reestruturação regulatória transportes

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  • 8/7/2019 reestruturao regulatria transportes

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    ALEXANDRE DE VILA GOMIDE

    APOLTICADASREFORMASINSTITUCIONAIS

    NOBRASIL:

    A Reestruturao do Setor de Transportes

    Tese apresentada Escola de Administraode Empresas de So Paulo da Fundao

    Getulio Vargas como requisito parcial paraobteno de ttulo de Doutor emAdministrao Pblica e Governo.

    Linha de Pesquisa: Transformaes doEstado e Polticas Pblicas.

    Orientadora: Profa. Dra. Maria Rita Loureiro.

    SO PAULO

    FUNDAO GETULIO VARGAS

    2011

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    Gomide, Alexandre de vila.A Poltica das Reformas Institucionais no Brasil: a reestruturao do setor de

    transportes / Alexandre de vila Gomide. - 2011.178 f.

    Orientador: Maria Rita Garcia LoureiroTese (doutorado) - Escola de Administrao de Empresas de So Paulo.

    1. Reforma administrativa -- Brasil. 2. Infraestrutura (Economia). 3.Telecomunicaes -- Brasil. 4. Transportes -- Brasil. 5. Transportes Brasil Legislao. I. Loureiro, Maria Rita Garcia. II. Tese (doutorado) - Escola deAdministrao de Empresas de So Paulo. III. Ttulo.

    CDU 656(81)

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    ALEXANDRE DE VILA GOMIDE

    APOLTICADASREFORMASINSTITUCIONAISNO

    BRASIL:

    A Reestruturao do Setor de Transportes

    Tese apresentada Escola de Administraode Empresas de So Paulo da FundaoGetulio Vargas como requisito parcial para

    obteno de ttulo de Doutor emAdministrao Pblica e Governo.

    Linha de Pesquisa: Transformaes do Estadoe Polticas Pblicas

    Aprovada em 23 de fevereiro de 2011

    BANCAEXAMINADORA

    Profa. Dra. Maria Rita Loureiro - EAESP/FGV

    Prof. Dr. Fernando Luiz Abrucio EAESP/FGV

    Profa. Dra. Regina Silvia Pacheco EAESP/FGV

    Prof. Dr. Rmulo Dante Orrico Filho UFRJ

    Prof. Dr. Valeriano Mendes Ferreira da Costa UNICAMP

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    Para Larissa, Isadora e Rebeca.

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    AGRADECIMENTOS

    Professora Maria Rita Loureiro, pela orientao desta pesquisa e o convvio

    acadmico enriquecedor.

    Aos colegas Fbio Pereira dos Santos e Paula Pedroti, pelos grupos de estudos, a troca

    de ideias e a amizade compartilhada.

    Professora Ruth Berins Collier, por receber-me como pesquisador visitante no

    departamento de Cincia Poltica da Universidade da Califrnia, em Berkeley, bem

    como aos Professores Alison E. Post e Steven K. Vogel, pelos valiosos comentrios

    minha proposta de tese.

    Aos entrevistados, pelo tempo e gentileza de fornecer-me seus depoimentos.

    Ao Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (IPEA), pela licena concedida para o

    meu curso de doutoramento.

    Ao programa GVpesquisa, pela bolsa de estudos (modalidade taxa escolar).

    Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES), pela bolsa

    para o meu estgio de doutorando no exterior.

    Seo de Documentos Legislativos do Centro de Documentao e Informao da

    Cmara dos Deputados, especialmente, ao Sr. Irismar de Mattos, por disponibilizar-me os arquivos necessrios para a realizao da pesquisa documental.

    A todos aqueles que, direta ou indiretamente, contriburam para a realizao deste

    trabalho.

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    "Le fait scientifique est conquis, construit, constat".

    G. Bachelard

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    RESUMO

    A pesquisa tem por objetivo explicar o processo poltico que resultou na configurao

    institucional do setor federal de transportes consubstanciado na Lei 10.233, de 2001,que reestruturou os transportes aquavirio e terrestre, criou duas agnciasreguladoras autnomas vinculadas ao Ministrio dos Transportes e um conselho parapropor polticas nacionais de integrao dos diferentes modos de transporte, alm doDepartamento Nacional de Infraestrutura de Transportes. Utilizando-se a abordagemterica do institucionalismo histrico da Cincia Poltica contempornea e o mtodode comparao controlada com um caso contrastante, a saber, a reestruturaoinstitucional do setor de telecomunicaes, a anlise mostra como a sequncia doprocesso de reforma e a atuao do mecanismo de policy feedback delinearam umtipo de mudana institucional no setor de transportes caracterizado pela introduode novas regras e organizaes sobre as existentes, diferentemente da mudana no

    setor de telecomunicaes, no qual foram removidas as antigas regras e organizaes,substituindo-as por novas.

    Palavras-chave: Setor de Transportes. Lei 10.233/2001. Setor de Telecomunicaes.Mecanismo de Policy feedback. Institucionalismo Histrico.

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    ABSTRACT

    This research aims to explain the political process that resulted in the current

    institutional arrangement of the federal transportation sector in Brazil. The FederalLaw 10233, of 2001, restructured water and land transportation; it created twoautonomous regulatory agencies, a council to propose national policies to integratethe different modes of transport, and the National Department of TransportInfrastructure. Using the theoretical approach of historical institutionalism fromcontemporary Political Science and the method of controlled comparison betweentwo contrasting cases, namely the cases of the telecommunication and transportationinstitutional reforms, the analysis concludes that the temporal ordering of the reformprocess and the mechanism of policy feedback had a significant impact on theoutcomes of the transportation case, delineating a pattern of institutional changecharacterized by the introduction of new rules and organizations on top of existing

    ones, whereas in the telecommunication sector the institutional change was typifiedby the removal of existing rules and organizations and the introduction of new ones.

    Key words: Transportation sector. Federal Law 10233/2001. Telecommunicationsector. Policy feedback. Historical institutionalism.

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    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    ABINEE Associao Brasileira da Indstria Eltrica e Eletrnica

    ABRATI Associao Brasileira das Empresas de Transporte Rodovirio

    Intermunicipal, Interestadual e Internacional de Passageiros

    ABTP Associao Brasileira dos Terminais Porturios

    ANAC Agncia Nacional de Aviao Civil

    ANATEL Agncia Nacional de Telecomunicaes

    ANEEL Agncia Nacional de Energia Eltrica

    ANP Agncia Nacional de Petrleo

    ANPET Associao Nacional de Pesquisa e Ensino em Transportes

    ANT Agncia Nacional de TransportesANTAQ Agncia Nacional de Transportes Aquavirios

    ANTF Associao Nacional dos Transportadores Ferrovirios

    ANTT Agncia Nacional de Transportes Terrestres

    ANUST Associao Nacional dos Usurios de Telecomunicaes

    AP Administrao Porturia

    BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social

    BRADESCO Banco Brasileiro de DescontosCAP Conselho de Autoridade Porturia

    CAPES Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior

    CBA Cdigo Brasileiro de Aeronutica

    CBT Cdigo Brasileiro de Telecomunicaes

    CBTU Companhia Brasileira de Trens Urbanos

    CDFMM Conselho Diretor do Fundo da Marinha Mercante

    CESP Comisso Especial

    CETERP Centrais Telefnicas de Ribeiro Preto

    CF Constituio Federal

    cf. Confronte

    CMM Comisso de Marinha Mercante

    CNI Confederao Nacional da Indstria

    COFER Comisso Federal de Transportes Ferrovirios

    CONIT Conselho Nacional de Integrao de Polticas de Transporte

    CONTEL Conselho Nacional de Telecomunicaes

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    CONTTMAF Confederao Nacional dos Trabalhadores em Transportes

    Aquavirio e Areo, na Pesca e nos Portos

    COSIPA Companhia Siderrgica Paulista

    CPqD Centro de Pesquisa e Desenvolvimento da Telebrs

    CRT Companhia Rio-grandense de Telecomunicaes

    CSN Companhia Siderrgica Nacional

    CTBC TELECOM Companhia de Telefones do Brasil Central

    CUT Central nica dos Trabalhadores

    DAC Departamento de Aviao Civil

    DENTEL Departamento Nacional de Telecomunicaes

    DER Departamento de Estradas de Rodagem

    DNEF Departamento Nacional das Estradas de FerroDNER Departamento Nacional de Estradas de Rodagem

    DNIT Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes

    DPC Diretoria de Portos e Costas

    DTF Departamento de Transporte Ferrovirios

    DTR Departamento de Transporte Rodovirio

    EBTU Empresa Brasileira de Transportes Urbanos

    EC Emenda Constitucionale.g. Exempli gratia

    EM Exposio de Motivos

    EMBRAER Empresa Brasileira de Aeronutica S/A.

    EMBRATEL Empresa Brasileira de Telecomunicaes

    ENGEFER Engenharia e Comrcio de Ferragens Armadas

    EUA Estados Unidos da Amrica

    FAB Fora Area Brasileira

    FAEF Federao das Associaes dos Engenheiros Ferrovirios

    FEBRABAN Federao Brasileira dos Bancos

    FENAFAP Federao Nacional das Associaes dos Ferrovirios

    Aposentados e Pensionistas

    FENATTEL Federao Nacional dos Trabalhadores em Empresas de

    Telecomunicaes

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    FENCCOVIB Federao Nacional dos Conferentes e Consertadores de Carga e

    Descarga, Vigias Porturios, Trabalhadores de Bloco,

    Arrumadores e Amarradores de Navios nas Atividades Porturias

    FENOP Federao Nacional dos Operadores Porturios

    FEPASA Ferrovias Paulistas S.A.

    FHC Fernando Henrique Cardoso

    FIESP Federao das Indstrias de So Paulo

    FISTEL Fundo de Fiscalizao das Telecomunicaes

    FITTEL Federao Interestadual dos Trabalhadores em

    Telecomunicaes

    FMI Fundo Monetrio Internacional

    FMM Fundo de Marinha MercanteFNT Fundo Nacional de Telecomunicaes

    FRN Fundo Rodovirio Nacional

    GEIPOT Empresa Brasileira de Planejamento de Transportes

    IBDT Instituto Brasileiro de Desenvolvimento das Telecomunicaes

    IBM International Business Machines

    ICMS Imposto sobre Circulao de Mercadorias e Servios

    i.e. Isto INFRAERO Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroporturia

    IPEA Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada

    ISTR Imposto sobre Servio de Transporte Rodovirio

    IUCL Imposto nico sobre Combustveis e Lubrificantes

    LGT Lei Geral de Telecomunicaes

    MARE Ministrio da Administrao e Reforma do Estado

    MBR Mineraes Brasileiras Reunidas

    MC Ministrio das Comunicaes

    NI No identificado

    NTC Associao Nacional das Empresas de Transportes Rodovirios

    de Cargas

    OCDE Organizao para Cooperao e Desenvolvimento Econmico

    OGMO rgo de Gesto de Mo de obra do Trabalho Porturio

    OGU Oramento Geral da Unio

    OIT Organizao Internacional do Trabalho

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    P&D Pesquisa & Desenvolvimento

    PCdoB Partido Comunista do Brasil

    PDS Partido Democrtico Social

    PDT Partido Democrtico Trabalhista

    PEC Proposta de Emenda Constitucional

    PFL Partido da Frente Liberal

    PIB Produto Interno Bruto

    PL Projeto de Lei

    PMDB Partido do Movimento Democrtico Brasileiro

    PND Programa Nacional de Desestatizao

    PORTOBRS Portos do Brasil S.A.

    PP Partido ProgressistaPROCROFE Programa de Concesses de Rodovias Federais

    PRO-REG Programa de Fortalecimento da Capacidade Institucional para

    Gesto em Regulao

    PSB Partido Socialista Brasileiro

    PT Partido dos Trabalhadores

    PTB Partido Trabalhista Brasileiro

    RFFSA Rede Ferroviria Nacional S.A.RNTRC Registro Nacional de Transportadores Rodovirios de Carga

    SERCOMTEL Servio Municipal de Telecomunicaes de Londrina

    SINDMAR Sindicato Nacional dos Oficiais da Marinha Mercante

    SINTTEL Sindicato dos Trabalhadores em Telecomunicaes

    SUNAMAM Superintendncia Nacional de Marinha Mercante

    SYNDARMA Sindicato Nacional das Empresas de Navegao Martima

    t0 Tempozero

    t1 Tempo um

    TCU Tribunal de Contas da Unio

    TELEBRS Telecomunicaes Brasileiras S.A.

    TRU Taxa Rodoviria nica

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    LISTA DE ILUSTRAES

    Figura

    FIGURA 1 Estrutura organizacional do setor federal de transportes,segundo a Lei 10.233/2001 ...................................................................... 142

    Quadros

    QUADRO 1 Origens contextuais e institucionais da mudanainstitucional .............................................................................................. 35

    QUADRO 2 Composio societria dos novos concessionriosferrovirios privados, por malha (1999) ..................................................

    86QUADRO 3 Concessionrias da 1 etapa do PROCROFE ......................... 92

    QUADRO 4 Sinopse: a desestatizao no setor federal de transportes nadcada de 1990 (at a criao das agncias reguladoras, em 2001) ........ 111

    QUADRO 5 Comisso especial do PL-1.615/1999: membros titulares ..... 120

    QUADRO 6 Expositores nas audincias pblicas da CESP do PL-1.615/1999 ................................................................................................. 122

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    SUMRIO

    1 REFORMAS REGULATRIAS E VARIAES SETORIAIS ..................................... 161.1 Contextualizao, reviso da literatura e demarcao da abordagem .................... 161.2 Abordagem terica ................................................................................................... 271.2.1 O institucionalismo histrico e a mudana institucional ..................................... 271.2.2 Polticas pblicas como instituies ..................................................................... 351.3 Objetivos e metodologia .......................................................................................... 371.3.1 Preliminares metodolgicos ................................................................................. 371.3.2 Delimitao do problema de anlise e dos objetos de estudo............................. 401.3.3 Estratgia de pesquisa ......................................................................................... 421.4 Especificao das variveis ..................................................................................... 441.4.1 A varivel dependente .......................................................................................... 44

    1.4.2 Hiptese de trabalho ........................................................................................... 461.5 Apresentao dos captulos ..................................................................................... 47

    2 O CASO CONTROLE: A REESTRUTURAO DO SETOR DETELECOMUNICAES.............................................................................................. 49

    2.1 Abordagem inicial ................................................................................................... 492.2 As atuais instituies regulatrias das telecomunicaes ..................................... 492.3 O regime preexistente ............................................................................................. 542.4 As tentativas de reforma anteriores a 1995 ............................................................ 562.5 O processo de reforma ............................................................................................. 59

    2.5.1 O ambiente macroeconmico e os avanos tecnolgicos .................................... 602.5.2 Atores e interesses ............................................................................................... 622.5.3 A quebra do monoplio pblico ........................................................................... 652.5.4 A liberalizao da telefonia celular ...................................................................... 672.5.5 A aprovao da LGT ............................................................................................ 692.5.6 A instalao da ANATEL e a privatizao do sistema TELEBRS ..................... 722.6 Concluses preliminares ......................................................................................... 75

    3 A DESESTATIZAO DO SETOR DE TRANSPORTES: TRAJETRIAS, ATORES EINTERESSES .............................................................................................................. 78

    3.1 Abordagem inicial .................................................................................................... 783.2 Antecedentes ........................................................................................................... 793.3 O transporte ferrovirio ......................................................................................... 823.4 O transporte rodovirio........................................................................................... 873.4.1 Passageiros ............................................................................................................ 873.4.2 Cargas .................................................................................................................. 883.4.3 Rodovias .............................................................................................................. 903.5 O transporte aquavirio ......................................................................................... 933.5.1 Portos ................................................................................................................... 933.5.2 Navegao .......................................................................................................... 1003.6 O GEIPOT e o planejamento dos transportes....................................................... 104

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    3.7 A especificidade institucional da aviao comercial no Brasil ............................. 1053.8 Concluses preliminares ....................................................................................... 108

    4 A RECONFIGURAO ORGANIZACIONAL DO SETOR FEDERAL DETRANSPORTES: A LEI 10.233 DE 2001 .................................................................. 116

    4.1 Abordagem inicial .................................................................................................. 1164.2 A proposta do Poder Executivo ............................................................................. 1164.3 A discusso no Congresso Nacional ...................................................................... 1194.3.1 Atores e interesses .............................................................................................. 1194.3.2 O substitutivo do relator .................................................................................... 1344.4 Principais aspectos da nova estrutura institucional do setor ............................... 1414.5 Concluses preliminares ....................................................................................... 145

    5 A ANLISE CAUSAL-COMPARATIVA ................................................................... 1495.1 Abordagem inicial .................................................................................................. 1495.2 A explicao causal ................................................................................................ 1495.3 O contraste entre os casos ..................................................................................... 1565.4 Implicaes tericas .............................................................................................. 160

    CONSIDERAES FINAIS ........................................................................................ 164

    REFERNCIAS ........................................................................................................... 167

    APNDICE Relao dos entrevistados .................................................................... 177

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    1 REFORMAS REGULATRIAS E VARIAES SETORIAIS

    1.1 Contextualizao, reviso da literatura e demarcao da abordagem

    O comeo dos anos de 1980 no Brasil foi marcado pela crise do nacional-

    desenvolvimentismo, estratgia de industrializao e modelo de Estado que

    alicerava as atividades econmicas e a vida poltica do pas desde a dcada de 1930 e

    cujo pice ocorrera nos anos 1970, com o chamado milagre econmico e o segundo

    Plano Nacional de Desenvolvimento.1 No plano poltico, o nacional-

    desenvolvimentismo baseava-se em trs pilares: um Estado forte e intervencionista; o

    planejamento econmico como instrumento para o desenvolvimento do pas; e a

    doutrina e prtica do corporativismo como forma de articular as relaes entre os

    principais atores da sociedade e canalizar suas demandas para o Estado (DINIZ;

    BRESSER-PEREIRA, 2007).2

    Contudo, aps o colapso do modelo de Breton Woods de gerenciamento

    econmico internacional e duas crises do petrleo, essa estratgia poltica e

    econmica comeou a esgotar-se (ver KON, 1999). O resultado foi a crise fiscal efinanceira que resultou na perda da capacidade de comando e coordenao do

    Estado, que marcou o perodo; no s os emprstimos privados estrangeiros

    cessaram, como ocorreu significativa transferncia lquida de recursos para o

    exterior, sobretudo em virtude do servio da dvida externa. Assim, o perodo de

    transio democrtica, iniciado em 1984, foi marcado pela crise da dvida externa e

    pelas altas taxas de inflao, sendo que o nacional-desenvolvimentismo, que fora

    efetivo em promover o desenvolvimento econmico do pas, revelou-se incapaz deenfrentar esses dois problemas (DINIZ; BRESSER-PEREIRA, 2007).

    1 O primeiro ocorreu entre 1969-73, quando o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro cresceu taxamdia acima de 10% ao ano; o segundo, entre 1974-79, no governo Geisel.2 O corporativismo pode ser definido como um sistema de representao de interesses da sociedadecivil organizada nas estruturas de deciso do Estado. Para Schmitter (1974, p. 94), o Estadocorporativo pode ser definido como um sistema de representao de interesses no qual as unidadesque o constituem so organizadas em um nmero limitado de categorias singulares, compulsrias, no

    competitivas, ordenadas hierarquicamente e funcionalmente diferentes; tais categorias soreconhecidas pelo Estado e tm sua licena para existir (em algumas ocasies so por ele criadas) elhes garantido o monoplio de representao deliberativa. Em troca, devem seguir alguns controlesno que diz respeito escolha do lder, articulao de suas demandas e apoio.

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    Surgem, assim, as condies materiais para a difuso das ideias neoliberais no

    Brasil.3 Para Paulani (2008, p. 105-139), o neoliberalismo uma doutrina (que possui

    uma histria intelectual concreta) e um receiturio de prticas de poltica econmica:

    uma doutrina calcada no discurso que atribui ao suposto gigantismo do Estado e em

    sua excessiva participao na economia as causas da crise; e um receiturio que se

    baseia na reduo dos gastos pblicos, na abertura (comercial e financeira) das

    economias nacionais e na reduo da interveno e do tamanho do Estado, mediante

    programas de privatizao, desregulamentao e reforma administrativa.

    Diniz e Bresser-Pereira (2007) ressaltam que a formao do consenso

    neoliberal no Brasil iniciou-se na segunda metade dos anos de 1970, quando setores

    empresariais nacionais comearam a manifestar-se politicamente contra o Estado-produtor (i.e. que atuava de forma direta na atividade econmica) e o poder

    discricionrio da cpula burocrtica. Tais questionamentos desencadearam uma

    campanha para a retirada do Estado da economia que, com o apoio da mdia,

    difundiu-se entre as classes mdias.4 Segundo Sallum Jr. (2000), no decorrer da

    dcada de 1980 foi se tornando claro para o empresariado nacional e seus porta-vozes

    intelectuais e polticos que a retomada do crescimento econmico j no poderia mais

    depender da presena dominante do Estado no sistema produtivo. Nos termos deEvans (1992), o Estado de soluo virou problema. Assim, o empresariado nacional

    clama por polticas de desregulamentao, privatizao, liberalizao.5

    Porm, somente com o governo Collor, a partir de 1990, ocorreu significativa

    ruptura com o padro nacional-desenvolvimentista. Para Sallum Jr. (2000), foi

    durante esse governo que surgiu o embrio de uma nova estratgia de

    desenvolvimento que o governo Fernando Henrique Cardoso veio redesenhar e

    consolidar. Tal estratgia seria caracterizada pela integrao liberal da economia

    domstica ao sistema econmico mundial (ou estratgia neoliberal de integrao

    global). Ela no visava, como no modelo anterior, construir uma estrutura industrial

    nacional integrada, mas preservar apenas aqueles ramos industriais que

    conseguissem, depois de um perodo de adaptao, mostrar suficiente vitalidade para

    3 Conforme a abordagem terica adotada nesta pesquisa, as ideias exercem papel importante nasmudanas institucionais. Numa crise econmica, por exemplo, onde nenhuma ideia anterior parece seadequar, novas ideias oferecem uma perspectiva de soluo, fazendo possvel a construo de coalizespara mudana. Este ponto ser discutido a seguir (cf. seo 1.2).4 Para anlise pormenorizada do surgimento e a organizao poltico-ideolgica do neoliberalismo noBrasil e no mundo, ver Gros (2003).5 Vide o documento da Federao das Indstrias de So Paulo (FIESP), lanado em 1990, intituladoLivre para Crescer: proposta para um Brasil moderno.

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    competir abertamente numa economia internacionalizada. Em outras palavras, o

    parque industrial domstico converter-se-ia em parte especializada de um sistema

    industrial transnacional.6 Ao mesmo tempo, implantar-se-iam programas de

    desregulamentao das atividades econmicas e de desestatizao (privatizaes e

    liberalizao de setores antes monoplios estatais) para recuperar as finanas

    pblicas e liberar parte significativa da poupana agregada. Com esse conjunto de

    medidas, prognosticava-se, o parque industrial do pas ampliaria sua

    competitividade, a capacidade empresarial nos diversos setores da economia seria

    reforada e o mercado de capitais seria fortalecido.

    Para Sallum Jr. (2000), com o governo FHC que se consolidam o receiturio

    neoliberal e a nova estratgia de insero externa. Conforme esse autor, oimpeachment de Collor, a exacerbao da instabilidade poltico-econmica no

    perodo Itamar Franco e o crescimento do prestgio popular do candidato das foras

    de esquerda Presidncia da Repblica constituram condies e alavancas

    poderosas para a tentativa - efetivada em 1994 com o sucesso do Plano Real - de

    costurar politicamente a superao da crise de hegemonia em torno de uma agenda

    de reformas. Isso foi corporificado na candidatura vitoriosa Presidncia da

    Repblica do seu articulador, o ento senador e ministro da Fazenda, FernandoHenrique Cardoso. Este, por sua vez, durante todo o perodo de governo buscou com

    perseverana cumprir o propsito de por fim Era Vargas.7

    Para quebrar o arcabouo institucional que conformava o velho Estado

    nacional-desenvolvimentista consubstanciado na Constituio de 1988, o governo

    Fernando Henrique Cardoso promoveu uma srie de reformas institucionais. Entre

    as mais relevantes, destacam-se: o fim da discriminao constitucional em relao s

    6 Para Sallum Jr. (2000), ainda que se reconhea que a nova etapa de desenvolvimento globalizado docapitalismo tende a inviabilizar projetos de construo de capitalismos em bases nacionais, no seaceita a implicao, que se tenta tirar disso, de que todos os pases devam se integrar do mesmo modono sistema mundial. Ao contrrio, eles o faro de maneiras diversas, regulados por instituiesprprias, dependentes das condies naturais e sociais legadas por sua histria e das escolhas polticasque fizerem. Por essa via, ganha novamente significado a questo das estratgias nacionais para odesenvolvimento.7 Em seu discurso de despedida do Senado Federal, em 14 de dezembro de 1994, Fernando HenriqueCardoso referiu-se ao legado da Era Vargas (i.e. ao seu modelo de desenvolvimento autrquico e ao seuEstado intervencionista) como um pedao do nosso passado poltico que ainda atravanca o presente eretarda o avano da sociedade [brasileira]. De acordo com o ex-senador, seria premente a abertura deum novo ciclo de desenvolvimento que colocasse na ordem do dia os temas da reforma do Estado e deum novo modo de insero do Pas na economia internacional. A estabilidade macroeconmica, a

    abertura da economia e a mudana da natureza do Estado brasileiro (i.e. de produtor direto de bens eservios para criador do marco institucional que assegure plena eficcia ao sistema de preosrelativos) constituir-se-iam, assim, nas bases de seu governo inaugurando um novo modelo dedesenvolvimento.

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    empresas de capital estrangeiro; a transferncia para a Unio do monoplio da

    explorao, refino e transporte de petrleo e gs - antes detido pela Petrobrs; e a

    autorizao para o Estado passar a conceder o direito de explorao dos servios de

    telecomunicaes a empresas privadas.8 Alm dessas emendas Constituio, o

    Congresso Nacional aprovou a lei que regulamenta as concesses da prestao de

    servios pblicos previstos Constituio de 1988 (cujo projeto de lei era de autoria do

    ento senador Fernando Henrique Cardoso) e o Executivo aprofundou o programa de

    privatizaes de empresas estatais iniciado pelo governo Collor (o Programa Nacional

    de Desestatizao, de 1990).

    Os processos de privatizaes e concesses da prestao de servios pblicos

    que se seguiram foram acompanhados pela promulgao de uma srie de leis quereestruturaram os setores cujo Estado desenvolvia atividades empresariais, bem

    como redefiniram as funes e a organizao do setor pblico mediante a criao das

    agncias reguladoras autnomas.9 Conforme Melo (2008), o modelo de agncias

    reguladoras autnomas seria essencial para garantir credibilidade (crebible

    commitments) aos novos investidores e atores privados nos setores desestatizados,

    ou seja, que os contratos firmados seriam honrados no futuro, sem mudanas nas

    regras do jogo, i.e. sem a chamada expropriao administrativa de rendas, viacongelamento de preos, manipulao de tarifas, reestatizao etc. Por conseguinte, a

    autonomia desses novos entes administrativos seria em relao ao governo, adquirida

    por meio de dispositivos institucionais que insulem os burocratas reguladores das

    denominadas presses polticas de curto prazo (o no reajuste das tarifas em ano de

    eleies, por exemplo). Tais dispositivos incluem os mandatos fixos e escalonados

    para os dirigentes das agncias; as condies legais para o enforcement das suas

    8 As Emendas Constitucionais 5, 6, 7, 8 e 9, todas de 1995. A EC nmero 5 estabelece o regime legal deprestao de servios de gs natural pelos Estados; a EC 6 estabelece o regime de pesquisa e extraode recursos minerais; a EC 7 desconstitucionaliza a exclusividade das embarcaes nacionais notransporte de mercadorias na navegao de cabotagem; a EC 8 estabelece o regime legal de servios detelecomunicaes e define a criao de um rgo regulador para o setor; e a EC 9 elimina o monopliolegal de leo e gs natural e define a criao de um rgo regulador para o setor.9 So elas: Lei Geral de Telecomunicaes (Lei 9.472/97), que criou a Agncia Nacional deTelecomunicaes; Lei 9.427/96, que estabeleceu as regras para a prestao de servios de gerao etransmisso de energia eltrica e criou a Agncia Nacional de Energia Eltrica; Lei 9.478/97, queestabeleceu as regras para a prestao de servios de gs canalizado e para o funcionamento daindstria do petrleo e criou a Agncia Nacional do Petrleo; Lei 9.984/2000, a Agncia Nacional deguas; Lei 10.233/2001, que reestruturou o setor federal de transportes e criou a Agncia Nacional deTransportes Aquavirios e a Agncia Nacional de Transportes Terrestres. Cabe mencionar tambm a

    Lei 9.782/99, que criou a Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria; a Lei 9.961/2000, que criou aAgncia Nacional de Sade Suplementar; e criao da Agncia Nacional do Cinema mediante MedidaProvisria no 2.228-1/2001 que, apesar de no regularem servios pblicos de infraestrutura,adotaram o mesmo modelo autnomo das anteriores na forma de autarquias especiais.

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    decises (mecanismos de apelo de decises via Judicirio e no ao Poder Executivo);

    autonomia financeira (obtida por meio de taxas e impostos com destinao especfica

    para o setor e no passveis de contingenciamentos oramentrios pelo Poder

    Executivo), entre outros.10

    Mattos (2006) argumenta que a criao das novas agncias autnomas para

    regulao de mercados concedidos marcaria um movimento poltico de

    transformao da burocracia estatal nacional, no sendo apenas uma resposta

    tecnoeconmica denominada crise fiscal do Estado. Para o autor, a criao das

    agncias reguladoras autnomas redefiniria as relaes entre o Poder Executivo com

    os setores estratgicos da economia (telecomunicaes, energia eltrica, gs e

    petrleo, transportes, etc.) inaugurando um novo modelo de interveno cujospressupostos tericos, desenho institucional e procedimentos decisrios corrigiriam

    os problemas do modelo inaugurado por Vargas. Tais problemas estariam, conforme

    aquele autor, na centralizao das decises polticas no Executivo (nas mos do

    Presidente da Repblica, da burocracia ministerial e das empresas estatais) e na

    ausncia de mecanismos de participao da sociedade civil no controle democrtico

    das decises tomadas. Segundo Mattos, no Estado nacional-desenvolvimentista as

    disputas polticas tinham lugar nos canais de circulao de poder internos burocracia estatal e nos denominados anis burocrticos.11 Assim, para o autor, a

    criao das agncias reguladoras significaria pelo menos no ponto de vista jurdico-

    formal um novo locus de circulao de poder poltico devido forma autnoma e

    descentralizada de funcionamento das novas organizaes. Conforme argumenta

    Mattos, as agncias inaugurariam uma nova arena na elaborao de polticas

    10 Deve-se ressaltar, contudo, que no a primeira vez na histria do Brasil que se utiliza domecanismo de insulamento de parte do Executivo para gesto de reas essenciais. Nunes (2003), porexemplo, narra como o governo JK usou dos Grupos Executivos que, com delegao legislativa,reproduziam em seu interior os processos decisrios do Estado de forma protegida do jogo polticotradicional.11 Mattos (2006), baseado nos desenvolvimentos do socilogo Fernando Henrique Cardoso sobre osanis burocrticos, relata que o Estado desenvolvimentista brasileiro significou a formao de umanova classe, os funcionrios pblicos tecnocratas. Com o fortalecimento dessa burocracia estatalplanejadora, as alianas entre interesses polticos e econmicos se organizaram de maneira a formarno interior do aparelho estatal ilhas de racionalidade que permitiram justificar polticas pblicas emnome de critrios meramente tcnicos. Entretanto, como essas ilhas de racionalidade se formaramdentro de uma estrutura institucional caracterizada pelo clientelismo poltico, elas acabaram por noservir ao interesse pblico, mas aos interesses privados que se organizaram no interior do Estado.Dado a perda de funo dos partidos polticos e o enfraquecimento do Legislativo no perodoautoritrio ps-golpe de 1964, esse sistema significou a sofisticao das relaes polticas centralizadas

    ainda mais no interior do Estado, na figura dos funcionrios pblicos tecnocratas, os tcnicos, e osgrupos de interesse privados. Assim, diante da realidade desses anis entre burocratas e grupos deinteresse, a separao entre tcnica e poltica acabou por resultar em prticas muito distantes do idealde interesse pblico ou de bem comum.

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    pblicas, como tambm a possibilidade dos processos decisrios serem passveis de

    controle democrtico pela sociedade.

    Santos (2006), no entanto, alega que se a chamada era Vargas propiciou a

    criao de um Estado e de uma burocracia apropriados para o jogo do clientelismo

    clssico, as iniciativas que visaram a enterrar a herana varguista acabaram por

    permitir as condies para o progresso do que ele denomina de clientelismo

    concentrado. Para esse autor, os verdadeiros riscos poliarquia no se encontram

    em polticas distributivas, cuja demanda vem de grupos fragmentados e abertos a

    polticos vidos por estabelecer uma conexo eleitoral eficaz (o clientelismo

    tradicional), mas nas relaes do que ele denomina de clientelismo concentrado,

    que envolveria grupos de interesse organizados e agncias autnomas.12 SegundoSantos, a poltica regulatria do Estado por meio de agncias autnomas significaria

    a descentralizao excessiva das funes pblicas e a adaptao de cada unidade

    administrativa aos interesses de seus clientes especficos, permitindo a apropriao

    privada do aparato administrativo. Isso porque, conforme esse autor, as demandas do

    mercado so mais racionalizadas, organizadas e integradas em relao s demandas

    da sociedade civil, cindidas em mltiplos movimentos sociais e, no raro,

    contraditrios. Em suma, Santos (2006) argumenta, em contraste com Mattos(2006), que a possibilidade da captura das agncias autnomas pelos regulados pode

    agravar os problemas do Estado varguista, devido precariedade dos mecanismos de

    controle pblico associado ao carter de insulamento das decises.

    Por sua vez, Nunes et al. (2007), mediante a anlise da gnese das trs

    primeiras agncias reguladoras autnomas da dcada de 1990 - Agncia Nacional de

    Energia Eltrica (ANEEL), Agncia Nacional de Telecomunicaes (ANATEL) e

    Agncia Nacional do Petrleo (ANP) -, concluram que a criao dessas novas

    entidades prescindiu de um verdadeiro regime regulatrio ou um marco de

    referncia poltico-institucional que desse sentido s suas funes.13 Nas palavras dos

    autores:

    12 Santos (2006) distingue dois tipos de clientelismo nas polticas governamentais: o clientelismodistributivo clssico, em que o poltico distribui favores para a populao mais carente, custeados peloEstado e, em ltima anlise, pelos contribuintes, visando obteno de votos; e o clientelismoconcentrado, em que os custos de uma poltica so distribudos por toda a sociedade, mas com seus

    benefcios apropriados por reduzido grupo de pessoas ou organizaes.13 Conforme explica Vogel (1996), regimes regulatrios so arranjos institucionais que formam umaconfigurao historicamente especfica de polticas que estruturam os relacionamentos entre osinteresses sociais, do Estado e dos atores econmicos em mltiplos setores da economia.

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    A criao das agncias prescindiu, at o momento, de um verdadeiroregime regulatrio amplo, que desse sentido global nova instnciaregulatria. As unidades regulatrias agem independentemente deum marco de referncia, exceto os contratos das reas em que atuam[...] faltou, durante o processo de elaborao das agncias, umadefinio jurdica e institucional ntida para os rgos reguladores, afim de estabelecer, por exemplo, formas de controle social e padresde relao com a administrao direta e com os poderes Legislativo eJudicirio (NUNES et al., 2007,p. 19, 268).

    Como lembram os autores, apesar do esforo de reformas no perodo, no

    existia at o momento da criao das primeiras agncias qualquer definio clara de

    como deveriam ser estruturados esses novos rgos. Embora o Plano Diretor da

    Reforma do Aparelho do Estado enfatizasse a necessidade de regulao dos

    mercados, o modelo de agncias reguladoras autnomas no foi contemplado em sua

    elaborao. Foi apenas em maio de 1996 que, segundo Nunes e outros, o Conselho de

    Reforma do Estado recomendou princpios gerais para a institucionalizao das

    novas agncias.14 Mas, conforme os autores, o Conselho no elaborou propostas sobre

    o novo sistema regulatrio, sobre o aparato doutrinrio que deveria presidi-lo, nem

    sobre a relao das novas agncias com as demais instncias e esferas de deciso de

    governo. Ao contrrio, verificou-se que a elaborao dos projetos de lei e atos legais

    de criao das primeiras agncias reguladoras foi conduzida pelos Ministrios

    setoriais e Presidncia da Repblica para implantao imediata, enquanto o rgo

    responsvel pela reforma do aparelho do Estado corria a reboque, na tentativa de

    compatibilizar seu desenho mais amplo com fatos consumados (Nunes et al., 2007).

    Dessa maneira, e pela ausncia de uma poltica que orientasse sua atuao, a

    estruturao e o funcionamento das agncias reguladoras no Brasil vem sendo objeto

    de vrias crticas por parte da literatura especializada, dentre elas: pelo fato de seu

    escopo de atuao ultrapassar os limites da regulao, j que foi delegado o poder deoutorga e concesses de servios pblicos e de formulao das polticas setoriais (vide

    a incumbncia de propor os planos gerais de outorgas); pela politizao na

    nomeao de presidentes e diretores; pela inexistncia da autonomia financeira de

    facto, dados os frequentes contingenciamentos de recursos a que esses entes so

    submetidos; pelo dficit democrtico contido em sua essncia, na medida em que

    14 Institucionalmente, a reforma do Estado no governo de Fernando Henrique Cardoso era

    responsabilidade de trs rgos: a Cmara da reforma do Estado da Presidncia da Repblica, oMinistrio da Administrao Federal e da Reforma do Estado (Mare) e o Conselho de Reforma doEstado. Este foi constitudo como um rgo consultivo, vinculado ao Mare, sendo que seusconselheiros no eram servidores da administrao pblica.

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    seus administradores no esto submetidos aos procedimentos de accountability

    eleitoral (cf. SALGADO; MOTTA, 2005; Nunes et al. 2007). Ao mesmo tempo,

    aponta-se que os ministrios setoriais teriam perdido seus quadros e,

    consequentemente, sua capacidade de planejamento estratgico e formulao de

    polticas pblicas.

    O relatrio produzido pela Organizao para Cooperao e Desenvolvimento

    Econmico (OCDE, 2008) sobre a governana regulatria brasileira, por exemplo,

    indicou a necessidade de se aprimorar o sistema jurdico do pas no sentido de se

    fornecer uma estrutura slida, especificamente voltada para a regulao dos servios

    pblicos de infraestrutura. Do mesmo modo, dirigiu-se para o desafio de se construir

    capacidade regulatria dentro da administrao pblica, especialmente para acoordenao entre as instituies e organizaes envolvidas nos processos. Uma das

    principais questes a serem enfrentadas, segundo o documento da OCDE, a

    necessidade de clarificar as funes e implicaes da vasta gama de instituies e

    organizaes, principalmente da administrao indireta, na qual se inserem as

    agncias reguladoras.

    Mas a despeito de tais carncias, o processo de agencificao do Estado se

    reproduziu, tanto no governo federal como nos estados e municpios, numisomorfismo institucional imperfeito, como soluo definitiva para problemas to

    distintos como falsificao de remdios, mazelas competitivas do cinema nacional

    [ou] para problemas de desgoverno nas reas privatizadas, para crises e problemas

    emergentes, para a soluo de matrias at ento no sanadas (NUNES et al. 2007,

    p. 270,272).15

    Como se sabe, o modelo de agncias adotado no Brasil foi importado da

    experincia norte-americana de agncias independentes com o exemplo da

    experincia britnica ps-privatizao.16 Porm, ocorre que quando modelos

    importados so aplicados em outras circunstncias, inerente ao processo de sua

    implantao a sua adaptao dinmica institucional prpria de cada Pas, ganhando

    15 Segundo Nunes et al., apesar do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado ter preconizado omodelo de agncias executivas como alternativa, este no foi objeto de adeso pelas organizaespblicas, fracassando em sua proposta.16 Para Ramalho (2007), nos EUA o Congresso delega poder s agncias para exercer poderesnormativos e de deciso, pois aquele tem a competncia constitucional de regular o comrcio. Assim, o

    papel de acompanhamento e fiscalizao das agncias exercido pelo Poder Legislativo, que controlaas agncias em termos polticos, enquanto o Executivo exerce seu poder de superviso e coordenaodessas organizaes. Ademais, os regulamentos expedidos pelas agncias reguladoras constituem-secomo fonte do direito norte-americano.

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    tais modelos novos sentidos. Em outras palavras, as iniciativas de reformas so

    mediadas pelos contextos institucionais preexistentes e o contexto importa (cf.

    GOODIN; TILLY, 2006). Nos Estados Unidos da Amrica (EUA), as agncias

    reguladoras independentes proliferaram na dcada de 1930, no mbito New Deal,

    com base nas ideias dos progressistas sobre a necessidade da regulao pelo Estado

    dos mercados monopolizados (MILLER; SAMUELS, 2002). No Brasil,

    diferentemente, as agncias surgiram no momento em que se desejava menos

    interveno do Estado.

    Muito se assevera que os processos de privatizaes e criao de agncias

    reguladoras independentes significariam uma convergncia entre diferentes pases

    para aquilo que se convencionou denominar Estado regulador (MAJONE, 1999).Estudos comparativos internacionais, porm, tm refutado essa hiptese. Vogel

    (1996), ao confrontar as reformas regulatrias no Reino Unido e no Japo, constatou

    que as reformas no convergiram para um modelo comum de atuao do Estado; ao

    contrrio, esses pases recombinaram rerregulao, delegao e liberalizao de

    mercados em diferentes caminhos. A despeito do Reino Unido e do Japo terem

    comeado suas reformas no mesmo perodo, sob circunstncias similares e

    estenderem seus programas para os mesmos setores, eles o fizeram de maneirasdiferentes. Divergentemente do Reino Unido, os processos de privatizao no Japo

    reforaram a capacidade de controle e interveno do Estado nos setores. Para Vogel,

    legados institucionais (de organizao do Estado) e fatores ideolgicos (as ideias que

    orientam a ao do Estado) explicam tais diferenas.

    Fundamentado na literatura sobre as variedades de capitalismo, especialmente

    os trabalhos de Hall e Soskice (2001),17 Mark Thatcher compara os casos da Frana,

    Alemanha e Gr-Bretanha e averigua que, apesar das similaridades formais das

    reformas ocorridas (e.g., os trs pases privatizaram, liberalizaram mercados e

    instituram agncias reguladoras independentes), as diferenas na prtica de se

    fazerem as polticas permaneceram. Segundo Thatcher, na Frana continuou-se com

    as redes/instituies informais de coordenao entre governo e o setor privado para

    promoo dos national champions e dos global players; na Alemanha, por sua vez,

    continuou-se com as instituies informais de coordenao, ou seja, embora criadas

    as agncias reguladoras, a autonomia destas foi limitada na prtica (THATCHER,

    17 A tese bsica do livro de Hall e Soskice (2001) que os sistemas econmicos nacionais so pathdependent, i.e. eles exibem alto grau de resilincia mesmo no contexto de globalizao.

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    2006; 2007). Christensen e Laegreid (2005), no mesmo sentido, explicam que as

    tradies administrativas nacionais permanecem no momento da implementao das

    reformas institucionais, sendo que as novas formas de regulao no substituram

    completamente as anteriores de uma hora para outra.

    No caso brasileiro, ao relacionar o conceito de gramticas polticas de Nunes

    (2003) ao desenho e prtica regulatria das agncias para investigar se a criao

    das mesmas representou mudana na estrutura institucional brasileira, Ramalho

    (2007) conclui que as novas agncias conformam-se em uma tenso entre

    continuidade e a transfigurao de determinados aspectos das gramticas do

    corporativismo, do insulamento burocrtico e do universalismo de procedimentos.18

    Do mesmo modo, Cruz (2007) trabalhou com a hiptese das agncias reguladorasautnomas como instituies exgenas, importadas e sem conexes com as demais

    instituies polticas nacionais. Assim, conforme esses autores, as reformas de

    mercado da dcada de 1990 resultaram num hibridismo institucional no qual

    adaptaes e acomodaes das novas organizaes aos nossos legados polticos e

    administrativos ainda provocam controvrsias quanto ao seu desempenho.

    A reviso da literatura sobre o tema leva, assim, a inferir o carter incompleto

    e inacabado do atual regime regulatrio brasileiro. Nesse aspecto, observa-se queexistem atualmente iniciativas tanto do Poder Legislativo como do Executivo federal

    relacionadas nova estrutura regulatria nacional: encontram-se no Congresso o

    projeto de Lei Geral das Agncias (PL 3.337/2004, de iniciativa do Executivo), que

    dispe sobre a gesto, a organizao e o controle social das agncias reguladoras,19

    como tambm uma proposta de emenda constitucional que fixa os princpios da

    atividade regulatria no Brasil (PEC 81/2003, do ex-senador Tasso Jereissati). Alm

    disso, o governo federal editou o Decreto 6.062/2007, criando o Programa de

    Fortalecimento da Capacidade Institucional para Gesto em Regulao (PRO-REG)

    com a finalidade de aprimorar o sistema regulatrio, especialmente a coordenao

    entre as instituies que participam do processo no governo federal.

    18 Consideram-se as gramticas polticas de Nunes (2003) como instituies; porm, no comoinstituies formais, mas informais. Ramalho (2007) no contemplou a gramtica do clientelismo nasua pesquisa emprica, por consider-la um objeto de investigao de inegvel complexidade (p.108).19 Entre os pontos polmicos do PL 3.337/2004 destacam-se: a transferncia do poder de outorga deconcesso das agncias reguladoras para o Poder Executivo; a introduo do contrato de gesto entreas agncias e os Ministrios setoriais; a obrigatoriedade de ouvidor nas agncias indicado pelaPresidncia da Repblica.

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    Gaetani e Albuquerque (2009) indicam que parte dos problemas encontrados

    explicada, em boa medida, pela forma de constituio dos marcos regulatrios

    setoriais, como subprodutos de processos de privatizao institucionalizados ex post.

    Ou seja, pelo fato de a maioria das privatizaes no ter sido precedida da

    reformulao dos marcos regulatrios especficos, nem de um marco regulatrio geral

    para todos os setores. Na mesma linha, Ribeiro e Fernandes (2006) argumentam que

    o descompasso entre as privatizaes, a criao das agncias reguladoras e a definio

    do seu marco institucional foram circunstncias de origem que representariam a

    causa primordial dos atuais problemas, j que no houve viso estratgica de governo

    em relao reorganizao da funo regulatria do Estado.

    Para esses autores, iniciativas desconexas e solues imediatistas foramadotadas para o equacionamento de problemas cujo foco central era a privatizao,

    independentemente das questes de redesenho institucional, como se mercados

    mais livres no implicassem mais regras (ou instituies).20 Em alguns casos, como

    no setor de telecomunicaes, a estrutura regulatria foi instituda antes da

    privatizao; em outros, isso no aconteceu e o processo de privatizao se iniciou

    antes da reestruturao regulatria (e.g. setor de transportes). Isso permite afirmar

    que, no Brasil, o foco nas privatizaes se deu de forma independente das questes deredesenho institucional.21 Ao que parece, cada setor seguiu uma dinmica especfica

    determinada pelas suas diferentes trajetrias institucionais (Nunes et al., 2007).

    Como registrou Menardi (2004), as diferentes trajetrias histricas ao longo do

    perodo de construo dos setores, de suas empresas, autarquias, ministrios

    mostram que no se pode entender o processo de reforma regulatria como nico. As

    instituies, as bases econmicas, as coalizes polticas de cada setor que incluem

    mltiplos atores so diferentes. O resultado final que uma mesma direo comum

    de reforma mostra diferentes resultados.

    Entre outros estudos de destaque no mbito da Cincia Poltica e da

    Administrao Pblica sobre o tema, percebe-se que os mesmos voltam-se

    principalmente para as questes da delegao de poderes e credibilidade das polticas

    regulatrias (MELO, 2002), autonomia e controle poltico das agncias (PACHECO,

    2006), desenho e mecanismos de accountability (P; ABRUCIO, 2006; OLIVA,

    20 Refiro-me aqui ao livro de Steven K. Vogel (1996), intitulado Freer Markets, More Rules.21 Para alguns autores, a reduo do dficit pblico (crise fiscal) e atrao de capital estrangeiro paraamenizar os dficits no balano de pagamentos, criados tanto pela abertura comercial como pelaestabilidade da taxa de cmbio (base do Plano Real), foi o objetivo primordial do processo deprivatizaes.

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    2006); governana regulatria (CORREA et al., 2006); e estabilidade de regras e

    contratos (P, 2009).

    Este trabalho se insere na linha de investigao de Nunes et al. (2007), por

    incorporar variveis institucionais anlise e por preocupar-se em mostrar que os

    processos de reforma foram marcados tanto por elementos de transformao e

    ruptura com a ordem anterior quanto por componentes de persistncia e resistncia

    vis--vis o desenho inicialmente concebido pelo Poder Executivo.22 Contudo, ao

    analisar as interaes polticas numa sequncia de eventos no tempo, este estudo

    privilegia a explicao do fenmeno de interesse no contexto das estruturas legais e

    organizacionais do Estado, identificando o papel das polticas preexistentes na

    conformao dos interesses e na mediao das aes dos atores. Da mesma maneira,busca compreender as causas e mecanismos que explicam as diferenas nas

    trajetrias de mudana de setores especficos. Vale dizer, esta investigao utiliza-se

    da abordagem terica institucionalista-histrica, exposta a seguir.

    1.2 Abordagem terica

    1.2.1 O institucionalismo histrico e a mudana institucional

    As escolas institucionalistas perpassam por diferentes disciplinas nas cincias

    sociais, como a Economia, a Cincia Poltica e a Sociologia, sendo que se encontram

    intercmbios entre elas, com caractersticas coincidentes e influncias mtuas.23

    Pode-se citar como exemplos a ascendncia da Nova Economia Institucional sobre o

    institucionalismo da Escolha Racional da Cincia Poltica e a forte afinidade

    intelectual entre o institucionalismo sociolgico e o institucionalismo original da

    Economia (SCOTT, 2008). Da mesma maneira, so identificados, ainda, pontos de

    convergncia entre o institucionalismo histrico e o da escolha racional na Cincia

    Poltica (THELEN, 1999).

    22 Como indicado, a pesquisa de Nunes et al. (2007) investigou a gnese das agncias reguladoras dossetores de energia eltrica, telecomunicaes e petrleo, identificando os processos que levaram formao do modelo agora existente.23 Na economia distingue-se a escola institucionalista original, vinculada tradio de T. Veblen e J.

    Commons e cujos expoentes atuais so G. Hodgson, D. Bromley e W. Samuels, e a escola da novaeconomia institucional, que tem como principais expoentes Ronald Coase, Douglass North e OliverWilliamson. Thret (2003) discute os novos institucionalismos em Sociologia. Ver tambm Scott(2008).

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    De acordo com Thret (2003), as perspectivas institucionalistas distinguem-se

    de outras abordagens tericas, sobretudo da ortodoxia do individualismo

    metodolgico, por revelarem a necessidade de se levar em conta as mediaes entre

    as estruturas sociais e os comportamentos dos atores para se compreender a ao

    individual e suas manifestaes coletivas, sendo que tais mediaes seriam,

    justamente, as instituies.

    Na Cincia Poltica, o institucionalismo surgiu como uma reao contra o

    behaviorismo e o estrutural-funcionalismo que dominavam a disciplina nos anos de

    1960 e 1970 (IMMERGUT, 1998).24 No entanto, tal reao no surgiu de modo

    unificado, tendo-se desenvolvido escolas com conceitos e metodologias distintas: a

    histrica, a sociolgica e a da escolha racional (HALL; TAYLOR, 2003).Enquanto o institucionalismo da escolha racional adota os pressupostos

    comportamentais da economia neoclssica (equilbrio, racionalidade substantiva,

    preferncias exgenas etc.), o mtodo dedutivo e o ferramental da teoria dos jogos

    para lidar com a questo da interao estratgica entre os agentes, os

    institucionalistas histricos seguem a linhagem do pensamento e da metodologia de

    Max Weber, principalmente.

    Os institucionalistas histricos trabalham com a ao individual de formaintegrada aos fatores estruturais. Fazem uma combinao entre o enfoque estrutural

    ou cultural (que reala as rotinas, os planos cognitivos e a viso de mundo do ator

    na formao do quadro de referncia para o seu comportamento), integrando-o

    perspectiva calculadora (que enfatiza o carter instrumental e estratgico do

    comportamento individual) (HALL; TAYLOR, 2003). Para Immergut (1998), eles

    esto interessados em racionalidades alternativas (ou contextuais), ao afirmarem

    que a racionalidade instrumental produto de processos histricos, construda e

    apoiada por conjuntos especficos de instituies e ideias (teorias, modelos, vises de

    mundo, etc.) que os agentes adotam (individual ou coletivamente) para entender o

    mundo em que vivem. Ou seja, para a escola histrica, as ideias tambm tm papel na

    ao dos atores, orientando-os em novas direes.

    24 Ressalte-se que tal reao aconteceu mais nos EUA, pois no Brasil nunca foi necessrio chamar oEstado de volta s anlises (refiro-me ao livro intitulado Bring the State Back In,de 1985, editado porP. Evans, D. Rueschemeyer e T. Skocpol).

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    Conforme Weber, as vises de mundo criadas pelas ideias determinam os

    caminhos pelos quais a dinmica dos interesses impulsiona as aes dos atores. 25 As

    instituies e as ideias agem como filtros que favorecem, de forma seletiva, a

    interpretao dos atores de seus interesses, como tambm da melhor forma de

    alcanar seus objetivos. Assim, se as instituies e as ideias no determinam o

    comportamento individual, elas oferecem o contexto em que os indivduos moldam

    seus interesses e definem suas preferncias. De acordo com Hall (1993), os

    paradigmas ideolgicos fornecem o modelo cognitivo bsico a partir do qual os

    decisores interpretam problemas complexos e avaliam a validade das polticas

    alternativas. Para Sanders (2006), as ideias, por terem carter relacional e normativo,

    tm o papel de mobilizar foras para a ao coletiva, criando ou modificandoinstituies. Deste modo, abordagem histrica se interessa pela forma como ideias,

    interesses e instituies conformam as polticas pblicas (e como elas evoluem no

    tempo).26

    Os institucionalistas histricos, do mesmo modo, consideram a possibilidade

    da multicausalidade e de consequncias no esperadas das aes individuais ou

    coletivas. Evidenciam, assim, o carter contingente do resultado dos processos

    polticos e a importncia dos momentos crticos (resultados da interao entreprocessos independentes) que abrem a possibilidade para mudanas e

    transformaes institucionais. Segundo Capoccia e Keleman (2007), momentos

    crticos (critical junctures) so perodos relativamente curtos de tempo durante os

    quais a influncia das estruturas na ao poltica relaxada, aumentando a

    probabilidade de que as escolhas dos atores que detm o poder possam afetar o

    resultado de seu interesse.

    Os tericos da vertente histrica do institucionalismo referem o conflito de

    interesses entre grupos rivais e as relaes desiguais de poder como centrais vida

    poltica. Assim, as instituies no so mecanismos neutros de coordenao, que

    sustentam uma ordem em equilbrio e exgenas ao comportamento dos indivduos.

    No possuem carter funcional para resolver problemas de ao coletiva (e.g.,

    dilema dos prisioneiros, tragdia dos comuns) e diminuir os custos de transao

    ligados concluso de acordos estveis. Ao contrrio, so resultados de processos

    25 The worldviews that have been created by ideas have very often, like switches, decided the lines

    on which the dynamic of interests has propelled behavior(MAX WEBERapudSWEDBERG, 2005,p. 130).26 Ver, por exemplo, a anlise de Hall (1989) sobre o papel das ideias keynesianas e monetaristas naconformao das polticas econmicas nos anos 50 e 70, respectivamente.

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    complexos, marcadas pelo conflito e pela contingncia na luta pelo poder que, por

    apresentarem implicaes distributivas, trazem consigo uma permanente tenso

    (MAHONEY; THELEN, 2010).

    Os institucionalistas histricos possuem ainda uma concepo de

    desenvolvimento institucional que privilegia as trajetrias de processos ao longo do

    tempo e o papel da herana do passado sobre os fatos do presente (cf. o mecanismo

    de path dependence). Rejeitam, destarte, a noo de que foras ou processos

    semelhantes podem produzir os mesmos resultados em qualquer tempo ou lugar.

    No entanto, diferentemente da vertente sociolgica do institucionalismo, que

    adota conceito mais global de instituio levando interpenetrao desta com a

    cultura (ou os aspectos da cultura que afetam a ao humana e organizacional), osinstitucionalistas histricos tomam uma definio mais circunscrita, associando as

    instituies s regras, formais e informais.27 Steinmo (2008) reporta que as regras

    afetam os processos sociais porque elas definem quem participa do jogo, estruturam

    o comportamento dos atores e moldam seus interesses e estratgias.

    Umas das questes em aberto nas abordagens institucionalistas a mudana

    institucional. Para entend-la, a literatura institucionalista se apoia, implcita ou

    explicitamente, nos modelos de equilbrio pontuado marcados por choquesexgenos e momentos crticos que provocariam transformaes radicais (rupturas)

    seguidas por novo perodo de estabilidade (at que uma nova conjuno crtica

    ocorra).28 Em outras palavras, somente uma crise, um momento crtico ou uma

    alterao radical na sociedade ou no governo poderia produzir uma mudana.

    Pierson (2004), nesse sentido, lembra que as instituies no so plsticas,

    isto , elas no aceitam incondicionalmente iniciativas de reformas. Argumenta, por

    isso, que qualquer anlise a respeito da mudana institucional deve, necessariamente,

    incorporar o exame dos fatores de sua persistncia. Assim, ele vai buscar elementos

    analticos para explicar os mecanismos causais que explicam a resilincia das

    instituies.

    27 Como se ver adiante, autores como Pierson (2006) associam tambm as instituies s polticaspblicas.28 Nas cincias sociais, as teorias de equilbrio pontuado ou interrompido (punctuated equilibrium)so utilizadas para a anlise das mudanas nas polticas pblicas. Desenvolvida por Baumgartner eJones (1993), com inspirao na teoria biolgica de mesmo nome desenvolvida por paleontlogos, ateoria sugere que as polticas so caracterizadas por longos perodos de estabilidade pontuados por

    perodos de instabilidade, embora menos frequentes, como alteraes repentinas e radicais nasociedade ou no governo, que geram mudanas nas polticas anteriores. Do contrrio, as polticasapresentam mudanas apenas de forma incremental devido existncia de diversas restries (e.g.,"rigidez" institucional, interesses, racionalidade limitada dos decisores pblicos).

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    Segundo Pierson, a histria importa por causa do mecanismo de path

    dependence.29 Como se sabe, a noo de path dependence foi desenvolvida

    originalmente por economistas que estudavam o tema do desenvolvimento

    tecnolgico (ARTHUR, 1994; DAVID, 1985) e depois foi utilizada por North (1990)

    para analisar as instituies econmicas. Pierson, por sua vez, adapta o conceito para

    as instituies polticas, ressaltando as caractersticas que diferenciam o mecanismo

    na poltica em relao economia.30 Grosso modo, o mecanismo de path dependence

    baseia-se na noo de que uma vez iniciada uma trajetria (um processo social) os

    custos de reverso desta se tornam cada vez mais altos com o decorrer do tempo.

    Assim, em uma sequncia de eventos, as ltimas decises no so (inteiramente)

    independentes das que j ocorreram31.Mahoney e Schensul (2006) ressaltam, entretanto, que existem diferenas

    entre autores no uso do conceito de path dependence: enquanto uns acreditam que o

    mecanismo raro, outros creem que ele generalizado. Os que o enxergam de

    maneira pouco comum trabalham com a concepo de mudana baseada no modelo

    de equilbrio pontuado; os que entendem que ele frequente trabalham com a

    premissa de que os legados do passado restringem as escolhas e mudanas do

    presente. Do mesmo modo, existe um sentido determinstico e outro nodeterminstico do conceito (EBBINGHAUS, 2005). A acepo determinstica o

    caracteriza como uma sequncia histrica de eventos em que acontecimentos

    contingentes no incio da trajetria pem em movimento uma cadeia de processos

    que se autorreforam, tornando a trajetria estvel ou altervel apenas por fatos

    exgenos (fora do modelo terico). A compreenso no determinstica do conceito,

    por sua vez, o utiliza no sentido de delinear a trajetria de desenvolvimento de uma

    instituio formada e, posteriormente, adaptada por atores coletivos. Estes, por sua

    vez, raramente esto em situaes em que podem ignorar o passado e decidir de

    novo; ou seja, suas decises esto vinculadas pelas instituies prvias. A nfase,

    portanto, no momento e na sequncia de eventos (PIERSON, 2004).

    29 Para Mahoney (2001), mecanismos causais so entidades no observveis diretamente que quando ativados so capazes de explicar o fenmeno de interesse. J para Hedstrm e Swedberg(1998), so construtos analticos que fornecem ligaes hipotticas entre eventos observveis.30 So elas: a prevalncia dos problemas da ao coletiva; a densidade e a interdependncia dasinstituies polticas; a possibilidade do uso da autoridade para o reforo das assimetrias de poder; e ocarter complexo e opaco da poltica (PIERSON, 2004, p. 30-40).31 Margaret Levi (apudPIERSON, 2004, p. 20) utiliza-se da metfora da escalada de uma rvore paraelucidar o conceito: de um mesmo tronco saem vrios galhos; embora seja possvel retornar a escaladaou pular de um galho para outro, o galho que se escolhe inicialmente para comear a subida por ondese tende a seguir.

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    Para Pierson, o mecanismo de path dependence caracteriza-se pelos processos

    de realimentao positiva (positive feedback) que reforam o desenvolvimento de

    uma instituio numa dada trajetria. A realimentao positiva que faz com que os

    benefcios de permanncia no caminho inicialmente trilhado, quando comparados s

    alternativas previamente possveis, intensifiquem-se com o passar do tempo,

    aumentando os custos de reverso de uma trajetria iniciada.

    Reiterando as formulaes de Arthur (1994), Pierson salienta as quatro

    caractersticas dos processos sociais que sustentam os mecanismos de realimentao

    positiva: (i) os custos de estabelecimento de uma instituio, que incentivam os

    indivduos a permanecerem na alternativa inicial; (i) os efeitos de aprendizagem, em

    que o conhecimento adquirido do funcionamento de um sistema complexo (comouma instituio) incentiva os agentes a continuarem com seu uso; (iii) os efeitos de

    coordenao, advindos das sinergias, interdependncias e complementaridades

    geradas entre diferentes instituies (as matrizes institucionais de Douglass North);

    e (iv) as expectativas adaptativas, provenientes da conformao mtua das aes dos

    agentes com base na aprendizagem do passado.

    Conforme Pierson, as anlises sociais podem recorrer aos mecanismos de path

    dependence para sustentar hipteses que, entre outras, afirmam que a ordem e asequncia dos eventos no tempo so de fundamental importncia para a

    compreenso de um fenmeno; que mesmo que duas trajetrias se iniciem nas

    mesmas condies, resultados diferentes so possveis para cada uma delas; que

    trajetrias particulares, uma vez iniciadas, so difceis de reverter; e que um processo

    em curso ou um resultado alcanado pode no ser o mais eficiente.

    Neste sentido, Pierson refuta os pressupostos das anlises do institucionalismo

    da escolha racional, que dizem que as instituies existem porque elas so funcionais

    para os atores que as criam. Ele cita algumas das limitaes dessa perspectiva:

    primeira, ela ignora que determinados arranjos institucionais podem ter mltiplos

    efeitos, muitos deles inesperados, j que os atores polticos tm diversos objetivos que

    no podem ser facilmente derivados num arranjo especfico (as inovaes

    institucionais podem resultar de coalizes e negociaes entre atores, que as

    sustentam por diferentes motivos, inclusive contraditrios); segunda, que os

    criadores das instituies podem no agir de maneira instrumental/racional; terceira,

    que os efeitos de longo prazo de uma instituio podem ser produtos secundrios de

    decises tomadas para o curto prazo; quarta, que por causa da complexidade e das

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    relaes de interdependncia entre os atores existem resultados ou consequncias

    imprevistas das criaes institucionais; por fim, que existe o problema da

    descontinuidade, j que atores podem herdar instituies que no criaram e podem

    ter preferncias distintas dos agentes do passado.

    Pierson (2004) tambm examina a questo da mudana institucional nas

    abordagens institucionalistas. Na perspectiva da escolha racional, as instituies

    mudam a partir do momento em que elas deixam de ser funcionais para os atores que

    a constituram. Assim, as mudanas tm origem exgena e as anlises contam com

    modelos do tipo esttico-comparativo (em vez de dinmica ou processual). O

    institucionalismo sociolgico, por sua vez, enfatiza o processo de difuso de modelos

    de instituies, o isomorfismo institucional,32 como tambm o papel dosempreendedores ou dos perdedores (CLEMENS; COOK, 1999) na promoo de

    tipos especficos de instituies.33 Pierson conclui que tais explicaes sobre a

    mudana institucional padecem de problemas. Primeiro, eles no apresentam

    proposies claras sobre as circunstncias que levam mudana institucional,

    resumindo-se a explicaes post hoc ou do tipo just-so. Segundo, elas se baseiam

    apenas no estudo de casos extraordinrios (em que houve mudanas), o que, para ele,

    favorece e superestima as hipteses inicialmente formuladas (cf. o problema do visde seleo dos casos). Por fim, tais estudos pressupem a maleabilidade das

    instituies nas mos de empreendedores ou perdedores, pois focam suas

    anlises apenas nas causas imediatas das mudanas, menosprezando os processos

    causais que se desdobram no longo prazo.34

    No entanto, alguns autores tm hesitado em incluir o lock-in como uma

    consequncia do mecanismo de realimentao positiva ou de path dependence, pois

    isso sugeriria um determinismo causal. Do mesmo modo, questionam a viso

    tradicional de que mudanas institucionais seriam apenas de carter radical,

    advindas de choques exgenos ou de momentos crticos (critical junctures). Assim,

    32 Segundo Hall e Taylor (2003), os institucionalistas sociolgicos sustentam que as organizaesadotam com frequncia uma nova prtica institucional por razes que tm menos a ver com o aumentoda sua eficincia do que com o reforo que oferece sua legitimidade social e de seus adeptos. Assim,as organizaes adotam formas e prticas institucionais particulares porque elas tm valorreconhecido num ambiente cultural mais amplo.33 Clemens e Cook (1999) preconizam que os agentes que se veem como perdedores, relativos ouabsolutos, numa determinada configurao institucional lanariam mo do processo poltico para

    mudar as regras em que operam e, assim, obter ganhos decorrentes das novas oportunidades.34 No captulo 3 do livro Politics in Time, Pierson identifica diferentes processos causais de longadurao, fornecendo formatos para se pensarem mudanas institucionais graduais, quais sejam:cumulative causes, threshold effects e causal chains (PIERSON, 2004, p. 82-90).

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    tais autores propem-se a trabalhar com formas de transformaes alternativas s

    baseadas nos modelos de equilbrio pontuado.

    Nesse escopo, Mahoney e Thelen (2010) distinguem quatro tipos de mudana

    institucional, quais sejam: (i) displacement ou remoo das antigas regras com a

    introduo de novas; (ii) layering ou a introduo de novas regras sobre as

    existentes; (iii) drift ou flutuao, i.e., mudana de impacto das regras vigentes

    devido a transformaes no ambiente; e (iv) conversion ou a converso de uma

    instituio existente para novos objetivos, via reinterpretao das regras para novos

    fins. Segundo os autores, o entendimento desses diferentes tipos de mudana seria

    precondio para explicar como e por que mudanas institucionais ocorrem.

    Na tipologia de Mahoney e Thelen, trs fatores explicariam os diferentes tiposde mudana: o contexto poltico, as caractersticas da instituio preexistente e o tipo

    do agente dominante.

    O contexto poltico est ligado distribuio de poder. O sucesso da tentativa

    de mudar uma instituio depende do poder de veto dos defensores do status quo. Ou

    seja, quanto mais fortes os poderes de veto dos opositores mudana, menos

    probabilidade de se fazerem mudanas numa instituio. Conforme lembra Marques

    (1997, p. 91), a existncia de pontos de veto pode levar um mesmo quadro poltico aresultados bastante diferentes, sendo que atores de alto poder podem ser

    incapacitados de transformar suas preferncias e interesses em resultados concretos.

    Para esse autor, o efeito dos pontos de veto no uniforme, mas depende do grau de

    encaixe entre as estruturas institucionais e a distribuio de poder entre os atores.

    A caracterstica da instituio est relacionada discricionariedade na

    interpretao ou aplicao das regras existentes. Para Mahoney e Thelen, as

    instituies tm sistemas formais de codificao (uma lei, por exemplo), sendo que

    algumas regras podem no ter sido claramente definidas o que abre a possibilidade

    de contestaes ou diferentes interpretaes. Tal situao pode ser explorada por

    agentes de mudana. Assim, a racionalidade limitada na formulao das regras, a

    dificuldade na sua aplicao e o fato de as mesmas estarem abertas a novas

    interpretaes configuram sementes para a mudana institucional.

    Por fim, os agentes dominantes so os atores da mudana institucional.

    Mahoney e Thelen definem tais atores de acordo com o desejo dos mesmos de

    preservar e cumprir as regras institucionais, perfazendo quatro tipos de agentes: (i)

    os insurgentes, que rejeitam o status quo institucional e no querem cumprir a atual

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    regulao; (ii) os simbiontes, ou aqueles que vivem em associao ntima com as

    instituies, que desejam preservar e explorar o status quo tendo em vista ganhos

    privados; (iii) os subversivos, que procuram substituir a instituio, mas sem quebrar

    suas regras; e (iv) os oportunistas, que ao explorar as ambiguidades na interpretao

    ou aplicao das regras em vigor, acabam por refazer as regras existentes de forma

    diferente inteno de seus formuladores.

    Portanto, para os autores, so as caractersticas da estrutura (instituio e

    contexto poltico) e da ao dos atores que auxiliariam a explicar os tipos de mudana

    institucional. O QUADRO 1 resume essas consideraes.

    QUADRO 1Origens contextuais e institucionais da mudana institucional

    Caracterstica da instituio preexistenteBaixa discricionariedade

    na interpretao ouaplicao das regras

    Alta discricionariedadena interpretao ouaplicao das regras

    Contextopoltico

    Fortepoder de veto dos

    opositores

    Layering(subversivos)

    Drift(simbiontes)

    Fracopoder de veto dos

    opositores

    Displacement(insurgentes)

    Conversion(oportunistas)

    Fonte: Mahoney e Thelen (2010, p. 19).

    1.2.2 Polticas pblicas como instituies

    Pierson (2006) enfatiza que as polticas pblicas tambm podem ser vistas

    como instituies, pois elas produzem recursos e estabelecem incentivos associados a

    comportamentos especficos, afetando as interaes entre atores de um determinado

    setor. Em outras palavras, as polticas pblicas moldam interesses, preferncias e as

    estratgias dos atores.

    Na literatura da Cincia Poltica, argumentos que afirmam que as polticas

    pblicas determinam a poltica (policies determine politics) remontam a Lowi (1964;

    1972). Esse autor sugere que as polticas pblicas so espaos de disputa de poder,

    assim como argumenta que os objetivos de uma poltica afetam o processo poltico de

    sua produo, por condicionar o foco e o comportamento dos atores envolvidos.

    Assim, cada rea da ao governamental gera diferentes pontos de vetos ou grupos deapoio, processando-se de forma diversa: as caractersticas de uma poltica pblica

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    formatam a lgica e a dinmica da ao poltica, sendo que as disputas em torno de

    sua deciso envolvem diferentes arenas.

    Lowi apresenta uma taxonomia de polticas pblicas na forma de quatro tipos

    ideais, com suas respectivas arenas: distributivas, redistributivas, regulatrias e

    constitutivas (LOWI, 1964; 1972). O primeiro tipo de poltica pblica refere-se s

    decises tomadas pelos governos que geram impactos individuais ou localizados, nos

    quais os beneficirios so grupos sociais especficos, mas cujos custos so arcados

    pelo todo, por meio do oramento geral. Neste tipo encaixam-se as polticas do tipo

    clientelista ou de patronagem. Sua arena de poder seria marcada, conforme Lowi,

    pela ausncia de conflitos e no interferncia mtua, pois se cada grupo procura

    benefcios para si, seria inadequado opor-se aos benefcios procurados por outros. Osegundo tipo refere-se s polticas redistributivas, que so aquelas que atingem maior

    nmero de pessoas, ao mesmo tempo em que impe perdas concretas e no curto

    prazo para certos grupos sociais. Neste tipo encaixam-se as polticas sociais, como as

    polticas de tributao progressiva, cujo objetivo a redistribuio consciente de

    recursos financeiros, direitos ou outros valores entre camadas sociais e grupos da

    sociedade. J que implicam divises de classes sociais, sua arena de poder seria

    marcada pela polarizao e disputa ideolgica.35

    As polticas regulatrias, por sua vez,envolvem a implementao de normas legais visando correo de falhas de

    mercado, como as polticas de competio, meio ambiente ou defesa do consumidor.

    Por envolver interesses diversos e desagregados, sua arena poltica marcada por

    coalizes de interesses instveis que apenas se tangenciam. Por fim, as polticas

    constitutivas envolveriam a formulao e implementao de regras que

    normatizariam outras leis e procedimentos, como artigos constitucionais, ou a

    criao de novas organizaes. Por terem status mais ideolgico, abrem espao para

    atuao partidria, porm a atuao poltica de cada grupo vai variar de acordo com o

    grau de identificao com o problema em questo.

    De acordo com a abordagem institucionalista-histrica, medida que uma

    poltica implementada, ela transforma a distribuio das preferncias como

    tambm o universo dos atores. Dessa maneira, os custos econmicos e polticos da

    mudana tornam-se mais altos com o tempo, como tambm se tornam mais altos os

    35 Sabe-se que tais definies no so muito claras, porque todas as polticas contm elementos

    distributivos e redistributivos ao mesmo tempo e, especialmente, porque os polticos tendem a venderpolticas redistributivas de soma zero como distributivas, em que no h perdedores. Polticasredistributivas so de soma zero e se fazem beneficiando um grupo ou regio em detrimento de outro(deve-se este comentrio Professora Maria Rita Loureiro).

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    retornos por se permanecer na mesma situao. Assim como acontece com a

    dinmica institucional, o mecanismo de policy feedback que explica tal fenmeno

    (num processo de retroalimentao entre instituies e interesses): os atores tm

    interesses na permanncia da instituio, mas foi a instituio que moldou os

    interesses desses atores.

    Se a abordagem pluralista v sempre os grupos de interesse determinando as

    aes governamentais (por exemplo, via lobby), Pierson (1993) argumenta sobre a

    necessidade de inverter essa direo causal, pois, muitas vezes, so as polticas que

    emergem em primeiro lugar, formando grupos de interesse, suas preferncias e

    padres especficos de mobilizao poltica. Ou seja, a ao dos grupos de interesse,

    em muitos casos, mais segue do que precede a implementao de polticas pblicas.Ressalte-se, ainda, que execuo de polticas pode ter como efeito, conforme

    Pierson (1993), a contrarreao dos atores, criando condies para que

    empreendedores polticos possam superar problemas de ao coletiva e provocar

    mudanas na poltica em curso.

    O que se estabelece como desafio, afinal, como aplicar essas formulaes por

    meio da pesquisa emprica. No caso da presente pesquisa, como converter tais

    conceituaes e proposies tericas em hipteses para anlise de problemasconcretos. A esse respeito, vale mencionar Immergut (2006), propondo que, por

    serem os processos sociais moldados por eventos complexos e por possurem

    mltiplas causalidades, difcil que a mudana institucional seja modelada

    teoricamente e de forma sistemtica. Por isso, acrescenta a autora, no existem

    substitutos anlise emprica e qualitativa que desvende os processos causais,

    principalmente quando se deseja encontrar explicaes para casos especficos. o

    que este trabalho prope-se a fazer.

    1.3 Objetivos e metodologia

    1.3.1 Preliminares metodolgicos

    Uma caracterstica da abordagem institucionalista-histrica a sua

    preocupao com a explicao de fenmenos sociais concretos usando,especialmente, o mtodo comparativo. O institucionalista histrico est interessado

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    na compreenso da complexidade dos eventos, mediante estudos de casos com valor

    intrnseco para, assim, produzir o dilogo entre teoria e evidncia e contribuir para a

    construo de teorias de mdio alcance.36 Parafraseando Marques (1997, p. 75), para

    os institucionalistas histricos no possvel estabelecer postulados definitivos ou

    teorias gerais, mas apenas proposies tericas baseadas em afirmaes provisrias a

    serem testadas e alteradas a partir da realizao de estudos empricos.

    A escolha da metodologia de um trabalho cientfico deve levar em

    considerao os pressupostos bsicos do pesquisador sobre a natureza da realidade

    social e de suas relaes causais; ou seja, necessrio alinhar a metodologia com a

    ontologia (HALL, 2003). Quando a anlise a ser empreendida pressupe que o

    momento e a sequncia em que um desenvolvimento particular ocorre soimportantes e que a compreenso das motivaes (razes) dos atores fundamental

    para a explicao do resultado de interesse da pesquisa, os mtodos de pesquisa

    quantitativos convencionais perdem sua eficcia. As anlises de regresso

    multivariada estimam as correlaes e no a direo causal entre as variveis

    explicativas. Igualmente, as anlises de regresso fazem uma srie de pressuposies

    sobre a natureza das relaes entre as variveis (e.g., homogeneidade das unidades

    de anlise e independncia entre as observaes) que no se coadunam com aspressuposies das abordagens temporais (a presena de multicausalidade,

    causalidade recproca entre variveis independentes e dependentes e outras

    interaes complexas).37

    Hall (2003) denominou de anlise sistemtica de processos o mtodo que

    examina, com base em proposies tericas, os processos que conectam a varivel

    dependente a uma ou mais variveis independentes em relao causal que adota uma

    36 As teorias de mdio alcance (middle range theories), termo cunhado por Robert K. Merton, soconstrudas com base na integrao entre tcnicas de pesquisa emprica e esquemas conceituais apartir dos quais podem ser derivadas proposies tericas, empiricamente testveis, sobre o mundosocial. Segundo Rueschemeyer (2003), as teorias consistem em uma srie de conceitos que definemclaramente o que deve ser explicado e identificam um conjunto de fatores relevantes para a explicao;oferecem justificaes para as conceituaes particulares que se propem, bem como argumentos afavor de sua escolha de fatores causais relevantes; podem explicar certas relaes lgicas que no sobvias primeira vista; e podem conter tambm uma mistura ocasional de hipteses especficastestveis e testadas. O valor de tal arcabouo terico reside na sua utilidade para a investigaoemprica. Enquanto eles no podem ser julgados como verdadeiros ou falsos em um sentido maisimediato, sua qualidade, no entanto, depende da sua adequao s realidades estudadas.37 Hall (2003) estabelece que as principais caractersticas dos processos causais nos fenmenos sociais

    so as seguintes: (i) existncia de efeitos de interao entre as variveis; (ii) existncia demulticausalidade; (iii) os efeitos de uma varivel sobre outra dependem do tempo e da sequncia emque elas ocorrem; (iv) existncia de multicolinearidade; (v) a relao entre as variveis dependente eindependentes mutuamente determinada (X pode causar Y, que tambm pode causar X).

  • 8/7/2019 reestruturao regulatria transportes

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    especfica ontologia. Esta pressupe que a sequncia e o contexto em que ocorrem os

    eventos importam explicao do fenmeno em anlise. George e Bennett (2004),

    por sua vez, chamam esse mtodo de rastreamento de processos (process tracing).

    Tais mtodos focam a identificao dos links entre processos e resultados observados

    (ou como as variveis explicativas se ligam varivel dependente). justamente a

    especificao dos nexos de causalidade o que distingue as proposies sobre os

    mecanismos de proposies sobre as correlaes (GERRING, 2010).

    O mtodo de rastreamento de processos, conforme consideram George e

    Bennett (2004, p. 205-32), indispensvel para o teste e desenvolvimento de teorias

    ou proposies tericas porque, alm de gerar inmeras observaes para um nico

    caso, ele liga essas observaes numa explicao causal. Como ressalta Rueschemeyer(2003), um erro igualar um caso a uma observao; um caso pode fornecer uma

    pletora de observaes para cada uma das vari