada pe laAmerica . A edade de ouro. E todasas gir ls .

Tupy, or no t tupy tha t i s theque s t ion .

Cont ra toda a s c a the c he se s .c ont r a a mã e dos Gra c c hos .

Fi l iação. O contac to com o Bras i lCa ra hiba . Oú V i l l e ga nhon pr in t t e r -r e . Monta igne . O home m na tura l .Rousse a u . Da Re voluç ã o Fra nc e saa o Rom a nt i smo, á Re voluç ã o Bol -chevista, á Revolução surrealista ea o bá rba ro t e c hniz a do de Ke yse r l -ing . Ca minha mos .

Só me in te re s sa o que nã o é me u.Le i do home m. Le i do a n t ropófa go .

Nunca fomos ca thechisados . Vive

mos a t r a ve z de um di r e i to sona m-bulo. Fizemos Chris to nascer na Bahia . Ou em Belém do Pará .

Es ta mos f a t iga dos de todos os ma r idos ca tholicos suspei tosos postose m dra ma . Fre ud a c a bou c om oe nigma mulhe r e c om o ut rossus tos da psyc hologia impre s sa .

Ma s nunc a a dmi t t imos o na sc i mento da lógica entre nós .

Só pode mos a t t e nde r a o mundoore c ula r .

Tínhamos a jus t iça codif icação davingança A sc iencia codif icação daMa gia . Ant ropofa gia . A t r a ns for ma ç ã o pe rma ne nte do Ta bu e m tot e m .

Contra o mundo revers ive l e asidéas objec t ivadas . Cadav erizadas .O s top do pe nsa me nto que é dyna -mico. O indivíduo vic t ima do sys te-ma. Fon te das injus t iças c láss icas .Das injus t iças românticas . E o esque c ime nto da s c onqu i s ta s in te r io

r es .

Rote i ros . Rote i ros . Rote i ros . Rote i ros . Rote i ros . Rote i ros . Rote i ros .

O ins t inc to Carahiba .

O que a t rope la va a ve rda deera a roupa , o impermeávelentre o inund o in ter ior e omundo e x te r ior . A r e a c ç ã oc ont r a o home mvest ido. O c inemaa me r ic a no informa

rá .F i l h o s d o s o l ,

mã e dos v ive nte s .E n c o n t r a d o s e a m a dos ferozmente, comtoda a hypoc r i s i ada saudade, pelos im-migra dos , pe los t r a f icados e pe los tou-r is tes . No paiz dac obra gra nde .

Foi porque nunc a t ive mos gra m-maticas , nem col-lecções de ve lhos

ve ge ta e s . E nunc a soube mos o quee ra urba no , suburba no, f ron te i r i ç o ec ont ine nta l . P re guiç osos no ma ppamundi do Bra s i l .

Uma c onsc iê nc ia pa r t i c ipa nte ,uma ry thmic a r e l ig iosa .

Cont ra todos os impor ta dore s deconsciência enla tada . A exis tênciapalpável da vida , E a menta l idadepre logic a pa ra o Sr . Le vy Bruhle s t u d a r .

Desenho de Tarcilu 1928 De um quadre que figurará na sua próxima exposição de Junhona galeria Pcrcier, em Paris.

Mor te e v ida da s hypothe -ses . Da equação eu par te doKosmos a o a x ioma K osmosparte do eu. Subsis tência . Conhe c ime nto . Ant ropofa gia .

Cont ra as e l i t e s ve g e ta e s .Em c ommunic a ç ã o c om o so lo .

Nunca fomos ca th echisado s .

Fizemos foi Carnaval . O indiovest ido de senador do Império.F ingindo . de P i t t . Ou f igura ndo nas operas de Alencar cheiode bons s e n t ime ntos por tugue -zes.

Já t ínha mos oc ommunismo. J á t í nha mos a l ínguasur re a l i s t a . A e da de de ouro.Cati t i Cat i t iI m a r a N o t i áNot iá Ima raIpejú

Que re mos a r e voluç ã o Ca ra hiba .Ma ior que a r e voluç ã o Fra nc e sa . Aunif icação de todas as revoltas e f-

f icazes na direcçâo do homem. Semnós a Europa não te r ia s iquer a sua

Cont ra o Pa dre V ie i r a . Autor donosso pr ime i ro e mpré s t imo , pa raga nh a r c ommissã o . O re i a na lpha -beto dissera- lhe : ponha isso no papelmas sem muita lábia . Fez-se o empré s t imo. Gra vou- se o a s suc a r bra s i le iro. Vie ira de ixou o dinheiro emPor tuga l e nos t rouxe a l á b ia ,

O espir i to recusa-se a conceber oespir i to sem corpo. O antropomor-f ismo. Necess idade da vaccina an-tropofagica . Para o equil íbr io contraas re l igiões de meridiano. E as inqui s i ç õe s e x te r iore s .

A magia e a vida . Tínhamos a relação e a dis tr ibuição dos bens phy-s icos , dos bens moraes , dos bens digna dos . E s a b ia mos t r a nspor o ínys -ter io e a morte com o auxil io de a lguma s forma s gra mma t ic a e s .

Pe rgunte i a um home m o que e rao Dire i to. El le me respo ndeu queera a garant ia do exerc íc io da poss ibi l idade . Esse homem chamava-seGall i Mathias . Comi-o

Só nã o ha de te rmini smo - onde hamis té r io . Ma s que t e mos nós c omis so?

Continua na Pagina 7

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R e v i s t a d e An t r o p o f a g i a

SEIS ROETAS

PBDRO-JUAN VIQNALE — Sen-tímiento de Germana — BuenosAires — 1927.

Os versos são de uma ternura forte egrave. Muito differente daquele picguis-mo rimado dos poetas que sussurram norimado dos poetas que sussurram noouvidinho da amada. Pedro-Juan Vignale,maestro e entomólogo, ama á moderna.E poeta ámoderna. Seus ditirambos emhonra de Germana não são declaraçõesde namorado bisonho: antes de que temfé convencida e invencível num sentimento muito alto mas palpável. Nada dedúvidas cruciantes ou queixumcs suspirados. Nenhuma alusão ámorte salvadora.

Através da mulher o poeta ama a terra

onde ela nasceu: esta terra. Sentir umaé sentir aoutra.

En tus manos ávidastraeslos cielos dei Brasil

Ouvindo a voz cállda detrópico éque êle vê

esa tarde paulistaexprimirse«obre eiTietêhasta inundarlo

O" qu e épositivamente lindo.

Esse contracto de poeta, tão profundamente vigoroso com o tema lírico Brasil ainda nos dará (penso eu) muita cou-sa ótima.

JORGE FERNANDES — Livro depoemas — Natal — 1927.

A poesia de Jorge Fernandes machuca.Deante dela fica-se com vontade de gritar como o próprio poeta na Enchente:

Lá vem cabeçada...E vem mesmo. Poesia bandoleira, vio

lenta, golpeando a sensibilidade da genteque nam otejú brigando com acobra:L é x o ! léxo t

Ao lado disso uma afeição carnal eselvagem pela terra sertaneja como demonstra entre outras aexplêndida Can-(5o do inverno. E. feitio rjide de dizeras cousas. Jorge Fernandes tem amã odura: tira lascas das paisagens que caemnas unhas dele. MSo de derrubar sem duvida. Aquella mesma trabalhadeira e lí-rica Mio nordestina que dá onome auma de suas poesias mais características.

Outra cousa: Jorge Fernandes fala umalíngua que nós do Sul ainda não compreendemos totalmente mas sentimos admirável. Eu pelo menos não percebo trechos e trechos de várias poesias suas.No entanto gosto deles. O poema Avoetespor exemplo (não sei sepor causa daconstrucção particularfssima de certasfrazes) espanta como odesconhecido.Eé bonito que só vendo.

O autor do Livro de poemas evidentemente está passando por um períododoído de auto-crítica de que sairá melhorado com' certeza. Êle m esmo reconheceisso ecaçoa de suas remmiscências parnasianas. Daí uma porção de pequenosdefeitos nas vésperas de completo- desaparecimento. Ou eu muito -me engano.

JORGE DÈ LIMA — Poemas eEssa negra Fido —Maceió —1927 « 1928.

A ascensão de Jorge de Lima é «m adelícia. De soneto Acendedor delam-peSes ao poema Essa negra Fulfl. Sujeito inteligente como poucos soube procurar eachou. Abençoado Manuel Bandeira.

Dos Poemas eu separo G. W, B. R.Gostosura de lirismo vagabundo, alegre,levado dos diabos. Dá vontade na gentede repetir aviajem tendo opoema bemguardado na memória. Separo esse porser omeu predileto. Mas não o úniconotável. Rio de Sáo Francisco tambémme agrada bastante. Bala de Todos osSantos, Santa Dica, Floriano-Padre Cf-cero-Lamp eão' igualmente têm cousasque a gente não esquece. Principalmenteo primeiro. E do magnífico ChangA pulaum bodum danado, rebenta um ritmoinfernal. Inútil querer resistir.

De vez em quando uma descaida sentimental ou pueril, livresca, oratória ouconceituosa que desaponta mas não assombra. Porque não é assim tão facilmente que se Tompe com certos cacoetesliterários. Não vê. A cousa édura comoquê. Não tem importância: Jorge de Lima está ficando cada vez mais escovado.Por isso duvido muito que em seus livrosfuturos apareçam versos como Oraç&o,Meninice, Poemas dos bons fradinhos,<A voz da igrejinha e oPainel de NunoGonçalves sobretudo.

Agora Essa negra Fulô. E' das cousasmais .marcantes que apoesia nordestinanos tem enviado de muito tempo paracá . Essa negra Fulô sim. Bole com a gente . Pinica a'sensibilidade da gente. Embala o sensualismo da gente. Canção ehistória da escravidão sem querer ser.Poesia boa, cheirosa, suarenta, apetito-sa, provocadora.

Ora se deu que chegou(isso já faz muito tempo)no bangüê dum meu avôuma negra bonitinhachamada negra Fulô

Essa negra FulôtEssa negra Fulô!

O' Fulô? O' Fulô?(Era a fala da Sinháchamando a negra Fulô)Cadê meu frasco de cheiroque teu Slnhô me mandou?— Ah! foi você que roubou!Ah I foi você que roubou!

O Sinhô foi açoitarsosinho a negra Fulô.A negra tirou asaiae tirou ocabeção,de dentro dele pulounuinha anegra Fulô.

Essa negra Fulô!Essa negra Fulô!

O' Fulô? O' Fulô?Cadê, cadê teu Sinhôque Nosso-Senhor me mandou?A h ! foi você que rouboufoi você, negra Fulô!

Essa negra Fu lô! -

Essa negra Fulô. Pretinha do infermo.Essa negra Fulô.

A. de A. M.

Henrique de Resende, Rosário Fusco e Ascanio Lopes — Poemas —

Cataguazes — 1928.E' agente simpática da Verde de Ca

taguazes.Livro naturaline-nte desigual puxando

para três lados.Henrique de Rezende é o mais velho da

turma. Engenheiro rodoviário vai anotandonas margens do caderno de medições ede cálculos os aspectos dos caminhos queêle abre

como um corda me de ve iasno corpo adustoda terra inhospita.

Não sei secomo engenheiro é bo mpoeta. Mas sei que como poeta é bo mengenheiro. Seus veisos são sol idamenteconstruídos sobre leito bem empedrado.

Nem falta o rolo compressor deum aauto-crítica severa. E esses caminhos têmsombras para agente repousar a vistatonta da luz das paisagens. A ermida porexemplo: tão comovente e tão bonita.

Rosário Fusco é um menino. Estádito tudo: mistura timidez com audácia,brutalidade com ternura, larga o estilingue para choramingar no colo de umafecto bom. Tem talento. Quanto aissonão pode haver dúvida. Tem talento, vontade de acertar e uma desenvoltura ótimana qual a gente não pode deixar de pôr amaior das conf ianças. E u gosto muito destepoeminha — Sala de gente pobre — doqual tomo a liberdade de suprimir o último verso:

Um banco.Uma mesa.Um quadro: Nossa Senhora

Outro quadro: São José... .Um lampeão.Nem ambição de mais coisas.

Os defeitos de Rosário Fusco são defeitos de quem tem dezesete anos. Emgeral porque há alguns mais graves quepodem virar crônicos se não forem curados logo: l inguagem meio cámeio lá,quedazinha paTa o lugar-comum, imagemde efeito, final arranjadinho. E outrosmais. Porém eu já disse erepito que emRosário Fusco a gente pode ter sem medomuitíssima confiança.

Ascanio Lopes também émenino: menino malicioso, gozador, cheio de subentendidos. O principal defeito dele é o mesmo de Rosário Fusco: aidade que tem.Daí, apesar dele serbrincalhão, certaspuerilidades sentimentais, odesejo criança de SC T acarlnhado e o tema tristeza

soando falso nas poesias dele.A mata égrande demais para o fogopegar caracteriza bem a sua maneira boa:

Na modorra enorme do sertãoos empregados trabalhavam nos eitos da

[roçaCantando cantigas ingênuas.Mas do lado da serra, lá longe, começou

[a subir fumaçae as chamas tampaTam asarvores da

[mata.O feitor disse que era uma queimada que

[saltara oaceiro.Ninguém pensou em apagar o fogo.No céu os gaviões gritavam assustados.

_ Ascanio Lopes não deve abandonaresse seu feitio de gozador a seco.

O pessoal da Verde é portanto umasurpresa excel lente e cuja excelência dehoje em deante não mais surpreenderáninguém.

A. de A. M.

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R e v i s t a d e An t r o p o f a g i a

P O E S I A

(Especial , pára a "Revista de Antropofagia")

F O M E

Em je jum, na mesa do "Café Guarany" ,

O poeta antropófago r ima e metr if ica o amorzi-

[nho de sua vida.

Elle tem saudades de t i .E l le quer chamar " t i " de : es t r anha — vo lup tuo-

[sa — linda querida.

E l le chama " t i " de : gos tosa — quen te — bôa

[— comida.

Guilherme de Almeida.

A L ÍN G U A T U P Y — P L Í N I O V A L G A D O

A LÍNGUA T U P Y

A língua tupy deve ser estudada comum novo critério. A contribuição de todosos que escreveram grammaticas e dic-cionarios do idioma falado pelos nossosselvagens é certamente muito valiosa, eserve-nos hoje de inicio para as nossasprocuras curiosas. Mas os que estudaramo tupy, nos primeiros séculos da colonização inspiravam-se num critério arca-dico, do mesmo modo que, cons idcando cindio, tomavam-no sob o ponto de vistada catechese. Período de Anchieta, depoisde Montoya, de Filgueiras. E é precisonotar o caracter, de utilidade pratica im-mediata, desses estudos, naquella época.O jesuíta tinha necessidade de unificar,tanto quanto possive!, as línguas, numtypo geral que servisse aò imperialismocatechista. E a necessidade da compre-hensão urgente entre catechumenos eevangelizadores. Essa preoecupação utilitária não podia ter sinão uma orientação grammatical . E sendo o typo humano dos conquistados reduzido peio dogma á equivalência intrínseca do conquistador, passava para um segundo plano o estudo do seu espirito e do 3eu ins-tineto, e da l ingua do gentio só se tomavam as conclusões finaes, formas pacificas passivas da traducção. Que o indio,como valor psychologico e social era to

mado como idêntico ao homen europeu,não resta a menor duvida. Basta ver-seenvergando o habito de Christo, e com otitulo de Dom, que lhe concede FelippeIV, o sr. Antônio Camarão, Poty de nascimento . . . Aliás, uma bulla papal jà declarara, após a descoberta do Novo Mundo, que todos descendiam de Adão e Eva.Os que estudaram o tupy, desde aquellestempos, não podiam ter outra orientaçãoque não fosse a do seu século e a das necessidades prementes.

Muita gente depois veio estudando alingua de nossos Índios, mas com um critério pratico. São subsídios curiosos.Abanheenga, quer dizer, lingua de homem,lingua de gente, chamavam os tupys ásua lingua. 0 missionário foi unificando,systematizando as pequenas modalidadesno nheengatú, ou seja lingua bôa. Dondenasceu o tupy-guarany. As outras tribusficaram falando o seu nheengahyba, lingua ruim. Ruim porque não se submettiaá reducção clássica do nheengatú.

O critério scientifico para o estudodas línguas americanas procede de Mar-tius e da sua classificação. O ramo brasileiro, que vem denominado na classificação de Frederico Muller "grupo tupy-guarany", é dividido por Martius em novegalhos. Parece-me que ha, dahi por diante, uma curiosidade maior em relação ás

l ínguas selvagens. E em relação ao indio.

também. Liga-se o estudo dos Idiomas áprópria historia do homem. Depois deLamarck, G. de Saint Hilaire, Darwin eSpencer, estes assomptos tomam um outro aspecto. A ultima tentativa para reduzir o indio á forma européa, é, talvez, ado nosso chamado indianismo, expressãodo romantismo em nossa literatura. Masessa preoecupação lamartinizante dosnossos poetas e romancistas teve a vantagem de chamar a gttenção brasi leirapara o bugre, cercal-o de uma sympathia

através da qual pudéssemos chegaT a ellee pesquizal-o melhor. E como esse movimento de Gonçalves Dias e José deAlencar representa o primeiro passo parauma comprehensão melhor do indígena,é justo perdoarmos a esses escriptores osprejuízos inherentes ao seu tempo. E épreciso também registrar que, no meiode muita phantazia, ha expressões fieisda psychologia selvagem em muitos trechos da poesia e do romance românticos.

A opinião do nosso historiador PortoSeguro (Vamhagen), tão hostil á pobreraça dominada, vem logo contrabatidapela sympathia de Couto de Magalhães,de Barbosa Rodrigues, de Baptista Caetano a cuja obra podemos juntar o quetem feito Theodoro Sampaio, CândidoRondon, Alarico Silveira, e outros.

Novos aspectos nos interessam hojena lingua dos nossos selvagens O da «rl-

(Continua na pag. seguinte)

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6 Revi s t a de Ant ropofag ia

A L I N G U A T U P Y - ( C o n t in u a ç ã o )

gem, o da sua significação como exprimindo um estagio humano, e, sobretudo,a intima communhão cósmica, essa espécie de intercomprehensão, de intersensi-bilidade e correspondência dos elementosidiomaticos representativos dos objectos,(substantivo) das acções (verbos) c dascircumstancias, (adjectivos e advérbios)que resumem toda uma syntaxe primitiva, que prescindia de -preposições econjunções, primeiras moletas da decadência na funeção creadora das línguas.

A hypotese onamatopaica de Heber, adas interjecções de Horhe Tooke, a dopoder inherente á natureza humana, deMax Muller, a matéria debatida por Con-dillac. Leibnitz. Locke, são indicaçõescuriosas para indagações mais remotas,e hoje, pelo menos, nos fazem meditar

sobre o acervo léxico das raças que foram desapparecendo em nosso continente.A própria origem do "honras americanus",pensamento que nos perturba diante daLagoa Santa ou dos Sambaquis de Igua-p e; ou na consideração phantasiosa doschronistas das possíveis migrações trans-oceanicas precolumbianas; o senso dasedades, a edade da nossa terra, tu Io istose prende, de certa forma, ao estudo donosso indio e da sua língua, e o assum-pto é hoje multo mais suggestivo.

Porém, principalmente depois das hy-potheses de Freud, da sua interpretaçãopela psychanalyse da vida social dos povos primitivos ("Totem et Tabou"); depois do cansaço das civilizações de quea Europa presente è uma grande express ã o ; e ao despeitar de um século em queo senegatez confraternizou com o""pOilu",e Josephina Backer lançou os requebros

yankees do Zanzibar, — é depois de tudoisto que ha. um novo inter esse, e, portanto, deve haver um novo critério parao estudo da nossa lingua tupy

A doutrina da equivalência espiritual,denominação que poderemos dar ao ponto de vista catholico do inicio da colonização brasileira, assume hoje um novoaspecto. E' a equivalência das forças ori-ginaes humanas, denominador commumde todas ai raças..

, A tendência primitivista das nossasartes modernas, como das formas da ci-viKzação moderna, o próprio primitivismodesta éra nova, que Keyserling denominaa éra do chauffeur, tudo isto nos jevaás mais intimas confraternizações com oelemento humano em suas expressões ini-ciaes. Vem dahi a comprehensão maisperfeita que teremos da lingua dos povos primitivos.

A nossa Hngua tupy, não a devemosestudar mais com um senso grammati-cal, philologico, mas com um senso humano.0 idioma, ou os idiomas falados pelospovos americanos precolombianos representam uma verdadeira eucharistia: ohomem commungando com a natureza.

E' sob este ponto de vista que devemos tomar os elementos verbaes poly-ryntheticos da lingua dos nossos selvagens. Veremos desdobrar-se aos nossosolhos através de cada palavra, de cadaraiz, toda a alma do nosso indio.

Tenho observado — pelos pouquíssimosconhecimentos que tenho do tupy — quea onomatopéa é, de facto, a origem maisremota da linguagem dos índios. Não direi precisajnente onomatopéa. segundo apWsuropção de Herder, ou seja a imitação da natureza. Prefiro a onomatopéa

não simplesmente representativa de percepções auditivas, mas como representação de relações entre os sentidos e osdois mundos, c objectivo e o subjectivo.Donde se origina a generalização das significações, a analogia que vae ampliandoa funeção representativa dos vocábulos,ou das syllabas. Analogia que obedecea um sentido sensorial, ou a uma lógicasentimental. Isso tudo estabeleceu muitaconfusão entrt os que primeiro estudaram as linguas dos nossos aborígenes.Porque não tinha sido interpretado osentido dessas línguas, de homens primitivos, em plena idade da pedra lascada.

Quando, com Raul Bopp, comecei a ineinteressar por estes assumptos, estimulados ambos pelas nossas conversas comAlarico Silveira, demos para fazer varias

"descobertas". Não sei até que pontopodem ellas ter valor. Em todo o caso,são caminhos Dará melhores averiguações.

Por exemplo: onde entram as exnros-sões taj te, ti, to, tu, quer dizer que acousa é dura de tinir. Ita — pedr.t, ferro ; ibitii, — montanha, de ibi-terra,'e tu,coisa dura, tesa; cunhatan-muihcr virgem, de cunhí-mulher, e tan-coisa dura,tesa (os seios, naturalmente); taquara-canna de bambu, de ta-duro, e quara-ôco;tátá-fogo, provavelmente porque é doatricto de coisas duras que sáe fogo, e oindio não conhecia mesmo outro processo de fazer fogo, aliás velho processo quevinha desd« os primeiros sambaquis deIguape, ou desde o homem de Lund; oude Amegliino, segundo a descoberta feitapelo incançavel Ricardo Croner.

Como sabemos, água é hy, ou ig. Quemnos dirá que pedra, ita, não vem da cir-cumstancia de estar'sempre a pedra ligada á água, nas minas, nas grutas, no mar,ou em luçta, ou em paz? Seixos querolam, pedregulhos, granitos e basaltosemoldurando as cachoeiras, penedos nomar, tocas onde nascem os córregos...

Espuma é tii. Porque a espuma se origina de choques, de violências. E tudo o queé forte, ardente, traz, por analogia, o tTal , raiz que arde, gengibre; tainha, dent e s ; tatarana, insecto que queima; tlquira,. aguardente, pinga; tainha, caroço, semente (analogia de dente); tacunhg,membro sexual do macho (tá, duro-cunha, mulher); tacape, arma de ma-'tar, etc.

i

A consoante t, lembrando tudo oque é duro, forte, violento, traz sempreidea de atricto, como se vê em táti, fogo,em tu, espuma. Por isso, tlquira. Pois tudod que é qui significa coisa meuda. Ti éviolência que o fogo exerce para distil-lar a aguardente, que vae sahindo aospingos, qui. E temós também Quiriri, ouquirirlm, que quer dizer muitos metidos,do mesmo modo que quirera. Como sesabe. o plural em tupy, entre suas variasformas tem a da repetição de rere,

ri-n. '

Isto dito, vejamos Mantiqueira, o nomede nossa grande serra. Man quer dizerver, enxergar. Tiquera, ou tlquira, querdizer meudos, pequeninos, razurado, pulverizado. O indio, naturalmente, do altoda serra, via tudo diluído na distanciavia tudo tiquera...

E' preciso notar-se (e chamo a attenção

dos meus leitores para este facto) quenem sempre se encontrará a confirmaçãodestas hypothezes na l ingua tupy. Por

que também, com certeza, depois de feitasas expressões iniciaes, a lingua selvagemsoffreu os metaplasmas a que nenhumidioma póde-se furtar. Houve, por certo,transposições, elisões, figuras de diminuição ou de augmento, modificaçõesprosodicas sensíveis obedientes a ljis cli-matericas, cósmicas e históricas, e de talforma que se contavam dezenas de diale-ctos na época da descoberta. Accrescen-te-se a isso a obra unificadora dos jesuítas, as influencias hespanholas, por-tuguezas, francezas e tapuyas. De medoque a documentação desta hypothese setorna mutto difficil. A hypothese é apenaspara mostrar o espirito que possivelmentepresidiu a formação da lingua tupy.

Pa, pe, pi, po, pu, traz sempre idéa desuperfície, ponta, extremidade, contacto,contorno, revestimento, l imite. Sendo superfície, também é tudo o que se referea plano, por exemplo a pequenez, a cha-teza. que s: confunde quasi com a superfície. Donde peua, ou peba, que significa chato, liso. Cachorro pequeno éyaguá-peua, ou yaguá-peba. Mas exprimindo esta consonância também ponta,extremidade, coisas tão relacionadas comsuperfície, (é a lógica intima das inter-correspondencias sensoriaes) o indio chama a aza do pássaro pepu, as mãos dohomem, po, ou pu, Pela mesma razão, ascousas que revestem levam essa consonância. Pelle é pe, ou pi. Como vimos,re-re, ou riri são formas do plural. Dahivem piriri, ou perere, muitas peites, porque a pelle quando irritada dá a idéa deque se multiplica em multas pellezinhas.Pelo menos é a sensação que se tem,quando nos sentimos arrepiados. Por

tanto, perereca, ou piriríca significam estremecer. Ligada essa idéa ao ar, ao vento , ás folhas das arvores, e finalmente aoutros rumores da natureza, temo.! a significação também empregada de sus-Isurrar, sussurro. Mas pe é, principalmente, a .expressão do contacto entre ossentidos e os mundos subjectivo e objectivo. Donde a significação de superfície, de contorno, de véo ou pell» Porisso, petuna (pel le ou véo preto) querdizer noite. Mas é á noite que se repousaque se dorme, portanto, pituú é o verborepousar. E o dia em que se descança(domingo ou feriado) é para o indio também pituú. Esta consonância,,exprime,também, por essas intimas analogias orebentar das superfícies. Assim, temospororoca, pipoca, pereba, puca, (quebrar,estalo de onde arapuca, ara-ave; e puca-quebrar).. Pelo que vim os, pelle piriricada

quer dizer pele que salta irritada. Tudoo que salta, estrebucha, é perereca. Deonde vem o Sacy-perere, ou perereg. Maisforte do que piriríca, é, porém, tirirlea,P'Io que ja vimos do valor de t. Portanto, "ficar tirirlea", expressão queusamos tanto, dá perfeitamente idéa doestado do indivíduo que estremece comviolência, ou da pulos de raiva.

Em outros artigos arranjaremos exemplos interessantes, não só do ponto devista das analogias sensoriaes, como agora, mas das sentimentaes, que revelamoperações psychologicas mais difficeis .

„ „ ? ° Í e ÍO\S Ó p a r a mosi™ <J"e * lin

gua tupy é uma lingua quasi em estadonascente directamente l igada á natureza,oriunda do contacto immediato entre ohomem e o mundo.

, Pl ínio Salgado

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R e v i s t a d e An t r o p o f a g i a

Man i f es t o A n t r opó f agoContra as historias do homem, que

começam no Cabo Finisterra. 0 mundo não datado. Nã o rubricado. S emNapoleão. Sem César .

A f ixação do progresso por meiode catalagos e apparelhos de televisão . Só a maquinaria. £ os transfu-sores de sangue.

Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravellas.

Contra a verdade dos povos mis-sk narios, definida pela sagacidadede um antropófago, o Visconde deCayrú : — É a mentira muitas vezesrepetida.

Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugit ivos de uma c ivil ização qúe estamos comendo, porque somos fortes e vingativos comoo Jaboty .

Se Deus é a consciência do Universo Increado, Guaracy é a m ãedos viventes . Jacy é a mãe dos vege tae s .

Não t ivemos especulação. Mas t í nhamos- adivinhação. Tínhamos Política que é a sciencia da distribuição. E um" system a social planetário.

As migrações. A fuga dos estados tedios os. Contra as esclerosesurbanas. Contra os Conservatórios,e o tédio especulativo.

De Will iam James a Voronoff. Atransf iguração do Tabu em totem.Antropofagia.

O pater famílias e a creação daMoral da Cegonha: Ignorância realdas coisas-f falta de imaginação-r-sen-*timento de authoridade ante a pro-curiosa.

E' preciso partir de um profundo

atheismo para se chegar a idéa deDeus. Mas o carahiba não precisava.Porque tinha Guaracy.

O objectivo creado reage como osAnjos da Queda. Depois Moysés divaga. Que temos nós com isso?

Ante s dos portug uezes descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.

Contra o indio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Ca-tharina de Medicis e genro de D.Antônio de Mariz .

A alegria é a prova dos nove.

Contra a Memória .fonte do costume. A experiência pessoal renovada.

Somos concret istas . As idéas tomam conta, reagem, queimam gentenas praças publicas. Suprimamos asidéas e as outras paralysias. Pelosroteiros. Acreditar nos signaes, acreditar nos instrumentos e nas estreitas.

Contra Goethe, a mãe dos Grac-chos, e a Corte de D. João VI o .

A alegria é a prova dos nove.

A lucta entre o que se chamaria

Increado e a Creatura-illustrada pelacontradição permanente do homeme o seu Tabu. O amor quotidiano eo modus-vivendi capitalista. Antropofagia. Absorpção do inimigo sacro. Para transformal-o em totem.A humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só as puras elitesconseguiram realísar. a antropofagiacarnal, que traz em si o mais altosentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, malescathechistas. O que se dá não é umasublimação do instincto sexual. E' aescala thermometrica do instinctoantropofagico. De carnal, elle se torna electivo e cria a amizade. Affe-

ctivo, o amor. Especulativo, a sciencia. Desv ia-se e transfere -se. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia agglomerada nos pecca-dos de cathecismo — a inveja, ausura, a calumnia, o assassinato.Peste dos chamados povos cultos echristianisados, é contra ella que estamos agindo. Antropófagos.

No matr iarcado de Pindorama.

Contra Anchieta cantando as onzemil virgens do céo, na terra de Iracema — o patriarcha João Ramalhofundador de São Paulo.

A nossa independência ainda nãofoi proclamada. Frase typica de D.

João V I . 0 : — Meu filho, põe essacoroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dynastia. E' preciso expulsaro espirito bragantino, as ordenaçõese o rap.é de Maria da Fonte.

Contra a realidade social, vestidae oppressora, cadastrada por Freud— a realidade sem complexos, semloucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama.

O S W A L D D E A N D R A D E .

Em Piratininga.

Anno 374 da Deglutição do BispoSardinha.

B R A S I L I A N ARAÇA

De uma correspondência de Sarutayá(Est. de S. Paulo) para o Cottelo Paulistano, n. de 15-1-927:

O Sr. Abrahão José Pedro offereceuaos seus amigos um lauto jantar com-memorando o anniversario de seu filhí-nho José e baptizado do pequeno Fuad,que nessa data foi levado á pia baptismal.

Foram padrinhos o sr. Rachide Mustafae sua esposa d. lorgina Mustafa.

O Sr. Paschoalino Verdi proferiu umdiscurso de saudação.

POLÍTICADa viesma correspondência:O Sr. Rachid Abdalla Mustafa, escrivão

de paz, muito tem trabalhado para au-gmentar o numero- de eleitores.

DEMOCRACIATelegrama de Fortaleza (AB):A bordo do "Itassussê" passou por

este porto com destino ao norte, S. A.D. Pedro de Orleans e Bragança, acom

panhado de sua esposa é filho.S. A. desembarcou, visitando na PraçaCaio Prado a estatua.de Pedro II. 0 povoacclamou com enthusiasmo o príncipe. Aoff.cialidade do 23.° B. C. e á banda demusica cercada de enorme multidão,aguardou a chegada de S. A. naquellapraça.

Compacta mana, acompanhou os dis-tinetos viajantes até a praça do Ferreira,onde o tribuno Quintino Cunha fez umaenthusiastica saudação em nome da população.

Na volta para bordo, um preto catraeiro,de nome Vicente Fonseca, destacando-seda multidão abraçou o príncipe dizendo:'"Fique sabendo que as opiniões mudaram mas os corações são os mesmos".

RELIGIÃOTelegramma de Porto Alegre para a

Gazeta de S. Paulo n. de 22-3-927:

Vindo de S. Paulo chegou a esta capital o sr. Sebastião da Silva, que fez oraide daquelle (Estado ao nosso, a pé,tendo partido dalli em outubro.

O "raidman" tomou essa resolução emvirtude de uma promessa feita a VirgemMaria, para que terminasse a revoluçãono Brasil. Quando se achava próximo aesta Capital, teve conhecim»iito do termino da lucta, proseguindo até aqui,- alimde cumprir a sua promessa.

Sebastião Antônio da Silva contaactualmente 35 annos de edade.

NECRO LÓ G IODe um discurso do professor João Ma

rinho na Academia Nacional de Medicinado Rio de Janeiro (Estado de S. Paulo,n. de 3-8-921):

O dr. Daniel de Oliveira Barros e Almeida nasceu num dia e morreu em outro,

de doença de quem trabalha, coração can-çado antes de tempo.Entre os dois, correu-lhe a vida.

S URP RES ATelegramma de Curityba para a Folha

da Noite de S. Pauio, n. de 2-11-927:Informam de Imbituba que o indivíduo

Juvenal Manuel do Nascimento, ex-agente do correio, reuniu em sua casa todosos amigos e parentes sob o pret:xto defazer uma festa. Durante o almoço, Juvenal mostrou-se alegre e,-ao terminar afesta foi ao seu quarto, do qual trouxeum embrulho contendo uma dynamite, dizendo que ia proporcionar a todos umasurpresa.

Todos estavam attentos e esperando asurpresa q-uando, com espanto geral, odono da casa approximou um cigarroacceso do embrulho que explbdiu, matando Juvenal e ferindo gravcnuiite sua

esposa e todas as pessoas que haviamassistido ao convite fatal.

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8 Revista de Antropofagia

A "Descida" Antropophaga

A "descida" agora é outra.O Autor

Ha quatro séculos, a "descida" para a escravidão.Hoje, a "descida" para libertação. O Dilúvio, foi omovimento mais serio que se fez no mundo. Deus apagou tudo, para começar de novo. Foi intelligente, pratico e natural. Mas teve uma fraqueza: deixou Noé.

O movimento antropophago, — que é o mais seriodepois do Dilúvio — vem para comer Noé. NOE* DEVESER COMIDO.

Penso que não se deve confundir volta ao estadonatural (o que se quer) com volta ao estado primitivo(o que não interessa) . O que se quer é simplicidade enã o um novo código de simplicidade. Naturalidade, nãomanuaes de bom tom. Contra a belleza canonica, a bel-leza natural — feia, bruta, agreste, barbara, iMogica.

Instincto contra o verniz. O selvagem sem as missan-gas da cathechese. O selvagem comendo a cathechese.

Os PEROS que ainda existem entre nós hão desorrir por seus dentes de ouro o sorriso civilisado deque, reagindo contra a cultura, estamos dentro da cultura. Que besteira. O que temos não é cultura euro-pé a : é experiência delia. Experiência de quatro séculos.Dolorosa e páo. Cem Direito Romano, canal de Veneza,julgamento synthetico a priori, Tobias, Nabuco e Ruy.O que fazemos é reagir contra a civilisação que inventou o catalogo, o exame de consciência e o crime de def loramento. SOMOS JAPY-ASSU':

"Ce venerable vieillard Japi Ouassou fut merveil-leusement attentif, comme tons les outres Indiens lápresens aux discours susdicts á quoi il replique ce quis'ensuit. Je m'estonis extremement 'de vous voir et memanqueray á tout ce ie vous ay promis. Mais ie me es-

tonne comme il se peut faire que vous autres PAY nevouliez pas de femmes. Estes vous descendus du Ciei?Estes nays de Pere et Mere? Quay donc! n'estes pasmortels comme nous ? D'ou vient que non seulementvous ne prenez pas de femmes ainsi quê les autres Fran-çois que ont trafique avec noüs -depuis quelque quaranteet tant d'années; mais ancore que vous les empechezmaintenant de se servir de nos filies: ce que nous esti-mions a grand honeur et grandheur, pouvans en avoirdes enfans".

(Claude d'Abbeville—"Histoi-re de Ia Mfssion des PéresCapucins en 1'Isle de Mara-gnan et terres circonvoici-nes.")

Contra o servilismo colonial, o tacape inheiguára,

"gente de grande resolução e valor e totalmente impaciente de sujeição" (Vieira), o heroísmo sem rosrta deCommendador dos carahybas, "que se oppuzeram a queDiogo de Lepe desembarcasse, investindo contra as caravelas e reduzindo o numero de seus tripulantes"(Santa Rosa — "Historia do Rio Amazonas") .

Ninguém se illuda. A paz do homem americanocom a civilisação européa é paz nheengahiba. Está noLisboa: "aquella apparatosa paz dos nheengahibas nãopassava de uma verdadeira impostura, continuando osbárbaros no seu antigo theor da vida selvagem, dados áantropophagia como dantes, e baldos inteiramente daluz do evangelho."

Como se vê, facilimo ser antropophago. Basta eliminar a impostura.

Foram estas as conseqüências dos versos ruimzi-zinhos que Anchieta escreveu na areia de I t anhaen:

Ordenações do Reino, grammatica e ceia de Da Vincina sala de jantar . E não houve ainda quem comesseAnchieta!

Portugal vestiu o selvagem. Cumpre despil-o. Paraque elle tome um banho daquella "innocencia content e " que perdeu e que o movimento antropophago agora

lhe restitue. O homem, (falo o homem europeu, cruzcredo!) andava buscando o homem fora do homem. Ede lanterna na mão: philosophia.

Nós queremos o homem sem a duvida, sem siquera presumpção da existência da duvida: nú, natural, antropophago.

Quatro séculos de carne de vacca! Que horror !

(a) OSWALDO COSTA.

VISITA DE SÃO THOME'

Quando a Bahia não se chamava Bahia,muito antes de Pedro Alvares Cabral, São Tho-mé foi lá um dia.

Não sei se foi por acaso ou para vêr. Mas

viu.Viu e protestou contra as coisas que viu.Fez um discurso cheio de conselhos que os

indios escutaram de boceas abertas:Que era preciso adorar a Deus, fugir do de

mônio, não ter mais que uma mulher. Conselhosbons.

Emquanto falava, fazia nascer da terra aplanta da mandioca e a bananeira que aindahoje dá bananas de São Thomé.

Então os indios gostaram.Quando São Thomé, cansado, sentiu que

devia acabar, acabou com estas palavras:—E não comam nunca mais carne de gente!Então os indios não gostaram. Avançaram.Quizeram comer o santo.Felizmente São Thomé corria mais do que

elles.Chegou na beira da praia, deu um passo de

meia légua e foi parar numa ilha onde não tinhaselvagens.

(Quem me ensinou isto foi Frei Vicente doSalvador...)

ÁLVARO MOREIRA.

NOTA INSISTENTE

Neste rabinho do seu primeiro numero a

"Revista de Antropofagia" faz questão de repetir o que ficou dito lá no principio:

— Ella está acima de quaesquer grupos outendências;

— Ella acceita todos os manifestos mas nãobota manifesto;

— Ella acceita todas as criticas mas não fazcritica;

— Ella é antropófaga como o avestruz é co-milão;

— Ella nada tem que ver com os pontos devista de que por acaso seja vehiculo.

A "Revista de Antropofagia" não temorientação ou pensamento de espécie alguma:

só tem estômago.A de A. M.

R. B.

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