regulação bancárias, liquidez e crise financeira

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE ECONOMIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ECONOMIA DANIEL DE SANTANA VASCONCELOS REGULAÇÃO BANCÁRIA, LIQUIDEZ E CRISE FINANCEIRA: UMA ANÁLISE DA PROPOSTA DE REGULAÇÃO DE LIQUIDEZ EM BASILEIA III Rio de Janeiro 2014

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

    INSTITUTO DE ECONOMIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ECONOMIA

    DANIEL DE SANTANA VASCONCELOS

    REGULAO BANCRIA, LIQUIDEZ E CRISE FINANCEIRA:

    UMA ANLISE DA PROPOSTA DE REGULAO DE LIQUIDEZ EM

    BASILEIA III

    Rio de Janeiro

    2014

  • 2

    DANIEL DE SANTANA VASCONCELOS

    REGULAO BANCRIA, LIQUIDEZ E CRISE FINANCEIRA:

    UMA ANLISE DA PROPOSTA DE REGULAO DE LIQUIDEZ EM

    BASILEIA III

    Tese apresentada ao Corpo Docente do

    Instituto de Economia da Universidade

    Federal do Rio de Janeiro como parte dos

    requisitos necessrios obteno do

    ttulo de Doutor em Cincias, em

    Economia.

    BANCA EXAMINADORA:

    ________________________________________

    Prof. Fernando Jos Cardim de Carvalho, Doutor, IE/UFRJ

    (Orientador)

    ________________________________________

    Prof. Jennifer Hermann, Doutora, IE/UFRJ

    ________________________________________

    Prof. Daniela Magalhes Prates, Doutora, Unicamp

    ________________________________________

    Prof. Lavnia Barros de Castro, Doutora, BNDES

    ________________________________________

    Prof. Fernando Carlos G. de C. Lima , Doutor, IE/UFRJ

  • 3

    FICHA CATALOGRFICA

    V331 Vasconcelos, Daniel de Santana.

    Regulao bancria, liquidez e crise financeira: uma anlise da proposta de regulao

    de liquidez em Basileia III / Daniel de Santana Vasconcelos. -- 2014.

    280 f. ; 31 cm.

    Orientador: Fernando Jos Cardim de Carvalho.

    Tese (doutorado) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Economia,

    Programa de Ps-Graduao em Economia, 2014.

    Bibliografia: f. 268-280.

    1. Regulao bancria. 2. Crise financeira. 3. Liquidez. 4. Basileia III. I. Carvalho, Fernando

    Jos Cardim de. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Economia. III. Ttulo.

    CDD 346.086

    F

    4. Vacinas contra dengue e HPV. I. Chamas, Claudia Ins. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Insituto de Economia.

    Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Economia.

  • 4

    FOLHA DE APROVAO

    DANIEL DE SANTANA VASCONCELOS

    REGULAO BANCRIA, LIQUIDEZ E CRISE FINANCEIRA:

    UMA ANLISE DA PROPOSTA DE REGULAO DE LIQUIDEZ

    EM BASILEIA III

    Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em

    Economia (PPGE) do Instituto de Economia da Universidade Federal

    do Rio de Janeiro, como requisito parcial obteno do ttulo de Doutor

    em Cincias, em Economia.

    Aprovada em _________________

    ________________________________________

    Prof. Fernando Jos Cardim de Carvalho, Doutor, IE/UFRJ

    (Orientador)

    ________________________________________

    Prof. Jennifer Hermann, Doutora, IE/UFRJ

    ________________________________________

    Prof. Daniela Magalhes Prates, Doutora, Unicamp

    ________________________________________

    Prof. Lavnia Barros de Castro, Doutora, BNDES

    ________________________________________

    Prof. Fernando Carlos G. de C. Lima , Doutor, IE/UFRJ

  • 5

    RESUMO

    VASCONCELOS, Daniel de Santana. Regulao bancria, liquidez e crise financeira: uma

    anlise da proposta de regulao de liquidez em Basileia III. Tese (Doutorado em

    Economia): Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2014.

    O presente trabalho analisa a nova proposta de regulao bancria proposta pelo Comit da

    Basileia de Superviso Bancria, denominado Basileia III, em particular na questo da

    regulao de liquidez bancria, aps a Crise Financeira de 2008. O trabalho analisa criticamente

    as teorias bancrias ortodoxas, contrapondo a abordagem ps-keynesiana, buscando justificar

    teoricamente e em termos de politica de estabilizao do sistema financeiro a necessidade da

    regulao bancria. Como o foco na anlise da proposta de regulao de liquidez, so

    investigadas as caractersticas da liquidez de ativos financeiros, complementadas por um estudo

    do comportamento dos bancos comerciais norte-americanos nos anos pr e ps-crise. A partir

    da, o trabalho avalia a proposta de regulao de liquidez de Basileia III, seus acertos e suas

    limitaes, no que diz respeito regulao de liquidez de ativos bancrios.

    Palavras-chave: Regulao Bancria. Crise Financeira. Liquidez. Basileia III.

  • 6

    ABSTRACT

    VASCONCELOS, Daniel de Santana. Regulao bancria, liquidez e crise financeira: uma

    anlise da proposta de regulao de liquidez em Basileia III. Tese (Doutorado em

    Economia): Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2014.

    This work analyzes the proposed Basel Committee on Banking Supervisions new banking

    regulation framework, known as Basel III, in particular the issue of regulating bank liquidity,

    after the 2008s Financial Crisis. The paper critically examines the orthodox banking theories,

    contrasting it with the post- Keynesian approach. The point is to justify theoretically

    stabilization policies in the financial system, in particular the argument for banking regulation.

    Beside this, following the debate on the proposed regulation of banking liquidity, the work

    investigate the liquidity characteristics of financial assets, and conducts a study of the U.S.

    commercial banks behavior in the pre and post-crisis years. The work evaluates the Basels III

    proposed regulation of banking liquidity, their successes and their weaknesses, with regard to

    the liquidity regulation of bank assets.

    Keywords: Banking Regulation. Financial Crisis. Liquidity. Basel III.

  • 7

    DEDICATRIA

    minha famlia, que lutou comigo em todo tempo pela

    concluso dessa jornada: Carla, Laura, lvaro e Pedro; ao

    Marcelo, e aos meus sogros, Carmelita e Manoel;

    Aos amigos e aos colegas, na vida, no PPGE, no trabalho (e foram

    muitos: IBGE, Projeto UCA, RJ Investimentos, EQ/UFRJ, Inmetro,

    IBMR), que me deram suporte, e me suportaram;

    Aos irmos de f, e quele a quem nossa f dedicada;

    Aos professores Jos Eustquio Diniz Alves (ENCE), Suzana

    Cavenaghi (ENCE), e Lena Lavinas (IE/UFRJ), cujo apoio em todos os

    sentidos foi fundamental l incio desse doutorado;

    Ao meu orientador, Prof. Fernando Cardim de Carvalho, que me orientou por

    amor ptria, com toda seriedade acadmica e todo o bom humor que lhe so

    peculiares, e exerceu, pela ensima vez, seu natural dom e sacerdcio de ser

    um grande mestre e uma inspirao para seus alunos;

    Ao Instituto de Economia da UFRJ, onde eu me redescobri e me reinventei:

    Obrigado uma palavra limitada, mas,

    imensamente grato,

    o mnimo que posso lhes dizer.

  • 8

    Sapere Aude. (Immanuel Kant)

  • 9

    Sumrio

    Introduo ............................................................................................................................................. 12

    Captulo 1 .............................................................................................................................................. 17

    Bancos, Regulao Bancria e os Acordos de Basileia ...................................................................... 17

    1. Acordos de Basileia e Teoria Bancria Ortodoxa ...................................................................... 17

    1.1 - Teorias Bancrias Ortodoxas ................................................................................................. 21

    1.1.1 - Teoria Bancria num modelo Arrow-Debreu: irrelevncia dos bancos para o equilbrio geral

    ....................................................................................................................................................... 23

    1.1.2 - A abordagem de Fama: bancos passivos como meros figurantes ..................................... 26

    1.1.3 - A sntese da teoria bancria em Baltensperger: os bancos tm muito pouco a dizer....... 30

    1.1.4 - O modelo Diamond-Dybvig: bancos como coadjuvantes .................................................. 35

    2. Regulao Bancria: por que regular bancos? Diferentes perspectivas em comparao com a

    Abordagem Ortodoxa ........................................................................................................................ 39

    3. Concluso .................................................................................................................................. 49

    Captulo 2 .............................................................................................................................................. 51

    A duas fontes principais de uma Teoria Bancria Alternativa: Bancos em Wicksell e Keynes ........... 51

    1. Introduo ................................................................................................................................. 51

    2. Os Bancos em Wicksell .............................................................................................................. 53

    2.1 - Wicksell e a abordagem da economia monetria: poupana monetria e o papel dos bancos

    ....................................................................................................................................................... 54

    2.2 O papel do crdito numa economia monetria ................................................................... 60

    2.3 Avaliao dos bancos na abordagem de Wicksell ................................................................ 63

    3. A abordagem de Keynes ............................................................................................................ 65

    3.1 - Bancos no Treatise ................................................................................................................ 67

    3.2 Bancos, reservas bancrias e administrao da liquidez ...................................................... 72

    3.3 - A anlise da moeda bancria e a circulao industrial e financeira da moeda .................... 77

    3.4 - O papel dos bancos em Keynes ............................................................................................. 81

    4. Concluso .................................................................................................................................. 84

    Captulo 3 .............................................................................................................................................. 86

  • 10

    A alternativa terica ps-keynesiana: a Crise de 2007/2008 e o retorno apotetico (e catico) da

    preferncia pela liquidez ....................................................................................................................... 86

    1. Introduo: a Crise Financeira de 2007/2008 e a liquidez de ativos financeiros de emisso

    privada ........................................................................................................................................... 86

    2. Prolegmenos da Teoria da Preferncia pela Liquidez: incerteza fundamental versus risco

    quantificvel .................................................................................................................................. 94

    2.1 - Incerteza como no-ergodicidade: Keynes, Knight e Davidson ............................................ 96

    3. Liquidez e a Teoria da Preferncia pela Liquidez em Keynes .................................................. 101

    3.1 - Liquidez versus riscos .......................................................................................................... 114

    4. Preferncia pela liquidez e inovaes financeiras .................................................................. 118

    5. Um parntesis final: preferncia por liquidez e teorias financeiras mainstream ................... 122

    Captulo 4 ............................................................................................................................................ 131

    Problemas modernos relacionados liquidez em mercados financeiros e regulao bancria ........... 131

    1. Liquidez e Inovaes Financeiras da troca de maturidades transformao de liquidez na

    atuao dos bancos comerciais ................................................................................................... 131

    1.1 - Liquidez e caractersticas dos mercados financeiros .......................................................... 131

    1.2 - Inovaes Financeiras e liquidez de ttulos privados .......................................................... 134

    1.3 Substitutos de liquidez, liquidez de ativos privados e a Crise Financeira .......................... 138

    2. Preferncia pela Liquidez e Fragilidade Financeira ................................................................. 145

    2.1 - As entidades financeiras minskyanas: agentes hedgers, especuladores e Ponzi ............... 156

    3. Concluso ................................................................................................................................ 166

    3.1 - A resposta institucional s crises: regulao como proteo sistmica ............................. 166

    Captulo 5 ............................................................................................................................................ 172

    Regulao Bancria nos Acordos da Basilia e nova regulao de liquidez bancria ........................ 172

    1. Introduo Basileia II e a Crise Financeira ............................................................................ 172

    2. A reformulao ps-Crise: Basilia III ...................................................................................... 174

    3. Liquidez Global conceitos, mensurao e implicaes de poltica ....................................... 179

    3.1 - Razo de Cobertura de Liquidez RCL (Liquidity Coverage Ratio LCR) ........................... 184

    3.2 - Razo Lquida Estvel de Funding RLEF (Net Stable Funding Ratio NSFR) ..................... 186

    3.3 - Exposies a componentes fora do balano (Off Balance Sheet exposures) ..................... 191

  • 11

    3.4 - Instrumentos de Monitoramento de Liquidez .................................................................... 192

    5. Concluso ............................................................................................................................... 195

    Captulo 6 ............................................................................................................................................ 197

    Anlise Emprica da Composio dos Ativos e Liquidez dos Bancos Comerciais Norte-Americanos no

    pr e ps-Crise Financeira ................................................................................................................... 197

    1. Introduo ............................................................................................................................... 197

    2. Anlise da composio dos Ativos .......................................................................................... 201

    2.1 - Variaes no volume dos ativos .......................................................................................... 201

    2.2 - Composio dos Ativos (participao relativa) ................................................................... 206

    2.3 - Composio dos securities e a expanso de derivativos ..................................................... 211

    2.4 - Capital dos bancos: adequao s regras de Basilia, margens de segurana de liquidez e

    ajustamento ps-crise ................................................................................................................. 219

    3. Concluso ................................................................................................................................ 228

    Captulo 7 ............................................................................................................................................ 232

    Tratamento Regulatrio da Liquidez uma crtica de Basileia III e alternativas ............................... 232

    1. Introduo: regulao financeira e a determinao do que lquido .................................... 232

    2. Basilia III e a regulao de liquidez ........................................................................................ 236

    3. Outras Propostas de Alternativas Regulatrias, o foco em Regulao de Liquidez e o papel do

    Emprestador de ltima Instncia ................................................................................................ 242

    Concluso ............................................................................................................................................ 254

    APNDICE I Incerteza e probabilidades em Keynes e Knight ....................................................... 258

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ................................................................................................ 268

  • 12

    Introduo

    Economics is a science of thinking in terms of models joined to the art of choosing models which are relevant to the contemporary world. It is compelled to be this, because, unlike the typical natural science, the material to which it is applied is, in too many respects, not homogeneous through time. (...) Good economists are scarce because the gift for using "vigilant observation" to choose good models, although it does not require a highly specialized intellectual technique, appears to be a very rare one. In the second place, as against Robbins, economics is essentially a moral science and not a natural science. That is to say, it employs introspection and judgments of value.

    John Maynard Keynes, carta a R. F. Harrod, 4.7.1938

    Entre setembro e outubro de 2008, o mundo assistiu com apreenso uma srie de eventos

    envolvendo quebras de bancos e de grandes instituies financeiras no principal centro

    financeiro do planeta, Wall Street, cujos efeitos reverberaram para muito alm das ruas estreitas

    do Financial District nova-iorquino. Esse perodo foi como o pice de uma onda de ms notcias

    que vinham do setor financeiro norte-americano, propagando-se e ganhando fora desde 2007,

    at que, no prazo de algumas poucas semanas de setembro e outubro a crise financeira

    finalmente explodiu. O mundo passou a se perguntar sobre o tamanho dessa crise, sob o temor

    da dvida sobre se ela seria capaz de afundar o mundo novamente numa Grande Depresso

    como nos anos 1930. Foi o incio de um perodo de turbulncia que, ainda agora, cinco anos

    aps esses eventos, tem causado transtornos economia mundial. O mundo inteiro foi atingido

    por um terremoto cujo epicentro estava localizado no sistema financeiro norte-americano,

    particularmente no seu sistema bancrio. As ondas de choque reverberaram em todas as

    direes, mas a sua fora foi especialmente sentida em economias desenvolvidas, com grandes

    conglomerados financeiros interligados pelos fluxos financeiros internacionais, que vinham,

    desde a dcada de 1980, promovendo uma gradual desregulamentao de seus sistemas

    financeiros.

    Muito se escreveu a respeito da crise nesses ltimos cinco anos, e certamente ela ainda

    dever produzir por anos frente uma quantidade imensa de livros, artigos tcnicos, anlises

    jornalsticas e, claro, trabalhos acadmicos como teses e dissertaes. No objetivo do

    presente trabalho recontar a histria da Crise de 2007/2008 outros j tm empreendido com

    mais talento e melhores resultados essa tarefa. No se pretende, tampouco, analisar aqui todas

    as causas da crise em si. Essa uma tarefa cuja complexidade vai alm das reais possibilidades

  • 13

    de uma tese acadmica. J existem livros e documentos muito bem escritos sobre isso, e eles

    certamente sero encontrados aqui e ali ao longo do presente trabalho, mas nenhum deles ser

    analisado de forma exaustiva. Aqui, interessa mais aos propsitos do trabalho entender alguns

    pontos especficos levantados por esses autores a respeito da crise, do que o conjunto de sua

    obra em si. No obstante, guardada essa observao, necessrio dizer que existe, todavia, um

    conjunto mais especfico de causas da crise que esto diretamente ligados ao que se pretende

    estudar no presente trabalho. Mais ainda, existe um conjunto de consequncias dessa mesma

    crise, para os quais nossa ateno se volta com mais interesse. Essas causas especficas so

    aquelas ligadas regulao bancria nos anos pr-crise; da mesma forma, as consequncias

    so aquelas ligadas regulao bancria que est emergindo no ps-crise.

    Os Estados Unidos viveram uma euforia financeira sem precedentes nos anos 2000, e

    essa euforia foi possibilitada, entre outros fatores, por um ambiente regulatrio especfico que

    permitiu aos bancos (e a outras instituies ligadas aos bancos, mas funcionando margem de

    um sistema formal de superviso bancria) inflarem uma bolha de preos de determinados tipos

    de ativos financeiros. No a bolha em si que interessa ao presente trabalho, mas as questes

    que explicam porque tais ativos emergiram nesse contexto, como se tornaram to valorizados,

    e por que, quando a crise aconteceu, esses ativos perderam valor to rpida e significativamente.

    O ambiente regulatrio que propiciou esse ambiente, em que determinados tipos de ativos

    financeiros, de emisso privada e lastreados em dvidas de terceiros, se tornaram o combustvel

    da euforia financeira, foi seriamente afetado pela crise. O novo ambiente regulatrio que se est

    desenhando aps a crise se prope a tratar de tais problemas. O como est sendo encaminhado

    esse tratamento de central interesse no presente trabalho.

    A despeito do excesso de otimismo que parecia dar o compasso da orquestra dos

    mercados financeiros nos anos pr-crise, a confiana em um ambiente de sistemas financeiros

    autorregulados foi profundamente abalada. Como consequncia, aps a crise houve uma

    renovao do debate a respeito da regulao financeira, em particular da regulao bancria.

    Um novo arcabouo regulatrio, com amplitude mundial, comeou a ser esboado no imediato

    ps-crise, enquanto ainda se realizava a contabilizao de perdas e danos do desastre financeiro

    de 2008. Esse novo arcabouo, denominado Basileia III, procurou, alm de uma proposta geral

    de regulao bancria, tratar tambm com mais especificidade a questo do valor dos ativos

    com os quais os bancos operam, analizando-os em termos de liquidez. Efeito imediato da crise,

    quando o acesso a crdito estagnou no mundo inteiro, e quando bancos aumentaram seus

    haveres monetrios em face da extrema insegurana que o momento impunha, o prprio termo

    liquidez reapareceu no cenrio dos debates a respeito desse novo arcabouo regulatrio, porque

  • 14

    percebeu-se ele no era algo to bvio quanto parecia ser nos anos de otimismo e boom

    econmico.

    O presente trabalho, portanto, pretende estudar a liquidez de ativos financeiros

    transacionados por bancos, em particular, avaliando essa questo frente ao tratamento

    regulatrio que Basileia III pretende dar liquidez de ativos bancrios. A questo de fundo que

    se pretende investigar no presente trabalho a resposta questo: o que lquido?. Mas essa

    uma questo por demais ampla, de forma que tal pergunta ser abordada, sobretudo, a partir

    de um recorte mais especfico, qual seja: o que lquido do ponto de vista regulatrio, ou para

    os propsitos de regulao bancria prudencial. O problema da liquidez de ativos

    transacionados por bancos est na raiz de uma das mudanas-chave que a proposta de Basileia

    III est se propondo trazer ao ambiente regulatrio bancrio ps-crise. A crise parece ter

    revelado ao mundo que ativos financeiros privados no possuem liquidez como uma

    propriedade intrnseca sua, mas, sim, derivada de um determinado contexto de funcionamento

    do sistema financeiro.

    Essa percepo, por si s, tem um grande impacto sobre a prpria forma como a teoria

    econmica vinha tratando questes relativas a bancos, regulao bancria, liquidez de ativos e

    funcionamento dos mercados financeiros. Ao tratar dessa questo, portanto, indiretamente o

    que se est realizando , a partir de uma anlise extremamente focada de um aspecto especfico

    do funcionamento do sistema financeiro, chamar a ateno para uma discusso muito maior,

    mais ampla, a respeito de como a economia analisa o mundo. por isso, ento, que o caminho

    para se chegar a um esboo de resposta pergunta chave que norteia o presente trabalho no

    pode ser trilhado a esmo: imperativo passar por alguns marcos que apontam as direes

    analticas a seguir ao longo dessa jornada. Tais marcos constituem, portanto, as partes que

    compem o presente trabalho, na procura por uma resposta questo que ele se prope analisar.

    Nessas partes, ento, busca-se investigar o que um banco e o porqu da necessidade (ou no)

    de regul-lo; o que a liquidez de ativos financeiros, e de onde ela emerge numa economia;

    como e porque acontecem as crises financeiras; como as questes de liquidez reapareceram, no

    contexto da crise de 2007/2008, e como Basileia III tem se proposto a tratar essa questo.

    partir desse caminho que se poder, ao final, partir para uma apreciao da questo da liquidez

    de ativos financeiros, e das formas como a regulao financeira poderia melhor enderear os

    problemas de liquidez como parte de um arcabouo de regulao bancria visando um sistema

    financeiro mais estvel, mais robusto e menos suscetvel a novas crises financeiras. Esse ,

    portanto, o caminho inteiro a se percorrer no presente trabalho. A ordem descrita no presente

  • 15

    pargrafo traz ento, em linhas gerais, a sequncia de captulos que se seguem, e a justificativa

    terica de sua insero no trabalho, bem como a lgica da ordem em que se apresentam.

    O primeiro marco, que pretende analisar o banco como objeto de investigao terica

    trar o recorte analtico que estabelece a clivagem fundamental entre duas vises de mundo

    bastante distintas a respeito do que uma economia. Por isso mesmo, apresentaremos primeiro

    a viso terica predominante, que prevaleceu como modelo analtico do sistema financeiro nos

    anos pr-crise, e que ajuda a entender porque emergiu um ambiente regulatrio que foi to

    favorvel aos bancos, e to pouco preocupado com questes de estabilidade sistmica. A essa

    viso predominante iremos contrapor, num outro captulo ainda dedicado anlise do que vem

    a ser um banco, vises que, aparentemente ignoradas pelo mainstream acadmico e poltico nas

    ltimas dcadas, trazem uma perspectiva mais realista e melhor fundamentada do que um

    banco numa economia capitalista cuja marca fundamental ser uma economia monetria.

    Apresentamos, assim, a perspectiva de Wicksell e de Keynes sobre bancos. A partir dessa

    perspectiva, abre-se uma nova possibilidade de entendimento do funcionamento de uma

    economia monetria moderna, e, nessa economia, a razo de porque bancos so importantes,

    porque eles so cruciais no entendimento das razes de existncia de crises financeiras, da

    prpria dinmica de gestao dessas crises aspecto em que a contribuio de Minsky ser

    fundamental e porque, finalmente, necessrio regular bancos.

    Ao mesmo tempo em que essas questes de fundo so tratadas, vai se encaminhando a

    discusso da liquidez de ativos financeiros. Um captulo emprico, em particular, trar uma

    anlise dos balanos dos bancos comerciais norte-americanos (participantes do sistema de

    seguro de depsitos bancrios daquele pas) buscando antever como a questo da liquidez

    desses ativos se revelou nos anos pr e ps Crise de 2007/2008. A escolha da anlise dos bancos

    comerciais norte-americanos ser melhor explicada no captulo especfico. Mas alm da

    abundncia de dados para a anlise acadmica e o fato de estarem no epicentro da crise, a

    mudana de comportamento desses bancos em relao aos ativos transacionados e mantidos em

    reservas reveladora de como a questo da liquidez de ativos foi afetada pela crise. Da, a

    resposta regulatria dada s questes de liquidez no mbito de Basileia III podero ser

    analisadas luz dos fatos reais: como o tratamento de liquidez bancria, sugerido pela nova

    regulao bancria, se adequa realidade factual de operao dos bancos. A, j se estar

    chegando concluso do presente trabalho, com o esboo de uma resposta pergunta formulada

    inicialmente. Esperamos, assim, contribuir para a anlise econmica e, particularmente, para os

    aspectos normativos dessa anlise, com vistas a enriquecer a discusso, bastante atual, sobre o

    como regular bancos de forma a dotar as economias dos pases com um sistema financeiro mais

  • 16

    estvel, mais robusto e menos arriscado do que aquele que gestou e produziu a Crise Financeira

    de 2007/2008.

  • 17

    Captulo 1

    Bancos, Regulao Bancria e os Acordos de Basileia

    I am skeptical about the argument that the subprime mortgage problem will contaminate the whole mortgage market, that housing construction will come to a halt, and that the economy will slip into a recession. Every step in this chain is questionable and none has been quantified. If we have learned anything from the past 20 years it is that there is a lot of stability built into the real economy.

    Robert Lucas, In: Mortgages and Monetary Policy, The Wall Street Journal, 19.09.20071

    Banking is an unusual business; a proper understanding of it is central to an understanding of our economic troubles.

    Richard Posner, In: A Failure of Capitalism, 2009

    It is not what we know, but what we do not know which we must always address, to avoid major failures, catastrophes and panics.

    Richard Feynman, In: What Do You Care What Other People Think? Further Adventures of a Curious Character WW Norton, 1988

    1. Acordos de Basileia e Teoria Bancria Ortodoxa

    Neste captulo, pretende-se apresentar uma discusso mais ampla a respeito da

    regulao bancria, tendo como objetivo fundamental permitir efetuar uma avaliao dos

    acordos do Comit da Basilia de Superviso Bancria (CBSB), desde a sua primeira edio

    (Basilia I, de 1988), passando pela segunda verso, de 2004, Basileia II, e sua mais recente

    verso, Basilia III. Para tanto, o captulo realizar tambm uma discusso sobre as teorias

    econmicas que explicam o banco enquanto firma/agente econmico, e como essas teorias se

    refletem na perspectiva de regulao financeira que redundou em Basileia II, acordo que estava

    em vigncia durante a Crise de 2007/2008.

    O acordo de Basilia II foi apresentado como uma evoluo do acordo Basilia I, de

    1988, que teve como ponto focal a harmonizao e o nivelamento do ambiente concorrencial

    1 Acesso disponvel em http://online.wsj.com/article/SB119017085710932141.html.

    http://online.wsj.com/article/SB119017085710932141.html

  • 18

    internacional entre instituies bancrias por meio da institucionalizao de um denominador

    comum mnimo, em termos de marco regulatrio. Como coloca Cardim de Carvalho (2005), a

    relao entre os dois acordos bastante mais complexa do que simples ideia de que o segundo

    acordo evoluiu do primeiro. Se o primeiro estabeleceu as bases da chamada regulao

    prudencial dos bancos, dando ao ambiente concorrencial entre bancos que atuavam

    internacionalmente um conjunto mnimo de regras comuns, o segundo procurou dar questo

    da estabilidade financeira a perspectiva que faltou ao primeiro, no obstante optando por um

    mtodo mais amistoso tese da autorregularo dos bancos como alternativa mais afinada com

    interesses pr-mercado, a partir de uma orientao pautada pela preocupao com a eficincia

    das firmas bancrias. O terceiro acordo, no entanto, tem procurado tratar questes que

    emergiram da Crise de 2007/2008 no sistema financeiro norte-americano, espalhando-se pelo

    sistema financeiro mundial. De particular interesse para o presente trabalho, o novo acordo

    procura tratar especificamente das questes de regulao de liquidez bancria, que eram

    insuficientemente abordadas em Basileia II.

    Basilia I surpreendeu em termos de alcance por ser adotado de forma inesperada

    pelos seus prprios formuladores, deve-se ressaltar por um nmero cada vez maior de pases,

    no participantes do CBSB. Transformou-se, por esse expediente, num tipo de benchmark da

    regulao prudencial, tendo como ponto forte a sua simplicidade. O primeiro acordo do CBSB2

    foi endereado como recomendao para adoo por parte dos membros do Comit, na tentativa

    de nivelar o campo de atuao dos bancos, em sua crescente concorrncia internacional. O

    acordo equalizou a competio bancria internacional entre os bancos atuando em diferentes

    pases sujeitos, portanto, a diferentes estruturas regulatrias pelo estabelecimento dos

    requerimentos de capital como um tipo de custo regulatrio similar entre eles. No foi sua

    preocupao proteger os sistemas bancrios em termos de uma viso mais ampla de estabilidade

    sistmica.3 O acordo estabeleceu um piso comum de coeficientes de capital de acordo com uma

    dada medida de exposio total ao risco de crdito por parte dos bancos. Basilia I estabeleceu

    coeficientes de risco especficos por classe de emprstimos, e um piso de 8% do valor de capital

    requerido a partir da ponderao pelo risco da carteira. O capital foi dividido em duas classes

    (tiers, nos termos originais, e assim utilizados no que se segue): o tier1, que compunha no

    2 International Convergence of Capital Measurement and Capital Standards, July 1988. 3 Como afirma Cardim de Carvalho (2005, p. 5): Basel I is not about risk, it is about costs, in fact, a particular

    class of cost, the one associated to compliance to regulations (itlicos do autor). E acrescenta que What matters

    is that regulatory costs should be roughly similar among banks operating in the same (international) markets.

    Competitive success should be a matter of private virtues, not of regulatory advantages. (Idem). Para uma anlise

    da evoluo histrica dos acordos de Basileia I e II, e seus aspectos ligados ao desenvolvimento, ver tambm

    Castro (2007; 2009).

  • 19

    mnimo 50% do capital regulatrio total, e o tier 2, formado por outras reservas, dbitos

    subordinados e instrumentos hbridos, entre outros. A fora de Basilia I foi, portanto, sua

    simplicidade, o que permitiu sua adoo crescente por pases que no participavam do grupo

    em torno do CBSB, bem como sua elevao condio de uma dentre as muitas exigibilidades

    como parte das polticas condicionantes liberao de socorro financeiro pelo Fundo Monetrio

    Internacional.

    No obstante essa vantagem em termos de clareza e simplicidade, o acordo apresentou

    o que Cardim de Carvalho (2005, p. 7) chamou de sua fraqueza fundamental: o fato de ter sido

    criado para um modelo de banco que se tornava rapidamente obsoleto o modelo bancrio

    oriundo do Glass/Steagal Act, que, fundamentalmente, tendo emergido como resposta s falhas

    do sistema bancrio que engendraram a Crise de 1929/33, colocava o sistema bancrio norte-

    americano sob a clivagem bancos comerciais separados de bancos de investimentos. Esse

    modelo de arquitetura do sistema financeiro, bastante adotado ao redor do mundo (Cardim de

    Carvalho et ali, 2007), no ps-guerra, vinha perdendo gradativamente seu espao e importncia

    prtica a partir dos anos 1970.

    Como mostra Hermann (2002), nos pases desenvolvidos j se iniciara um processo

    lento e gradual, no caso norte-americano, ou mais acelerado, em outros pases de desmonte

    dos controles regulatrios sobre os bancos, o fim da sua diviso hermtica entre bancos

    comerciais e bancos de investimentos e o abandono da imposio de tetos de taxas de juros,

    bem como substanciais mudanas nos recolhimentos de compulsrios. Esse processo levou, no

    caso dos Estados Unidos, a um aprofundamento do processo de fuses/aquisies entre bancos,

    e ao gradual processo de mudana na segmentao bancria, com o crescimento dos bancos

    universais na figura de protagonistas do sistema financeiro (Lovett, 1997; Malloy, 1999; Gup e

    Kolari, 2005).4 Esse processo levou transformao fundamental dos anos de 1980-1999, de

    crescente universalizao e internacionalizao bancria, concentrao do mercado em grandes

    bancos to grandes que se tornaram, na percepo dos anos da crise, grandes demais para

    quebrar (to big to fail, em ingls) inovaes financeiras e encolhimento relativo do crdito

    bancrio frente ao mercado de capitais gerido por esses grandes bancos universais (Cardim de

    Carvalho et alli, 2007). Os dois acordos de Basilia vieram existncia, portanto, desenhados

    4 Como se ver no Captulo 6, o processo de fuses e aquisies continua e marcou os anos que antecederam a

    crise.

  • 20

    para um mundo que j no correspondia ao que de fato ocorria nas praas financeiras dos pases

    desenvolvidos e em boa parte dos pases em desenvolvimento.5

    Os acordos de Basilia esto passando por um processo de rediscusso e implementao

    de novas regras prudenciais, como resultado dos desdobramentos da Crise Financeira de

    2007/2008, cujos efeitos ainda no chegaram ao fim. A regulamentao bancria est de volta

    ordem do dia, e temas que so de valor crucial para o seu entendimento, como as questes

    ligadas liquidez de ativos bancrios, ao risco sistmico inerente ao setor bancrio e

    fragilidade financeira, voltaram a ser discutidos.6 Na crise, ficaram evidenciadas todas as

    fragilidades oriundas do processo de desregulamentao financeira que varreu o mundo nas

    dcadas de 1980 e 1990, e que, em termos de regulao prudencial, foi parte do norte de

    orientao do CBSB em uma postura mais amigvel ao mercado e autorregulao baseada

    principalmente em avaliao interna de risco de carteira, por parte das instituies bancrias.7

    Em particular, a regulao bancria das ltimas dcadas foi e continua sendo afetada pela fora

    com que uma certa viso predominante do que so os bancos, e, consequentemente, como seria

    mais eficiente regul-los, ganhou fora desde a dcada de 1970 e orientou, explcita ou

    implicitamente, a viso e a postura dos reguladores. Essa viso, aqui chamada de ortodoxa por

    agrupar todas as perspectivas analticas cujo recorte metodolgico neoclssico, pautada numa

    perspectiva que privilegia a eficincia da firma bancria, ser objeto do prximo tpico.

    Reguladores em geral so mais pragmticos do que tericos, o que significa que no

    adotam teorias de forma explcita, concentrando-se mais em focar nas questes de ordem prtica

    5 Em particular, a desregulamentao financeira das ltimas duas dcadas do sculo XX encontrou nos trabalhos

    de Edward Shaw e Ronald McKinnon uma base argumentativa capaz de justific-la em termos de teoria econmica

    (de recorte marcadamente ortodoxo, com a poupana precedendo o investimento). Estes autores escreveram,

    ambos em 1973 (embora cada um autonomamente) trabalhos que resultaram no que se convencionou chamar de

    modelo Shaw-McKinnon de crtica ao que eles definiram como uma poltica de represso financeira que

    predominou no ambiente macroeconmico dos pases menos desenvolvidos (com traos tambm presentes nos

    pases mais desenvolvidos), notadamente no perodo do ps-guerra at o incio dos anos 1970 (Hermann, 2002).

    Em sntese, propuseram a ideia chave de que o sistema financeiro desses pases nos quais imperavam como

    caractersticas gerais a existncia de tetos para as taxas de juros nominais nas operaes de emprstimos e captao

    de depsitos, a interveno governamental direta nas atividades dos bancos, elevados requerimentos de reservas

    bancrias, programas subsidiados de crdito para setores/atividades pr-definidas (campees nacionais) e ainda

    a existncia de controles cambiais reprimiam o setor financeiro, produzindo ineficincias (distores) na

    alocao da poupana em termos de financiamento do investimento, com reflexos, finalmente, no prprio processo

    de desenvolvimento. 6 O voltar aqui mero uso de linguagem. Autores ps-keynesianos mantiveram o debate em aberto, mesmo

    quando ele foi colocado em menor evidncia pelo mainstream, dada a postura ortodoxa de que a soluo

    regulatria tima seria nenhuma regulao (o que ser tratado mais adiante). Ainda mais fundamentalmente,

    Hyman Minsky, em dois de seus trabalhos mais importantes (Minsky, 1982; 1986 [2008]), formulou e aprofundou

    a hiptese de fragilidade financeira, que a Crise de 2007/08 veio corroborar de forma to dramtica e contundente.

    Nessa direo terica, ver ainda Kregel (2008) e Cardim de Carvalho (2009:1 e 2009:2). A abordagem ps-

    keynesiana e a anlise de Minsky, em particular, sero analisadas em momento oportuno, nos captulos 3 e 4 do

    presente trabalho. 7 Ou em avaliao externa de risco por parte de agncias de rating, como veremos no captulo 5.

  • 21

    da atividade de regulao financeira e bancria. Isso, no entanto, no os isenta de serem

    influenciados (mesmo que no explicitamente) por uma perspectiva terica que lhes sirva como

    base, em particular quando essa perspectiva terica se torna predominante na academia, na

    mdia e nas esferas poltico-decisrias. As questes que extravasam a teoria e resultam em

    modelos ou prticas regulatrias sero analisadas mais adiante nesse trabalho, mas importante

    avaliar, primeiro, quais os modelos-base que orientaram e deram o tom do que se pode chamar

    de mainstream regulatrio do perodo pr-crise de 2007/2008.

    O fundamento terico desses modelos o do Equilbrio Geral Walrasiano do tipo

    Arrow-Debreu, uma perspectiva de sistema econmico a-histrico e sem instituies que, por

    suas hipteses bsicas, no admite a existncia de bancos. Um corolrio de tal perspectiva a

    aceitao da hiptese de mercados eficientes, a qual promulga uma viso de funcionamento do

    sistema financeiro que, como se ver, afeta fundamentalmente a perspectiva de liquidez de

    ativos bancrios. Por esse arcabouo terico de recorte bastante restritivo em termos de

    dinmica de funcionamento de sistemas financeiros, restou aos analistas alinhados com essa

    abordagem a tarefa terica de inscrever os bancos nesse modelo econmico de fundo. Os

    principais modelos que tentaram perpassar o problema da existncia de bancos num mundo de

    equilbrio geral, tratados a seguir, so aqui chamados de modelos-base das teorias bancrias

    microeconmicas na abordagem neoclssica, por terem sido pioneiros na aplicao de uma ou

    outra abordagem diferenciada para explicar a existncia ou o comportamento das firmas

    bancrias. No obstante existir na literatura uma infinidade de modelos variantes, essa nova

    leva de contribuies tericas traz esses modelos-base como seu fundamento, apresentando-se

    como derivaes destes. Uma apresentao bastante ampla desses modelos analticos feita por

    Freixas e Rochet (2008), e uma reviso mais recente da literatura ortodoxa realizada por

    VanHoose (2007), alm de um compndio inteiro sobre o tema, organizado por Berger,

    Molineux e Wilson (2010). Uma referncia mais antiga sobre modelos bancrios de recorte

    ortodoxo Mishkin (2007).

    1.1 - Teorias Bancrias Ortodoxas

    A abordagem neoclssica da regulao financeira no difere da leitura geral que essa

    escola realiza da cincia econmica: toda a abordagem regulatria deve emergir de uma teoria

    bancria que, fundamentalmente, trata a firma bancria como um intermedirio passivo, num

    mercado cujo equilbrio est dado fora de qualquer capacidade de interferncia dos bancos, no

  • 22

    contexto mais amplo de uma economia no-monetria de mercados competitivos. No mago,

    toda a teoria bancria da abordagem ortodoxa se traduz numa tentativa de manter o cinturo

    protetor em torno do equilbrio geral de Arrow-Debreu. A literatura ortodoxa sobre bancos e

    regulao financeira, nesse sentido, parece ser um grande exerccio teleolgico no qual o

    princpio de investigao est subordinado ao fim que se deseja desde o incio do exerccio

    investigativo: demonstrar a irrelevncia dos bancos para o equilbrio geral, demonstrar a

    passividade dos bancos no funcionamento normal da economia, e manter a neutralidade da

    moeda como um fundamento basilar desse edifcio analtico. Essa perspectiva termina por

    justificar teses controversas que esto na origem dos problemas que produziram a crise de

    2007/2008, no mbito da teoria econmica, particularmente por justificarem abordagens

    regulatrias que partam do princpio de que a capacidade de autorregulao bancria seria

    qualitativamente superior e prefervel a quaisquer outras tentativas de regulao, em particular

    a regulao prudencial dos bancos.

    A prpria existncia dos bancos, num sistema com essas caractersticas, algo

    extemporneo e estranho ao princpio do equilbrio geral, da neutralidade da moeda e dos

    mercados eficientes. No entanto, os bancos esto no mundo: deve haver, portanto, uma razo

    econmica para que isso ocorra. E, como empresas, deve haver uma lgica de funcionamento

    das firmas bancrias de determinao de suas estratgias de atuao deve ser possvel,

    portanto, investigar sobre seu padro de escolhas como agentes econmicos. Resta, portanto,

    encaixar uma teoria bancria para tratar desses problemas sem afetar a estrutura maior, pr-

    determinada pelo equilbrio geral. Assim, os problemas oriundos das complexidades de

    funcionamento das instituies financeiras, de forma geral, so tratados como uma aplicao

    em particular da hiptese de mercados eficientes, ou ento, numa alternativa, como falhas de

    mercado. Na primeira alternativa, temos as classes de modelos mais antigos, cuja base terica

    mais forte o chamado teorema de Modigliani-Miller (1958). No segundo caso, que passou a

    ser dominante nessa escola, aps Stiglitz e Weiss (1981), toda a rationale para a existncia e

    atuao dos bancos, em particular, e dos mercados financeiros, em geral, vista como derivada

    de questes de assimetria informacional, problemas de relao agente-principal no setor de

    intermediao financeira e desenho de contratos em mercados incompletos.

    Dadas as limitaes que a metodologia neoclssica impe a uma anlise dos bancos

    como eles so, pode-se dizer que no existe, a rigor, um modelo bancrio geral na abordagem

    ortodoxa. Os autores que se debruam sobre o tema acabam por criar modelos heursticos

    capazes de fundamentar uma teoria bancria em termos microeconmicos estritos, que se

    propem ser generalizados, no obstante concederem muito espao a hipteses ad hoc. Em

  • 23

    ltima anlise, a nfase no rigor matemtico e a necessidade imperiosa de construir hipteses

    simplificadoras que permitam a abstrao matemtica de forma mais coerente deixa pouco

    espao para se conceder uma abertura mais realista ao mundo dos bancos de verdade, com

    agncias, balanos e estratgias de gesto de seus ativos e passivos visando a lucratividade. Os

    bancos que os modelos apresentam em muito pouco se assemelham a bancos assim. Na tentativa

    de partir de princpios fundamentais para descrever o mundo dos bancos, essas teorias

    transformam os bancos em algo como uma funo de transformao, que utiliza como insumo

    bsico as reservas bancrias, constitudas a partir da poupana obtida passivamente de seus

    clientes, para manufaturar, como colocaram Wray e Papadimitriou (2010), emprstimos e

    depsitos.

    H quatro linhas principais dessa rationale na literatura ortodoxa, e muito do que se

    escreveu e se escreve sobre bancos e sistemas financeiros encontra nessas quatro linhas sua

    referncia mais comum. No que se segue, divide-se a anlise ortodoxa em suas quatro vertentes

    principais, isto , em seus modelos-base comentados acima, de forma a captar as especificidades

    tericas que cada uma delas traz luz. De maneira geral, pode-se lanar mo, nessa anlise, de

    uma espcie de metfora do cinema, e verificar que, numa economia do tipo ortodoxa, com o

    equilbrio geral exercendo o papel de protagonista, a neutralidade da moeda como a herona e

    o governo como o grande vilo, a avaliao terica dos bancos num tal sistema a de buscar

    significado no para a histria principal cujo enredo est dado e cujo final conhecido (all

    markets clear) mas tentar explicar quem so aqueles outros atores que, embora estejam na

    cena, na realidade ou fazem somente figurao (no tem importncia nenhuma no enredo), ou

    no possuem falas (so passivos e s esto ali para compor cenrio), ou, se as possuem, no

    tm nada de fundamental a dizer.

    1.1.1 - Teoria Bancria num modelo Arrow-Debreu: irrelevncia dos bancos para o

    equilbrio geral

    No paradigma de pesquisa neoclssico, todos os modelos positivos de anlise

    econmica devem derivar de um modelo microeconmico no conflitante com o equilbrio

    geral walrasiano em sua formulao mais rigorosa, dada por Arrow-Debreu na dcada de 1960.

    Com esse princpio, Freixas e Rochet (2008) argumentam que uma teoria microeconmica dos

    bancos no poderia existir de forma completa e rigorosa antes que fossem lanadas as bases de

    uma abordagem terica tendo como arcabouo a economia da informao (com base na Teoria

  • 24

    dos Jogos, modelos de principal-agente, risco moral e desenho de mecanismos e contratos), o

    que aconteceu na dcada de 1970. Um problema de princpio na abordagem estritamente

    ortodoxa que, num mundo de equilbrio geral, no faz sentido econmico a existncia dos

    bancos: numa economia no monetria com mercados completos, os bancos no tem funo

    nenhuma a desempenhar. Freixas e Rochet desenvolvem um modelo simplificado de equilbrio

    geral l Arrow-Debreu, como um anlogo ao teorema de Modigliani-Miller (1958) aplicado

    poltica financeira das firmas, especialmente redesenhado para incluir um setor bancrio, a

    fim de mostrar esse resultado. Vamos reproduzir esse modelo aqui, de forma sucinta.

    O modelo consiste de duas datas no tempo (t = 1, 2), trs agentes representativos

    (firmas, famlias/consumidores e bancos) que atuam competitivamente, e um nico bem fsico,

    que faz parte da dotao das famlias e tomado como numerrio, uma parte do qual

    consumida no perodo 1 e a outra parte investida pelas firmas para produzir e possibilitar

    consumo no perodo 2. As famlias escolhem um padro de consumo (C1, C2), e dividem sua

    poupana, S, entre depsitos bancrios, Dh, e ttulos, Bh, de forma a maximizar sua funo

    utilidade u. Sejam 1 a dotao inicial do bem possuda pelas famlias, p o preo, f e b so

    os lucros da firma e dos bancos (distribudos s famlias em t = 2; as famlias detm aes dos

    bancos e firmas), e r e rD as taxas de juros pagas pelos ttulos e pelos depsitos bancrios,

    respectivamente. O problema do consumidor dado por:

    max u(C1, C2), sujeito a

    C1 + Bh + Dh = 1,

    pC2 = f + b + (1+r) Bh + (1+rD) Dh

    A soluo do problema do consumidor dada por r = rD.

    O problema da firma consiste em escolher o seu nvel de investimento (I) e como

    financi-lo (seja por meio de emprstimos bancrios, Lf, ou emitindo ttulos, Bf), de forma a

    maximizar seu lucro, levando em conta sua funo de produo f(I) e a taxa rL dos emprstimos

    bancrios:

    Max f = p f (I) (1+r) Bh (1+rL) Lf, sujeito a

    I = Bf + Lf

    O problema da firma resolvido quando r = rL.

    Finalmente, o banco, tambm de forma a maximizar seu lucro, escolhe sua oferta de

    emprstimos (Lb), sua demanda por depsitos (Db) e a emisso de ttulos (Bb):

    max b = rL Lb r Bb rD Db, sujeito a

    Lb = Bb + Db

  • 25

    Um equilbrio nesse modelo consiste em um vetor de taxas de juros (r, rL, rD), e trs

    vetores de oferta e demanda: (C1, C2, Bh, Dh) para o consumidor, (I, Bf, Lf) para a firma e (Lb, Bb,

    Db) para o banco, para os quais valem as seguintes condies: cada agente age de forma tima,

    e todos os mercados se equilibram tal que I = S (no mercado de bens), Db = Dh (no mercado de

    depsitos), Lf = Lb (no mercado de crdito) e Bh = Bf + Bb (no mercado de ttulos). A condio

    de equilbrio tal que r = rL = rD.

    A proposio central que esse modelo implica que, se as firmas e os consumidores

    tiverem acesso irrestrito a mercados financeiros perfeitos, ento, em equilbrio, os bancos obtm

    lucro zero e o tamanho e a composio dos balanos dos bancos no tem nenhum efeito sobre

    os outros agentes: os consumidores so indiferentes entre depsitos e ttulos, e as firmas

    igualmente indiferentes entre crdito bancrio ou emisso de dbitos. Os autores propem que

    esse resultado vale mesmo para situaes de incerteza (no sentido neoclssico, isto , incerteza

    probabilstica8), desde que os mercados sejam completos. Essa tentativa explica porque um

    modelo de equilbrio geral com mercados financeiros completos no adequado para estudar o

    setor bancrio: introduzir o setor bancrio numa economia em equilbrio geral apenas um

    exerccio de lgebra sem maior significncia econmica para essa abordagem. A explicao

    para a existncia e atuao dos bancos, no enfoque neoclssico, se existir, deve estar em outro

    lugar.

    Bancos existem, segundo essa abordagem, porque essas instituies emergem como

    resposta ao problema de assimetria informacional entre agentes superavitrios (em posse de

    ativos monetrios) e agentes deficitrios. A viso dominante que os bancos coletam depsitos

    dos superavitrios e alocam os recursos aos deficitrios por meio de contratos especficos:

    depsitos vista e emprstimos a prazo. Uma caracterstica fundamental desses contratos, e em

    particular dos contratos de emprstimos dos bancos aos agentes deficitrios, que eles so do

    tipo OTC (over the counter), portanto, so especficos demais para que existam mercados

    secundrios para eles. Bancos surgiram gerenciando esse tipo de contratos. Mais recentemente,

    todavia, na histria bancria, os bancos desenvolveram como inovao a transformao de

    contratos financeiros OTC em contratos semipadronizados (com caractersticas comuns de

    acordo com o tipo de operao, credor, prazos de maturidade, etc.) de forma a poder securitiz-

    los e criar para esses contratos mercados secundrios. Esse processo implica que contratos

    financeiros engendram grandes e poderosos custos de transao, que so reduzidos no mbito

    8 As diferenas entre a incerteza probabilstica, adotada pelos modelos neoclssicos, e a incerteza fundamental, ou

    keynesiana, ser tratada no captulo 3, nesse trabalho.

  • 26

    das instituies financeiras por ganhos de escala ou de escopo, especializando-se nessas

    operaes alocativas de poupanas e na gesto de riscos. Assim, as instituies financeiras so

    algo como uma coalizo entre devedores e emprestadores que exploram economias de escala

    e reduzem custos de transao (Freixas e Rochet, 2008).

    As assimetrias informacionais que justificam a existncia e caracterizam as operaes

    dos bancos podem ser de trs tipos: ex ante, gerando seleo adversa de credores; ex post, no

    sentido em que as verificaes de estado so custosas;9 ou interim que levam a problemas

    de risco moral (moral hazard), como o caso dos tomadores de emprstimos no realizarem os

    investimentos compromissados, desviando os recursos para fins diversos. As instituies

    financeiras, na perspectiva neoclssica, podem ser vistas como provedores de soluo para esse

    tipo de problemas. A partir da considerao de existncia dessas assimetrias informacionais, na

    abordagem neoclssica procura-se explicar a existncia da firma bancria a partir de uma

    considerao do banco como um agente que reduz custos de transao oriundos basicamente

    de economias de escopo ou economias de escala.10

    Assim, os problemas tericos a respeito da existncia de instituies financeiras, de

    forma geral, so tratados como resultantes de falhas de mercado, e a maior parte dos problemas

    derivam-se quase sempre de questes de assimetria informacional, problemas de agente-

    principal e contratos incompletos. No entanto, essa escola no ignora completamente a

    existncia da regulao financeira como fato, embora busque criar modelos heursticos capazes

    de fundament-la em termos microeconmicos bsicos.

    1.1.2 - A abordagem de Fama: bancos passivos como meros figurantes

    Uma abordagem alternativa, no matematizada, tentativa de inscrever uma teoria dos

    bancos no paradigma de equilbrio geral encontrada em Fama (1980). No modelo de Fama,

    os bancos so intermedirios financeiros que emitem depsitos e usam os recursos assim

    9 Em termos de teoria dos jogos. O estado emerge como a revelao de uma caracterstica do jogador (ser amante

    do risco ou averso ao risco, por exemplo) dada exogenamente (nos modelos tericos, geralmente, pela natureza).

    No desenho de contratos, o principal atribui uma probabilidade ex ante de o agente apresentar um dado estado,

    cuja condio real se revelar ex post (Fudenberg e Tirole, 1991; Gibbons, 1992; Mas-Colleu, Whinston e Green,

    1995). 10A corrente que adota a explicao por economias de escopo entende que as teorias de portflio e a expertise em

    gerenciamento de riscos permitem aos bancos perceber oportunidades nas diferenas dos agentes em termos de

    averso ao risco, e adotar estratgias long-short na alocao de ativos (captao a curto prazo, short, para alocao

    em investimentos a longo prazo, long). Alm disso, a expertise em gerenciar riscos permite aos bancos oferecer

    linhas de crdito e servios de depsito. Essa abordagem vista com menor rigor por no ser formalizada num

    modelo matemtico explcito.

  • 27

    obtidos para compra de ttulos. Fama argumenta que quando os bancos atuam num mercado

    competitivo, suas atividades de gesto de carteiras resultaro, em princpio, em que, para as

    firmas bancrias, vale o teorema de Modigliani-Miller (1958), sobre a irrelevncia das decises

    puras de financiamento. Fama deseja demonstrar que, apesar de possuir uma funo de

    intermedirio das transaes financeiras numa economia, os bancos so agentes passivos,

    incapazes de influenciar preos numa economia em equilbrio.

    Os bancos, na abordagem de Fama, fazem parte de uma indstria de transaes, e

    possuem a funo de manter um sistema de contas em que as transferncias de riqueza so

    registradas (a crdito e/ou dbito entre agentes), e trocar depsitos bancrios por moeda corrente

    embora, para ele, essa segunda funo seja menos importante que a primeira num sistema

    bancrio moderno. Da funo de manter os registros contbeis implica que os bancos no tem

    necessidade de manter em seu cofre a riqueza contabilmente registrada. Da resulta que os

    bancos passam a fazer gerenciamento de suas carteiras: eles emitem depsitos e utilizam os

    recursos para adquirir ttulos/ativos.11 Se o sistema bancrio for competitivo, o gerenciamento

    de portfolio dos bancos, por essas caractersticas, insere-se no resultado da irrelevncia das

    decises puras de investimento, formulada no teorema de Modigliani-Miller. Fama infere que

    esse resultado implica, com vistas a obter uma situao de equilbrio geral (com relao a preos

    e atividade econmica real), que no existe necessidade de regular a criao de depsitos ou

    os tipos de ativos que os bancos podem adquirir. O princpio norteador de sua anlise, nesse

    ponto, que no caso de em que a moeda no tenha nenhum papel ativo no sistema econmico,

    o sistema bancrio no tem nenhum papel especial na determinao de preos.

    O modelo de Fama assume a existncia de um bem numerrio, e que os bancos pagam

    retornos competitivos sobre os depsitos, ajustados pelo risco, descontados de uma taxa

    administrativa. Alm disso, os bancos cobram preos competitivos pelos servios de transao

    que eles prestam. A origem da necessidade de se depositar as diversas formas de riqueza nos

    bancos, por parte dos agentes, advm do fato de que, num mundo complexo, existem muitos

    tipos de ativos de portflio e uma grande gama de bens de consumo e servios, de tal maneira

    que a forma de riqueza que um agente ou unidade econmica escolhe para utilizar numa

    transao geralmente no a mesma que a sua contraparte desejaria obter. Ento, uma transao

    gera transferncias de portflio entre diferentes agentes, as quais, num sistema do tipo que Fama

    chama de currency type system (op. cit., p. 42), envolvem a interveno de um meio de trocas

    11 In the world we are examining, banks have two functions. They provide transactions services, allowing

    depositors to carry out exchanges of wealth through their accounts, and they provide portfolio management

    services. (Fama, 1980, p. 44).

  • 28

    fsico que serve temporariamente como veculo de transmisso do poder de compra. Num

    sistema puro de registros contbeis, a noo de existncia desse meio fsico desaparece: a

    essncia de um sistema desse tipo que ele opera por meio do registro de dbitos e crditos

    entre as unidades envolvidas, sem requerer nenhum meio fsico de concluso dessas operaes,

    e todo crdito voltar esfera da circulao por meio de novas transaes referenciadas em

    bens, que sero outra vez registradas como dbitos de alguns agentes e crdito de outros.

    Fama constri, portanto, um modelo de bancos em que a moeda no existe e no tem

    papel ativo algum no funcionamento do sistema. Mesmo quando ele aventa a possibilidade de

    que a eficincia de um sistema de trocas possa ser melhorada se todos os preos forem

    denominados num numerrio comum, para um sistema de registros contbeis puros, esse

    numerrio no tem necessidade nenhuma de poder ser portvel ou armazenvel. Qualquer coisa

    poderia exercer esse papel, porque:

    [] in the type of unregulated banking system we have described, there is no meaningful way in which deposits can be the numeraire since deposits can be tailored to have the characteristics of any form of marketable wealth. Unregulated banks provide an accounting system in which organized markets and bookkeeping entries are used to allow economic units to exchange one form of wealth for another. But the deposits of the system are not a homogeneous good in which prices of all goods and securities might be stated. (Fama, 1980, p. 43, itlicos nossos).

    No sistema bancrio de Fama, depsitos como meios de pagamento no podem ser

    confundidos com moeda. Em particular, ele defende a tese de que depsitos constituem meios

    de pagamento somente no sentido geral de que qualquer forma de riqueza meio de pagamento.

    O conceito de moeda, introduzido na anlise dos bancos, conduz ao tipo de interpretao

    contra a qual ele se posiciona teoricamente de que os bancos possuem o poder de produzir

    espirais inflacionrias pela criao de moeda via emisso de depsitos. Na determinao dos

    preos e do equilbrio, os bancos so atores figurantes. Somente na definio das atividades

    reais da economia e no seu funcionamento que os bancos possuem um papel, ainda que apenas

    coadjuvante:

    The concern with banks in macroeconomics centers on their role as portfolio managers, whereby they purchase securities from individuals and firms (and a loan is, after all, just a purchase of securities) which they then offer as portfolio holdings (deposits) to other individuals or firms. Thus, banks are in the center of the process by which the economy chooses its real activities and the way those activities are financed. (Fama, 1980, p. 44, itlicos nossos).

  • 29

    Como gestores de ativos, os bancos no exercem controle sobre nenhuma das grandezas

    que interferem no equilbrio.12 Mesmo que se argumente em favor das vantagens comparativas

    dos bancos na gesto de ativos em relao a outros investidores, num mercado competitivo isso

    se traduz em que os bancos apenas aprovisionam seus clientes com servios transacionais e

    disputam seus clientes por meio da sua poltica de taxas:

    Banks are concerned with the fees they earn rather than with the types of portfolio they provide, so in a competitive equilibrium they provide, in aggregate, portfolios to the point where each different type produces management fees at the same rate. (Fama, 1980, p. 46).

    Os bancos respondem aos gostos e preferncias de seus demandantes e ofertantes de

    ativos de portflio, constituindo-se to somente em intermedirios sem papel ativo na

    economia. A concluso principal do trabalho um libelo contra a regulao bancria de

    qualquer natureza e uma afetada defesa da eficincia de um suposto equilbrio geral no qual os

    bancos no possuem nenhum papel determinante:

    The standard scientific hope is that the major conclusions drawn from simplified scenarios are robust in the face of real world complications. For our purposes, the complications introduced by transactions costs in trading securities are not likely to overturn the general conclusions that a competitive banking sector is largely a passive participant in the determination of a general equilibrium, with no special control over prices or real activity, which in turn means that there is nothing in the economics of this sector that makes it a special candidate for government control. (Fama, 1980, p. 47, itlicos nossos).

    Fama ainda realiza um breve exerccio de investigar um modelo alternativo com a

    existncia de um sistema regulado, basicamente, com exigncia de manuteno de reservas e a

    limitao do pagamento de retornos sobre os depsitos. A nica inovao resultante que um

    sistema regulado com esses instrumentos diferencia os bancos de outras instituies financeiras,

    mas no altera o resultado fundamental, de que os bancos ainda se comportam como no teorema

    de Modigliani-Miller, e so, ainda, agentes passivos do funcionamento da economia. Numa

    economia em que, finalmente, exista algo como a moeda e a exigncia de reservas bancrias,

    Fama vai defender que a existncia da moeda como unidade de valor s ocorre porque o

    governo vai forar essa situao artificialmente, interferindo, ao fim, na eficincia do sistema.

    Ele lana mo de uma espcie de parbola de uma sociedade ultra-avanada que h muito

    abdicou do uso de moeda, e onde todas as transaes so registros contbeis. Numa tal

    economia, somente por iniciativa do governo um sistema monetrio baseado numa unidade

    12 (...) as portfolio managers, banks are financial intermediaries with no special control over the details of a general

    equilibrium. (Fama, 1980, p. 45)

  • 30

    monetria oficial viria a existir, por fora da imposio do governo em termos de requerimento

    de reservas denominadas nessa unidade por parte dos provedores de viagens espaciais. A

    imposio do governo, ao fim, somente traz tona a percepo de que a moeda s tem valor

    numa tal economia porque uma imposio governamental, que distorce o funcionamento

    dessa economia ultra-avanada que, de outro modo, funcionaria muito mais normal e

    eficientemente. Assim, s por meio da compulsoriedade de reservas, advinda da regulao

    impositiva, que um registro contbil como um recibo de depsito passa a ser um bem

    econmico real como moeda numa economia.

    A tese central, teleolgica, da qual Fama parte, continua portanto inalterada: numa

    economia no monetria, em concorrncia, o sistema bancrio mais eficiente se funcionar

    sem regulao. A questo da consistncia interna dessa proposio no o ponto principal:

    dadas as premissas, segue-se esse resultado. O problema com sua aderncia realidade: a

    proposio de que os bancos, numa economia moderna, no tenham mais que um papel passivo

    so figurantes, apenas, no tem voz nem papel nenhum na trama no corresponde aos fatos.

    1.1.3 - A sntese da teoria bancria em Baltensperger: os bancos tm muito pouco a

    dizer

    Baltensperger (1980) efetuou uma espcie de sntese da teoria da firma bancria

    produzida nos arraiais neoclssicos notadamente ao longo da dcada de 1970, ainda sem a

    roupagem das abordagens baseadas na teoria da informao. Como ele observa, There exist a

    number of rival models and approaches which have not yet been forged together to form a

    coherent, unified and generally accepted theory of bank behavior (op cit, p. 1). Seu trabalho,

    ento, desenvolve um modelo sntese da firma bancria em que, de um lado, procura-se

    investigar o comportamento da firma face quilo que se considera, em consonncia com a

    literatura discutida, ser a funo dos bancos: a transformao de nveis diferentes de risco e a

    produo e manuteno de contratos financeiros (ou, em sntese, os aspectos financeiros da

    firma bancria), ao lado de consideraes sobre os recursos ou fatores reais (insumos) que

    possibilitam aos bancos produzirem efetivamente. Baltensperger postula que esse derradeiro

    aspecto, o gerencial, negligenciado nos tratamentos tericos.

    O modelo principal apresentado, que serve de padro para todas as variantes e casos

    particulares que o artigo trata, , na linha de anlise ortodoxa, um modelo de anlise parcial de

    gerenciamento de portflio dos bancos. Essa anlise parcial no sentido de que o tamanho total

  • 31

    do portflio da firma bancria dado exogenamente. A principal preocupao do banco alocar

    seus recursos de forma tima entre os tipos de ativos que constituem seu portfolio, mas a sua

    atitude em relao determinao do seu tamanho passiva o banco aceita todos os depsitos

    que o pblico estiver disposto a fazer. Uma variante do modelo avalia a possibilidade de o

    banco ser mais ativo na determinao de como captar depsitos e, portanto, como gerir tambm

    o tamanho de seu portflio.13

    De forma simplificada, o modelo pressupe que o banco possui depsitos () que so

    divididos entre reservas () e em emprstimos () que rendem uma taxa lquida de retorno .

    O banco est sujeito ao risco de retiradas, mas possui um conhecimento a priori das mudanas

    no perfil de seu portfolio num dado horizonte de tempo. Sendo o fluxo de retiradas com

    funo de densidade de probabilidade (), a situao em que as retiradas suplantam o nvel

    de reservas do incio do perodo (isto , quando > ) torna imperioso um ajuste custoso

    para o banco. Esse ajuste dado no modelo como uma proporo fixa do tamanho da

    deficincia das reservas. O problema com que o banco se defronta a escolha tima, no incio

    do perodo, da alocao dos depsitos entre reservas e emprstimos. Como o banco tomador

    de preo ( independente do nvel de emprstimos), tem de arcar com um custo de

    oportunidade de manter reservas, e o custo de ajuste das suas deficincias de caixa (custos

    de liquidez), dado por:

    = ( )()

    Manter uma unidade monetria a mais em reservas implica um custo marginal de

    oportunidade []

    = e um custo marginal de reduo de liquidez14

    = () < 0.

    Na escolha tima, o banco equaliza os seus custos marginais, o que implica que

    = ()

    13 Uma variante do modelo avalia a possibilidade de o banco ser mais ativo na determinao de como captar

    depsitos e, portanto, como gerir tambm o tamanho de seu portflio. Essa alternativa, no entanto, no altera os

    resultados principais. 14 Observe que o modelo pressupe que aumentar reservas implica reduzir liquidez, o que, por si s, uma hiptese

    bastante irrealista. A liquidez, num modelo como este, exgena ao sistema. Como veremos nos captulos 3 e 4,

    e discutiremos de forma mais aprofundada no captulo 7, essa uma caracterstica da perspectiva neoclssica a

    respeito da liquidez de ativos financeiros que no possui correspondncia alguma com a liquidez no mundo real.

  • 32

    Portanto, a escolha tima do banco aquela em que a probabilidade de deficincias de

    reservas iguala a razo entre a taxa de retorno e a proporo do tamanho da deficincia de

    reservas, isto ,

    ()

    =

    Baltensperger observa que, no contexto do seu modelo, no pode ser identificado com

    a taxa de emprstimos total, mas sim lquida de todos os custos (incluindo custos

    administrativos e de informao). Por igual modo, no simplesmente a taxa de desconto

    (por exemplo, de lanar mo do redesconto do banco central a fim de corrigir as deficincias

    de reservas), mas deve levar em conta todos os custos e inconvenientes de corrigir seus nveis

    de reservas, incluindo os custos de transao.

    Um caso particular considerado aquele em que se incorporam requerimentos de

    reservas ao modelo. Nesse caso, ocorre uma reduo no valor crtico de X a partir do qual os

    ajustes na deficincia de reservas devem operar. Na ausncia de requerimentos de reserva, o

    valor crtico de igual ao do nvel de reservas do incio do perodo. Se um requerimento legal

    imposto tal que as reservas ( ) no fim do perodo sejam no mnimo uma proporo

    dos depsitos no fim do perodo ( ), a deficincia de reservas passa a ocorrer quando

    < ( ), tal que >

    1 . Na ocorrncia de uma deficincia de reserva, seu

    tamanho (1 ) ( ) = ( )(1 ). O valor esperado do custo de liquidez

    = [(1 ) + ]()

    O custo marginal, semelhana do caso geral, dado por

    = () < 0

    Efetivamente, a nica modificao que ocorre nesse caso que a probabilidade de

    ocorrncia de uma deficincia dada pela possibilidade de exceder (limite inferior da

    integral definida), ao invs de exceder .

    Finalmente, uma variante importante de citar na anlise de Baltensperger consiste no

    que ele chama de modelos de gerenciamento de passivos (liability management models), nos

    quais se busca preencher a lacuna deixada pela literatura ortodoxa ao outro lado do balano dos

  • 33

    bancos: a gesto dos passivos.15 A estrutura de passivos foi sempre tratada de forma exgena

    na literatura ortodoxa e no sujeita ao tipo de comportamento maximizador do qual gozaria o

    lado dos ativos, sob a justificativa de que dada a passividade dos bancos, eles simplesmente

    aceitariam todo o volume de depsitos que o pblico estiver disposto a fazer taxa de retorno

    dada exogenamente. Baltensperger observa que

    [] its not clear whether a typical bank is really as powerless and passive with respect to the size and structure of its liabilities as this argument has it. A bank has a variety of possibilities to influence the (relative and absolute) attractiveness of various types of liabilities, and thus the publics demand for them, of which explicitly paid interest is but one. This is manifested, e.g., in the fact that banks are often seen to advertise vigorously for their deposit business. (Baltensperger, 1980, p. 10).

    Alm disso, mesmo se o argumento da passividade frente aceitao dos depsitos for

    considerado verdadeiro, Baltensperger argumenta que it would be sensible to ask for the

    volume and structure of liabilities which are optimal and thus desired by the bank at these

    conditions (idem, nfase do autor). Assim, um modelo desenvolvido concentrado em dois

    itens do lado do passivo dos bancos, depsitos homogneos () e capital prprio (equity

    capital, ). O modelo base, nesse caso, um modelo de deciso capital-depsitos.

    Nesse modelo, o capital do banco funciona como uma proteo contra certos tipos de

    incerteza e os custos emergenciais de ajuste ligados a esses eventos. No comeo do perodo o

    banco possui uma estrutura de ativos , que geram uma renda , conhecida aprioristicamente

    de forma probabilstica para o perodo de deciso considerado, com uma funo densidade

    estimada (). O capital do banco dado por = . A funo () dependente do

    volume e estrutura do portfolio de ativos do banco. O banco emite depsitos ,

    comprometendo-se a pagar uma taxa de retorno no final do perodo, tal que sua dvida no final

    do perodo (1 + ). Se no fim do perodo + < (1 + ), o banco est insolvente. A

    condio de insolvncia ocorre, formalmente, quando os rendimentos dos ativos so menores

    que o rendimento lquido da dvida do banco:

    15 A variante estaria, a priori, em linha com o desenvolvimento da Asset Liability Management (ALM), o conjunto

    de tcnicas de administrao de passivos bancrios que se desenvolveu a partir da segunda metade dos anos de

    1960 e ganhou destaque na tecnologia de gesto bancria nos anos de 1970. Ver Gup e Kolari (2005, especialmente

    o quinto captulo). Em particular, estes autores observam que ALM is generally viewed as short run in nature,

    focusing in the day-to-day and week-to-week balance sheet management necessary to achieve near-term financial

    goals. The traditional purpose of ALM has been to control the size of the banks net interest income. This goal is

    associated with the dollar gap. ALM also considers the effects of the change on the value of balance sheet items.

    This goal is associated with duration gap. (Idem, p. 117, nfases dos autores).

  • 34

    + (1 + ) = ( ) + ( ) < 0

    < (1 + )

    A probabilidade de insolvncia positivamente relacionada ao nvel de depsitos () e

    negativamente relacionada ao capital = . A insolvncia um evento desfavorvel que

    a firma bancria procura evitar. Supondo que o custo por unidade monetria de deficincia seja

    dado por uma constante de proporcionalidade dada por , ento o custo esperado de insolvncia

    dado por

    = ( )()

    As firmas incorrem tambm em custos pra evitar a insolvncia, os quais comeam a ser

    incorridos muito antes da insolvncia acontecer, se sua posio de capital cair abaixo de um

    nvel crtico como consequncia de, por exemplo, um mau ano de atividades. Tambm a

    existncia de requerimentos de capital mnimo por imposio regulatria impe custos que os

    bancos enfrentam antes mesmo da ocorrncia de uma posio insolvente. No obstante, S

    definido de forma a cobrir implicitamente todos esses custos.

    A deciso tima do banco em relao sua estrutura de passivos consiste em escolher

    uma alocao frente ao custo de utilizar capital em vez de depsitos, dado um custo de

    oportunidade do capital dado por , sendo > . O custo marginal de oportunidade de aumentar

    o capital , e o retorno marginal dado pela reduo em (o custo de insolvncia)

    dado um aumento no capital,

    = ()()

    = (1 + )()

    Em situao tima, portanto, = .

    Pequenas variaes em certas premissas do modelo no alteram o resultado

    fundamental, qual seja, de que o banco ainda busca uma posio de alocao tima de sua

    carteira, pelo lado do ativo, de forma a igualar seu custo marginal de utilizar ativos como

    proteo ao custo de oportunidade de aumentar sua estrutura de capital. Alm disso, a liquidez

    exgena do modelo permite que a nica preocupao com insolvncia esteja ligada a uma

    alocao tima entre capital e depsitos, mas nenhuma preocupao necessria quanto

  • 35

    capacidade do banco de transformar seus ativos (ou o rendimento deles) em moeda, caso dela

    precise. Os ativos desse banco so lquidos per se.

    1.1.4 - O modelo Diamond-Dybvig: bancos como coadjuvantes

    Modelos de bancos com uso de instrumentos analticos de assimetrias de informao,

    moral hazard e contratos incompletos comearam a ganhar volume na dcada de 1980, na

    tentativa de atribuir aos bancos uma funo no arcabouo terico ortodoxo: as firmas bancrias

    responderiam a falhas de mercado, onde entrariam para fazer intermediao financeira entre

    agentes superavitrios e agentes deficitrios, num ambiente marcado por fortes assimetrias

    informacionais. No entanto, nessa intermediao pura, os bancos enfrentam um problema de

    descasamento de prazos entre seus ativos e passivos: os bancos possuem ativos menos lquidos

    que os passivos, j que os ativos possuem maturao longa, enquanto seus passivos esto

    sujeitos a exigibilidades de curto prazo. Diamond e Dybvig (1983) formalizaram um modelo

    cujo objetivo era explicar primeiramente porque os bancos escolhem emitir depsitos que so

    mais lquidos que seus ativos, e a partir da explicar porque eles esto sujeitos ao fenmeno das

    corridas bancrias.

    Na formulao do modelo de Diamond-Dybvig (modelo D-D, daqui por diante),

    argumenta-se que os bancos possuem a funo de criar liquidez para a economia via emisso

    de depsitos que so mais lquidos que os ativos que o banco detm. Os investidores com

    alguma demanda por liquidez escolhero investir via banco, ao invs de manter ativos

    diretamente. Essa demanda por liquidez dos investidores ocorre porque eles possuem algum

    grau de incerteza a respeito de quando desejaro efetivamente consumir seus recursos, e, assim,

    no tm clareza sobre a extenso de tempo pela qual devero manter seus ativos.16 Ao criar

    depsitos lquidos, os bancos oferecem algo como um arranjo de seguro para os seus clientes.

    Mantendo recursos depositados at a data limite estabelecida em contrato para saque implica

    em recebimento de uma recompensa (um prmio pela espera, ou juros), ao passo que saques

    antecipados implicam uma recuperao de haveres em valor menor que o contratado (um

    desconto). Assim, o que os bancos obtm algo semelhante a um arranjo de seguro pelo qual

    os depositantes dividem o risco de ter que liquidar os ativos de forma antecipada, incorrendo

    16 Note-se que, no modelo, o investidor nada mais que um consumidor, e que o investimento , embora no

    explicitamente definido, qualquer tipo de aquisio de ativos como forma de poupana para consumo em uma data

    posterior.

  • 36

    em perdas. Portanto, para o modelo D-D, os bancos possuem como funo primordial produzir

    liquidez via emisso de depsitos.

    Revisitando o modelo, Diamond (2007), define um ativo como ilquido quando sua

    liquidao fsica ou venda em uma determinada data resultam em valor de face menor que o

    valor presente do pagamento contratado por esse ativo numa data futura. Em particular, The

    lower the fraction of the present value of the future cash flow that can be obtained today, the

    less liquid is the asset (Diamond, 2007, p. 190). A segunda funo dos bancos executar o

    monitoramento dos devedores.

    O modelo consiste de trs perodos de tempo ( = 0, 1, 2), e um bem homogneo (r)

    que gera um rendimento > unidades do produto no perodo 2 para cada unidade de insumo

    investida no perodo 0. Se a produo interrompida no perodo = 1, o valor resgatado

    exatamente o investimento inicial. Os consumidores/investidores fazem frente, no perodo =

    1, a uma escolha entre dois vetores de resultados: obter (0, ) no perodo = 2 (ou seja, 0 de

    resgate no perodo 1, e > no perodo = 2), ou (, 0) se interromper o processo em =

    1. As hipteses de fundo so que os retornos escala so constantes e a tecnologia de produo

    tal que os investimentos de capital de longo prazo so irreversveis.

    No perodo = 0 todos os consumidores so idnticos, mas a natureza revelar, em

    = 1, consumidores do tipo 1 (que consumiro no perodo = 1), e consumidores tipo 2 (que

    mantero investidos seus recursos para consumo somente em = 2). Os agentes so

    inicialmente dotados de uma unidade do bem homogneo em = 0 (eles recebem uma

    unidade em = 1 e mais nenhuma outra nos outros dois perodos). Cada consumidor, do ponto

    de vista do banco, apresenta o risco de ser tipo 1 ou tipo 2, e no pode constituir seguro contra

    esse risco. Para o banco, cada consumidor no informa se de um tipo ou de outro, portanto,

    ao bloquear seguro contra ser de um tipo ou de outro, o banco se protege da possibilidade de

    que os consumidores informem ser de um tipo e revelem ser de outro.17 Por desconhecer sua

    prpria natureza em = 1, cada agente possui probabilidade de ser do tipo 1, e (1 ) de

    ser do tipo 2. No h incerteza modelo, e na economia como um todo haver uma frao fixa

    (0,1) de investidores tipo 1 (e seu complementar como investidores tipo 2). Investidores

    tipo 1 possuem uma funo utilidade (1) em = 1 e (2) em = 2, com funes utilidades

    17Esse o problema de conduta do agente que o principal quer solucionar: como essa informao privada,

    e, portanto, no observvel, existiria um incentivo para o agente informar ser de um tipo e agir como se fosse do

    outro. No entanto, pode-se desenhar contratos que provisionem indiretamente seguro contra essa revelao: os

    consumidores tipo 2 so premiados com um retorno sobre o investimento, e os do tipo 1 so punidos por sacarem

    antes.

  • 37

    iguais para ambos,18 diferenciando-se somente a data em que cada um desejar consumir. Um

    investidor com ativos (, ), com a possibilidade de escolher utilizar em = 1 ou > em

    = 2, consome 1 = se for do tipo 1, com probabilidade , ou 2 = se for do tipo 2, com

    probabilidade (1 ). A utilidade esperada do investidor dada por:

    [()] = (1) + (1 )(2)

    Em condies normais, os investidores escolhero liquidar seus ativos quando o

    consumo presente for mais altamente valorizado por eles do que o consumo futuro (a utilidade

    marginal derivada do consumo mais elevada). Alm disso, a demanda por liquidez ser tanto

    maior quanto maior for a averso ao risco do investidor. Uma alternativa motivao para que

    os investidores demandem maior liquidez vem do fato de que alguns podem ser

    empreendedores que podem necessitar de funding para um projeto de alto retorno no perodo

    = 1, e que no pode ser financiado por outro modo. O papel dos bancos num modelo co