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1 Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF Instituto de Ciências Humanas – ICH Departamento de Ciência da Religião PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO 2º CICLO DO BACHARELADO INTERDISCIPLINAR EM CIÊNCIAS HUMANAS LICENCIATURA EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO E /OU BACHARELADO EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO

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Universidade Federal de Juiz de Fora UFJF

Instituto de Cincias Humanas ICHDepartamento de Cincia da ReligioPROJETO POLTICO PEDAGGICO

2 CICLO DO BACHARELADO INTERDISCIPLINAR EM

CINCIAS HUMANAS LICENCIATURA EM CINCIA DA RELIGIOE /OUBACHARELADO EM CINCIA DA RELIGIOJuiz de Fora, julho de 2011

Prembulo

A cincia tal qual a conhecemos hoje, produto relativamente recente na histria do mundo ocidental. Alm disso, foi aos poucos que ela se aproximou dos estudos sobre a sociedade humana. No incio, as cincias humanas procuraram copiar o jeito de se fazer conhecimento j consolidado naquelas reas que estudavam as coisas mais distantes, as coisas da natureza. bom lembrar que o auge dessa forma de conhecimento se deu no sculo XIX com o pensamento evolucionista. Naquele momento, a cincia aparecia como a mais sbia das formas de conhecimento, aquela que tiraria o ser humano das suas supersties e tambm dos devaneios metafsicos. Buscava-se, e acreditava-se ter alcanado, um saber exato. Nesse sentido, a cincia deveria se opor a todo pensamento que fosse mgico, mstico ou tambm religioso. A verdade deveria estar isenta de tudo aquilo que fosse subjetivo, daquilo que pudesse agradar os sentidos, como o belo, e tambm afastada das crenas e das veleidades polticas. nesse momento que a teologia, que nasceu na Grcia Antiga justamente como tentativa de compreenso dos mitos, descartada como saber intil. A teologia, envergonhada, se retirou do palco e ficou restrita dimenso dogmtica e formao do corpo sacerdotal eclesistico. Pouco, ou nada mais, tinha a dizer sobre o mundo cotidiano dos humanos. Nasce, ento, uma cincia das religies, buscando carona nas demais cincias e procurando compreender o religioso e a experincia religiosa como mais um objeto passvel de ser dissecado e analisado. Nas cincias da natureza tinha-se um certo consenso do valor das prprias descobertas, afinal, havia uma nica verdade. Durante todo o sculo XX, as cincias humanas, e entre elas as cincias da religio, posicionaram-se basicamente em duas grandes vertentes. Procuraram uma forma de validar seus conhecimentos por intermdio dos mesmos parmetros das demais cincias, ou, numa vertente oposta, buscaram dela se afastar, criando imagens sedutoras na tentativa de dar conta da realidade por meio de uma hermenutica. Portanto, essas cincias que buscavam sua legitimidade ficaram entre dois mundos. De um lado a busca objetiva de uma verdade nica. De outro, uma valorizao das subjetividades. A primeira foi, e ainda , criticada por no dar conta das riquezas do mundo humano. A segunda foi, e ainda , taxada de infantilismo pelos adeptos de uma cincia que se diz exata.(Guerriero, 2010, p. 55-56)Razo e intuio so as duas faculdades por meio das quais os indivduos orientam-se no mundo. Elas correspondem aos dois tipos de cincia: primeiro, a objetiva, discriminatria; segundo, a subjetiva, holstica. Os cientistas exatos inferem caractersticas internas de um objeto como base em seu exterior. Por exemplo, estudam a meditao examinando um determinado nmero de praticantes para verificar se e quando o exerccio mental causa ondas cerebrais do tipo alfa e teta, quanto tempo demora para o cido lctico do corpo diminuir, em quanto tempo a resistncia eltrica da pele aumenta, e assim por diante. Os cientistas no exatos aprendem a meditar e incluem suas experincias em seu trabalho acadmico.(Greschat, 2006, p. 143-144)A tendncia para a fragmentao, para a disjuno, para a esoterizao do saber cientfico tem como conseqncia a tendncia para o anonimato. A especializao generaliza-se: atinge no somente as cincias naturais como tambm as antropossociais, trazendo um vazio de subjetividade inerente a estas reas do conhecimento.

(Morin, 1999, p. 17)

SUMRIO

INTRODUO: LOCALIZANDO A CINCIA DA RELIGIO NO BRASIL...............................41.BREVE HISTRIA DO DEPARTAMENTO DE CINCIA DA RELIGIO E DO BACHARELADO EM CINCIA DAS RELIGIES......................................................................62. O OBJETO DO CURSO DE GRADUAO: RELIGIO - O QUE ISTO?..............................103. CINCIA PARA ESTUDAR RELIGIO - O QUE ISTO?........................................................15 3.1 Cincia (ou cincias) no estudo da Religio (ou das religies)..........................................16 3.2 A Graduao na UFJF: Cincia da Religio.......................................................................17 3.3 Cincia da Religio: Autonomia e Interdependncia.........................................................18

4 GRADUAO EM CINCIA DA RELIGIO: LICENCIATURA (E A QUESTO DO ENSINO RELIGIOSO)..............................................................................................................................27

5.GRADUAO EM CINCIA DA RELIGIO: BACHARELADO..........................................35

6. APRESENTAO DOS ASPECTOS GERAIS E ESPECFICOS DA GRADUAO EM CINCIA DA RELIGIO (Bacharelado e/ou Licenciatura).........................................................41 6.1 Objetivos Gerais da Graduao.........................................................................................41 6.2 Objetivos Especficos da Graduao (Bacharelado)..........................................................41 6.3 Objetivos Especficos da Graduao (Licenciatura)..........................................................42 6.4 Perfil do Ingressante/Egresso.............................................................................................42 6.5 Metodologias de Ensino/Princpios Didtico-Educativos...................................................43 6.6 Avaliao..........................................................................................................................45 6.7 Interdisciplinaridade/Interdependncia presente na Graduao em Cincia da Religio....45 6.8 Atividades complementares..............................................................................................46 6.9 Tecnologia na relao ensino-aprendizagem.....................................................................477.GRADE CURRICULAR E QUESTES ANEXAS.........................................................................48 7.1 Grade Curricular...............................................................................................................48 7.2 Padro de Oferta das Disciplinas........................................................................................49 7.3 Coerncia da Grade Curricular com o perfil/objetivos da Graduao em Cincia da Religio (2

Ciclo...........................................................................................................................................49 7.4 Turnos do curso...........................................................................................................................51 7.5 Aproveitamento de Carga Horria do 1 Ciclo..................................................................51 7.6 Carga horria (Bacharelado)..............................................................................................52 7.7 Carga horria (Licenciatura)..............................................................................................54 7.8 TCC do curso de graduao em Cincia da Religio..................................................................56 7.9 Ingresso de candidatos vindos de outros cursos ou instituies de ensino..................................60 7.10 Disciplinas eletivas/adicionais no oficiais......................................................................60REFERNCIAS BIBLIOGFICAS...............................................................................................62EMENTAS, BIBLIOGRAFIAS E PLANO DE ENSINO DAS DISCIPLINAS................................64INTRODUO: LOCALIZANDO A CINCIA DA RELIGIO NO BRASIL

No Brasil existem (2011) nove Programas de Ps-Graduao Stricto Sensu em Cincia da Religio, sendo trs alocados em universidades pblicas, duas federais e uma estadual (UFJF/MG, UFPB/PB, UEPA/PA). Quatro deles comportam Mestrado e Doutorado (UMESP/SP, UFJF/MG, PUC/SP, UCG/GO) e o restante (Mackenzie/SP, PUC/MG, UNICAP/PE, UFPB/PB, UEPA/PA) abriga apenas o Mestrado. H tambm Institutos de Ensino Superior (IES, adiante) que oferecem cursos de Especializao em Cincia da Religio (entre eles a UFJF), sendo que o nmero de Especializaes (com ou sem nfase em Ensino Religioso) de difcil mensurao, j que as IES os oferecem e os abrem conforme demandas particulares, locais ou sazonais. A primeira Ps-Graduao Stricto Sensu a surgir no Brasil, a da UMESP, na dcada de 1970, teve desde seu incio forte influncia da Teologia crist, nomeadamente protestante. A partir da dcada de 1990, particularmente, surgiram os demais cursos de Ps-Graduao, e o novo milnio tem presenciado o crescimento de tais Programas. Interessante notar que, ao contrrio das demais Ps-Graduaes, que geralmente nascem como desenvolvimento das Graduaes, os Programas de Ps-Graduaes em Cincia da Religio foram surgindo, no Brasil, independentes de graduaes na rea. Exceo foi o da UFJF, precedido de uma Graduao em Cincia da Religio. Contudo, atualmente, esta tendncia inverte-se. O nmero de IES, privadas ou pblicas, que oferecem a Graduao (Bacharelado e/ou Licenciatura) em Cincia da Religio vem crescendo no novo milnio cerca de 20 graduaes no Brasil, conforme pesquisa do Grupo de Pesquisa Educao e Religio (GPER), da PUC/PR, - respondendo, tal crescimento, no s a uma demanda reprimida de formao qualificada no teolgica para pessoas que almejam docncia em Ensino Religioso, a partir das referncias e suportes acadmico-cientficos que a Cincia da Religio proporciona, como tambm atendendo demanda de pessoas (com ou sem formao prvia) que necessitam, para suas pesquisas e atuaes profissionais especficas, dos conhecimentos e instrumentais acadmico-cientficos encontrados nos cursos de Cincia da Religio. Assim, as Graduaes em Cincia da Religio tem se firmado no Brasil, nos ltimos anos, atravs de uma crescente criao de novos cursos de Graduao que, inclusive, j tm gerado Ps-Graduaes, como no caso da UEPA/PA (2011). A criao de Graduaes em Cincia da Religio, portanto, visibiliza no s uma demanda por este curso, como a prpria legitimidade dele, sendo muitos criados dentro de IES pblicas, que entendem o curso como de carter acadmico e cientfico, no atrelado a pressupostos confessionais ou institucionais religiosos. Portanto, a Cincia da Religio vem se firmando, na Graduao, como curso laico, acadmico, no teolgico, que proporciona o estudo do fenmeno religioso, de seu campo, de suas expresses, a partir de paradigmas acadmicos que ultrapassam laos ou compromissos confessionais/religiosos ou que pleiteiem axiomas de verdade e juzos de valor sobre o objeto de estudo. Apresenta-se, contudo, nota singular no presente Projeto Pedaggico a dar criao Graduao em Cincia da Religio na UFJF. Antes foi a Graduao depois extinta que promoveu a Ps-Graduao em Cincia da Religio na UFJF; alis, diga-se, deu origem ao primeiro Mestrado e Doutorado no mbito da UFJF. Agora, o Departamento de Cincia da Religio entende que, no mbito das polticas do REUNI e da criao do Bacharelado Interdisciplinar em Cincias Humanas (1 Ciclo), afigura-se a oportunidade do ICH da UFJF oferecer, atravs do citado Departamento, a Graduao em Cincia da Religio (2 Ciclo do citado Bacharelado Interdisciplinar em Cincias Humanas), nas modalidades de Licenciatura e Bacharelado.

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BREVE HISTRIA DO DEPARTAMENTO DE CINCIA DA RELIGIO E DO BACHARELADO EM CINCIA DAS RELIGIES

A criao do Departamento de Cincia da Religio na UFJF deu-se em 27 de junho 1969. Desde seu incio, conforme justificativa para sua criao, entendeu-se que o Departamento deveria criar um curso de Cincia da Religio que possibilitasse o estudo sistemtico e aconfessional do fenmeno da religiosidade. A partir deste paradigma estruturou-se um plano curricular interdisciplinar, composto de disciplinas comuns, ou fundamentais, e de disciplinas complementares, ou instrumentais. Afiguraram entre as disciplinas fundamentais, por exemplo: Estudo Comparado das Religies, Sociologia da Religio, Psicologia da Religio, Teodicia e Filosofia da Religio. Como complementares estavam elencadas disciplinas como Introduo Filosofia, Sociologia, Antropologia Filosfica, tica, Psicologia Dinmica, Antropologia Cultural, Fundamentos da Civilizao Ocidental, Histria das Idias Polticas, Economia Poltica, entre outras.

Interessante observar que, atualmente, no Bacharelado em Cincias Humanas da UFJF (que antecede o 2 ciclo, que este Projeto apresenta para o Curso de Bacharelado e/ou Licenciatura em Cincia da Religio), algumas disciplinas que, no antigo plano curricular de curso de Cincia da Religio eram ditas complementares, esto presentes j neste 1 Ciclo de Bacharelado atual (como Introduo Filosofia, Sociologia, e outras equivalentes, como Tpicos Especiais de Poltica, Psicologia do Desenvolvimento, entre outras). Ou seja, atualmente, no Planejamento Pedaggico do 1 Ciclo (Bacharelado em Cincias Humanas), esto presentes disciplinas (ou similares) que, outrora, foram propostas como parte do curso de Cincia da Religio enquanto disciplinas auxiliares. Assim, tambm hoje se oferece a oportunidade de conjugao harmnica entre disciplinas de apoio ou complementares Cincia da Religio (oferecidas no 1 Ciclo) e disciplinas especficas da Cincia da Religio, a serem oferecidas especificamente no 2 Ciclo queles que optarem pela Graduao (Bacharelado e/ou Licenciatura) em Cincia da Religio.

Retornando histria, os nomes que o Departamento utilizou para sua identificao, e do curso a ser criado, variaram conforme as discusses epistemolgicas e metodolgicas em torno da compreenso acerca de cincia e de religio. No incio utilizou-se os termos Cincias das Religies para caracterizar o Departamento e o curso. Em 1974 surge, em atas, a nomenclatura Cincia das Religies. Apenas em 1989 eclode, em definitivo, a definio que permanece at os dias atuais: Cincia da Religio. Assim justificada, na ata de 04 de dezembro de 1989, a nova opo: pois religio no singular tem o forte significado de abranger a totalidade dos fenmenos religiosos que aparecem nas diversas religies (Livro 2 de Atas, p. 70).

Em 1970 o curso de Cincias das Religies, previsto, poca, na reformulao da UFJF (coincidentemente tambm hoje o presente Projeto Pedaggico de Curso de Graduao em Cincia da Religio insere-se, tambm, em momento de reformulao universitria, atravs do REUNI), teve sua aprovao no CEPE e, segundo Teixeira, tambm recebia, o curso, acolhida favorvel do Conselho Federal de Educao.

O Departamento, a partir de sua autonomia, em 1971, criou novas disciplinas, tais como Introduo ao Mundo Bblico I e II, Teologia Bblica I, II, III, IV, Teologia Sistemtica I, II, III, IV, Histria do Cristianismo I, II, III, IV. Percebe-se, por tais disciplinas e pela extenso de tempo de estudo dedicada a cada uma delas, que o Departamento percebia a Cincia da Religio, poca, ainda em uma perspectiva acentuadamente referenciada pelo cristianismo, qui pelo catolicismo, levando-se ainda em conta que seu corpo docente era formado, em maior parte, por sacerdotes ou leigos catlicos.

Seja por estas caractersticas, ou pela prpria tradio positivista da Academia no Brasil, avessa religio e seu estudo (Dreher, 2001, p. 154), a implantao do Bacharelado encontrou resistncias tanto em setores internos da UFJF como, tambm, no mbito eclesial catlico, mesmo a despeito de seu corpo docente ser preponderantemente ligado Igreja. A questo que a Igreja lanava suspeio sobre um Departamento e curso sobre Religio que no pudesse estar atrelado s diretrizes oficiais dela, Igreja, porquanto alocado em um ambiente laico e pblico, e com a autonomia que este ambiente costuma proporcionar.

O Curso de Cincia da Religio foi ento, na dcada de 1970, alvo de intenso e virulento debate, favorvel ou contrrio a ele, polemizado, tal debate, inclusive, na imprensa local e nacional. O resultado da polmica criada em torno do curso deu-se no fato de que houve um nico vestibular para o Bacharelado em Cincia das Religies, em 1976, redundando na formao de uma nica turma. Aps, o curso foi impedido de, frente, continuar a formar novas turmas, e teve o seu credenciamento cancelado.

O curso que, entrementes, veio a funcionar, mesmo em meio a tantas disputas e polmicas, tinha, em seu currculo integral, fixado para o Bacharelado em Cincia das Religies, 2.205 horas previstas (currculo aprovado pela Resoluo n 35/75 do CEPE).

Para se poder, a ttulo de exemplo, fazer uma comparao entre o curso de ento e o novo Bacharelado/Licenciatura prevista neste atual Projeto Pedaggico, elenca-se, a seguir, as disciplinas oferecidas poca pelo curso (complementadas com disciplinas do curso de Filosofia):

Ciclo Bsico:

Sociologia I

Civilizao Contempornea

Portugus I

Introduo Psicologia

Introduo Filosofia

Cadeiras Especficas:

tica I e II

Antropologia Religiosa

Sociologia VI

Introduo ao Mundo Bblico I e II

Hermenutica Bblica I, II, III

Cristologia Bblica

Escatologia Bblica

Cristologia Sistemtica

Eclesiologia Sistemtica

Histria do Cristianismo I, II, III, IV

Fenomenologia do Cristianismo I, II, III, IV

Estudo Comparado das Religies I e II

Psicologia da Religio

Filosofia da Religio I e II

Como se poder perceber, ao comparar as disciplinas do primeiro Projeto de Bacharelado, e as do atual Projeto, o curso criado na dcada de 1970 comportava um maior esforo na anlise do cristianismo, e bastante a partir de perspectiva teolgica (Eclesiologia, Cristologia). Contudo, tambm distanciando-se de um curso de Teologia, abria-se para uma compreenso mais plural sobre o fenmeno religioso e as religies, com disciplinas como Estudo Comparado das Religies, Antropologia Religiosa, Filosofia da Religio, Psicologia da Religio.

Entende-se, no mbito do presente Projeto, a importncia que este curso teve como pioneiro em universidades pblicas no Brasil. Oscilando entre um eixo mais cristo-teolgico, e outro mais plural enquanto estudo das religies e do fenmeno religioso de forma geral, o curso abriu novos caminhos para o estudo acadmico da religio, em meio a lutas e tenses internas universidade e externas a ela. Embora de vida curta, o curso representou tanto para o mbito acadmico, como para mbitos eclesisticos uma tentativa de se estudar, pesquisar e dizer religio para alm dos mbitos at ento conhecidos o da apologia teolgica das instituies eclesisticas, e o da crtica positivista da Academia brasileira. Assim, o curso veio a romper paradigmas solidificados (no sem os traumas e ciznias que tais rompimentos sempre acarretam), a propor novos locais e formas de se pensar e estudar religio, e a abrir caminho para a reflexo autnoma e interdisciplinar sobre o fenmeno religioso e sobre as religies.

Hoje vive-se novo momento. No que ainda no existam tenses e mesmo incompreenses sobre o lugar e a validade da Cincia da Religio na universidade, particularmente a pblica. As discusses epistemolgicas, metodolgicas e, muitas vezes, ideolgicas e corporativas, do-se no s no mbito referente Cincia da Religio, mas tambm em qualquer campo do saber que se queira honesto quanto ao pensar-se, formular-se e reformular-se. O fato que hoje a Cincia da Religio campo de saber consolidado no Brasil, estando presente tanto em Graduaes como, principalmente, em Ps-Graduaes, em um nmero significativo de universidades, inclusive pblicas. E, atualmente, com uma reflexo sobre si mais amadurecida (mas sempre em constante amadurecimento, em reflexo contnua sobre si), a Cincia da Religio proposta neste Projeto Pedaggico de Bacharelado e/ou Licenciatura, em sua grade curricular, prev um enfoque amplo e plural quanto a seu escopo especifico, isto , a(s) religio(es), propondo um leque de disciplinas extremamente abrangente, seja quanto s tradies religiosas a serem estudadas, seja quanto aos temas relativos religio ou que tm interface com ela, afora as disciplinas especficas de Pesquisa (Bacharelado) e de Formao Pedaggica e Didtica (Licenciatura).

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O OBJETO DO CURSO DE GRADUAO: RELIGIO - O QUE ISTO?Queria uma rvore que no desse conceitos. Queria abocanhar-lhe os frutos.(Marco Lucchesi)Qual o objeto especfico de um Curso de Graduao (Licenciatura e/ou Bacharelado) em Cincia da Religio? A Religio, bvia resposta. Mas o que Religio? No se estaria em um campo movedio e falacioso ao tentar-se definir religio? O que ela e a que ela se refere exatamente? Qual sua empiricidade para uma investigao da cincia ou, ao menos, para uma definio que se queira objetiva? No o termo em seus usos e abusos algo do foro ntimo, da subjetividade? Estas so perguntas e questionamentos que a modernidade, e particularmente as cincias (ou os paradigmas cientficos) brotadas da modernidade e tambm produtoras dela, fazem. So perguntas legtimas, embora norteadas por uma concepo de cincia e de entendimento do que seja um objeto de estudo que, em um debate mais aprofundado, podem ser relativizados, ou colocados em um parntesis histrico.Tem razo Greschat (2006, p. 17) ao advertir que a palavra religio como um labirinto. Seria ela a doutrina (ou dogmas) de uma determinada tradio de f, ou a teologia de certa confisso de f? Poderia ser mitos e ritos presentes nas culturas e povos? Seria a especulao metafsica sobre deus(es) ou espritos, ou sobre seres sobrenaturais? Ou seria a(s) histria(s) das relaes entre os seres humanos com seus cridos deuses? Poderia ser as revelaes e palavras dos deuses gravadas em livros sagrados? H os que defendem que ela a prpria sociedade vista em espelho enquanto regulada por tabus, moral e mitos. E h os que afirmam ser ela uma expresso do esprito a conduzir a histria e seu desenvolvimento. Seria a religio o conjunto de ideias fundadas em doutrinas e entes sobrenaturais a reger e moldar sociedade, pessoas, conscincias? Seria simplesmente o que cada um entende em sua f, subjetivamente, e ponto final? E neste ltimo caso, como definir f? Ou seja, neste campo, tantas vezes, a explicao dada a um termo pode levar a pedir contas de explicaes que devem ser dadas aos termos que explicam termos. Enfim, constata-se que: religio abrange toda uma famlia de componentes. Portanto, o termo religio precisa se referir a uma coleo de diferentes fatores, critrios e dimenses que, em seu conjunto, descrevem um quadro no qual a cincia da religio pode inserir seu objeto. No entanto, esse quadro no preestabelecido objetivamente, mas construdo por meio da atuao de cientistas da religio (Hock, 2010, p. 29). Ou seja, religio pode ser tudo o que est elencado no pargrafo logo acima, conquanto o recorte e definio dela como objeto de pesquisa especfica, em um tema religioso ou religio especfica, por exemplo, algo que cabe ao seu estudioso, o cientista da religio, ter a capacidade e habilidade de discernir e construir como objeto para sua pesquisa, j que a religio no se impe, em princpio, como evidncia ftica, mas se mostra envolvida nas culturas que, a um tempo, a manifestam e a ultrapassam. Seja qual for a explicao/definio que se d para o termo religio, que quer ser o objeto de um curso de Graduao em Cincia da Religio, fato que, de um jeito ou de outro, ela ()existe() - com ou sem aspas, conforme as opes epistemolgicas de cada pesquisador. Isto , o objeto existe, derivado ou no. Ela existe nas manifestaes culturais, nos smbolos, nos ritos, nas atitudes religiosas das pessoas, nas instituies com suas doutrinas. A religio manifesta-se no somente em nossa linguagem cotidiana, ela tambm considerada como um dado estabelecido no direito e na legislao. Com isso, religio mais que apenas som e fumaa uma realidade social, um processo de comunicao especfico que cria realidade e ganha forma real atravs de atos sociais (Hock, 2010, p. 30). Claro, em tudo isto, pode-se dizer, no est a religio propriamente em si, mas expresses suas, manifestaes empricas, tangveis, pictricas, simblicas dela, mas no ela mesmo. Outros ainda diro que apenas estas coisas a tal religio: fatos sociais empricos que existem a partir de subjetividades compartilhadas, ou no, e de olhares definidores de sentido para o mundo e para as pessoas. Mas, seja l como se interprete o que seja religio de forma funcionalista, reducionista ou fenomenolgica ela est a, nos gestos, expresses culturais, narrativas, guerras, cultos, festas, folclores, morais impostas ou propostas. E na conscincia de cada um, ou no. O ato de neg-la e rejeit-la no deixa de ser, ao avesso, o ato de reconhecer que ela existe, ainda que sendo uma falcia. Portanto, eis que, por caminhos indiretos ou diretos, ela a est. H objeto de estudo.

Embora seja sabido que no h consenso na definio deste objeto, to fluido e abstrato para alguns, to bvio e emprico para outros, prope-se, aqui, no para definir consenso, mas para oferecer um exemplo possvel ainda que provisrio, como ensaio, e conservador uma assertiva sobre religio: antes de tudo um pensamento estruturado, que explica o divino e o cosmos e implica uma Weltanschaaung [viso de mundo] (Ries, 2008, p. 17). Acrescenta-se a isto (ainda que esteja implcito na definio): estruturas sociais, culturais, simblicas, que podem ser tanto investigadas empiricamente, quanto fenomenologicamente. Entretanto, nesta definio que serve apenas de exemplo, a bem de aparar arestas, alguns comentrios crticos se fazem necessrios, no sentido de problematizar conceitos. Pode ser um pensamento estruturado, mas tambm fluido, catico, em transio. Talvez seja mais justo dizer: um imaginrio, fruto de experincias religiosas particulares ou coletivas, que pode ser estruturado, ou estar na ebulio de constantes trnsitos. Nem sempre explica o divino, mas se refere ao sagrado seja l como este for interpretado ou explicado -, ou a coisas sagradas, ou a sentidos pessoais ou coletivos que tm como fonte elementos que se percebem para alm da experincia cotidiana, prosaica ou profana. Mas, o que mais interessa na definio acima, o Weltanschaaung (viso de mundo). Ou, talvez, um conceito equivalente: sistemas de referncia. Seja em que nvel for esta viso de mundo, religio elemento de compreenso e explicao do mundo, da vida, da dor, da esperana, do nascer, do morrer, do viver. Seja bem estruturada esta compreenso, suspeitada, vivida e definida a cada momento, ou sentida de forma catica ou linear. Mas deste Weltanschaaung, ou dos sistemas de referncia, emergem festas, lutos, lutas, poltica, guerra, paz, morte, vida, condenao, perdo, alegria, paz, angstia, medo, moral ou tica. Emerge um mundo. Com isto, claro, no se est a dizer que a religio , necessariamente ou fundamentalmente, o elemento a definir vidas, sociedades e mundo. Mas ela no somente coadjuvante. Ela, em sua multivariedade de faces, pode ser (e , tanto no nvel do imaginrio como da empiricidade em que ele pode ser convertido), influenciada e estruturada por elementos sociais no necessariamente de sua ordem interna (supondo que exista uma ordem interna intangvel religio). Mas tambm influencia e estrutura o social, a vida, a partir de sua suposta ordem interna. Aqui est um pouco de sua dialtica, e da dificuldade em decifr-la.

Assim, economia, processos sociais e polticos, entre outras coisas, podem desenhar rostos da religio, ou mesmo defini-la (?). o debate inevitvel: religio como viso de mundo derivada ou inderivada? Diriam os adeptos de armistcios: derivada em suas expresses socioculturais, mas inderivada em um ncleo basilar, o da experincia possivelmente universal dela, do sagrado, do que toca de forma incondicional experincias humanas particulares ou coletivas. Mas, sabe-se, este armistcio pode ser artificial: no h consenso, efetivamente, em se aliar interpretaes que se querem, propositalmente ou no, dspares. Como ficaria, ento, uma cincia sem um objeto que seja, para ela, elemento consensual? Ora, cabe assim aos que estudam religio seja como interpretem o termo e o existir do objeto (com ou sem aspas, como se desejar) justamente a tarefa de, sob investigao e pesquisa, buscar conhecimento sobre este objeto. Ou resta-nos dizer com o poeta Antonio Machado: Caminante, son tus huellas el caminho, y nada ms; caminante, no hay caminho, se hace camino al andar. no caminho que se faz cincia. A Cincia da Religio, j a caminho desde o sculo XIX, aposta e sustenta - que, caminhando, encontra-se, de um jeito ou de outro, o objeto. E no seria toda cincia, a priori, uma aposta em descobertas? Enquanto se caminha em cincia para se definir, no caminho e sob caminhada, o objeto, recomenda-se, efetivamente, renunciar a uma definio do termo religio (...) isso vai ao encontro da tendncia observada tambm em outros cientistas da religio a deixar a questo em aberto, em definir a religio como conceito aberto (Hock, 2010, p. 27). Assim, religio permanece como objeto, pois a falta de consensos a respeito de algo no exime este algo de ser um objeto real e investigvel, embora isto imponha problemas para o mtodo de investig-lo, advogando-se, entre alguns, a impossibilidade de um mtodo nico de investigao, ou de uma cincia (o que ser explanado a seguir). Para tentar dirimir ou amenizar este problema (relao objeto/mtodo/cincia), se for desejvel preservar a autonomia da pesquisa da religio como disciplina cientfica, talvez seja preciso estabelecer no necessariamente uma definio estreita, mas pelo menos uma caracterizao aproximativa de religio (Hock, 2010, p. 27). Entende-se, portanto, que definies aproximativas de religio podem e devem ser oferecidas como a de Rien, apresentada e revista neste Projeto -, desde que problematizadas no curso da pesquisa e sempre consideradas como, a um tempo, operacionais e, tambm, provisrias, ou aproximativas. Isto, na interpretao esboada neste Projeto, corresponderia a um conceito aberto sobre religio, o que no poderia ser confundido com conceito nenhum sobre religio. 3

CINCIA PARA ESTUDAR RELIGIO - O QUE ISTO?Para apalpar as intimidades do mundo preciso saber: o esplendor da manh no se abre com faca.(Manoel de Barros)Da(s) possvel(eis) definio(es) sobre religio, automaticamente j entrou-se, por fora do que aqui o Projeto, na(s) definio(es) de cincia. Tempos atrs religio cabia competncia da Teologia to somente (ela, tambm, envolta em discusso sobre sua cientificidade, quando a queria reivindicar). Mas, enfim, estudar religio, neste caso, no causa(va) maiores celeumas, ao menos no meio acadmico civil. Afinal, seu estudo (da Teologia) ao menos no Brasil (era?) restrito a ambientes fora da Academia civil e pblica, e com interesses especficos institucionais.

A Cincia da Religio, entretanto, no Teologia. No pretende partir de um pressuposto qualquer de f ou doutrina para estudar uma religio especfica, ou o fenmeno religioso. Quer ser uma cincia e, neste sentido, se alinha concepo ideal moderna de cincia: neutra e sem axiomas de valor; fundada na anlise, verificao, comparao, reflexo autnoma, e, se possvel, resultados teis comunidade universal, e no a um grupo especfico. A Cincia da Religio , assim, uma cincia que surge no bojo da modernidade, e, diga-se, de uma modernidade positivista, evolucionista e areligiosa, tendo, em tempos modernos, o conceito Cincia da Religio surgido, pela primeira vez, na pena de Max Mller (1823-1900), professor da Universidade de Oxford. Portanto, nada h de religioso no surgimento da Cincia da Religio. Contrapunha-se ela, de certo (ou de todo) modo, Teologia.

E porque uma cincia para estudar religio? Haveria fundamento nisto? Religies so estudadas, na modernidade acadmica, por disciplinas j consagradas: pela Sociologia, Antropologia, Filosofia, Psicologia, Histria, etc. Cada campo do saber, ou disciplina acadmico-cientfica, a tem visto, analisado, perscrutado, julgado por seu ponto de vista especfico, dependente de sua metodologia e episteme. E, por isso mesmo, sempre se uma viso bastante parcial e fragmentria da religio, embora legtima (a partir da metodologia de cada disciplina) e relevante. O diferencial de uma Cincia da Religio justamente (tentar) buscar uma viso holstica a partir da interao entre as vrias disciplinas que investigam a(s) religio(es). ousar ver e interpretar - seu objeto como uma totalidade, mesmo em meio s suas especificidades. Ao menos este o ideal (Greschat, 2006, p. 24). Romantismo e ingenuidade cientfico-acadmica? Mas o que seria da cincia (qualquer uma) sem o traar metas ideais, pontos fulcrais a que se pretende chegar? Pode-se at fracassar ao final, mas seria covarde e injusto abortar qualquer projeto de cincia, em seus ideais, alegando-se idealismo. Seria mesmo negar a cincia como esforo por mtodo, por clarear-se a si mesma epistemologicamente.

3.1 Cincia (ou cincias) no estudo da Religio (ou das religies)

Lus Felipe Pond (2001, p. 64) afirma que a questo epistemolgica em Cincia da Religio complexa, sem que algum tipo de contrato epistemolgico venha a resolver o problema. , de certo modo, constatao e previso pessimista. Este Projeto reconhece esta dificuldade, mas renuncia renncia por busca de contratos epistemolgicos, ou, a bem de dizer melhor, ensaios de propostas que visem um cho comum mnimo em que se possa pisar com alguma segurana, consensos mnimos, mas detentores de alguma estabilidade, se possvel. Estes consensos mnimos no querem, de forma alguma, adquirir estatuto de verdade quanto questo, ou modus operandi ideal, ou epistemologia acabada para o curso que este Projeto apresenta. Consensos mnimos tm, justamente, esta funo: o de ser referncia bsica, um ponto de partida que se apresenta para um Projeto que se queira executar. Referncia esta que pode conter, em si, contradies e idiossincrasias, mas que no por isto deixa ser referncia mnima legtima, pois contradio e idiossincrasia, alm de serem comuns vida humana, tambm se apresentam s compreenses e auto-compreenses cientficas, que, a partir do paradigma desenvolvido por Karl Popper, precisam estar cientes da falsificabilidade enquanto critrio de juzo fundamental para caracterizar teorias (e a prpria compreenso de cincia). Assim, conhecimento/cincia se mostra sempre em sua forma conjetural.

A primeira dificuldade que se encontra para averiguar questes relativas Cincia da Religio se revela na prpria nomenclatura da rea/cincia(s) da(s) religio(es), que longe de ser um detalhe, muito diz complexidade da questo: Cincias da Religio, Cincia da Religio ou Cincias das Religies?

A Cincia da Religio (no singular) costuma ser compreendida como o projeto de uma cincia que unifique/sistematize vrias disciplinas para uma abordagem cientfica da religio; ou que crie, a partir de vrias disciplinas, um mtodo especfico seu. Ainda no conceito de Cincia da Religio, a religio, estando no singular, revela que pode ser entendida de forma substancial, e no apenas como expresses humanas puramente sociais/funcionais, ou derivadas delas, como o plural religies pode sugerir. Trataria-se de estudar no as religies, mas a religio presente nas religies, em abordagem hermenutica. O singular para cincia tambm revela: um mtodo e uma determinada epistemologia. Porm, nem sempre Cincia da Religio, no singular, aponta para um conceito/projeto de aura fenomenolgica, por exemplo. A expresso Cincia da Religio, conforme Frank Usarski (2004), no conduz necessariamente a uma abordagem fenomenolgica.

A conceituao Cincias da Religio, por sua vez, deixa intacto um conceito de religio (no singular) que tende a apontar o objeto com, at certo ponto, independncia das mediaes sociais/humanas: um numen, ou sagrado, prximo s concepes de Rudolf Otto e Mircea Eliade, que se manifestaria historicamente nas sociedades, mediado pelas culturas. Contudo, o plural para cincia parece abrir mo da inteno de se evocar um mtodo para a aproximao ao objeto, advogando a pluralidade (e independncia, por suposto) de mtodos e da interdisciplinaridade - para a anlise do objeto, sem que necessariamente as cincias, em suas particulares vises sobre o objeto, dialoguem com vistas a algum tipo de sntese de observao ou pesquisa.

Seguindo uma tendncia at agora isolada no Brasil, o Programa de Ps-Graduao da UFPB/PB se intitula de Cincias das Religies. Ao se referir religio no plural, observa-se ao menos teoricamente, conforme a opo de nomenclatura assumida - uma recusa a entender a religio como, de alguma forma, uma experincia comum a todos e independente, extra nos. A nomenclatura aponta para a ideia de que s se pode estudar as religies em sua variedade de formas sociais/culturais, devendo assim ser consideradas elas (como produes socioculturais), no correspondendo, as religies, a expresses culturais e sociais de um suposto sagrado comum a todas as religies.3.2 A Graduao na UFJF: Cincia da Religio

A nomenclatura que proposta, para a Graduao referida neste Projeto, a de Cincia da Religio, no singular. Contudo, em um primeiro momento, o motivo de se eleger esta terminologia no singular ultrapassa as questes epistemolgicas ou metodolgicas acima expostas. Entende-se que no corpo docente do Departamento de Cincia da Religio da UFJF (2011) existem variadas concepes sobre a epistemologia e diversidade de competncias metodolgicas quanto ao estudo da religio, e quanto compreenso do que seja religio, e mesmo do que seja cincia. Mas tambm no assim em reas/cincias j consolidadas na Academia no mundo e no Brasil, j de longa data? Na Psicologia o conceito de Psique e de suas funes encontra, acaso, conceito uniforme? A Sociologia encontra armistcio e consenso ao conceituar processos sociais e desenvolvimento das sociedades e histria ao, por exemplo, usar como referncia conceitual para os processos sociais, autores to dspares como Marx e Weber? Enfim, tal questionamento poderia se estender a outras cincias/campos de saber. Inclusive para as cincias ditas hard: o conceito de Fsica (de suas operaes/leis no universo e no ser humano) encontra coincidncia total entre Newton e Einstein?

Assim, a escolha do termo Cincia da Religio, no singular, para a Graduao, cumpre, entre a saudvel pluralidade de interpretaes e opes epistemolgicas possveis encontradas, um papel tradicional: estar em acordo e ligao com o termo j consagrado e presente no Departamento de Cincia da Religio da UFJF. 3.3 Cincia da Religio: Autonomia e InterdependnciaPara Filoramo e Prandi no pensvel que um simples estudioso tenha a pretenso de orientar-se com igual domnio nos diversos campos disciplinares que formam as atuais cincias das religies (1999, p. 6). Quereria a Cincia da Religio produzir um super-acadmico, supra-disciplinar em competncias e operacionalidades? No se trata de tal ousadia. Contudo, algumas questes devem ser clareadas.O presente Projeto, no que tange compreenso sobre o que Cincia da Religio, visa ultrapassar paradigmas que no se entendem em caminhada conjunta ou holstica, ou ao menos sistematicamente dialogal, em um curso de Graduao em Cincia da Religio. Filoramo e Prandi (1999) talvez contribuam para a percepo de um quadro s vezes esquizofrnico em Cincia da Religio (que aqui pretende-se superar) ao nomear a medida de tenses e polmicas evidenciadas na oposio de duas escolas distintas: explicao e compreenso. A escola da explicao, em cujo nicho estaria as cincias sociais e da mente, trataria a religio de forma emprica to somente, como, a exemplo, manifestao scio-antropolgica ou psquica, e redutvel a ser explicada em suas funes e estruturas em relao ao meio social ou s predeterminaes psquicas, como seu produto. o que aponta com clareza, quanto s Cincias Sociais, Paula Montero (1999, p. 329): Os fenmenos religiosos interessam-me, no como um campo em si mesmo de investigao, mas como via de acesso compreenso da sociedade brasileira. Aqui est, grosso modo, o caminho da explicao, ou seja, no considerar a religio em si, mas de forma funcional em relao sociedade, ou a outro elemento exterior prpria religio. O que se estuda, a partir deste paradigma, a sociedade, ou a psique, ou a luta de classes, ou o mercado, etc. Porm, uma investigao que se referisse ao objeto religio apenas para comprovar um objeto no religioso no seria, do ponto de vista da Cincia da Religio, uma pesquisa (Greschat, 2006, p. 39). Esclarecendo: no seria uma pesquisa de/em Cincia da Religio. Ou, em outras palavras, para analisar, via religio, outros objetos ou campos de pesquisa que no a prpria religio - enquanto concebida como objeto fulcral de investigao - ento seria mais honesto, e prtico, simplesmente, por exemplo, uma rea de pesquisa, em um Departamento de Psicologia, de Psicologia da Religio; uma, no Departamento de Histria, de Histria das Religies; uma, no Departamento de Cincias Sociais, de Cincias Sociais da Religio; e assim adiante. Mas Cincia da Religio, conforme aqui compreendido, mais que isto.J o plo da compreenso v nas religies certa autonomia em relao s suas expresses scio-histricas. Assim, a religio tambm diz a si mesma, e no somente a coisas diferentes, como pressupe a escola da explicao. Filoramo e Prandi (1999) defendem a ideia a comear pelo ttulo do livro que escrevem de que esta tenso entre dois modelos deve ser diluda por um modelo de integrao, no pluralismo metodolgico, em que cada disciplina (de vis explicativo ou compreensivo) resguarde, no seu interior, os seus prprios pressupostos metodolgicos e de cientificidade. Prope as Cincias das Religies como campo disciplinar, dinmico em dilogos entre as disciplinas. Portanto, no uma justaposio ou sincretismo metodolgico. Mas uma confederao que resguarde a autonomia (as leis metodolgicas internas) das disciplinas.

Os autores falam de uma autonomia relativa da religio, ou seja, existiria sim uma linguagem religiosa a perpassar as religies, um fio comum, certa auto-regulamentao. Contudo, o acesso do estudioso em relao s religies histricas. So estas a que ele teria acesso, e no a uma suposta religio essencial. Enfim, o que se estuda so as mediaes culturais de certa estrutura simblica sempre presente. a isto, de fato, a que o pesquisador tem acesso, o seu possvel. Portanto, importa no privilegiar nem uma abordagem que se queira descobridora de uma religio substancial, nem a que vise s as funes da religio na sociedade e cultura, ou psique. Mas fazer estas duas perspectivas dialogarem criativamente e polinizaram-se, ainda que no se proponha um sincretismo metodolgico. Frank Usarski (2006), por sua vez, define a Cincia da Religio como cincia autnoma, em que os pesquisadores compartilham suas convices tericas em um conjunto de postulados consensuais. O que se pergunta a que ponto a proposta de Filoramo e Prandi prev este conjunto de postulados consensuais, pois que faz as cincias dialogarem, mas parece no prever um background de postulados consensuais em que se fundaria uma Cincia da Religio auntnoma a ser regente, e no regida. Joachim Wach (1990), por sua vez, postulava uma Cincia da Religio em que as cincias empricas e as cincias apriorsticas (Fenomenologia, Teologia), pudessem conviver num casamento de contrrios dentro de uma mesma casa, a casa de uma Cincia da Religio. Neste sentido Usarski (2006) chama a ateno para a Cincia da Religio enquanto metareflexo, por seu prprio carter tensional entre as tendncias reducionistas e as fenomenolgicas.

Wach se distancia da perspectiva de uma rea de estudos (composta de diferentes cincias) para a perspectiva de uma metodologia de estudo, ou melhor, uma cincia, da religio, que se utiliza de vrios enfoques sem ser refm de nenhum, ou sem vassalagens exclusivas e s eventualmente dialogais. No que Wach faa uma salada mista. A autonomia de cada cincia continua em suas anlises, mas uma autonomia relativa que serve a um objetivo maior, dialogal, dialtico e holstico. Para tanto Wach prope uma Cincia da Religio que seja descritiva e hermenutica, que una abordagens explicativas e compreensivas. Colin Campbell, ao apontar para a orientalizao do Ocidente (1997), chama a ateno de que, neste volver de paradigmas, o binmio sim ou no d lugar ao modelo sim e no. Isto , usufruir do paradoxo e harmonizar os contrrios. No caso o presente Projeto entende que a interdisciplinaridade, em Cincia da Religio, se proporia a uma interdependncia entre cincias/reas do saber, visando uma cincia autnoma ou um projeto em comum de cincia. Posto que o conceito simples de interdisciplinaridade no necessariamente se efetiva em novo rosto de uma cincia, mas o conceito de interdependncia de cincias como regente da interdisciplinaridade aponta o esforo de um dilogo que se quer mais do que circunstancial, mas constitutivo de laos de saberes que visam criar uma nova compreenso, interdependente, para a constituio de uma cincia autnoma (e autnoma porquanto dialeticamente interdependente entre cincias, e no um simples agregado delas).

Entende-se que a Cincia da Religio deve superar a diferenciao/dualismo de semnticas (como compreenso versus explicao), e, superando dicotomias, fazer com que reas de saber especfico sobre a religio no se isolem, mas se permeiem, no necessariamente em alguma sntese metodolgica ou de resultados, mas ao menos em uma abordagem sobre a religio que se queira holstica ou interdependente. A grade curricular de disciplinas, constada neste Projeto, quer apontar justamente para tanto. Ou seja, as vises especficas de cincias especficas sobre a(s) religio(es) esto alocadas no 1 Ciclo (Bacharelado em Cincias Humanas), como, por exemplo, Antropologia da Religio, Psicologia da Religio, Filosofia da Religio, Histria da Religio, Fenomenologia da Religio, Sociologia da Religio. Assim, o 1 Ciclo, em sua prpria formatao de acesso a um conhecimento/formao geral e interdisciplinar na rea de Cincias Humanas, cumpre o papel de apresentar aos educandos as vises especficas de cada cincia sobre a religio. As disciplinas do 2 Ciclo, por sua vez, cumprem papel diferente, embora em ntima relao com as do 1 Ciclo, e devedoras delas: a de apresentar, em seus eixos e ncleos temticos, a anlise das tradies religiosas e de temas interfaciados com a religio a partir no de uma cincia especfica (como poderia-se fazer, por exemplo, uma Psicologia do Budismo, ou Sociologia do Budismo, ou ainda Histria do Budismo), mas a partir de um planejamento ementrio e bibliogrfico (e de plano de ensino) que busque uma abordagem sobre o Budismo, por exemplo, ou sobre Ps-Modernidade e Religio, referenciados por viso que contemple a multifacetada riqueza de aproximaes ao tema de estudo. Isto vivel e justificado na medida em que o presente Projeto no apresenta uma Graduao em Filosofia da Religio, ou em Sociologia da Religio, mas uma Graduao em Cincia da Religio, com toda a carga de interdependncia e viso do todo, no estudo da religio, a que deve se comprometer uma interdisciplinaridade que se proponha como interdependncia entre cincias e que se queira com objetivos e compromissos em relao a uma viso holstica, a assim prefaciar e moldar um curso de Cincia da Religio. Portanto, desse modo, tambm a pergunta pela preferncia de uma compreenso mais substancialista ou mais funcional de religio passa a segundo plano, tanto mais que preservada a possibilidade de articular os dois conceitos (Hock, 2010, p. 29). Evidentemente que, com isto, no se quer anular a formao e competncia especfica daqueles que, como docentes, vo gerir as disciplinas do 2 Ciclo. No se quer, e mesmo se pode e no se deve, abstrair as nfases que cada docente traz em sua formao especfica, e leva sala de aula ou pesquisa. O que se pleiteia um esforo para que o curso de Graduao em Cincia da Religio seja gerido, em planejamento pedaggico e atuao em sala de aula e pesquisa, a partir de um pano de fundo que no se atenha stricto sensu cincia especfica de formao do docente. Conforme Dierken, o pensamento religioso, a descrio analtica da religio e a reflexo conceitual-categorial sobre a religio so atividades imemoriais. J a diviso segundo diferentes disciplinas da ocupao cientfica com a religio, junto com suas respectivas pretenses concorrentes entre si, um fenmeno da modernidade (2009, p. 9). No se trata de olvidar ou tentar anular o seccionamento que a modernidade trouxe ao criar e conferir cada vez mais especialidades especficas aos estudos, s cincias, enfim, investigao sobre o mundo. Trata-se, contudo, de ensaiar novos paradigmas, que busquem relativa superao deste seccionamento algumas vezes corporativo e de interesses alheios boa cincia -, visando um discurso/anlise sobre a religio que esteja para alm de compartimentaes e corporativismos epistemolgicos. Nas palavras de Greschat (2006, p. 24), religio como totalidade torna-se um divisor de guas entre cientistas da religio e outros cientistas que se ocupam apenas esporadicamente da religio.

Talvez boas ilustraes para o que aqui o Projeto apresenta sejam as imagens da orquestra e a do rio. Em uma orquestra h vrios tipos de instrumentos, cada um com sua funo, seu som, sua tcnica, sua contribuio especfica para a execuo de uma msica. Mas quando se ouve a orquestra em atividade, com todos seus recursos instrumentais, no se ouve o violino, a flauta ou o trombone. Ouve-se a msica, fruto da harmonia dos instrumentos tocados a um tempo. Sim, a msica feita de sons diversos, como os do violino, flauta e trombone. Claro que eles tambm podem ser (e so) ouvidos em suas especificidades. Sem eles no h msica. Mas, quando se ouve, ouve-se a harmonia, ou melhor, aquilo a que chamamos msica. Ao menos este o objetivo de uma orquestra composta de vrios instrumentos: executar algo que seja msica e que, no caso da orquestra, no se faz como solo. Enfim, o que se pleiteia neste Projeto? Que se oferea aos educandos a execuo da msica, isto , o todo, composto de partes, claro, mas que se possa oferecer a imagem orquestrada. Ou seja, uma cincia que, composta de muitas, tenda ao ensaio de unidade, como a msica da orquestra com sua diversidade. A Cincia da Religio precisa ser concebida como um ponto de interseco de vrias subdisciplinas e matrias auxiliares (Usarski, 2006, p. 15). Isto , Cincia da Religio como ponto fulcral de dilogo, de interseco, e no simplesmente como rea de encontros fortuitos de interdisciplinaridade, senda ela mesma, a Cincia da Religio, coisa alguma, mas apenas praa de encontros, e de disputas. Conforme Japiass (1976, p. 74), o espao do interdisciplinar, quer dizer, seu verdadeiro horizonte epistemolgico, no pode ser outro seno o campo unitrio do conhecimento. Jamais esse espao poder ser constitudo pela simples adio de todas as especialidades nem tampouco por uma sntese de ordem filosfica dos saberes especializados. Sem querer a simples adio disciplinar, em uma espcie de enciclopedismo, ou pleitear uma sntese geral e ou sistema de cunho filosfico, este Projeto entende a Cincia da Religio como um rio caudaloso, formado por vrios afluentes. As guas dos afluentes esto todas presentes neste rio, rio que no os afluentes, mas um outro rio que se torna rio devido aos afluentes, rio independente e forte, e forte e independente justamente por ter recebido gua de vrios afluentes que, ao se encontrarem, vo produzindo este rio em sua independncia. Esta a dialtica desejada. Assim, interdisciplinaridade necessita superar um mero agrupamento descompromissado de cincias em que cada qual, nos encontros da/na gora interdisciplinar, faz seu discurso de forma indiferente s demais, pois que a caracterstica central da interdisciplinaridade consiste no fato de que ela incorpora os resultados de vrias disciplinas, compara, julga e promove a integrao das mesmas (Japiass, 1976, p. 75). Assim, postula-se aqui interdisciplinaridade como interdependncia entre as cincias, sem que com isto se postule metodologias e concluses unificadas, como em um totalitarismo epistemolgico. Se, por um lado, a exemplo, as cincias do social asseveram que a religio, para suas metodologias especficas, mostra-se e a isto a que se tem acesso sempre em, com e sob formaes socioculturais, elas, em reverso, no tem ou reivindicam acesso direto ao sentido religioso subjetivo, que se operacionaliza em formas scio-culturais. Para tanto caberia lugar fenomenologia, ou mesmo a uma teologia no confessional, o perscrutar e racionalizar o sentido religioso (Dierken, 2009, p. 22-23). nesta ambivalncia, troca e visada de fronteiras que um curso de Cincia da Religio se encontra: em estudar a religio em todas as suas derivaes possveis, em uma abordagem que antes privilegia a busca de snteses interpretativas ainda que necessariamente provisrias e dialeticamente reversveis - do que narrativas cientficas isoladas sobre o objeto de pesquisa. Ainda citando Dierken (2009, p. 41): a religio tem a ver, manifestamente, com a dinmica carregada de tenses entre a tendncia para o todo e a acentuao de um elemento prprio ou peculiar inderivvel: o lugar da religio so as passagens de fronteiras entre estes dois aspectos. No se pleiteia - preciso que fique claro - abolir fronteiras metodolgicas e epistemolgicas que esto presentes no estudo da religio. Mas, tomando por emprstimo o exemplo e a realidade da Unio Europia (UE), pleiteia-se possibilitar um Espao Schengen entre elas, de livre circulao epistemolgica. Como no caso da UE e do citado espao, Frana Frana, e Alemanha Alemanha, assim como seus cidados tm suas respectivas nacionalidades e os pases suas respectivas autonomias. Mas, os Estados signatrios do acordo aboliram as fronteiras internas a favor de uma fronteira externa nica. Parafraseando o exemplo para a Cincia da Religio, trataria-se de um esforo em que as fronteiras epistemolgicas presentes nas vrias cincias que analisam a religio cederiam espaos, em si, umas s outras, possibilitando enriquecimentos mtuos e o ensaio de um modelo autnomo de Cincia da Religio. E autnomo enquanto e porque permeado de interdependncia entre diferentes reas do saber em suas vises sobre religio. Esta seria a dialtica da autonomia paradoxalmente marcada pela heteronomia em Cincia da Religio. A concepo de Japiass (1976, p. 31-32), em que interdisciplinaridade mais que um aglomerado de cincias, mas dilogo de interao interdependente, til como ilustrao:Longe de ns, porm a idia de apresentar o interdisciplinar como panacia cientfica ou como empreendimento dissociado das caractersticas sociais e intelectuais da comunidade dos pensadores. Assim, os encontros entre especialistas no sero considerados como simples trocas de dados, pois nossa inteno no a de chegar a um empirismo compsito, codificado para fins de ensino. Pelo contrrio, esses encontros sero considerados o lugar e a ocasio em que se verificam verdadeiras trocas de formaes e de crticas em que explodem as ilhas epistemolgicas mantidas pela compartimentao das instituies ainda s voltas com as fatias do saber em que as comunicaes entre especialistas reduzem os obstculos ao enriquecimento recproco, em que os conflitos, o esprito de concorrncia e de propriedade epistemolgica entre os pesquisadores devem ceder o lugar ao trabalho em comum de busca, de interao entre duas ou mais disciplinas, de seus conceitos, diretrizes, de sua metodologia, de sua epistemologia, de seus procedimentos, de seus dados, bem como da organizao, da pesquisa e do ensino que dela possam recorrer.

Definindo resumidamente a Cincia da Religio para a compreenso aqui advogada, este Projeto ora apresentado entende que a definio de Dierken bastante apropriada para o que se deseja oferecer com a Graduao em Cincia da Religio: Na ptica da cincia da religio, as seguintes [caractersticas]: a epoch quanto convico de verdade; o uso de mtodos emprico-fenomnicos; a distncia de instituies religiosas; a visada comparativa de diferentes culturas religiosas com a concomitante absteno de juzos de valor em suma: a descrio neutra quanto validade em perspectiva externa (2009, p. 12). Em complemento a isto, o Projeto visa a Graduao em Cincia da Religio em que esta, de forma bastante sinttica, seja entendida como a pesquisa emprica, histrica e sistemtica da religio e de religies (Hock, 2010, p. 13). Ou seja, isto compreende, neste Projeto Pedaggico, que a Graduao possa oferecer aos educandos um olhar sobre as expresses sociais e culturais da religio, sobre a doutrina, ritos, mitos, dogmas, experincias e histria, e tambm e juntamente a isto - sobre o que ela (religio) possa ser para alm de suas expresses histrico-sociais. Neste sentido, conforme Greschat (2006), uma Cincia da Religio tem por finalidade observar seu objeto em totalidade a partir de quatro momentos. Religio forma comunidades cognitivas, eclodidas de compreenses (experincias) comuns em torno de certos pressupostos de crena e viso do mundo, formando tradies religiosas. So empirias observveis para a anlise. Religio, ainda e a partir do dito acima, costuma gerar doutrinas, uma lgica explicativa f. Religio , em suporte ou conseqncia do j dito, vida dinmica, portanto se manifesta em atos, e seu dinamismo se revela em atitudes, coletivas ou pessoais, possveis de serem mensuradas e interpretadas em sua empiria e em suas localizaes sociais e culturais. E, por ltimo, o que seria o mais nodal: religio pode ser experincia religiosa, subjetiva, ntima. Esta, de certa forma (ou de toda forma?) inobservvel, vedada ao sensorial do cientista, foge empiria convencionada pelas cincias tradicionais modernas. Mas preciso a tambm tentar se aventurar a fazer cincia, ainda que fugindo (superando) a paradigmas tradicionais e convencionados do que seja um objeto para a cincia que se possa efetivamente investigar. A Cincia da Religio assume este desafio. No contra as cincias que concebem a religio apenas como derivativa e no nvel da empiria, e s observvel nela. Mas em unidade com esta concepo tradicional e em busca de novos paradigmas.

4GRADUAO EM CINCIA DA RELIGIO: LICENCIATURA (E A QUESTO DO ENSINO RELIGIOSO)

Na cincia da religio h amplo consenso sobre o fato de que uma compreenso cientfico-religiosa de religio por sua vez no deve ser religiosa. (Hock, 2010, p. 30)A citao que aqui se faz de Hock, logo acima, axioma bsico para um Projeto de Licenciatura em Cincia da Religio. O Licenciado tem, como principal campo de atuao e competncia operacional, o magistrio, e no caso do Licenciado em Cincia da Religio, o magistrio em Ensino Religioso. Contudo, esta competncia pedaggica e didtica que o Licenciado assume, a partir da moldura total Graduao em Licenciatura em Cincia da Religio, no se refere compreenso da religio, para o exerccio docente em sala de aula, como contedos doutrinrios ou de f que devem ser transmitidos aos educandos. Ao contrrio, o Licenciado, particularmente (unicamente?) em escolas pblicas e laicas, deve apresentar religio como um fenmeno humano, e deve operacionalizar seu entendimento a partir de uma abordagem ampla, cientfica, no confessional, que leve os educandos a compreend-la em suas vrias faces, dimenses e aproximaes metodolgicas, sem a apresentao de juzos de valor sobre os temas apresentados. Cabe ainda, ao Licenciado, promover, em sala de aula, uma abordagem sobre o fenmeno religioso que tenha em vista um dilogo e vivncia entre os educandos com suas matrizes religiosas ou de sentido, herdadas e/ou construdas tolerante, criativo, de mtuo aprendizado e valorizador da alteridade e da pluralidade. A Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional reconhece claramente que o ensino religioso faz parte integrante da formao bsica da pessoa humana numa sociedade pluralista. A Lei, em seu artigo 33, afirma: O ensino religioso, de matrcula facultativa, parte integrante da formao bsica do cidado, constitui disciplina dos horrios normais das escolas pblicas de ensino fundamental, assegurado o respeito diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo (Lei 9.475, de 22 de julho de 1997). Ademais, a Resoluo CEB 02/98 reconhece o Ensino Religioso enquanto rea de conhecimento ao lado de todas as outras constitutivas do currculo escolar (Sena, 2006, p. 133 Anexo). Aps e mesmo antes da aprovao da Lei, a profisso de docente em Ensino Religioso foi aberta a qualquer pessoa preocupada com a formao bsica de crianas e jovens. Porm, para o adequado exerccio da profisso de professor de Ensino Religioso, o docente tal como no caso de outros profissionais da educao que lidam com suas respectivas disciplinas precisa estar qualificado.

Havia, em tempos passados (e ainda h, em alguns Estados da Federao), o entendimento de que professores com formao em outras reas do saber que no seja a da Cincia da Religio, poderiam (ou podem) exercer a funo de docncia em Ensino Religioso. Esta viso, contudo, pode vir a no reconhecer a complexidade e relevncia da disciplina em questo, deixando entrever que qualquer formao docente competente para lidar com os temas do fenmeno e do campo religioso, sem que haja necessariamente formao qualificada do docente para tanto. Porm, a atuao profissional em Ensino Religioso no pode ser feita como voluntariado, filantropia, boa-vontade, disponibilidade, interesse (...). Deve requerer formao especfica, graduao em nvel superior e educao continuada dos docentes (Cortella, 2006, p. 19-20). Diante desta compreenso, pergunta-se: estaria um docente com formao em Histria apto a lecionar Matemtica? Ou um professor com formao em Cincias Biolgicas habilitado a lecionar Lngua Portuguesa? Em tese e em direito no!

O reconhecimento da complexidade e especificidade do tema religio, enquanto fenmeno que marca a vida de pessoas e sociedades, e portanto enquanto sistema cultural a influenciar a sociedade (s-la, de certo modo) e dela receber influncia, torna necessrio que a religio, em sua pluralidade de expresses e manifestaes sociais, seja, na escola pblica, lecionada por profissionais que tenham a devida e slida formao na rea especfica de estudos da religio, rea esta j consolidada, tanto no Brasil como, j bem antes de nosso caso, em outros pases. E nessa condio de formao especfica que entra a urgente consolidao da graduao em Cincias da Religio, com uma licenciatura dentro dela que d conta da responsabilidade social que tal ensino demanda, evitando-se o proselitismo e a doutrinao, garantindo-se a democracia e o multiculturalismo (Cortella, 2006, p. 20). A Cincia da Religio d, atravs de sua grade curricular e de sua abordagem especfica, a base e a qualificao para esta rea da docncia (Ensino Religioso), atravs de reflexo acadmica supradisciplinar sobre a(s) religio(es), acentuando-se, no caso especfico da Licenciatura para a docncia, as cincias da educao enquanto refletem os recursos pedaggicos e didticos para a elaborao de um currculo e didtica adequados para a docncia do Ensino Religioso em escolas pblicas, particularmente, levando-se em considerao conceitos e valores como os da alteridade e a pluralidade religiosa no Brasil.

Desde aqui j fica claro que o escopo da Licenciatura em Cincia da Religio leva em conta uma formao do discente que aponte para o exerccio em nveis de planejamento curricular e pedaggico-didtico da docncia em Ensino Religioso a partir de uma perspectiva no confessional e no ligada ou subserviente a instituies religiosas. Evidentemente que o docente em Ensino Religioso pode ter sua filiao religiosa/institucional especfica. Contudo, compreende-se que, para o exerccio da docncia de Ensino Religioso em espaos pblicos e laicos, as preferncias religiosas subjetivas do professor de Ensino Religioso devem ser colocadas entre parntesis, e que seu exerccio profissional em sala de aula, ao lecionar Ensino Religioso, no deve direcionar-se no currculo, contedo programtico e estratgias pedaggicas a privilegiar, ou destacar em importncia valorativa, uma religio especfica, ou, mais grave, direcionar seu lecionar Ensino Religioso para desvalorizar, ocultar ou mesmo denegrir religies.Conforme Teixeira, com a crescente diversificao religiosa no Brasil e a afirmao de um pluralismo religioso insupervel, h, certamente, que lanar novas bases para a reflexo do ensino da religio na escola pblica. No h como manter posicionamentos que defendam em mbito pblico um ensino confessional, embora no Brasil ainda persistam em casos especficos modelos de ensino religioso nesta direo, cuja plausibilidade vem reforada por fortes lobbies confessionais. De fato ainda persistem discusses, no Brasil, e modelos de Ensino Religioso secundados pela confessionalidade, como o caso do Estado do Rio de Janeiro (2011), modelo, alis, que no Estado fluminense est em reavaliao por parte do poder legislativo e executivo, quanto sua pertinncia para o quadro cultural plural de diversidade religiosa.

Joo Dcio Passos apresenta, quanto questo, trs modelos de Ensino Religioso presentes no Brasil. O catequtico, que seria unirreligioso; fundado em uma aliana Igreja-Estado; a lecionar contedos doutrinrios, tendo como objetivo a expanso das Igrejas e a formao de fis; relacionando-se com a sociedade pluralista em suas expresses religiosas a partir de atitude proselitista e intolerante. O segundo modelo seria o teolgico, de fundo plurirreligioso; secundado pela antropologia e teologia pluralista; visando a formao religiosa cidad; e que embute, em si, uma catequese disfarada ou dissimulada. Enfim, o terceiro paradigma seria o da Cincia(s) da Religio, de fundo transreligioso; secular; tendo como fonte e base de conhecimento cientfico quanto ao objeto religio a Cincia da Religio; estando sob a responsabilidade, em suas anlises e prtica pedaggica, da comunidade cientfica; advogando neutralidade cientfica (Passos, 2006, p. 28-34). Este Projeto, como se evidencia, quer evitar os dois primeiros modelos para a Licenciatura em Cincia da Religio em relao formao do profissional do magistrio em Ensino Religioso, e privilegiar aquele ltimo.

Para a superao dos dois primeiros modelos apresentados acima e aqui o foco , particularmente, a escola pblica e laica - justamente a criao de Licenciaturas em Cincia da Religio, que se orientem por um projeto acadmico, cientfico e pedaggico que se queira independente de ancoragens em religies especficas, ou subserviente a seus interesses, que tem a funo de criar espaos polticos no mbito da Educao para que o Ensino Religioso, facultado por Lei em escolas pblicas, possa ser plural, sem direcionamentos doutrinrios, tratando do fenmeno religioso em sua maior abrangncia possvel, sem juzos de valor, a no ser aquele que privilegia o respeito e a abertura ao dilogo com o outro, com o diferente, com o diverso, reconhecendo a legitimidade do outro existir como ele . De uma forma precisa, a Licenciatura em Cincia da Religio quer possibilitar a formao de profissionais de educao em que, eles, profissionais, possam aprender, e mais tarde ensinar aos seus futuros educandos que compreender no , em todo caso, estar de acordo com o que ou quem se compreende. Tal igualdade seria utpica. Compreender significa que eu posso pensar e ponderar o que o outro pensa. Ele poderia ter razo com o que diz e com o que propriamente quer dizer.Assim, a Licenciatura em Cincia da Religio tem como meta formar profissionais docentes que, em sua prtica letiva, compreendam a(s) religio(es), suas expresses, atuao em fluxos e refluxos no campo social (indivduo, famlia, sociedade civil, instituies) de forma cientifica, ou seja, a partir de um olhar supradisciplinar, e no de olhares teolgico-confessionais especficos e restritos. Deve buscar-se, na Licenciatura, formar docentes que, atravs de slida formao acadmica na rea de Cincia da Religio, assim como da apreenso de teorias e recursos pedaggicos e didticos adequados, articulem, em sala de aula, o ensino sobre o fenmeno religioso, a histria das religies e a interpretao deste fenmeno e histria dentro de gradiente dialogal, marcado pela tolerncia, valorizao da alteridade e reconhecimento da pluralidade religiosa como fenmeno legtimo. No por ltimo importante lembrar que, na sociedade contempornea, particularmente no caso do Brasil, as diferenas religiosas frutos da diversidade/pluralidade religiosa se manifestam de forma cada vez mais explcita em sala de aula e, atrelada a esta visibilidade, os conflitos tambm se fazem presentes. Educandos pertencentes a tradies religiosas que tm tido viso negativa a respeito de religies alheias podem (e de fato isto tem ocorrido) gerar um ambiente de segregao e desqualificao de minorias, em sala de aula, a partir de motivaes de fundo religioso. Alis, este ambiente, de conflito cognitivo referenciado pela religio, , algumas vezes, fomentado por docentes (de vrias reas) que percebem a educao como uma misso evangelizadora, por assim dizer, que comporta a divulgao de seus particulares valores oriundos de sua religio especifica. E, neste quadro, a situao se torna mais grave quando o docente de Ensino Religioso que entende seu magistrio como a tentativa (por vezes sutil, por vezes explcita) de qualificar sua viso religiosa entre os educandos e desqualificar vises religiosas alheias sua.

Como percebe-se, a escola, como um todo, e a sala de aula, de forma especfica, tm sido muitas vezes local de tenso, disputas e conflitos quando o que se est em jogo a pluralidade de pertenas (sociais, culturais, religiosas) e a alteridade. Esta tenso de conflitos abertos ou dissimulados se encontra no s no corpo discente, como tambm no docente. O Licenciado tem, neste caso, como docente em Ensino Religioso, no s a responsabilidade de, em sala de aula, empreender um dilogo respeitoso, tolerante e criativo a partir da pluralidade de pertenas religiosas ali presentes, como, em um nvel macro, fomentar este esprito dialogal, que desarraiga a questo religiosa de embates e disputas doutrinrias, entre os demais docentes, oferecendo a estes (e cada qual tem sua opo religiosa) a percepo de que o espao escolar no deve ser local de projetos educacionais concebidos como civilizadores a partir da inculcao, nos educandos, de valores e pressupostos especficos ligados determinada concepo de f do educador. O conhecimento e reconhecimento do outro enquanto outro, com sua prpria cultura religiosa, com sua rede de significados simblicos a gerir a vida, enfim, com sua semntica prpria, um desafio para o Ensino Religioso nas escolas, particularmente as pblicas, em que a diversidade religiosa presente em turma tende a ser maior. Atualmente vive-se contextos de intolerncia religiosa, exclusivismos religiosos, em que a aproximao com o diferente tem causado um estranhamento cujo resultado tem sido, muitas vezes, uma (auto)defesa da prpria cultura a partir de ataques s culturas religiosas alheias, desqualificando-as e as deslegitimado. A Cincia da Religio, enquanto formadora de docentes para o Ensino Religioso, visa projeto que busca fazer com que o profissional de Ensino Religioso produza, junto aos educandos, um tipo de conhecimento que privilegie positivamente o outro, que valorize as diferenas como um dado enriquecedor, e que estimule o educando a pensar sua prpria religio no contra as demais, mas em relaes de respeito e tolerncia com o que diferente.

Neste sentido a proposta de Licenciatura em Cincia da Religio, com vistas docncia, de seus egressos, na disciplina de Ensino Religioso, no Ensino Bsico e Fundamental, segue, em sua filosofia de concepo de curso, explicitada particularmente em sua grade curricular, uma concepo de estudos da religio sem vnculos confessionais, plural, dialgica, e voltada construo de um aprendizado em que o educando possa perceber a sua e a religio dos outros, e o fenmeno religioso em geral, de forma liberta de preconceitos, criando um ethos, na prtica educativa, que leve o educando a reconhecer o diferente como legitimo em sua forma de ser e pensar o mundo e a religio.

Para exemplificar esta formatao de formao licenciada em Cincia da Religio, com vistas ao exerccio profissional de docncia em Ensino Religioso, particularmente em escolas pblicas, cita-se aqui o caso pioneiro do Estado de Santa Catarina. A Secretaria Estadual de Educao de Santa Catarina compreendeu que, nas escolas estaduais daquele Estado, pblicas e laicas, era necessrio que o Ensino Religioso fosse lecionado por profissionais que tivessem formao especfica para tal. Descartou-se, entretanto, profissionais cuja formao fosse a teolgica, compreendendo que a formao teolgica, no Brasil, alm de ser sempre confessional, poderia comprometer a priori o profissional a privilegiar (por sua prpria formao) um determinado tipo de viso e interpretao sobre a religio. Entendeu-se, portanto, que caberia ao professor de Ensino Religioso uma formao no confessional, mas interdisciplinar e no necessariamente (ou acentuadamente) teolgica. Para tanto compreendeu-se que a Cincia da Religio cumpria este papel, porquanto curso em que se estuda o fenmeno religioso e as religies a partir da cooperao e entrelaamento interdisciplinar e, conforme entendido Cincia da Religio neste Projeto, interdependente das vrias cincias das reas de humanas, sociais, entre outras. Esta compreenso que passou a vigorar no Estado de Santa Catarina, evidentemente foi fruto de um processo de reflexo em que participaram entidades vrias, como o FONAPER (Frum Nacional Permanente do Ensino Religioso), IES (FURB, UNIVILLE, UNISUL), CONER/SC (Conselho de Ensino Religioso), entre outras. Entrementes, hoje, para concursos pblicos de provimento de cargo de docentes em Ensino Religioso em estabelecimentos educacionais do Estado, j se exige o curso de graduao/licenciatura em Cincia(s) da Religio. Esta exigncia, que se fez a partir do entendimento de que o Ensino Religioso em escolas pblicas deve se referenciar no lastro da pluralidade, alteridade e viso panormica e sem juzos prvios sobre o fenmeno religioso e as religies, possibilitou, pela prpria demanda criada de profissionais com tal formao (Cincia da Religio) para a docncia em Ensino Religioso, que IES do Estado planejassem e criassem cursos de Cincia da Religio para formao de profissionais qualificados a compor o quadro docente de professores de Ensino Religioso no Estado. Assim, IES como a FURB (Blumenau), UNIVILLE (Joinville), UNOCHAPEC (Chapec), UNISUL (Tubaro), UNC (Canoinhas), e a Faculdade So Jos (municipal/pblica, de So Jos/SC) vieram a abrir cursos de Licenciatura em Cincia(s) da Religio.

A compreenso de que, para o exerccio da docncia em Ensino Religioso, o profissional necessita desta formao acadmico-cientfica, proporcionada pela Cincia da Religio, est a influenciar outros Estados da Federao, que, em articulao com cursos de Licenciatura em Cincia(s) da Religio j existentes nestes Estados, ou no incentivo para sua criao, comeam a exigir que profissionais de Ensino Religioso tenham formao especfica em Cincia da Religio. Sem dvida que a existncia, nestes Estados, de cursos de Licenciatura em Cincia(s) da Religio, em IES pblicas, como na UFPB (Universidade Federal da Paraba), na UERN (Universidade Estadual do Rio Grande do Norte), UEMA (Universidade Estadual do Maranho), UVA (Universidade Estadual do Vale do Acara, em Sobral, Cear) e na UEPA (Universidade Estadual do Par), tem sido fator preponderante para que estes Estados, em suas Secretarias de Educao, possam compreender a importncia de que, no trato da questo religio em sala de aula de escolas pblicas, estejam aptos a lecionar pessoas formadas especificamente para a rea, entendendo o Ensino Religioso no como aula de religio, ou catequese, mas como disciplina que aborda, de forma neutra quanto axiomas de verdade e juzos de valor, e de forma interdisciplinar e plural, o fenmeno religioso e as religies.

Neste sentido compreende-se que a UFJF, em relao ao Estado de Minas Gerais, cumpre papel pioneiro e importante, enquanto IES pblica e federal, de, a partir da criao da Licenciatura em Cincia da Religio, empreender dilogo e reflexo com as instncias governamentais do Estado, particularmente na rea da Educao, no sentido de avaliar e traar novos parmetros e compreenso para a funo, objetivos e o estatuto disciplinar e curricular do Ensino Religioso no Estado, bem como da formao necessria para o exerccio profissional na rea. Ou seja, a partir de iniciativas concretas como a de implementao de curso de Licenciatura em Cincia da Religio (com vistas ao Ensino Religioso) que se abrem espaos e canais, junto aos rgos pblicos, para reflexo e definio sobre a questo do Ensino Religioso nos Estados, assim como de sua regulamentao a partir de paradigmas plurais e de qualificao profissional especfica para tanto. Salienta-se, ainda, quanto a esta questo, que a Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES), IES pblica, j oferece, no mbito do Estado de Minas Gerais, a Licenciatura em Cincia da Religio. Ainda em Minas Gerais, existe a UNEC (Caratinga), IES privada, a oferecer o curso.

5GRADUAO EM CINCIA DA RELIGIO: BACHARELADO (...) o que conta a criatividade para nos aproximarmos da religio a partir de olhares investigativos mais cuidadosos, mais argutos, reconhecendo a dimenso que a religio assume na constituio da vida humana, da cultura, e nos diferentes campos dos interesses e conflitos sociais.(Magalhes, 2008, p. 43-44)O Bacharel em Cincia da Religio dever ser um profissional capacitado pesquisa sobre religio com vistas a intervenes prticas em seu meio social, seja em assessoria, seja em participao efetiva em projetos que lidam em cheio com o tema religio ou que trabalham temas que tenham por interface a religio, ou aspectos religiosos.

Entende-se o Bacharel como um pesquisador que deve contribuir, a partir dos instrumentais tericos e metodolgicos que o Bacharelado oferece, para o esclarecimento, nos meios sociais em que atuar, das questes de fundo religioso (explcito ou implcito) pertinentes a eles e que demandam um grau de anlise e porventura interveno qualificado, sem tendncias confessionais que venham interferir em tal anlise. Ou seja, o Bacharel deve dominar um saber de pesquisa sobre religio que o faa instrumento social (profissional) de referncia para a interpretao do religioso no social, e para, entrementes, assessorar e interagir com entidades que, confessionalmente religiosas ou no, demandem a necessidade de haver, por motivos variados, esclarecimento e pesquisa sobre religio, seja em nvel macro, seja em nvel micro, atinente a ela mesma, mas prescindindo de comprometimentos hermenuticos e confessionais prvios. Pode-se comear por exemplificar este ltimo caso. Organizaes confessionais como a CNBB, ou uma Confederao de Entidades de Cultos Afro-Brasileiros, ou a Presidncia/Direo de uma determinada Igreja protestante, podem necessitar, por motivos diversos, que em determinado momento se realize, sobre elas ou sobre seu campo de atuao, pesquisa que se intente isenta de dominaes ou excluses por tendncias interpretativas internas organizao. Ou seja, que necessitem, para diagnstico geral ou visando algum motivo prtico futuro, ter a pesquisa (e seus resultados) a competncia de um especialista em religio que, no entanto, no seja refm nem de pressupostos da confessionalidade daquela organizao, nem das tendncias ali envolvidas. O Bacharel ser pessoa qualificada para entender e pesquisar religio tanto a partir de nveis internos organizao (discurso prprio) quanto externo (discurso sobre), a partir de locus que se pretende isento de axiomas normativos quanto verdade ou f especfica do que estuda/analisa/assessora. Tal mediao, para a qual o Bacharel estar habilitado, tantas vezes necessria a organizaes religiosas no intuito de que ela possa ver-se em espelho no embaado por seus prprios olhares nativos, mas para que se veja e possa, neste ver, fazer depois sua prpria avaliao interna para seus objetivos a partir um olhar especializado, mas no de antemo comprometido. Mas o Bacharel talvez tenha por maior campo de trabalho, e responsabilidade, a sociedade civil em sua interface com o campo da religio e de sua interveno nela.

Na Europa, por exemplo, os estudos sobre religio, feitos no mbito da pesquisa em Cincia da Religio, tm assessorado entidades civis e estatais e ajudado, neste assessoramento, a definir planejamentos e condutas pblicas referentes a temas complexos naquelas sociedades, como a questo das seitas (assim nomeado) na Frana, e a do Islamismo (questes sobre o uso do vu em espaos pblicos, por exemplo, na Frana e Blgica; ou da legitimidade da existncia de minaretes, na Sua); dos smbolos religiosos (inclusive cristos) em espaos pblicos na Itlia, etc. Enfim, cabe a algum qualificado para a pesquisa em Cincia da Religio a pergunta pela posio da religio no mbito pblico. Essa temtica tem duas dimenses. Por um lado os crescentes conflitos sociopolticos em torno de smbolos e locais religiosos, o que pressupe vozes qualificadas para intervir em vistas normatizao implcita do espao pblico (Hock, 2010, p. 235). Os estudos sobre religio devem favorecer, em pesquisa e assessoria, um rosto/estatuto pblico, uma funo pblica sua atividade. A pesquisa sobre religio, portanto, deve estar atenta e empreender contatos relevantes com a sociedade civil em suas interfaces com os elementos religiosos.

Por exemplo, pesquisas sobre religio, no Brasil, tm apontado a questo da intolerncia religiosa (perseguies a adeptos de cultos afro-brasileiros e destruio de imagens sacras) que algumas instituies religiosas estariam a incitar. As pesquisas e discusses a respeito da religio tm tido efeitos concretos quanto formao, na sociedade civil, da criao e fortalecimento de rgos e leis referentes proteo do direito liberdade de crena e culto e punio/criminalizao de preconceito e perseguio religiosa (e definio destes termos/conceitos). Outras pesquisas tm se debruado sobre a questo do Ensino Religioso em escolas pblicas, e da consequente discusso das relaes entre Estado laico e religio. Tais pesquisas tm sido teis para esclarecimentos e a fomentar as polmicas discusses sobre a questo, discusses que, certamente, tm (ou deveriam ter) seu lugar no lastro das decises governamentais sobre o assunto. Junto s organizaes pblicas reguladoras do espao pblico, e junto s organizaes religiosas que vivem no espao social de determina sociedade, se faz necessrio, tantas vezes, perguntar quais os distintos critrios de reconhecimento e no reconhecimento de religies que se formaram nos distintos contextos socioculturais: o que torna uma religio religio licita, uma religio aceita e at promovida (pelo Estado), o que a torna um culto proibido? (Hock, 2010, p. 235). Estas so, por exemplo, questes muito complexas e afeitas a controvrsias, preconceitos, mal-entendidos. Assim, ainda exemplificando, quanto criao de feriados pblicos referentes a datas religiosas. comum considerar normal feriados alicerados em datas festivas crists e, mais ainda especificamente, catlicas. Mas quando se prope um projeto de lei de criao de feriado referente data festiva de uma religio marginal ou de menor expresso no Brasil, quais os critrios culturais, religiosos, regionais, enfim, especficos para se avaliar pertinncia, legitimidade e relevncia de tal projeto? A est a funo de pessoa qualificada em Cincia da Religio, em intervir neste momento, embora esta interveno deva ser considerada como interlocutora no processo de discusso, e no necessariamente normativa ou decisria. Ainda sobre a questo levantada por Hock, o Bacharel tambm deve dar palavra qualificada (no necessariamente normativa), a partir de pesquisa, em relao a temas como prticas rituais em novas religies e suas relaes aparentemente ou no - conflitantes com as leis do pas. o caso, por exemplo, de religies como as do Santo Daime, Unio do Vegetal, Barquinha, que usam de plantas/razes para a confeco de chs cultuais/rituais que so, muitas vezes, vistos com suspeio pelas entidades pblicas, particularmente as agncias de sade. O papel de um Bacharel neste caso pode ser o de intermediar a discusso entre os temas e conceitos prprios rea de sade e os temas e conceitos prprios a estas religies, sendo um interlocutor que domina as semnticas das duas instncias e, por tal domnio, poder ter um olhar de conjunto e de discernimento de critrios que seja necessrio ao encontro de solues para o caso; interlocuo sem a qual talvez houvesse (haja) apenas um dilogo de surdos.

Alis, muitas situaes nas sociedades modernas, que abrigam nichos culturais diferenciados e muitas vezes diametralmente opostos, no sendo, tantas vezes, mais possvel falar-se de uma cultura hegemnica nas sociedades, geram conflitos de fundo religioso que, sem a interveno qualificada de um profissional/pesquisador em Cincia da Religio, pode se converter em monlogos sem soluo, ao invs de dilogos em busca de resoluo de problemas. Situaes que incidem, muitas vezes, no campo das legislaes, que se definem nestas batalhas culturais de semnticas opostas. O Bacharel profissional capacitado a intrprete em tais conflitos. Recentemente (2011) no Brasil levantou-se, a exemplo, a discusso sobre a criminalizao da homofobia. Organizaes e grupos GLBTs insistem, por um lado, que pregaes em templos evanglicos (ou fora deles) que caracterizem a homossexualidade como doena, a ser curada, ou mal a ser combatido, devam ser criminalizadas, pois seriam discriminatrias ao caracterizaram a homossexualidade como doena, ou como um mal, sem que a cincia tenha palavra fechada sobre o assunto, ou mesmo na contramo de pesquisas cientficas que descartam esta caracterizao homossexualidade; e contra a liberdade de opo sexual e de autogesto identitria. Assim, lutam por criminalizar pregaes que, no entender destes grupos, discriminam e denigrem os homossexuais / a homossexualidade. Pelo lado de alguns grupos e organizaes de Igrejas evanglicas, defende-se que a pregao contra a homossexualidade nas Igrejas no pode ser criminalizada, j que a Constituio do Brasil prev liberdade de culto, de expresso e que, conforme a conscincia da pessoa em sua adeso de f, a partir da palavra sagrada que interpreta e que normativa para estes grupos a homossexualidade um mal ou doena. Pois bem, aqui, neste complexo conflito, h vrios campos de saber envolvidos: o saber mdico, invocado por ambos os lados (e, ele, saber mdico, sem definies definitivas ou consensuais sobre o assunto); o saber mdico enquanto discurso cientfico normativo (portanto a cincia e interpretaes dela - como cooperadora importante para a definio de legislaes); o saber jurdico, legislativo e constitucional, usado por ambos os grupos de formas antagnicas, conforme seus interesses e argumentados em um xadrez poltico/cultural complexo; e o saber religioso, como apelo conscincia, palavra sagrada e sua liberdade de interpretao - que se quer normativa para quem nela cr; e, finalmente, a evocao do direito liberdade religiosa e de expresso.

O Bacharel a pessoa que, com conhecimentos acadmico-cientficos para a competncia em pesquisa que vise o dilogo entre culturas, sociedade, religio, pode ser de grande valia na intermediao de discusses como estas, que visam criar leis que afetaro a sociedade como um todo. E no s as disciplinas cursadas na Graduao/Bacharelado em Cincia da Religio o habilitaro e legitimaro para este papel, mas tambm o fato de sua formao ser no confessional ou orientada por pressupostos religiosos (no estudo das religies) e, no caso especfico desta IES, por ter a chancela, em sua formao cientfica, de uma universidade pblica e laica, que no visa representar em sua formao do educando interesses de grupos sociais especficos, mas tem como norma o conhecimento universal, pautado no livre investigar das cincias, sem constrangimentos ou limites determinados por orientaes de atores sociais particulares, sejam eles laicos ou religiosos.Com isto no se quer dizer, entretanto, que o Bacharel ter um poder bvio de conciliador na sociedade em seus conflitos que envolvam elementos religiosos. No se postula aqui algum que seja ou que tenha a obrigao de ser um harmonizador de conflitos, ou um agente que faa brotar unanimidades ou armistcios de conflitos scio-religiosos, ou mesmo um legislador para tais casos. Seria presuno e inocncia apresentar assim o Bacharel. Mas entende-se que o Bacharel, enquanto pesquisador qualificado, um intrprete e interlocutor importante para tais conflitos e para o auto-entendimento de grupos sociais que tenham como tema implcito ou explcito, em suas demandas, fatores religiosos, assim como para que estes grupos possam melhor ouvir e entender (no necessariamente aceitar) pontos de vistas alheios aos seus. E, sendo a religio tambm fator subjetivo s pessoas, geradora de sentimentos de amor e dio, perdo e vingana, e podendo tal subjetividade ser objetivada em atos sociais, leis, costumes, guerras, violncia, o Bacharel se torna algum que, atravs de pesquisa e com seu conhecimento acadmico sobre religio, deve contribuir para uma vigilncia social que impea arbitrariedades justificadas religiosamente, pois quando e onde h um colapso do controle da religio pelos sistemas do direito, a religio capaz de autorizar atos criminosos (Hans Kippenberg, Apud Hock, 2010, p. 233). Ou, ao avesso, que busque interlocuo quando a religio se torna vtima de arbitrariedades exteriores a ela. Ora, tambm a economia e desenvolvimento/estruturas econmicas da sociedade so, muitas vezes, ou aliceradas ou influenciadas por fatores religiosos. Vide, por exemplo, o caso da ndia que, no sistema de castas fundamentado religiosamente, at tempos atrs (e hoje ainda, de certo modo) estruturava (estrutura?) a sociedade em seus plos sociais e econmicos. Max Weber, em sua obra estruturada sob o ttulo Economia e Sociedade, dimensiona amplamente a religio como a influenciar e receber influncias nos desenvolvimentos scio-econmicos de sociedades. E em sua obra A tica protestante e o esprito do capitalismo advoga as injunes que o calvinismo exerceu sobre a sociedade em que se encontra