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INTRODUÇÃO (Ou por que olhar a onça?) I Por que olhar os animais? Essa pergunta é o título de um ensaio seminal de John Berger, escrito em1977, sobre as relações entre humanos e animais (Berger 2009). É também uma pergunta que tem me acompanhado nos últimos anos, desde que tomei os animais como temas de meus projetos de pesquisa. Este livro, até certo ponto, é uma tentativa de respondê-la, ou talvez, mais ainda, de explorar seu potencial como questão. O que sempre me atraiu em relação aos animais é o fato de eles de alguma forma escaparem ao domínio humano; essa dimensão, que poderíamos chamar de ‘selvagem’, é o que torna o tema realmente interessante do meu ponto de vista. No ensaio que mencionei acima, Berger afirma que os animais guardam segredos para nós, humanos (2009: 11). Considero essa uma bela imagem. Os segredos que os animais guardam se referem, penso eu, a um outro lado, àquilo que de alguma forma está fora da esfera conhecida, fora daquilo que podemos explicar racionalmente, além da linguagem humana. Considerar esse “outro lado”, ou “fora”, como sendo expressões da natureza, entendida como uma esfera externa ao mundo humano, no entanto, me parece já um passo na 1

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Felipe Sussekind

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Page 1: Rastro da onça_introdução 5

INTRODUÇÃO

(Ou por que olhar a onça?)

I

Por que olhar os animais? Essa pergunta é o título de um ensaio seminal de John

Berger, escrito em1977, sobre as relações entre humanos e animais (Berger 2009). É

também uma pergunta que tem me acompanhado nos últimos anos, desde que tomei os

animais como temas de meus projetos de pesquisa. Este livro, até certo ponto, é uma

tentativa de respondê-la, ou talvez, mais ainda, de explorar seu potencial como questão.

O que sempre me atraiu em relação aos animais é o fato de eles de alguma forma

escaparem ao domínio humano; essa dimensão, que poderíamos chamar de ‘selvagem’,

é o que torna o tema realmente interessante do meu ponto de vista.

No ensaio que mencionei acima, Berger afirma que os animais guardam segredos

para nós, humanos (2009: 11). Considero essa uma bela imagem. Os segredos que os

animais guardam se referem, penso eu, a um outro lado, àquilo que de alguma forma

está fora da esfera conhecida, fora daquilo que podemos explicar racionalmente, além

da linguagem humana. Considerar esse “outro lado”, ou “fora”, como sendo expressões

da natureza, entendida como uma esfera externa ao mundo humano, no entanto, me

parece já um passo na direção do controle, da domesticação, na direção de aniquilar

aquilo que os animais mantém em segredo. Mas vou tentar explicar isso melhor.

Nasci e cresci na cidade do Rio de Janeiro, e minha curiosidade pelos animais

selvagens deriva em grande parte daquilo que li em livros, enciclopédias, ou que

aprendi em filmes e programas de televisão. Mas, para quem se interessa pelos animais,

evidentemente isso não é o bastante. É preciso encontra-los, experimentar diretamente o

contato com eles. Como quase toda criança carioca, fui levado ao zoológico da Quinta

da Boa Vista para ver os bichos, e lá experimentei o desapontamento de ver que eles

nunca eram aquilo que eu esperava.

É exatamente esse desapontamento (as crianças o experimentam diante de cada

jaula) que Berger considera a questão mais interessante a ser formulada a respeito dos

zoológicos. De acordo com ele, o zoológico não pode senão desapontar, justamente

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porque a experiência que ele oferece envolve um dispositivo que nos coloca na posição

de sujeitos olhando para animais reduzidos à condição de objetos. O que o autor

percebe, e essa me parece uma percepção fundamental, é que nunca encontramos ali o

olhar de um animal. “O animal é sempre o observado” – diz ele – “O fato de que eles

podem nos observar perdeu todo o significado” (Berger 2009: 15). Nós, visitantes do

zoológico, assim como os animais que observamos, estamos confinados em ambientes

absolutamente distintos, de modo que aquilo que vemos é algo que se tornou

absolutamente marginal, algo que não conseguimos trazer para nossa atenção, como

uma imagem fora de foco. Da mesma forma, o animal olha para nós como espectros que

atravessam seu campo de visão, mas que não fazem parte de seu ambiente. É por isso

que o zoológico representa, para Berger, uma espécie de marginalização definitiva, um

monumento ao desaparecimento dos animais da vida ocidental moderna1.

A pergunta a ser feita a partir dessa impossibilidade de encontro pode conter, então,

não mais um porque, mas um como. Como olhar os animais? Como resgatar a

experiência do animal, a reciprocidade do olhar? Este é um modo de formular as

questões que me levaram a desenvolver projetos envolvendo animais nos últimos dez ou

doze anos.

Primeiro, fiz um ensaio fotográfico sobre a fauna selvagem no espaço urbano:

pássaros, macacos, quatis, animais que habitam a floresta dentro da cidade onde vivo.

Se a fotografia de natureza tem como característica, geralmente, o ideal de mostrar a

vida animal purificada dos elementos humanos – os bichos em seu habitat natural –, o

tema dos animais urbanos me parecia evocar uma camada interessante de significados

que não obedecia nem à lógica da natureza domesticada na cidade, nem ao ideal de uma

natureza intocada pelo homem. O projeto com a fauna urbana se desdobrou

posteriormente em um pequeno filme sobre o aparecimento de uma capivara na área

1 O tema do desaparecimento da vida animal remete ao processo de extinção das espécies, tema que se articula a uma série de outros aspectos da gravíssima crise ambiental que vivemos atualmente, e que ameaça não só as espécies animais mas também o próprio modo de vida humano. O que estamos experimentando tem sido chamado por muitos autores de “Sexta Extinção”, e remete a outros cinco processos de extinção em massa de espécies de seres vivos ocorridos no passado remoto do planeta Terra. A ‘perda de biodiversidade’ é também o termo técnico que designa um dos nove processos de degeneração ambiental do tempo presente. Entre os outros estão o aquecimento global, a acidificação dos oceanos e o derretimento das calotas polares. A reflexão sobre a extinção das espécies, pensada em termos gerais, possui esse papel evidente em relação à ecologia política. O tema possui desdobramentos ainda mais interessantes, no entanto, quando pensado em função de ideias como os mundos próprios de Von Uexkull, ou a teoria do perspectivismo ameríndio desenvolvida por Eduardo Viveiros de Castro por exemplo. Pretendo retomá-lo mais diretamente em outros trabalhos no futuro.

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Page 3: Rastro da onça_introdução 5

completamente urbanizada da Lagoa Rodrigo de Freitas, na zona sul do Rio de Janeiro2.

O acontecimento e as narrativas que ele motivava sobrepunham conhecimentos

populares e científicos, relações ecológicas e antropológicas.

Foram essas duas experiências abordando relações entre humanos e animais que me

levaram em seguida (no ano de 2005) a desenvolver um projeto acadêmico com essa

temática – que acabaria resultando neste livro. O projeto foi motivado, em grande parte,

pela leitura dos trabalhos de Eduardo Viveiros de Castro sobre o tema do

perspectivismo ameríndio, e isso me motivou, na época, a procura-lo para que me

orientasse no curso de doutorado no Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de

Janeiro. A opção mesma pela onça-pintada como tema de pesquisa foi influenciada por

essa escolha, na medida em que se trata de um animal que tem um papel central nas

cosmologias dos povos indígenas sul-americanos.

O tema final do projeto – a onça pantaneira – é a rigor meio inusitado para a

antropologia social, e em geral precisa de alguma explicação. As disciplinas que

tradicionalmente estudam a vida animal são a biologia, ou a ecologia; antropologia por

definição estuda o humano. Como, então, fazer uma antropologia de um animal? Uma

abordagem do tema pela via da ecologia a princípio se voltaria para o comportamento,

os fatos, a realidade da natureza e o modo como ela pode ser investigada e descrita

pelos métodos científicos; uma abordagem antropológica clássica, por outro lado, teria

como foco as representações da onça e da vida animal – os discursos, valores, a

realidade da cultura.

A proposta deste trabalho, dado esse impasse, foi buscar uma ferramenta conceitual

e descritiva que permitisse escapar dessa alternativa, baseada na separação

essencialmente moderna que funda nossas disciplinas acadêmicas, a partir da qual

precisamos escolher natureza ou cultura. Entendo que esta opção produz uma espécie

de duplo vínculo (“double bind”), nos termos de Gregory Bateson, uma escolha na qual

sempre saímos perdendo, da qual ficamos inadvertidamente reféns quando ingressamos

na Universidade. Como então escapar dessa dicotomia e falar ao mesmo tempo das duas

coisas?

No caso da minha pesquisa de doutorado, essa questão se desdobrou em outras:

como estabelecer conexões entre o comportamento das onças, as práticas de campo

científicas, e as experiências dos moradores de fazendas do Pantanal? Como conectar os 2 O curta-metragem Capivara!, dirigido em parceria com Felipe Nepomuceno e com trilha sonora de Jano Nascimento, foi realizado em 2004.

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fatos e os valores, o comportamento empírico dos animais e o modo como ele é

experimentado e vivido pelas pessoas? Essas foram algumas das perguntas que surgiram

ao longo trabalho.

]]]Assim como a maioria dos habitantes da cidade do Rio de Janeiro, entretanto, eu

não tinha tido nenhum contato com uma onça até então, a não ser, como mencionei, no

zoológico, ou então por meio de imagens como aquela que se vê estampada na nota de

cinquenta reais. A onça está presente em muitos lugares diferentes na cultura brasileira.

Sua presença se manifesta, por exemplo, em expressões populares como “ficar uma

onça”, “bafo da onça”, “amigo da onça”, ou a “hora de a onça beber água”, que fazem

parte das tradições orais brasileiras. As duas últimas expressões me parecem

particularmente interessantes por estarem relacionadas à caça. No primeiro caso, o

termo “amigo da onça” se origina de uma história exagerada contada por um narrador

(numa piada que tem várias versões) que pergunta a seu interlocutor incrédulo: “você é

meu amigo ou é amigo da onça?”. O “amigo da onça” tem o sentido de um falso amigo,

um amigo “traíra”. Tornou-se ainda o nome de um personagem do cartunista Péricles de

Andrade Maranhão, que fez sucesso nos anos 1940, em charges de O Cruzeiro, a

popular revista semanal ilustrada publicada no Rio de Janeiro de 1928 até 1975.

A expressão “hora de a onça beber água”, por sua vez, relaciona-se ao instante

crucial, à hora em que, como diz outra expressão popular, “o bicho pega”. É o momento

em que a onça sai de sua posição de caçadora à espreita e se revela. O que tanto diz

respeito a essa hora especialmente perigosa, tendo o animal como agente, quanto ao

momento em que o caçador humano é capaz de surpreendê-la. Essas camadas

discursivas presentes na fala urbana teriam, portanto, relação com o ambiente rural

brasileiro e com esse universo da caça, que é um tema importante dentro deste trabalho.

Na época em que comecei a cursar a pós-graduação, eu já tinha conhecimento de

projetos de pesquisa desenvolvidos por biólogos que estudavam as onças-pintadas em

fazendas do Pantanal. A ideia de acompanhar um projeto desse tipo me parecia

interessante por envolver o conhecimento científico em produção e em algum tipo de

interseção com o conhecimento tradicional pantaneiro. O Pantanal é um lugar habitado

secularmente por gente e vacas, onde a onça sempre foi vista como um problema – ou

até uma praga a ser combatida – por se alimentar do gado, ou seja, por se alimentar da

mesma comida que nós, humanos. Essas sobreposições entre o científico e o tradicional,

o doméstico e o selvagem, me pareceram propícias para um estudo antropológico, e foi

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Page 5: Rastro da onça_introdução 5

esse um fator determinante no projeto.

Hoje percebo que o movimento em direção à onça teve também uma série de outras

influências. Uma delas certamente foi a leitura (há muitos anos, bem antes de ele se

tornar efetivamente um projeto de pesquisa) do conto de Guimarães Rosa Meu tio, o

Iarauetê. O que me impressionou mais no conto foi o modo como o animal emerge da

linguagem em uma dimensão própria, um mundo próprio, e também o modo como ele

irrompe como uma força capaz de colocar em questão a condição humana, ou a

centralidade do humano. A onça, neste caso, não é apenas objeto de uma descrição

incrivelmente vívida, mas, mais do que isso, é o centro de uma experiência de

transformação, uma transformação que se dá por meio da linguagem. Quando mistura

gente e onça, Guimarães Rosa produz uma hibridização capaz de colocar em cheque as

concepções literárias orientadas por uma visão homogeneizadora do personagem e do

narrador.

Esse foi possivelmente o primeiro impulso para os temas abordados neste livro, e

um dos objetivos que eu tinha em minha pesquisa de campo no Pantanal, desde o início,

era encontrar algum zagaieiro como aquele do conto. Como reporta Ana Luiza Martins

Costa, a partir de trabalho com o arquivo de Guimarães Rosa, o escritor fez uma viagem

ao Pantanal em 1947, na qual conversou com caçadores de onça, sendo que essas

conversas foram aproveitadas posteriormente na composição da novela “Meu tio o

iarauetê”. 3 Em relação a esse tema, encontrei zagaieiros vivendo apenas nas memórias

de pessoas que conheci no Pantanal, que narraram caçadas de onça das quais

participaram junto com eles. Os zagaieiros eram tios, avôs, sogros, geralmente uma

geração acima dos meus interlocutores, e o fato de não os ter encontrado está ligado a

um processo evidente de desaparecimento dessa técnica de caça rústica diante da

expansão das armas de fogo. As caçadas com a zagaia se extinguiram, e junto com elas

uma certa relação com a onça, brutal certamente, mas também altamente significativa

em termos de modos de devir-animal, na medida em que remete a processos de mistura,

de hibridização.

3 Sobre a viagem de 1947, Martins Costa afirma: “As conversas com diversos “zagaieiros” – os intrépidos caçadores de onça – e o desenho detalhado que Rosa faz de uma azagaia, nomeando cada uma de suas partes, serão aproveitados na novela “Meu tio o Iauaretê”, publicada catorze anos depois, na revista Senhor (Rio de Janeiro, 25.03.1961)”A pesquisadora observa, entretanto, que não se sabe o paradeiro das cadernetas referentes a essas viagens. (Martins Costa 2006: 22-24)

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Page 6: Rastro da onça_introdução 5

A mistura entre humanos e animais presente no conto de Guimarães Rosa dialoga

também com a literatura antropológica sobre os povos indígenas da América do Sul, e

em particular com os temas do xamanismo e da caça (Viveiros de Castro 1996, Lima

1996). No contexto ameríndio, a onça desempenha papéis cruciais tanto em termos

míticos, quanto em termos daquilo que poderíamos chamar, de uma perspectiva externa

e imprecisa, de relações sociais, ou ecológicas (imprecisas porque a distinção entre

esses domínios é própria da nossa ontologia, mas não daquela dos índios). O olhar da

onça é um tema recorrente na etnologia indígena, em ontologias nas quais a troca de

olhares e de perspectivas entre humanos e animais é uma espécie de “fato social total”,

para usar a expressão canônica de Marcel Mauss.

Por outro lado, em um processo que tem origem na revolução industrial e na

filosofia cartesiana, os animais se tornaram, para nós ocidentais, máquinas, objetos ou

então membros da família. Inseridos no mundo moderno e submetidos ao racionalismo

científico, eles não podem ser mais nada além de representações ou modelos para a

origem do ser humano ou do humano enquanto objeto, corpo. Ou então suportes para

vários tipos de metáfora ou imagens simbólicas que compõem o universo da cultura. Em

todo caso, não se apresentam mais como figuras da alteridade, mas sim como espelhos

que refletem a natureza humana.

O que se perde, nesse sentido, me parece ser a própria relação com a alteridade.

Uma característica do mundo ocidental moderno, quando institui uma temporalidade

fundada na ideia de um progresso contínuo, é a conversão do outro, do estrangeiro, em

“primitivo”. Os povos primitivos, na literatura antropológica do final do século XIX,

representam etapas do desenvolvimento da sociedade ocidental, que por sua vez

funciona como modelo universal para a humanidade. Não há mais alteridade, há apenas

uma evolução unilateral e modelos por meio dos quais os modernos investigam seu

próprio passado.

A categoria do “animal” me parece ser de natureza semelhante àquela do

“primitivo”. O animal, como mostrou Derrida, é o singular genérico que designa a

ausência daquilo que se convenciona como sendo a singularidade humana – linguagem,

consciência, racionalidade, etc (Derrida 2002). É um termo que não se refere a animal

nenhum, mas antes ao não-humano em geral, ou ao lado animal do homem. O animal,

no ocidente moderno, deixa de existir como um ser vivendo uma vida paralela,

habitando um mundo diferente, e se converte em outra coisa: objeto, mercadoria,

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instrumento, espetáculo ou metáfora da condição humana. A potência de alteridade

desaparece. E não me parece que estejamos mais próximos dos animais hoje porque

desejamos protegê-los ou poupá-los; ao contrário, estamos ainda mais distantes. Os

animais ameaçadores do passado se tornaram ameaçados. O medo desapareceu porque a

interação desapareceu.

Quando estabeleci minha pesquisa no Pantanal, o que pretendia era buscar uma outra

referência de relação com os animais. Minha ideia era pensar a onça, em particular, não

apenas como objeto para o olhar de um sujeito humano, mas como dotada de um ponto

de vista. Buscar um contraponto para a constituição do animal como objeto, o animal

classificado, domesticado, a partir de um lugar habitado por gente e onças, entre os

quais a questão de ver e ser visto é uma questão crucial. Uma relação com a onça, no

ambiente da onça, envolve necessariamente um jogo de olhares. Ver e não ser visto. A

sensação de que ela pode estar espreitando é uma sensação particular que marca a

paisagem, que confere ao Pantanal uma qualidade própria. Este é um tema que remete à

etnologia indígena e à teoria do perspectivismo desenvolvida por Viveiros de Castro

(1996). Se a onça se deixa ver, é porque ela não está caçando. O problema é justamente

quando você não está vendo a onça no mato, porque ela pode estar vendo você.

Essa temática da reciprocidade do olhar pode dar origem a uma série de questões.

Qual é o mundo possível constituído a partir do ponto de vista da onça? Quais são as

relações que se produzem quando o fato de que a onça é capaz de olhar para o humano é

colocado em questão? Como se constituem as relações quando a onça deixa de ser um

item numa coleção de história natural e passa a habitar um mundo? Qual a relação entre

aquilo que a ciência afirma a respeito de seu objeto, constituído como algo

quantificável, e aquilo que a ciência coloca em prática quando se engaja em um

processo de conhecimento?

Uma questão complementar a essa da visão surge quando imaginamos a diferença

entre a paisagem que um turista fotografa quando visita o Pantanal e a paisagem

percebida por um vaqueiro, ou morador da região. O ambiente dos pantaneiros é

carregado de significados: rastros, vestígios de passagens de animais – trilheiros de

gado, batidas de onça, cheiros, pegadas, sons, relações que ligam as pessoas ao

ambiente que as cerca. Esses aspectos nos permitem pensar a relação entre humanos e

animais não a partir da visão, de uma perspectiva ótica, mas antes a partir do rastro, de

uma perspectiva indicial ou indiciária. Encontrar e seguir rastros, como afirma Deleuze

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Page 8: Rastro da onça_introdução 5

em seu Abecedário, indicam possibilidades de uma relação animal com o animal, que

difere essencialmente de uma relação humana com o animal, como aquela que em geral

se estabelece entre os animais domésticos e seus donos no meio urbano.

É preciso, para se pensar uma relação desse tipo, imaginar o animal como um ser

cuja singularidade rompe com a imagem de uma natureza controlada, domada,

formalizada. De algum modo isso me parece implicar a ideia de fazer com que o

elemento propriamente selvagem da interação humanos-animais se mantenha como tal,

o que significa repensar a própria ideia de domesticação numa ética que escape do

antropocentrismo. De um lado, há uma série de dispositivos que tornam a onça (ou o

gado, cavalos e cães) objetos de conhecimento ou instrumentos para os sujeitos

humanos, mas eles podem ser contrapostos a outros dispositivos capazes de dar conta de

uma experiência daquilo que seria o mundo próprio de cada um desses animais. As

viagens e as experiências etnográficas afinal se tornam interessantes quando

encontramos linhas de fuga, mundos possíveis capazes de deslocar aquele do qual

partimos, sejam eles mundos humanos ou não humanos.

II

A parte principal da pesquisa para este trabalho foi realizada no Pantanal do Mato

Grosso do Sul, em fazendas de gado que abrigavam projetos de conservação de onças-

pintadas. Na proposta inicial, eu tinha pelo menos três objetivos diferentes,

aparentemente difíceis de conciliar, que se mantiveram como temas importantes ao

longo do projeto. O primeiro era descrever as práticas dos biólogos de campo nos

estudos científicos sobre as onças. O segundo era realizar uma etnografia das fazendas

de gado, com ênfase nos modos de percepção e classificação dos animais pelas

comunidades locais. O terceiro propósito era encontrar caçadores tradicionais

pantaneiros e produzir uma etnografia da caça regional. Pretendia, para isso,

acompanhar a captura de uma onça para a colocação da coleira de rádio, um evento que

eu via como um momento particularmente interessante de interação entre os métodos

tradicionais de caça e a tecnologia empregada pelos cientistas.

As relações mais interessantes presentes no Pantanal me parecem ser aquelas que, de

alguma forma, escapam ao controle e aos processos de manejo. A própria domesticação

pode ser pensada, afinal, como a interpreta Despret (2004), como uma via de mão dupla

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na interação entre humanos e animais, e foi desta forma que procurei interpretá-la.

A primeira visita ao Pantanal, para dar início à pesquisa, com duração de duas

semanas, foi realizada em março de 2006. A segunda foi apenas em outubro de 2007,

concluindo uma longa negociação para acompanhar um projeto de campo científico que

estava sendo iniciado por um pesquisador ligado à Associação Pró-Carnívoros.

Posteriormente, a pesquisa foi dividida em duas viagens de campo, com duração de dois

meses cada uma: a primeira realizada entre março e maio, e a segunda entre outubro e

dezembro de 2008. A divisão em dois períodos foi motivada pelas diferenças ambientais

notáveis entre os períodos da seca e da cheia na região. No total, fiquei

aproximadamente seis meses no campo, tempo bastante curto para uma pesquisa

etnográfica. Procurei compensar o pouco tempo que passei no campo com a realização

de levantamentos bibliográficos e com análises de textos literários e científicos, tarefas

que desempenharam um papel importante na elaboração deste trabalho.

No início da pesquisa, a intenção era investigar as práticas de pesquisa e métodos de

conservação da onça-pintada, tendo como referência teórica e metodológica os estudos

de ciência (“Science Studies” ou STS) de modo geral. Com o decorrer da experiência de

campo, no entanto, o objeto da pesquisa deixou de ser apenas a rede conservacionista

(que se expande para fora, nos laboratórios, publicações e meios de circulação

científicos). O objetivo passou a ser então o de produzir uma descrição das tramas ou

redes intrincadas de relações nas quais as onças estavam inseridas com a implantação de

projetos científicos e programas conservacionistas voltados para a espécie dentro das

fazendas pantaneiras. Isso envolvia um emaranhado de pessoas, animais, coisas e

instituições ligados tanto à pecuária quanto à conservação da vida selvagem.

A princípio, a pecuária bovina e a conservação da onça-pintada são atividades

vinculadas a duas ‘redes’ (em sentido convencional) muito diferentes entre si. No

primeiro caso, a rede conservacionista inclui pesquisadores, organizações não

governamentais, universidades e todo o aparato governamental ligado ao gerenciamento

do meio ambiente. No segundo, a rede da pecuária inclui proprietários rurais e

vaqueiros, a indústria do abate e dos frigoríficos, supermercados, consumidores, além

dos órgãos governamentais ligados a agropecuária. Não se trata, portanto, só de

atividades diferentes entre si, mas também práticas ligadas a uma controvérsia

ambiental de grande alcance, que se colocam muitas vezes em campos opostos no

debate político.

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Vale lembrar, a esse respeito, que o Mato Grosso do Sul é movido economicamente

pela pecuária, e os fazendeiros são figuras que dominam a cena política no Estado.

Fazendas com milhares de cabeças de gado se estendem por quase todo o Pantanal, que

é habitado por aproximadamente quatro milhões de cabeças, de acordo com dados da

Embrapa-Pantanal. Além disso, o Brasil possui um dos maiores rebanhos comerciais de

gado bovino do mundo, e a pecuária é uma das principais frentes de desenvolvimento

do agronegócio no país.

Por outro lado, o Pantanal é considerado pela Unesco Patrimônio Natural Mundial e

Reserva da Biosfera, sendo uma região de grande interesse do ponto de vista da

preservação ambiental. Para a conservação da onça-pintada, em particular, é uma área

crucial (uma “área fonte”, em termos ecológicos) na medida em que abriga um dos dois

últimos grandes remanescentes populacionais de uma espécie altamente ameaçada pela

pressão antrópica sobre os recursos naturais. Em relação ao status de conservação da

onça no Brasil, a outra população ecologicamente viável está na Amazônia; nos outros

biomas em que a espécie ocorre, a situação é precária: na Caatinga e no Cerrado há

populações isoladas, enquanto na Mata Atlântica as condições são críticas.

A proposta da pesquisa foi abordar, de alguma forma, a interseção entre essas duas

realidades – a da produção de gado e da conservação ambiental –, sem estabelecer entre

elas uma distinção prévia. Isso significou acompanhar tanto atividades científicas

quanto de manejo do gado, tratando-as como integrantes de uma mesma rede, no

sentido de uma rede sociotécnica, como formulado pela Teoria-do-Ator-Rede, e em

particular por Bruno Latour (1994; 2000; 2005). Ao contrário do que entendemos

convencionalmente quando falamos em “redes sociais”, por exemplo, a noção de rede

diz respeito, neste caso, a uma ferramenta analítico-descritiva, e não a alguma coisa lá

fora, existente como uma realidade observável.

Latour (2005) estabelece algumas precauções para se traçar uma rede desse tipo,

ligadas a uma prática simétrica de evitar tanto as explicações sociais quanto as causas

científicas. Estas últimas implicariam na atribuição, aos não humanos, das qualidades

não intencionais, materiais e sólidas dos fatos objetivos (o que o autor chama de “matter

of fact”) científicos. As explicações sociais, por outro lado, implicariam na atribuição

aos animais do papel de símbolos, repositórios de projeções humanas ou sociais. Essas

são as duas formas de purificação que a Teoria-do-Ator-Rede nos propõe evitar. A ideia

é que, assim que um determinado ator é filtrado por uma delas, ele se torna

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simplesmente o efeito de alguma causa anterior, social ou natural.

O modo que encontrei de mobilizar um campo de estudos, delimitando um lugar

para a minha pesquisa etnográfica, foi o desenvolvimento de uma proposta de trabalho

inspirada em modelos provenientes da literatura conservacionista e da etnobiologia.

Essa proposta constituiu o principal instrumento de negociação para a realização da

pesquisa, e se baseava na utilização de um questionário com formato semiaberto,

incluindo vinte perguntas fixas, que foi utilizado ao longo de toda a pesquisa de campo

em um total de sessenta e cinco entrevistas. O uso deste questionário serviu de base para

uma discussão sobre os métodos empregados na minha pesquisa, a partir da qual

procurei colocar em questão diversos impasses entre o enfoque das ciências naturais e o

das ciências sociais. Esta discussão é tema do capítulo 6 deste livro.

Foi por intermédio de biólogos que estudavam onças que pude levar adiante o

projeto, e a constituição de alianças entre eles e os fazendeiros locais, em primeiro

lugar, foi o que abriu caminho para a minha chegada até lá. Apesar de interessados na

divulgação de seu trabalho, no entanto, os pesquisadores com os quais entrei em contato

nunca pareceram à vontade com a ideia de serem, eles também, objetos de estudo; desse

modo, a inclusão na minha proposta de um estudo antropológico da rede científica (ou

técnica) foi recebida sempre com reservas por parte deles. O interesse que eu

compartilhava com os biólogos era o de estudar as relações entre os moradores locais e

as onças, e foi a partir desse horizonte comum que este trabalho se tornou possível.

Procurei, no decorrer da pesquisa, abordar as designações regionais do gado a partir

de uma dimensão temporal, ligada à colonização da região pela pecuária e também a

partir do diálogo principalmente com duas fontes bibliográficas, Campos Filho (2002) e

Banducci (1995) que apontam para múltiplas relações regionais entre brabo e manso,

doméstico e selvagem. Ao longo do trabalho, procurei caracterizar as práticas de manejo

e formas de classificação do gado pelos vaqueiros do Pantanal como modos de

rastreamento. O abate das vacas para o consumo interno da fazenda e o processo de

fabricação e de utilização do laço, atividades que fazem parte do cotidiano dos

vaqueiros, foram definidos, por sua vez, como modos distintos de captura. Outra forma

de captura é aquela em que as onças são perseguidas e anestesiadas - quando se tornam

unidades produtoras de dados para a pesquisa científica. Este tipo de captura envolve a

utilização de cães de caça e a assimilação de conhecimentos nativos, e é particularmente

interessante, neste caso, como uma tradição ligada à eliminação das onças é redefinida

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como meio de preservação. O tema se desdobrou, em minha pesquisa, na leitura de uma

série de fontes literárias sobre as caçadas de onça, e, de outro lado, na investigação

sobre os modos de relação e de designação dos cães de caça.

As práticas científicas que acompanhei ao longo da pesquisa eram ligadas à

conservação e ao manejo das onças e baseadas principalmente na rádio-telemetria, uma

metodologia fundadora da moderna biologia da conservação. Procurei mapear também

o uso histórico das coleiras de rádio na região e investigar igualmente o modo como elas

produzem um novo tipo de conhecimento sobre os animais.

A partir de uma série de conexões transversais entre os horizontes de práticas

presentes na etnografia, este livro é, portanto, um esforço de produzir uma descrição da

onça pantaneira em seus múltiplos aspectos, sem estabelecer de saída uma separação

entre os aspectos ecológicos e os aspectos sociais envolvidos no tema.

* Os nomes próprios de todas as pessoas envolvidas neste projeto, assim como das

fazendas nas quais fiz o trabalho de campo, foram alterados nos capítulos a seguir, de

modo a preservar o anonimato daqueles que colaboraram com a pesquisa.

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