a personagem

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Beth Brait

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Page 1: A Personagem

AA PPEERRSSOONNAAGGEEMM

Beth Brait

http://groups-beta.google.com/group/digitalsource

Page 2: A Personagem

Série

Princípios

Beth Brait

Doutora em Letras Crítica literária e professora

do Ensino Superior em São Paulo

A

PERSONAGEM

Page 3: A Personagem

Direção

Samira Youssef Campedelli

Benjamin Abdala Junior

Preparação de texto

Sueli Campopiano

Projeto gráfico/miolo

Antônio do Amaral Rocha

Arte-final

René Etiene Ardanuy

Joseval de Souza Fernandes

Capa

Ary Normanha

CIP-Brasil. Catalogação-na-Publicação Câmara Brasileira do Livro, SP

Brait, Beth.

B799p A personagem / Beth Brait. — São Paulo Ática, 1985.

84-2303

(Série princípios)

1. Personagens e tipos na literatura 1. Título.

CDD—801 .953

Indice para catálogo sistemático:

1. Personagens : Ficção : Teoria literária 801.953

1985

Todos os direitos reservados

Editora Ática S.A. — Rua Barão de Iguape, 110

Tel.: (PABX) 278-9322 — Caixa Postal 8656 End. Telegráfico „Bomiivro” — São Paulo

1.

Page 4: A Personagem

Sumário

Introdução _____________________________________________ 5

2. O faz-de-conta das personagens __________________________ 8

Personagens e pessoas _____________________________________ 8

Reprodução e invenção ____________________________________ 11

“Ai, palavras, ai, palavras,/que estranha potência a vossa!” ________ 18

3. A personagem e a tradição crítica ________________________ 28

No princípio está Aristóteles ________________________________ 28

Spielberg e Alencar? ______________________________________ 31

Perseguindo a personagem __________________________________ 35

„ Os novos ares dos séculos XVIII e XIX ______________________ 37

A personagem sob as luzes do século XX ______________________ 38

Personagem: invenção do autor e da crítica ____________________ 47

4. A construção da personagem _____________________________ 52

Recursos de construção ____________________________________ 52

O narrador é uma câmera ___________________________________ 53

A câmera finge registros e constrói as personagens _______________ 56

A personagem é a câmera __________________________________ 60

Apresentação da personagem por ela mesma ___________________ 61

A personagem é testemunha _________________________________ 63

Resumindo as possibilidades de construção _____________________ 66

5. De onde vêm esses seres? ________________________________ 69

Os escritores respondem ____________________________________ 69

Antônio Torres, 71; Doe Comparato, 72; Domingos Peliegrini, 73; Ignácio de Loyola

Brandão, 75; João Antônio, 78; José J. Veiga, 79; Lya Luft, 80; Lygia Fagundes Telies,

81; Marcos Rey, 82; Marilene Felinto, 83; Moacyr 1. Scliar, 84; Renato Pompeu, 85.

6. Vocabulário crítico ____________________________________ 87

7. Bibliografia comentada _________________________________ 90

Page 5: A Personagem

1

Introdução

Este livro deve ser tomado como uma introdução ao estudo da personagem, pois

dirige-se a um público que analisa, produz e transforma textos de ficção. Na verdade,

este é um livro que se destina a um público especial, que tem no texto um instrumento

de prazer, conhecimento e trabalho, mas que se encontra no início das reflexões acerca

das especificidades da narrativa.

Considerando esse fato decisivo para o encaminhamento da diseussão, e levando

em conta que esta obra faz parte de uma série que aborda outros aspectos da teoria da

literatura, procurei cercar algumas questões a respeito da personagem, dando ao livro a

forma que eu imagmava pertinente e que buscava encontrar em cada estudo a respeito

do assunto, no início de minha vida universitária.

Assumindo uma postura até certo ponto didática e correndo todos os riscos fatais que

essa postura pode acarretar, a obra procura adequar-se às necessidades dos leitores que

não são especialistas, mas candidatos a, simulando o isolamento da questão personagem

e flagrando esses habitantes da ficção no seu espaço de existência: o texto. Aqui, é

preciso que se esclareça, a palavra texto

6

cobre duas manifestações de natureza diferente: a ficção literária, a prosa de ficção que

materializa esses seres, e o texto crítico que, com seus instrumentos específicos,

persegue a natureza desses seres.

Os capítulos que constituem essa obra, procuram orientar o leitor no sentido de refletir

sobre a concepção de personagem, sondando a sua variação no decorrer de um percurso

literário que engloba a diversidade da produção e a tradição crítica que a enfrenta. Cabe

ao segundo capítulo iniciar a reflexão, procurando desfazer os compromissos rígidos

existentes entre as palavras “pessoa” e “personagem”; ao terceiro, traçar um rápido

caminho das várias perspectivas teóricas que se debruçam sobre a questão da

personagem; ao quarto, esboçar alguns procedimentos de caracterização de personagem;

Page 6: A Personagem

e ao quinto reservar a escritores brasileiros contemporâneos uma palavra a respeito de

suas criaturas.

Quanto ao quinto capítulo, cabe aqui um esclarecimento e um agradecimento. Essa

runião de depoimentos inéditos foi possível graças a gentil colaboração de escritores

que, em meio a suas inúmeras atividades, acharam um tempinho e se dispuseram a

colaborar com esse livro, concedendo à autora e aos leitores a força de seus

testemunhos.

O reduzido vocabulário crítico e a bibliografia comentada não têm a pretensão

de cercar todos os termos de todas as obras referentes à personagem, servindo apenas

como ponto de partida para os que iniciam os estudos do problema. As obras aqui

comentadas, com raras exceções, não são livros dedicados exclusivamente à

personagem, mas estudos de teoria literária que dedicam um espaço a este componente

da narrativa. Por esta razão, aconselha-se que as obras sejam lidas na íntegra, a fim de

que o leitor possa estabelecer a relação entre o estudo da personagem e os outros itens

tratados pelo crítico.

7

Sendo uma obra de introdução, fica clara a necessidade de complementação

pelos leitores, na medida de seu interesse, através da convivência com as grandes obras

de ficção e os grandes criadores de personagens, bem como com as possibilidades de

leitura instigadas pelas diversas tendências críticas.

1

1 Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de

facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de conhecerem novas obras. Se quiser outros títulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-lo em nosso grupo.

Page 7: A Personagem

2

O faz-de-conta das personagens

Personagens e pessoas

É provável que os leitores mais críticos, aqueles que têm um contato menos

ingênuo com a obra de ficção, achem curioso e até engraçado que muitos leitores de

Conan Doyle reservem um espaço de sua viagem turística à visita a Baker Street,

número 221 B, na esperança de ali encontrar os aposentos, o laboratório e os velhos

livros de Sherlock Holmes. Esses amantes da ficção policial, que leram e releram cada

uma das aventuras do herói, acreditam realmente na existência de uma pessoa chamada

Sherlock Holmes, um ser humano muito especial, que viveu todas as apaixonantes

peripécias relatadas por um “outro ser humano”, o caro Watson. Não encontrar esse

número em Baker Street é uma decepção. Mas não tão forte que possa apagar a ilusão

da existência de Holmes. Para os leitores fiéis, isso não passa de mais um truque genial

do brilhante detetive.

Mas não há motivo para riso. Ao menos não há motivo para esse riso de desdém,

característico dos que nunca tiveram dúvida de que Watson e Sherlock são apenas

criações de Conan Doyle. Curiosamente, esses mesmos leitores

9

que acreditam separar com clareza a vida da ficção, mesmo que muitas vezes apreciem

mais a ficção que a vida, teriam algumas dificuldades para negar que já se

surpreenderam chorando diante da morte de uma personagem. Não há distanciamento

leitor—texto que possa refrear a emoção sentida, por exemplo, quando em Grande

sertão: veredas nos defrontamos com Reinaldo-Diadorim morta. E não se trata de uma

emoção superficial, provocada apenas pelo dado da surpresa: a releitura do romance não

impede que a emoção seja revivida. E é precisamente isso que faz cessar o riso e aflorar

Page 8: A Personagem

as cismas. Afinal de contas, diante do leitor há apenas “papel pintado com tinta”. Além

disso, que outra matéria, que outra natureza reveste esses seres de ficção, esses edifícios

de palavras que, por obra e graça da vida ficcional, espelham a vida e fingem tão

completamente a ponto de coiquistar a imortalidade?

Essa questão não é simples. Nem este é o primeiro ou o último livro que tenta rastrear

os segredos da personagem. Na tentativa de recolocar a questão da personagem de

forma a recuperar a tradição do estudo deste item da narrativa e discutir aspectos de

relevância para os que se interessam por teoria literária, começaremos pela trilha mais

prosaica:consultar um dicionário.

O Novo dicionário Aurélio oferece a seguinte definição de personagem:

Personagem [Do fr. personnage.] S. f. e m. 1. Pessoa notável, eminente,

importante; personalidade, pessoa. 2. Cada um dos papéis que figuram numa

peça teatral e que devem ser encarnados por um ator ou uma atriz; figura

dramática.

3. P. ext. Cada uma das pessoas que figuram em uma narração. poema ou

acontecimento. 4. P. ext. Ser humano representado em uma obra de arte: “A

criança é um dos personagens mais bonitos do quadro” 1•

1 FERREIRA., Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira,

1975.

10

Esse verbete não ajuda muito. Na verdde, ele mais confunde que esclarece. Para

explicar a palavra personagem, a palavra pessoa(s) foi utilizada três vezes e a expressão

“ser humano” uma vez. Tratando-se de um dicionário geral da língua e não de um

dicionário especializado em teoria literária, é plenamente justificável o jogo explicativo

em que uma palavra é tomada por outra. Mas esse jogo metalingüístico simplista aponta

mais uma vez para uma confusão terminológica que traduz com clareza a confusão

existente entre a relação pessoa — ser vivo — e personagem — ser ficcional. Ainda que

os termos “papéis” e “figuras dramáticas” indiquem possíveis diferenças existentes

entre pessoas e personagens, a frase “Cada uma das pessoas que figuram em uma

narração, poema ou acontecimento” obriga o leitor a encarar a narração, o poema e o

acontecimento como sendo fenômenos de uma mesma espécie, de uma mesma natureza.

Page 9: A Personagem

E, textualmente, a identificar pessoas e personagens.

Mas, se um dicionário geral da língua não tem qualquer obrigação de contribuir para a

resolução de dúvidas muito especializadas, passemos a um dicionário especializado.

No Dicionário enciclopédico das ciências da linguagem, organizado por Oswald

Ducrot e Tzvetan Todorov, há um item que parece pertinente transcrever aqui, pois

ajuda a pensar o difícil problema da relação personagem—pessoa.

“Uma leitura ingênua dos livros de ficção confunde perconagens e pessoas.

Chegaram mesmo a escrever “biografias” de personagens, explorando partes

de sua vida ausente do livro (“O que fazia Hamlet durante seus anos de

estudo?”). Esquece-se que o problema da personagem é antes de tudo

lingüístico, que não existe fora das palavras, que a personagem é “um ser de

papel. Entretanto recusar toda relação entre personagem e pessoa seria

absurdo: as per

11

sonagens representam pessoas, segundo modalidades próprias da ficção.” 2

Essas poucas linhas contêm, agora sim, alguns elementos que permitem iniciar

uma reflexão. Ao discutir a questão personagem—pessoa, os autores procuram salientar

dois aspectos fundamentais

• o problema da personagem é, antes de tudo, um problema lingüístico, pois a

personagem não existe fora das palavras;

• as personagens representam pessoas, segundo modalidades próprias da ficção.

Na aparente simplicidade desses dois enunciados residem os núcleos essenciais

da questão. Se quisermos saber alguma coisa a respeito de personagens, teremos de

encarar frente a frente a construção do texto, a maneira que o autor encontrou para dar

forma às suas criaturas, e aí pinçar a independência, a autonomia e a “vida” desses seres

de ficção. E somente sob essa perspectiva, tentativa de deslindamento do espaço

habitado pelas personagens, que poderemos, se útil e se necessário, vasculhar a

existência da personagem enquanto representação de uma realidade exterior ao texto.

Page 10: A Personagem

Reprodução e invenção

Partindo da premissa de que a personagem é um habitante da realidade ficcional,

de que a matéria de que é feita e o espaço que habita são diferentes da matéria e do

espaço dos seres humanos, mas reconheendo também que essas

2 DUCROT, Oswald & Toooaov, Tzvetan. Dictionnaire encyclopédique dez sciences du langage. Paris, Seuil, 1972.

p. 286.

12

duas realidades mantêm um íntimo relacionamento, cabe inicialmente perguntar:

• De que forma o escritor, o criador da realidade ficcional passa da chamada

realidade para esse outro universo capaz de sensibilizar o receptor?

• Que tipo de manipulação requer esse processo capaz de reproduzir e inventar seres

que se confundem, em nivel de recepção, com a complexidade e a força dos seres

humanos?

Ao colocar essas questões, caímos necessariamente no universo da linguagem, ou seja,

nas maneiras que o homem inventou para reproduzir e definir suas relações com o

mundo. Voltamos, portanto, nosso olhar às formas inventadas pelo homem para

representar, simular e criar a chamada realidade. Nesse jogo, em que muitas vezes

tomamos por realidade o que é apenas linguagem (e há quem afirme que a linguagem e

a vida são a mesma coisa), a personagem não encontra espaço na dicotomia ser

reproduzido/ /ser inventado. Ela percorre as dobras e o viés dessa relação e aí situa a

sua existência.

Para começar a compreender a questão, vamos partir de uma forma de reprodução da

realidade, a linguagem fotográfica, normalmente aceita e vista como uma maneira

bastante “objetiva” de captar o real. Tomemos como exemplo dois “gêneros” de

reprodução de imagem através da fotografia: o retrato três por quatro, normalmente

utilizado em documentos, e os retratos de éstrelas consagradas pelos anos de ouro do

cinema americano.

A foto três por quatro parece ser uma das maneiras mais objetivas de reproduzir a

imagem de uma pessoa. Tanto é verdade que oficialmente elas garantem a identidadeda

pessoa retratada. Elas são as pessoas retratadas. Ninguém duvida.

Page 11: A Personagem

Entretanto essa “presença de uma ausência”, esse testemunho irrespondível de uma

existência não pode ser

13

confundido com a pessoa. Papel e gradações de branco e preto, resultantes de conquistas

técnicas, são criações que a habilidade humana inventou para representar, simular o

real. A semelhança com o real reside no registro de uma imagem, flagrada num dado

momento, sob um determinado ângulo e sob determinadas condições de luz. Esse

produto diz muito pouco, ou quase nada, da complexidade do ser humano retratado.

Talvez por essa razão as pessoas façam tanta força para aparentar e passar para a

fotografia a imagem que fazem de si mesmas: cabelos penteados, sorriso, leve ar de

seriedade, queixo erguido e outros aspectos selecionados pela pessoa e pelo fotógrafo

para compor a imagem que será registrada. Os resultados e a reação dos fotografados

diante de suas fotos demonstram que não é fácil construir a própria imagem para fazer

de conta que se é exatamente aaquilo.

Basta olhar alguns retratos três por quatro, aqui ou na vitrina dos fotógrafos, para

pensar um pouco nos frágeis limites que separam (se é que esses limites existem. . .) a

reprodução fiel da realidade e a simulação do real.

14

Mas, se as fotos para documentos guardam ainda uma proximidade entre a pessoa

retratada e a imagem resultante, tomemos um outro exemplo em que o resultado

evidencia uma composição, um trabalho de linguagem em que o fotógrafo utiliza

conscientemente os recursos oferecidos pelo “código fotográfico”, selecionando e

combinando os elementos necessários para criar uma realidade, ainda que, para um

receptor ingênuo, pareça estar apenas reproduzindo uma realidade.

15

Essas duas fotos, feitas em 1941 por dois talentosos fotógrafos da época, vão

muito além de um simples e espontâneo retrato de duas pessoas. O assunto escolhido

por eles — Hedy Lamarr, no caso de Clarence Sinclair Buil, e Marlene Dietrich, sob a

perspectiva de A. L. (“Whitey”) Schafer — é trabalhado com o requinte dos grandes

Page 12: A Personagem

artistas. No jogo de claro-escuro, técnica que nesses casos contribui para dissimular o

real a fim de captar uma beleza, uma presença que extrapola o simples universo dos

A. L. (“Whitey”) Schifor Columbia. 1941.

16

mortais, o fotógrafo esculpe quase que uma máscara . A expressão fotográfica, que tem

como ponto de partida não as pessoas de Hedy e Marlene, mas as estrelas de cinema

com toda a carga cultural e estética que elas representam, encontra na combinatória da

luz, nos elementos que o fotógrafo selecionou para registrar o seu assunto, um momento

de captação de um mundo maravilhoso, dos sonhos vendidos por Hollywood e

avidamente consumidos pelos espectadores.

Nos dois casos a manipulação dos recursos fotográficos (preparação da estrela,

utilização de estúdio e mais a habilidade do fotógrafo) impõe ao receptor dois rostos

misteriosos, produzidos por um filtro que acaba por registrar não pessoas de carne e

osso, mas ideais de beleza, sonho e glamour. Na verdade, no lugar de simplesmente

registrar uma imagem, o fotógrafo cria o assunto. E o que se vê, através de recursos

fotográficos, é a representação do mundo dos artistas que encantavam o público

justamente por pertencerem a um universo que nada tinha a ver com o cotidiano

prosaico e endurecido pela crise que o mundo atravessava naquele momento.

Portanto, para essas fotos, a expressão registro do real começa a assumir característcias

especiais. O fotógrafo não registra uma imagem. Ele cria uma imagem. Seu ponto de

partida e seus instrumentos são trabalhados para criar a ilusão do real. Embora não se

possa falar em personagens, no sentido de seres inteiramente fictícios, é impossível não

captar nessas imagens a mitologia hollywoodiana, imposta precisamente pela máscara

que o fotógrafo esculpe no lugar de um rosto mortal. E aí começa a ficar difícil separar

“imagem reproduzida” de “imagem inventada”.

Ainda no rastro das formas que o homem inventou para “registrar” a realidade, vamos

observar um desenho

3 Roland Barthes, no livro Mitologias, faz um estudo bastante interessante a respeito do rosto de Greta Garbo. Vale a

pena conferir.

17

Page 13: A Personagem

de Cândido Portinari, datado de 1944 e intitulado Retirantes.

Aqui, a força dos traços e a combinação das cores arrancam o observador da

postura de quem vê o registro de uma realidade, a fim de conduzi-lo diretamente à

miséria humana expressa em cada milímetro do quadro. A paisagem endurecida, o céu

povoado por aves agourentas, e as figuras que se amontoam numa sinistra paródia de

foto para álbum de família constituem uma cena brasileira de onde é possível captar um

enredo e as personagens que

18

dele participam. Um enredo trágico, flagrado pela sensibilidade de Portinari e

transmitido por sua linguagem fortemente expressionista. Neste caso, mesmo o

observador mais ingênuo é forçado, pelas técnicas utilizadas pelo pintor, a enxergar,

além do registro de um grupo de pessoas, persanagens de uma tragédia num estágio

muito mais próximo da morte que da vida.

Assim sendo, é possível verificar nesse quadro que a idéia de reprodução e

invenção de seres humanos combina- se no processo artístico, por meio dos recursos de

linguagem de que dispõe o autor. Ao mesmo tempo que Portinari distorceu a realidade

não reproduzindo mimeticamente o mundo, conseguiu apontar de forma mais violenta

para a realidade exterior ao quadro, justamente porque a cena, feita de cores e traços,

reinventa e faz explodir múltiplos ângulos dessa realidade.

“Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência a vossa!”

Até aqui, com o propósito de iniciar a discussão a respeito das diferenças e

semelhanças existentes entre pessoas e personagens, foram examinadas mensagens que

utilizam unicamente a linguagem visual. Nessas rápidas abordagens, iião foi possível

flagrar limites que separem com nitidez a reprodução da invenção. Esses dois processos

de “registro” do real parecem misturar-se constantemente, mesmo quando se acredita

estar lidando com linguagens consideradas objetivas, fiéis ao que está sendo captado.

Neste item, finalmente, o objeto de estudo será o texto literário, concebido como o

Page 14: A Personagem

espaço em que, por meio de palavras, o autor vai erigindo os seres que compõem o

universo da ficção.

19

O fragmento escolhido para análise pertence ao romance O Ateneu, de Raul

Pompéia4 e sua escolha, neste momento, prende-se ao fato de estarmos interessados em

verificar as estratégias que o autor utiliza para reinventar a realidade, transportando sua

visão de mundo ao leitor e fazendo-o, por essa ilusão, reportar-se à chamada realidade.

No primeiro capítulo de O Ateneu, reconhecido romance de crítica social

articulada a partir de técnicas não apenas realistas-naturalistas, mas também

expressionistas e impressionistas, encontra-se o trecho aqui destacado para observação.

São seis parágrafos que formam uma unidade:

momento em que o narrador caracteriza pela primeira vez o colégio Ateneu. Na

verdade, essa primeira caracterização do colégio acaba funcionando como um pretexto

para a apresentação da personagem Aristarco, que desempenha, como o espaço

configurado pelo Ateneu, uma significativa função no romance. Uma leitura desse

trecho, parágrafo por parágrafo, ajuda a perceber os recursos lingüísticos utilizados por

Raul Pompéia para criar a realidade ficcional.

1 . § Duas vezes fora visitar o Ateneu antes da minha instalação.

Esse primeiro parágrafo, composto por um período simples, funciona ao mesmo

tempo como introdução ao fragmento escolhido e como elemento de ligação, como

conexão, entre o que foi narrado antes e o que vai ser narrado agora. Para o enfoque

proposto aqui — verificar como são construídas as personagens —, ele é importante

pois, independentemente do restante do texto, informa ao leitor (por meio da inclusão de

um pronome possessivo, “minha”) que a narrativa é feita em primeira pessoa, ou seja, o

narrador é também personagem.

5. ed. São Paulo, Ática, 1977. p. 12, 13, 14.

20

2.’ § Ateneu era o grande colégio da época. Afamado por um sistema de

nutrido reclame, mantido por um diretor que de tempos a tempos reformava o

Page 15: A Personagem

estabelecimento, pintando-o jeitosamente de novidade, como os negociantes que

liquidam para recomeçar com artigos de última remessa; o Ateneu desde muito

tinha consolidado crédito na preferência dos pais, sem levar em conta a

simpatia da meninada, a cercar de aclamações o bombo vistoso dos anúncios.

Nesse segundo parágrafo começa a caracterização, processo utilizado pelo

narrador para criar a ilusão da existência de espaços e personagens. O objeto da

caracterização é focalizado no início do parágrafo, por meio de uma síntese dos aspectos

que o narrador considera importantes:

“Ateneu era o grande colégio da época”. A simples decomposição da frase demonstra

que elementos foram selecionados e de que maneira foram combinados pelo narrador

para colocar o leitor no ângulo exato de sua visão:

• inicialmente, um substantivo, um nome próprio, individualiza e confere

existência ao espaço evocado;

• em seguida, reforçando essa existência, a utilização do verbo “ser”, na terceira

pessoa do singular do pretérito imperfeito do indicativo, confere ao substantivo Ateneu

o estatuto de sujeito da proposição;

• finalmente, um predicativo do sujeito, formado pelo adjetivo “grande”

antecedido do artigo definido masculino “o”, mais o substantivo “colégio” seguido do

adjunto adnominal “da época”, atribui ao sujeito as qualidades que o narrador quer

transmitir.

Dessa forma, nessa síntese de caracterização, o leitor enxerga sob a ótica do

narrador não as características físicas do espaço evocado, mas “o grande colégio da

época”, uma entidade educacional destacada por sua importância, por sua maneira de

ser num dado momento.

21

A fim de dar continuidade à caracterização desse espaço, visualizado sob uma

perspectiva temporal que, necessariamente, implica elementos sociais e culturais do

momento evocado, o narrador utiliza alguns recursos lingüísticos que deslocam o foco

Page 16: A Personagem

da descrição para um outro objeto, diretamente ligado a esse primeiro. No

desenvolvimento do segundo parágrafo, é possível flagrar, na construção sintática das

frases, a estratégia de deslocamento que possibilita passar para o primeiro plano um

outro sujeito: o sujeito de um fazer que provoca, que é causa da existência e da

subsistência do colégio Ateneu, caracterizado como sujeito do verbo “ser”

Os dois primeiros traços desses deslocamentos encontram-se na utilização dos

tertnos “afamado” e “mantido”. Do ponto de vista morfológico, esses dois termos

podem ser analisados como particípio passado: “afamado”, particípio passado de

“afamar”, verbo transitivo direto, empregado no sentido de “dar fama”, “celebrizar”,

“notabilizar”; “mantido”, particípio passado de “manter”, verbo transitivo direto,

empregado no sentido de “prover do necessário para a subsistência”.

Como se sabe, o emprego do particípio desacompanhado de auxiliar exprime

fundamentalmente o estado resultante de uma ação acabada. Além disso, o particípio

dos verbos transitivos tem valor passivo. Portanto, ao utilizar esses dois termos, o

narrador consegue, ao mesmo tempo, caracterizar um estado do sujeito “Ateneu” e

apontar a ação e o agente que provocam esse estado. Por meio dessa estratégia

lingüística, facilmente verificável pela análise gramatical, o sujeito do verbo “ser”

torna-se passivo de uma ação que tem o seu agente declarado: “afamado por um sistema

de nutrido reclame”; “mantido por um diretor que. . . “. Em seguida, confirmando essa

lógica combinatória que desloca o foco da caracterização de um sujeito do ser para um

sujeito do fazer, encontra-se a

22

oração “pintando-o jeitosamente de novidade.. . “, que tem como sujeito o termo

diretor, declarado anteriormente pelo agente da passiva, e o colégio como objeto direto,

recuperado por meio do pronome pessoal “o”.

Daí em diante, ainda que na conclusão do segundo parágrafo o narrador apresente

considerações sobre o sujeito do verbo ser, o foco da descrição já está deslocado para o

sujeito do fazer, agente provocador das condições, selecionadas como fundamentais

para caracterizar o “Ateneu”, que ganha a partir desse momento o primeiro plano na

dicção do narrador e, conseqüentemente, na recepção do leitor. Assim sendo, a

caracterização da personagem Aristarco não começa no terceiro parágrafo desse trecho,

Page 17: A Personagem

como poderia pensar um leitor menos atento, mas tem seu início ainda nesse segundo

parágrafo. Essa síntese radical apresentada nessas linhas iniciais do romance, e

conseguida através de recursos linguísticos precisos, oferece elementos a respeito da

personagem que são, no conjunto da obra, essenciais para a construção, a função e as

interpretações possíveis a respeito de Aristarco e do livro O Ateneu.

Essa leitura, iniciada aqui através de minúcias gramaticais que correm o risco de cair

em desgraça se o texto for conduzido somente nesse sentido, mas que de resto ajudam a

perceber que a questão da personagem é, também sob este ângulo, um problema

lingUístico, poderá ser confirmada a cada linha do romance. Entretanto é possível, sem

crucificar gramaticalmente cada centímetro do texto, encontrar a pertinência e as

conseqüências dessa abordagem no restante do texto escolhido para demonstrar as

estratégias usadas por Raul Pompéia para criar o mundo da ficção.

Considerando o parágrafo como uma minisseqüência, uma unidade de composição que

permite fragmentar o texto conforme um critério do autor, pode-se perceber o seguinte

caminho na construção da personagem Aristarco, no segundo parágrafo:

23

• a personagem aparece como o agente de um fazer, não como um ser; sua

existência está condicionada a uma outra existência (colégio);

• a personagem é designada através do termo “diretor”, substantivo masculino

que indica uma função — “aquele que dirige”;

• o fazer da personagem está ligado a um sistema publicitário, à divulgação de

urna imagem (“afamado por um sistema de nutrido reclame”, “como um comerciante

que. .

3 § O Dr. Aristarco Argolo de Ramos, da conhecida família do Visconde de

Ramos, do Norte, enchia o império com o seu renome de pedagogo. Eram

boletins de propaganda pelas províncias, conferências em diversos pontos da

cidade, a pedidos, à sustãncia, atochando a imprensa dos lugarejos, caixões,

sobretudo, de livros elementares, fabricados às pressas com o ofegante e

esbaforido concurso de professores prudentemente anônimos, caixões e mais

caixões de volumes cartonados em Leipzig, inundando as escolas públicas de

toda a parte com a sua invasão de capas azuis, ráseas, amarelas, em que o

nome de Aristarco, inteiro e sonoro, oferecia-se ao pasmo venerador dos

Page 18: A Personagem

esfaimados de alfabeto dos confins da pátria. Os lugares que os não

procuravam eram um belo dia surpreendidos pela enchente, gratuita,

espontânea, irresistível! E não havia senão aceitar a farinha daquela marca

para o pão do espirito. E engordavam as letras, à força, daquele pão. Um

benemérito. Não admira que em dias de gala, íntima ou nacional, festas do

colégio ou recepção da coroa, o largo peito do grande educador desaparecesse

sob constelações de pedraria, opulentando a nobreza de todos os honoríficos

berloques.

• apresentação da personagem, anunciada anteriormente através de uma função;

• individualização através do nome e sobrenome duplo, antecedidos de um título,

“Dr.”, e de um artigo definido;

24

• referência à ascendência aristocrática (“da conhecida família. .

• referência a sua atuação como “renomado pedagogo”, por meio da enumeração

exaustiva de sua forma de atuar;

• identificação da figura da personagem com o sistema publicitário por ela

engendrado;

• utilização de uma linguagem excessivamente retórica, carregada sintática e

semanticamente por termos e expressões que, ao mesmo tempo, esboçam e engordam

uma figura moldada na caricatura parasita de um fazer comercial, sustentado

unicamente pelas aparências;

• isomorfismo personagem—linguagem caracterizadora, através do abuso da

caracterização positiva, ironizada pela remotivação de ditados (“e não havia como não

aceitar a farinha daquela marca para o pão do espírito”) e pela insistência de

identificação personagem—propaganda.

4° § Nas ocasiões de aparato é que se podia tomar o pulso ao homem. Não só as

condecorações gritavam-lhe do peito como uma couraça de grilos: Ateneu!

Ateneu! Aristarco todo era um anúncio. Os gestos, calmos, soberanos, eram de

um rei — o autocrata excelso dos silabários; a pausa hierática do andar

deixava sentir o esforço, a cada passo, que ele fazia para levar adiante, de

Page 19: A Personagem

empurrão, o progresso do ensino público; o olhar fulgurante, sob a crispação

áspera dos supercílios de monstro japonês, penetrando de luz as almas

circunstantes — era a educação da inteligência; o queixo, severamente

escanhoado, de orelha a orelha, lembrava a lisura das consciências limpas —

era a educação moral. A própria estatura, na imobilidade do gesto, na mudez do

vulto, a simples estatura dizia dele: aqui está um grande homem.., não vêem os

côvados.de Go!ias?!... Retorça-se sobre tudo isto um par de bigodes, volutas

maciças de fios alvos, torneadas a capricho, cobrindo os lábios, fecho de prata

sobre o silêncio de ouro, que tão

25

belamente impunha como o retraimento fecundo do seu espírito, — teremos

esboçado, moralmente, materialmente, o perfil do ilustre diretor. Em suma, um

personagem que, ao primeiro exame, produzia-nos a impressão de um enfermo,

desta enfermidade atroz e estranha: a obsessão da própria estátua. Como

tardasse a estátua, Aristarco interinamente satisfazia-se com a afluência dos

estudantes ricos para o seu instituto. De fato, os educandos do Ateneu

significavam a fina flor da mocidade brasileira.

• construção da figura física da personagem;

• declaração, pela primeira vez, do ser da personagem (“Aristarco todo era um

anúncio”); o ser da personagem aparece, definido coerentemente com o que foi

mostrado pelo narrador até aqui, como uma mensagem de propaganda, elaborada e

veiculada com finalidades comerciais e institucionais — divulgação de imagem;

• levantamento dos traços que compõem a figura física, seguidos sistematicamente por

uma parafernália de atributos excessivos, de elementos caracterizadores de uma

aparência vultosa, impositiva, conseguida, como no parágrafo anterior, através da

abundância da adjetivação, da remotivação de ditados e de outros recursos

característicos da retórica da sedução publicitária;

• síntese da figura física e moral da personagem: o narrador declara a impressão

causada pela figura da personagem, resumida nos termos “enfermo”, “obsessão da

própria estátua”;

Page 20: A Personagem

• caracterização do sucesso do fazer da personagem, que atinge seus objetivos:

seu público-alvo, definido como “a fina flor da mocidade brasileira”.

5.‟ § A irradiação da réclame alongava de tal modo os tentáculos através do

país, que não havia família de dinheiro, enriquecida pela setentrional borracha

ou pela charqueada do sul, que não reputasse um compromisso de honra com a

posteridade doméstica mandar dentre seus jovens, um,

26

dois, três representantes abeberar-se à fonte espiritual do Ateneu.

• atuação e participação da personagem num espaço caracterizado e localizado

social e culturalmente;

• personagem não mais nominalizada, mas identificada, confundida com o

sistema publicitário (“A irradiação da réclame alongava de tal modo os tentáculos. .

• o narrador abandona a retórica excessiva, paródica e ironizada, e assume um

tom crítico mais direto, não deixando de filtrar uma referência ao afrancesamento

através do emprego de um termo da língua francesa, “a réclame”, quando ele já havia

utilizado o termo português reclame, considerado arcaico na linguagem publicitária, e

anúncio, substituto desse arcaísmo;

• a permanência da ironia pode ser percebida na utilização de um termo francês

em franco contraste com a expressão “posteridade doméstica”;

• introdução de um sujeito coletivo, “família de dinheiro”, mantenedor do

sistema.

6.° § Fiados nesta seleção apuradora, que é comum o erro sensato de julgar

melhores famílias as mais ricas, sucedia que muitas, indiferentes mesmo e

sorrindo do estdrdalhaço da fama, lá mandavam os filhos. Assim entrei eu.

• encerramento da seqüência;

Page 21: A Personagem

• avaliação do sistema mantenedor da fama da personagem e do colégio,

localizado num sujeito coletivo, identificado como “famílias mais ricas”.

• ligação existente entre o personagem-narrador e os demais elementos da seqüência.

Na análise dos fragmentos escolhidos, mesmo sem remontar a tudo o que já se

disse a respeito de Raul Pompéia e seu significativo romance O Ateneu, é possível

27

perceber o requintado trabalho de linguagem desenvolvido pelo autor a fim de

construir um mundo ficcional que espelha e aponta para uma realidade exterior ao texto,

mas que vale, que se impõe pela sua própria existência.

A personagem que vai se delineando aos olhos do leitor, montada unicamente

com os recursos oferecidos pelo código verbal, passa a ter uma existência que carrega

em si toda uma crítica ao sistema educacional vigente no final do Império. Nesses

poucos parágrafos, o autor começa a construir uma personagem que é, ao mesmo tempo,

exten sã e condição de existência de um sistema educacional calcado apenas nas

aparências, na ilusão, na miragem desrovida de consistência.

Para conseguir esse efeito, Raul Pompéia não escolhe o fácil caminho da exposição de

idéias, ou de um realismo mimético que visa “copiar” o mundo. Ao contrário, ele vai

buscar nas características da linguagem, elemento signi ficativ capaz de dar forma ao

real, as características do mundo inventado e retratado. O aspecto caricatural de

Aristarco, e, por extensão, do próprio sistema educacional, é conseguido através da

utilização de uma linguagem cari caturesca Antes mesmo do narrador afirmar que “Aris

tarc todo era um anúncio”, o leitor pode perceber a cada linha um abuso retórico

proposital, que, sendo duplamente irônico, vai chamando a atenção para a extravagante

ma neir de ser da personagem e da linguagem, ambas produ zida pela acumulação de

signos que apontam para o mundo da fragilidade oca das aparências. Com um pouco

mais de ousadia, mas sem perder de vista o caráter profunda ment literário do texto,

pode-se até afirmar que Raul Pompéia, pela linguagem acumulativa que vai construindo

a personagem e tudo que ela representa, consegue recupe ra alguns aspectos

significativos de um determinado momento do capitalismo: acumulação e valorização

da aparência.

Page 22: A Personagem

3

A personagem e a tradição crítica

No princípio está Aristóteles

Tanto o conceito de personagem quanto a sua função no discurso estão

diretamente vinculados não apenas à mobilidade criativa do fazer artístico, mas

especialmente à reflexão a respeito dos modos de existência e do destino desse fazer.

Pensar a questão da personagem significa, necessariamente, percorrer alguns caminhos

trilhados pela crítica no sentido de definir seu objeto e buscar o instrumental adequado à

análise e à fundamentação dos juízos acerca desse objeto.

Já foi dito e impresso, muitas vezes, que é inevitável iniciar uma reflexão teórica

sem voltar o olhar para a Grécia antiga e para os pensadores que impulsionaram o

conhecimento. No caso da personagem de ficção, é também nesse momento que se vai

encontrar o início de uma tradição voltada para o conhecimento e a reflexão dessa

instância narrativa.

Dos teóricos conhecidos, Aristóteles é o primeiro a tocar nesse problema. Ao

discutir as manifestações da

29

poesia lírica, épica e dramática 1, esse pensador grego levantou alguns aspectos

importantes, que marcaram e marcam até hoje o conceito de personagem e sua função

na literatura.

Um aspecto relevante desses estudos é o que diz respeito à semelhança existente

entre personagem e pessoa, conceito centrado na discutida, e raras vezes compreendida,

mimesis aristotélica. Durante muito tempo, o termo mimesis foi traduzido como sendo

“imitação do real”, como referência direta à elaboração de uma semelhança ou imagem

da natureza. Essa concepção, até certo ponto empobrecedora das afirmações contidas no

Page 23: A Personagem

discurso aristotélico, marcou por longo tempo as tentativas de conceituação,

caracterização e valoração da personagem.

Na verdade, o que alguns críticos contemporâneos 2 têm procurado demonstrar é

que uma leitura mais aprofundada e menos marcada do conceito de arte, e,

conseqüentemente, do conceito de mimesis contidos na Poética, revela o quanto

Aristóteles estava preocupado não só com aquilo que é “imitado” ou “refletido” num

poema, mas também com a própria maneira de ser do poema e com os meios utilizados

pelo poeta para a elaboração de sua obra.

Aristóteles aponta, entre outras coisas, para dois aspectos essenciais:

• a personagem como reflexo da pessoa humana;

• a personagem como construção, cuja existência obedece às leis particulares que

regem o texto.

1 ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. Lisboa, Guimarães. s.d.

2 Ver COSTA Lia&, Luís. Estruturalismo e crítica da literatura.

Petrópo1is, Vozes, 1973. Ver tb. WIMSATr JR., William K. &

BROOKS, Cleanth. Crítica literária. Lisboa, Fundação Calouste-Gulbeirian, 1971.

30

Seria importante, portanto, reler Aristóteles para resgatar o conceito de

verossimilhança interna de uma obra, muito mais importante que imitação do real,

mal-entendido que marcou uma longa tradição crítica e que até hoje assombra os

estudos da personagem. A esse respeito e a título de exemplo, considere-se a seguinte

passagem da Poética:

Não é ofício do poeta narrar o que realmente acontece; é, sim, representar o

que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível, verossímil e necessário.

Com efeito, não diferem o historiador e o poeta, por escreverem em verso ou

prosa (...), — diferem sim em que diz um as coisas que sucederam, e o outro as

coisas que poderiam suceder. Por isso a poesia é mais filosófica e mais elevada

do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o

particular. Referir-se ao universal, quero eu dizer:

Page 24: A Personagem

atribuir a um indivíduo de determinada natureza pensamentos e ações que, por

liame de necessidade e verossimiIhança, convém a tal natureza; e ao universal,

assim entendido, visa a poesia quando põe nome às suas personagens (...)3.

Ou ainda uma passagem anterior:

Una é a fábula, mas não por se referir a uma só pessoa, como crêem alguns,

pois há muitos acontecimentos e idf 1’ nitamente vários, respeitantes a uma só

pessoa, entre os quais não é possível estabelecer unidade alguma. Muitas são as

ações que uma pessoa pode praticar, mas nem por isso elas constituem uma

ação una. (...) Homero, assim como se distingue em tudo o mais, parece bem ter

visto este lado da poesia, quer fosse por arte, quer por engenho natural, pois ao

compor a Odisséia, não poetou todos os sucessos da vida de Ulisses, por

exemplo o ser ferido no Parnaso e o simular-se louco no momento da expedição.

3 ARISTÓTELES, Op. Cit., p. 117.

31

Porque, de haver acontecido uma dessas coisas, não se seguia necessariamente

ou verossimilmente que a outra houvesse de acontecer, mas com pôs sobre o

fundamento de uma ação una, a Odisséia, no sentido que damos a estas

palavras, e de modo semelhante, a Ilíada.

Nessas duas passagens evidencia-se o destaque dado por Aristóteles ao trabalho

de seleção efetuado pelo poeta diante da realidade e aos modos que encontra de

entrelaçar possibilidade, verossimilhança e necessidade. Portanto não cabe à narrativa

poética reproduzir o que existe, mas compor as suas possibilidades. Assim sendo,

parece razoável estender essas concepções ao conceito de personagem: ente composto

pelo poeta a partir de uma seleção do que a realidade lhe oferece, cuja natureza e

unidade só podem ser conseguidas a partir dos recursos utilizados para a criação.

Spielberg e Alencar?

Considerando essa leitura possível de Aristóteles, podemos perceber que o

conceito de verossimilhança interna de uma obra é extremamente pertinente e pode ser

Page 25: A Personagem

utilizado na leitura de obras produzidas em outros momentos que não os estudados pelo

pensador grego.

Consideremos, por exemplo, o filme Indiana Jones and the Temple of Doon (EUA,

1984), dirigido por Steven Spielberg. Nessa narrativa cinematográfica, como se sabe, a

personagem central — Indiana Jones — enfrenta uma série de perigos para encontrar

centenas de crianças raptadas por fanáticos religiosos e também recuperar uma pedra

sagrada. A ação se passa na India.

Quem assistiu ao filme, uma seqüência vertiginosa de ações “emocionantes” em que o

herói e seus dois compa-

4 Aristóteles, op. cit., p. 115.

32

nheiros levam selhpre a melhor sobre os poderosos inimigos, poderá entender

perfeitamente o que significa verassimilhança interna.

Se o espectador quiser julgar o filme através dos dados plausíveis que a

realidade exterior ao texto oferece, terá de admitir a falta total de veracidade, julgando-o

inteiramente absurdo. Como é possível aceitar que, durante uma longa luta nas escarpas

de um precipício em que todos os inimigos são derrotados, o herói saia intacto, sem

derrubar sequer o chapéu que traz na cabeça? Entretanto, se essa obra-prima da indústria

cultural pode ser questionada por uma série de fatores, certamente não o será pela

ausência de verossimilhança. A personagem Indiana Jones, vivida pelo belo ator

Harrison Ford, apesar de todo o aparato modernoso sustentado pelos efeitos especiais,

não deixa de ser o mesmo mocinho dos filmes de cowboy, o mesmo herói das narrativas

tradicionais, cheias de obstáculos a serem transpostos, o mesmo mocinho romântico,

cujo destino é vencer inimigos e conquistar o coração da mocinha. Ou seja, seu

comportamento e o desfecho das ações por ele protagonizadas estão apoiados nas

necessidades do encaminhamento da história, da fábula, que neste caso é

suficientemente redundante, exaustivamente marcada por traços acumulados por uma

tradição narrativa despida de estranhamento.

Indiana Jones é, desde o começo, reconhecido como mocinho, como o herói que

vai vencer o mal. Ele é bonito, é inteligente, é esperto, detém um saber — é um

arqueólogo e fala várias línguas — e está revestido, além disso tudo, do mito do super-

Page 26: A Personagem

homem. Como o espectador já assimilou todos esses traços em outras narrativas,

identifica de imediato o herói e espera que a narrativa cumpra, assim como a

personagem, o seu conhecido destino. Dessa forma, as surpresas ficam por conta da

articulação das

33

ações e do desempenho coerente da personagem em suas emocionantes aventuras.

Como a narrativa transcorre dentro da fórmula tradicional, o que seria absurdo, se o

parâmetro fosse a realidade exterior à obra, torna-se coerente, torna-se verossímil. E, se

o chapéu de Indiana não cai da cabeça mesmo nos momentos mais críticos, isso fica por

conta da verossimilhança interna da obra.

De Aristóteles e suas considerações sobre a tragédia e a epopéia passamos para

Spielberg e sua versão espalhafatosa dos surrados heróis, provavelmente chocando

alguns leitores. Agora vamos para uma outra personagem, desta vez da literatura

brasileira, que também ajuda a entender o conceito de verossimilhança interna de uma

obra. Vamos espiar sob essa ótica a nossa Iracema de José de Alencar.

O ponto de partida do romance é um argumento histórico: a fundação do Ceará.

Nem por isso ele vai ou deve se comportar como um historiador. A personagem

Iracema, elemento que nos interessa neste momento, vai sendo esculpida não por

imitação a um índio real, com quem se pudesse tropeçar nas selvas brasileiras, mas com

a seleção de informações fornecidas pelos cronistas e com um trabalho de criação de um

romancista-poeta empenhado em resgatar, pela linguagem, uma criatura possível de um

mundo selvagem ainda não dominado pela civilização:

Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.

Iracema. a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa

da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira.

O favo da lati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha rescendia no

bosque como seu hálito perfumado.

Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas

do lpu, onde campeava sua guerreira

34

Page 27: A Personagem

tribo da grande nação taba jara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas

a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas .

A personagem Iracema, desde o nome — lábios de mel, de ira, na língua tupi, ou

reverberação de América — até as ilações possíveis com a matriz do Novo Mundo —

ela é a mãe de Moacir, cujo pai é o branco Martim, ela é a selvagem penetrada pelo

colonizador, ela morre e deixa um filho mestiço com sobrevivente e primeiro de uma

raça parida e marcada pelo sofrimento —, deve ser lida como verossímil.

José de Alencar recorre para a construção dessa personagem, e de todo o

romance, a um processo tradutor da lenda, do argumento histórico, que aponta não para

o aportuguesamento do índio, para sua diluição através de uma ótica ocidentalizada,

mas, ao contrário, para o que se poderia chamar de “tupinização” 6 da literatura. Todas

as comparações, todas as metáforas, todas as imagens que vão dando forma à

personagem, só podem ser decodificadas a partir da cultura indígena recuperada e

reinventada pelo escritor. Assim sendo, a consistência, a poesia e a beleza da

personagem Iracema só podem ser julgadas (se é que alguma personagem pode ser

julgada...) por meio de uma compreensão dessa atitude poética radical, desses recursos

tradutores de um mundo recriado por Alencar e articulado de forma a estabelecer um

diálogo eptre a História e suas possibilidades. Invertendo a mão, o escritor brasileiro faz

o texto falar a língua indígena numa dicção de um mundo possível, que só a literatura

pode recuperar.

ALENCAR, José de. Iracema. 12. ed. São Paulo, Ática, 1981. p. 14. 6 O termo “tupinização” eu tomo emprestado de

Haroldo de Campos.

35

Perseguindo a personagem

Os estudos empreendidos por Aristóteles serviram de modelo, num certo

sentido, à concepção de personagem que vigorou até meados do século XVIII, momento

em que o conceito de mimesis flagrado no pensador grego e manipulado por seus

interpretadores começa a ser combatido. Durante esse longo período, todos os teóricos

que trataram de questões ligadas à arte, incluindo-se aí o problema da personagem,

foram influenciados pela visão aristotélica e mais particularmente pela tese ético-

Page 28: A Personagem

representativa encerrada em sua teoria.

No início desse percurso situa-se Horácio, o poeta latino que em sua A rs poetica

divulga as idéias aristotélicas e reitera as suas proposições. No que diz respeito à

personagem, Horácio associa o aspecto de entretenimento, contido pela literatura, à sua

função pedagógica, e consegue com isso enfatizar o aspecto moral desses seres fictícios.

De certo modo, a concepção de personagem divulgada pelo pensador latino contribui de

forma significativa para que se acentue o conceito de imitação propiciado pelo termo

mimesis para a reinstauração da finalidade utilitarista da arte, entrevista em Aristóteles.

Apegado às relações existentes entre a arte e a ética, Horácio concebe a personagem

não apenas como reprodução dos seres vivos, mas como modelos a serem imitados,

identificando personagem-homem e virtude e advogando para esses seres o estatuto de

moralidade humana que supõe imitação. Ao dar ênfase a esse aspecto moralizante, ainda

que suas reflexões tenham chamado a atenção para o caráter de adequação e invenção

dos seres fictícios, Horácio contribuiu decisivamente para uma tradição empenhada em

conceber e avaliar a personagem a partir dos modelos humanos.

36

Seguindo o percurso, vamos encontrar tanto na Idade Média quanto na

Renascença o florescimento da concepção de personagem herdada dos dois pensadores.

A natureza da literatura produzida na Idade Média e o imperialismo dos princípios

cristãos propiciam a identificação da personagem com fonte de aprimoramento moral. A

canção de gesta, como se sabe, ocupa-se das façanhas de um herói que personifica uma

ação coletiva, enraizada na memória coletiva. O romance medieval, por sua vez, está

profundamente ligado à historiografia, espelhando a vivência cortês e o idealismo

guerreiro. Em função dessas narrativas e das constantes formulações acerca da

moralidade da arte, a personagem conserva na Idade Média o caráter de força

representativa, de modelo humano moralizante, servindo inteiramente aos ideais

cristãos.

O compromisso estabelecido entre personagem e pessoa perdura, sob novos

auspícios, na Renascença e nos séculos que a ela se seguem. E Aristóteles e Horácio são

os modelos literalmente retomados para fundamentar essa concepção e garantir a

perpetuação crítica desse ponto de vista. No século XVI, o escritor inglês Philip Sidney

(1554- -86), autor, entre outras obras, de A defesa da poesia, um dos primeiros ensaios

Page 29: A Personagem

de apreciação crítica da literatura inglesa, cujo caráter polêmico vem justamente da

exaltação da função do poeta na sociedade, procura deixar claro, rastreando Aristóteles

e Horácio, que as artes têm valor na medida em que conduzem a uma ação virtuosa, e

que a personagem deve ser a reprodução do melhor do ser humano.

Essa concepção, extraída das considerações que o autor faz da poesia e dos

poetas de sua época, que virtualiza a personagem como um ente semelhante mas ainda

melhor que seu modelo humano, encontra eco em outros teóricos. No século XVII, o

poeta e autor dramático inglês John Dryden, considerado o primeiro grande crítico da

37

Inglaterra, deixa entrever em seus prefácios e principalmente na obra Ensaio sobre a

poesia dramática (1668) uma concepção antropomórfica de personagem, baseada

também nos conceitos aristotélicos e horacianos.

E ele não é o único. Seria possível numerar aqui vários outros conceituados autores

que, durante os séculos XVI e XVII, legaram à posteridade curiosos estudos da

personagem como imagem de pessoa, revestida da moralizante condição de verdadeiro

retrato do melhor do ser humano. E é essa concepção que vai continuar vigorando até

meados do século XVIII.

Os novos ares dos séculos XVIII e XIX

A partir da segunda metade do século XVIII, a concepção de personagem

herdada de Aristóteles e Horácio entra em declínio, sendo substituída por uma visão

psicologizante que entende personagem como a representação do universo psicológico

de seu criador. Essa mudança de perspectiva se dá a partir de uma série de ircunstâncias

que cercam o final do século XVIII e praticamente todo o século XIX. É nesse momento

que o sistema de valores da estética clássica começa a declinar, perdendo a sua

omogeneidade e a sua rigidez. É também nesse momento que o romance se desenvolve

e se modifica, coincidindo com a afirmação de um novo público — o público burguês

—, caracterizado, entre outras coisas, por um gosto artístico particular.

Especialmente no século XVIII, o romance entrega-se à análise das paixões e

dos sentimentos humanos, à sátira social e política e também às narrativas de intenções

Page 30: A Personagem

filosóficas. Com o advento do romantismo, chega a vez do romance psicológico, da

confissão e da “análise de almas”, do romance histórico, romance de crítica e análise da

reali-

38

dade social. E é durante a segunda metade do século XIX que o gênero alcança seu

apogeu, refinando-se enquanto escritura e articulando as experiências humanas mais

diversificadas. Aos realistas e naturalistas coube perseguir a exatidão monográfica dos

estudos científicos dos temperamentos e dos meios sociais.

Coincidindo com o apogeu da narrativa romanesca, estendem-se as pesquisas teóricas

que procuram encontrar na gênese da obra de arte, nas circunstâncias psicológicas e

sociais que cercam o artista, os mistérios da criação e, conseqüentemente, a natureza e a

função da personagem. Nesse sentido, os seres fictícios não mais são vistos como

imitação do mundo exterior, mas como projeção da maneira de ser do escritor. E é por

meio do estudo dessas criaturas produzidas por seres privilegiados que é possível

detectar e estudar algumas particularidades do ser humano ainda não sistematizadas pela

Psicologia e pela Sociologia nascentes.

Assim, a personagem continua sendo vista como ser antropomórfico cuja medida de

avaliação ainda é o ser humano. Não existe a rigor, até esse momento, uma teoria da

prosa de ficção que possa estudar e entender a personagem em sua especificidade. Os

estudos desenvolvidos durante esse longo período nada mais fazem que reproduzir por

prismas diversos a visão antropomórfica da personagem. Essá tradição só vai ser

alterada nas primeiras décadas do século XX com a sistematização da crítica literária,

em suas diversas tendências, e com a reabertura do diálogo acerca das especificidades

da narrativa e de seus componentes.

A personagem sob as luzes do século XX

A prosa de ficção sofre, no século XX, grande metamorfose, se comparada aos

modelos narrativos que se tor-

39

Page 31: A Personagem

naram clássicos no século XIX. Ao lado das profundas análises empreendidas por

escritores do porte de Marcel Proust, Virgínia Woolf, Kafka, Thomas Mann e James

Joyce, opera-se uma significativa modificação na concepção da escritura narrativa

desenvolvida por esses e outros escritores. Essas transformações, que correm pralelas às

grandes transformações do texto poético, coincidem com uma violenta reação contra o

factualismo das indagações biográficas e das pesquisas de fonte. Sistematizada por

várias tendências e objetivando um conhecimento das especificidades da obra literária

como um ser de linguagem, a crítica respira novos ares.

No que diz respeito especificamente ao romance e à personagem de ficção, é

somente com a obra Teoria do romance, de Gyiirgy Lukács, publicada em 1920, que

essas questões são retomadas em novas bases. Lukács, relacioe nando o romance com a

concepção de mundo burguês, encara essa forma narrativa como sendo o lugar de

confronto entre o herói problemático e o mundo do conformismo e das convenções. O

herói problemático, também denominado demoníaco, está ao mesmo tempo em

comunhão e em oposição ao mundo, encarnando-se num gênero literário, o romance,

situado entre a tragédia e a poesia lírica, de um lado, e a epopéia e o conto, de outro.

Nesse sentido, a forma interior do romance não é senão o percurso desse ser que, a

partir da submissão à realidade despida de significação, chega à clara consciência de si

mesmo.

A nova concepção de personagem instaurada por Lukács, apesar de reavivar o

diálogo a respeito da questão e de fugir às repetições do legado aristotélico e horaciano,

submete a estrutura do romance, e conseqüentemente a personagem, à influência

determinante das estruturas sociais. Com isso, apesar da nova óticaa personagem

continua sujeita ao modelo humano, não obstante as teorias a

40

respeito da poesia já terem avançado quilômetros na direção da especificidade da

linguagem.

Ainda na década de 20, um outro crítico empenha-se em esclarecer alguns aspectos

diretamente ligados ao romance e à personagem de ficção. Mais precisamente em 1927,

aparece o livro Aspects of the novel, de E. M. Forster, romancista e crítico inglês que,

apesar de todas as suas outras obrajportalizou-se pela sua classificação de personagens

Page 32: A Personagem

em flat — na, tipificada, sem profundidade psicológica — e round redonda, complexa,

multidimensional.

A publicação de Aspecis of lhe novel acontece no exato momento em que as

obras de um Marcel Proust, de uma Virgínia Woolf, de um James Joyce, por exemplo,

abalavam as velhas estruturas do romance e, ao mesmo tempo, o barulho da crítica

fazia-se ouvir sonoro pela dicção da estilística, do formalismo russo e do new criticism

norte-americano, sistematizando a reação contrt6s da história literária positivista.

Sensível à produção literária do momento e tocado possivelmente pelo posicionamento

florescente do new criticism, Forster encara a intriga, a história e a personagem como os

três elementos estruturais essenciais ao romance e trabalha o ser fictício como sendo um

entre os componentes básicos da narrativa. Essa concepção, que encara a obra como um

sistema e possibilita a averiguação da personagem na sua relação com as demais partes

da obra, e não mais por referência a elementos exteriores, permite um tratamento

particularizado dos entes ficcionais como seres de linguagem, e resulta numa

classificação considerada profundamente inovadora naquele momento.

Segundo Forster, as personagens, flagradas no sistema que é a obra, podem ser

classificadas em planas e redondas. As personagens planas são construídas ao redor de

uma única idéia ou qualidade. Geralmente, são definidas em

41

poucas palavras, estão imunes à evolução no transcorrer da narrativa, de forma que as

suas ações apenas confirmem a impressão de personagens estáticas, não reservando

qual- quer surpresa ao leitor. Essa espécie de personagem pode ainda ser subdividida em

tipo e caricatura, dependendo da dimensão arquitetada pelo escritor. —

São classificadas como tipo aquelas personagens que alcançam o auge da

peculiaridade sem atingir a deformação. O grande exemplo de tipo, citado por todos os

manuais de literatura, é o Conselheiro Acácio, da obra O primo Basílio, de Eça de

Queirós. Quando a qualidade ou idéia única é levada ao extremo, provocando uma

distorção propositada, geralmente a serviço da sátira, a personagem passa a ser uma

caricatura. Se a literatura está repleta dessas duas espécies e se a classificação pode ser

discutível do ponto de vista das grandes obras literárias, servindo apenas como

orientação didática, temos que reconhecer que é uma classificação pertinente,

Page 33: A Personagem

especialmente se voltarmos os olhos para a novela de tevê, ou para outros festejados

produtos da indústria cultural.

As personagens classificadas como redondas, por sua vez, são aquelas definidas por

sua complexidade, apresentando várias qualidades ou tendências, surpreendendo

convincentemente o leitor. São dinâmicas, são multifacetadas, constituindo imagens

totais e, ao mesmo tempo, muito particulares do ser humano. Para exemplificar,

poderíamos recorrer ao elenco das personagens criadas pelos bons escritores e que

permanecem como janelas abertas para a averiguação da complexidade do ser humano e

potência da , escritura dos grandes narradores.

Mas a esta altura, o leitor poderia perguntar: “Apesar da contribuição e das inovações

apresentadas por Forster no que diz respeito ao estudo da personagem, ele ainda não

estaria pautado na ligação entre ficcional—pessoa humana?” Ou de uma outra maneira:

“Será que existe realmente

42

alguma forma de escavar a materialidade dos seres fictícios abstraindo inteiramente sua

relação com o ser humano?”

De fato a questão não é simples. O caminho que estamos tentando perseguir neste

capítulo, entrecortado por atalhos e veredas, por labirintos críticos que de forma alguma

apontam para uma estrada principal (se é que ela existe. . .), parece se aproximar cada

vez mais da concepção da narrativa como um universo organizado, coerente e lógico,

como uma maneira particular de formalizar a realidade. Se em Forster essa concepção

pode ser entrevista, outorgando à personagem um estatuto específico ainda que não

inteiramente despido das injunções humanas, fato idêntico vai acontecer com outros

críticos da mesma época, como é o caso de Edwin Muir, poeta, romancista e crítico

inglês que publicou, em 1928, The structure of the novel.

Nessa obra, Muir analisa diversos aspectos da estrutura romanesca, procurando

separar a ficção, o romance, da vida. Perseguindo os princípios estruturais do romance,

apresenta a personagem, não como representação do homem, mas como produto do

enredo e da estrutura específica do romance. Ao estudar, pr exemplo, O morro dos

ventos uivantes (Emily Brontë, 1847), que classifica como um romance dramático,

demonstra que o tempo está encarnado e articulado nas personagens, assim como o

ritmo psicológico está determinado pela rapidez das ações. A essa classificação —

Page 34: A Personagem

romance dramático — o crítico opõe narrativas do tipo Guerra e paz (Tolstoi, 1878),

em que o ritmo não é mais determinado pela intensidade da ação, existindo, ao

contrário, uma regularidade fria, exterior às personagens, de forma que sua

transformação não mais obedece aos movimentos inerentes à ação. Nos romances

dramáticos, os heróis morrem num dado momento predeterminado pelo destino. Nos

outros, morrem acidentalmente, e o tempo continua a correr.

43

Já bem próximos da especificidade da personagem, ainda não são Forster e Muir que

vão se desvencilhar da relação ser fictício—pessoa, que marca essa longa tradição. A

radicalização para uma concepção da personagem como ser de linguagem só vai

acontecer com os fornialistas russos, que iniciam, por volta de 1916, um movimento de

reação ao estudo naturalista-biológico ou religioso-metafísico da literatura. Filiado ao

futurismo russo e à lingüística estrutural, o fonnalismo surpreende na década de 30 por

sua oposição ao didatismo predominante na crítica russa e por sua reação ao

materialismo histórico marxista, prescrito pelo partido.

Os estudos desenvolvidos pelos formalistas, os quais só serão conhecidos no Ocidente

por volta de 1955 com a publicação do livro Formalismo russo, de Victor Erlich,

constituem, num certo sentido, uma verdadeira ciência da literatura, contribuindo

decisivamente para que a obra seja encarada como a soma de todos os recursos nela

empregados, como um sistema de signos organizados de modo a imprimir a

conformação e a significação dessa obra.

Essa nova concepção da obra literária procura na organização intrínseca de seu objeto o

material e o procedimento construtivo que conferem à obra seu estatuto de sistema

particular. Nesse sentido, ao estudar as particularidades da narrativa, os formalistas

preocupam-se com os elementos que concorrem para a composição do texto e com os

procedimentos que organizam esse material, denominando fábula o conjunto de eventos

que participam da obra de ficção, e trama o modo como os eventos se interligam.

De acordo com essa teoria, a personagem passa a ser vista como um dos componentes

da fábula, e só adquire sua especificidade de ser fictício na medida em que está

submetidas aos movimentos, às regras próprias da trama. Finalmente, no século XX e

através da pespectiva dos

44

Page 35: A Personagem

formalistas, a concepção de personagem se desprende das muletas de suas relações com

o ser humano e passa a ser encarada como um ser de linguagem, ganhando uma

fisionomia própria.

A contribuição decisiva para esse estudo da personagem desvinculada das relações com

o ser humano aparece com a publicação da obra Morfologia skazki (Morfologia do

conto), em 1928, onde o formalista Wladimir Y. Propp (1895-1970) dedica um longo

estudo ao conto fantástico russo, explicitando a dimensão da personagem sob o ângulo

de sua funcionalidade no sistema verbal compreendido pela narrativa.

A partir dessa ruptura com a visão tradicional da obra literária, elemento que coloca o

formalismo como um verdadeiro divisor de águas dentro da teoria da literatura, os

teóricos começam a explorar desde a década de 50 os caminhos abertos pelos

formalistas russos na década de 20. Roman Jakobson, Lévi-Strauss, Tzvetan Todorov,

Claude Bremond, Roland Barthes, Julien Greimas e outros exploram as teses oferecidas

pelos formalistas e encaminham os estudos da narrativa na direção exploratória de suas

possibilidades estruturais.

O desenvolvimento desses estudos aporta, sob nomenclaturas e teorias diversificadas,

numa concepção semiológica da personagem. A esse respeito, e a título de exemplo,

vale a pena conferir o texto “Pour un statut sémiologique du personnage”, de Philippe

Hamon . Nesse ensaio, a personagem é estudada sob a perspectiva semiológica, isto é,

como um signo dentro de um sistema de signos, como uma instância de linguagem.

Para o autor, falar de personagens como se fossem seres vivos é uma postura banal e

incoerente. Sob essa

Litterature, 6 :86-110. 1972.

45

perspectiva, afirma que a existência de uma teoria literária rigorosa, entendida aqui

como funcional e imanente — de acordo com os termos impostos pelos formalistas —,

implica fazer proceder tôda exegese, todo comentário, dentro de um estado descritivo

que se coloca no interior de uma problemática estritamente semiológica ou semiótica.

Isso significa considerar, a priori, a personagem como um signo e, conseqüentemente,

escolher um ponto de vista que constrói este objeto, integrando-o no interior da

mensagem, definida como um “composto” de signos lingüísticos. Tal procedimento,

Page 36: A Personagem

segundo o autor, tem a vantagem de não aceitar a personagem como dada por uma

tradição crítica e por uma cultura centrada na noção de “pessoa humana” e, ao mesmo

tempo, torna a análise homogênea a um projeto que aceita todas as conseqüências

metodológicas nele implicadas.

A partir dessa visão, apresenta a noção semiológica de personagem não como

um domínio exclusivo da literatura, mas como pertencente a qualquer sistema

semiótico. Discute os domínios diferentes e os diversos níveis de análise, colocando a

questão do herói/anti-herói e da legibilidade de um texto como pontos que divergem de

sociedade para sociedade e de época para época.

Tomando como ponto de partida três grandes tipos de signos, visão pautada na divisão

semântica, sintaxe e pragmática preconizada pelos semiólogos e semioticistas, Philippe

Hamon define três tipos de personagens:

. Personagens “referênciais”: são aquelas que remetem a um sentido pleno e

fixo, comumente chamadas de personagens históricas. Essa espécie de personagem está

imobilizada por uma cultura, e sua apreensão e reconhecimento dependem do grau de

participação do leitor nessa cultura. Tal condição assegura o efeito do real e contribui

para que essa espécie de personagem seja designada herói.

46

Como exemplos marcantes, considerem-se todas as personagens de A ordem do dia, de

Márcio Souza.

• Personagens “embrayeurs”: são as que funcionam como elemento de conexão e que

só ganham sentido na relação com os outros elementos da narrativa, do discurso, pois

não remetem a nenhum signo exterior. Seria o caso, por exemplo, de Watson ao lado de

Sherlock Holmes.

• Personagens “anáforas”: são aquelas que só podem ser apreendidas completamente

na rede de relações formada pelo tecido da obra. Diadorim, de Grande sertão: veredas,

poderia estar nesta categoria. Essa classificação, que permite ainda enfrentar a

personagem como participante das três categorias ao mesmo tempo, foi utilizada aqui

apenas como um exemplo da radicalização da teoria da personagem, tomada como

matéria do discurso e analisada sob os critérios fornecidos pela Linguística e pela

Page 37: A Personagem

Semiologia e/ou Semiótica. A título também de exemplo do alcance e dos produtos

teóricos dessa visão, seria pertinente conhecer a ótica funcionalista de A. J. Greimas 8

Especialmente nas obras Sémantique structurale e Du sens, Greimas substitui a

designação personagem por ator, referindo com esse termo a “unidade lexical do

discurso”, cujo conteúdo semântico mínimo é definido pelos semas (unidades de

significação): entidade figurativa, animado, susceptível de individualização. Além

disso, Greimas distingue ator de actante, uma espécie de arquiator, conceito situado

num nível superior de abstração e que, por essa razão, pode expressar-se em vários

atores numa mesma narrativa. Para Greimas, existem seis actantes: sujeito, objeto,

destinador, destinatário, opositor e adjuvante. E as relações estabelecidas entre os

actantes, numa dada narrativa, constituem o modelo actancial.

8 Sémanrique structurale. Paris, Larousse, 1966; id. Du sens. Paris, Seuil, 1970.

47

Personagem: invenção do autor e da crítica

Ao chegarmos ao final deste capítulo, temos de reconhecer que as posturas

alinhavadas nesse percurso estão relacionadas não apenas com as tentativas constantes

de encontrar novos métodos para analisar e interpretar a obra literária, mas também com

a especificidade, dos textos produzidos em „determinadas épocas e que 4m a ver com a

mobilidade das diversas tendências que circunscrevem esse fazer artístico.

Nesse sentido, uma abordagem atual da personagem de ficção não pode

descartar as contribuições oferecidas pela Psicanálise, pela Sociologia, pela Semiótica e,

principalmente, pela Teoria Literária moderna centrada na especificidade dos textos.

A essa altura dos estudos críticos, o analista deve considerar a longa tradição do

estudo da personagem e, sem superestimar ou minimizar a função desse componente em

relação aos outros que dão forma à narrativa, encontrar a sua especificidade na íntima

relação existente entre essa e as demais instâncias do discurso literário. Na obra

L’univers du roman , R. Bourneuf e R. Ouellett situam a personagem através da rede de

relações que contribuem para a sua existência, incorporando elementos pertencentes a

várias tendências críticas a fim de chegar a uma postura didática mas não simplificadora

do problema. O enfrentamento da questão se dá através do destaque das relações

Page 38: A Personagem

existentes entre as personagens, os lugares e os objetos e as relações existentes entre

cada uma das personagens de um romance.

Demonstrando que as personagens de um romance agem umas sobre as outras e

revelam-se umas pelas outras,

9 Paris, Presses Un. de France, 1972

48

os autores apontam quatro funções possíveis desempenhadas pela personagem no

universo fictício criado pelo romancista: elemento decorativo, agente da ação, porta-

voz do autor, ser fictício com forma própria de existir, sentir e perceber os outros e o

mundo.

A personagem com função decorativa, mas nem por isso dispensável, seria aquela

considerada inútil à ação, aquela que não tem nenhuma significação particular, a que

inexiste do ponto de vista psicológico. Apesar da expressão “elemento decorativo” estar

carregada de sentido pejorativo e aparentemente descaracterizador, não é assim que

deve ser entendida neste contexto. Como elemento decorativo a personagem, se está no

romance, desempenha uma função. Ela pode constituir um traço de cor local, ou um

número indispensável à apresentação de uma cena em grupo.

No capítulo III da obra O cortiço, ao construir a cena do despertar desse núcleo

habitacional dominado por João Romão, personagem talhada a partir dos traços

marcantes de um imigrante português em busca de ascensão, Aluísio Azevedo descarta

qualquer possibilidade de individualização de uma personagem, para compor um quadro

coletivo, formado por um conjunto harmônico dos traços comuns das várias

personagens que formam esse núcleo.

(...) das portas surgiam cabeças congestionadas de sono; ouviam-se amplos

bocejos (...) trocavam-se de janela para janela as primeiras palavras, os bons-

dias (...) destacavam

-se risos, sons de vozes que altercavam (.. .). De alguns quartos saíam mulheres

que vinham pendurar cá fora, na parede, a gaiola do papagaio (...). Daí a

pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração

tumultuosa de machos e fêmeas (..). As mulheres precisavam já prender as saias

Page 39: A Personagem

entre as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços e do

pescoço (...).

49

Nessa passagem, é possível perceber a função das personagens denominadas

decorativas. Elas contribuem aqui para a caracterização de um dos núcleos de

personagens do romance: a coletividade representada por brasileiros que, pouco a

pouco, o narrador vai descortinando como dominados, sem consciência de sua

existência miserável, biologicamente acomodados. A compreensão das características

desse núcleo só pode ser conseguida por oposição a um outro, formado pelos

portugueses que chegavam ao Brasil com o objetivo de enriquecer, e também pela

tentativa de Aluísio Azevedo realizar, através dessa obra, um minucioso estudo das

relações sociais implicadas no acúmulo de capital de um grupo ambicioso em franca

oposição à pobreza e à ociosidade do outro.

Uma outra função passível de ser desempenhada pela personagem é, segundo os

autores que se apóiam em vários outros críticos, a de agente da ação.

Inicialmente, para desfazer as controvérsias em torno do termo ação, eles definem essa

instância da narrativa como sendo o jogo de forças opostas ou convergentes que estão

em presença numa obra. Ou seja, cada momento da ação representa uma situação

conflitual em que as personagens perseguem-se, aliam-se ou defrontam-se.

Esse jogo de forças e as funções suscetíveis de combinarem-se em uma obra estão

classificados a partir dos estudos desenvolvidos por E. Souriau e W. Propp, que

permitem subdividir o agente da ação em seis categorias, nem sempre necessariamente

encarnadas em uma personagem:

• condutor da ação: personagem que dá o primeiro impulso à ação; é o que

representa a força temática: pode nascer de um desejo, de uma necessidade ou de uma

carência

50

• oponente: personagem que possibilita a existência do conflito; força

antagonista que tenta impedir a força temática de se deslocar;

Page 40: A Personagem

• objeto desejado: força de atração, fim visado, objeto de carência; elemento que

representa o valor a ser atingido;

• destinatário: personagem beneficiário da ação; aquele que obtém o objeto

desejado e que não é necessariamente o condutor da ação;

• adjuvante: personagem auxiliar; ajuda ou impulsiona uma das outras forças;

• árbitro, juiz: personagem que intervém em uma ação conflitual a fim de

resolvê-la.

Sem menosprezar os estudos de Souriau e Propp, devemos encarar essas seis

funções como uma possibilidade de enfrentar a questão da personagem em certas

narrativas. A fotonovela, a telenovela e outras espécies de narrativa centradas em

fórmulas tradicionais comportam perfeitamente essa abordagem. O mesmo

reducionismo não se aplicaria a um conto de Clarice Lispector, a menos que o analista

estivesse empenhado em aplicar essa teoria desprezando a especificidade e as

particularidades do discurso em questão.

Porta-voz do autor seria uma outra função passível de ser desempenhada pela

personagem. Essa visão, também discutível, baseia-se numa longa tradição, empenhada

em enfrentar essa instância narrativa como a soma das experiências vividas e projetadas

por um autor em sua obra. Nesse sentido, a personagem seria um amálgama das

observações e das virtualidades de seu criador.

Entretanto nenhum romance, nenhuma obra de ficção se confunde com uma

biografia ou uma autobiografia. Ela é, quando muito, uma biografia ou uma

autobiografia do possível, ganhando por isso total autonomia com relação

51

a seu autor. Por essa razão, ao classificar a personagem como porta-voz do autor, é

necessário, segundo observam de forma pertinente os autores de L’univers du roman,

ultrapassar a reconstituição anedótica da biografia, a descoberta das fontes literárias ou

históricas e a análise superficial das idéias para atingir os níveis de apreensão invisíveis

a essa primeira abordagem.

Page 41: A Personagem

Ao encarar a personagem como ser fictício, com forma própria de existir, os

autores situam a personagem dentro da especificidade do texto, considerando a sua

complexidade e o alcance dos métodos utilizados para apreendê-la.

Page 42: A Personagem

4

A construção da personagem

Recursos de construção

Como um bruxo que vai dosando poções que se misturam num mágico

caldeirão, o escritor recorre aos artifícios oferecidos por um código a fim de engendrar

suas criaturas. Quer elas sejam tiradas de sua vivência real ou imaginária, dos sonhos,

dos pesadelos ou das mesquinharias do cotidiano, a materialidade desses seres só pode

ser atingida através de um jogo de linguagem que torne tangível a sua presença e

sensíveis os seus movimentos.

Se o texto é o produto final dessa espécie de bruxaria, ele é o único dado

concreto capaz de fornecer os elementos utilizados pelo escritor para dar consistência à

sua criação e estimular as reações do leitor. Nesse sentido, é possível detectar numa

narrativa as formas encontradas pelo escritor para dar forma, para caracterizar as

personagens, sejam elas encaradas como pura construção linguístico-literária ou espelho

do ser humano.

Qualquer tentativa de sintetizar as maneiras possíveis de caracterização de

personagens esbarra necessariamente na questão do narrador, esta instância narrativa

que

53

vai conduzindo o leitor por um mundo que parece estar se criando à sua frente. Ainda

que este capítulo não tenha por objetivo discutir o papel do narrador, não há como fugir

desse elemento presente, sob diversas formas, em todos os textos caracterizados como

narrativas. Como podemos receber uma história sem a presença de um narrador? Como

podemos visualizar uma personagem, saber quem ela é, como se materializa, sem um

Page 43: A Personagem

foco narrativo que ilumine sua existência? Assim como não há cinema sem câmera, não

há narrativa sem narrador.

Para efeito do estudo dos modos de caracterização da personagem na ficção,

vamos utilizar a classificação narrador em terceira pessoa e narrador em primeira

pessoa, extraindo daí as diferentes possibilidades de construção de personagens, sem

entrar em algumas questões específicas de Teoria Literária que dizem respeito

essencialmente ao narrador.

Assim sendo, consideraremos que o narrador pode apresentar-se como um

elemento não envolvido na história, portanto, uma verdadeira câmera, ou-como uma

personagem envolvida direta ou indiretamente com os acontecimentos narrados. De

acordo com a postura desse narrador, ele funcionará como um ponto de vista capaz de

caracterizar as personagens.

O narrador é uma câmera

No romance Os que bebem como os cães, do piauiense Assis Brasil, o leitor,

grudado a essa câmera narrativa que é o narrador em terceira pessoa, vive a curiosa

experiência de conhecer uma personagem, a quem raríssimas vezes é dada a palavra, de

forma total e avassaladora, O espaço habitado pela personagem, uma cela

absolutamente escura, que se abre de tempos em tempos para um pátio onde

54

prisioneiros banham-se e lavam suas roupas, é violado apenas pelo poder dessa câmera

capaz de descortinar, progressivamente, as formas que vão materializando a

personagem.

A escuridão é ampla e envolvente.

O silêncio total, cortado apenas por aquele velho barulho que parte de seus

ouvidos.

Sempre fora assim: quando em silêncio, em paz ou expectativa, o zumbido

voltava, em duração enervante, direto como a fala do policial:

— Deixa as mãos dele algemadas.

Aos poucos ia apalpando o escuro da cela, o silêncio da escuridão, o zumbido

Page 44: A Personagem

do próprio corpo — estava no chão frio: não era cimento nem tijolo, terra

batida úmida, mas não molhada ao ponto de ensopar sua roupa — os braços

para trás das costas, os pulsos algemados.

Aos poucos ia apalpando o chão com o corpo, de bruços,

o rosto quase a tocar a areia: — sentia o cheiro da terra

— um terra velha e usada, com cheiro de mofo, com

cheiro de urina — sentia as parédes, mesmo sem vê-las

na escuridão: a opressão do cubículo estava em seu corpo,

em seus poros.

A posição era incômoda: as mãos nas costas, o corpo meio de lado, o rosto na

areia fria 1

Nesse trecho a personagem vai emergindo da escuridão graças aos recursos de

um narrador privilegiado, que, na sua posição de observador não personificado, pode

não apenas mostrar os movimentos que a vão delineando, mas também dizer o que ela

está sentindo e, mais adiante, o que está pensando. Sem se dar conta disso, o leitor se

instala na cela ao lado da personagem e, como observador de um parto doloroso, vai

assistindo a seu nascimento, seu

1 BRASIL. Assis. Ciclo do terror; os que bebem como os cães. Rio de Janeiro, Nórdica, 1984. p. 13.

55

despertar para uma realidade impalpável, sua dolorosa conquista da consciência.

Na verdade, esta forma de caracterizar a personagem, recorrendo à perspectiva

univalente do narrador, não pode ser considerada em si mesma boa ou má. Não se pode

afirmar, por exemplo, que em todas as narrativas em terceira pessoa o narrador não

deixa a personagem “viver”, destruindo a ilusão de vida no mundo que pretendeu criar.

Ou, ainda, que esse tipo de caracterização resulte sempre em personagens planas.

O fato da narrativa ser conduzida em terceira pessoa não implica

necessariamente personagens mal ou bem construídas. No romance utilizado como

exemplo, o recurso é pertinente e aponta para a verossimilhança interna da obra. A

personagem está restrita a um espaço mínimo, a cela escura e o pátio, e não tem noção

Page 45: A Personagem

de quem é, de por que está ali e de quanto tempo encontra-se nessa situação. A

composição do espaço, o desenho do ambiente, a caracterização da postura física da

personagem e a utilização do discurso indireto livre para expressar os pensamentos e as

emoções dessa criatura combinam-se de forma harmônica, construindo

progressivamente o saber da personagem e do leitor.

A apresentação da personagem por um narrador que está fora da história é um

recurso muito antigo e muito eficaz, dependendo da habilidáde do escritor que o

maneja. Num certo sentido, é um artifício primeiro, uma manifestação quase espontânea

da tentativa de criar uma história que deve ganhar a credibilidade do leitor: “Era uma

vez uma moça muito bonita, que se chamava. . .“; “Naquele tempo, os homens

caminhavam por. . . “. No Antigo Testamento, assim como nas epopéias clássicas ou nos

contos de fada, a personagem não é posta em cena por ela mesma, mas por suas

aventuras, pelo relato de suas ações. E nem por isso deixa de ter consistência e ganhar

credibilidade.

56

O escritor habilidoso encontra formas de acoplar recursos à narrativa em terceira

pessoa de modo a tornar suas criaturas verossímeis. O narrador épico, assim como o

narrador do texto sagrado, recorre ao sonho ou à aparição maravilhosa como formas de

dramatização que permitem representar a intensidade de um conflito interior, dimensão

que em princípio estaria fora do alcance de uma externa, de um foco narrativo

puramente exterior. A utilização do discurso indireto livre, como acontece em Os que

bebem como os cães, é um artifício lingüístico que dissipa a separação rígida entre a

câmera e a personagem, uma vez que lhe confere autonomia para auscultar uma

interioridade que não poderia ser captada pela observação externa.

A câmera finge registros. e constrói as personagens

O narrador em terceira pessoa simula um registro contínuo, focalizando a

personagem nos momentos precisos que interessam ao andamento da história e à

materialização dos seres que a vivem.

No romance policial, por exemplo, o registro detalhado do comportamento das

personagens é tarefa, via de regra, de um narrador colocado fora da história e

Page 46: A Personagem

encarregado de acumular traços que funcionam como indícios da maneira de ser e de

agir dos agentes das ações compreendidas pela narrativa. Através desses traços, a

personagem vai sendo construída, e o leitor, por sua vez, pode descobrir, antes do final,

a dimensão ocupada pela personagem no desenrolar dos “acontecimentos”.

Essa técnica, banalizada pelo romance policial de segunda linha, é utilizada com muita

eficácia por Dashiell Hammett, escritor americano nascido em 1894 e morto em 1961,

consagrado por sua literatura policial, que, além da

57

intriga e do suspense, fornece uma visão dos costumes políticos, do gangsterismo

calcado no “Big Business” e da luta pelo poder e pelo dinheiro que caracterizam o

mundo americano.

Sem concessões à violência fácil, esse escritor instaura um narrador em terceira pessoa,

uma câmera privilegiada, que vai construindo por meio de pistas fornecidas pela

narração, pelas descrições e pelo diálogo o perfil das personagens que transitam pela

intriga e simbolizam o mundo que ele quer retratar. Isso acontece, por exemplo, na obra

The glass key, publicada em 1931 e recentemente traduzida para o português sob o título

A chave de vidro.

Paul Madvig estava só na sala, parado de pó, diante da janela, as mãos

enfiadas nos bolsos da calça, de costas para a porta, olhando através da tela a

escura rua da China lá embaixo.

Voltou-se lentamente e disse:

— Oh, você por aqui.

Era um homem de quarenta e cinco anos, alto como Ned Beaumont, mas com

uns vinte quilos a mais, sem flacidez. O cabelo, claro, partia-se no meio,

emplastrado na cabeça. Tinha um rosto bem proporcionado, com aspecto sadio,

corado e robusto. As roupas escapavam do berrante pela qualidade e pelo modo

como ele as usava.

Ned Beaumont fechou a porta e disse:

— Me empreste algum dinheiro.

Madvig retirou do bolso interno do paletó uma grande carteira marrom.

— Quanto quer?

Page 47: A Personagem

— Umas duas de cem.

Madvig deu-lhe uma de cem e cinco de vinte, perguntando:

— Dados?

— Obrigado. — Ned Beaumont embolsou o dinheiro. — É.

— Faz muito tempo que você não dá uma ganhadazinha, não é? — perguntou

Madvig, voltando a enfiar as mãos no bolso.

58

— Não muito... um mês ou um mês e meio.

Madvig sorriu.

— É muito tempo para ficar perdendo.

— Não para mim. — Sentia-se uma nota de irritação em sua voz2

Nesse fragmento, extraído das primeiras páginas do romance, o leitor começa a

visualizar duas importantes personagens. Essa visualização, esse efeito de realidade vai

ganhando forma a partir da descrição minuciosa de traços que apontam para a figura

física das personagens, para a nominalização desses seres, para a minúcia dos gestos,

para as roupas e para a linguagem de cada um. A descrição, a narração e o diálogo

funcionam como os movimentos de uma câmera capaz de acumular signos e combiná-

los de maneira a focalizar os traços que, construindo essas instâncias narrativas,

concretizando essa existência com palavras, remetem a um extratexto, a um mundo

referencial e, portanto, reconhecido pelo leitor.

A delicadeza e a sutileza do estilo de Dashiell Hammett, em franco contraste

com a grosseria do mundo que ele recria, permite que as personagens, ainda que

focalizadas por um narrador em terceira pessoa, recebam um certo número de

qualificações e, no mesmo tempo, desnudem o seu fazer através de índices que

contribuem para a sua função no decorrer da intriga, do• suspense, e permitem a

decifração da simbologia social que elas encerram.

O acúmulo de índices através de um narrador em terceira pessoa não é. um privilégio

dos bons e dos maus policiais mas uma técnica de construção de personagens que

permite muitas combinações, dependendo sempre das intenções e da habilidade dos

escritores.

Page 48: A Personagem

2 HAMMETT, Dashiell. A chave de vidro. Trad. Marcos Santarrita. São Paulo, Brasiliense, 1984. p. 8-9.

59

Dalton Trevisan, um dos mais refinados contistas brasileiros, utiliza freqüentemente

essa técnica, dando a impressão, pela sua diabólica escritura, de estar reinventando esse

antigo instrumento de caracterização de personagens. No conto “Duas rainhas”, uma das

trinta narrativas que aparecem em Cemitério de elefantes , as personagens Rosa e

Augusta ganham a dimensão maldosa de grandes animais, acidentes geográficos e

depósito ambulante de comida. Essa imagem chega ao leitor por um narrador que vai

puxando um discurso repleto de metáforas, hipérboles, metonímias, diminutivos,

contrastes semânticos irônicos e diálogos articulados com o intuito de compor figuras

grotescas.

Duas gorduchinhas, filhas de mãe gorda e pai magro. Não sendo gêmeas, usam

vestido igual, de preferência encarnado com bolinha. Sob o travesseiro mil

bombons, o soalho cheio de papelzinho dourado.

Rosa tem o rosto salpicado de espinhas. Dois anos mais moça, Augusta é

engraçadinha, para quem gosta de gorda. Três vezes noiva de suleitos

cadavéricos, esfomeados por aquela montanha de doçuras gelatinosas. Os

amores desfeitos pela irmã.

(...)

Duas pirâmides invertidas que andassem, largas no vértice e fininhas na base.

Manchas roxas pelo corpo de se chocarem nos móveis. Lamentam-se da

estreiteza das por. tas. Sua conversa predileta sobre receita de bolo. Nos

aniversários, primeiras a sentarem-se à mesa ou, para lhes dar passagem, todos

têm de se levantar.

Aqui o narrador, diferentemente dos exemplos anteriores, não dissimula a sua

presença. Ele não circula como uma câmera impessoal que, postada fora da história,

finge não existir. Ao contrário: ele é um narrador bastante pes

TREVISAN, Dalton. Cemitério de elefantes. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1964.

60

Page 49: A Personagem

soal. Ao utilizar os diminutivos — gorduchjnha, bolinha, papeizinho, engraçadínha —

somados à hipérbole — mil bombons —, às metáforas montanhas de doçura gelatinosa,

pirâmides invertidas —, e a outros recursos de linguagem, o narrador coloca em

contraste o valor semântico das palavras e as figuras que estão sendo construídas,

deflagrando um processo discursivo que corresponde ao volume das personagens e à

ironia com que são caracterizadas.

Essas rotundas personagens ganham sua forma e sua existência a partir de um

meticuloso trabalho de linguagem. Elas não são apenas “gordas” ou protótipos do

comportamento e da configuração de pessoas gordas. Elas são, desde o nome — Rosa,

que remete ao uso do termo como símbolo banalizado de flor, de fragilidade, de

feminilidade — e Augusta — consagrada, sublime, superior, cercada de bons augúrios

—, produtos de um discurso narrativo que aponta para a ironia de um observador

empenhado em fazer da linguagem o seu instrumento de impiedosa caracterização.

Não é a gordura que define as personagens e chama a atenção do leitor. Mas o

jogo de linguagem matreira, sibilina, que chama a atenção sobre si mesma a fim de

espiar, para além da gordura, a configuração grotesca e libidinosa das criaturas que vão

sendo mostradas.

A personagem é a câmera

A condução da narrativa por um narrador em primeira pessoa implica,

necessariamente, a sua condição de personagem envolvida com os “acontecimentos”

que estão sendo narrados. Por esse processo, os recursos selecionados pelo escritor para

descrever, definir, construir os seres fictícios que dão a impressão de vida chegam

diretamente ao leitor através de uma personagem. Vemos tudo através da

61

perspectiva da personagem, que, arcando com a tarefa de “conhecer-se” e expressar esse

conhecimento, conduz os traços e os atributos que a presentificam e presentificam as

demais personagens.

Se essa forma de caracterização e criação de personagens for encarada do ponto

de vista da dificuldade representada para um ser humano de conhecer-se e exprimir para

Page 50: A Personagem

outrem esse conhecimento, então seremos levados a pensar que esse recurso resulta

sempre em personagens densas, complexas, mais próximas dos abismos insondáveis do

ser humano. Tomando como medida o romance moderno, empenhado cada vez mais em

distanciar a personagem dos esquemas fixos que delimitam o ser fictício, teremos que

admitir que esse recurso ajuda a multiplicar a complexidade da personagem e da

escritura que lhe dá existência. Mas não é uma receita para a construção de personagens

mais densas: tudo, como sempre, vai depender da perícia do escritor, de sua capacidade

de selecionar e combinar os elementos que participam da arquitetura da personagem.

Apresentação da personagem por ela mesma

Quando a personagem expressa a si mesma, a narrativa pode assumir diversas

formas: diário íntimo, romance epistolar, memórias, monólogo interior. Cada um desses

discursos procura presentificar a personagem, expondo sua interioridade de forma a

diminuir a distância entre o escrito e o “vivido”. No artifício do diário, o emissor, a voz

narrativa, não pressupõe um receptor. Dessa forma, cada página procura expor a “vida”

à medida que se desenvolve, flagrando a existência da personagem nos momentos

decisivos de sua existência, ou pelo menos nos momentos registrados como decisivos.

62

No romance epistolar, assim como nas memórias, o aparente monólogo narrativo

tem, diferentemente do diário, um receptor em mira, ainda que esse destinatário não

esteja implicado nos acontecimentos. Por meio desse recurso, a caracterização da

personagem num tempo passado que é recuperado pela narrativa funciona como uma

maneira sutil, um pretexto para mostrar o presente e as nuances da interioridade.

O monólogo interior é o recurso de caracterização de personagem que vai mais

longe na tentativa de expressão da interioridade da personagem. O leitor se instala, por

assim dizer, no fluir dos “pensamentos” do ser fictício, no fluir de sua “consciência”.

Das narrativas contemporâneas, o Ulisses de James Joyce é a obra que tem merecido

destaque pela primorosa utilização desse recurso que permite, ao longo do romance,

expor o fluir caótico do jorro da consciência das personagens, traduzindo a integridade

de cada uma.

Page 51: A Personagem

Sim porque ele nunca fez um& coisa como essa antes como pedir pra ter seu

desjejum na cama com um par de ovos desde o hotel City Arms quando ele

costumava fingir que estava de cama com voz doente fazendo fita para se fazer

interessante para aquela velha bisca da senhora Riordan que ele pensava que

tinha ela no bolso e que nunca deixou pra nós nem um vintém tudo pra missas

para ela e para alma dela grande miserável que era com medo até de soltar 4 x.

para seu espírito metilado me contando com todos os achaques dela com aquela

(.. .) 4.

Essas são apenas algumas linhas do longo monólogo de Molly Bloom, mulher de

Leopold Bloom, que ocupa mais de cem páginas do final do romance. A radicalização

JOYCE, James. Ulisses. Trad. Antônio Houaiss. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1982. p. 791.

63

dessa forma de caracterizar a personagem, flagrada na ausência de pontuação, no

volume de sintagmas que se sucedem de forma a reproduzir um jorro de consciência que

obedece a um mínimo de sintaxe, permite a confluência de conteúdos psíquicos díspares

e a reprodução dos movimentos alógicos dos pensamentos apanhados em seu estado de

nascimento e expressão.

Também na escritura de Virgínia Woolf e Marcel Proust podem-se encontrar os

monólogos de reminiscência e antecipação, as passagens de impressões sensoriais, os

ritos de identificação personagem—narrador e até a eliminação total do “eu” narrativo,

como acontece em algumas obras de Ricardou Ollier e Robbe-Grillet, com o claro

intuito de revelar níveis da vida mental dificilmente explorados ou apreensíveis por

outros meios. Além disso, essa técnica possibilita a apreensão da interioridade da

personagem, de forma a expor a maneira como a consciência percebe o mundo.

A personagem é testemunha

Evidentemente, a convivência com Holmes não era difícli. Ele tinha hábitos

tranqüilos e regulares. Era raro vê-lo em pé depois das dez horas da noite, e

invariavelmente já havia feito o seu pequeno almoço e saído quando eu me

levantava da cama. Às vezes passava o dia no laboratório químico, outras, na

Page 52: A Personagem

sala de dissecação, e ocasionalmente em longos passeios, que pareciam levá-lo

aos bairros mais sórdidos da cidade. Nada era capaz de ultrapassar a sua

energia quando tomado por um acesso de atividade, mas de quando em quando

certa reação se operava nele, e por dias a fio eu o via estendido no sofá da .sala

de estar, sem pronunciar uma palavra ou mover um músculo, da manhã à noite.

Nessas ocasiões eu lhe notava nos olhos uma expressão vaga e sonhadora que

poderia ser atribuida

64

ao vício de algum narcótico, se a temperança e a limpeza de toda a sua vida não

impedissem semelhante idéia5 .

Nesse fragmento de Um estudo em vermelho, a personagem principal, Sherlock

Holmes, é apresentada por um narrador, testemunha participante do que está sendo

narrado. Esse recurso de caracterização, que utiliza uma personagem secundária para

fazer conhecer a personagem principal, é bastante utilizado pelo romance policial, ainda

que não seja uma técnica exclusiva desse tipo de narrativa. O narrador, de forma

discreta, vai criando um clima de empatia, apresentando a personagem principal de

maneira convincente e levando o leitor a enxergar, por um prisma ao mesmo tempo

discreto e fascinado, a figura do protagonista.

O discurso de Watson, narrador e personagem auxiliar de Sherlock, vai

construindo, pela referência aos hábitos, pela seleção de traços e atributos, pela narração

de ações e pela instauração de diálogos, o perfil de uma personagem, que ganha o

primeiro plano e deixa à atividade do narrador a função de testemunha exclusiva, capaz

de presentificar, pela ilusão do registro, a sua materialidade. Privando da intimidade

desse “herói”, ao nível do discurso e da intriga, a personagem-narrador funciona como a

lente privilegiada através da qual o leitor recebe e visualiza as personagens.

Essa postura narrativa, esse processo de caracterização de personagens é tão explorado

e cristalizado pela tradição da narrativa policial que até mesmo Umberto Eco a utiliza

em seu romance O nome da rosa, parodiando a eficácia e a simpatia de fazer a

personagem chegar ao leitor através de um auxiliar que, chamando a atenção para a sua

função secundária, ganha o interesse e as graças do leitor.

Page 53: A Personagem

5 DOYLE, Conan. Um estudo em vermelho. Trad. Hamilcar de Garcia. So Paulo, Melhoramentos, s.d. p. 24.

65

Nas páginas que seguem não vou me deter em descrições de pessoas (...) Mas de

Guilherme queria falar, e de uma vez por todas, porque dele também me

tocaram as feições singulares, e é próprio dos jovens ligarem-se a um homem

mais velho e mais sábio, não só pelo fascínio da palavra e agudez da mente, mas

também pela forma superficial do corpo, que se torna querida, como acontece

com a figura de um pai, de quem se estudam os gestos, os arrufos, e se espia o

sorriso — sem que sombra alguma de luxúria contamine este modo (talvez o

único puríssimo) de amor corporal.

(...)

Era pois a aparência física de frei Guilherme de tal porte que atraia a atenção

do observador mais distraído. Sua estatura superava a de um homem normal e

era tão magro que parecia mais alto. Tinha os olhos agudos e penetrantes; o

nariz afilado e um tanto adunco conferia ao rosto a expressão de alguém que

vigia, salvo nos momentos de torpor, dos quais falarei. Também o queixo

denunciava nele uma vontade firme, mesmo se o rosto alongado e coberto de

efélides — como vi freqüentemente nos nascidos entre Hibérnia e Nortúmbria

— pudesse às vezes exprimir incerteza e perplexidade. Percebi com o tempo que

o que parecia insegurança era ao contrário apenas curiosidade, mas de início

eu pouco sabia dessa virtude, que acreditava- antes uma paixão da alma

concupiscente, achando que a alma racional não devia dela se nutrir,

alimentando-se tão-somente da verdade, coisa que (pensava eu) já se sabe desde

o início6

É possível observar nesse trecho os artifícios sedutores empregados pelo

narrador para distinguir a natureza do seu fazer — recuperar a existência de um outro

através do registro escrito —, da dimensão que ele vai tentar resgatar. Ao mesmo

tempo, o leitor vai se afeiçoando, vai

6Eco, Umberto. O nome da rosa. Trad. Aurora Fornoni e Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiró, Nova

Fronteira, 1983. p. 25-6.

Page 54: A Personagem

66

dando credibilidade a esse aberto e exposto contador da história, e recebendo a exata

dimensão que ele vai passando da personagem principal, das demais personagens e dele

mesmo. Por meio da narração, e mais adiante pela recorrência ao discurso direto e ao

discurso indireto, que permitem recuperar a fala, a linguagem, enfim, a dicção da

personagem, a construção vai se operando gradativamente, até circunscrever a

totalidade pretendida pelo construtor.

Resumindo as possibilidades de construção

Quando pensamos nas personagens que povoam a tradição literária e que nos

tocam tão de perto que temos a impressão de terem existido numa dimensão que as

torna imortais e capazes de falar eternamente das inúmeras possibilidades de existência

do homem no mundo, tocamos necessariamente no poder de caracterização de seus

criadores. De Homero a Proust, passando por Zola, Balzac, Dostoiévski, Stendhal,

Machado de Assis, Gui•marães Rosa, Clarice Lispector, Eça de Queirós e inúmeros

outros escritores, nos chegam personagens cuja consistência aponta para uma escritura

que, espelhando os secretos movimentos da realidade, cria e impõe os seus próprios

movimentos.

A sensibilidade de um escritor, a sua capacidade de enxergar o mundo e pinçar nos seus

movimentos a complexidade dos seres que o habitam realizam-se na articulação verbal.

Nesse mundo de palavras, nessa combinatória de signos, o leitor vai se alfabetizar, vai

ler o mundo e decifrar a sua existência. Nos olhos de ressaca de Capitu, assim como na

ambigüidade de Diadorim e Riobaldo, o leitor vai perseguindo, palavra a palavra, traço

a traço, uma construção que, pelo seu encadeamento particular, garante

67

a sua própria existência, a sua independência, criando os seus referentes e abrindo um

mundo de leituras.

Mas, se a construção de uma personagem, o conjunto dos traços que compõem a

sua totalidade permite inúmeras leituras, dependendo da perspectiva assumida pelo

receptor, dos códigos utilizados em determinados momentos para a viabilização dessas

Page 55: A Personagem

leituras, isso não significa que a dimensão da personagem seja ditada unicamente pela

capacidade de análise e interpretação do leitor. Se a Cinderela dos contos de fada pode

ser traduzida num determinado momento como um exemplo premiado de

comportamento e em outros como um símbolo erótico entrevisto pelos recursos da

Psicanálise, ou se a nossa Aurélia, protagonista de Senhora, de José de Alencar, pode

ser lida como uma valorosa representante do mundo pensante feminino ou uma astuta e

viperina manipuladora de situações, isso fica por conta dos índices fornecidos pelo texto

e pela sua legibilidade através de diversos métodos.

A narração em primeira ou terceira pessoa, a descrição minuciosa ou sintética de traços,

os discursos direto, indireto ou indireto livre, os diálogos e os monólogos são técnicas

escolhidas e combinadas pelo escritor a fim de possibilitar a existência de Dependendo

de suas intenções e principalmente de sua perícia, ele vai manipular o discurso,

construindo essas criaturas, que, depois de prontas, fogem ao seu domínio e

permanecem no mundo das palavras à mercê dos delírios que esse discurso possibilita

aos incontáveis receptores.

A dosagem dessas poções lingilístico-literárias, a fixação nesta ou naquela técnica,

fatores ditados pelo estilo do autor e até mesmo pelo estágio da narrativa em

determinados momentos da tradição literária, possibilitam algumas classificações

generalizadoras, que devem ser tomadas na sua dimensão limitadora de instrumento

didático.

68

A construção de personagens obedece a determinadas leis, cujas pistas só o texto pode

fornecer. Se nos dispusermos a verificar o processo de construção de personagens de um

determinado texto e, posteriormente, por comparação, chegarmos às linhas mestras que

deflagram esse processo no conjunto da obra do autor, ou num conjunto de obras de

vários autores, temos que ter em mente que essa apreensão é ditada pelos instrumentos

fornecidos pela análise, pela perspectiva crítica e pelas teorias utilizadas pelo analista.

Isso é o óbvio e, apesar de ser dito com uma certa eloqüência, pode parecer dispensável

tanto para o leitor comum, que quer apenas desfrutar a personagem, quanto para o

analista consciente de sua postura e das restrições que o método pode representar.

Entretanto nem sempre essa obviedade é declarada. Muitas vezes, perseguimos a

construção de uma personagem munidos pelo instrumental fornecido pela estilística,

Page 56: A Personagem

pelo estruturalismo, pela Psicanálise, pela Sociologia ou por qualquer outro referencial

teórico, acreditando estar diante da última palavra em matéria de análise narrativa. Se

todas essas perspectivas contribuem para uma leitura da construção da personagem, é

preciso estar atento para o seu caráter parcial, não correndo o risco de reduzir o trabalho

do escritor e a sua dimensão aos grilhões teóricos que o escolhem, com louváveis

intenções, para seu objeto de análise.

2

2 Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de

facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de conhecerem novas obras. Se quiser outros títulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-lo em nosso grupo.

Page 57: A Personagem

5

De onde vêm esses seres?

Os escritores respondem

Este capítulo destina-se a satisfazer a curiosidade dos leitores. Quem convive

com a literatura e com outras artes, como o teatro e o cinema, muitas vezes se apanha

boquiaberto perguntando de onde o artista, o criador, tira suas personagens. Mesmo a

narrativa mais realista não consegue afastar do receptor a forte impressão de uma certa

magia, um certo poder inexplicável de que é dotado o ser humano que reinventa o

mundo através das palavras, das imagens e da combinação desses dois elementos.

Saber que Guimarães Rosa percorria o sertão anotando em seus surrados caderninhos

as estórias e as vivências dos sertanejos não é o bastante para entender a magia de suas

narrativas, a força de suas criaturas. Também não é suficiente ter informações a respeito

das visitas de Proust aos bordéis masculinos para entender alguns aspectos da escritura

proustiana empenhada em buscar o tempo perdido. Contudo, para os leitores de Proust e

de Guimarães Rosa, o conhecimento do extratexto, das circunstâncias sociais e pessoais

que envolvem a produção de ambos ajuda

70

a satisfazer o desejo de arranhar os segredos da sensibilidade desses seres que, pela

palavra, se aproximam do mitológico poder dos deuses: criar um mundo que simula e

faz ver melhor a realidade.

É verdade que hoje a mitificação da figura do escritor está fragilizada pela ação dos

meios de comunicação de massa. Abrimos o jornal ou 1igamos a televisão e lá estão os

escritores — com cara, roupa e linguagem de gente comum —, discutindo sua obra, sua

vida e os problemas do país. Mesmo assim, cruzar com Dalton Trevisan numa pacata

rua de Curitiba, por exemplo, ainda é uma situação de estranhamento e de vontade de

enxergar, na sua figura física comum, o poder da criação. Será que ele ouve conversas

de pessoas na rua e daí tira suas personagens? Talvez ele fique escondido atrás de

Page 58: A Personagem

biombos de consultórios médicos e sofás das salas da classe média. . . Nada disso

parece verossímil, tratando-se do criador de O vampiro de Curitiba.

Infelizmente, não vamos poder saber de onde vêm as personagens de Dalton, a não ser

pela análise de seus textos, pois, como ele mesmo afirma e está registrado na orelha do

livro 20 Contos menores (Record, 1979), “nada tem a dizer fora dos livros. Só a obra

interessa, o autor não vale o personagem. O conto é sempre melhor que o contista”.

Talvez ele tenha razão, se pensarmos na contribuição quase nula que representa a

gênese da personagem para a compreensão e análise de uma narrativa. Afinal, as

personagens são e estão no texto, seu espaço de existência. Saber de onde elas vêm, ou

para onde vão, é uma questão mais retórica que metafísica ou literária.

Mas muitos escritores já se propuseram esclarecer essa duvidosa questão. Os do

passado estão nos livros, e não cabe aqui transcrever o que está registrado em outros

lugares. Quanto aos contemporâneos, alguns se empenharam gentilmente em satisfazer

a curiosidade dos leitores

71

deste capítulo, respondendo de onde vêm suas personagens. A palavra, de agora em

diante, fica com eles.

Antônio Torres

“Eles vêm há muito tempo.”

Eles vêm do fundo de uma gaveta chamada memória. Aparecem quando menos os

esperamos. Rondam as nossas noites, nos perseguem por madrugadas a fio. A princípio

são imagens vagas, feições humanas de quem mal nos lembramos, sombras de um

passado que o presente quer resgatar.

Convivo com esses seres durante meses, às vezes durante anos, até pularem

sobre o teclado. Engatada a primeira frase, eles, os seres reais que me serviram de ponto

de partida para o romance, vão desaparecendo e dando lugar ao que chamamos de

personagens. Uma gente que se cria, anda por suas próprias pernas e nos impõe o seu

próprio destino.

Foi assim com Um cão uivando para a lua: uma visita de poucas horas a um amigo que

Page 59: A Personagem

se encontrava internado numa clínica psiquiátrica no Rio de Janeiro — e que me abalou

profundamente — viria a gerar um personagem chamado “A” e seu duplo “T”. Assumi

a primeira pessoa, enquanto narrador-personagem, e até hoje todo mundo pensa que é

um romance autobiográfico.

Já em Os homens dos pés redondos a imagem que me perseguia era a de um

desenhista que trabalhava comigo num casarão mal-assombrado, na cidade do Porto,

Portugal. Ele andava com uma tesoura no bolso e me dizia que ia matar o nosso chefe.

Não o fez. E me deu um romance.

Com Essa terra a história é mais longa. Custou-me duas viagens ao sertão da

Bahia. Eu queria saber quem

72

tinha sido o homem que, depois de muitas idas e vindas no eixo Nordeste—São Paulo,

acabou por se enforcar no armador de uma rede. Mas todas as pessoas do lugar se

negavam a tocar no assunto, O romance, então, foi se fazendo à medida que eu ia

percebendo que a negação dos fatos era o próprio fato, em relação à tragédia daquele

homem. Por falta de dados, a pessoa que eu buscava desapareceu. Aí nasceu o

personagem.

Carta ao bispo foi escrito em homenagem a um primo meu, um grande amigo,

político amador, que queria inserir o nosso pobre lugarejo no mapa do mundo. Ele

tomou veneno na casa do bispo de Juazeiro. Me contaram que, envenenado, ele andava

por um corredor, deixando marcas de sangue — as marcas das suas mãos — nas

paredes. Bastou esta cena para me ajudar a criar todo o romance.

Quanto ao Adeus, velho, que conta a saga de uma família de dezoito irmãos, foi

inspirado por velhos recortes de jornais sobre a prisão, em Salvador, de uma moça do

sertão acusada de um crime que não cometera. A imprensa assumiu um papel de juiz e a

condenava, provocando um grande escândalo. Isso me chocou.

Finalizando: quanto a mim, o personagem surge com uma lembrança, um fato,

qualquer coisa que me toca, no presente, em relação a qualquer coisa que me tocou,

profundamente, no passado.

Page 60: A Personagem

Doc Comparato

“De onde vêm esses seres?”

A criação de um personagem pode ser descrita como sendo o abandono de todas

as certezas.

No princípio o personagem se apresenta fragmentado na minha imaginação. Conheço

muito pouco dele: um tique, um comportamento particular perante um aconteci-

73

mento, uma postura do corpo, um olhar, um sentimento predominante, uma visão fugaz

etc. Dificilmente ele se apresenta inteiro, coerente e completo.

Depois, com esses fragmentos, vou montando um ser; recortando, recolhendo e colando

daqui e dali.

Com pedaços da minha própria vivência e memória, busco um corpo. Transformando

bocados de personagens de outros autores e obras, repenso. E, adaptando essas

partículas às contingências de minha estória, faço um trabalho artesanal, prazeroso e

puramente intuitivo.

Não existe regra, método ou tempo de duração. Trata- -se de um jogo entre o papel e

eu. E o resultado pode vir a ser frustrante ou compensador; não importa. A emoção está

no imprevisível.

Um lembrete: não podemos reduzir personagens ao sistema ideológico que os abriga e

sim, através desses seres, dar forma artística (dramática) aos conflitos do homem.

Exprimir suas, aspirações, necessidades, contradições e complexidades. E assim mostrar

o mundo (injusto) que nos cerca e revelar a profundidade das paixões.

Releio o que escrevi — me achei professoral, talvez idealizando meu próprio trabalho e

edulcorando minhas dificuldades.

Fui eu mesmo que escrevi isto ou foi um personagem?

Domingos Peilegrini

“Observar e imaginar.”

Page 61: A Personagem

Criar personagens é, no meu modo de ver, principalmente observar e imaginar.

Observo as pessoas interessantes — ou seja, as que me interessam vivamente por

repulsa, atração ou qualquer envolvimento. Para criar ficção, aliás, não basta observar

só as pessoas, mas ser observador de tudo.

74

A observação informa de maneira viva, reveladora. Uma coisa é aprender, no

primeiro ano de escola, que o ano tem quatro estações. Outra coisa é sentir as quatro

estações na vida — a certa altura, até no próprio corpo.

Para criar personagens parto, assim, da observação das pessoas — seu

comportamento, suas expressões. Personagem é basicamente ação e signos (uma

gravata, por exemplo, a expressar desde logo uma condição econômica). Assim também

as ações têm de ser não ações quaisquer, mas ações expressivas. Por exemplo, falar é

uma ação bastante expressiva; mais ainda se flagrarmos as personagens falando coisas

reveladoras de suas vidas, suas idéias e emoções, suas relações com a história toda.

Mas é tão ou mais importante flagrar também os gestos, mesmo os menores — e

até mais eles, bem como os olhares, tiques, roupas, detalhes — que falam a seu modo.

Olhar não tem cerca. Cacoete é sinal. Postura é signo. Roupa é condição. Vocabulário é

identidade.

Contudo a observação, pelo menos no que me toca, não é feita como um

trabalho regular, como sentar à máquina para escrever. Faz-se a todo momento,

alimentada pela curiosidade natural. Provavelmente há pessoas mais observadoras e

captadoras do que muitos escritores. Acontece que o criador, além do que observa, pode

imaginar.

Além de compor personagens com pedaços, momentos ou informações de tipos

observados, pode-se contar com as informações do estudo e as possibilidades da

imaginação. E possível criar para uma personagem desde um cacoete até uma morte

trágica, conforme o plano.

Criando, é preciso ter um plano, mesmo que não se tenha dele uma concepção

consciente.

Page 62: A Personagem

Para que o resultado final seja bom, a criação de personagens, apesar. de sua

aparente liberdade, também deve obedecer ao plano geral.

75

Ignácio de Loyola Brandão

“De onde vêm esses seres?”

Vêm de mim. Sou eu mesmo, uns quarenta por cento. Tem vez que é bem mais:

sessenta, setenta, cem por cento. Depende da piração. Mas a maior parte das vezes vêm

de tudo que me rodeia, das pessoas que estão à minha volta. De gente que vi, observei,

convivi, entrevistei, amei. Dizia Hemingway (será que dizia mesmo?) que o escritor não

pode ter escrúpulos. Nem com os outros, nem consigo mesmo. Não se confunda falta de

escrúpulos com mau -caratismo são coisas distintas, no caso literário. Se uma pessoa

pode fornecer dados ricos para um personagem, por que não utilizá-la?

Bebel foi tirada de uma estrelinha da tevê Record que tinha sido Miss Luzes da

Cidade, um concurso promovido pela Última Hora entre as “beldades” do bairro. Juntei

a essa menina as características de uma conhecida estrelinha da televisão paulista,

famosa pelas belas pernas e pelo sotaque francês. Inventei umas falas, certas situações,

idealizei outras com o conhecimento que tinha dos bastidores da televisão, porque era

um dos setores que eu cobria na Última Hora, década de 70. E estava pronto o per

sonagem.

Adelaide, do Não verás país nenhum, foi tirada de uma amiga dona de pensão,

onde morei nos princípios de minha chegada a São Paulo. A ela juntei gente de minha

família, uma vizinha que era a Adelaide dita e feita. Essa mulher, quieta, tranqüila,

recatada, “dona-de-casa”, fiel cumpridora dos deveres, morreu um dia. E o que apareceu

de caso, de romance, de amor, de fofocas! Parece que existiam duas mulheres. Mas será

que existiam mesmo? j Ou são os mitos populares? Deixo essa ambigüidade no meu

romance. Há uma, ou duas Adelaides?

76

Page 63: A Personagem

O Souza leva uma carga minha. O meu lado acomodado, apático, o deixa pra lá.

Tirei-o também de um amigo inteligente e lúcido, mas pessimista. Para que lutar?

Misturei num liquidificador, onde botei alguns conceitos meus a respeito da classe

média: omissa, reacionária, medrosa, conservadora etc. Acrescentei lampejos de

conscientização e lucidez — estava pronto.

O personagem sem nome do Dentes ao sol foi inteiramente baseado em dois pontos: 1)

o meu medo de nunca ter saído de Araraquara; passei a imaginar o que seria a minha

vida lá, se eu tivesse ficado, consciente de que não tinha tido coragem; 2) um amigo que

realmente ficou e depois tentou até o suicídio.

Disso resultou aquele homem que nunca procurou fazer as coisas que sonhava. E

passou a viver na terrível angústia do: “e se eu tivesse tentado?” Tentar e fracassar não é

problema. O suicídio, o veneno lento, é a dúvida: teria dado certo?

Anoto falas, frases, tiques, trejeitos, manias dos outros e vou jogando nos

personagens. Tento .também me ver através deles, me autocriticar. Vivo com uma

agendinha no bolso, anoto escondido. Senão esqueço.

Nos meus primeiros livros (Dentes ao sol, Bebei que a cidade comeu e Pega ele,

Silêncio), o personagem Bernardo (meu alter ego) é constante. Em Zero, ele já aparece

rápido, sentado em cima de uma saca de feijão. Meio decadente. Em Dentes ao sol, ele é

criticado por uma pessoa da cidade de onde veio.

Em Bebei, há um instante em que a personagem vai a um enterro. O enterro de uma

atriz de teatro que morreu de acidente. A história da atriz, Ana Maria, veio no livro

seguinte e se chama “Túmulo de vidro”.

A personagem de “Camila numa semana” (conto do Pega ele,. Silêncio) foi baseada

numa menina que existiu realmente e tinha até esse nome. Estudante universitária,

77

depois esteve envolvida na clandestinidade, sofreu, acabou se matando. Era uma

belíssima menina, que freqüentava muito o teatro Oficina no começo dos anos 60,

chegou a namorar o Zé Celso. Espécie de paixão de todo mundo. Ela adquiriu no livro o

rosto de Jean Seberg, que era o mito da minha geração. A personagem do incrível

Acossado, de Godard, que tanto marcou a gente.

Page 64: A Personagem

Acabo de me lembrar que não falei do José e da Rosa, os dois do Zero. Sabe que tem

muito estudante que me pergunta: — Zero vem de Zé mais Ro, abreviatura de Rosa?

Olha que é engraçado.

Os dois foram uma misturada das mais loucas. Punha o que vinha na cabeça, sem

preocupações tipo: combina com o personagem? Está dentro da linha psicológica?

Ajusta-se? Não está ficando ambíguo? Paradoxal? Contraditório? Acho que este meu

“não importar” é que conduziu ao personagem (talvez) melhor acabado, mais brasileiro,

“real”, típico, modelo do nosso homem em determinado momento. Claro que falo de

minha literatura, não de toda a brasileira. Zé e Rosa foram colagens alucinantes,

delirantes, pedaços, segmentos, fragmentos de tudo que rodava vertiginosamente em

torno de mim, no final dos anos 60. Mandei ver. Com liberdade mesmo, sem pensar em

estruturas, coerências, linhas, porque todo o país andava desestruturado. Andava? Ouve

até um crítico que passou o tempo todo a perguntar: mas onde está o eixo do livro?

Mandei uma carta à revista Escrita dizendo que o eixo do livro poderia ser encontrado

em qualquer casa de auto-peças.

Zé e Rosa nasceram de um sem-número de histórias que eu tinha prontas na gaveta.

Histórias, idéias, anotações sobre personagens. Gente de São Paulo. Sempre escrevo

numa agenda, depois datilografo e guardo em pastas. Um dia, apanhei as pastas e

comecei a sacar situações e a

78

escrever, montar o livro. Não foi à toa que Zero demorou nove anos a ficar pronto.

Anotações e materiais guardados a partir de 64. Sentei à mesa, firme, entre 67 e 69.

Entre 69 e 73 fiquei editando, aparando, limando, empurrando, cortando, tentando

seguir aquele conselho de Hemingway a um jovem que queria ser escritor: escreva

como se estivesse mandando um telegrama pago do seu próprio bolso. Isto é, cada

palavra sai cara. E todo mundo entende a linguagem econômica do telegrama, porque

lhe diz respeito. Era isto, síntese. E a história dizer respeito. Acho que a gente lucra ao

ler biografias. Era bom o velho!

Assim, é de mim e do que me rodeia que esses seres vêm. Nenhum extraterreno,

todos reais, carne e osso. Se é que personagens podem ser carne e osso. Mas essa é outra

história.

Page 65: A Personagem

João Antônio

“Eles vivem, tenha a certeza.”

Fácil compreender que o meu tipo de trabalho parte de uma realidade; é da vida que

sugo meus personagens. Mas, para ser honesto, cada um deles merece uma longa

conversa sobre o processo específico de sua criação. Embora dependendo muito do que

a vida me dá em termos de gentes, muita vez tenho trabalhado sobre o mais que me dá

um clima, um tom, uma cor, um corpo de mulher ou uma lua enfurecida no céu. Um

cachorro, iima criança, o vôo certeiro, incomum e elegantíssimo das gaivotas sobre o

mar, um poema de Dylan Thomas ou um texto de Mário de Andrade, um samba de

Nélson Cavaquinho ou de Geraldo Pereira, a lembrança de um cheiro e um calor lá na

infância, a visão de um Profeta do Aleijadinho — creio que todo esse mundo-espetáculo

tem a ver com a motivação dos meus personagens.

79

Eles vivem, tenha a certeza. Vivem na vida e, depois, vivem no meu papel. Mas

falar no processo de criação de cada um deles é material de longa conversa. Claro que,

se eu não os amasse, não teriam o que têm em termos de vida.

José J. Veiga

“Não tenho a máquina de Agatha Christie.”

Quando começo a escrever uma história, o andamento já está pensado e anotado em

uma espécie de roteiro, uma folha ou duas de papel, raramente mais. São simples linhas

numeradas, às vezes menos de uma linha. Seguindo as indicações dessas linhas, vou

envolvendo e armando a história. Mas nesse desenvolvimento outras idéias podem

surgir e alterar o curso inicialmente imaginado. A certa altura desse trabalho, a parte já

escrita começa a “viver” por conta própria e a fazer suas próprias exigências, que me

obrigam a me afastar do roteiro, seja em parte, seja no todo.

Terminada a primeira versão, escrita sem maior preocupação com linguagem, eu a

deixo “dormir” por alguns dias e vou tratar de outra coisa. Depois a retomo, comparo-a

com o roteiro inicial, para ver se os seguidos se justificam; se achar que não, restabeleço

Page 66: A Personagem

as partes abandonadas, depois passo tudo a limpo, reescrevendo sempre, e chego a uma

segunda versão. Afasto-me novamente por mais alguns dias, depois releio e reescrevo,

agora me preocupando mais com a linguagem e catando do texto tudo o que entrou no

primeiro lançamento. Faço tantas versões quanto achar necessário, cada uma saindo

menor que a anterior, porque da segunda em diante trabalho mais cortando que

acrescentando; parágrafos inteiros desaparecem, dois ou três parágrafos são

condensados em um ou em uma frase. Quando me dou por satisfeito, nem sei mais

80

se foi porque venci o desafio ou porque o cansaço me venceu. Às vezes me desespero,

rasgo tudo e me sinto perdido no mato sem cachorro. Mas começo de novo.

Os personagens, converso com eles desde quando estou pensando na história, antes de

começar a escrever. Fico conhecendo o máximo possível de cada um, isso mais para

minha orientação, para não atribuir a um comportamentos e falas que não seriam

próprios dele. Os nomes dos personagens são sempre um problema, porque: 1) não

gosto de dar-lhes nomes muito comuns, que não ajudam a caracterizá-los; 2) não posso

dar-lhes nomes esquisitos, que prejudicariam a credibilidade. Vou testando nomes que

invento ou que modifico, até chegar ao nome que “agarre” em cada um. Não gosto de

nomes-símbolos, nomes-cifras, que propõem charadas ao leitor. Exemplo: Riobaldo.

Quando a mensagem contida no nome é imediatamente percebida, ótimo. É o caso de

Akaky Akakyevich, de Gogol (“O capote”), o alfaiate, homem muito tímido e

evidentemente também gago.

Dizem que de tanto ver Agatha Christie escrever, o marido dela ficou convencido de

que escrever é muito fácil. E contou como ela fazia: punha uma pilha de papel em

branco do lado esquerdo da máquina; pegava uma folha, metia na máquina, ia

enchendo; quando acabava essa folha, tirava da máquina e punha do lado direito;

pegava outra folha da esquerda, enchia, passava para a direita; pegava outra, enchia etc.

Quando toda a pilha da esquerda tinha passado para a direita, estava pronto o livro.

Que máquina prodigiosa ela devia ter!

Lya Luft

Page 67: A Personagem

“Pedacinhos de gente, de humanidade. .

Acredito no que se chama “inconsciente coletivo”, e dele vem boa parte da matéria de

minhas personagens.

81

Muito delas me foi dado por vivência pessoal: coisas que vi, ouvi, li, sonhei, percebi de

passagem na rua, no supermercado. Coisas que imaginei vagamente.

Tudo isso se deposita no fundo de nossa mente como uma espécie de sedimento

de fundo de rio. No tempo em que nos dispomos a escrever, na asa do que se chama

“inspiração”, e que nunca brota por acaso, do nada, presente do céu, acontece que por

alguma razão remexe-se nessa lama, nessa areia do fundo. Emergem, então, inteiras ou

fragmentadas, em geral bem fragmentadas, essas lembranças de experiências, minhas ou

alheias: nariz de um, orelha de outro, sofrimento de um terceiro, alegria de um quarto.

Tudo em caquinhos, pedacinhos. O ficcionista vai então formando um painel de

mosaico, com esses pedacinhos de gente, de humanidade.

Há, porém, um outro componente, que independe de mim, que não foi fornecido

por mim diretamente; nesse momento é que o escritor pode ser “visionário”, espelho de

seu tempo, voz de seu povo; quando nele falam as angústias e esperanças de uma

humanidade muito maior do que a pequena e em geral desinteressante pessoa do

escritor:

é o inconsciente coletivo, emergindo.

Lygia Fagundes Telles

“O escritor tem que atuar como um vampiro.”

Eu tenho repetido isto: acho que o leitor gosta e aceita um livro na medida em que se

transporta, em que se encontra no livro. Como eu também me identifico, me apaixono

muito pelos meus personagens, acredito que isso ajude a minha aproximação com o

público. De qualquer forma, os personagens me satisfazem mais do que as pessoas,

porque têm vida, vícios e virtudes e, no entanto, permanecem tão intactos que não

admitem interferências.

82

Page 68: A Personagem

À medida que os personagens nascem dentro da gente, é preciso escrever rápido. Porque

nós vamos nos modificando, até mesmo sob a influência deles. Temos que aproveitar

o momento, enquanto está quente. O escritor tem que atuar como um vampiro — antes

que amanheça. E na verdade, o autor também é vampirizado pelos seus personagens que

se alimentam do seu sangue no mistério da criação. Quando termino um livro, estou

esvaída. Os personagens e eu então descansamos. Até a próxima aventura.

Marcos Rey

“Eles não vêm do espaço.”

Eu pertenço ao naipe de escritores que só dispara a máquina de escrever quando

sente que as personagens estão com cara de gente. Apenas batizá-las com um nome

marcante é pouco, muito pouco. Elas precisam respirar, ficar de pé, circular, fazer

sombra. Valorizo ainda mais personagens que histórias porque geralmente já trazem no

bolso a sinopse de sua vida, seu enredo, e até o elenco de figurantes. No meu livro

Memórias de um gigolô, a história nasceu depois da personagem. Tudo se ajusta melhor

num conto ou romance quando isso acontece.

Mas há uma pergunta feita que tentarei responder:

de onde vêm esses seres? Acho que mesmo que escrevesse ficção científica eles não

viriam do espaço. Na verdade nunca inventei nenhum. Sigo-os, seleciono-os, caço-os no

cotidiano, embora os melhores, mais gordos, é preciso pescá-los no oceano profundo da

memória.

Nos caminhos da literatura, não basta que a personagem simplesmente passe como a

rebolativa garota de Ipanema. Conviver com a pessoa que vai virar ficção é

indispensável. Gente não se inventa; a criatividade aí fica por conta do talento do

fotógrafo. Por isso talvez as per

83

sonagens mais convincentes são aquelas que envelheceram em nossa lembrança, que

retiramos do baú da infância.

E o próprio autor como personagem? Bem, esse é um outro assunto. Aí o escritor

costuma usar disfarce ou uma maquilagem especial para que passe como criação o que

Page 69: A Personagem

às vezes é confissão.

Não é fácil moldar personagens com sangue nas veias. Há romancistas de obra

numerosa que nunca lograram nenhum. Os que não têm essa habilidade servem-se do

museu de cera de outros autores, seqüestrando tipos já usados. Outros usam

repetidamente a mesma personagem como se escrevessem num palácio de espelhos. E

tantos e tantos fogem dessa tarefa partindo para os malabarismos de linguagem e estilo,

recurso que costuma impressionar a crítica e dá ares de genialidade.

Marilene Felinto

“De onde vêm esses seres?”

Qualquer pergunta sobre o escrever me flagra como já vi certas crianças serem

flagradas num canto da sala, entretidas numa fantasia com a almofada, as mãos

funcionando em não se sabe que gestos, os lábios murmurando baixinho um diálogo ou

um discurso qualquer. Enternecido, você se aproxima e pergunta a ela do que falava.

Ela sorri, subitamente interrompida, meio envergonhada, levemente irritada, e responde

que “de nada” ou “com ninguém”.

O delicado mundo que se fiava silencioso ali no canto da sala evapora ligeiro pra esse

lugar do nada e de ninguém. E o constrangimento risonho que fica em você e na criança

decorre dessa impossibilidade de revelação. O momento dessa pergunta, para a criança,

é uma exigência de realidade. Sua presença, organizada em passos de sapato que ela

nem sequer ouviu, invade de realidade irritante o

84

canto da sala — recanto sagrado onde o mundo se constrói a partir da falta

(nada/ninguém), nunca pela presença.

Um personagem começa a existir a partir do que não sou e preciso, com urgência, ser; a

partir do que sou e não sei ou não encaro ser; a partir da nuvem nublada de mim mesma,

nuvem que vou cortando e recortando em infinitas caras de mim, até que eu adormeça,

até que tenha contado todos os carneirinhos (que também são flocos de nuvem), até que

o sol brilhe por instantes no dia seguinte e depois tudo recomece a se formar no céu

nublado que tornarei a montar e desmontar em caras e bichos de mim mesma.

Page 70: A Personagem

E um personagem é tudo o que, em você, eu amo porque não posso ser; tudo o que, de

você, eu gostaria de ter, tudo o que, em você, eu odeio porque não posso ser, ou porque

sou e você me faz ver. É você, enfim, apresentável. Sou eu, enfim, apresentável. Você e

eu resgatados no modelo do que deveria ser. Um personagem é um filho nascendo (de

um sonho egoísta?) no canto da sala. Ou, então, é apenas um ponto na almofada que, de

mentirinha, foi virando lua, foi virando jambo, foi virando ganso, foi virando Beto, foi

virando Vera — e virou verdade.

Moacyr J. Scliar

“Os personagens vêm da imaginação do escritor.”

De muitos lugares, isto é certo. Da infância. Do dia-a- -dia. De um encontro casual na

rua. De uma foto ou notícia de jornal. Das páginas da História. De um sonho ou de um

pesadelo. De uma associação de idéias. De um desejo de se auto-retratar (Flaubert:

“Madame Bovary sou eu”).

Mas isso se refere à origem mais remota. Em última análise, os personagens de ficção

vêm da imaginação do escritor. Não é a capacidade de bem retratar que faz um escritor

de ficção, mas sim a capacidade de imaginar per

85

sonagens e de criar situações. Personagens e situações é que servem de suporte para

tudo o mais, inclusive para as idéias que o escritor eventualmente vincula e que, não

fossem os personagens e as situações, transformariam sua obra em ensaio ou

reportagem. A atração pelo personagem é que faz o escritor. Uma atração que, afinal,

todos temos. Todos queremos ser personagens. Eu mesmo o quero. Quem escreveu esse

depoimento foi um personagem chamado o escritor Moacyr Scliar, que não existe na

vida real e que só desperta de sua letargia em momentos especiais, como este, de jogar

com palavras para se apresentar, enfim, como personagem.

Renato Pompeu

“Eles parecem sair da máquina de escrever.”

Creio que cada escritor tem um modo diferente dos outros autores de criar personagens.

No meu caso, é preciso lembrar que meus romances são muito mais à base de reflexão

Page 71: A Personagem

do que de fabulação, o enredo em geral é muito tênue e os personagens não parecem

gente de carne e osso, são, isto sim, entes tendentes ao abstrato, que raciocinam.

São assim vozes da consciência e, dentro da consciência, da consciência mais racional.

Assim, o que move mesmo os personagens dos romancistas de fabulação, as paixões

humanas, quase não aparecem em meus livros.

Embora inspirados em pessoas que conheci pessoal- mente em diferentes circunstâncias

da vida, ou em mim mesmo, meus personagens não são essas pessoas que conheci.

Antes, são o que imagino que, no limite, essas pessoas deveriam pensar de si mesmas,

se as pessoas realmente fossem lógicas. Daí a estranheza que meus personagens causam

a certos leitores, pois estes não se reconhecem naqueles, dado que a maioria das pessoas

não age segundo

86

uma lógica imanente, segundo um raciocínio, mas levadas por paixões.

Meus personagens, assim, não passam de abstrações, de vozes da consciência. Essa

consciência, sem dúvida, é a minha. É verdade que isso se dá mesmo com os escritores

de fabulação exuberante. Lembramos a frase de Gustave Flaubert: “Mme Bovary sou

eu”. Mas vejo que não respondi à pergunta sobre como crio meus personagens. É

porque não tenho a menor idéia sobre como os crio. Não é deliberado nem consciente.

Inspirados em mim mesmo ou em outras pessoas, eles parecem sair da máquina de

escrever.

Page 72: A Personagem

6

Vocabulário crítico

Adjuvante ou Coadjuvante: personagem secundária que estál ao lado do protagonista ou

do antagonista e que, como eles, pode estar individualizada ou não, O adjuvante pode

também ser figurado por meio de um elemento não humano: uma máquina, uma fada,

um animal.

Antagonista: é o opositor, o protagonista às avessas. Muitas vezes, o antagonista é uma

só personagem. Outras, pode ser manifestado por um grupo de personagens,

individualizadas ou representantes de um certo grupo.

Árbitro, Juiz: personagem que funciona como um elemento decisivo dentro de um

conflito, fazendo a balança pender para o lado do protagonista ou do antagonista.

Ator e Actante: sob a perspectiva funcionalista, esses dois termos substituem e recobrem

a personagem, elemento estrutural que participa das etapas narrativas, construindo a

fábula, guiando a matéria narrativa em torno de um esquema dinâmico, concentrando

em si um feixe de signos em oposição ao feixe de signos de outras personagens.

Caricatura: personagem plana marcada por uma qualidade ou por uma idéia que, levada

ao extremo, funciona como

88

uma distorção proposital a serviço da sátira, da crítica ou do cômico.

Page 73: A Personagem

Componentes dramáticos: essa expressão é utilizada por alguns críticos para

caracterizar as personagens-clichês, de nenhuma ou quase nenhuma complexidade, que

participam de uma cena como elemento de explicação, ligação ou conclusão.

Destinatário: personagem beneficiária de uma determinada ação. Aquela que

eventualmente obtém um objeto desejado.

Destinador: personagem que detém um objeto (poder, saber, por exemplo) e que o

passa a um destinatário.

Força temática: esta expressão aparece nos estudos empreendidos por É. Souriau em

sua obra 200 000 situations dramatiques. Esse autor distingue as personagens dos

papéis, que ele denomina funções dramáticas, e entrevê a possibilidade de uma divisão

irregular em duas classes. A força temática é um dos papéis: é o representante do bem

desejado. Os outros seriam: o obtentor virtual desse bem, aquele para o qual trabalha a

força temática orientada; o oponente; o árbitro, atribuidor do bem; o auxiliar,

redobramento de uma das forças precedentes.

Funções: descrevendo os contos maravilhosos segundo suas partes constitutivas e as

relações entre essas partes e o conjunto, Propp encontra valores variáveis e valores

constantes. Os nomes e os atributos das personagens são os elemèntos que mudam. O

que permanece invariável são as ações, ou seja, as funções das personagens. Portanto,

segundo Propp, as funções são as partes constitutivas fundamentais do conto.

Herói: protagonista de uma narrativa. Personagem que recebe a tinta emocional mais

viva e mais marcada numa

89

narrativa. Suporte para um certo número de qualificações e funções que o distinguem

como a personagem principal de uma determinada narrativa.

Oponente: força antagonista, obstáculo que tenta impedir a força temática de se deslocar

possibilitando o conflito.

Objeto do desejo: força de atração, representação do valor, fim visado, objeto da

carência.

Page 74: A Personagem

Personagem plana: personagem construída em torno de uma só idéia ou qualidade. Em

geral, são definidas em poucas palavras.

Personagem redonda: personagem que apresenta várias qualidades ou tendências e, por

essa razão, é multiforme, complexa, eliminando qualquer possibilidade de

simplificação.

Protagonista: personagem principal; aquela que ganha o primeiro plano na narrativa.

Símbolo: personagem complexa, cuja natureza multiforme parece ultrapassar a fronteira

que separa o humano do mítico, o natural do transcendental.

Tipo: personagem plana construída em torno de uma qualidade ou idéia, cuja

peculiaridade alcança seu auge sem causar deformação.

Page 75: A Personagem

7

Bibliografia comentada

BASH, Françoise. Les femmes victoriennes. Paris, Payot, 1979.

Na trilha das relações entre o romance e a sociedade, a autora analisa a condição das

mulheres na Inglaterra vitoriana e as personagens que povoam os romances de Dickens,

de Thackeray, das irmãs Brontë, de Elizabeth Gaskell, de George Elliot, demonstrando

que as mulheres, na realidade e na ficção, são vistas no contexto de uma ideologia

dominante que lhes impõe papéis inflexíveis. Vale a pena conferir.

BOURNEUF, R. & OULLET, R. L’univers du roman. Paris, Presses Un. de France,

1972.

No capítulo 5, intitulado “Les personnages”, o leitor vai encontrar uma abordagem

informativa e crítica a respeito dos vários aspectos que envolvem a questão da

personagem, estudada aqui sob a perspectiva de sua existência e estruturação no

romance.

CANDIDO, Antonio; ROSENFELD, A.; PRAIO, Décio de A.; GOMES, Paulo E. S. A

personagem de ficção. São Paulo, Perspectiva, 1968.

91

Este é, sem dúvida, um livro fundamental para quem se propõe a estudar a personagem,

pois reúne quatro ensaios de especialistas em diferentes áreas: Teoria da Literatura,

Filosofia, Teatro e Cinema, permitindo que o leitor acompanhe uma discussão que vai

desde o conceito de literatura até as particularidades dos seres fictícios no romance, no

teatro e no cinema.

CAMPOS, Haroldo de. Morfologia do Macunaíma. São Pau- --„-- lo, Perspectiva, 1973.

Nesse rigoroso trabalho, o autor utiliza-se dos estudos de Propp para realizar uma leitura

Page 76: A Personagem

cuidadosa de Macunaíma, demonstrando que “longe de ser uma obra caótica e

malograda, presidida por um associativismo subjetivista tão ao gosto do primeiro

„psicologismo‟ de seu autor, é uma obra meticulosamente estruturada de acordo com os

princípios de coerência sui generis, diretamente hauridos na lógica fabular, explicáveis

à luz da tipologia funcional proppiana (. . . )“. Esse livro deve ser incluído na

bibliografia mínima dos que se interessam por personagens e pela prosa brasileira

moderna.

GORMEAU, NeIly. Physiologie du roman. Paris, A. G. Nizet, 1966.

Nessa importante obra, a autora dedica o capítulo 3, intitulado “Les élements primaires

du roman: l‟intrigue et les personnages”, à relação existente entre “história” e

personagem. Apesar do discurso entusiasmado e às vezes muito emotivo, o leitor vai

encontrar desde uma definição de romance, relativizando a antiga e superada distinção

entre forma e conteúdo, até a definição de “história” — complexo de acontecimentos ou

de paixões ) desenvolvidas no tempo e que coloca em cena perso- ,! nagens imaginários,

mas que parecem de carne e osso —, passando pelos conceitos de plot e complot (trama

bem urdida que dá ares de verossimilhança e legitimidade à narrativa) e pelas maneiras

de realização do

92

núcleo dramático. Esse capítulo é bastante importante para a reflexão sobre as relações

que se estabelecem entre a personagem e os demais elementos que compõem um

romance.

DANZINGER, Mariles K. & J0HNSON, W. Stacy. Introdução ao estudo crítico da

literatura. São Paulo, Cultrix/ /Edusp, 1974.

Este livro pode servir como introdução geral ao estudo da personagem. £ um

comentário rápido, superficial e sem muitas novidades, que procura discutir os cuidados

que o crítico deve ter ao utilizar a palavra personagem apresentando as formas de

caracterização desse componente da narrativa. O leitor deve estar atento para a 1in

guagem pouco criteriosa utilizada pelos autores, apesar do livro se propor um estudo

crítico, especializado, da literatura.

Page 77: A Personagem

EIKENBAUM et alii. Teoria da literatura: formalistas russos. Porto Alegre, Globo,

1971.

Nessa edição, que conta com um prefácio esclarecedor de Bons Schnaiderman e

apresentação e posfácio de Dionísio de Oliveira Toledo, o leitor dispõe de dezesseis

importantes estudos ligados à problemática do formalismo, ao poema e à narração,

podendo avaliar as teses e as contribuições dos formalistas.

FORSTER, E. M. Aspectos do romance. Porto Alegre, Globo,

1969.

Obra marcante no que diz respeito ao estudo da personagem e do romance. Partindo do

princípio de que a personagem é uma entre as outras partes do romance e, como tal,

sofre as transformações próprias do .gênero, o autor apresenta a famosa classificação:

personagens flat e personagens round.

FREYRE, Gilberto. Heróis e vilões no romance brasileiro. São Paulo, Cultrix/Edusp,

1979.

93

Reunião de vários ensaios, esse livro apóia-se basicamente em resultados de uma

pesquisa realizada no Recife, nos anos de 1969 a 1970, por estudantes de Antropologia

da Universidade Federal de Pernambuco e por assistentes de pesquisa do Instituto

Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais. O projeto e a redação dos resultados, assim

como a orientação, são de Gilberto Freyre, que teve por objetivo estabelecer as relações

entre a interpretação literária ou humanística do comportamento humano e a

interpretação cientificamente antropológica, psicológica, ecológica e sociológica desse

comportamento.

GOLDMANN, Lucien. A sociologia do romance. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967.

Ao analisar o romance, o autor aponta a homologia entre sua estrutura e a da sociedade,

utilizando para isso os métodos da Sociologia Estruturalista Genética. Aproveita de

Lukács a colocação em paralelo de valores “degradados” e coloca em relação dialética o

herói e o universo afrontado.

LuKÁcs, Gyirgy. Teoria do romance. Lisboa, Presença,

Page 78: A Personagem

s.d.

Nessa obra, Lukács aprofunda os estudos sobre a natureza, a gênese e os caminhos do

romance, relacionando esse gênero com a concepção de mundo burguês. A discussão

acerca do herói aparece como um ponto relevante para o estudo da personagem.

Muni, Edwin. A estrutura do romance. Porto Alegre, Globo s.d.

O autor se propõe estudar os princípios estruturais do romance, procurando demonstrar

a relevância do enredo e tentando definir a apreensão pelo leitor das categorias espaço-

temporais. Explica as personagens como sendo prcdutos de determinado enredo e de

determinada estrutura romanesca.

94

Piopp, Wladimir. Morphologie du conte. Paris, Seuil, 1970.

Nesta tradução francesa da obra Morfologia skazki, seguida de Les transformations des

contes merveilleux e L’étude structurale et du typologie du conte, o leitor vai encontrar

a metodologia utilizada pelo autor para estudar as transformações do conto e,

conseqüentemente, as personagens. Ë um livro fundamental dados os seus aspectos

inovadores e a sua repercussão.

RAIMOND, Michel. Le roman depuià la révolution. Paris, Armand Colin, 1968.

Composta de duas partes — “Histoire du roman depuis la révolution” e “Anthologie

théorique e critique” —, essa obra reúne 44 textos de escritores que se pronunciaram

sobre o romance (entre eles, Madame de Staël, Proust, Zola, Valery, Dujárdin, Ltikács,

Goldmann), que, facilitando a consulta bibliográfica e o acesso a esses importantes

estudos, possibilitam ao leitor visualizar o caminho do romance moderno e da

personagem de ficção.

SCHOLES, Robert & KELLOG, Robert. A natureza da narrativa. São Paulo, McGraw-

Hill, 1977.

O capítulo 5 dessa obra, intitulado “O personagem na narrativa”, começa com uma

citação tirada de The art of fiction, de autoria do escritor Henry James. Nesse trecho, o

escritor faz algumas perguntas e algumas afirmações a respeito da relação existente

entre personagem e incidente. Com base nessa citação, os autores comentam a postura

de Henry James a respeito da possibilidade de distinção entre incidente e personagem e

Page 79: A Personagem

vão cercando o problema através do poder de caracterização de grandes escritores:

Homero, Joyce, Milton, Jane Austen, Virgílio, Virgínia Woolf, Proust, Dostoiévski e

outros.

95

SEGOLIN, Fernando. Personagem e antipersonagem. São Paulo, Cortez & Moraes,

1978.

Partindo da concepção aristotélica de personagem e chegando até os formalistas russos,

o autor apóia-se no conceito de função narrativa de Propp, trabalhando a personagem-

função, sua evolução em personagem-estado e chegando à caracterização do próprio

texto como personagem e daí a antipersonagem da narrativa moderna. É um estudo

curioso e muito lem feito, pois apresenta uma tipologia da personagem-narrativa

baseada nas suas características de ser da linguagem.

SILVA, Vitor Manuel de A guiar e. Teoria da literatura. São Paulo, Martins Fontes,

1976.

As reflexões a respeito 1a personagem encontram-se no capítulo 5, “O romance”,

compreendido entre as páginas 249 e 348. De maneira bastante didática, Vitor Manuel

parte de uma observação de Roland Barthes (contida em BARTHES, R. Introduction à

l‟analyse structurale des récits. Communications, 8, :16, 1966; e —. S/Z, Paris, Seuil,

1970. p. 197), segundo a qual “sem personagem, ou pelo menos sem agente, não existe

verdadeiramente narrativa, pois a função e o significado das ações ocorrentes numa

sintagmática narrativa dependem primordialmente da atribuição ou referência dessas

ações a uma personagem ou a um agente”. Em seguida, discute de maneira rápida, mas

bastante produtiva, uma postura teórica assumida contemporaneamente com relação à

designação e ao conceito de personagem.

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