resumo: teresópolis j.p netto

6
Teresópolis: a cristalização da perspectiva modernizadora. O Documento de Teresópolis tem características distintas ao Documento de Araxá. O encontro que aconteceu em janeiro de 1970, contou com a participação de 33 profissionais que tomaram conhecimento previamente da temática do encontro, “a necessidade de um estudo sobre a Metodologia do Serviço Social face à realidade Brasileira”. Os organizadores elaboraram um roteiro minucioso, mas foi refundido pelos profissionais, que optaram por uma dinâmica diferenciada acabando por inviabilizar a redação de um texto final. No texto de Teresópolis, o que se têm é um coroamento do transformismo: nele o “moderno” triunfa sobre o “tradicional”. A perspectiva modernizadora se afirma não apenas como concepção profissional geral, mas, sobretudo como pauta interventiva. O “moderno” se revela como a consequente instrumentação da programática desenvolvimentista, esta cristalização se lastreia em formulações presentes num aporte, o de Dantas, que foi levado à consideração dos participantes. Três textos constituíram o objeto desta reflexão conjunta: Um deles, “Introdução às questões de metodologia. Teoria do diagnóstico e da intervenção em Serviço Social”, de Costa. De uma parte, a autora toma distância de boa parcela dos próprios fundamentos de 1967, de outra, seus supostos contemplam elementos críticos potencialmente problematizadores. O texto de Costa se estrutura sobre uma perspectiva que oferece um claro contraponto ao que fora hegemônico em Araxá e se consolidaria em Teresópolis: ela se recusa a pensar o Serviço Social sem remetê-lo à problemática de fundo das ciências sociais e ao questionamento da sua constituição histórica. O seu procedimento analítico, sempre apontando para as debilidades do acúmulo teórico no campo do Serviço Social e coloca em causa a viabilidade da formulação atual de “teorias de intervenção” profissionais. Parece-lhe fundamental, a clarificação teórica de categorias e conceitos para poder avançar rumo a “reconstrução do Serviço Social”. Outo texto debatido, “Bases para a reformulação da metodologia do Serviço Social”, de Soeiro. É um simples, embora pretencioso, paper escolástico, onde uma série de platitudes se conjuga com formulações equívocas ou mesmo erradas e onde farpas polêmicas desembocam em definições do gênero, o objeto do Serviço Social é o processo de orientação social, o processo desenvolvido pelo Homem a fim de obter soluções normais para dificuldades sociais. Na

Upload: carla-allmeida

Post on 30-Jul-2015

20.572 views

Category:

Documents


3 download

TRANSCRIPT

Page 1: RESUMO: Teresópolis   J.P NETTO

Teresópolis: a cristalização da perspectiva modernizadora.

O Documento de Teresópolis tem características distintas ao Documento de Araxá. O

encontro que aconteceu em janeiro de 1970, contou com a participação de 33 profissionais que

tomaram conhecimento previamente da temática do encontro, “a necessidade de um estudo sobre a

Metodologia do Serviço Social face à realidade Brasileira”. Os organizadores elaboraram um roteiro

minucioso, mas foi refundido pelos profissionais, que optaram por uma dinâmica diferenciada

acabando por inviabilizar a redação de um texto final.

No texto de Teresópolis, o que se têm é um coroamento do transformismo: nele o “moderno”

triunfa sobre o “tradicional”. A perspectiva modernizadora se afirma não apenas como concepção

profissional geral, mas, sobretudo como pauta interventiva. O “moderno” se revela como a

consequente instrumentação da programática desenvolvimentista, esta cristalização se lastreia em

formulações presentes num aporte, o de Dantas, que foi levado à consideração dos participantes.

Três textos constituíram o objeto desta reflexão conjunta: Um deles, “Introdução às questões

de metodologia. Teoria do diagnóstico e da intervenção em Serviço Social”, de Costa. De uma parte, a

autora toma distância de boa parcela dos próprios fundamentos de 1967, de outra, seus supostos

contemplam elementos críticos potencialmente problematizadores. O texto de Costa se estrutura sobre

uma perspectiva que oferece um claro contraponto ao que fora hegemônico em Araxá e se consolidaria

em Teresópolis: ela se recusa a pensar o Serviço Social sem remetê-lo à problemática de fundo das

ciências sociais e ao questionamento da sua constituição histórica. O seu procedimento analítico,

sempre apontando para as debilidades do acúmulo teórico no campo do Serviço Social e coloca em

causa a viabilidade da formulação atual de “teorias de intervenção” profissionais. Parece-lhe

fundamental, a clarificação teórica de categorias e conceitos para poder avançar rumo a “reconstrução

do Serviço Social”.

Outo texto debatido, “Bases para a reformulação da metodologia do Serviço Social”, de

Soeiro. É um simples, embora pretencioso, paper escolástico, onde uma série de platitudes se conjuga

com formulações equívocas ou mesmo erradas e onde farpas polêmicas desembocam em definições do

gênero, o objeto do Serviço Social é o processo de orientação social, o processo desenvolvido pelo

Homem a fim de obter soluções normais para dificuldades sociais. Na tematização especifica da

questão metodológica, Soeiro nada acrescenta as formulações até então desenvolvidas.

Nenhum dos dois textos acima atendia àquele momento a temática do encontro. Dantas em

seu ensaio “A teoria metodológica do Serviço Social. Uma abordagem sistemática” atendeu

rigorosamente ao tema central do seminário, ofereceu ao debate uma concepção extremamente

articulada à metodologia do Serviço Social, a mais compatível com a perspectiva modernizadora.

Dantas considera que “a questão da ‘metodologia de ação’ constitui a parte central e atual da Teoria

geral do Serviço Social” e afirma “que a definição de um modelo de prática do Serviço Social

adequado à problemática social brasileira depende, da solução do seu problema metodológico”. Sua

pretensão consiste numa “introdução à metodologia do Serviço Social” voltada “para que a prática

profissional se desenvolva e adquira um nível mínimo de cientificidade”, sustentando que “a teoria

metodológica da prática profissional tem dois níveis de formulação: o da teoria cientifica e o da teoria

sistemática”.

Page 2: RESUMO: Teresópolis   J.P NETTO

Para tanto ele aborda inicialmente a determinação do “método profissional”, que defende ser

um “método cientifico aplicado”, este se constitui em duas categorias básicas de operações:

diagnóstico e intervenção planejada. Este “método profissional geral” admite especificações da análise

dos “métodos tradicionais da prática do Serviço Social”, à base dos critérios de escalas, níveis e

variáveis da intervenção profissional.

A filiação do pensamento de Dantas à tradição neopositivistas é percebida na sua concepção

metodológica. Para ele, o método não passa de um jogo de ordenações formais, envolvendo “a matéria

a ser ordenada e [...] os critérios utilizados para imprimir ordenação a essa matéria”. Dantas forneceu

as mais adequadas respostas a duas demandas que à época amadureciam no processo renovador: a

necessidade de uma fundamentação “cientifica” e a exigência de alternativas para redimensionar

metodologicamente as práticas profissionais. Oferece uma legitimação “teórico-metodológica”

pretensamente ancorada numa “cientificidade sistemática”. Quanto à demanda relativa ao

redimensionamento metodológico das práticas profissionais, Dantas pensa que elas podem ser

atacadas mediante atividades que circunscrevem áreas de pratica distintas, cuja escala é dada pela

natureza da relação profissional no âmbito do sistema-cliente, a intervenção micro ou macro

definindo-se pela existência ou não da relação direta entre profissionais e seus sistemas-clientes.

Dantas conserva a legitimação das praticas tradicionais, mas as amplia inserindo praticas

suscetíveis de serem comandadas pelas exigências do processo de “modernização conservadora”. São

exemplares nesta operação, suas disquisições sobre o Caso, como “caso psicossocial” e como “caso

socioeconômico” e no Grupo, institui trabalho com a população, no âmbito quer da community

organization, quer do community devolopment. Ao conduzir o limite o transformismo, ele conferiu

uma organicidade (teórica: de fundo estrutural-funcionalista, sem prejuízo do seu ecletismo;

ideológica: com o viés da “modernização conservadora” embasado inteiramente a angulação

desenvolvimentista, onde o papel profissional se dá pelo domínio tecnoburacrático) A cristalização da

perspectiva modernizadora seria impensável sem a contribuição de Dantas que embasou os resultados

do encontro de Teresópolis.

Devemos agora, referir-nos ao próprio documento que se compõe dos relatórios dos dois

grupos de profissionais participantes que se concentram na reflexão sobre os temas “Concepção

cientifica da pratica do Serviço Social” e “Aplicação da metodologia do Serviço Social”.

No estudo do primeiro tema, o Grupo A, inspirado em Lebret, construiu um quadro geral de

sete níveis, a partir de necessidades básicas e necessidades sociais, para classificar em seguida, os

fenômenos mais observados na prática do Serviço Social, identificar as suas variáveis significativas e

localizar as funções profissionais a elas pertinentes. Esse processo pode ser entendido com o seguinte

exemplo: a “nível biológico” toma-se um “fenômeno significativo observado na prática do Serviço

Social”, o “alto índice da natalidade”; logo se aponta as “variáveis significativas”: “falta de educação

social, valores religiosos, falta de planejamento familiar”: enfim indicam-se as “funções possíveis do

Serviço Social”: participação em programas de educação sexual, substituição de valores e padrões

culturais, participação em programas de planejamento familiar”; tais funções são concebidas em micro

e macro atuação e dividida em funções-meio e funções-fins. O grupo insiste na consideração “da

globalidade e do inter-relacionamento das necessidades humanas”, e finaliza repetindo a necessidade

de uma “visão global”.

Quanto ao mesmo tema, o Grupo B, com inspiração distinta, mas também com base

desenvolvimentista, construiu um quadro sinótico de fenômenos e variáveis segundo o critério das

Page 3: RESUMO: Teresópolis   J.P NETTO

necessidades e problemas, as dimensões referidas a “níveis de vida” e “sistemas de relações” Toma-se,

por exemplo, o “nível de vida” e determinam-se os “problemas”: “baixos níveis sanitários, carência e

má utilização de recursos, dificuldade de acesso aos recursos existente”. Quanto à ação do Serviço

Social, o grupo supõe três níveis de atuação: (prestação de serviços, administração de serviços sociais

e planejamento dos mesmos) e, em seguida, lista o conjunto de disciplinas sociais que podem subsidiar

a intervenção em cada um deles. Avançando nesta preocupação, o grupo procura identificar os

conhecimentos, “para”, “em” e “sobre” o Serviço Social. Enfim, diante das “situações sociais-

problema”, o grupo sugere a adoção de “procedimentos lógicos”, tanto em “fases predominantemente

de conhecimento” como “de ação”.

Nos dois relatórios, há um denominador comum: a “concepção cientifica da pratica do

Serviço Social” é assumida como uma intervenção sobre elementos categorizados da empírica social,

ordenada a partir de variáveis de constatação imediata e direcionada para generalizar a integração na

modernização como sinônimo de superação do subdesenvolvimento. Esta concepção é efetivamente

reduzida ao estabelecimento de conexões superficiais entre dados empíricos da vida social e à

intervenção metódica sobre eles.

No segundo tema “Aplicação da metodologia do Serviço Social”, o Grupo A formula uma

sequencia do procedimento metodológico de intervenção do Serviço Social que configura a própria

metodologia genérica que se compõe de investigação-diagnostico e intervenção. O Grupo B começou

definindo a metodologia aplicável aos níveis de administração em Serviço Social e prestação de

serviços diretos a partir do binômio diagnostico/intervenção, elaborou vários quadros cruzando este

binômio com as categorias do planejamento utilizáveis no Serviço Social, construiu uma relação entre

“os processos lógicos” da pratica profissional e “processos administrativos” e conclui com a

prescrição no diagnóstico: “identificar e descrever; classificar; explicar e compreender; prever

tendências”; na intervenção: “preparação da ação; execução; avaliação”.

O destaque visível é para o aprofundamento realizado pelo Grupo B, apesar de que ambos

tratam da “aplicação metodológica do Serviço Social”, ao encaminhamento contido na “concepção

cientifica da pratica” da profissão. A relação de continuidade é propriamente orgânica: da “concepção

cientifica da prática”, tomada como manipulação intelectivamente ordenada, decorre a “aplicação da

metodologia” como modus faciendi da ação.

A maturação do processo de renovação do Serviço Social alcança nestas formulações o seu

ponto mais alto. A reflexão desenvolvida em Teresópolis configura, no privilegio a questão da

metodologia, a exclusão de vieses tendentes a problematizar a inserção do Serviço Social nas

fronteiras dos complexos institucional-organizacionais que promoviam o processo da modernização

conservadora. A noção de desenvolvimento permanece, mas a herança “tradicional” é

irremissivelmente dissolvida no cariz operativo que se concretiza em Teresópolis, a determinação de

formas instrumentais capazes de garantir uma eficácia da ação profissional apta a ser reconhecida

como tal pelos complexos institucional-organizacionais. Em Araxá, coroa-se uma indicação do sentido

sociotécnico do Serviço Social; em Teresópolis cristaliza-se a operacionalidade deste sentido: obtém-

se a evicção de qualquer tematização conducente a colocá-lo em questão, consolida-se o seu trato

como conjunto sistematizado de procedimentos prático-imediatos suscetíveis de administração

tecnoburocrática.

Em nenhum outro documento brasileiro conhecido do Serviço Social se alcançou um nível

similar de discriminação, classificação e categorização de “situações sociais-problema” e de

Page 4: RESUMO: Teresópolis   J.P NETTO

procedimentos técnicos para enfrenta-las. O que se cristaliza aqui é a determinação do papel do

profissional como o de um real funcionário do desenvolvimento, como “agente de mudanças”.

Tais avanços e esforços completam e culminam o desenvolvimento da perspectiva afirmada

em Araxá. Assim o debate “teórico-cientifico” ganha uma nova dimensão à medida que é conduzido

para o marco do “método profissional”, assim também é reequacionado o tom do humanismo liberal-

abstrato, que se esfuma na escala em que a ênfase se move dos “fins” para os “meios”. O problema

(teórico e ideológico) da relação subdesenvolvimento/desenvolvimento em termos da particularidade

brasileira adquire um contorno diferenciado, fato explicável na notação de Dantas: “o Serviço Social

foi e continuará a ser, durante muito tempo, corretivo”, ou seja, técnicos chamados para sanar

problemas.

As formulações constitutivas do Documento de Teresópolis possuem um tríplice significado

no processo de renovação do Serviço Social no Brasil: apontam para a requalificação do assistente

social, definem o perfil sociotécnico da profissão e a, implica num técnico capaz de se mover como

uma familiaridade mínima entre disciplinas acadêmicas como o Planejamento, a Estatísticas, a Politica

Social, a Economia, os mais diversos ramos da Sociologia etc. O padrão de requisitos instrumentais

supostos determinava uma requalificação profissional, com uma ponderável modificação nos seus

quadros intelectuais de referência e a inscrição do Serviço Social no mundo acadêmico.

Ao situar o profissional como um “funcionário do desenvolvimento”, Teresópolis propõe

tanto uma redução quanto uma verticalização do seu saber e do seu fazer. A redução esta ligada à

própria condição “funcionária” do profissional: o assistente social é investido de um estatuto básico e

extensamente executivo, mas longe de atribuições terminais e sem subalternidade. A verticalização

compreende a apropriação de um elenco mais operativo de técnicas de intervenção e valorização da

ação prático-imediata.

O Documento de Teresópolis equivale à plena adequação do Serviço Social à ambiência

própria da “modernização conservadora” conduzida pelo Estado ditatorial em beneficio do grande

capital e às características socioeconômicas e politico-institucionais do desenvolvimento capitalista

ocorrente em seus limites.

Page 5: RESUMO: Teresópolis   J.P NETTO

____________________________

Referência: NETTO, J. P. Ditadura e Serviço Social: uma análise do Serviço Social no Brasil

pós-64 – 16. ed. - São Paulo: Cortez, 2011.