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Reforma do Estado

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A reforma do Estado no período FHC e as propostas do Governo Lula

1. O contexto neoliberal 34

2. A reordenação estratégica do Estado como suporte do mercado globalizado 37

3. A consolidação do Estado como suporte à competitividade: o marco legal, a privatização e as agências de regulação 39

4. As agências reguladoras 46

5. A administração gerencial do Estado 50

6. Perspectivas: continuidade ou mudança? 55

Referências 59

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A reforma do Estado no período FHC e as propostas

do Governo LulaVicente de Paula Faleiros

Assistente Social, Doutor em Sociologia, professor da Universidade Católica de Brasília, pesquisador da UnB,

consultor e autor de livros de política social

O objetivo deste capítulo é o de contextualizar, nas relações de mundialização capitalista, a reforma do Estado brasileiro nos dois mandatos do Governo Fernando Henrique Cardoso (1995-1998 e 1999-2002), considerando três olhares1 nessa “reordenação estratégica do Estado”: o primeiro se refere ao contexto neoliberal, o segundo à transformação do estado desenvolvimentista em estado de susten-tação da competividade (incluindo a estabilização econômica), e o terceiro diz respeito à reforma do aparelho do Estado. Não menos importante é a mudança do papel do Estado na garantia da proteção social, como foi feito na Reforma da Previdência (Emenda Cons-titucional número 20), mas não foi possível abordar essa reforma devido à limitação desse texto2.

1 Vejo a pesquisa como um desvelamento e um velamento através de grades de referência para dar conta da realidade como totalidade na expressão multilateral de suas dimensões (FALEIROS, 2001)2 Pode-se consultar a Revista Ser Social, n. 11, da Pós-Graduação em Políticas Sociais da UnB, e o livro Previdência Social em questão, da Editora da UnB, onde temos um artigo sobre essa temática

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Essas dimensões, embora presentes em várias das análises das reformas, não têm sido apresentadas de forma assim articulada3. Finalmente enumeramos, sem pretender uma análise mais profunda, as perspectivas do Governo Lula, empossado em primeiro de janeiro de 2003. As pesquisas que levaram a este trabalho fazem parte de um projeto apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

1. O contexto neoliberal

No Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado - PDRE (1995, p. 51), este é definido como:

“a organização burocrática que possui o poder de legislar e tributar sobre a população de um determinado território, sendo, portanto, a única estrutura organizacional que possui o ‘poder extroverso’, ou seja, o poder de constituir unilateral-mente obrigações para terceiros, com extravasamento dos seus próprios limites”.

Trata-se de uma “descrição” (o estado é identificado como burocracia com exercício da violência) e não de uma definição de Estado, pois sequer considera suas relações com a sociedade e o mercado, com o sistema político e, portanto, com a correlação de forças, permeada de hegemonia e contra-hegemonia (FALEIROS, 2000). Por Estado ampliado, seguindo Gramsci, entendemos a profunda interação entre Estado e sociedade, ou seja, a superestrutura jurídico-política, articulada e em inter-relação com a sociedade. Essa superestrutura é a própria sociedade e o mercado, na sua correlação de forças, organizados em Estado4.

Como assinala Coutinho (1985, p. 59), “a esfera política ‘restrita’ que era própria dos estados elitistas - tanto autoritários como liberais- cede progressivamente lugar a uma nova esfera pública ‘ampliada’, caracterizada pelo protagonismo político de amplas e crescentes organizações de massa”. Hoje, no entanto, essa ampliação vem sendo restringida, na correlação de forças do capitalismo mundializado, pois, apesar da democracia, o domínio do capital vem se acentuando na determinação das ações dos Estados nacionais, permeando-os de maneira muito forte.

4 Diz Gramsci: “Outra afirmação de Marx é que uma convicção popular tem a cada passo a mesma energia que uma força material, ou algo parecido; é uma afirmação muito significativa. Creio que a análise dessa afirmação reforça o conceito de ‘bloco histórico’, no qual as forças materiais são o conteúdo e as ideolo-gias, a forma” (GRAMSCI, 1978, p.85)

3 DINIZ, Eli (1998) considera importan-te não se reduzir a análise das reformas às dicotomias Estado/mercado, centralização/descentralização, fatores exógenos/ endógenos, burocracia/ política ou mesmo autoritarismo/democracia, ou Estado soberano/Estado subor-dinado, o que não será feito nesse trabalho..

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As reformas, nesse contexto, são processos complexos que envolvem uma interação de atores, como salienta Sidicaro (2000, p.11):

“es evidente que la novedad no radica en la existencia de países con limitada independencia de decisiones en virtud de factores internacionales que no controlan. Lo verdaderamente distinto que trajo la actual situación de globaliazación reside en el hecho de que en todos los estados-nación los gobiernos cuentan con menos posibilidades de implementar políticas eficaces contrarias a los intereses de actores privados poderosos que operan internacionalmente”.

Apesar dessas limitações, o fundamental, na nossa análise, é a interação entre política e economia e, nesse sentido, as decisões que são tomadas na perspectiva histórica das transições vividas pelo Estado–nação frente a seu enfraquecimento. Para isso, usamos a expressão “reordenação estratégica”, por estar presente na própria legislação brasileira e por se situar na guerra mundial dos mercados e na disputa por competitividade e pelos recursos econômicos e políticos do Estado e do próprio mercado. Petras (1999, p.31), nessa mesma linha, enfatiza que não se pode entender o capital numa lógica linear, devendo-se visualizar a relação entre o papel da política, da ideologia e das políticas do Estado na fixação dos parâmetros e das condições para a acumulação do capital, ao mesmo tempo assinalando o papel do Estado nas economias nacionais e no processo de globalização.

Ajuste e desmonte são dois focos marcantes na análise das reformas (Borón (1994); Soares (2000); Petras (1999); Fiori (2001), com destaque para a “lógica do capital” 5 ou para o “desmonte da nação”, nesse caso significando piora das condições de vida (LEBAUSPIN e MINEIRO, 2002). Para Soares (2000), o neoliberalismo produziu um “novo estado” sob o poder das grandes empresas que ditam as regras, passando-se da minimização do Estado a sua reconstrução para um novo papel no desenvolvimento. Há consenso de que a mudança do papel do Estado na economia se articula ao processo de mundialização do capital, tornando os Estados nacionais menos soberanos e com políticas e propostas bastante semelhantes entre si.

5 Para Borón, (1994, p. 200)

“a acumulação capitalista se estatificou”.

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De fato, a abertura comercial e aos investimentos estrangeiros, a privatização, a terceirização, a implementação de parcerias com organismos da sociedade, a desregulamentação e a desresponsabilização do Estado fazem parte de um pacote de ações que foram sendo implementadas como padrão pelo Fundo Monetário Internacional, como bem assinala Stiglitz (2002, p. 16), ex-vice-presidente sênior do Banco Mundial:

“as decisões eram tomadas com base no que parecia ser uma curiosa mistura de ideologia e má economia, dogma que, às vezes, mal encobria interesses específicos. Quando as crises assomavam, o FMI prescrevia soluções antiquadas, inadequadas, muito embora fossem ‘padrão’ (sic!), sem considerar os efeitos que elas teriam sobre as populações dos países orientados a seguir tais políticas”.

Padronizadas, desastrosas para população e antidemocráticas, essas políticas serviam de encobrimento ou ocultação de grandes interesses em jogo, os quais Stiglitz denomina de “interesses específicos”, principalmente os da potência hegemônica mundial, os Estados Unidos da América. Ou seja: ou o Estado se reduz e se reestrutura, ou se reduz sem reestruturar-se, ou se reestrutura sem reduzir-se (se resistir), mas num processo ou padrão de acumulação em que se articula a lógica do capital às relações de força implicadas na mundialização e no contexto nacional.

Disse o próprio FHC (1996, p. 42): “A globalização também tem contribuído para alterar o papel do Estado: a ênfase da ação governa-mental está agora dirigida para a criação e a sustentação de condições estruturais de competitividade em escala global”, defendendo, pois, que o Estado seja o suporte das condições do mercado globalizado. Esse novo papel de sustentação da competividade em nível global é o que passa a ser exercido pelo Estado no Governo Cardoso, em substituição ao de promotor do desenvolvimento interno.

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2. A reordenação estratégica do Estado como suporte do mercado globalizado

A reforma do Estado no Brasil está, pois, articulada às transformações do capitalismo mundial. Às vezes, enfatiza-se a figura de FHC como apenas “decorativa” Fiori (1997, p.105), o que lhe tiraria, de certa forma, responsabilidades. Nossa hipótese, como já assinalamos, é a de que as reformas do Estado no Governo Cardoso se inscrevem na articulação do processo de mundialização com a mediação dos interesses da elite econômico-financeira brasileira e do poder do próprio Estado.

Em seu discurso de posse, em primeiro de janeiro de 1995, o presidente Fernando Henrique Cardoso prometia estabilidade, crescimento, geração de empregos, políticas sociais e ainda “fazer da solidariedade a mola mestra de um grande mutirão nacional, unindo o governo e a comunidade para varrer do mapa do Brasil a fome e a miséria”, assinalando que o Brasil não era um país subdesenvolvido, mas um país injusto. Esse discurso agradava aos ouvidos do público interno que nele votou acreditando na estabilização da moeda pelo “Plano Real”, conduzido por FHC em 1994, depois de um longo período de alta inflação.

Para Delfim Netto (1998, p. 92), ex-ministro da Economia do governo militar, o Plano Real, no entanto, “foi uma coisa meio mística”6, pois a população aceitou o congelamento dos salários pela média e, ao mesmo tempo, a liberação dos preços, expressos na nova moeda, a Unidade Referencial de Valor - URV, ainda com a sobrevalorização do câmbio. Para Delfim Netto (1998, p. 97), a armadilha desse plano foi a estagnação do crescimento, a queda das exportações e “a dissipação em juros do que antes era investimento”.

Assim, o discurso de posse já foi feito na contramão da reforma da moeda do então Ministro da Fazenda, FHC. Esta reforma trouxe menos perdas inflacionárias, mas não diminuiu a desigualdade social7, embora tenha havido retração da percentagem de pobres de 44% para 33% em 1995. A renda do trabalho, segundo o IBGE, caiu de 40% em 1994 para 36% em 1998, enquanto a renda do capital subiu de 38% para 44%8.

6 As relações sociais estão permeadas pelo imaginário, como bem assinala Karl Marx, ao falar do “misticismo da

mercadoria”.

7 No governo FHC, o Índice de Gini (utiliza

uma escala de 0 a 1, em que o máximo

de igualdade na distri-buição da renda é igual a zero e a desigualdade

corresponde a um) se manteve acima

de 0,56.

8 Para esses e outros dados, como melhoria

nos indicadores de saúde e educação, ver

FALEIROS e PRANKE (Coords), 2001

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No Governo FHC, constata-se um aumento nos gastos sociais da ordem de 19,3%, em valores constantes, entre 1994 e 2001, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea (CASTRO et al., 2003). Esse aumento, de 21,2% no primeiro mandato, se deveu à grande incorporação de trabalhadores rurais na Previdência Social9. A dívida pública, por sua vez, incrementou-se de 30% do PIB em 1995 para 63,9% do PIB em 2002, sendo o crescimento do PIB dos mais pífios nos últimos anos, com média de 1,88% entre 1995 e 2002.

A estabilização econômica criou as pré-condições para um ciclo de garantia de um processo de acumulação capitalista com base no atrelamento do valor do Real ao dólar e no arrocho dos salários para dar confiança ao capital internacional.

A segunda onda de reformas muda o papel do Estado, de pilar do desenvolvimento interno10 para o de suporte da competividade internacional. Fernando Henrique Cardoso11 (1996 – p. 42) se posicionou contrariamente à era desenvolvimentista, declarando que:

“a missão do Estado de direcionar o desenvolvimento (steering capacity) passa a ser muito mais importante do que a tentativa comprovadamente ineficaz (sic!) de substituir a iniciativa privada na produção de bens e de serviços que não têm natureza essencialmente pública”.

Para FHC, o combate à exclusão passa pela competividade, mesmo após dizer que a globalização acentua a desigualdade. Ele propôs deliberadamente diminuir o papel do Estado na economia para transformá-lo em agente do mercado internacional, na lógica “market oriented”. O Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado - PDRE (1995, p.14) rejeita a idéia de um “Estado mínimo”, mas não a orientação de “simplesmente dar ao mercado mais espaço”, pois “um mercado forte precisa de um Estado forte” 12. A competividade, e não a solidariedade assinalada no discurso de posse, foi erigida em valor central do Governo, na lógica de tornar o Estado o suporte do capital internacional.

9 A Previdência Social é responsável por 45% dos gastos sociais federais.

10 Como no processo de substituição de importa-ções, exercido desde a primeira guerra mundial até o início dos anos 80.

11 O próprio FHC (1996, p. 31) afirma que “ intimamente vinculada à globalização econômica é a mudança no papel do Estado. A globalização significa que as variáveis externas passam a ter influência acrescida nas agendas domésticas, reduzindo o espaço dis-ponível para as escolhas nacionais”

12 Segundo Bresser Pereira, que foi ministro da Reforma do Estado no Governo Cardoso, em palestra no Seminário de Gestão do Ministério do Planejamento, realizado em 6 de agosto de 2002

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Foi, no entanto, no Governo Collor (1990-1992) que se colocou em marcha a internacionalização competitiva do país, com a quebra das barreiras comerciais e com o primeiro leilão de privatização da Usiminas, o que foi considerado por Bresser como “uma agenda correta” Rodrigues (2000, p.152), que foi viabilizada, no Governo FHC, através da aliança entre o Partido da Social Democracia Brasileira - PSDB, o Partido da Frente Liberal – PFL, o Partido do Movimento Democrático Brasileiro – PMDB - e vários partidos de direita, tendo então, a oposição do Partido dos Trabalhadores - PT.

3. A consolidação do Estado como suporte à competitividade: o marco legal, a privatização e as agências de regulação

A consolidação legal da abertura de barreiras ao capital se efetivou no marco legal, com a mudança de vários artigos da Constituição13. Já em 1995 foi aprovada a Emenda Constitucional número 05, que modificou o parágrafo 2º do artigo 25 da Constituição, abolindo a exclusividade dos Estados em explorar diretamente, ou mediante concessão, o gás canalizado, abrindo-se espaço para a concorrência e a privatização. A Emenda nº 06 revogou o artigo 171 da Consti-tuição, que se referia à empresa brasileira, e também modificou o artigo 170, que dava tratamento favorecido às empresas de pequeno porte, mantendo-se, para elas, o tratamento favorecido. Eliminou-se o conceito de empresa brasileira. A mudança do artigo 176 também abriu a pesquisa e a lavra de recursos naturais a empresas estran-geiras, desde que fosse constituída sob as leis brasileiras. O artigo anterior restringia esse setor à empresa brasileira de capital nacio-nal. A Emenda nº 07 abriu o transporte aéreo, aquático e terrestre à empresa estrangeira, devendo-se, contudo, observar os acordos firmados pela União. Também ficou aberta às empresas estrangeiras a cabotagem, a navegação interior, de acordo com a Lei, pois isso era privativo de embarcações nacionais.

13 A Constituição de 1988 previu uma revisão que

deveria ser efetuada após 5 anos de sua

promulgação, conforme previsto no Ato das

Disposições Constitu-cionais Transitórias, em seu artigo 3°, pelo voto

da maioria absoluta dos membros do Congresso

Nacional, em sessão unicameral. Embora

tenha havido facilidades para reduzir o quorum

e também tenham sido preparadas várias pro-postas de revisão, com pareceres elaborados,

sistematizados em três volumes de “Relatoria da Revisão Constitucional”, publicados pelo Senado

Federal, poucas matérias foram votadas, em fun-ção da crise provocada

pelo impeachment do presidente Collor e das

disputas pelo poder.

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A Emenda Constitucional nº 08, das mais polêmicas, veio desnacionalizar as telecomunicações, tornando o setor acessível à exploração privada e estrangeira, rompendo-se o monopólio estatal previsto no artigo 21 da Constituição de 1988. Assim também ocorreu com os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens. Na redação anterior, estava previsto o controle acionário estatal dos serviços telefônicos, telegráficos de transmissão de dados e demais serviços públicos de telecomunicações. Na votação dessa Emenda, houve grande mobilização da sociedade para impedir a transferência de um monopólio estatal a monopólios ou oligopólios privados.

Finalmente, nessa fase de reforma do marco constitucional, a Emenda nº 09 aboliu o monopólio da exploração de petróleo, que era afeto à Petrobrás, facultando à União o contrato com empresas estatais ou privadas; a realização de atividades referentes à pesquisa e à lavra de jazidas de petróleo e gás natural; a refinação; a importação e a exportação de produtos e derivados; e o transporte marítimo, que continuam sendo monopólios da União, mas eram restritos à empresa estatal. Continuaram monopólio da União a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados. Também continuou prevista em lei a estrutura de um órgão regulador do monopólio da União.

No primeiro ano de Governo FHC foi realizada a reordenação estratégica do Estado no marco legal constitucional, abrindo-se espaço para o capital estrangeiro e as empresas privadas nos setores economicamente cruciais das telecomunicações, do petróleo, da navegação e cabotagem, da canalização do gás e da própria definição de empresa, terminando-se com o conceito de empresa brasileira, implicando um fortalecimento do mercado, na preparação do terreno para as privatizações, combinadas com a desnacionalização. Não foi o Brasil que passou a competir mundialmente, mas o capital mundial é que veio assumir monopólios do Estado pois, de fato, transferiram-se monopólios estatais a empresas privadas, embora com salvaguardas, realizando-se um dos maiores negócios do mundo em matéria de privatização, no século XX.

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O Programa Nacional de Desestatização -PND, em 1990, já fôra objeto da Lei 8.031/90. Em 1997, a Lei 9.491 mudou a lei anterior e definiu os objetivos do PND como: reordenar a posição estratégica do Estado na economia, transferindo à iniciativa privada atividades indevidamente exploradas pelo setor público; contribuir para a reestruturação econômica do setor público, especialmente através da melhoria do perfil e da redução da dívida pública líquida;14 permitir a retomada de investimentos nas empresas e atividades que vierem a ser transferidas à iniciativa privada; contribuir para a reestruturação econômica do setor privado, especialmente para a modernização da infra-estrutura e do parque industrial do país, ampliando sua competitividade e reforçando a capacidade empresarial nos diversos setores da economia, inclusive através da concessão de crédito;15 permitir que a Administração Pública concentre seus esforços nas atividades em que a presença do Estado seja fundamental para a consecução das prioridades nacionais; contribuir para o fortalecimento do mercado de capitais, através do acréscimo da oferta de valores mobiliários e da democratização da propriedade do capital das empresas que integrarem o programa.

A privatização efetivou a transferência do patrimônio estatal para empresas privadas, do público para o mercado e atingiu o coração do Estado, ou seja, o provimento de serviços coletivos pelo Poder Público passou para mãos privadas, a maioria para o patrimônio das multinacionais. Essas empresas siderúrgicas e mineradoras, geradoras de energia elétrica, além de prestadoras de serviços, estradas e agências distribuidoras de água, energia e telefone, foram o carro-chefe do desenvolvimento da era Vargas, da era Kubitschek e da era da ditadura militar, contribuindo para a infra-estrutura do próprio capitalismo nacional. Com a reforma, tornaram-se suporte do desenvolvimento do capitalismo internacional.

Apesar de suporte capitalista, as empresas estatais se orientavam também por critérios de demanda social, com decisões tomadas no país. Com a privatização, a lucratividade veio a ser o critério central dos investimentos.

14 Em 1990, esse objetivo estava definido como

contribuir para a redução da dívida pública, concor-rendo para o saneamento

das finanças do setor público.

15 Em 1990, esse objetivo estava definido como

contribuir para a moder-nização do parque indus-

trial do país, ampliando sua competitividade e

reforçando a capacidade empresarial nos diversos

setores da economia.

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Tanto as decisões estratégicas como o controle da gestão dessas empresas passaram a ser tomados fora do território nacional, provocando-se ainda o envio massivo de dividendos. O conceito e a implementação da soberania nacional, enquanto capacidade do Estado em definir seu próprio destino de acordo com os interesses de seus cidadãos e através do processo de representação por estes estabelecido, foi posto em segundo plano.

Aumentou-se a vulnerabilidade do país às turbulências dos mercados internacionais, como aconteceu em 1998 e 2002 com as crises do câmbio, sem que se tivessem condições de resolubilidade interna dessas crises, devendo-se recorrer, então, ao Fundo Monetário Internacional. A dívida líquida do setor público aumentou de R$ 208 bilhões em 1995 para R$ 563 bilhões em 2000, e para cerca de R$ 800 bilhões em 2002. A dívida externa subiu de US$ 159 bilhões para US$ 231 bilhões no período de 1995 a 2000. Em 2002, os juros já absorviam 8% do PIB e o passivo externo chegou a US$ 400 bilhões, com déficit operacional de 5% do PIB. A desestatização foi realizada também com a transferência de créditos para que as empresas financiassem a compra dos ativos nacionais.

Em 1997, a desestatização incluiu também as empresas de economia mista, a transferência de ações do governo na Petrobrás, assim como empresas controladas pelos estados e municípios. A desestatização pôde ser feita por meio de leilão, o que não estava previsto em 1990.

Em 1997, a coordenação do processo por uma Comissão Diretora indicada pelo Congresso Nacional foi substituída por outra, subordinada diretamente ao presidente da República, tornando-se a venda menos transparente e democrática, apesar de se prever o conhecimento público da privatização, com dados das empresas. A alienação de ações a pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras passou a atingir 100% do capital votante, “salvo disposição legal ou manifestação expressa do Poder Executivo”, sendo que, em 1990, não podia exceder a 40% do capital votante, salvo autorização legislativa. A Lei de 1997 deu maior flexibilidade de uso de várias moedas na venda das estatais e na destinação dos recursos.

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Como pequena contrapartida, trouxe a obrigação de oferecer 10% das ações aos empregados, para inserir os trabalhadores na lógica da propriedade. Às vésperas da eleição de 1998, a nova Lei parecia contemplar o objetivo de acelerar os investimentos estrangeiros, tornando a conjuntura mais favorável à reeleição de FHC.

A mudança na Lei de Concessões também fez parte do processo de reordenação estratégica do Estado. A Lei 8.987, de 13/2/95, de Concessões do Serviço Público, permitiu a delegação da prestação de serviços feita pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência, a pessoa jurídica ou consórcios de empresas que demonstrem capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco e por prazo determinado, independente de ser nacional ou não. A legislação deixou flexibilidade para a fixação de tarifas nos contratos do Estado com as empresas, o que veio a ser negociado com reajuste pelo maior índice de inflação ou atrelado ao dólar. A fiscalização do público não foi estabelecida em lei, dependendo do regulamento.

Se no Governo Collor e Itamar já haviam sido privatizados os setores siderúrgico, petroquímico e de fertilizantes, no Governo Cardoso foi privatizado o filé-mignon da economia: os setores de mineração, de telecomunicações e de energia. Carvalho (2001) assinala três fases no processo de privatização: a primeira, dos anos 80, esteve marcada por reprivatizações de empresas que já haviam pertencido ao setor privado e foram absorvidas pelo Estado, implicando 38 empresas de médio e pequeno portes, gerando uma receita de US$ 726 milhões. A segunda fase iniciou-se com o Plano Nacional de Desestatização - PND - e o Fundo Nacional de Desestatização, de 1990 a 1994, com privatização prioritária do setor siderúrgico, incluindo também petroquímica e fertilizantes. Na terceira fase, inaugurada por Cardoso a partir de 1995, com a aprovação da Lei de Concessões, destacam-se os setores de telecomunicações, energia elétrica e transportes, substituindo-se os monopólios públicos por empresas privadas. Em 1996, os estados são incluídos no processo de privatização dos Programas Estaduais de Desestatização - PEDs.

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A “maior eficiência”, defendida no PND, se efetivou em mais lu-cratividade com a demissão de empregados, conforme Pinheiro (1996): “com a privatização, ocorre uma melhoria (sic!) bastante significativa, em termos estatísticos e econômicos, do desempenho das empresas”, pois a média de empregados do conjunto de 16 empresas privatizadas na década de 80 era de 1,64 e passou para 1,21 depois da privatização, enquanto que na década de 90 a média era de 1,65 para 28 empresas e passou para 0,8516.

Do ponto de vista da redução da dívida e do déficit públicos, Carvalho (2001) considera que as privatizações foram benéficas, pois além da eficiência tiveram papel importante na redução do endividamento do país, apesar de todos os procedimentos para sanear as empresas pré-privatização e do uso de moedas podres na privatização. Ele considera a privatização do Sistema Telebrás, em 1998, o fato mais importante desse programa. Carvalho (2001 – p.70) diz que, no período de 1995 a 1999, a privatização “proporcionou uma redução de 8,4% do PIB na dívida líquida do setor público no período, ao abater o saldo de diversas dívidas, ao transferir dívidas para o setor privado e ao reduzir o déficit nominal pelo menor pagamento de juros nominais”.

Mas a dívida continuou subindo, pois em 1994 representava 28,6% do PIB; em 1998, 43,4%; e em 2002, 60%. Além disso, o pagamento de dividendos tem aumentado significativamente, já que as empresas privatizadas ficaram na mão de estrangeiros, num processo de desnacionalização, o que não confirma ser a privatização tão benéfica. No período de 1991 a 2002, houve a entrada contábil de US$ 105.298 milhões, o que não significa um cash de igual valor para o Governo, pois devem ser consideradas as moedas podres, os financiamentos, o deságio (vide gráfico 1).

A participação do investidor estrangeiro nas privatizações, em milhões de dólares, no período 1991/2002, foi de 48,3%, sendo 16,5% dos Estados Unidos (12,8% nas telecomunicações) e 14,9% da Espanha, (dos quais 17,5% nas telecomunicações), segundo dados do BNDES.

16 As mudanças nas tarifações telefônicas fizeram os custos das chamadas locais aumen-tarem significativamente (80% só em 1995) e com redução das tarifas internacionais.

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A desnacionalização se manifestou também em relação ao capital financeiro, pois a posição dos bancos estrangeiros no mercado nacional passou de 21% dos ativos para 27%. Os bancos públicos diminuíram a parte de seus ativos em operações de crédito de 48% da oferta do setor para 38%. Os bancos com controle estrangeiro aumentaram a sua participação de 8,4% para 23,9%17 no conjunto das operações. Até 1999, a receita das privatizações do setor financeiro foi de US$ 1.240 bilhão (Andima, 2001), mas, em contrapartida, o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro” - Proer18 - liberou recursos da ordem de R$ 21 bilhões. Foi considerado pela própria Associação Nacional das Instituições de Mercado Aberto - Andima como um programa de “facilidades”, por dar assistência financeira, liberação de recursos do recolhimento compulsório ao Banco Central, flexibilização do atendimento dos limites operacionais e deferimento dos gastos relativos aos custos, despesas e outros encargos. O setor bancário ficou mais concentrado, passando as três principais instituições bancárias do país a controlar 41,53% dos ativos.

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17 Bancos múltiplos e comerciais. Os priva-dos nacionais incluem

aqueles com participação estrangeira. Os públicos

incluem as Caixas Econô-micas e o Banco do Brasil

e excluem o BNDES.

18 Resolução 2.208, de 03/11/95.

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Como se pode observar, a Reforma do Estado no Governo Cardoso estruturou-se de acordo com os interesses internacionais e nacionais, tanto das elites como do bloco no poder. Segundo Biondi (1999), houve um “arrombamento” do BNDES pelas multinacionais, decorrente da política de submissão do país às pressões internacionais. Além disso, houve também um “arrombamento” do consumidor pelas altas tarifas pagas. O aumento de tarifas de energia elétrica para o consumidor residencial, a partir de 1995 até 2002, foi de 174,17%19, sendo que o IPCA acumulado no período foi de 101%. Para implementar essa “reordenação estratégica”, o governo adotou o modelo das agências reguladoras, visando substituir o Estado desenvolvimentista por agências com poder de normatizar, fiscalizar, autorizar e outorgar serviços.

4. As agências reguladoras

De 1996 a 2001, o Governo Federal criou nove agências reguladoras, como autarquias especiais, algumas correspondentes aos setores privatizados e outras estruturadas a partir de órgãos governamentais já existentes. A Anvisa, a ANA, a Antaq e a ANTT foram criadas a partir de órgãos já existentes no âmbito do Estado. Nas legislações respectivas, aparece como missão das mesmas a defesa da competitividade. A presença do consumidor se limita a um processo consultivo, ao acesso à ouvidoria, à presença em audiências públicas, quando previsto. As tarifas devem ser pagas pelo consumidor final. Os dirigentes das agências são nomeados pelo presidente da República após aprovação pelo Senado. Por sua vez, as agências devem seguir também as políticas e diretrizes dos respectivos Conselhos Nacionais da área, normatizar e fiscalizar o respectivo setor, com exigências de controle de qualidade sobre os produtos.

19 Ver Folha de São Paulo de 17/02/03.

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TABELA 1AGÊNCIAS REGULADORAS: LEIS, DISPOSITIVOS DE DEFESA DO CONSUMIDOR E SETOR DE INTERVENÇÃO

Aneel - Agência Nacional de Energia Elétrica Anatel - Agência Nacional de Telecomunicações

Lei 9.427, de 26/12/96 Lei 9.472, de 16/07/97

Ouvidoria Sim Ouvidoria Sim

Cons. Consultivo Sim Cons. Consultivo Sim

Aud. públicas Sim, quando afetar direitos Aud. públicas Sim

Intervenção econômica

e política

Reestrutura o setor elétrico após a privatização. Segue políticas e diretrizes do Governo Federal e as diretrizes do Conselho Nacional de Recursos Hídricos.

Intervenção econômica

e política

• Desconstrói o monopólio estatal das telecomunicações, sendo o serviço telefônico fixo de regime público.• Criação do Fundo de Telecomunicações – Fistel

Anvisa - Agência Nacional de Vigilância Sanitária

Lei 9.782, de 29/01/99

Ouvidoria Sim

Cons. Consultivo Sim

Aud. públicas Sim

Intervenção econômica

e política

• Coordena e implementa a Política Nacional de Vigilância Sanitária em atuação conjunta com os estados e municípios no Sistema Nacional de Vigilância Sanitária.• Monitora preços e autoriza a produção, concessão e proibição de produtos. • Tem Contrato de Gestão com o Ministério da Saúde.

ANP - Agência Nacional de Petróleo

Lei 9.478, de 06/08/97

Ouvidoria Não * (existe direito de acesso a atas de reuniões)

Cons. Consultivo Não

Aud. públicas Sim

Intervenção econômica

e política

• Reestrutura o setor de petróleo após o fim do monopólio. • Implementa a Política Nacional de Petróleo e Gás Natural. • Tem o poder concedente das áreas, e de fiscalização, respeitando o Conselho Nacional de Políticas Energéticas. • Os direitos de exploração e produção de petróleo e gás natural pertencem à União.

* A Ouvidoria está prevista na Lei de recursos humanos das agências- Lei 9986/00

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ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar ANA - Agência Nacional de Águas

Lei 9.984, de 17/02/00Lei 9.961, de 28/01/00

Ouvidoria Sim Ouvidoria Não*

Cons. Consultivo Câmaras Técnicas e de Saúde Suplementar

Cons. Consultivo Comitês de Bacia Hidrográfica, com representantes dos usuários.

Aud. públicas Não Aud. públicas Não

Intervenção econômica

e política

• Normatização, controle e fiscalização das atividades de saúde suplementar com implementação da Política do Conselho Nacional de Saúde Suplementar - Consu.

Intervenção econômica

e política

• Execução da Política Nacional de Recursos Hídricos e Defesa do Meio Ambiente. • Cobrança pelo uso de recursos hídricos de Contrato de Gestão com o Ministério do Meio Ambiente.

* A Ouvidoria está prevista na Lei de recursos humanos das agências- Lei 9986/00

ANTT - Agência Nacional de Transportes Terrestres

ANTAQ - Agência Nacional de Transportes Aquaviários

Lei 10.233, de 05/06/01

Ouvidoria Sim. Atas disponíveis para conhecimento geral.

Cons. Consultivo Não

Aud. públicas Não

Intervenção econômica

e política

• Implementa políticas do Conselho Nacional de Integração de Políticas de Transporte - Conit - em atuação conjunta com estados e municípios.• Fiscaliza cláusulas contratuais e controla os concessionários e permissionários.• Atua com contratos de concessão e permissão.

Ancine - Agência Nacional de Cinema

MP 2.219, de 04/09/01

Ouvidoria Sim

Cons. Consultivo Não

Aud. públicas Não

Intervenção econômica

e política

Fiscaliza a atividade cinematográfica e videográfica e segue as diretrizes do Conselho Nacional de Cinema, onde o presidente da Ancine é secretário-executivo.

Fonte: FALEIROS, Vicente de Paula. Reforma do Estado e agências reguladoras: relatório de pesquisa para o CNPq. Brasília, 2003

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As agências reguladoras da saúde se diferenciam daquelas referentes aos setores econômicos de petróleo, energia e comunicações pois, para Nogueira (2002 – p. 102), “não existe, na área de saúde, um interesse público decorrente de uma exclusividade ou de uma situação de monopólio por parte do estado”, no sentido de que a Constituição (art. 199) permite a atividade privada no setor de saúde.

Essas autarquias especiais representariam o “novo Estado”, um novo desenho institucional em que os agentes econômicos privados seriam regulados. Na sua consideração pelas agências, o cidadão não é reconhecido como um sujeito de direitos, com titularidades e garantias, mas como um consumidor. Para exercer algum direito, precisa pagar pelo serviço ou sofrer uma intercorrência da agência. Pode reclamar, mas nem sequer influi nos preços que paga, nem mesmo por aumento ou diminuição do consumo (mercado). Agências e empresas negociam preços entre si, algumas abrindo consultas ao público pela internet. Embora exista um programa de metas a ser cumprido pelas empresas reguladas, em função da expansão e da qualidade dos serviços, a elas não tem interessado atender os mais pobres20. A legislação manteve, no coração das agências, o contrato livre com as empresas, que por terem se tornado oligopólicas podem impor condições às agências segundo seus interesses.

O poder normativo desses organismos como autarquias especiais é objeto de grande polêmica jurídica, pois afastaria a atividade regulatória das formas tradicionais de representação política (SILVA, 2002 e CUÉLLAR, 2001). Aragão (2002) considera que houve, com essa regulação, uma revisão de paradigmas do direito administrativo e da própria teoria geral do direito como subdeterminação normativa, instrumentalidade, flexibilidade, setorialização, individualização e consensualização do Direito Público.

O reordenamento estratégico do Estado estabeleceu um novo marco legal e jurídico para esse suporte à competitividade. O chefe do Poder Executivo não tem ingerência direta nas agências sem o poder de exonerar seus dirigentes ad nutum. O Poder Legislativo se vê confrontado com outro poder normativo, mas pode interferir na criação, manutenção, extinção de agências e na elaboração de políticas para as áreas, assim como em certos mecanismos de controle das mesmas, como as audiências públicas.

20 Apesar de a Anatel incluir no regulamento o acesso da telefonia

à população pobre, as operadoras não “estão

interessadas nisso”, em razão da inadimplência.

A prioridade das operado-ras é atender as empre-

sas. (Folha de São Paulo, 11/08/02. Caderno B, p.8)

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Melo (2000) assinala que as agências podem estar ligadas a um déficit de legitimidade porque transferem poder a agentes não eleitos. Edson Nunes (2001) afirma que o regime regulatório cria um novo poder entre os poderes, com uma delegação legislativa com contornos e mandato imprecisos. Por outro ângulo, Boschi e Lima (2002) consideram que a criação de agências externas ao aparelho do Executivo expressa a erosão do corporativismo estatal como forma predominante de intermediação e representação de interesses. Para os autores, Boschi e Lima (2002, p.196), na prática, continua a persistir esse legado corporativo. Na pesquisa feita por eles, as audiências públicas envolvendo a Anatel, a ANEEL e a ANP, nas Comissões Permanentes do Senado, foram de apenas 11 entre 1999 e 2002.

A seguir, de forma sucinta, vamos abordar outra dimensão da Reforma do Estado, não menos importante, que é a Reforma do Aparelho do Estado, que também se articula ao “reordenamento estratégico” do Estado, e se destina a derrubar a forma burocrática de gestão e substituí-la por um modelo gerencial.

5. A administração gerencial do Estado

Na ótica do Governo Cardoso era preciso que o Estado não somente sustentasse a competividade, mas também se reestruturasse, visando implementar “uma administração pública gerencial que deveria se orientar pela eficiência e qualidade dos serviços”. Isso pressupunha uma ruptura com a administração burocrática anterior e que fosse resposta ao novo papel proveniente “da globalização da economia e do desenvolvimento tecnológico, para reduzir custos e melhor atender o cidadão “como contribuinte e como cliente”.

O PDRE (BRASIL. Ministério da Administração, 1995, p. 21) considera a Constituição de 1988 “um retrocesso burocrático sem precedentes”, propondo abolir a estabilidade do servidor, reduzir gastos (principal-mente com os chamados inativos), avaliar o desempenho e eliminar a cultura burocrática. Em agosto de 2002, Bresser Pereira afirmava:

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“A Reforma do Aparelho do Estado voltada para a gestão e busca de resultados, inclusive com indicadores, metas e avaliação de desempenho, é um processo de mudanças da instrumentalidade da ação do Estado, dos meios, da governança, no manejo ou gerenciamento de seus recursos econômicos e sociais, na busca da eficiência”.

É preciso notar que Bresser, também ex-diretor dos Supermercados Pão de Açúcar, usa a mesma estratégia das chamadas reestruturações produtivas do capitalismo, onde é fundamental a obediência dos funcionários à consecução de um projeto, elaborado pela cúpula dirigente e especificado com o menor custo possível, mas com satisfa-ção do cliente. Busca-se fazer do Aparelho de Estado uma “garantia da propriedade e dos contratos”, sendo seu papel “complementar ao mercado” (BRASIL. Ministério da Administração. Op. cit. p.55). Essa complementaridade ao mercado se efetivaria “na coordenação da economia”, e paradoxalmente, na “redução das desigualdades”, como se o mercado pudesse contribuir para mais igualdade. O Estado deixa, assim, de ser fundamental, pois o fundamento é mesmo o mercado. Cabe-lhe apenas um papel complementar.

O desenho dessa reforma se baseou na divisão das atividades do Estado em: 1) exclusivas, compreendendo a regulamentação, a fiscalização, a cobrança, a repressão e a atenção a certos serviços básicos como “compra de serviços de saúde” e “subsídio à educação básica”; 2) serviços não exclusivos, correspondentes a atividades concorrenciais entre o privado e o estatal, onde estão envolvidos alguns direitos e atividades não lucrativas como hospitais, universidades, centro de pesquisa e museus; e 3) setor de produção de bens e serviços para o mercado, correspondente à atuação das empresas lucrativas que não deveriam estar nas mãos do Estado, que as assume, apenas, porque faltou capital ao setor privado para realizá-las ou porque são naturalmente monopolistas.

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O marco legal da mudança foi a Emenda Constitucional da Reforma Administrativa. Pode-se agregar a ela a Lei Complementar nº 101, de 04/05/2000, denominada de Lei da Responsabilidade Fiscal21, e várias leis e medidas provisórias que disciplinam as carreiras do Estado. A Emenda nº 19, que tratou da Reforma Administrativa, alterou o sistema público de demissões, contratação e avaliação de desempenho22. Em conseqüência, reduziu-se o número de servidores do Executivo de 567.689 em 1995 para 459.821 em 2002 (agosto). Se forem incluídas as estatais, a redução foi de 1.140.711 para 785.955. Os gastos com pessoal da União ficaram em 3,15% do PIB em 2001, muito próximo à média desses mesmos gastos entre 1988/94, que foi de 3,17% do PIB. Os gastos com inativos estão incluídos.

De acordo com a valorização das “atividades exclusivas” (repressão, fiscalização, arrecadação, diplomacia), o Governo aumentou as gratificações de desempenho dos setores de informações, polícia, tributação, fiscalização, auditoria, advocacia, defensoria e procuradoria23. Aos docentes do ensino superior foi concedida uma gratificação de produtividade após duras greves. Segundo dados do Governo, o aumento de servidores na área de fiscalização, entre 1998 e 2002, foi de 94%, enquanto que a grande maioria, no Plano de Cargos e Carreiras – PCC (67,7% dos servidores), esse número diminuiu de 14% (BRASIL. Ministério da Administração. 0p.cit. p. 21). Os salários finais das carreiras dos auditores aumentaram, em média, 156,25% de 1995 a 2002. Os salários dos delegados, censores e escrivãos da Polícia Federal cresceram 610,3%, em média, enquanto os cargos do PCC tiveram um reajuste médio de 70,6%. Foi também criado o Sistema Integrado de Recursos Humanos - Siape, que faz o gerenciamento de cada pagamento, com obrigatoriedade de recadastramentos.

Embora previsto na própria Constituição, o controle social da gestão não foi valorizado nem impulsionado, ficando os conselhos paritários nacionais com atuações fracas ou mesmo não deliberativas, como o mostra o estudo do Ipea sobre os Conselhos de Saúde, de Assistência Social, de Previdência e do Fundo de Amparo ao Trabalhador - FAT.

21 A Lei de Responsabi-lidade Fiscal, ao limitar gastos e responsabilizar o gestor público, aumentou a confiança do capital internacional no país e contribuiu para o controle dos gastos públicos, exi-gência do FMI.

22 Ver: Santos, 1997 e 2000, e Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, 2002

23 Ver em especial as Leis 9.953/00 e 10.033/00 (Ministério Público da União); 9.962/00 (Regime de Emprego Público); 10.355/01 (INSS); 10.356/01 (TCU); 10.410/02 (Meio Ambien-te); 10.480/02 (AGU); 10.483/02 (Seguridade Social) e várias medidas provisórias em 2002, que dispõem sobre outras carreiras.

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Diz o estudo do Ipea (SATO et al., 2003, p. 124): “os embates, ora explícitos, ora velados, entre a adminis-tração governamental e os conselhos, são recorrentes. A burocracia estatal, sobretudo no segundo governo de FHC, assume uma posição restritiva apoiada na defesa de metas de superávit fiscal, o que compromete a capacidade de formulação de políticas via conselhos”.

Segundo documento do Seminário Avaliação (Brasil. Ministério do Planejamento, 2002), a reforma consistiu numa modernização gerencial com a introdução de contratos de gestão orientados por resultados, a criação do regime de trabalho de emprego público e de funções comissionadas técnicas e do governo eletrônico. Esta modernização do Poder Executivo Federal contou com empréstimo do Banco Interamericano de Desenvolvimento - BID, tentando aliar, segundo seus propositores, qualidade e desburocratização.

No segundo mandato do governo Cardoso, introduziu-se a “gestão por programas” através do “Avança Brasil”, mas o próprio balanço feito pelo referido Ministério é de que há desníveis e diferenças quanto à implementação desta reforma gerencial. Firmaram contratos de gestão apenas os Ministérios de Ciência e Tecnologia; Meio Ambiente; Desenvolvimento, Indústria e Comércio; e Secretaria de Comunicação do Governo. Destaca o documento que as carreiras de Estado melhoraram a capacidade de ação, mas apenas o Ministério da Defesa reduziu seus custos em logística, sendo apontado como modelo. Nessa avaliação não se faz menção a qualquer melhoria no atendimento ao cidadão, mesmo contribuinte-cliente. A ênfase avaliativa é na redução de custos, alvo central da Reforma para se equacionar a crise fiscal, eixo do acordo do Brasil com o Fundo Monetário Internacional para saldar juros e dívidas.

A Emenda nº 17, de 199724, repôs o Fundo Social de Emergência, que se transformou na Desvinculação dos Recursos da União - DRU, que vem drenando recursos, inclusive da Seguridade Social, para financiar o pagamento dos juros. A Emenda nº 29 vinculou receitas da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira - CPMF - à saúde nos âmbitos federal, estadual e municipal.

24 A criação do Fundo So-cial de Emergência fora

feita na Revisão Consti-tucional (Emenda nº 1 da Revisão), o que propiciou

ao Estado desvincular parte do orçamento para

fins de “saneamento financeiro da Fazenda

Pública e de estabilização econômica”, o que veio mascarado sob o nome

de “social” e “emergên-cia”. A Emenda nº 27, de

2000, desvinculou, de 2000 a 2003, 20% da

arrecadação de impostos e contribuições sociais

da União para, evidente-mente, contribuir com o pagamento de juros da

dívida. Esta desvincula-ção não afetou as bases

das transferências aos municípios.

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Estabeleceu uma progressividade na destinação de recursos para essa área, numa clara manobra para apoiar o então ministro da Saúde, José Serra, na disputa pela Presidência da República. O então mi-nistro defendeu claramente essa vinculação, com o argumento de que a saúde deveria estar imune às crises de orçamento25. A Emen-da nº 12, que instituiu a CPMF, no valor de 0,25%, aumentou as receitas significativamente, chegando a arrecadação a 36% do PIB em 2002. Mas diminuiu-se a margem de liberdade do Governo em usar esse dinheiro com a meta de um superávit primário de 3,75% do PIB no acordo com o FMI. A Emenda nº 21, de 1999, autorizou a prorrogação da CPMF por 36 meses.

A Reforma do Estado no Governo FHC articulou medidas legislativas, mudança regulatória e ações governamentais para uma reordenação estratégica do papel do Estado, que passou de impulsionador do desenvolvimento para o de impulsionador da competividade do capital internacional. Para tanto, transferiu patrimônio público para o mercado, mudou a relação do Estado com o mercado e a sociedade, considerando o Estado como complementar ao mercado, e instaurou um novo modelo de gestão pública gerencial.

O cidadão sujeito de direitos passou a contribuinte-cliente, com pouca voz e nenhum voto nas agências reguladoras, e pouco poder nos Conselhos. A defesa de competividade foi o eixo do discurso oficial e da legislação aprovada. Não houve, entretanto, mais concorrência no país26, fortalecendo-se o capital multinacional, que veio a ter suporte no Brasil para suas transações em nível mundial. O contribuinte, entretanto, pagou as contas do aumento de tarifas, do racionamento de energia em 2001, da falta de qualidade de muitos serviços. Não se tornou sequer cidadão-cliente nas muitas reclamações diferidas e na falta de acesso e qualidade dos serviços públicos como educação e saúde. A promessa de se combater a miséria não se realizou. Tampouco se implementou a governança participativa (Calame, p.59) através do uso da lei como direito.

25 Ver SERRA, José. Ampliando o possível: a política de saúde no Brasil. São Paulo: HUCI-TEC, 2000.

26 Mário Covas, candida-to do PSDB à Presidência da República, em 1989, articulou sua campanha em torno do lema: “pre-cisamos de um choque de capitalismo”.

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Francisco de Oliveira (1999, p.78) considera que as reformas ab-dicaram da moeda nacional, privatizaram o patrimônio público, impuseram pagamentos escandalosos da dívida externa, obrigaram a cortes orçamentários, reduziram as políticas sociais e que “é a isso que o Estado, reformado desta maneira, estará condenado: a ser algoz de seu próprio povo”. O Estado viu solapada sua soberania, mas não foi um títere das multinacionais, e, na aliança PFL/PSDB, viveu as contradições de impulsionador da mundialização e mantenedor dos “caciquismos” regionais, no processo de compensações políticas de interesses subnacionais, tudo resultando na erosão da defesa e da efetivação do bem público (exceto repressão, arrecadação, fiscalização e diplomacia) como eixo central de sua ação, por sua substituição pelo eixo do privado e do mercado.

6. Perspectivas: continuidade ou mudança?

A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, em outubro de 2002, colocou em questão a possibilidade27 de se romper com esse modelo de Estado semi-soberano, complementar ao mercado, internacionalizado e mantenedor de um cidadão-consumidor ou cliente, através de agências reguladoras e de serviços terceirizados. Os setores mais conscientes do Partido dos Trabalhadores esperavam, ao menos, a articulação de projetos que não viessem repor, como farsa, um Estado ao mesmo tempo intervencionista, burocrático e clientelista nos moldes do passado, e sim um Estado comprometido com a cidadania universal e a democracia.

O que tem sido sinalizado e realizado pelo Governo Lula é a continuidade essencial do modelo de Estado implementado no governo anterior, inclusive com um novo acordo com o Fundo Monetário Internacional, que aumentou o superávit primário de 3,75% do PIB para 4,25%, acarretando cortes substanciais nos gastos públicos, inclusive na área social.

27 A bandeira política da campanha de Lula

era: “a esperança ven-ceu o medo”.

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Além disso, o Governo Lula, em articulação com os governadores, implementou uma reforma da Previdência Social do servidor público que onerou em 11% os proventos dos atuais aposentados que recebem acima de R$ 1.440 mil, e limitou a aposentadoria dos futuros servidores a R$ 2.400 mil, favorecendo os fundos de previdência privada (Faleiros, 2003). Conseguiu, por outro lado, fixar em R$ 17.100 mil o teto para as aposentadorias atuais.

A Reforma Tributária, em tramitação no Senado e já votada na Câmara Federal, não virá mudar substancialmente a distribuição de renda no país, continuando a drenar recursos da Seguridade Social para pagamento de juros da dívida através da Desvinculação dos Recursos da União - DRU. A renda do trabalhador ficou 15% menor em novembro de 2003, em comparação ao mesmo período de 2002, e o desemprego se mantém elevado. Por outro lado, a bolsa de valores teve um aumento significativo, os juros são sagradamente pagos e a inflação foi contida apesar das empresas e dos bancos terem aumentado seus lucros. A justificativa para essa continuidade tem sido a da manutenção da credibilidade econômica do país.

Na política externa, o Governo tem manifestado resistências à Alca rígida defendida pelos Estados Unidos e às normas mais duras da Organização Mundial do Comércio - OMC, como em Cancun/2003. Nesse sentido, o Governo vem buscando construir um projeto de menos regras gerais e de mais acesso aos mercados, para obter algumas vantagens comerciais, questionando e dialogando com a potência hegemônica, como estratégia de redução das desigualdades externas para uma investida na redução das desigualdades internas. A Alca, por sua vez, vem sendo criticada e colocada em cheque por vários movimentos sociais como um neocolonialismo. Há, no entanto, os que consideram o governo na mesma rota neoliberal que o anterior, assinalando que o fundamental tem sido a política continuísta28 em relação a FHC.

28 Ver, por exemplo, o resultado do CONAD/ ANDES, de 31/10/2003. Informe Andes, Brasília, n. 122, nov. 2003. Andes: Sindicato Nacional dos Docentes das Institui-ções de Ensino Superior.

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Existe, entretanto, no interior do governo, a combinação de uma política monetarista com iniciativas de caráter socioassistencial e de defesa formal dos direitos do cidadão. Na perspectiva monetarista hegemônica, com forte redução dos gastos, pretende-se reduzir a distância entre ricos e pobres com a transferência de renda dos aposentados para os mais pobres29. A Reforma da Previdência seguiu essa orientação do Banco Mundial30, que não questiona a desigualdade entre capital e trabalho, que tenderá a se manter no atual governo.

A implementação do Programa Bolsa-família (Medida Provisória 132 de 20/10/2003) agrega os programas Fome Zero (Lei 10.689/2003), Bolsa-escola (Lei 10.219/2001), Auxílio-gás (Decreto 4.102/2002) e Bolsa-alimentação (Medida Provisória 2.206-1/2001), no sentido de assegurar um alívio à pobreza31, com cadastro geral dos pobres (Decreto3.877/2001), sem, contudo, criar uma nova agenda nas políticas sociais. O programa Fome Zero tinha se proposto a aglutinar esforços das várias esferas de governo para integrar projetos locais de alfabetização, renda familiar e melhorias nas condições de vida com a distribuição de um cartão-alimentação de R$50,00 por família. Esses esforços esbarraram nos limites orçamentários32 e nos interesses políticos. Embora esteja previsto o controle social do programa, ainda falta maior participação da população na sua implementação e sua articulação com uma política de direitos da cidadania.

O Governo Lula colocou em debate uma nova regulamentação para as agências reguladoras. A proposta não rompe com o modelo de regulação já implementado, mas ampliam-se as obrigações de audiências públicas, a participação dos interessados em suas decisões, a obrigação de transparência. E se propõe uma melhor articulação entre as agências e as políticas governamentais. O contrato de gestão deve ser submetido ao Conselho de Política Setorial da respectiva área, para compatibilizá-lo com as políticas públicas e os programas governamentais, possibilitando maior controle do Poder Executivo sobre as decisões das agências. Prevê-se a existência de ouvidoria em todas as agências, sendo o ouvidor nomeado pelo presidente da República, aumentando seu poder para receber, apurar e solucionar as reclamações dos usuários, seja contra a atuação da agência reguladora, seja contra atuação dos entes regulados.

29 Ver BRASIL Ministério da Fazenda. Gastos social do governo central: 2001

e 2002. Disponível em:. <www.fazenda.gov.br>.

Acesso em: nov. 2003.

30 Banco Mundial Informe sobre el desarrollo mun-

dial 2001/2002:. lucha contra la pobreza..

31 A bolsa prevê um auxí-lio de R$ 50,00 (em torno de US$ 17,00) para famí-lias com renda per capita

de até R$50,00, até um máximo de R$ 95,00,

dependendo do número de filhos na escola, sendo

R$15,00 por criança. Em outubro de 2003, havia 1 bilhão e 200 milhões

de famílias inscritas.

32 Até novembro de 2003 o Fome Zero havia gasto

R$ 288 milhões de um total de 1,8 bilhão

previsto.

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As agências devem zelar pela concorrência, mostrando os atos de con-centração das empresas. Também se propõe maior integração entre as agências e os órgãos de regulação estaduais e do Distrito Federal.

Existem pressões norte-americanas e das multinacionais para que as modificações no modelo regulatório não venham prejudicar ou impedir os investimentos capitalistas, o que faz estabelecer uma relação entre o modelo de regulação e a implementação da Alca. O Relatório do Grupo de Trabalho Interministerial33 (BRASIL. Casa Civil, 2003, p. 4) sobre as mudanças nas agências reguladoras questiona a independência das agências, sua eficácia na defesa da concorrência e dos consumidores e conclui que

“não obstante a clara necessidade de aprimoramentos do quadro atual, o modelo de agências é essencial para o bom funcionamento da maior parte dos setores encarregados da provisão de serviços públicos, com reflexos positivos no resto da economia”.

O relatório conclui ainda que “o governo é responsável por criar um ambiente que favoreça os investimentos públicos e privados em infra-estrutura, e que a presença das agências reguladoras é indispensável para o sucesso dos investimentos privados que são centrais para suprir o déficit de investimentos em infra-estrutura no Brasil”. (BRASIL. Casa Civil. Op. cit. p. 5).

Para isso, deve haver incentivo do governo para diminuição dos custos de capital nesses setores e as agências não devem ser res-ponsáveis pela formulação de política setoriais, mas por promover a concorrência, sendo que

“o papel do governo não é eliminar os riscos para o inves-tidor – mas sim evitar que se criem riscos desnecessários, que excedam os riscos próprios do negócio; e que estes riscos sejam conhecidos ex-ante, não se vendo alterados por caprichos do regulador”. (BRASIL. Casa Civil. Op. cit. p. 8).

33 BRASIL. Presidência da República. Disponível em: <www.presidencia.gov.br>. Acesso em: set. 2003.

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O papel do Estado proposto no Governo Lula é o de proteger os investimentos capitalistas, mas atendendo melhor aos programas governamentais e ao interesse público, com o desafio de que o Estado possa vir a ter maior peso em relação ao mercado, propondo-se que o Estado não seja apenas uma apêndice do mercado. Esta proposta se ajusta à correlação de forças em que o próprio governo se situa: dentro do capitalismo com uma inflexão para as demandas de maior transparência e controle público, assim como de favorecimento de algumas metas junto aos mais pobres, na tentativa de harmonizar os interesses do capital e de socorro aos pobres na garantia da paz social e do poder político34 para tranqüilidade dos investimentos.

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34 Os articuladores polí-ticos do Governo estão

costurando alianças (PT-PMDB-PL-PTB-

PSB-PP) para as eleições municipais de 2004 com garantia de sustentação

do bloco parlamentar no Congresso Nacional.

Na oposição ficam o PFL e o PSDB ainda com

alguns votos favoráveis ao Governo.

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