reestruturação regulatória transportes
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ALEXANDRE DE VILA GOMIDE
APOLTICADASREFORMASINSTITUCIONAIS
NOBRASIL:
A Reestruturao do Setor de Transportes
Tese apresentada Escola de Administraode Empresas de So Paulo da Fundao
Getulio Vargas como requisito parcial paraobteno de ttulo de Doutor emAdministrao Pblica e Governo.
Linha de Pesquisa: Transformaes doEstado e Polticas Pblicas.
Orientadora: Profa. Dra. Maria Rita Loureiro.
SO PAULO
FUNDAO GETULIO VARGAS
2011
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Gomide, Alexandre de vila.A Poltica das Reformas Institucionais no Brasil: a reestruturao do setor de
transportes / Alexandre de vila Gomide. - 2011.178 f.
Orientador: Maria Rita Garcia LoureiroTese (doutorado) - Escola de Administrao de Empresas de So Paulo.
1. Reforma administrativa -- Brasil. 2. Infraestrutura (Economia). 3.Telecomunicaes -- Brasil. 4. Transportes -- Brasil. 5. Transportes Brasil Legislao. I. Loureiro, Maria Rita Garcia. II. Tese (doutorado) - Escola deAdministrao de Empresas de So Paulo. III. Ttulo.
CDU 656(81)
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ALEXANDRE DE VILA GOMIDE
APOLTICADASREFORMASINSTITUCIONAISNO
BRASIL:
A Reestruturao do Setor de Transportes
Tese apresentada Escola de Administraode Empresas de So Paulo da FundaoGetulio Vargas como requisito parcial para
obteno de ttulo de Doutor emAdministrao Pblica e Governo.
Linha de Pesquisa: Transformaes do Estadoe Polticas Pblicas
Aprovada em 23 de fevereiro de 2011
BANCAEXAMINADORA
Profa. Dra. Maria Rita Loureiro - EAESP/FGV
Prof. Dr. Fernando Luiz Abrucio EAESP/FGV
Profa. Dra. Regina Silvia Pacheco EAESP/FGV
Prof. Dr. Rmulo Dante Orrico Filho UFRJ
Prof. Dr. Valeriano Mendes Ferreira da Costa UNICAMP
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Para Larissa, Isadora e Rebeca.
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AGRADECIMENTOS
Professora Maria Rita Loureiro, pela orientao desta pesquisa e o convvio
acadmico enriquecedor.
Aos colegas Fbio Pereira dos Santos e Paula Pedroti, pelos grupos de estudos, a troca
de ideias e a amizade compartilhada.
Professora Ruth Berins Collier, por receber-me como pesquisador visitante no
departamento de Cincia Poltica da Universidade da Califrnia, em Berkeley, bem
como aos Professores Alison E. Post e Steven K. Vogel, pelos valiosos comentrios
minha proposta de tese.
Aos entrevistados, pelo tempo e gentileza de fornecer-me seus depoimentos.
Ao Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (IPEA), pela licena concedida para o
meu curso de doutoramento.
Ao programa GVpesquisa, pela bolsa de estudos (modalidade taxa escolar).
Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES), pela bolsa
para o meu estgio de doutorando no exterior.
Seo de Documentos Legislativos do Centro de Documentao e Informao da
Cmara dos Deputados, especialmente, ao Sr. Irismar de Mattos, por disponibilizar-me os arquivos necessrios para a realizao da pesquisa documental.
A todos aqueles que, direta ou indiretamente, contriburam para a realizao deste
trabalho.
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"Le fait scientifique est conquis, construit, constat".
G. Bachelard
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RESUMO
A pesquisa tem por objetivo explicar o processo poltico que resultou na configurao
institucional do setor federal de transportes consubstanciado na Lei 10.233, de 2001,que reestruturou os transportes aquavirio e terrestre, criou duas agnciasreguladoras autnomas vinculadas ao Ministrio dos Transportes e um conselho parapropor polticas nacionais de integrao dos diferentes modos de transporte, alm doDepartamento Nacional de Infraestrutura de Transportes. Utilizando-se a abordagemterica do institucionalismo histrico da Cincia Poltica contempornea e o mtodode comparao controlada com um caso contrastante, a saber, a reestruturaoinstitucional do setor de telecomunicaes, a anlise mostra como a sequncia doprocesso de reforma e a atuao do mecanismo de policy feedback delinearam umtipo de mudana institucional no setor de transportes caracterizado pela introduode novas regras e organizaes sobre as existentes, diferentemente da mudana no
setor de telecomunicaes, no qual foram removidas as antigas regras e organizaes,substituindo-as por novas.
Palavras-chave: Setor de Transportes. Lei 10.233/2001. Setor de Telecomunicaes.Mecanismo de Policy feedback. Institucionalismo Histrico.
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ABSTRACT
This research aims to explain the political process that resulted in the current
institutional arrangement of the federal transportation sector in Brazil. The FederalLaw 10233, of 2001, restructured water and land transportation; it created twoautonomous regulatory agencies, a council to propose national policies to integratethe different modes of transport, and the National Department of TransportInfrastructure. Using the theoretical approach of historical institutionalism fromcontemporary Political Science and the method of controlled comparison betweentwo contrasting cases, namely the cases of the telecommunication and transportationinstitutional reforms, the analysis concludes that the temporal ordering of the reformprocess and the mechanism of policy feedback had a significant impact on theoutcomes of the transportation case, delineating a pattern of institutional changecharacterized by the introduction of new rules and organizations on top of existing
ones, whereas in the telecommunication sector the institutional change was typifiedby the removal of existing rules and organizations and the introduction of new ones.
Key words: Transportation sector. Federal Law 10233/2001. Telecommunicationsector. Policy feedback. Historical institutionalism.
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABINEE Associao Brasileira da Indstria Eltrica e Eletrnica
ABRATI Associao Brasileira das Empresas de Transporte Rodovirio
Intermunicipal, Interestadual e Internacional de Passageiros
ABTP Associao Brasileira dos Terminais Porturios
ANAC Agncia Nacional de Aviao Civil
ANATEL Agncia Nacional de Telecomunicaes
ANEEL Agncia Nacional de Energia Eltrica
ANP Agncia Nacional de Petrleo
ANPET Associao Nacional de Pesquisa e Ensino em Transportes
ANT Agncia Nacional de TransportesANTAQ Agncia Nacional de Transportes Aquavirios
ANTF Associao Nacional dos Transportadores Ferrovirios
ANTT Agncia Nacional de Transportes Terrestres
ANUST Associao Nacional dos Usurios de Telecomunicaes
AP Administrao Porturia
BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social
BRADESCO Banco Brasileiro de DescontosCAP Conselho de Autoridade Porturia
CAPES Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior
CBA Cdigo Brasileiro de Aeronutica
CBT Cdigo Brasileiro de Telecomunicaes
CBTU Companhia Brasileira de Trens Urbanos
CDFMM Conselho Diretor do Fundo da Marinha Mercante
CESP Comisso Especial
CETERP Centrais Telefnicas de Ribeiro Preto
CF Constituio Federal
cf. Confronte
CMM Comisso de Marinha Mercante
CNI Confederao Nacional da Indstria
COFER Comisso Federal de Transportes Ferrovirios
CONIT Conselho Nacional de Integrao de Polticas de Transporte
CONTEL Conselho Nacional de Telecomunicaes
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CONTTMAF Confederao Nacional dos Trabalhadores em Transportes
Aquavirio e Areo, na Pesca e nos Portos
COSIPA Companhia Siderrgica Paulista
CPqD Centro de Pesquisa e Desenvolvimento da Telebrs
CRT Companhia Rio-grandense de Telecomunicaes
CSN Companhia Siderrgica Nacional
CTBC TELECOM Companhia de Telefones do Brasil Central
CUT Central nica dos Trabalhadores
DAC Departamento de Aviao Civil
DENTEL Departamento Nacional de Telecomunicaes
DER Departamento de Estradas de Rodagem
DNEF Departamento Nacional das Estradas de FerroDNER Departamento Nacional de Estradas de Rodagem
DNIT Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes
DPC Diretoria de Portos e Costas
DTF Departamento de Transporte Ferrovirios
DTR Departamento de Transporte Rodovirio
EBTU Empresa Brasileira de Transportes Urbanos
EC Emenda Constitucionale.g. Exempli gratia
EM Exposio de Motivos
EMBRAER Empresa Brasileira de Aeronutica S/A.
EMBRATEL Empresa Brasileira de Telecomunicaes
ENGEFER Engenharia e Comrcio de Ferragens Armadas
EUA Estados Unidos da Amrica
FAB Fora Area Brasileira
FAEF Federao das Associaes dos Engenheiros Ferrovirios
FEBRABAN Federao Brasileira dos Bancos
FENAFAP Federao Nacional das Associaes dos Ferrovirios
Aposentados e Pensionistas
FENATTEL Federao Nacional dos Trabalhadores em Empresas de
Telecomunicaes
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FENCCOVIB Federao Nacional dos Conferentes e Consertadores de Carga e
Descarga, Vigias Porturios, Trabalhadores de Bloco,
Arrumadores e Amarradores de Navios nas Atividades Porturias
FENOP Federao Nacional dos Operadores Porturios
FEPASA Ferrovias Paulistas S.A.
FHC Fernando Henrique Cardoso
FIESP Federao das Indstrias de So Paulo
FISTEL Fundo de Fiscalizao das Telecomunicaes
FITTEL Federao Interestadual dos Trabalhadores em
Telecomunicaes
FMI Fundo Monetrio Internacional
FMM Fundo de Marinha MercanteFNT Fundo Nacional de Telecomunicaes
FRN Fundo Rodovirio Nacional
GEIPOT Empresa Brasileira de Planejamento de Transportes
IBDT Instituto Brasileiro de Desenvolvimento das Telecomunicaes
IBM International Business Machines
ICMS Imposto sobre Circulao de Mercadorias e Servios
i.e. Isto INFRAERO Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroporturia
IPEA Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada
ISTR Imposto sobre Servio de Transporte Rodovirio
IUCL Imposto nico sobre Combustveis e Lubrificantes
LGT Lei Geral de Telecomunicaes
MARE Ministrio da Administrao e Reforma do Estado
MBR Mineraes Brasileiras Reunidas
MC Ministrio das Comunicaes
NI No identificado
NTC Associao Nacional das Empresas de Transportes Rodovirios
de Cargas
OCDE Organizao para Cooperao e Desenvolvimento Econmico
OGMO rgo de Gesto de Mo de obra do Trabalho Porturio
OGU Oramento Geral da Unio
OIT Organizao Internacional do Trabalho
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P&D Pesquisa & Desenvolvimento
PCdoB Partido Comunista do Brasil
PDS Partido Democrtico Social
PDT Partido Democrtico Trabalhista
PEC Proposta de Emenda Constitucional
PFL Partido da Frente Liberal
PIB Produto Interno Bruto
PL Projeto de Lei
PMDB Partido do Movimento Democrtico Brasileiro
PND Programa Nacional de Desestatizao
PORTOBRS Portos do Brasil S.A.
PP Partido ProgressistaPROCROFE Programa de Concesses de Rodovias Federais
PRO-REG Programa de Fortalecimento da Capacidade Institucional para
Gesto em Regulao
PSB Partido Socialista Brasileiro
PT Partido dos Trabalhadores
PTB Partido Trabalhista Brasileiro
RFFSA Rede Ferroviria Nacional S.A.RNTRC Registro Nacional de Transportadores Rodovirios de Carga
SERCOMTEL Servio Municipal de Telecomunicaes de Londrina
SINDMAR Sindicato Nacional dos Oficiais da Marinha Mercante
SINTTEL Sindicato dos Trabalhadores em Telecomunicaes
SUNAMAM Superintendncia Nacional de Marinha Mercante
SYNDARMA Sindicato Nacional das Empresas de Navegao Martima
t0 Tempozero
t1 Tempo um
TCU Tribunal de Contas da Unio
TELEBRS Telecomunicaes Brasileiras S.A.
TRU Taxa Rodoviria nica
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LISTA DE ILUSTRAES
Figura
FIGURA 1 Estrutura organizacional do setor federal de transportes,segundo a Lei 10.233/2001 ...................................................................... 142
Quadros
QUADRO 1 Origens contextuais e institucionais da mudanainstitucional .............................................................................................. 35
QUADRO 2 Composio societria dos novos concessionriosferrovirios privados, por malha (1999) ..................................................
86QUADRO 3 Concessionrias da 1 etapa do PROCROFE ......................... 92
QUADRO 4 Sinopse: a desestatizao no setor federal de transportes nadcada de 1990 (at a criao das agncias reguladoras, em 2001) ........ 111
QUADRO 5 Comisso especial do PL-1.615/1999: membros titulares ..... 120
QUADRO 6 Expositores nas audincias pblicas da CESP do PL-1.615/1999 ................................................................................................. 122
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SUMRIO
1 REFORMAS REGULATRIAS E VARIAES SETORIAIS ..................................... 161.1 Contextualizao, reviso da literatura e demarcao da abordagem .................... 161.2 Abordagem terica ................................................................................................... 271.2.1 O institucionalismo histrico e a mudana institucional ..................................... 271.2.2 Polticas pblicas como instituies ..................................................................... 351.3 Objetivos e metodologia .......................................................................................... 371.3.1 Preliminares metodolgicos ................................................................................. 371.3.2 Delimitao do problema de anlise e dos objetos de estudo............................. 401.3.3 Estratgia de pesquisa ......................................................................................... 421.4 Especificao das variveis ..................................................................................... 441.4.1 A varivel dependente .......................................................................................... 44
1.4.2 Hiptese de trabalho ........................................................................................... 461.5 Apresentao dos captulos ..................................................................................... 47
2 O CASO CONTROLE: A REESTRUTURAO DO SETOR DETELECOMUNICAES.............................................................................................. 49
2.1 Abordagem inicial ................................................................................................... 492.2 As atuais instituies regulatrias das telecomunicaes ..................................... 492.3 O regime preexistente ............................................................................................. 542.4 As tentativas de reforma anteriores a 1995 ............................................................ 562.5 O processo de reforma ............................................................................................. 59
2.5.1 O ambiente macroeconmico e os avanos tecnolgicos .................................... 602.5.2 Atores e interesses ............................................................................................... 622.5.3 A quebra do monoplio pblico ........................................................................... 652.5.4 A liberalizao da telefonia celular ...................................................................... 672.5.5 A aprovao da LGT ............................................................................................ 692.5.6 A instalao da ANATEL e a privatizao do sistema TELEBRS ..................... 722.6 Concluses preliminares ......................................................................................... 75
3 A DESESTATIZAO DO SETOR DE TRANSPORTES: TRAJETRIAS, ATORES EINTERESSES .............................................................................................................. 78
3.1 Abordagem inicial .................................................................................................... 783.2 Antecedentes ........................................................................................................... 793.3 O transporte ferrovirio ......................................................................................... 823.4 O transporte rodovirio........................................................................................... 873.4.1 Passageiros ............................................................................................................ 873.4.2 Cargas .................................................................................................................. 883.4.3 Rodovias .............................................................................................................. 903.5 O transporte aquavirio ......................................................................................... 933.5.1 Portos ................................................................................................................... 933.5.2 Navegao .......................................................................................................... 1003.6 O GEIPOT e o planejamento dos transportes....................................................... 104
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3.7 A especificidade institucional da aviao comercial no Brasil ............................. 1053.8 Concluses preliminares ....................................................................................... 108
4 A RECONFIGURAO ORGANIZACIONAL DO SETOR FEDERAL DETRANSPORTES: A LEI 10.233 DE 2001 .................................................................. 116
4.1 Abordagem inicial .................................................................................................. 1164.2 A proposta do Poder Executivo ............................................................................. 1164.3 A discusso no Congresso Nacional ...................................................................... 1194.3.1 Atores e interesses .............................................................................................. 1194.3.2 O substitutivo do relator .................................................................................... 1344.4 Principais aspectos da nova estrutura institucional do setor ............................... 1414.5 Concluses preliminares ....................................................................................... 145
5 A ANLISE CAUSAL-COMPARATIVA ................................................................... 1495.1 Abordagem inicial .................................................................................................. 1495.2 A explicao causal ................................................................................................ 1495.3 O contraste entre os casos ..................................................................................... 1565.4 Implicaes tericas .............................................................................................. 160
CONSIDERAES FINAIS ........................................................................................ 164
REFERNCIAS ........................................................................................................... 167
APNDICE Relao dos entrevistados .................................................................... 177
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1 REFORMAS REGULATRIAS E VARIAES SETORIAIS
1.1 Contextualizao, reviso da literatura e demarcao da abordagem
O comeo dos anos de 1980 no Brasil foi marcado pela crise do nacional-
desenvolvimentismo, estratgia de industrializao e modelo de Estado que
alicerava as atividades econmicas e a vida poltica do pas desde a dcada de 1930 e
cujo pice ocorrera nos anos 1970, com o chamado milagre econmico e o segundo
Plano Nacional de Desenvolvimento.1 No plano poltico, o nacional-
desenvolvimentismo baseava-se em trs pilares: um Estado forte e intervencionista; o
planejamento econmico como instrumento para o desenvolvimento do pas; e a
doutrina e prtica do corporativismo como forma de articular as relaes entre os
principais atores da sociedade e canalizar suas demandas para o Estado (DINIZ;
BRESSER-PEREIRA, 2007).2
Contudo, aps o colapso do modelo de Breton Woods de gerenciamento
econmico internacional e duas crises do petrleo, essa estratgia poltica e
econmica comeou a esgotar-se (ver KON, 1999). O resultado foi a crise fiscal efinanceira que resultou na perda da capacidade de comando e coordenao do
Estado, que marcou o perodo; no s os emprstimos privados estrangeiros
cessaram, como ocorreu significativa transferncia lquida de recursos para o
exterior, sobretudo em virtude do servio da dvida externa. Assim, o perodo de
transio democrtica, iniciado em 1984, foi marcado pela crise da dvida externa e
pelas altas taxas de inflao, sendo que o nacional-desenvolvimentismo, que fora
efetivo em promover o desenvolvimento econmico do pas, revelou-se incapaz deenfrentar esses dois problemas (DINIZ; BRESSER-PEREIRA, 2007).
1 O primeiro ocorreu entre 1969-73, quando o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro cresceu taxamdia acima de 10% ao ano; o segundo, entre 1974-79, no governo Geisel.2 O corporativismo pode ser definido como um sistema de representao de interesses da sociedadecivil organizada nas estruturas de deciso do Estado. Para Schmitter (1974, p. 94), o Estadocorporativo pode ser definido como um sistema de representao de interesses no qual as unidadesque o constituem so organizadas em um nmero limitado de categorias singulares, compulsrias, no
competitivas, ordenadas hierarquicamente e funcionalmente diferentes; tais categorias soreconhecidas pelo Estado e tm sua licena para existir (em algumas ocasies so por ele criadas) elhes garantido o monoplio de representao deliberativa. Em troca, devem seguir alguns controlesno que diz respeito escolha do lder, articulao de suas demandas e apoio.
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Surgem, assim, as condies materiais para a difuso das ideias neoliberais no
Brasil.3 Para Paulani (2008, p. 105-139), o neoliberalismo uma doutrina (que possui
uma histria intelectual concreta) e um receiturio de prticas de poltica econmica:
uma doutrina calcada no discurso que atribui ao suposto gigantismo do Estado e em
sua excessiva participao na economia as causas da crise; e um receiturio que se
baseia na reduo dos gastos pblicos, na abertura (comercial e financeira) das
economias nacionais e na reduo da interveno e do tamanho do Estado, mediante
programas de privatizao, desregulamentao e reforma administrativa.
Diniz e Bresser-Pereira (2007) ressaltam que a formao do consenso
neoliberal no Brasil iniciou-se na segunda metade dos anos de 1970, quando setores
empresariais nacionais comearam a manifestar-se politicamente contra o Estado-produtor (i.e. que atuava de forma direta na atividade econmica) e o poder
discricionrio da cpula burocrtica. Tais questionamentos desencadearam uma
campanha para a retirada do Estado da economia que, com o apoio da mdia,
difundiu-se entre as classes mdias.4 Segundo Sallum Jr. (2000), no decorrer da
dcada de 1980 foi se tornando claro para o empresariado nacional e seus porta-vozes
intelectuais e polticos que a retomada do crescimento econmico j no poderia mais
depender da presena dominante do Estado no sistema produtivo. Nos termos deEvans (1992), o Estado de soluo virou problema. Assim, o empresariado nacional
clama por polticas de desregulamentao, privatizao, liberalizao.5
Porm, somente com o governo Collor, a partir de 1990, ocorreu significativa
ruptura com o padro nacional-desenvolvimentista. Para Sallum Jr. (2000), foi
durante esse governo que surgiu o embrio de uma nova estratgia de
desenvolvimento que o governo Fernando Henrique Cardoso veio redesenhar e
consolidar. Tal estratgia seria caracterizada pela integrao liberal da economia
domstica ao sistema econmico mundial (ou estratgia neoliberal de integrao
global). Ela no visava, como no modelo anterior, construir uma estrutura industrial
nacional integrada, mas preservar apenas aqueles ramos industriais que
conseguissem, depois de um perodo de adaptao, mostrar suficiente vitalidade para
3 Conforme a abordagem terica adotada nesta pesquisa, as ideias exercem papel importante nasmudanas institucionais. Numa crise econmica, por exemplo, onde nenhuma ideia anterior parece seadequar, novas ideias oferecem uma perspectiva de soluo, fazendo possvel a construo de coalizespara mudana. Este ponto ser discutido a seguir (cf. seo 1.2).4 Para anlise pormenorizada do surgimento e a organizao poltico-ideolgica do neoliberalismo noBrasil e no mundo, ver Gros (2003).5 Vide o documento da Federao das Indstrias de So Paulo (FIESP), lanado em 1990, intituladoLivre para Crescer: proposta para um Brasil moderno.
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competir abertamente numa economia internacionalizada. Em outras palavras, o
parque industrial domstico converter-se-ia em parte especializada de um sistema
industrial transnacional.6 Ao mesmo tempo, implantar-se-iam programas de
desregulamentao das atividades econmicas e de desestatizao (privatizaes e
liberalizao de setores antes monoplios estatais) para recuperar as finanas
pblicas e liberar parte significativa da poupana agregada. Com esse conjunto de
medidas, prognosticava-se, o parque industrial do pas ampliaria sua
competitividade, a capacidade empresarial nos diversos setores da economia seria
reforada e o mercado de capitais seria fortalecido.
Para Sallum Jr. (2000), com o governo FHC que se consolidam o receiturio
neoliberal e a nova estratgia de insero externa. Conforme esse autor, oimpeachment de Collor, a exacerbao da instabilidade poltico-econmica no
perodo Itamar Franco e o crescimento do prestgio popular do candidato das foras
de esquerda Presidncia da Repblica constituram condies e alavancas
poderosas para a tentativa - efetivada em 1994 com o sucesso do Plano Real - de
costurar politicamente a superao da crise de hegemonia em torno de uma agenda
de reformas. Isso foi corporificado na candidatura vitoriosa Presidncia da
Repblica do seu articulador, o ento senador e ministro da Fazenda, FernandoHenrique Cardoso. Este, por sua vez, durante todo o perodo de governo buscou com
perseverana cumprir o propsito de por fim Era Vargas.7
Para quebrar o arcabouo institucional que conformava o velho Estado
nacional-desenvolvimentista consubstanciado na Constituio de 1988, o governo
Fernando Henrique Cardoso promoveu uma srie de reformas institucionais. Entre
as mais relevantes, destacam-se: o fim da discriminao constitucional em relao s
6 Para Sallum Jr. (2000), ainda que se reconhea que a nova etapa de desenvolvimento globalizado docapitalismo tende a inviabilizar projetos de construo de capitalismos em bases nacionais, no seaceita a implicao, que se tenta tirar disso, de que todos os pases devam se integrar do mesmo modono sistema mundial. Ao contrrio, eles o faro de maneiras diversas, regulados por instituiesprprias, dependentes das condies naturais e sociais legadas por sua histria e das escolhas polticasque fizerem. Por essa via, ganha novamente significado a questo das estratgias nacionais para odesenvolvimento.7 Em seu discurso de despedida do Senado Federal, em 14 de dezembro de 1994, Fernando HenriqueCardoso referiu-se ao legado da Era Vargas (i.e. ao seu modelo de desenvolvimento autrquico e ao seuEstado intervencionista) como um pedao do nosso passado poltico que ainda atravanca o presente eretarda o avano da sociedade [brasileira]. De acordo com o ex-senador, seria premente a abertura deum novo ciclo de desenvolvimento que colocasse na ordem do dia os temas da reforma do Estado e deum novo modo de insero do Pas na economia internacional. A estabilidade macroeconmica, a
abertura da economia e a mudana da natureza do Estado brasileiro (i.e. de produtor direto de bens eservios para criador do marco institucional que assegure plena eficcia ao sistema de preosrelativos) constituir-se-iam, assim, nas bases de seu governo inaugurando um novo modelo dedesenvolvimento.
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empresas de capital estrangeiro; a transferncia para a Unio do monoplio da
explorao, refino e transporte de petrleo e gs - antes detido pela Petrobrs; e a
autorizao para o Estado passar a conceder o direito de explorao dos servios de
telecomunicaes a empresas privadas.8 Alm dessas emendas Constituio, o
Congresso Nacional aprovou a lei que regulamenta as concesses da prestao de
servios pblicos previstos Constituio de 1988 (cujo projeto de lei era de autoria do
ento senador Fernando Henrique Cardoso) e o Executivo aprofundou o programa de
privatizaes de empresas estatais iniciado pelo governo Collor (o Programa Nacional
de Desestatizao, de 1990).
Os processos de privatizaes e concesses da prestao de servios pblicos
que se seguiram foram acompanhados pela promulgao de uma srie de leis quereestruturaram os setores cujo Estado desenvolvia atividades empresariais, bem
como redefiniram as funes e a organizao do setor pblico mediante a criao das
agncias reguladoras autnomas.9 Conforme Melo (2008), o modelo de agncias
reguladoras autnomas seria essencial para garantir credibilidade (crebible
commitments) aos novos investidores e atores privados nos setores desestatizados,
ou seja, que os contratos firmados seriam honrados no futuro, sem mudanas nas
regras do jogo, i.e. sem a chamada expropriao administrativa de rendas, viacongelamento de preos, manipulao de tarifas, reestatizao etc. Por conseguinte, a
autonomia desses novos entes administrativos seria em relao ao governo, adquirida
por meio de dispositivos institucionais que insulem os burocratas reguladores das
denominadas presses polticas de curto prazo (o no reajuste das tarifas em ano de
eleies, por exemplo). Tais dispositivos incluem os mandatos fixos e escalonados
para os dirigentes das agncias; as condies legais para o enforcement das suas
8 As Emendas Constitucionais 5, 6, 7, 8 e 9, todas de 1995. A EC nmero 5 estabelece o regime legal deprestao de servios de gs natural pelos Estados; a EC 6 estabelece o regime de pesquisa e extraode recursos minerais; a EC 7 desconstitucionaliza a exclusividade das embarcaes nacionais notransporte de mercadorias na navegao de cabotagem; a EC 8 estabelece o regime legal de servios detelecomunicaes e define a criao de um rgo regulador para o setor; e a EC 9 elimina o monopliolegal de leo e gs natural e define a criao de um rgo regulador para o setor.9 So elas: Lei Geral de Telecomunicaes (Lei 9.472/97), que criou a Agncia Nacional deTelecomunicaes; Lei 9.427/96, que estabeleceu as regras para a prestao de servios de gerao etransmisso de energia eltrica e criou a Agncia Nacional de Energia Eltrica; Lei 9.478/97, queestabeleceu as regras para a prestao de servios de gs canalizado e para o funcionamento daindstria do petrleo e criou a Agncia Nacional do Petrleo; Lei 9.984/2000, a Agncia Nacional deguas; Lei 10.233/2001, que reestruturou o setor federal de transportes e criou a Agncia Nacional deTransportes Aquavirios e a Agncia Nacional de Transportes Terrestres. Cabe mencionar tambm a
Lei 9.782/99, que criou a Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria; a Lei 9.961/2000, que criou aAgncia Nacional de Sade Suplementar; e criao da Agncia Nacional do Cinema mediante MedidaProvisria no 2.228-1/2001 que, apesar de no regularem servios pblicos de infraestrutura,adotaram o mesmo modelo autnomo das anteriores na forma de autarquias especiais.
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decises (mecanismos de apelo de decises via Judicirio e no ao Poder Executivo);
autonomia financeira (obtida por meio de taxas e impostos com destinao especfica
para o setor e no passveis de contingenciamentos oramentrios pelo Poder
Executivo), entre outros.10
Mattos (2006) argumenta que a criao das novas agncias autnomas para
regulao de mercados concedidos marcaria um movimento poltico de
transformao da burocracia estatal nacional, no sendo apenas uma resposta
tecnoeconmica denominada crise fiscal do Estado. Para o autor, a criao das
agncias reguladoras autnomas redefiniria as relaes entre o Poder Executivo com
os setores estratgicos da economia (telecomunicaes, energia eltrica, gs e
petrleo, transportes, etc.) inaugurando um novo modelo de interveno cujospressupostos tericos, desenho institucional e procedimentos decisrios corrigiriam
os problemas do modelo inaugurado por Vargas. Tais problemas estariam, conforme
aquele autor, na centralizao das decises polticas no Executivo (nas mos do
Presidente da Repblica, da burocracia ministerial e das empresas estatais) e na
ausncia de mecanismos de participao da sociedade civil no controle democrtico
das decises tomadas. Segundo Mattos, no Estado nacional-desenvolvimentista as
disputas polticas tinham lugar nos canais de circulao de poder internos burocracia estatal e nos denominados anis burocrticos.11 Assim, para o autor, a
criao das agncias reguladoras significaria pelo menos no ponto de vista jurdico-
formal um novo locus de circulao de poder poltico devido forma autnoma e
descentralizada de funcionamento das novas organizaes. Conforme argumenta
Mattos, as agncias inaugurariam uma nova arena na elaborao de polticas
10 Deve-se ressaltar, contudo, que no a primeira vez na histria do Brasil que se utiliza domecanismo de insulamento de parte do Executivo para gesto de reas essenciais. Nunes (2003), porexemplo, narra como o governo JK usou dos Grupos Executivos que, com delegao legislativa,reproduziam em seu interior os processos decisrios do Estado de forma protegida do jogo polticotradicional.11 Mattos (2006), baseado nos desenvolvimentos do socilogo Fernando Henrique Cardoso sobre osanis burocrticos, relata que o Estado desenvolvimentista brasileiro significou a formao de umanova classe, os funcionrios pblicos tecnocratas. Com o fortalecimento dessa burocracia estatalplanejadora, as alianas entre interesses polticos e econmicos se organizaram de maneira a formarno interior do aparelho estatal ilhas de racionalidade que permitiram justificar polticas pblicas emnome de critrios meramente tcnicos. Entretanto, como essas ilhas de racionalidade se formaramdentro de uma estrutura institucional caracterizada pelo clientelismo poltico, elas acabaram por noservir ao interesse pblico, mas aos interesses privados que se organizaram no interior do Estado.Dado a perda de funo dos partidos polticos e o enfraquecimento do Legislativo no perodoautoritrio ps-golpe de 1964, esse sistema significou a sofisticao das relaes polticas centralizadas
ainda mais no interior do Estado, na figura dos funcionrios pblicos tecnocratas, os tcnicos, e osgrupos de interesse privados. Assim, diante da realidade desses anis entre burocratas e grupos deinteresse, a separao entre tcnica e poltica acabou por resultar em prticas muito distantes do idealde interesse pblico ou de bem comum.
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pblicas, como tambm a possibilidade dos processos decisrios serem passveis de
controle democrtico pela sociedade.
Santos (2006), no entanto, alega que se a chamada era Vargas propiciou a
criao de um Estado e de uma burocracia apropriados para o jogo do clientelismo
clssico, as iniciativas que visaram a enterrar a herana varguista acabaram por
permitir as condies para o progresso do que ele denomina de clientelismo
concentrado. Para esse autor, os verdadeiros riscos poliarquia no se encontram
em polticas distributivas, cuja demanda vem de grupos fragmentados e abertos a
polticos vidos por estabelecer uma conexo eleitoral eficaz (o clientelismo
tradicional), mas nas relaes do que ele denomina de clientelismo concentrado,
que envolveria grupos de interesse organizados e agncias autnomas.12 SegundoSantos, a poltica regulatria do Estado por meio de agncias autnomas significaria
a descentralizao excessiva das funes pblicas e a adaptao de cada unidade
administrativa aos interesses de seus clientes especficos, permitindo a apropriao
privada do aparato administrativo. Isso porque, conforme esse autor, as demandas do
mercado so mais racionalizadas, organizadas e integradas em relao s demandas
da sociedade civil, cindidas em mltiplos movimentos sociais e, no raro,
contraditrios. Em suma, Santos (2006) argumenta, em contraste com Mattos(2006), que a possibilidade da captura das agncias autnomas pelos regulados pode
agravar os problemas do Estado varguista, devido precariedade dos mecanismos de
controle pblico associado ao carter de insulamento das decises.
Por sua vez, Nunes et al. (2007), mediante a anlise da gnese das trs
primeiras agncias reguladoras autnomas da dcada de 1990 - Agncia Nacional de
Energia Eltrica (ANEEL), Agncia Nacional de Telecomunicaes (ANATEL) e
Agncia Nacional do Petrleo (ANP) -, concluram que a criao dessas novas
entidades prescindiu de um verdadeiro regime regulatrio ou um marco de
referncia poltico-institucional que desse sentido s suas funes.13 Nas palavras dos
autores:
12 Santos (2006) distingue dois tipos de clientelismo nas polticas governamentais: o clientelismodistributivo clssico, em que o poltico distribui favores para a populao mais carente, custeados peloEstado e, em ltima anlise, pelos contribuintes, visando obteno de votos; e o clientelismoconcentrado, em que os custos de uma poltica so distribudos por toda a sociedade, mas com seus
benefcios apropriados por reduzido grupo de pessoas ou organizaes.13 Conforme explica Vogel (1996), regimes regulatrios so arranjos institucionais que formam umaconfigurao historicamente especfica de polticas que estruturam os relacionamentos entre osinteresses sociais, do Estado e dos atores econmicos em mltiplos setores da economia.
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A criao das agncias prescindiu, at o momento, de um verdadeiroregime regulatrio amplo, que desse sentido global nova instnciaregulatria. As unidades regulatrias agem independentemente deum marco de referncia, exceto os contratos das reas em que atuam[...] faltou, durante o processo de elaborao das agncias, umadefinio jurdica e institucional ntida para os rgos reguladores, afim de estabelecer, por exemplo, formas de controle social e padresde relao com a administrao direta e com os poderes Legislativo eJudicirio (NUNES et al., 2007,p. 19, 268).
Como lembram os autores, apesar do esforo de reformas no perodo, no
existia at o momento da criao das primeiras agncias qualquer definio clara de
como deveriam ser estruturados esses novos rgos. Embora o Plano Diretor da
Reforma do Aparelho do Estado enfatizasse a necessidade de regulao dos
mercados, o modelo de agncias reguladoras autnomas no foi contemplado em sua
elaborao. Foi apenas em maio de 1996 que, segundo Nunes e outros, o Conselho de
Reforma do Estado recomendou princpios gerais para a institucionalizao das
novas agncias.14 Mas, conforme os autores, o Conselho no elaborou propostas sobre
o novo sistema regulatrio, sobre o aparato doutrinrio que deveria presidi-lo, nem
sobre a relao das novas agncias com as demais instncias e esferas de deciso de
governo. Ao contrrio, verificou-se que a elaborao dos projetos de lei e atos legais
de criao das primeiras agncias reguladoras foi conduzida pelos Ministrios
setoriais e Presidncia da Repblica para implantao imediata, enquanto o rgo
responsvel pela reforma do aparelho do Estado corria a reboque, na tentativa de
compatibilizar seu desenho mais amplo com fatos consumados (Nunes et al., 2007).
Dessa maneira, e pela ausncia de uma poltica que orientasse sua atuao, a
estruturao e o funcionamento das agncias reguladoras no Brasil vem sendo objeto
de vrias crticas por parte da literatura especializada, dentre elas: pelo fato de seu
escopo de atuao ultrapassar os limites da regulao, j que foi delegado o poder deoutorga e concesses de servios pblicos e de formulao das polticas setoriais (vide
a incumbncia de propor os planos gerais de outorgas); pela politizao na
nomeao de presidentes e diretores; pela inexistncia da autonomia financeira de
facto, dados os frequentes contingenciamentos de recursos a que esses entes so
submetidos; pelo dficit democrtico contido em sua essncia, na medida em que
14 Institucionalmente, a reforma do Estado no governo de Fernando Henrique Cardoso era
responsabilidade de trs rgos: a Cmara da reforma do Estado da Presidncia da Repblica, oMinistrio da Administrao Federal e da Reforma do Estado (Mare) e o Conselho de Reforma doEstado. Este foi constitudo como um rgo consultivo, vinculado ao Mare, sendo que seusconselheiros no eram servidores da administrao pblica.
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seus administradores no esto submetidos aos procedimentos de accountability
eleitoral (cf. SALGADO; MOTTA, 2005; Nunes et al. 2007). Ao mesmo tempo,
aponta-se que os ministrios setoriais teriam perdido seus quadros e,
consequentemente, sua capacidade de planejamento estratgico e formulao de
polticas pblicas.
O relatrio produzido pela Organizao para Cooperao e Desenvolvimento
Econmico (OCDE, 2008) sobre a governana regulatria brasileira, por exemplo,
indicou a necessidade de se aprimorar o sistema jurdico do pas no sentido de se
fornecer uma estrutura slida, especificamente voltada para a regulao dos servios
pblicos de infraestrutura. Do mesmo modo, dirigiu-se para o desafio de se construir
capacidade regulatria dentro da administrao pblica, especialmente para acoordenao entre as instituies e organizaes envolvidas nos processos. Uma das
principais questes a serem enfrentadas, segundo o documento da OCDE, a
necessidade de clarificar as funes e implicaes da vasta gama de instituies e
organizaes, principalmente da administrao indireta, na qual se inserem as
agncias reguladoras.
Mas a despeito de tais carncias, o processo de agencificao do Estado se
reproduziu, tanto no governo federal como nos estados e municpios, numisomorfismo institucional imperfeito, como soluo definitiva para problemas to
distintos como falsificao de remdios, mazelas competitivas do cinema nacional
[ou] para problemas de desgoverno nas reas privatizadas, para crises e problemas
emergentes, para a soluo de matrias at ento no sanadas (NUNES et al. 2007,
p. 270,272).15
Como se sabe, o modelo de agncias adotado no Brasil foi importado da
experincia norte-americana de agncias independentes com o exemplo da
experincia britnica ps-privatizao.16 Porm, ocorre que quando modelos
importados so aplicados em outras circunstncias, inerente ao processo de sua
implantao a sua adaptao dinmica institucional prpria de cada Pas, ganhando
15 Segundo Nunes et al., apesar do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado ter preconizado omodelo de agncias executivas como alternativa, este no foi objeto de adeso pelas organizaespblicas, fracassando em sua proposta.16 Para Ramalho (2007), nos EUA o Congresso delega poder s agncias para exercer poderesnormativos e de deciso, pois aquele tem a competncia constitucional de regular o comrcio. Assim, o
papel de acompanhamento e fiscalizao das agncias exercido pelo Poder Legislativo, que controlaas agncias em termos polticos, enquanto o Executivo exerce seu poder de superviso e coordenaodessas organizaes. Ademais, os regulamentos expedidos pelas agncias reguladoras constituem-secomo fonte do direito norte-americano.
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tais modelos novos sentidos. Em outras palavras, as iniciativas de reformas so
mediadas pelos contextos institucionais preexistentes e o contexto importa (cf.
GOODIN; TILLY, 2006). Nos Estados Unidos da Amrica (EUA), as agncias
reguladoras independentes proliferaram na dcada de 1930, no mbito New Deal,
com base nas ideias dos progressistas sobre a necessidade da regulao pelo Estado
dos mercados monopolizados (MILLER; SAMUELS, 2002). No Brasil,
diferentemente, as agncias surgiram no momento em que se desejava menos
interveno do Estado.
Muito se assevera que os processos de privatizaes e criao de agncias
reguladoras independentes significariam uma convergncia entre diferentes pases
para aquilo que se convencionou denominar Estado regulador (MAJONE, 1999).Estudos comparativos internacionais, porm, tm refutado essa hiptese. Vogel
(1996), ao confrontar as reformas regulatrias no Reino Unido e no Japo, constatou
que as reformas no convergiram para um modelo comum de atuao do Estado; ao
contrrio, esses pases recombinaram rerregulao, delegao e liberalizao de
mercados em diferentes caminhos. A despeito do Reino Unido e do Japo terem
comeado suas reformas no mesmo perodo, sob circunstncias similares e
estenderem seus programas para os mesmos setores, eles o fizeram de maneirasdiferentes. Divergentemente do Reino Unido, os processos de privatizao no Japo
reforaram a capacidade de controle e interveno do Estado nos setores. Para Vogel,
legados institucionais (de organizao do Estado) e fatores ideolgicos (as ideias que
orientam a ao do Estado) explicam tais diferenas.
Fundamentado na literatura sobre as variedades de capitalismo, especialmente
os trabalhos de Hall e Soskice (2001),17 Mark Thatcher compara os casos da Frana,
Alemanha e Gr-Bretanha e averigua que, apesar das similaridades formais das
reformas ocorridas (e.g., os trs pases privatizaram, liberalizaram mercados e
instituram agncias reguladoras independentes), as diferenas na prtica de se
fazerem as polticas permaneceram. Segundo Thatcher, na Frana continuou-se com
as redes/instituies informais de coordenao entre governo e o setor privado para
promoo dos national champions e dos global players; na Alemanha, por sua vez,
continuou-se com as instituies informais de coordenao, ou seja, embora criadas
as agncias reguladoras, a autonomia destas foi limitada na prtica (THATCHER,
17 A tese bsica do livro de Hall e Soskice (2001) que os sistemas econmicos nacionais so pathdependent, i.e. eles exibem alto grau de resilincia mesmo no contexto de globalizao.
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2006; 2007). Christensen e Laegreid (2005), no mesmo sentido, explicam que as
tradies administrativas nacionais permanecem no momento da implementao das
reformas institucionais, sendo que as novas formas de regulao no substituram
completamente as anteriores de uma hora para outra.
No caso brasileiro, ao relacionar o conceito de gramticas polticas de Nunes
(2003) ao desenho e prtica regulatria das agncias para investigar se a criao
das mesmas representou mudana na estrutura institucional brasileira, Ramalho
(2007) conclui que as novas agncias conformam-se em uma tenso entre
continuidade e a transfigurao de determinados aspectos das gramticas do
corporativismo, do insulamento burocrtico e do universalismo de procedimentos.18
Do mesmo modo, Cruz (2007) trabalhou com a hiptese das agncias reguladorasautnomas como instituies exgenas, importadas e sem conexes com as demais
instituies polticas nacionais. Assim, conforme esses autores, as reformas de
mercado da dcada de 1990 resultaram num hibridismo institucional no qual
adaptaes e acomodaes das novas organizaes aos nossos legados polticos e
administrativos ainda provocam controvrsias quanto ao seu desempenho.
A reviso da literatura sobre o tema leva, assim, a inferir o carter incompleto
e inacabado do atual regime regulatrio brasileiro. Nesse aspecto, observa-se queexistem atualmente iniciativas tanto do Poder Legislativo como do Executivo federal
relacionadas nova estrutura regulatria nacional: encontram-se no Congresso o
projeto de Lei Geral das Agncias (PL 3.337/2004, de iniciativa do Executivo), que
dispe sobre a gesto, a organizao e o controle social das agncias reguladoras,19
como tambm uma proposta de emenda constitucional que fixa os princpios da
atividade regulatria no Brasil (PEC 81/2003, do ex-senador Tasso Jereissati). Alm
disso, o governo federal editou o Decreto 6.062/2007, criando o Programa de
Fortalecimento da Capacidade Institucional para Gesto em Regulao (PRO-REG)
com a finalidade de aprimorar o sistema regulatrio, especialmente a coordenao
entre as instituies que participam do processo no governo federal.
18 Consideram-se as gramticas polticas de Nunes (2003) como instituies; porm, no comoinstituies formais, mas informais. Ramalho (2007) no contemplou a gramtica do clientelismo nasua pesquisa emprica, por consider-la um objeto de investigao de inegvel complexidade (p.108).19 Entre os pontos polmicos do PL 3.337/2004 destacam-se: a transferncia do poder de outorga deconcesso das agncias reguladoras para o Poder Executivo; a introduo do contrato de gesto entreas agncias e os Ministrios setoriais; a obrigatoriedade de ouvidor nas agncias indicado pelaPresidncia da Repblica.
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Gaetani e Albuquerque (2009) indicam que parte dos problemas encontrados
explicada, em boa medida, pela forma de constituio dos marcos regulatrios
setoriais, como subprodutos de processos de privatizao institucionalizados ex post.
Ou seja, pelo fato de a maioria das privatizaes no ter sido precedida da
reformulao dos marcos regulatrios especficos, nem de um marco regulatrio geral
para todos os setores. Na mesma linha, Ribeiro e Fernandes (2006) argumentam que
o descompasso entre as privatizaes, a criao das agncias reguladoras e a definio
do seu marco institucional foram circunstncias de origem que representariam a
causa primordial dos atuais problemas, j que no houve viso estratgica de governo
em relao reorganizao da funo regulatria do Estado.
Para esses autores, iniciativas desconexas e solues imediatistas foramadotadas para o equacionamento de problemas cujo foco central era a privatizao,
independentemente das questes de redesenho institucional, como se mercados
mais livres no implicassem mais regras (ou instituies).20 Em alguns casos, como
no setor de telecomunicaes, a estrutura regulatria foi instituda antes da
privatizao; em outros, isso no aconteceu e o processo de privatizao se iniciou
antes da reestruturao regulatria (e.g. setor de transportes). Isso permite afirmar
que, no Brasil, o foco nas privatizaes se deu de forma independente das questes deredesenho institucional.21 Ao que parece, cada setor seguiu uma dinmica especfica
determinada pelas suas diferentes trajetrias institucionais (Nunes et al., 2007).
Como registrou Menardi (2004), as diferentes trajetrias histricas ao longo do
perodo de construo dos setores, de suas empresas, autarquias, ministrios
mostram que no se pode entender o processo de reforma regulatria como nico. As
instituies, as bases econmicas, as coalizes polticas de cada setor que incluem
mltiplos atores so diferentes. O resultado final que uma mesma direo comum
de reforma mostra diferentes resultados.
Entre outros estudos de destaque no mbito da Cincia Poltica e da
Administrao Pblica sobre o tema, percebe-se que os mesmos voltam-se
principalmente para as questes da delegao de poderes e credibilidade das polticas
regulatrias (MELO, 2002), autonomia e controle poltico das agncias (PACHECO,
2006), desenho e mecanismos de accountability (P; ABRUCIO, 2006; OLIVA,
20 Refiro-me aqui ao livro de Steven K. Vogel (1996), intitulado Freer Markets, More Rules.21 Para alguns autores, a reduo do dficit pblico (crise fiscal) e atrao de capital estrangeiro paraamenizar os dficits no balano de pagamentos, criados tanto pela abertura comercial como pelaestabilidade da taxa de cmbio (base do Plano Real), foi o objetivo primordial do processo deprivatizaes.
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2006); governana regulatria (CORREA et al., 2006); e estabilidade de regras e
contratos (P, 2009).
Este trabalho se insere na linha de investigao de Nunes et al. (2007), por
incorporar variveis institucionais anlise e por preocupar-se em mostrar que os
processos de reforma foram marcados tanto por elementos de transformao e
ruptura com a ordem anterior quanto por componentes de persistncia e resistncia
vis--vis o desenho inicialmente concebido pelo Poder Executivo.22 Contudo, ao
analisar as interaes polticas numa sequncia de eventos no tempo, este estudo
privilegia a explicao do fenmeno de interesse no contexto das estruturas legais e
organizacionais do Estado, identificando o papel das polticas preexistentes na
conformao dos interesses e na mediao das aes dos atores. Da mesma maneira,busca compreender as causas e mecanismos que explicam as diferenas nas
trajetrias de mudana de setores especficos. Vale dizer, esta investigao utiliza-se
da abordagem terica institucionalista-histrica, exposta a seguir.
1.2 Abordagem terica
1.2.1 O institucionalismo histrico e a mudana institucional
As escolas institucionalistas perpassam por diferentes disciplinas nas cincias
sociais, como a Economia, a Cincia Poltica e a Sociologia, sendo que se encontram
intercmbios entre elas, com caractersticas coincidentes e influncias mtuas.23
Pode-se citar como exemplos a ascendncia da Nova Economia Institucional sobre o
institucionalismo da Escolha Racional da Cincia Poltica e a forte afinidade
intelectual entre o institucionalismo sociolgico e o institucionalismo original da
Economia (SCOTT, 2008). Da mesma maneira, so identificados, ainda, pontos de
convergncia entre o institucionalismo histrico e o da escolha racional na Cincia
Poltica (THELEN, 1999).
22 Como indicado, a pesquisa de Nunes et al. (2007) investigou a gnese das agncias reguladoras dossetores de energia eltrica, telecomunicaes e petrleo, identificando os processos que levaram formao do modelo agora existente.23 Na economia distingue-se a escola institucionalista original, vinculada tradio de T. Veblen e J.
Commons e cujos expoentes atuais so G. Hodgson, D. Bromley e W. Samuels, e a escola da novaeconomia institucional, que tem como principais expoentes Ronald Coase, Douglass North e OliverWilliamson. Thret (2003) discute os novos institucionalismos em Sociologia. Ver tambm Scott(2008).
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De acordo com Thret (2003), as perspectivas institucionalistas distinguem-se
de outras abordagens tericas, sobretudo da ortodoxia do individualismo
metodolgico, por revelarem a necessidade de se levar em conta as mediaes entre
as estruturas sociais e os comportamentos dos atores para se compreender a ao
individual e suas manifestaes coletivas, sendo que tais mediaes seriam,
justamente, as instituies.
Na Cincia Poltica, o institucionalismo surgiu como uma reao contra o
behaviorismo e o estrutural-funcionalismo que dominavam a disciplina nos anos de
1960 e 1970 (IMMERGUT, 1998).24 No entanto, tal reao no surgiu de modo
unificado, tendo-se desenvolvido escolas com conceitos e metodologias distintas: a
histrica, a sociolgica e a da escolha racional (HALL; TAYLOR, 2003).Enquanto o institucionalismo da escolha racional adota os pressupostos
comportamentais da economia neoclssica (equilbrio, racionalidade substantiva,
preferncias exgenas etc.), o mtodo dedutivo e o ferramental da teoria dos jogos
para lidar com a questo da interao estratgica entre os agentes, os
institucionalistas histricos seguem a linhagem do pensamento e da metodologia de
Max Weber, principalmente.
Os institucionalistas histricos trabalham com a ao individual de formaintegrada aos fatores estruturais. Fazem uma combinao entre o enfoque estrutural
ou cultural (que reala as rotinas, os planos cognitivos e a viso de mundo do ator
na formao do quadro de referncia para o seu comportamento), integrando-o
perspectiva calculadora (que enfatiza o carter instrumental e estratgico do
comportamento individual) (HALL; TAYLOR, 2003). Para Immergut (1998), eles
esto interessados em racionalidades alternativas (ou contextuais), ao afirmarem
que a racionalidade instrumental produto de processos histricos, construda e
apoiada por conjuntos especficos de instituies e ideias (teorias, modelos, vises de
mundo, etc.) que os agentes adotam (individual ou coletivamente) para entender o
mundo em que vivem. Ou seja, para a escola histrica, as ideias tambm tm papel na
ao dos atores, orientando-os em novas direes.
24 Ressalte-se que tal reao aconteceu mais nos EUA, pois no Brasil nunca foi necessrio chamar oEstado de volta s anlises (refiro-me ao livro intitulado Bring the State Back In,de 1985, editado porP. Evans, D. Rueschemeyer e T. Skocpol).
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Conforme Weber, as vises de mundo criadas pelas ideias determinam os
caminhos pelos quais a dinmica dos interesses impulsiona as aes dos atores. 25 As
instituies e as ideias agem como filtros que favorecem, de forma seletiva, a
interpretao dos atores de seus interesses, como tambm da melhor forma de
alcanar seus objetivos. Assim, se as instituies e as ideias no determinam o
comportamento individual, elas oferecem o contexto em que os indivduos moldam
seus interesses e definem suas preferncias. De acordo com Hall (1993), os
paradigmas ideolgicos fornecem o modelo cognitivo bsico a partir do qual os
decisores interpretam problemas complexos e avaliam a validade das polticas
alternativas. Para Sanders (2006), as ideias, por terem carter relacional e normativo,
tm o papel de mobilizar foras para a ao coletiva, criando ou modificandoinstituies. Deste modo, abordagem histrica se interessa pela forma como ideias,
interesses e instituies conformam as polticas pblicas (e como elas evoluem no
tempo).26
Os institucionalistas histricos, do mesmo modo, consideram a possibilidade
da multicausalidade e de consequncias no esperadas das aes individuais ou
coletivas. Evidenciam, assim, o carter contingente do resultado dos processos
polticos e a importncia dos momentos crticos (resultados da interao entreprocessos independentes) que abrem a possibilidade para mudanas e
transformaes institucionais. Segundo Capoccia e Keleman (2007), momentos
crticos (critical junctures) so perodos relativamente curtos de tempo durante os
quais a influncia das estruturas na ao poltica relaxada, aumentando a
probabilidade de que as escolhas dos atores que detm o poder possam afetar o
resultado de seu interesse.
Os tericos da vertente histrica do institucionalismo referem o conflito de
interesses entre grupos rivais e as relaes desiguais de poder como centrais vida
poltica. Assim, as instituies no so mecanismos neutros de coordenao, que
sustentam uma ordem em equilbrio e exgenas ao comportamento dos indivduos.
No possuem carter funcional para resolver problemas de ao coletiva (e.g.,
dilema dos prisioneiros, tragdia dos comuns) e diminuir os custos de transao
ligados concluso de acordos estveis. Ao contrrio, so resultados de processos
25 The worldviews that have been created by ideas have very often, like switches, decided the lines
on which the dynamic of interests has propelled behavior(MAX WEBERapudSWEDBERG, 2005,p. 130).26 Ver, por exemplo, a anlise de Hall (1989) sobre o papel das ideias keynesianas e monetaristas naconformao das polticas econmicas nos anos 50 e 70, respectivamente.
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complexos, marcadas pelo conflito e pela contingncia na luta pelo poder que, por
apresentarem implicaes distributivas, trazem consigo uma permanente tenso
(MAHONEY; THELEN, 2010).
Os institucionalistas histricos possuem ainda uma concepo de
desenvolvimento institucional que privilegia as trajetrias de processos ao longo do
tempo e o papel da herana do passado sobre os fatos do presente (cf. o mecanismo
de path dependence). Rejeitam, destarte, a noo de que foras ou processos
semelhantes podem produzir os mesmos resultados em qualquer tempo ou lugar.
No entanto, diferentemente da vertente sociolgica do institucionalismo, que
adota conceito mais global de instituio levando interpenetrao desta com a
cultura (ou os aspectos da cultura que afetam a ao humana e organizacional), osinstitucionalistas histricos tomam uma definio mais circunscrita, associando as
instituies s regras, formais e informais.27 Steinmo (2008) reporta que as regras
afetam os processos sociais porque elas definem quem participa do jogo, estruturam
o comportamento dos atores e moldam seus interesses e estratgias.
Umas das questes em aberto nas abordagens institucionalistas a mudana
institucional. Para entend-la, a literatura institucionalista se apoia, implcita ou
explicitamente, nos modelos de equilbrio pontuado marcados por choquesexgenos e momentos crticos que provocariam transformaes radicais (rupturas)
seguidas por novo perodo de estabilidade (at que uma nova conjuno crtica
ocorra).28 Em outras palavras, somente uma crise, um momento crtico ou uma
alterao radical na sociedade ou no governo poderia produzir uma mudana.
Pierson (2004), nesse sentido, lembra que as instituies no so plsticas,
isto , elas no aceitam incondicionalmente iniciativas de reformas. Argumenta, por
isso, que qualquer anlise a respeito da mudana institucional deve, necessariamente,
incorporar o exame dos fatores de sua persistncia. Assim, ele vai buscar elementos
analticos para explicar os mecanismos causais que explicam a resilincia das
instituies.
27 Como se ver adiante, autores como Pierson (2006) associam tambm as instituies s polticaspblicas.28 Nas cincias sociais, as teorias de equilbrio pontuado ou interrompido (punctuated equilibrium)so utilizadas para a anlise das mudanas nas polticas pblicas. Desenvolvida por Baumgartner eJones (1993), com inspirao na teoria biolgica de mesmo nome desenvolvida por paleontlogos, ateoria sugere que as polticas so caracterizadas por longos perodos de estabilidade pontuados por
perodos de instabilidade, embora menos frequentes, como alteraes repentinas e radicais nasociedade ou no governo, que geram mudanas nas polticas anteriores. Do contrrio, as polticasapresentam mudanas apenas de forma incremental devido existncia de diversas restries (e.g.,"rigidez" institucional, interesses, racionalidade limitada dos decisores pblicos).
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Segundo Pierson, a histria importa por causa do mecanismo de path
dependence.29 Como se sabe, a noo de path dependence foi desenvolvida
originalmente por economistas que estudavam o tema do desenvolvimento
tecnolgico (ARTHUR, 1994; DAVID, 1985) e depois foi utilizada por North (1990)
para analisar as instituies econmicas. Pierson, por sua vez, adapta o conceito para
as instituies polticas, ressaltando as caractersticas que diferenciam o mecanismo
na poltica em relao economia.30 Grosso modo, o mecanismo de path dependence
baseia-se na noo de que uma vez iniciada uma trajetria (um processo social) os
custos de reverso desta se tornam cada vez mais altos com o decorrer do tempo.
Assim, em uma sequncia de eventos, as ltimas decises no so (inteiramente)
independentes das que j ocorreram31.Mahoney e Schensul (2006) ressaltam, entretanto, que existem diferenas
entre autores no uso do conceito de path dependence: enquanto uns acreditam que o
mecanismo raro, outros creem que ele generalizado. Os que o enxergam de
maneira pouco comum trabalham com a concepo de mudana baseada no modelo
de equilbrio pontuado; os que entendem que ele frequente trabalham com a
premissa de que os legados do passado restringem as escolhas e mudanas do
presente. Do mesmo modo, existe um sentido determinstico e outro nodeterminstico do conceito (EBBINGHAUS, 2005). A acepo determinstica o
caracteriza como uma sequncia histrica de eventos em que acontecimentos
contingentes no incio da trajetria pem em movimento uma cadeia de processos
que se autorreforam, tornando a trajetria estvel ou altervel apenas por fatos
exgenos (fora do modelo terico). A compreenso no determinstica do conceito,
por sua vez, o utiliza no sentido de delinear a trajetria de desenvolvimento de uma
instituio formada e, posteriormente, adaptada por atores coletivos. Estes, por sua
vez, raramente esto em situaes em que podem ignorar o passado e decidir de
novo; ou seja, suas decises esto vinculadas pelas instituies prvias. A nfase,
portanto, no momento e na sequncia de eventos (PIERSON, 2004).
29 Para Mahoney (2001), mecanismos causais so entidades no observveis diretamente que quando ativados so capazes de explicar o fenmeno de interesse. J para Hedstrm e Swedberg(1998), so construtos analticos que fornecem ligaes hipotticas entre eventos observveis.30 So elas: a prevalncia dos problemas da ao coletiva; a densidade e a interdependncia dasinstituies polticas; a possibilidade do uso da autoridade para o reforo das assimetrias de poder; e ocarter complexo e opaco da poltica (PIERSON, 2004, p. 30-40).31 Margaret Levi (apudPIERSON, 2004, p. 20) utiliza-se da metfora da escalada de uma rvore paraelucidar o conceito: de um mesmo tronco saem vrios galhos; embora seja possvel retornar a escaladaou pular de um galho para outro, o galho que se escolhe inicialmente para comear a subida por ondese tende a seguir.
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Para Pierson, o mecanismo de path dependence caracteriza-se pelos processos
de realimentao positiva (positive feedback) que reforam o desenvolvimento de
uma instituio numa dada trajetria. A realimentao positiva que faz com que os
benefcios de permanncia no caminho inicialmente trilhado, quando comparados s
alternativas previamente possveis, intensifiquem-se com o passar do tempo,
aumentando os custos de reverso de uma trajetria iniciada.
Reiterando as formulaes de Arthur (1994), Pierson salienta as quatro
caractersticas dos processos sociais que sustentam os mecanismos de realimentao
positiva: (i) os custos de estabelecimento de uma instituio, que incentivam os
indivduos a permanecerem na alternativa inicial; (i) os efeitos de aprendizagem, em
que o conhecimento adquirido do funcionamento de um sistema complexo (comouma instituio) incentiva os agentes a continuarem com seu uso; (iii) os efeitos de
coordenao, advindos das sinergias, interdependncias e complementaridades
geradas entre diferentes instituies (as matrizes institucionais de Douglass North);
e (iv) as expectativas adaptativas, provenientes da conformao mtua das aes dos
agentes com base na aprendizagem do passado.
Conforme Pierson, as anlises sociais podem recorrer aos mecanismos de path
dependence para sustentar hipteses que, entre outras, afirmam que a ordem e asequncia dos eventos no tempo so de fundamental importncia para a
compreenso de um fenmeno; que mesmo que duas trajetrias se iniciem nas
mesmas condies, resultados diferentes so possveis para cada uma delas; que
trajetrias particulares, uma vez iniciadas, so difceis de reverter; e que um processo
em curso ou um resultado alcanado pode no ser o mais eficiente.
Neste sentido, Pierson refuta os pressupostos das anlises do institucionalismo
da escolha racional, que dizem que as instituies existem porque elas so funcionais
para os atores que as criam. Ele cita algumas das limitaes dessa perspectiva:
primeira, ela ignora que determinados arranjos institucionais podem ter mltiplos
efeitos, muitos deles inesperados, j que os atores polticos tm diversos objetivos que
no podem ser facilmente derivados num arranjo especfico (as inovaes
institucionais podem resultar de coalizes e negociaes entre atores, que as
sustentam por diferentes motivos, inclusive contraditrios); segunda, que os
criadores das instituies podem no agir de maneira instrumental/racional; terceira,
que os efeitos de longo prazo de uma instituio podem ser produtos secundrios de
decises tomadas para o curto prazo; quarta, que por causa da complexidade e das
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relaes de interdependncia entre os atores existem resultados ou consequncias
imprevistas das criaes institucionais; por fim, que existe o problema da
descontinuidade, j que atores podem herdar instituies que no criaram e podem
ter preferncias distintas dos agentes do passado.
Pierson (2004) tambm examina a questo da mudana institucional nas
abordagens institucionalistas. Na perspectiva da escolha racional, as instituies
mudam a partir do momento em que elas deixam de ser funcionais para os atores que
a constituram. Assim, as mudanas tm origem exgena e as anlises contam com
modelos do tipo esttico-comparativo (em vez de dinmica ou processual). O
institucionalismo sociolgico, por sua vez, enfatiza o processo de difuso de modelos
de instituies, o isomorfismo institucional,32 como tambm o papel dosempreendedores ou dos perdedores (CLEMENS; COOK, 1999) na promoo de
tipos especficos de instituies.33 Pierson conclui que tais explicaes sobre a
mudana institucional padecem de problemas. Primeiro, eles no apresentam
proposies claras sobre as circunstncias que levam mudana institucional,
resumindo-se a explicaes post hoc ou do tipo just-so. Segundo, elas se baseiam
apenas no estudo de casos extraordinrios (em que houve mudanas), o que, para ele,
favorece e superestima as hipteses inicialmente formuladas (cf. o problema do visde seleo dos casos). Por fim, tais estudos pressupem a maleabilidade das
instituies nas mos de empreendedores ou perdedores, pois focam suas
anlises apenas nas causas imediatas das mudanas, menosprezando os processos
causais que se desdobram no longo prazo.34
No entanto, alguns autores tm hesitado em incluir o lock-in como uma
consequncia do mecanismo de realimentao positiva ou de path dependence, pois
isso sugeriria um determinismo causal. Do mesmo modo, questionam a viso
tradicional de que mudanas institucionais seriam apenas de carter radical,
advindas de choques exgenos ou de momentos crticos (critical junctures). Assim,
32 Segundo Hall e Taylor (2003), os institucionalistas sociolgicos sustentam que as organizaesadotam com frequncia uma nova prtica institucional por razes que tm menos a ver com o aumentoda sua eficincia do que com o reforo que oferece sua legitimidade social e de seus adeptos. Assim,as organizaes adotam formas e prticas institucionais particulares porque elas tm valorreconhecido num ambiente cultural mais amplo.33 Clemens e Cook (1999) preconizam que os agentes que se veem como perdedores, relativos ouabsolutos, numa determinada configurao institucional lanariam mo do processo poltico para
mudar as regras em que operam e, assim, obter ganhos decorrentes das novas oportunidades.34 No captulo 3 do livro Politics in Time, Pierson identifica diferentes processos causais de longadurao, fornecendo formatos para se pensarem mudanas institucionais graduais, quais sejam:cumulative causes, threshold effects e causal chains (PIERSON, 2004, p. 82-90).
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tais autores propem-se a trabalhar com formas de transformaes alternativas s
baseadas nos modelos de equilbrio pontuado.
Nesse escopo, Mahoney e Thelen (2010) distinguem quatro tipos de mudana
institucional, quais sejam: (i) displacement ou remoo das antigas regras com a
introduo de novas; (ii) layering ou a introduo de novas regras sobre as
existentes; (iii) drift ou flutuao, i.e., mudana de impacto das regras vigentes
devido a transformaes no ambiente; e (iv) conversion ou a converso de uma
instituio existente para novos objetivos, via reinterpretao das regras para novos
fins. Segundo os autores, o entendimento desses diferentes tipos de mudana seria
precondio para explicar como e por que mudanas institucionais ocorrem.
Na tipologia de Mahoney e Thelen, trs fatores explicariam os diferentes tiposde mudana: o contexto poltico, as caractersticas da instituio preexistente e o tipo
do agente dominante.
O contexto poltico est ligado distribuio de poder. O sucesso da tentativa
de mudar uma instituio depende do poder de veto dos defensores do status quo. Ou
seja, quanto mais fortes os poderes de veto dos opositores mudana, menos
probabilidade de se fazerem mudanas numa instituio. Conforme lembra Marques
(1997, p. 91), a existncia de pontos de veto pode levar um mesmo quadro poltico aresultados bastante diferentes, sendo que atores de alto poder podem ser
incapacitados de transformar suas preferncias e interesses em resultados concretos.
Para esse autor, o efeito dos pontos de veto no uniforme, mas depende do grau de
encaixe entre as estruturas institucionais e a distribuio de poder entre os atores.
A caracterstica da instituio est relacionada discricionariedade na
interpretao ou aplicao das regras existentes. Para Mahoney e Thelen, as
instituies tm sistemas formais de codificao (uma lei, por exemplo), sendo que
algumas regras podem no ter sido claramente definidas o que abre a possibilidade
de contestaes ou diferentes interpretaes. Tal situao pode ser explorada por
agentes de mudana. Assim, a racionalidade limitada na formulao das regras, a
dificuldade na sua aplicao e o fato de as mesmas estarem abertas a novas
interpretaes configuram sementes para a mudana institucional.
Por fim, os agentes dominantes so os atores da mudana institucional.
Mahoney e Thelen definem tais atores de acordo com o desejo dos mesmos de
preservar e cumprir as regras institucionais, perfazendo quatro tipos de agentes: (i)
os insurgentes, que rejeitam o status quo institucional e no querem cumprir a atual
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regulao; (ii) os simbiontes, ou aqueles que vivem em associao ntima com as
instituies, que desejam preservar e explorar o status quo tendo em vista ganhos
privados; (iii) os subversivos, que procuram substituir a instituio, mas sem quebrar
suas regras; e (iv) os oportunistas, que ao explorar as ambiguidades na interpretao
ou aplicao das regras em vigor, acabam por refazer as regras existentes de forma
diferente inteno de seus formuladores.
Portanto, para os autores, so as caractersticas da estrutura (instituio e
contexto poltico) e da ao dos atores que auxiliariam a explicar os tipos de mudana
institucional. O QUADRO 1 resume essas consideraes.
QUADRO 1Origens contextuais e institucionais da mudana institucional
Caracterstica da instituio preexistenteBaixa discricionariedade
na interpretao ouaplicao das regras
Alta discricionariedadena interpretao ouaplicao das regras
Contextopoltico
Fortepoder de veto dos
opositores
Layering(subversivos)
Drift(simbiontes)
Fracopoder de veto dos
opositores
Displacement(insurgentes)
Conversion(oportunistas)
Fonte: Mahoney e Thelen (2010, p. 19).
1.2.2 Polticas pblicas como instituies
Pierson (2006) enfatiza que as polticas pblicas tambm podem ser vistas
como instituies, pois elas produzem recursos e estabelecem incentivos associados a
comportamentos especficos, afetando as interaes entre atores de um determinado
setor. Em outras palavras, as polticas pblicas moldam interesses, preferncias e as
estratgias dos atores.
Na literatura da Cincia Poltica, argumentos que afirmam que as polticas
pblicas determinam a poltica (policies determine politics) remontam a Lowi (1964;
1972). Esse autor sugere que as polticas pblicas so espaos de disputa de poder,
assim como argumenta que os objetivos de uma poltica afetam o processo poltico de
sua produo, por condicionar o foco e o comportamento dos atores envolvidos.
Assim, cada rea da ao governamental gera diferentes pontos de vetos ou grupos deapoio, processando-se de forma diversa: as caractersticas de uma poltica pblica
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formatam a lgica e a dinmica da ao poltica, sendo que as disputas em torno de
sua deciso envolvem diferentes arenas.
Lowi apresenta uma taxonomia de polticas pblicas na forma de quatro tipos
ideais, com suas respectivas arenas: distributivas, redistributivas, regulatrias e
constitutivas (LOWI, 1964; 1972). O primeiro tipo de poltica pblica refere-se s
decises tomadas pelos governos que geram impactos individuais ou localizados, nos
quais os beneficirios so grupos sociais especficos, mas cujos custos so arcados
pelo todo, por meio do oramento geral. Neste tipo encaixam-se as polticas do tipo
clientelista ou de patronagem. Sua arena de poder seria marcada, conforme Lowi,
pela ausncia de conflitos e no interferncia mtua, pois se cada grupo procura
benefcios para si, seria inadequado opor-se aos benefcios procurados por outros. Osegundo tipo refere-se s polticas redistributivas, que so aquelas que atingem maior
nmero de pessoas, ao mesmo tempo em que impe perdas concretas e no curto
prazo para certos grupos sociais. Neste tipo encaixam-se as polticas sociais, como as
polticas de tributao progressiva, cujo objetivo a redistribuio consciente de
recursos financeiros, direitos ou outros valores entre camadas sociais e grupos da
sociedade. J que implicam divises de classes sociais, sua arena de poder seria
marcada pela polarizao e disputa ideolgica.35
As polticas regulatrias, por sua vez,envolvem a implementao de normas legais visando correo de falhas de
mercado, como as polticas de competio, meio ambiente ou defesa do consumidor.
Por envolver interesses diversos e desagregados, sua arena poltica marcada por
coalizes de interesses instveis que apenas se tangenciam. Por fim, as polticas
constitutivas envolveriam a formulao e implementao de regras que
normatizariam outras leis e procedimentos, como artigos constitucionais, ou a
criao de novas organizaes. Por terem status mais ideolgico, abrem espao para
atuao partidria, porm a atuao poltica de cada grupo vai variar de acordo com o
grau de identificao com o problema em questo.
De acordo com a abordagem institucionalista-histrica, medida que uma
poltica implementada, ela transforma a distribuio das preferncias como
tambm o universo dos atores. Dessa maneira, os custos econmicos e polticos da
mudana tornam-se mais altos com o tempo, como tambm se tornam mais altos os
35 Sabe-se que tais definies no so muito claras, porque todas as polticas contm elementos
distributivos e redistributivos ao mesmo tempo e, especialmente, porque os polticos tendem a venderpolticas redistributivas de soma zero como distributivas, em que no h perdedores. Polticasredistributivas so de soma zero e se fazem beneficiando um grupo ou regio em detrimento de outro(deve-se este comentrio Professora Maria Rita Loureiro).
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retornos por se permanecer na mesma situao. Assim como acontece com a
dinmica institucional, o mecanismo de policy feedback que explica tal fenmeno
(num processo de retroalimentao entre instituies e interesses): os atores tm
interesses na permanncia da instituio, mas foi a instituio que moldou os
interesses desses atores.
Se a abordagem pluralista v sempre os grupos de interesse determinando as
aes governamentais (por exemplo, via lobby), Pierson (1993) argumenta sobre a
necessidade de inverter essa direo causal, pois, muitas vezes, so as polticas que
emergem em primeiro lugar, formando grupos de interesse, suas preferncias e
padres especficos de mobilizao poltica. Ou seja, a ao dos grupos de interesse,
em muitos casos, mais segue do que precede a implementao de polticas pblicas.Ressalte-se, ainda, que execuo de polticas pode ter como efeito, conforme
Pierson (1993), a contrarreao dos atores, criando condies para que
empreendedores polticos possam superar problemas de ao coletiva e provocar
mudanas na poltica em curso.
O que se estabelece como desafio, afinal, como aplicar essas formulaes por
meio da pesquisa emprica. No caso da presente pesquisa, como converter tais
conceituaes e proposies tericas em hipteses para anlise de problemasconcretos. A esse respeito, vale mencionar Immergut (2006), propondo que, por
serem os processos sociais moldados por eventos complexos e por possurem
mltiplas causalidades, difcil que a mudana institucional seja modelada
teoricamente e de forma sistemtica. Por isso, acrescenta a autora, no existem
substitutos anlise emprica e qualitativa que desvende os processos causais,
principalmente quando se deseja encontrar explicaes para casos especficos. o
que este trabalho prope-se a fazer.
1.3 Objetivos e metodologia
1.3.1 Preliminares metodolgicos
Uma caracterstica da abordagem institucionalista-histrica a sua
preocupao com a explicao de fenmenos sociais concretos usando,especialmente, o mtodo comparativo. O institucionalista histrico est interessado
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na compreenso da complexidade dos eventos, mediante estudos de casos com valor
intrnseco para, assim, produzir o dilogo entre teoria e evidncia e contribuir para a
construo de teorias de mdio alcance.36 Parafraseando Marques (1997, p. 75), para
os institucionalistas histricos no possvel estabelecer postulados definitivos ou
teorias gerais, mas apenas proposies tericas baseadas em afirmaes provisrias a
serem testadas e alteradas a partir da realizao de estudos empricos.
A escolha da metodologia de um trabalho cientfico deve levar em
considerao os pressupostos bsicos do pesquisador sobre a natureza da realidade
social e de suas relaes causais; ou seja, necessrio alinhar a metodologia com a
ontologia (HALL, 2003). Quando a anlise a ser empreendida pressupe que o
momento e a sequncia em que um desenvolvimento particular ocorre soimportantes e que a compreenso das motivaes (razes) dos atores fundamental
para a explicao do resultado de interesse da pesquisa, os mtodos de pesquisa
quantitativos convencionais perdem sua eficcia. As anlises de regresso
multivariada estimam as correlaes e no a direo causal entre as variveis
explicativas. Igualmente, as anlises de regresso fazem uma srie de pressuposies
sobre a natureza das relaes entre as variveis (e.g., homogeneidade das unidades
de anlise e independncia entre as observaes) que no se coadunam com aspressuposies das abordagens temporais (a presena de multicausalidade,
causalidade recproca entre variveis independentes e dependentes e outras
interaes complexas).37
Hall (2003) denominou de anlise sistemtica de processos o mtodo que
examina, com base em proposies tericas, os processos que conectam a varivel
dependente a uma ou mais variveis independentes em relao causal que adota uma
36 As teorias de mdio alcance (middle range theories), termo cunhado por Robert K. Merton, soconstrudas com base na integrao entre tcnicas de pesquisa emprica e esquemas conceituais apartir dos quais podem ser derivadas proposies tericas, empiricamente testveis, sobre o mundosocial. Segundo Rueschemeyer (2003), as teorias consistem em uma srie de conceitos que definemclaramente o que deve ser explicado e identificam um conjunto de fatores relevantes para a explicao;oferecem justificaes para as conceituaes particulares que se propem, bem como argumentos afavor de sua escolha de fatores causais relevantes; podem explicar certas relaes lgicas que no sobvias primeira vista; e podem conter tambm uma mistura ocasional de hipteses especficastestveis e testadas. O valor de tal arcabouo terico reside na sua utilidade para a investigaoemprica. Enquanto eles no podem ser julgados como verdadeiros ou falsos em um sentido maisimediato, sua qualidade, no entanto, depende da sua adequao s realidades estudadas.37 Hall (2003) estabelece que as principais caractersticas dos processos causais nos fenmenos sociais
so as seguintes: (i) existncia de efeitos de interao entre as variveis; (ii) existncia demulticausalidade; (iii) os efeitos de uma varivel sobre outra dependem do tempo e da sequncia emque elas ocorrem; (iv) existncia de multicolinearidade; (v) a relao entre as variveis dependente eindependentes mutuamente determinada (X pode causar Y, que tambm pode causar X).
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especfica ontologia. Esta pressupe que a sequncia e o contexto em que ocorrem os
eventos importam explicao do fenmeno em anlise. George e Bennett (2004),
por sua vez, chamam esse mtodo de rastreamento de processos (process tracing).
Tais mtodos focam a identificao dos links entre processos e resultados observados
(ou como as variveis explicativas se ligam varivel dependente). justamente a
especificao dos nexos de causalidade o que distingue as proposies sobre os
mecanismos de proposies sobre as correlaes (GERRING, 2010).
O mtodo de rastreamento de processos, conforme consideram George e
Bennett (2004, p. 205-32), indispensvel para o teste e desenvolvimento de teorias
ou proposies tericas porque, alm de gerar inmeras observaes para um nico
caso, ele liga essas observaes numa explicao causal. Como ressalta Rueschemeyer(2003), um erro igualar um caso a uma observao; um caso pode fornecer uma
pletora de observaes para cada uma das vari