rastro da onça_introdução 5
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Felipe SussekindTRANSCRIPT
INTRODUÇÃO
(Ou por que olhar a onça?)
I
Por que olhar os animais? Essa pergunta é o título de um ensaio seminal de John
Berger, escrito em1977, sobre as relações entre humanos e animais (Berger 2009). É
também uma pergunta que tem me acompanhado nos últimos anos, desde que tomei os
animais como temas de meus projetos de pesquisa. Este livro, até certo ponto, é uma
tentativa de respondê-la, ou talvez, mais ainda, de explorar seu potencial como questão.
O que sempre me atraiu em relação aos animais é o fato de eles de alguma forma
escaparem ao domínio humano; essa dimensão, que poderíamos chamar de ‘selvagem’,
é o que torna o tema realmente interessante do meu ponto de vista.
No ensaio que mencionei acima, Berger afirma que os animais guardam segredos
para nós, humanos (2009: 11). Considero essa uma bela imagem. Os segredos que os
animais guardam se referem, penso eu, a um outro lado, àquilo que de alguma forma
está fora da esfera conhecida, fora daquilo que podemos explicar racionalmente, além
da linguagem humana. Considerar esse “outro lado”, ou “fora”, como sendo expressões
da natureza, entendida como uma esfera externa ao mundo humano, no entanto, me
parece já um passo na direção do controle, da domesticação, na direção de aniquilar
aquilo que os animais mantém em segredo. Mas vou tentar explicar isso melhor.
Nasci e cresci na cidade do Rio de Janeiro, e minha curiosidade pelos animais
selvagens deriva em grande parte daquilo que li em livros, enciclopédias, ou que
aprendi em filmes e programas de televisão. Mas, para quem se interessa pelos animais,
evidentemente isso não é o bastante. É preciso encontra-los, experimentar diretamente o
contato com eles. Como quase toda criança carioca, fui levado ao zoológico da Quinta
da Boa Vista para ver os bichos, e lá experimentei o desapontamento de ver que eles
nunca eram aquilo que eu esperava.
É exatamente esse desapontamento (as crianças o experimentam diante de cada
jaula) que Berger considera a questão mais interessante a ser formulada a respeito dos
zoológicos. De acordo com ele, o zoológico não pode senão desapontar, justamente
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porque a experiência que ele oferece envolve um dispositivo que nos coloca na posição
de sujeitos olhando para animais reduzidos à condição de objetos. O que o autor
percebe, e essa me parece uma percepção fundamental, é que nunca encontramos ali o
olhar de um animal. “O animal é sempre o observado” – diz ele – “O fato de que eles
podem nos observar perdeu todo o significado” (Berger 2009: 15). Nós, visitantes do
zoológico, assim como os animais que observamos, estamos confinados em ambientes
absolutamente distintos, de modo que aquilo que vemos é algo que se tornou
absolutamente marginal, algo que não conseguimos trazer para nossa atenção, como
uma imagem fora de foco. Da mesma forma, o animal olha para nós como espectros que
atravessam seu campo de visão, mas que não fazem parte de seu ambiente. É por isso
que o zoológico representa, para Berger, uma espécie de marginalização definitiva, um
monumento ao desaparecimento dos animais da vida ocidental moderna1.
A pergunta a ser feita a partir dessa impossibilidade de encontro pode conter, então,
não mais um porque, mas um como. Como olhar os animais? Como resgatar a
experiência do animal, a reciprocidade do olhar? Este é um modo de formular as
questões que me levaram a desenvolver projetos envolvendo animais nos últimos dez ou
doze anos.
Primeiro, fiz um ensaio fotográfico sobre a fauna selvagem no espaço urbano:
pássaros, macacos, quatis, animais que habitam a floresta dentro da cidade onde vivo.
Se a fotografia de natureza tem como característica, geralmente, o ideal de mostrar a
vida animal purificada dos elementos humanos – os bichos em seu habitat natural –, o
tema dos animais urbanos me parecia evocar uma camada interessante de significados
que não obedecia nem à lógica da natureza domesticada na cidade, nem ao ideal de uma
natureza intocada pelo homem. O projeto com a fauna urbana se desdobrou
posteriormente em um pequeno filme sobre o aparecimento de uma capivara na área
1 O tema do desaparecimento da vida animal remete ao processo de extinção das espécies, tema que se articula a uma série de outros aspectos da gravíssima crise ambiental que vivemos atualmente, e que ameaça não só as espécies animais mas também o próprio modo de vida humano. O que estamos experimentando tem sido chamado por muitos autores de “Sexta Extinção”, e remete a outros cinco processos de extinção em massa de espécies de seres vivos ocorridos no passado remoto do planeta Terra. A ‘perda de biodiversidade’ é também o termo técnico que designa um dos nove processos de degeneração ambiental do tempo presente. Entre os outros estão o aquecimento global, a acidificação dos oceanos e o derretimento das calotas polares. A reflexão sobre a extinção das espécies, pensada em termos gerais, possui esse papel evidente em relação à ecologia política. O tema possui desdobramentos ainda mais interessantes, no entanto, quando pensado em função de ideias como os mundos próprios de Von Uexkull, ou a teoria do perspectivismo ameríndio desenvolvida por Eduardo Viveiros de Castro por exemplo. Pretendo retomá-lo mais diretamente em outros trabalhos no futuro.
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completamente urbanizada da Lagoa Rodrigo de Freitas, na zona sul do Rio de Janeiro2.
O acontecimento e as narrativas que ele motivava sobrepunham conhecimentos
populares e científicos, relações ecológicas e antropológicas.
Foram essas duas experiências abordando relações entre humanos e animais que me
levaram em seguida (no ano de 2005) a desenvolver um projeto acadêmico com essa
temática – que acabaria resultando neste livro. O projeto foi motivado, em grande parte,
pela leitura dos trabalhos de Eduardo Viveiros de Castro sobre o tema do
perspectivismo ameríndio, e isso me motivou, na época, a procura-lo para que me
orientasse no curso de doutorado no Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de
Janeiro. A opção mesma pela onça-pintada como tema de pesquisa foi influenciada por
essa escolha, na medida em que se trata de um animal que tem um papel central nas
cosmologias dos povos indígenas sul-americanos.
O tema final do projeto – a onça pantaneira – é a rigor meio inusitado para a
antropologia social, e em geral precisa de alguma explicação. As disciplinas que
tradicionalmente estudam a vida animal são a biologia, ou a ecologia; antropologia por
definição estuda o humano. Como, então, fazer uma antropologia de um animal? Uma
abordagem do tema pela via da ecologia a princípio se voltaria para o comportamento,
os fatos, a realidade da natureza e o modo como ela pode ser investigada e descrita
pelos métodos científicos; uma abordagem antropológica clássica, por outro lado, teria
como foco as representações da onça e da vida animal – os discursos, valores, a
realidade da cultura.
A proposta deste trabalho, dado esse impasse, foi buscar uma ferramenta conceitual
e descritiva que permitisse escapar dessa alternativa, baseada na separação
essencialmente moderna que funda nossas disciplinas acadêmicas, a partir da qual
precisamos escolher natureza ou cultura. Entendo que esta opção produz uma espécie
de duplo vínculo (“double bind”), nos termos de Gregory Bateson, uma escolha na qual
sempre saímos perdendo, da qual ficamos inadvertidamente reféns quando ingressamos
na Universidade. Como então escapar dessa dicotomia e falar ao mesmo tempo das duas
coisas?
No caso da minha pesquisa de doutorado, essa questão se desdobrou em outras:
como estabelecer conexões entre o comportamento das onças, as práticas de campo
científicas, e as experiências dos moradores de fazendas do Pantanal? Como conectar os 2 O curta-metragem Capivara!, dirigido em parceria com Felipe Nepomuceno e com trilha sonora de Jano Nascimento, foi realizado em 2004.
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fatos e os valores, o comportamento empírico dos animais e o modo como ele é
experimentado e vivido pelas pessoas? Essas foram algumas das perguntas que surgiram
ao longo trabalho.
]]]Assim como a maioria dos habitantes da cidade do Rio de Janeiro, entretanto, eu
não tinha tido nenhum contato com uma onça até então, a não ser, como mencionei, no
zoológico, ou então por meio de imagens como aquela que se vê estampada na nota de
cinquenta reais. A onça está presente em muitos lugares diferentes na cultura brasileira.
Sua presença se manifesta, por exemplo, em expressões populares como “ficar uma
onça”, “bafo da onça”, “amigo da onça”, ou a “hora de a onça beber água”, que fazem
parte das tradições orais brasileiras. As duas últimas expressões me parecem
particularmente interessantes por estarem relacionadas à caça. No primeiro caso, o
termo “amigo da onça” se origina de uma história exagerada contada por um narrador
(numa piada que tem várias versões) que pergunta a seu interlocutor incrédulo: “você é
meu amigo ou é amigo da onça?”. O “amigo da onça” tem o sentido de um falso amigo,
um amigo “traíra”. Tornou-se ainda o nome de um personagem do cartunista Péricles de
Andrade Maranhão, que fez sucesso nos anos 1940, em charges de O Cruzeiro, a
popular revista semanal ilustrada publicada no Rio de Janeiro de 1928 até 1975.
A expressão “hora de a onça beber água”, por sua vez, relaciona-se ao instante
crucial, à hora em que, como diz outra expressão popular, “o bicho pega”. É o momento
em que a onça sai de sua posição de caçadora à espreita e se revela. O que tanto diz
respeito a essa hora especialmente perigosa, tendo o animal como agente, quanto ao
momento em que o caçador humano é capaz de surpreendê-la. Essas camadas
discursivas presentes na fala urbana teriam, portanto, relação com o ambiente rural
brasileiro e com esse universo da caça, que é um tema importante dentro deste trabalho.
Na época em que comecei a cursar a pós-graduação, eu já tinha conhecimento de
projetos de pesquisa desenvolvidos por biólogos que estudavam as onças-pintadas em
fazendas do Pantanal. A ideia de acompanhar um projeto desse tipo me parecia
interessante por envolver o conhecimento científico em produção e em algum tipo de
interseção com o conhecimento tradicional pantaneiro. O Pantanal é um lugar habitado
secularmente por gente e vacas, onde a onça sempre foi vista como um problema – ou
até uma praga a ser combatida – por se alimentar do gado, ou seja, por se alimentar da
mesma comida que nós, humanos. Essas sobreposições entre o científico e o tradicional,
o doméstico e o selvagem, me pareceram propícias para um estudo antropológico, e foi
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esse um fator determinante no projeto.
Hoje percebo que o movimento em direção à onça teve também uma série de outras
influências. Uma delas certamente foi a leitura (há muitos anos, bem antes de ele se
tornar efetivamente um projeto de pesquisa) do conto de Guimarães Rosa Meu tio, o
Iarauetê. O que me impressionou mais no conto foi o modo como o animal emerge da
linguagem em uma dimensão própria, um mundo próprio, e também o modo como ele
irrompe como uma força capaz de colocar em questão a condição humana, ou a
centralidade do humano. A onça, neste caso, não é apenas objeto de uma descrição
incrivelmente vívida, mas, mais do que isso, é o centro de uma experiência de
transformação, uma transformação que se dá por meio da linguagem. Quando mistura
gente e onça, Guimarães Rosa produz uma hibridização capaz de colocar em cheque as
concepções literárias orientadas por uma visão homogeneizadora do personagem e do
narrador.
Esse foi possivelmente o primeiro impulso para os temas abordados neste livro, e
um dos objetivos que eu tinha em minha pesquisa de campo no Pantanal, desde o início,
era encontrar algum zagaieiro como aquele do conto. Como reporta Ana Luiza Martins
Costa, a partir de trabalho com o arquivo de Guimarães Rosa, o escritor fez uma viagem
ao Pantanal em 1947, na qual conversou com caçadores de onça, sendo que essas
conversas foram aproveitadas posteriormente na composição da novela “Meu tio o
iarauetê”. 3 Em relação a esse tema, encontrei zagaieiros vivendo apenas nas memórias
de pessoas que conheci no Pantanal, que narraram caçadas de onça das quais
participaram junto com eles. Os zagaieiros eram tios, avôs, sogros, geralmente uma
geração acima dos meus interlocutores, e o fato de não os ter encontrado está ligado a
um processo evidente de desaparecimento dessa técnica de caça rústica diante da
expansão das armas de fogo. As caçadas com a zagaia se extinguiram, e junto com elas
uma certa relação com a onça, brutal certamente, mas também altamente significativa
em termos de modos de devir-animal, na medida em que remete a processos de mistura,
de hibridização.
3 Sobre a viagem de 1947, Martins Costa afirma: “As conversas com diversos “zagaieiros” – os intrépidos caçadores de onça – e o desenho detalhado que Rosa faz de uma azagaia, nomeando cada uma de suas partes, serão aproveitados na novela “Meu tio o Iauaretê”, publicada catorze anos depois, na revista Senhor (Rio de Janeiro, 25.03.1961)”A pesquisadora observa, entretanto, que não se sabe o paradeiro das cadernetas referentes a essas viagens. (Martins Costa 2006: 22-24)
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A mistura entre humanos e animais presente no conto de Guimarães Rosa dialoga
também com a literatura antropológica sobre os povos indígenas da América do Sul, e
em particular com os temas do xamanismo e da caça (Viveiros de Castro 1996, Lima
1996). No contexto ameríndio, a onça desempenha papéis cruciais tanto em termos
míticos, quanto em termos daquilo que poderíamos chamar, de uma perspectiva externa
e imprecisa, de relações sociais, ou ecológicas (imprecisas porque a distinção entre
esses domínios é própria da nossa ontologia, mas não daquela dos índios). O olhar da
onça é um tema recorrente na etnologia indígena, em ontologias nas quais a troca de
olhares e de perspectivas entre humanos e animais é uma espécie de “fato social total”,
para usar a expressão canônica de Marcel Mauss.
Por outro lado, em um processo que tem origem na revolução industrial e na
filosofia cartesiana, os animais se tornaram, para nós ocidentais, máquinas, objetos ou
então membros da família. Inseridos no mundo moderno e submetidos ao racionalismo
científico, eles não podem ser mais nada além de representações ou modelos para a
origem do ser humano ou do humano enquanto objeto, corpo. Ou então suportes para
vários tipos de metáfora ou imagens simbólicas que compõem o universo da cultura. Em
todo caso, não se apresentam mais como figuras da alteridade, mas sim como espelhos
que refletem a natureza humana.
O que se perde, nesse sentido, me parece ser a própria relação com a alteridade.
Uma característica do mundo ocidental moderno, quando institui uma temporalidade
fundada na ideia de um progresso contínuo, é a conversão do outro, do estrangeiro, em
“primitivo”. Os povos primitivos, na literatura antropológica do final do século XIX,
representam etapas do desenvolvimento da sociedade ocidental, que por sua vez
funciona como modelo universal para a humanidade. Não há mais alteridade, há apenas
uma evolução unilateral e modelos por meio dos quais os modernos investigam seu
próprio passado.
A categoria do “animal” me parece ser de natureza semelhante àquela do
“primitivo”. O animal, como mostrou Derrida, é o singular genérico que designa a
ausência daquilo que se convenciona como sendo a singularidade humana – linguagem,
consciência, racionalidade, etc (Derrida 2002). É um termo que não se refere a animal
nenhum, mas antes ao não-humano em geral, ou ao lado animal do homem. O animal,
no ocidente moderno, deixa de existir como um ser vivendo uma vida paralela,
habitando um mundo diferente, e se converte em outra coisa: objeto, mercadoria,
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instrumento, espetáculo ou metáfora da condição humana. A potência de alteridade
desaparece. E não me parece que estejamos mais próximos dos animais hoje porque
desejamos protegê-los ou poupá-los; ao contrário, estamos ainda mais distantes. Os
animais ameaçadores do passado se tornaram ameaçados. O medo desapareceu porque a
interação desapareceu.
Quando estabeleci minha pesquisa no Pantanal, o que pretendia era buscar uma outra
referência de relação com os animais. Minha ideia era pensar a onça, em particular, não
apenas como objeto para o olhar de um sujeito humano, mas como dotada de um ponto
de vista. Buscar um contraponto para a constituição do animal como objeto, o animal
classificado, domesticado, a partir de um lugar habitado por gente e onças, entre os
quais a questão de ver e ser visto é uma questão crucial. Uma relação com a onça, no
ambiente da onça, envolve necessariamente um jogo de olhares. Ver e não ser visto. A
sensação de que ela pode estar espreitando é uma sensação particular que marca a
paisagem, que confere ao Pantanal uma qualidade própria. Este é um tema que remete à
etnologia indígena e à teoria do perspectivismo desenvolvida por Viveiros de Castro
(1996). Se a onça se deixa ver, é porque ela não está caçando. O problema é justamente
quando você não está vendo a onça no mato, porque ela pode estar vendo você.
Essa temática da reciprocidade do olhar pode dar origem a uma série de questões.
Qual é o mundo possível constituído a partir do ponto de vista da onça? Quais são as
relações que se produzem quando o fato de que a onça é capaz de olhar para o humano é
colocado em questão? Como se constituem as relações quando a onça deixa de ser um
item numa coleção de história natural e passa a habitar um mundo? Qual a relação entre
aquilo que a ciência afirma a respeito de seu objeto, constituído como algo
quantificável, e aquilo que a ciência coloca em prática quando se engaja em um
processo de conhecimento?
Uma questão complementar a essa da visão surge quando imaginamos a diferença
entre a paisagem que um turista fotografa quando visita o Pantanal e a paisagem
percebida por um vaqueiro, ou morador da região. O ambiente dos pantaneiros é
carregado de significados: rastros, vestígios de passagens de animais – trilheiros de
gado, batidas de onça, cheiros, pegadas, sons, relações que ligam as pessoas ao
ambiente que as cerca. Esses aspectos nos permitem pensar a relação entre humanos e
animais não a partir da visão, de uma perspectiva ótica, mas antes a partir do rastro, de
uma perspectiva indicial ou indiciária. Encontrar e seguir rastros, como afirma Deleuze
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em seu Abecedário, indicam possibilidades de uma relação animal com o animal, que
difere essencialmente de uma relação humana com o animal, como aquela que em geral
se estabelece entre os animais domésticos e seus donos no meio urbano.
É preciso, para se pensar uma relação desse tipo, imaginar o animal como um ser
cuja singularidade rompe com a imagem de uma natureza controlada, domada,
formalizada. De algum modo isso me parece implicar a ideia de fazer com que o
elemento propriamente selvagem da interação humanos-animais se mantenha como tal,
o que significa repensar a própria ideia de domesticação numa ética que escape do
antropocentrismo. De um lado, há uma série de dispositivos que tornam a onça (ou o
gado, cavalos e cães) objetos de conhecimento ou instrumentos para os sujeitos
humanos, mas eles podem ser contrapostos a outros dispositivos capazes de dar conta de
uma experiência daquilo que seria o mundo próprio de cada um desses animais. As
viagens e as experiências etnográficas afinal se tornam interessantes quando
encontramos linhas de fuga, mundos possíveis capazes de deslocar aquele do qual
partimos, sejam eles mundos humanos ou não humanos.
II
A parte principal da pesquisa para este trabalho foi realizada no Pantanal do Mato
Grosso do Sul, em fazendas de gado que abrigavam projetos de conservação de onças-
pintadas. Na proposta inicial, eu tinha pelo menos três objetivos diferentes,
aparentemente difíceis de conciliar, que se mantiveram como temas importantes ao
longo do projeto. O primeiro era descrever as práticas dos biólogos de campo nos
estudos científicos sobre as onças. O segundo era realizar uma etnografia das fazendas
de gado, com ênfase nos modos de percepção e classificação dos animais pelas
comunidades locais. O terceiro propósito era encontrar caçadores tradicionais
pantaneiros e produzir uma etnografia da caça regional. Pretendia, para isso,
acompanhar a captura de uma onça para a colocação da coleira de rádio, um evento que
eu via como um momento particularmente interessante de interação entre os métodos
tradicionais de caça e a tecnologia empregada pelos cientistas.
As relações mais interessantes presentes no Pantanal me parecem ser aquelas que, de
alguma forma, escapam ao controle e aos processos de manejo. A própria domesticação
pode ser pensada, afinal, como a interpreta Despret (2004), como uma via de mão dupla
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na interação entre humanos e animais, e foi desta forma que procurei interpretá-la.
A primeira visita ao Pantanal, para dar início à pesquisa, com duração de duas
semanas, foi realizada em março de 2006. A segunda foi apenas em outubro de 2007,
concluindo uma longa negociação para acompanhar um projeto de campo científico que
estava sendo iniciado por um pesquisador ligado à Associação Pró-Carnívoros.
Posteriormente, a pesquisa foi dividida em duas viagens de campo, com duração de dois
meses cada uma: a primeira realizada entre março e maio, e a segunda entre outubro e
dezembro de 2008. A divisão em dois períodos foi motivada pelas diferenças ambientais
notáveis entre os períodos da seca e da cheia na região. No total, fiquei
aproximadamente seis meses no campo, tempo bastante curto para uma pesquisa
etnográfica. Procurei compensar o pouco tempo que passei no campo com a realização
de levantamentos bibliográficos e com análises de textos literários e científicos, tarefas
que desempenharam um papel importante na elaboração deste trabalho.
No início da pesquisa, a intenção era investigar as práticas de pesquisa e métodos de
conservação da onça-pintada, tendo como referência teórica e metodológica os estudos
de ciência (“Science Studies” ou STS) de modo geral. Com o decorrer da experiência de
campo, no entanto, o objeto da pesquisa deixou de ser apenas a rede conservacionista
(que se expande para fora, nos laboratórios, publicações e meios de circulação
científicos). O objetivo passou a ser então o de produzir uma descrição das tramas ou
redes intrincadas de relações nas quais as onças estavam inseridas com a implantação de
projetos científicos e programas conservacionistas voltados para a espécie dentro das
fazendas pantaneiras. Isso envolvia um emaranhado de pessoas, animais, coisas e
instituições ligados tanto à pecuária quanto à conservação da vida selvagem.
A princípio, a pecuária bovina e a conservação da onça-pintada são atividades
vinculadas a duas ‘redes’ (em sentido convencional) muito diferentes entre si. No
primeiro caso, a rede conservacionista inclui pesquisadores, organizações não
governamentais, universidades e todo o aparato governamental ligado ao gerenciamento
do meio ambiente. No segundo, a rede da pecuária inclui proprietários rurais e
vaqueiros, a indústria do abate e dos frigoríficos, supermercados, consumidores, além
dos órgãos governamentais ligados a agropecuária. Não se trata, portanto, só de
atividades diferentes entre si, mas também práticas ligadas a uma controvérsia
ambiental de grande alcance, que se colocam muitas vezes em campos opostos no
debate político.
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Vale lembrar, a esse respeito, que o Mato Grosso do Sul é movido economicamente
pela pecuária, e os fazendeiros são figuras que dominam a cena política no Estado.
Fazendas com milhares de cabeças de gado se estendem por quase todo o Pantanal, que
é habitado por aproximadamente quatro milhões de cabeças, de acordo com dados da
Embrapa-Pantanal. Além disso, o Brasil possui um dos maiores rebanhos comerciais de
gado bovino do mundo, e a pecuária é uma das principais frentes de desenvolvimento
do agronegócio no país.
Por outro lado, o Pantanal é considerado pela Unesco Patrimônio Natural Mundial e
Reserva da Biosfera, sendo uma região de grande interesse do ponto de vista da
preservação ambiental. Para a conservação da onça-pintada, em particular, é uma área
crucial (uma “área fonte”, em termos ecológicos) na medida em que abriga um dos dois
últimos grandes remanescentes populacionais de uma espécie altamente ameaçada pela
pressão antrópica sobre os recursos naturais. Em relação ao status de conservação da
onça no Brasil, a outra população ecologicamente viável está na Amazônia; nos outros
biomas em que a espécie ocorre, a situação é precária: na Caatinga e no Cerrado há
populações isoladas, enquanto na Mata Atlântica as condições são críticas.
A proposta da pesquisa foi abordar, de alguma forma, a interseção entre essas duas
realidades – a da produção de gado e da conservação ambiental –, sem estabelecer entre
elas uma distinção prévia. Isso significou acompanhar tanto atividades científicas
quanto de manejo do gado, tratando-as como integrantes de uma mesma rede, no
sentido de uma rede sociotécnica, como formulado pela Teoria-do-Ator-Rede, e em
particular por Bruno Latour (1994; 2000; 2005). Ao contrário do que entendemos
convencionalmente quando falamos em “redes sociais”, por exemplo, a noção de rede
diz respeito, neste caso, a uma ferramenta analítico-descritiva, e não a alguma coisa lá
fora, existente como uma realidade observável.
Latour (2005) estabelece algumas precauções para se traçar uma rede desse tipo,
ligadas a uma prática simétrica de evitar tanto as explicações sociais quanto as causas
científicas. Estas últimas implicariam na atribuição, aos não humanos, das qualidades
não intencionais, materiais e sólidas dos fatos objetivos (o que o autor chama de “matter
of fact”) científicos. As explicações sociais, por outro lado, implicariam na atribuição
aos animais do papel de símbolos, repositórios de projeções humanas ou sociais. Essas
são as duas formas de purificação que a Teoria-do-Ator-Rede nos propõe evitar. A ideia
é que, assim que um determinado ator é filtrado por uma delas, ele se torna
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simplesmente o efeito de alguma causa anterior, social ou natural.
O modo que encontrei de mobilizar um campo de estudos, delimitando um lugar
para a minha pesquisa etnográfica, foi o desenvolvimento de uma proposta de trabalho
inspirada em modelos provenientes da literatura conservacionista e da etnobiologia.
Essa proposta constituiu o principal instrumento de negociação para a realização da
pesquisa, e se baseava na utilização de um questionário com formato semiaberto,
incluindo vinte perguntas fixas, que foi utilizado ao longo de toda a pesquisa de campo
em um total de sessenta e cinco entrevistas. O uso deste questionário serviu de base para
uma discussão sobre os métodos empregados na minha pesquisa, a partir da qual
procurei colocar em questão diversos impasses entre o enfoque das ciências naturais e o
das ciências sociais. Esta discussão é tema do capítulo 6 deste livro.
Foi por intermédio de biólogos que estudavam onças que pude levar adiante o
projeto, e a constituição de alianças entre eles e os fazendeiros locais, em primeiro
lugar, foi o que abriu caminho para a minha chegada até lá. Apesar de interessados na
divulgação de seu trabalho, no entanto, os pesquisadores com os quais entrei em contato
nunca pareceram à vontade com a ideia de serem, eles também, objetos de estudo; desse
modo, a inclusão na minha proposta de um estudo antropológico da rede científica (ou
técnica) foi recebida sempre com reservas por parte deles. O interesse que eu
compartilhava com os biólogos era o de estudar as relações entre os moradores locais e
as onças, e foi a partir desse horizonte comum que este trabalho se tornou possível.
Procurei, no decorrer da pesquisa, abordar as designações regionais do gado a partir
de uma dimensão temporal, ligada à colonização da região pela pecuária e também a
partir do diálogo principalmente com duas fontes bibliográficas, Campos Filho (2002) e
Banducci (1995) que apontam para múltiplas relações regionais entre brabo e manso,
doméstico e selvagem. Ao longo do trabalho, procurei caracterizar as práticas de manejo
e formas de classificação do gado pelos vaqueiros do Pantanal como modos de
rastreamento. O abate das vacas para o consumo interno da fazenda e o processo de
fabricação e de utilização do laço, atividades que fazem parte do cotidiano dos
vaqueiros, foram definidos, por sua vez, como modos distintos de captura. Outra forma
de captura é aquela em que as onças são perseguidas e anestesiadas - quando se tornam
unidades produtoras de dados para a pesquisa científica. Este tipo de captura envolve a
utilização de cães de caça e a assimilação de conhecimentos nativos, e é particularmente
interessante, neste caso, como uma tradição ligada à eliminação das onças é redefinida
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como meio de preservação. O tema se desdobrou, em minha pesquisa, na leitura de uma
série de fontes literárias sobre as caçadas de onça, e, de outro lado, na investigação
sobre os modos de relação e de designação dos cães de caça.
As práticas científicas que acompanhei ao longo da pesquisa eram ligadas à
conservação e ao manejo das onças e baseadas principalmente na rádio-telemetria, uma
metodologia fundadora da moderna biologia da conservação. Procurei mapear também
o uso histórico das coleiras de rádio na região e investigar igualmente o modo como elas
produzem um novo tipo de conhecimento sobre os animais.
A partir de uma série de conexões transversais entre os horizontes de práticas
presentes na etnografia, este livro é, portanto, um esforço de produzir uma descrição da
onça pantaneira em seus múltiplos aspectos, sem estabelecer de saída uma separação
entre os aspectos ecológicos e os aspectos sociais envolvidos no tema.
* Os nomes próprios de todas as pessoas envolvidas neste projeto, assim como das
fazendas nas quais fiz o trabalho de campo, foram alterados nos capítulos a seguir, de
modo a preservar o anonimato daqueles que colaboraram com a pesquisa.
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