quando as sereias choram

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Uma lenda esquecida será recontada. A história de uma sereia e de uma santa real, adorada e renegada ao mesmo tempo. Santa Murgen, a “nascida do mar”, a santa retratada como uma sereia, que incrivelmente mudou o mundo e até a maior religião existente. Eternizada nos Anais Irlandeses, ela conseguiu romper com tabus e estremecer o patriarcado. Uma figura pagã inserida misteriosamente no seio de igrejas cristãs. Amores, paixões, guerras e morte. O mundo viking visto através dos olhos aterrorizados dos cristãos, dos olhos azuis e sedentos por sangue de um guerreiro, mas principalmente, através dos olhos acinzentados de Liban, a menina que nasceu no mar e que carrega além de uma mágica ligação com o oceano e com um golfinho, questionamentos selvagens acerca do mundo que a rodeia. Os mares escondem histórias misteriosas. E é uma, dentre tantas, que será contada agora. Porém, não se melindrem, será uma em especial.

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Mirella Ferraz

Quando as Sereias Choram

A lenda será contada...

São Paulo, 2014

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Copyright © 2014 by Mirella Ferraz

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográficoda Língua Portuguesa (Decreto Legislativo no- 54, de 1995)

Ferraz, MirellaQuando as Sereias Choram : a lenda será contada... / Mirella Ferraz

Barueri, SP : Novo Século Editora, 2014. – 1. Ficção brasileira I. Título.

14-04741 cdd-869.93

Índices para catálogo sistemático:1. Ficção : Literatura brasileira 869.93

2014IMPRESSO NO BRASIL

PRINTED IN BRAZILDIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO

À NOVO SÉCULO EDITORA LTDA.CEA – Centro Empresarial Araguaia II

Alameda Araguaia, 2190 – 11o- andarBloco A – Conjunto 1111

CEP 06455-000 – Alphaville Industrial – SPTel. (11) 3699-7107 – Fax (11) 3699-7323

www.novoseculo.com.br

Coordenação Editorial Letícia Teófilo Diagramação Edivane Andrade de Matos/Efanet Design Capa Monalisa Morato Revisão Patricia Bernardo Almeida Fabrícia Romaniv Novo Século

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

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Para duas sereias e um tritão que a magia nos uniu; meus irmãos das águas, que compartilham comigo a água salgada nas veias e os olhos úmidos de mar: Rachel, Ingrid e Ph.

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“As sereias, porém, possuem uma arma ainda mais terrível do que seu canto: seu silêncio.”

– Franz Kafka.

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Prefácio

E, de repente, só vejo uma longuíssima cabeleira loura, chi-coteando e bailando em suaves movimentos na água, junto com uma extensa cauda esverdeada. Era Mirella Ferraz que, com total tranquilidade – como se estivesse realmente em seu ambiente natural –, ganhava as águas e os suspiros dos milhares ali que, entorpecidos, a assistiam em sua apresentação como a sereia que ela é, em um aquário de São Paulo.

A sensação imediata é quase que assustadora. “Muito real!” “Impressionante!” “Como ela aguenta ficar sem respirar por tanto tempo?”. “Como consegue enxergar embaixo d’água?”. Por lon-gos minutos, sinto aquela magia renovada dentro do meu coração. A magia do encanto das sereias... A magia a qual Mirella nos faz realmente acreditar.

Mirella é mestre em fazer brotar esse sentimento lúdico de encanto e estupefação. Seja com sua incrível habilidade aquática ou com sua extraordinária e rica escrita. Ela escreve como gente grande! E com a graciosidade poética ou a petulância nada des-pretensiosa de uma sereia. Uma sereia que ao invés do dom para

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o canto, tem o dom para a escrita; que coloca dúvidas em nossa cabeça ao abordar a pauta de um dos grandes mistérios da vida, o enorme buraco que existe no conhecimento registrado de seres que vivem nos oceanos.

Será que sereias existem? Será que se trata apenas de enor-mes coincidências todos os registros dessa “lenda” em pratica-mente todas as culturas e até mesmo em religiões? Será que os seres humanos têm uma ligação especial com o mar? São diver- sos “serás” que permeiam o mistério das sereias na cativante obra de Mirella.

Nas páginas que virão a seguir, o leitor terá a chance de mergulhar em um universo encantador e em cenários fantásticos a partir da comovente história de Liban, tendo a rica chance de ainda aprender sobre a antiga cultura nórdica, até mesmo tendo a oportunidade de “entrar na cabeça” de um guerreiro viking e conseguindo entender os seus conflitos internos e o seu modo de agir e pensar, de acordo com sua contundente e implacável cultura. Cultura esta que Mirella se empenhou com afinco para estudar e pesquisar por anos, para enriquecer ainda mais o conteúdo deste livro; fato facilmente comprovado já nas primeiras páginas, em que a autora escreve com tamanha facilidade e riqueza de deta-lhes que nos fazem acreditar até mesmo que um dia Mirella viveu naquela época.

Da magia à dura realidade, da terra ao mar, do romance deli-cado e sonhador às cenas muito ardentes, do drama à comédia. Mirella soube explorar com maestria e dinamismo ímpar todos os capítulos dessa narração. Todavia, sem deixá-la cair, jamais, no senso comum ou no clichê.

Recheada de ação e principalmente clímax, e com um final surpreendente, Quando as sereias choram vai levá-lo para o ini-maginável, arrebatá-lo e acender em seu coração a magia que por ventura estiver apagada.

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Uma ótima leitura a todos, e que as sereias sempre os acom-panhem em seus pensamentos.

Bruna Tavares

Jornalista pela PUC, repórter na editora Abril, colunista na revista Gloss e autora do blog Pausa para Feminices

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Existem histórias verdadeiras que, ao escutá-las, todos jura-riam se tratar de meras lendas. Porém, a maioria de nós guarda den-tro de si uma história sobrenatural vivida, algo difícil de explicar, entender e até aceitar. E essa história permanece em nossa mente. Muitas vezes nublada e confusa, mas não nos abandona pelo resto de nossas vidas. E basta um encontro informal, ou uma conversa ocasional, para essa história vir à tona e a pessoa que a viveu sinta vontade de contá-la. Talvez o narrador tenha esperança de que, assim, o ouvinte lhe traga alguma explicação. Mas quase sempre isso é impossível, pois, como podemos explicar o inexplicável?

Liban sempre carregou dentro de si um segredo. Na verdade, eram muitos segredos. Mas havia um, em especial, que todos os dias ela revivia em sua mente e guardava em seu coração. Entre-tanto, nunca o contou a ninguém. Primeiramente porque não havia a quem contar. Todas as garotas de sua idade achavam-na estra-nha e a tratavam mal. Não que ela ligasse. Apesar de possuir uma revolta interna, Liban simplesmente não sentia falta ou vontade de ter amigas. Outro motivo pelo qual nunca contou a ninguém,

Prólogo

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exceto para sua mãe, é que ela sabia que jamais acreditariam nela. Afinal, quem aceitaria como sendo verdade as palavras que diria, se ela contasse que podia enxergar dentro da água tão bem quanto fora dela? Ou então que podia trancar a respiração, quando estava submersa, tão bem quanto um golfinho? E se ela contasse ainda a história de sua mãe? De como ela sempre lhe jurava que, quando estava lhe dando à luz, embaixo do mar, uma sereia a ajudou e ainda a colocou, recém-nascida, em seus braços?

Mesmo com a morte da mãe há mais de dois anos, Liban todas as noites, antes de dormir, recordava das palavras dessa mulher que tanto amou:

Minha filha, você é especial, e nunca duvide disso – dizia ela. – Nós estávamos vindo para cá, seu tio e eu, e você ainda estava segura na minha barriga. Só que sua hora de nascer chegou e você não poderia ter escolhido momento pior, pois estávamos em meio a uma tempestade que nos alcançou repentinamente. Todo o barco chacoalhava e ia para frente e para trás violentamente, tal qual um galope de vinte cavalos selvagens juntos. Não consegui me segurar ao mastro do barco e caí, desesperada, ao mar. Assim que bati meu corpo contra as ondas revoltas, afundei na mesma hora. E desse modo tive a certeza de que nós duas morreríamos, e eu somente lamentava de não poder ver o seu lindo rostinho se quer uma única vez. Tudo ali embaixo estava calmo e silencioso, bem diferente da situação lá em cima. Mas de repente comecei a escutar um som, um som incomum. E ele foi se transformando numa incrível melodia, numa música tão linda que ainda sonho escutar mais uma vez em minha vida. E essa música me acalmou e parei de me debater. Então eu vi, surgindo das profundezas daquele oceano, uma claridade tímida, que em poucos segundos se transformou num facho de luz prateado e intenso. Fechei meus olhos e, surpresa, senti, após alguns segundos, duas mãos sobre a minha barriga. Ao abrir os olhos, uma sereia estava na minha frente, com uma reluzente cauda verde de peixe ao invés de pernas,

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e com enormes cabelos loiros dançando em volta de sua cabeça. Lembro-me bem de seus olhos, eles nunca saíram de minha mente. Eram grandes, negros e bondosos, e ela sorria para mim. Mas tudo foi tão rápido, minha filha, que hoje todas as lembranças não são totalmente nítidas em minha fraca memória. Porém, quando me dei conta, você havia nascido ali, naquela hora e embaixo do mar. Não sei por quanto tempo ficamos dentro da água, seu tio disse-me que o barco deu a volta e passou quase dez minutos à minha procura, já que a tempestade havia cessado de repente. E o mais estranho é que eu não sentia nenhuma falta de ar em meus pulmões. E pelo jeito você também não. A sereia a pegou no colo, beijou sua testa e você abriu os olhos para ela. Ela sorriu e depois entregou você a mim. E então, por fim, me ajudou a voltar para a superfície. Muitas vezes perguntei a seu tio se ele havia visto algo aquele dia no mar. Mas ele sempre negou. E durante muitos anos fui à praia com você, na esperança de voltar a ver aquela que a trouxe ao mundo. Ou, ao menos, de poder escutar novamente aquela música...

A mãe sabia que a filha de longos cabelos negros e de olhos tão cinzas quanto uma tempestade havia sido abençoada, de certa forma, com um dom que havia sido passado da sereia para ela, pois a garota contava com incrível capacidade visual embaixo d´água e conseguia prender a respiração por um longo tempo, bem maior que qualquer outra pessoa. Porém, Liban nunca chegou a contar para a mãe que algumas vezes em que se atrasava para voltar para casa e a noite chegava, de repente surgia em seus ouvidos uma música que parecia chamá-la, a qual parecia vir do mar e dizia o seu nome, atraindo-a para ele. Somente uma única vez, no dia da morte de sua mãe, Liban se sentiu impelida a ir atrás da música. Ela chegou a colocar os pés na beira-mar e estava pronta para também deixar aquele mundo. Talvez se afogar, se entregar para aquele oce-ano que ela tanto amava.

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As águas estavam rebeldes, seguindo os anseios de sua alma que chorava a partida da única pessoa que havia amado e que a havia compreendido. Revoltava-se com Deus, a mesma revolta que certo dia sua mãe igualmente havia sentido. Para ela, Deus estava morto, ou então nunca havia existido, pois não levaria de sua vida alguém tão bom como sua mãe, deixando em seu cami-nho alguém como seu tio.

Entretanto, Liban se confortou ao pensar que o seu corpo ao menos dançaria uma última vez naquelas deliciosas águas, emba-lada pelo abraço gélido e salgado do mar. Mas, então, uma luz prata e intensa surgiu a brincar nas ondas, e ela teve certeza de que era a sereia que viera buscá-la. No entanto, após um tempo, a luz partiu. E quem surgiu foi um golfinho, saltando solitário entre as espumas brancas das vagas escuras pela noite. E como que por algum encanto, o mar se acalmou.

O golfinho chegou bem perto da garota e a olhou no fundo de seus olhos acinzentados. E os dois compreenderam o inefá-vel. Liban soube ali que sua vida havia ganhado um significado. A sereia a havia presenteado. Um presente especial vindo das ondas. O presente era uma segunda chance. Ela iria viver! Viveria para aquela amizade. Liban viveria para aquele golfinho...

E é a partir daqui que prosseguimos. Nossa história começa dois anos depois, em uma noite quente de verão, quando a água do mar agradecia aos ventos mornos que sopravam da praia e ao luar prateado que a banhava. Em noites assim o inesperado costuma acontecer, pois nada melhor que o calor para prejudicar a prudên-cia e bagunçar os corações.

Os mares escondem não só muitos mistérios, como também muitas histórias. E é uma, dentre tantas, que será contada agora. Porém, não se melindrem, será uma em especial.

Afinal, essa é uma história contada através das lágrimas. Lágrimas derramadas por sereias...

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Julho de 855

Os portos estavam cheios e barulhentos. Todo tipo de co- mércio funcionava ali, e os navios chegavam abarrotados de mantimentos, joias, armas e tudo o que fosse possível negociar. O oriente produzia riquezas que não eram encontradas em outro lugar, portanto, era preciso ser ligeiro com a competitividade para conseguir um bom escambo.

O som era alto e confuso, tal qual uma Torre de Babel, porém, todos pareciam se entender, nem que fosse à base da mímica.

Ivar tinha acabado de chegar ao local e ainda estava a bordo de seu barco. Não gostava das regiões de comércio e se incomo-dava deveras com os olhares feios que costumavam lançar-lhe nesses lugares. Claro que não se atreviam a falar-lhe – sabiam o quanto isso seria perigoso –, mas o simples fato da ocorrência des-ses olhos inquisidores já era o suficiente para importuná-lo.

A noite estava quente e ele estava suando e arfando por baixo da roupa grossa de couro e pele. Não trouxera roupas mais frescas,

Capítulo 1

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pois não achava que iria para aquelas bandas. Seu comprido cabelo loiro se encontrava melado de suor e incomodava suas cos-tas quando roçava as pontas úmidas. E as duas mechas trançadas, mais compridas na frente, que cultivava há tantos anos sem cortar e já alcançavam sua cintura, estavam agora ameaçadas, já que Ivar estava a ponto de cortá-las, por não aguentar mais nada em cima dele que lhe fizesse sentir mais calor. Igualmente seu cavanhaque, sempre tão limpo e escovado, gotejava salgado e o fazia sentir-se nojento.

“Ragnar exagerou na porra de sua punição ao me mandar vir para cá. Sei que ele não gostou do que fizemos àquele mosteiro, achou que tinha sido uma manobra leviana demais ao não medir os percalços, ou a não traçar um plano de contra-ataque. Mas como eu poderia imaginar que o local estava guarnecido? E nós ainda perdemos nossos melhores homens... Isso não poderia ter aconte-cido... Que castigo dos deuses essa merda de ano está sendo para mim”, pensou ele.

Depois do último ataque à Britânia1, malsucedido, que ele e seu clã de guerreiros vikings desferiram, que acarretou não só na morte de muitos companheiros, como também na do irmão de Seawulf – seu melhor amigo –, seu chefe e tio, Ragnar, não o per-doara. Ivar há tempos era o segundo homem no clã, o braço direito de Ragnar, que comandava e tomava as decisões quando o tio não se encontrava. Tudo estava em suas mãos, e ele, no calor das emo-ções, fizera uma besteira. Não levara em conta que o mosteiro que eles atacaram estava em terras há muito guardadas pelo chefe tri-bal daquela região. Ivar sabia disso, mas o seu orgulho o traíra. Assim como sua vontade de pilhar também. E agora, sua puni-ção seria comandar uma frota comerciante a bordo de um knorr2, 1 Inglaterra.2 Barco mercantil escandinavo da época viking. Diferenciava-se do drakkar, pois

era mais curto e mais robusto e não possuía carrancas nas proas.

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até as áreas mais longínquas de comércio. E o pior, utilizando o perigoso mar aberto.

Se tivessem saído de Hedeby3, provavelmente pegariam sen-tido à ilha Rugen, penetrando Wolin, para depois navegar pelo rio Oder até sua nascente. Então, rebocando o barco até alcançarem o rio Danúbio, seguiriam o curso até desembocarem no mar Negro, e descendo a costa para chegar a Bizâncio4. Desse modo, a via-gem seria rápida e mais tranquila. Porém, eles não estavam na Dinamarca, e sim na Britânia. O viking tentou dissuadir o tio a permitir que eles descessem pelo rio Reno e depois seguissem com sua embarcação em terra firme até chegar ao mediterrâneo, par-tindo, então, para Bizâncio. Porém, somente para atormentá-lo e, principalmente, para puni-lo, Ragnar obrigou-o a ir por mar, con-tornando a Bretanha, o império franco, a Galiza e Astúrias e o ter-ritório mouro dos emirados omíadas árabes5, passando então pelo Estreito de Gibraltar até chegar ao Mediterrâneo, para só então seguir para Bizâncio.

Esta era uma viagem que nenhum guerreiro viking fazia, apenas os escravos e comerciantes escandinavos realizavam essa perigosa façanha. E Ivar havia ficado, além de aborrecido com essa ordem, temeroso.

Ao menos, ele pensava, não o obrigara a ir pela rota sueca, que, apesar de fluvial, era ainda mais arriscada do que por mar, já que eles desciam pelo rio Dniepre e enfrentavam não só corredei-ras fortíssimas – as sete corredeiras que possuíam nomes igual-mente amedrontadores: “O Devorador”, “A Força das Ondas”, “O Corcel”, “O Grito Grande”, “O Fosso da Ilha”, “O Risonho” e, por fim, “O Sempre Ruidoso” –, como também tinham que se defen-der dos possíveis ataques de piratas eslavos.

3 Importante cidade viking situada na Jutlândia.4 Atual cidade de Istambul.5 Hoje estes territórios correspondem à Espanha e Portugal.

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Sua frota já passara por diversas outras áreas mercantis e ele se recusara a sair do barco. Não gostava de gente estrangeira e sabia que sua gente também não era bem quista. E ainda se cul-pava deveras pelos acontecimentos recentes. Seu mau humor estava épico. A lembrança dos amigos e companheiros que caí-ram mortos ao seu lado na batalha ainda trazia-lhe sofrimento e remorso, mesmo sabendo que eles haviam tido a morte mais hon-rosa de todas: com a espada nas mãos.

Quando Ivar foi eleito o segundo homem de Ragnar, ele ainda não havia alcançado os quatorze anos e todos diziam que ele ainda era muito novo e inexperiente, mas Ragnar não dera ouvido e apostara no sobrinho com toda a confiança.

“E passadas nove primaveras, o que eu fiz? Quebrei essa confiança!”

Não bastava o aperto no peito que Ivar sentia desde a der-rota do último ataque, em que não pôde nem ao menos promo-ver um funeral digno e honrado aos guerreiros que lá morreram; agora, nessa região que aportaram, o calor o estava castigando e já começara a afetar sua mente. Sua indisposição ainda foi aumen-tada por conta da comida estragada que comera duas noites passa-das, quando não se deu conta da podridão em que se encontrava a carne de cervo. Amaldiçoou o imbecil que se esquecera de salgá-la direito, já que esse procedimento seria a única proteção do ali-mento contra o calor escaldante que fazia naquelas terras.

O viking sentia que a qualquer momento iria desabar ali, no chão da embarcação, tamanha fraqueza e vertigem que o aco- meteram.

“Não posso receber mais esse golpe. Mesmo que esses tripu-lantes não façam parte do meu clã, sei que as línguas são rápidas e ferinas, portanto não posso deixar que saibam como estou, ou me vejam nesse estado. Infelizmente terei que desembarcar para

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verificar se a terra firme me traz alguma melhora ou ao menos algum conforto.”

Ele sabia que se um comandante enjoasse no barco, achariam que os deuses estavam dizendo que ele não era capaz para aquele posto e assim poderia ser desafiado, até mesmo por algum escravo. Isso seria um dos motivos de maior desonra para um homem, e ele jamais permitiria que as coisas chegassem a esse ponto. Per-cebeu que com aquelas roupas não seria nada fácil aguentar sem desmaiar. Tirou o gibão adornado com pele de foca na goela e a cinta de couro que o prendia na cintura. Por baixo, usava uma simples camisa de linho, esgarçada e velha, e resmungou quando se deu conta que teria que sair assim. Ivar não gostava de andar malvestido, muito menos perante pessoas que ele não suportava, pois acreditava que uma aparência poderosa e altiva também era um importante mecanismo na arte de ser temido.

Entretanto, teria que ser desse jeito mesmo. Ele já havia per-dido muito líquido na viagem, e o calor o estava matando. Então deu ordens aos escravos e a seus subordinados e desembarcou.

Ragnar era dono de muitas posses, um grande chefe tribal de seu clã e possuía a maioria dos barcos vikings que Ivar já vira. Barcos pesqueiros, mercantes, e os mais importantes que eram para a guerra e a conquista. E de tudo o que era pilhado nos mosteiros e nas cidades as quais eles atacavam, Ragnar destinava uma parte para ser vendido, ou trocado, nos centros de comércio ao sul e a leste do mundo.

Além do calor causticante que fazia naquele porto, uma fina chuva deu o ar da graça, fazendo subir um vapor quente com um forte cheiro de madeira podre dos píeres. Ele não aguentava mais. Enquanto a chuva batia em seu rosto, trazendo-lhe uma sensação de frescor momentâneo, o calor que emanava do chão, aliado ao odor nada agradável da madeira e que agora ainda se misturara ao cheiro de lama, o deixava em um estado lastimável.

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Ele tentava se lembrar do nome daquela pequena cidade onde aportaram; Ivar sabia que era o porto após o de Roma – a cidade mais impressionante que ele já vira, com construções que acre-ditara serem verdadeiras obras dos deuses, arquiteturas impossí-veis de serem feitas por mãos humanas – e a leste da Grécia, mas sua cabeça não estava em condições de recordar nomes, mesmo o seu subordinado dizendo-lhe que aquela cidade vinha antes da impressionante Miklagard6, a “Grande Cidade”– o centro de comércio mais importante e famoso daquela época. Na verdade, Ragnar ordenara que ele fosse até lá, porém, Ivar agora se recusara e dera ordens aos seus subordinados para aportarem em qualquer porto menor, antes dessa grande cidade. Sabia que não aguentaria o barulho e a muvuca das multidões. Não agora quando precisava de uma autorreflexão. Ele nem ao menos aproveitara a viagem que fizera até ali. Ficara emburrado por todo o tempo e mesmo a visão das praias paradisíacas pelas quais seu barco passou não conseguiu aplacar sua ira e seu sentimento de culpa, até porque sua mente e seu ânimo não estavam para diversão ou para o deleite de imagens bonitas. Estavam em outro lugar, bem longe dali. No campo de batalhas onde seus amigos pereceram a seu lado, manchando com o vermelho do sangue deles a sua contundente culpa, por causa de suas ordens impensadas e impulsivas.

O viking não sabia que quando seus pés tocassem a madeira velha e falseante daquele cais, o seu destino seria selado para sempre...

6 Atual Turquia.

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