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WANDER DE LARA PROENA

SINDICATO DE MGICOS: Uma histria cultural da Igreja Universal do Reino de Deus (1977-2006)

Tese apresentada Faculdade de Cincias e Letras de Assis UNESP Universidade Estadual Paulista para a obteno do ttulo de Doutor em Histria (rea: Histria e Sociedade) Orientador: Prof. Dr. Milton Carlos Costa

ASSIS 2006

Proena, Wander de Lara Sindicato de Mgicos: uma histria cultural da Igreja Universal do Reino de Deus (1977-2006). Wander de Lara Proena. Assis, 2006. 374p. Tese Doutorado Faculdade de Cincias e Letras de Assis Universidade Estadual Paulista. 1. Brasil Religiosidade 2. Igreja Universal do Reino de Deus 3. Histria Cultural 4. Sindicato de Mgicos 5. Roger Chartier - Representaes 6. Sociologia Pierre Bourdieu. CDD 289.94

WANDER DE LARA PROENA

SINDICATO DE MGICOS: UMA HISTRIA CULTURAL DA IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS (1977-2006)

COMISSO JULGADORA

TESE PARA OBTENO DO GRAU DE DOUTOR PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA UNESP / ASSIS SP

Presidente e orientador: Dr. Milton Carlos Costa UNESP 2 Examinadora: Dr. Maria Lucia Montes - USP 3 Examinadora: Dr. Silvia Cristina Martins de Souza - UEL 4 Examinador: Dr. Eduardo Basto de Albuquerque UNESP 5 Examinador: Dr. Ruy de Oliveira Andrade Filho UNESP

Assis, 02 de maro de 2007.

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Ao meu av, Bino Lara, o qual, durante o perodo em que eram redigidas as ltimas pginas deste trabalho, tambm concluiu sua histria terrena... Partiu, mas deixou memrias de algum fascinado por assuntos religiosos... O mistrio do sagrado, que tanto o encantou, tambm seduz a cincia e busca explicaes nas pginas desta pesquisa.

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AGRADECIMENTOS Ao meu orientador, Prof. Dr. Milton Carlos Costa, que sempre soube conjugar sua notvel erudio no conhecimento historiogrfico com a dedicao e o zelo no trabalho de orientao de cada etapa desta pesquisa.Tornou-se para mim um grande amigo, um grande mestre, sendo um referencial seguro de rumos, delineamentos e correes a que a tese foi submetida. Sempre solcito e prestativo na disponibilizao de horrios para os procedimentos de orientao, muitos dos quais em finais de semanas e feriados. Quando estabeleci os primeiros contatos com a Unesp, prontamente aceitou-me como aluno especial da disciplina que ministrava. Em seguida, acreditou no projeto ainda em fase de elaborao, reprogramando, inclusive, seus compromissos de orientao a fim de disponibilizar mais uma vaga ao processo seletivo para que fosse possvel meu ingresso no Programa de Doutorado. Lembrome das desafiadoras palavras que dele ouvi aps a primeira leitura que fez do meu projeto de pesquisa: Ainda h uma lacuna na historiografia brasileira sobre a abordagem de temas relacionados ao neopentecostalismo. Se este trabalho, agora concludo, vier a contribuir para o alcance daquele objetivo, os mritos advm das imprescindveis orientaes acadmicas recebidas do Prof. Milton. Ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Unesp, por contemplar em suas linhas de pesquisa espao para abordagem de temas pelo vis da Histria Cultural. Este trabalho , certamente, resultado de um longo processo que envolveu diferentes contribuies do Programa de Doutorado: oferta de disciplinas voltadas Histria Cultural na integralizao dos crditos; avaliao e crticas ao projeto originalmente elaborado, em disciplinas especialmente ofertadas para esse fim; segura fundamentao terico-metodolgica propiciada nas aulas de Teoria e Metodologia; oportunidades de apresentaes parciais da pequisa durante as Semanas de Histria, realizadas anualmente, ocasio em que o tema investigado pde ser exposto para debate e reaes de outros pesquisadores, sob a mediao do meu orientador; e, por fim, a participao dos membros da Banca de Qualificao, que desempenharam leitura cuidadosa do texto at quele momento elaborado, apresentando importantes contribuies para os procedimentos finais de redao da pesquisa. Aos professores do Programa de Ps-Graduao em Histria, da Unesp, pela dedicao, capacidade e esmero na tarefa de formar novos pesquisadores. Aos professores Dr. Eduardo Basto de Albuquerque e Dr. Ruy de Oliveira Andrade Filho, pelas relevantes observaes e recomendaes feitas tese quando participaram do Exame de Qualificao. A presena desses docentes tambm na Banca de Defesa enobrece o nvel que essa investigao se props a alcanar. Aos professores titulares e suplentes que compem a Banca de Defesa, cuidadosamente escolhidos e convidados, por emprestarem o seu nome e o seu prestgio acadmico na avaliao do trabalho aqui elaborado. Aos funcionrios da Unesp/Assis, pelo modo sempre prestativo e atencioso dedicado aos alunos do Programa de Ps-Graduao. Profissionais que, alm da competncia, demonstram satisfao e zelo no desempenho de suas funes. Ao Prof. Andr Luiz Joanilho, pelo auxlio e direcionamento na elaborao das primeiras pesquisas historiogrficas que desenvolvi sobre o pentecostalismo brasileiro, ainda durante o

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Mestrado, e tambm por ter intermediado os primeiros contatos com o Prof. Milton para que pudesse ser meu orientador. Fabiana Rondon, pelo auxlio nas pesquisas de campo e no acesso s fontes documentais prprias da Igreja Universal do Reino de Deus. prof. Selma Almeida, pela reviso de lngua portuguesa realizada no texto. prof. Rosalee Ewell, pela traduo do resumo desta tese para o ingls. Daniela Selmini, bibliotecria da Faculdade Teolgica Sul Americana, pelo auxlio nas constantes pesquisas realizadas naquele local. Ao Alfredo Oliva, pela amizade e companheirismo na travessia dos cinco anos em que fomos colegas de curso no Programa de Doutorado em Histria da Unesp, compartilhando os desafios e a fascinao que o estudo do campo religioso brasileiro proporciona. Faculdade Teolgica Sul Americana, com especial meno ao Prof. Jorge Henrique Barro, pelo auxlio e apoio na disponibilizao da estrutura da FTSA para o desenvolvimento de minhas pesquisas. O acervo documental sobre o pentecostalismo brasileiro, existente na Biblioteca dessa Instituio, foi de significativa importncia para o aprofundamento do tema aqui abordado. CAPES, com especial registro, pela bolsa de estudos que subsidiou recursos imprescindveis ao desenvolvimento deste projeto, especialmente por propiciar condies para as viagens do trabalho de campo e os constantes deslocamentos que se fizeram necessrios aos acervos documentais.

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A HISTRIA DOS DEUSES SEGUE AS FLUTUAES HISTRICAS DE SEUS SEGUIDORES. Pierre Bourdieu

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PROENA, Wander de Lara. Sindicato de Mgicos: uma histria cultural da Igreja Universal do Reino de Deus (1977-2006). Assis: Unesp, 2006. 356 fl. Tese (Doutorado em Histria Social) Faculdade de Cincias e Letras, Campus de Assis, da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho, 2006.

RESUMO Em 1977, com o nome de Igreja Universal do Reino de Deus, surgiu o mais instigante movimento religioso no cenrio brasileiro contemporneo, no apenas pelo explosivo crescimento numrico, mas principalmente pela inaugurao de prticas que transpem as categorias conceituais explicativas classicamente utilizadas para a anlise das manifestaes de f. Abordagens jornalsticas, religiosas e sociolgicas no deram conta de compreender a abrangncia e os impactos promovidos por esse segmento. O desafio foi ento lanado historiografia. Com o propsito de contribuir para o preenchimento dessa lacuna, esse trabalho se props a pesquisar, com profundidade, as prticas e as representaes que notabilizaram o fenmeno iurdiano. Para isso, a partir de parmetros terico-metodolgicos da Histria Cultural - articulados com os pensamentos de Roger Chartier e Pierre Bourdieu realizaram-se incurses investigativas nos documentos prprios da igreja, conjugando-as com observaes participantes nos cultos e ritos, cruzando-se ainda tais fontes com depoimentos de lderes e fiis, alm de gravaes sistematizadas de programas miditicos, transcritos e catalogados para anlise. Constatou-se que o fenmeno iurdiano: no dissidncia e nem continuidade de outras expresses religiosas, mas criador de algo novo a partir de apropriao e resignificao de compsitos culturais arraigados na longa durao histrica; estabeleceu um marco divisor no campo religioso quando chegou s massas e atingiu a matriz cultural brasileira, recuperando elementos liminares de crenas folclricas, que perpassam todos os nveis sociais, tornando-os prioritrios; surgiu e cresceu no contexto de uma exploso urbana, marcada por instabilidade, crise e violncia, tornando-se um espao de salvao, de socorro e ajuda. Sindicato de mgicos configura-se, pois, como um ttulo plausvel para classificar a operacionalidade da alquimia do conjunto observada nas prticas desse movimento, capaz de combinar elementos aparentemente contraditrios: denomina-se igreja, mas caracteriza-se por magia e profetismo; possui lderes carismticos, pelas regras coletivas do campo e no pela excepcionalidade individual; desenvolve um tipo de messianismo, de configuraes rurais, mas vivenciado com encanto no mundo urbano; as crenas que necessita combater so decisivas para o seu funcionamento; as benesses do paraso apocalptico j so antecipadas para o tempo presente, alterando inclusive a geografia do alm-ps-morte; elementos encantados so habilmente conjugados com recursos ultramodernos; o biblicismo da leitura substitudo pelo emblema do rito; polmicas estratgias de arrecadao financeira so denegadas pela economia da oferenda; no lugar da absteno de bens materiais como preparao para a salvao, a prosperidade e o usufruto de valores do tempo presente como sinais de alcance do reino idlico; sendo instituio, possui a capacidade mgica de no permitir a magia institucionalizar-se; deu certo no contexto brasileiro por recuperar um elemento essencial e identitrio do cristianismo: o mistrio.

Palavras-chave: Igreja Universal do Reino de Deus; Histria Cultural; sindicato de mgicos; carisma; campo religioso brasileiro.

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PROENA, Wander de Lara. Sindicato de Mgicos: uma histria cultural da Igreja Universal do Reino de Deus (1977-2006). Assis: Unesp, 2006. 356 fl. Tese (Doutorado em Histria Social) Faculdade de Cincias e Letras, Campus de Assis, da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho, 2006. ABSTRACT In 1977 was inaugurated, with the name Universal Church of the Kingdom of God - Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) - the most provocative religious movement in contemporary Brazil, not simply due to its explosive numerical growth, but mainly because of its practices that went beyond classical conceptual categories employed in analyses of faith manifestations. Journalistic, religious, and sociological approaches were not sufficient to account for the range and impact of this segment. The challenge was then submitted to historiography. With the purpose of answering some of these lacunae, the present work proposes to research in depth the practices and representations that most mark the IURD phenomenon. For that, using theoretical-methodological parameters from cultural history, articulated in the works of Roger Chartier and Pierre Bourdieu, we shall make incursive investigations into the documents of the church, placing these alongside the observations made by participants in the churchs rites and practices, then comparing these with additional statements from the churchs leadership and faithful followers. We will also examine Transcripted and catalogued information gathered from various media programs. It was found that the IURD phenomenon was not due to dissidence nor continuity with other religious expressions, but was instead the creation of something new based on an appropriation and resignification of long-standing historical and cultural composites. It established a dividing mark in the religious field when it reached the level of the masses and hit a Brazilian cultural matrix, recovering hidden elements of popular folklore, that reach all social strata, thus making them priorities. It started and grew in a context of urban explosion, marked by instability, crises and violence, making it a place of salvation and help. Magicians Union, therefore, is a plausible title under which to classify the functionality of the group alchemy observed in the practices of this movement, capable of combining apparently contradictory elements: calling itself church, but characterized by magic and prophecy; having charismatic leaders determined by the collective rules of the field and not according to individual gifts; developing a type of messianism of rural configurations, but living in a charmed urban world. The beliefs against which it must fight are decisive for its functioning; the blessings of apocalyptic paradise are anticipated to the present time, altering the geography of post-beyond-death. Elements of enchantment are ably paired with ultramodern technology; literal biblicism is substituted by an emblem of rite; polemical strategies for financial gain are disallowed by an economy of offering; instead of abstaining from material goods in preparation for salvation, prosperity and the enjoyment of this present day are signs of reaching the idyllic kingdom. As an institution, it has the magical capacity of not allowing magic to institutionalize itself. It has been successful in the Brazilian context because it recovered an essential element of Christian identity: mystery.

Keywords: Universal Church of the Kingdom of God; cultural history, magicians union; charisma; Brazilian religious field.

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SUMRIO INTRODUO ......................................................................................................................12 1 - PARMETROS TERICO-METODOLGICOS PARA UMA HISTRIA CULTURAL DA IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS ........................................37 1.1 - O lugar do sagrado na Histria Cultural .........................................................................37 1.2 - Um caminho metodolgico a partir de Chartier e Bourdieu ...........................................49 1.2.1 - Representao, prtica, habitus ...................................................................................52 1.2.2 - Campo, capital simblico ............................................................................................60 1.3 - Fontes para pesquisa historiogrfica sobre a Igreja Universal do Reino de Deus...........64 1.3.1 - Documentos prprios da Igreja Universal....................................................................65 1.3.2 Fontes produzidas pela pesquisa de campo .................................................................71 2 O CONTEXTO HISTRICO-SOCIAL EM QUE SE DESENVOLVEU O PENTECOSTALISMO BRASILEIRO ..................................................................................88 2.1 O contexto de movimentos precursores .........................................................................89 2.2 O contexto do surgimento do pentecostalismo ... ..........................................................94 2.3 O contexto de projeo do pentecostalismo .................................................................110 2.4 O contexto de desenvolvimento do neopentecostalismo ............................................126 2.5 Um contexto de esforos do catolicismo pelo controle do campo religioso.................136 2.6 Um contexto histrico de magia no campo religioso brasileiro ...................................141 2.7 Um contexto de presso folclrica camponesa no mundo urbano ...............................147 3 UMA HISTRIA CULTURAL DA IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS: PRTICAS ...........................................................................................................................152 3.1 A consagrao do hertico: o nascimento de um sindicato de mgicos ......................152 3.2 A universalizao do reino: o explosivo crescimento da Igreja Universal ..................156 3.3 A multiplicao da palavra: os recursos miditicos da Igreja Universal .....................161 3.4 Milagres do dinheiro e dinheiro dos milagres nas prticas iurdianas ..........................163 3.5 Interesses do gesto desinteressado: a economia de oferenda nas prticas iurdianas.....168 3.6 O poder simblico do carisma nas prticas iurdianas ..................................................173

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3.6.1 O carisma do profeta .................................................................................................183 3.6.2 - O carisma do mago ....................................................................................................215 3.6.3 O carisma messinico-milenarista .............................................................................224 3.7 O palimpsesto cultural das prticas iurdianas ..............................................................251 4 - UMA HISTRIA CULTURAL DA IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS: REPRESENTAES ...........................................................................................................267

4.1 Da funerria catedral: representaes do espao sagrado iurdiano ...........................267 4.2 - Representaes mgicas dos objetos litrgicos ............................................................271 4.3 O universo representacional dos ritos ..........................................................................278 4.3.1 - Corrente da prosperidade: o dinheiro e suas representaes .................................... 284 4.3.2 - Corrente do descarrego: representaes do mal nas prticas iurdianas .....................399 4.3.3 - Pare de sofrer: corrente de cura divina e milagres .................................................310 4.4 - O papel das prticas de leitura nas representaes iurdianas ........................................316 4.5 - Representaes da morte: mudanas na geografia do Alm .....................................325

CONSIDERAES FINAIS ................................................................................................332 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS...................................................................................353

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INTRODUO O ano 1977. O lugar: subrbio da cidade do Rio de Janeiro. O endereo: Av. Suburbana, 7.702, Bairro da Abolio. O local: um modesto salo alugado, anteriormente ocupado por uma funerria. porta, afixada uma placa com aspiraes um tanto ambiciosas: Igreja Universal do Reino de Deus. Ao plpito: um jovem pastor sem nenhum preparo formal em teologia ou treinamento especializado para o exerccio daquela funo. Os recursos de comunicao: a voz solitria, de sotaque inconfundvel, de um pregador com microfone em mos, auxiliado por duas caixas de som amplificadas. O pblico: pouco mais de uma dezena de ouvintes. O ano 2006. O lugar: todas as mdias e grandes cidades espalhadas em todos os Estados brasileiros. O local: mais de cinco mil templos que, pela imponncia e extenso fsica, so orgulhosamente chamados de Catedrais da F, com capacidade para abrigar milhares de pessoas. As ambies do nome: a presena em mais de cem pases do mundo. Ao plpito: a voz de mais de dezesseis mil pastores e bispos que multiplicam o sotaque e o estilo de seu lder-fundador. Os recursos: dezenas de emissoras de rdio, um canal exclusivo de televiso, com mais de noventa emissoras filiadas em rede nacional. O pblico: aproximadamente trs milhes de adeptos. Quem passasse em frente ao primeiro endereo da Igreja Universal, quando do incio de seu trabalho, certamente seria levado a imaginar que o destino mais provvel daquele pequeno ajuntamento de pessoas, como o de tantos outros grupos pentecostais cismticos, seria a obscuridade da periferia ou dos entrincheirados morros e favelas do Rio de Janeiro. Contrariando essa perspectiva, porm, a histria emblematicamente reservava, ali, na apario daquele movimento, a escrita de um captulo absolutamente novo no campo religioso brasileiro: o cenrio da crena no pas passaria a se dividir em antes e depois da IURD. Diante desses aspectos, surgem inevitveis questes: quais elementos, internos e externos, propiciaram esse fenmeno em to pouco espao de tempo? Por que o movimento iurdiano obteve xito enquanto tantos outros, surgidos na mesma poca, fracassaram? Onde esto fincadas as razes desse segmento religioso que lhe do tanta sustentao diante das inmeras polmicas e perseguies que sofreu em sua trajetria? Como essa igreja responde aos anseios e s crenas de seus seguidores? Estaria-se diante de um caso que envolve a genialidade de lderes ou de um processo de produo coletiva do campo religioso a partir de regras que lhe so prprias?

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O fato que, em relao Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), no h como ignorar ou ficar indiferente sua presena. Desde o seu surgimento, tem estado no centro de intensas controvrsias. Mtodos heterodoxos de arrecadao, vilipndio a cultos religiosos, agresso fsica contra adeptos de crenas afro-brasileiras e investimentos empresariais milionrios, so alguns dos motivos responsveis por desencadear uma srie de crticas e acusaes por parte da grande imprensa e de outros segmentos religiosos, inquritos policiais e processos judiciais contra a Igreja e seus lderes. Mais recentemente, um novo episdio ganhou as pginas de jornais e revistas de circulao nacional, tornando-se tambm assunto dirio nos principais telejornais do pas: Joo Batista Ramos, bispo e presidente das organizaes de comunicao da Igreja Universal, foi detido pela Polcia Federal, no aeroporto de Braslia, quando se preparava para viajar para a cidade de So Paulo, portando sete malas cheias de dinheiro, num montante que somava mais de dez milhes de reais. Ao ser indagado pelas autoridades federais acerca da origem daquele valor, explicou que se tratava de dzimos e ofertas doados pelos fiis numa das recentes campanhas religiosas denominadas fogueira santa de Israel, realizadas pela IURD, e que a quantia estava sendo levada administrao central da Igreja, localizada na capital paulista. Mais tarde, constatouse que em outras regies do pas foram arrecadados, de igual modo, valores suntuosos nos milhares de templos iurdianos e tambm remetidos sede da referida Igreja. notria a capacidade iurdiana de operar a multiplicao de nmeros. Em pouco mais de duas dcadas conseguiu atrair para si um grande nmero de seguidores que a faz ostentar hoje o quarto lugar em membros, em relao s demais igrejas evanglicas atuantes no pas.1 Viu rapidamente seus templos se espalharem em todos os recantos do pas, ocupando imveis anteriormente usados como lojas e tantos outros estabelecimentos comerciais de grande porte, que fecharam as suas portas para dar lugar aos cultos iurdianos. Nesse sentido, alis, a IURD nasceu num contexto marcado por crises e parece encontrar neste elemento um dos componentes externos que contribuem para a sua propagao. Sua dinmica e impactante atuao no campo religioso se deve no apenas ao seu rpido crescimento, visibilidade e capacidade de arregimentao de fiis, mas tambm s inovaes que promoveu: ao invs de templos convencionais para os seus cultos ou reunies, a transformao de locais normalmente tidos pelos evanglicos como profanos em espaos sagrados - a exemplo de casas de shows e cinemas - inseridos em meio s aglomeraes; o uso intenso dos meios de comunicao de massa, mediante compra de horrios no rdio e na1

DOSSI: Religies no Brasil. Estudos Avanados, So Paulo, USP, n. 52, p. 15, 2004.

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TV, ou mesmo pela aquisio desses meios de comunicao para o anncio de sua mensagem; grande nfase no dinheiro como parte da vida religiosa, promovendo enorme visibilidade social e projeo econmica da Igreja, com altas taxas de arrecadao financeira, posse de milhares de templos, alm de diversos empreendimentos paralelos tais como, gravadoras, editoras, livrarias, instituies bancrias e do ramo da construo civil. A Igreja Universal, evidentemente, no consiste em um movimento isolado, mas participa de um processo de transformao do campo religioso brasileiro ocorrido sobretudo nas trs ltimas dcadas. Nessas mutaes, as expresses de f genericamente identificadas como evanglicas,2 tm obtido os melhores resultados em termos de crescimento. Dados catalogados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica - IBGE, relativos aos censos demogrficos realizados em tal perodo, constatam essa afirmativa. Em 1940, os evanglicos representavam 2,6% da populao; em 1950, 3,4%. Em 1970, de uma populao composta de pouco mais de 90 milhes, os evanglicos somavam 5,17%; em 1980, eram cerca de 120 milhes de brasileiros, e os evanglicos totalizavam 6,62%. Os dados relativos ao Censo Demogrfico realizado em 1991, indicaram uma populao de mais de 146 milhes e um total de 8,98% de fiis. No incio da dcada de 1990, a revista Veja exibindo como manchete de capa A f que move multides avana no pas - tambm apontava para esta projeo:Cerca de 16 milhes de pessoas no pas, especialmente a imensa massa de descamisados colocados margem da modernidade e progresso, j rezam pela cartilha dessas igrejas barulhentas que em seus cultos cheios de cnticos e emoes prometem curas, milagres e prosperidade instantnea na terra.3

Em 2000, prximos dos 170 milhes de habitantes, os evanglicos superaram as cifras dos 26 milhes, perfazendo 15,5% dessa populao. 4 Em nmeros absolutos, o crescimento desse grupo, na ltima dcada, da ordem de 100/%, pois eles passaram de 13 milhes em 1991 para os mais de 26 milhes atuais.5 Tambm se destacaNo campo religioso brasileiro torna-se cada vez mais difcil delimitar ou conceituar com maior preciso a categoria evanglico, j que engloba um nmero importante de igrejas com grande diversidade organizacional, teolgica e litrgica. Em geral, remete a um conjunto de caractersticas que traam um perfil relativamente definido de um grupo que engloba um nmero cada vez mais significativo de pessoas, mas com muitas fragmentaes e divergncias internas. Assim, gozando de extraordinria autonomia, cada uma se projeta no espao social segundo iniciativa dos pastores ou de suas comunidades locais, por no possuir um rgo institucional que as normatize ou as regularize. Cf MONTES, Maria Lucia. As figuras do sagrado: entre o pblico e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Histria da vida privada no Brasil 4. Contrastes da intimidade contempornea. So Paulo: Companhia da Letras, 2002, p. 87. 3 Revista Veja, So Paulo, n. 19, p. 40-44, 16 maio 1990. 4 Estudos Avanados. Op. cit., p. 15, 16. 5 Ver SIEPIERSKI, Carlos Tadeu. O Sagrado num mundo em transformao. So Paulo: Edies ABHR, 2003, p. 26, 27.2

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que, dos nmeros anteriormente apresentados pelas pesquisas nas duas ltimas dcadas, de cada dez crentes sete se declaram pentecostais ou neopentecostais.6 O censo realizado pelo ISER, em 1991, revelava que j se abria naquele momento um templo evanglico a cada dia til no Rio de Janeiro. Segundo dados atuais do IBGE, cerca de 600 mil brasileiros se convertem a cada ano a alguma denominao com esse perfil religioso. Em decorrncia de tal projeo, h inclusive hoje uma assimilao cultural da liturgia e do vocabulrio evanglico, fazendo que cada vez mais nas ruas e locais pblicos, por exemplo, pessoas exibam camisetas e estampem adesivos nos seus automveis com dizeres que representam essa nova tendncia religiosa. Em meio a essas remodelaes do campo religioso brasileiro, o fenmeno iurdiano se apresenta, pois, um instigante desafio aos que se dedicam a compreend-lo, especialmente por atuar em fronteiras da liminaridade, estabelecida como flexibilidade do que se convenciona classificar como sagrado e profano, ortodoxo e hertico, erudito e folclrico, sacerdcio e magia. E justamente pelos aspectos emblemticos que envolvem tal segmento religioso que advm o ttulo dado a essa pesquisa: Sindicato de Mgicos. Ainda que guisa de introduo, vale justificar o emprego desses termos para intitular o presente trabalho. Em relao magia, pode-se conceitu-la como tudo aquilo que, baseado na lgica do natural e do sobrenatural, tenta inverter as formas naturais das coisas, ou seja, a crena de que determinadas pessoas so capazes de controlar foras ocultas (pessoais ou impessoais) e intervir nas leis da natureza por intermdio de procedimentos rituais. Os adeptos da magia acreditam que por palavras ou encantamentos podem alterar o curso dos acontecimentos. Conectados com os mitos,7 os ritos mgicos permitem que os seus adeptos, atravs da manipulao de foras imaginrias da natureza ou apelos a espritos imaginrios, obtenham foras para buscar seus objetivos. Essa fora tem sido entendida normalmente como uma atividade de substituio nas situaes em que faltam meios prticos para conseguir um objetivo; e uma de suas funes dar ao ser humano coragem, alvio, esperana, tenacidade:D a a f o r m a m i m t i c a d o s r i t o s , a c o n v e r s o d e a t o s s u g e r i d o s p e l o s fins visados. Assim, a magia produz o mesmo resultado subjetivo que a ao emprica teria conseguido, restaura-se a confiana, e seja qual for o programa em que esteja engajada, ele pode ser levado a va n t e . 8

Revista Eclsia, Rio de Janeiro, p. 46, abr. 2000. PIERUCCI, Antnio Flvio. Magia. So Paulo: PubliFolha, 2001, p. 78. 8 EVANS-PRITCHARD, E. E. Antropologia social da religio. Rio de Janeiro: Campus, 1978, p. 53, 61.6 7

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Essa recorrncia a foras supra-sensveis ganha normalmente maior evidncia quando os problemas concretos que se enfrenta no encontram outras solues mais rotineiras, mais ordinariamente humanas. Na experincia com o cotidiano existencial, o ser humano se depara com o desconhecido, com o mistrio, que se manifesta, por exemplo, na doena, na morte, nas calamidades. Para superar essa ameaa de caos que o mistrio pode provocar que se recorre magia.9 Onde quer que o ser humano chegue a uma lacuna intransponvel, a um hiato em seu conhecimento e em seus poderes de controle prtico, surge o espao de operao da magia:O pensamento mgico imagina que neste mundo existem foras ocultas portadoras de infortnios e adversidades, provocadores de baques e acidentes imprevisveis (...) incndio, seca, pragas na lavoura, doenas e epidemias que se abatem sobre seres humanos e a ni m a i s ( . . . ) f o r a s s u p r a - s e n s v e i s q u e p r o d u z e m a c o n t e c i m e n t o s inesperveis, interferindo negativamente em sua vida e ultrapassando as explicaes armazenadas no conhecimento tcnico que seu grupo partilha. para se controlar essas interferncias que se recorre magia.10

Levando a efeito seus ritos, portanto, os magos se propem a ajudar aos que a eles recorrem a lidar com seus problemas e seus contra-tempos, eliminando o desespero que inibe a ao do indivduo, fornecendo-lhe um sentido renovado do valor da vida e das atividades que a compem.11 Na Igreja Universal isto o que tambm ocorre. Com plasticidade, em seus rituais e procedimentos, estabelece uma relao de apropriao resignificadora do mundo mgico das religies afro-brasileiras e do catolicismo de devoo folclrica, realizando, ali, prticas de magia que cruzam as fronteiras normalmente estabelecidas pelo que se convencionou entender por religio. Para a satisfao das necessidades e desejos dos que procuram os seus templos, lderes iurdianos disponibilizam aos fiis objetos simblicos ou talisms carregados de energias benficas, direcionados soluo dos casos mais difceis, como a falta de sade, de prosperidade e sucesso na vida. Acredita-se que tais objetos tm eficcia mgica e, portanto, capacidade para proteger de todos os males atribudos e personalizados na figura do demnio. Nos discursos, nas literaturas e nas reunies ritualsticas, pastores e bispos falam de foras espirituais e ms que constantemente interferem na vida cotidiana das pessoas; tambm praticam-se curas - tal como os antigos taumaturgos, curandeiros ou xams - usando-se, para isso, ritos mgicos e exorcistas.Cf. BRONOWSKI, J. Magia, cincia e civilizao. Lisboa: Edies 70, 1986, p. 49, 50. MALINOWSKI, Bronislaw. Magic, science, and religion. Em: James Needham (Ed.), Science, religion and reality. London: Free Prees, 1925. Apud PIERUCCI, A. F. Magia. Op. cit., p. 56. 11 EVANS-PRITCHARD, E. E. Op. cit., p. 68.9 10

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J o emprego do termo sindicato, no ttulo desta pesquisa, d-se pelo fato do movimento iurdiano ter surgido e obtido projeo sob o comando de lderes atuantes na liminaridade, os quais podem ser identificados como empresrios autnomos de salvao. Utilizando-se da conceituao empregada por Max Weber, e retomada por Bourdieu,12 podese identificar o mago como agente religioso independente que se utiliza dos bens simblicos produzidos no campo religioso para atender a interesses imediatos daqueles que recorrem aos seus servios. Os agentes mgicos normalmente exercem uma profisso sem vnculo institucional e, por essa razo, tendem a ser combatidos ou desqualificados pelos sacerdotes representantes da instituio oficial - que vem na magia uma apropriao indevida ou manipulao de bens religiosos para finalidades interesseiras. liderana de um lder carismtico de maior projeo juntam-se outros mgicos, sendo por aquele credenciados com legitimidade para o exerccio de suas funes. Forma-se, desta maneira, um sindicato composto por agentes autnomos que independem, portanto, das sanes institucionais, cuja autoridade provm diretamente do carisma que ostentam perante os adeptos. Nas prticas da IURD, a fora de organizao da magia e do carisma, enquanto poder simblico, tem origem coletiva em formas de delegaes geradas pelo prprio grupo. Com isso, a magia se organiza, sindicaliza-se e se fortalece em uma espcie de confraria, mantendo, assim, o seu carter de ruptura com normas ou padres ritualsticos estabelecidos por expresses religiosas dominantes. O termo sindicato tambm plausvel para representar a fora mobilizadora de um movimento de massas, que confronta, no mbito religioso, as instuies tradicionalmente estabelecidas, reivindicando direitos de proclamar a sua mensagem aos moldes de uma inveno puramente nacional em termos de doutrina e rito, viabilizando oportunidades a um contingente que tem ficado s margens para que seja sujeito de sua prpria experincia com o sagrado. Magos, xams ou feiticeiros, no importa como sejam chamados, sempre existiram nas sociedades, atuando no anonimato ou s margens de religies oficiais. Porm, no movimento iurdiano, sob a titulao de bispos ou pastores, tais funes se conjugam eficazmente numa pastoral-mgica e ganham a luz do dia, assumindo identidades. Mesmo com certos mecanismos de organizao, os lderes iurdianos no se prendem jamais rotina religiosa que configura o papel sacerdotal no mbito de uma igreja. um movimento que se institucionalizou sem perder os elementos mgicos, no se permitiu tornar-se uma religio.12

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simblicas. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2000.

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Por isso mesmo, o culto novidade todo dia, sem cair no formalismo litrgico da tipologia eclesistica institucional ou sacerdotal. Cada reunio se torna um novo espetculo, com plenitude de sentido, de emoo compartilhada, comungada na mesma paixo, ligando os homens s potncias sagradas que o animam.13 Os ritos so criativamente renovados, numa atualizao permanente, propiciando um leque de novas opes a serem trilhadas a qualquer momento, sem o engessamento cerceador encontrado nas grandes instituies religiosas. No estando preso instituio, o bispo Macedo, por exemplo, tem autonomia de mobilidade. bispo sem deixar de ser profeta, de ser mago ou xam. Este fator contribui para que a histria da IURD seja construda na vividez do inesperado e do desconhecido, envolta pelo elemento do mistrio que emblematicamente configura a crena em suas expresses mais encantadas. Outro aspecto relacionado ao ttulo Sindicato de Mgicos se refere ao poder de alquimia o qual magicamente faz que o grupo iurdiano no apenas rompa em suas prticas coletivas com alguns conceitos ou tipologias - que classicamente tm sido utilizados por tericos ou pesquisadores de temas religiosos - mas tambm requeira novas abordagens para a compreenso de um novo tipo de experincia envolvendo o sagrado no cenrio religioso brasileiro. Essa Igreja consegue eficazmente aglutinar vrios outros elementos configurados no campo e que aparentemente seriam opostos ou concorrentes entre si. Assim, so vivenciados, ali, aparentes paradoxos ou contradies, mas que emblematicamente ganham sentido e coerncia a partir de regras que o campo religioso capaz de promover: denominando-se igreja, esse segmento possui prticas notadamente caracterizadas por magia, por messianismo ou profetismo; as representaes messinicas nela configuradas ocorrem no mais no contexto rural - como tradicionalmente se denotou nos movimentos com tais perfis fazendo que as fronteiras convencionalmente estabelecidas entre o que rural e urbano sejam rompidas, tornando assim a cidade, teoricamente definida como lugar de desencantamento, local de magificao do sagrado em suas expresses mais primitivas. Ao mesmo tempo em que combate as crenas afro-brasileiras, a IURD diretamente delas depende para a constituio de suas prticas, reeditando-as, inclusive, com outros nomes. Os lderes, denominados pastores ou bispos como dito anteriormente - assumem para os fiis diferentes representaes: mago, messias, profeta, fato que caracteriza um movimento surgido com proposta proftica, passando a se aproximar de uma instituio, sem permitir, contudo, a institucionalizao de suas prticas. Ao mesmo tempo em que se denominaSCHMITT, Jean-Claude. Ritos. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Orgs.). Dicionrio temtico do ocidente medieval. Bauru: EDUSC, 2002, p. 416.13

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evanglica, mantendo vnculos com o protestantismo histrico14 ou com o pentecostalismo clssico,15 na verdade, reinventa-os, configurando uma nova tipologia, a qual provocativamente desafia os pesquisadores quanto sua definio pelas novas figuras de sagrado apresentadas. Ao contrrio do que protestantes e catlicos sempre prezaram em relao ao cuidado de se preparar para a vida futura ps-morte, na IURD se observa a nfase de suas prticas recaindo exclusivamente no aqui e agora. Se por um lado acena para as benesses de consumo da sociedade capitalista, por outro sua mensagem acaba se colocando como uma espcie de resistncia a tal sistema, quando prope caminhos intra-histricos para se obter a superao das mazelas geradas por esse modelo de sociedade. A IURD, para a veiculao de sua mensagem, combina eficazmente o uso dos mais sofisticados meios de comunicao com antigas prticas de leitura, as quais se reportam a modelos caracterizados nos sculos XVI e XVII, numa conjugao perfeita do ultramoderno com elementos de longa durao. Em tempos de novos e agressivos recursos de comunicao e expresso, antigas prticas de leitura resistem e continuam desempenhando o papel de promover a seduo do sagrado e a retraduo de um fertilssimo passado cultural no mundo contemporneo. Uma igreja que investe no imediato mas que, no entanto, mantm suas razes fincadas na longa durao.16 Ou ainda, o enigma de possuir a capacidade de obter os maiores xitos de projeo e recrutamento de novos fiis nos momentos em que sofre grandes ataques por parte de movimentos religiosos concorrentes ou de outros setores da sociedade. Em sntese, o emprego do ttulo Sindicato de Mgicos no significa que a IURD seja apenas magia, mas sim, que ela opera magicamente em outros nveis que o capital cultural do campo religioso brasileiro lhe disponibiliza; e mais: ela reinventa-o, redescobrindo a magia nele existente e criando algo absolutamente novo. Outra dimenso da pesquisa pressuposto no subttulo uma histria cultural da Igreja Universal do Reino de Deus refere-se ao aspecto terico-metodolgico,Segmento cristo representado por diferentes denominaes religiosas que surgiram a partir da Reforma Protestante liderada por Martinho Lutero, na Alemanha, no sculo XVI, como por exemplo, as igrejas Luterana, Presbiteriana, Batista, Anglicana e Metodista. 15 Movimento surgido nos Estados Unidos da Amrica, no incio do sculo XX, a partir da Igreja Metodista e que ganhou notoriedade por enfatizar a prtica da glossolalia vocbulo da lngua grega que significa falar outras lnguas, cujo balbuciar de sons inarticulados, em xtase, passou a ser compreendido, por tal segmento religioso, como evidncia do que se chama de batismo com Esprito Santo. O nome pentecostalismo uma aluso ao que se entende ter sido um episdio semelhante, registrado na Bblia, em Atos 2:1-4, ocorrido com os primeiros cristos, no primeiro sculo, no dia da festa judaica denominada pentecostes. No Brasil, convencionou-se identificar como representantes do pentecostalismo clssico as primeiras igrejas que aqui se desenvolveram com tal tipologia: Assemblia de Deus e Congregao Crist no Brasil. 16 A longa durao, segundo Fernand Braudel, refere-se s chamadas permanncias na histria, no necessariamente um longo perodo cronolgico: aquela parte da histria, a das estruturas, que evolui e muda o mais lentamente (...) um ritmo lento. Cf. LE GOFF, Jacques. In: BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos. So Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 17.14

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enquanto vis de anlise a ser utilizado e, por conseguinte, propsito maior da tese ora desenvolvida: compreender o fenmeno iurdiano a partir da historiografia, proporcionando com isso uma nova abordagem, que v alm das anlises e explicaes at agora apresentadas quase sempre sob outras perspectivas. Vale dizer que, no s pelo crescimento e projeo, mas tambm pelo aspecto emblemtico que a envolve desde o seu surgimento, a IURD tem se tornado objeto de vrias explicaes, suscitando diferentes esforos por compreend-la enquanto expresso do sagrado produzido pelo campo religioso brasileiro, em suas remodelaes mais recentes. Podem ser destacados trs setores que tm se empenhado em descrever ou interpretar o movimento iurdiano: a mdia, outros segmentos religiosos e a academia. Por parte da mdia, at mesmo por perceber o crescimento da concorrncia pelo controle dos meios de comunicao, a religiosidade iurdiana quase sempre tem sido classificada em tom de estigmatizao, sob acusao de charlatanismo, mercantilizao da f ou curandeirismo, como se fosse apenas uma forma maquiavlica de explorar financeiramente a boa f de pessoas humildes ou desavisadas, conforme se pode observar no exemplo abaixo:S ur g e m e m m e i o a e s t a q u e s t o , f a l s o s l d e r e s q u e u s a m e s s a s tcnicas de pregao em benefcio do prprio bolso. Exatamente por essa razo so raras as capitais brasileiras onde pelo menos um pastor no esteja sendo alvo de um processo criminal por c ha r l a t a n i s m o , e n r i q u e c i m e n t o i l c i t o e a t e n t a d o e c o n o m i a popular.17

medida que o movimento continuou se propagando, a postura da imprensa foi a de tambm aumentar o nmero de reportagens sobre o que considera tticas mercantilistas dessa Igreja: Que o bispo Edir Macedo mercadeja a f, incitando os fiis a fazer apostas em dinheiro com Deus nas quais sua igreja sempre ganha, j se tornou lugarcomum.18 Em outra matria jornalstica recente, com manchete de capa intitulada A nao evanglica, o maior pas catlico do mundo est se tornando cada vez mais evanglico, a revista Veja tambm publicou:( .. . ) o d i n h e i r o , n a f o r m a d e d z i m o , a o s e t r a n s f e r i r p a r a a m o d e pastores que vem a religio como negcio, tem gerado tanto o crescimento de muitas denominaes quanto maracutaias, denncias, investigaes. (...) Um dos ramos evanglicos criou at um dzimo superfaturado: o fiel deve dar antecipadamente 10% do valor que pretende alcanar como uma graa do Senhor, e no daquilo que efetivamente recebe (...) As acusaes mais freqentes contra pastores evanglicos tratam de estelionato e crimes fiscais. O pastor17 18

Revista Veja, So Paulo, p. 40, 16 maio 1990. Revista Veja, So Paulo, 03 jan. 1996.

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D av i M i r a n d a , f u n d a d o r d a D e u s A m o r , p o r e v a s o d e d i v i s a s . A I gr e j a R e n a s c e r e m C r i s t o e n f r e n t a m a i s d e c i n q e n t a p r o c e s s o s movidos por ex-fiis. Seus fundadores, o apstolo Estevam H er n a n d e s e a b i s p a S o n i a H e r n a n d e s , s o a c u s a d o s d e d a r u m calote de 12 milhes de reais.19

Outra tendncia da mdia tem sido a de genericamente atribuir o xito dessas prticas religiosas aos problemas econmicos do pas: Pr um terno para freqentar o culto, levar uma Bblia embaixo do brao e ser visto como um modelo de honestidade, para esses crentes pobres, alcanar pelo menos um peda do paraso da cidadania.2 0 Um segundo esforo explicativo provm de outros segmentos religiosos atuantes no contexto brasileiro. O crescente surgimento de inmeros pequenos templos que passaram a ganhar visibilidade social, sobretudo nas grandes cidades do pas, despertou pesquisadores pertencentes a outras tradies crists. Nas dcadas de 1960 e 1970, por exemplo, a Igreja Catlica encomendou vrias pesquisas sobre as razes da converso de catlicos s igrejas evanglicas. Alertava-se para os perigos das heresias modernas, incluindo, juntamente com o espiritismo e a maonaria, o pentecostalismo. Por outro lado, os protestantes histricos ou clssicos tambm demonstraram interesse em compreender as razes do sucesso pentecostal. Inquietava-lhes o fato de estarem j estabelecidos no Brasil desde o sculo XIX e no terem ultrapassado a condio de minoria religiosa, no conseguindo constituir-se em opo de massas no pas, como ocorria com esses novos segmentos religiosos. O depoimento de um pastor presbiteriano21 retrata e ilustra bem a interpretao feita pelo protestantismo diante das repercusses e impactos causados pela atuao da IURD:O Brasil uma terra formidvel. D de tudo (...) Deu para dar milagre, agora, nesta terra. Algum, anjo ou demnio, andou semeando sobre as cabeas, a estapafrdia idia do milagre (...) f or m a s a b e r r a n t e s d o p r o t e s t a n t i s m o , n u m c o m p l e t o r e p d i o tradio de crtica e de equilbrio que caracterizou a Reforma, produzem tambm os seus taumaturgos (...) O po, o remdio, a instituio e a dignidade do poder pblico so, positivamente, o maior antdoto para a milagreirice (sic) desenfreada, que arrasta e e xp l o r a n o s s o p o b r e p o v o . 2 2

Revista Veja, So Paulo, p. 93, 03 jul. 2002. Ibid. 21 O presbiterianismo consiste numa das ramificaes do calvinismo, surgido em Genebra, na Sua, sob a liderana de Joo Calvino, no perodo da Reforma Protestante, no sculo XVI. Tal segmento protestante tem como um dos seus pressupostos teolgicos a acumulao de lucro pela tica do trabalho como um sinal da eleio e bno divinas. 22 BOAVENTURA, Lus Pereira. Jornal O Paran Evanglico, Londrina PR, p. 02, jun. 1980. Exemplar disponvel no acervo do Centro de Documentao e Pesquisa em Histria - Faculdade Teolgica Sul Americana, em Londrina PR.19 20

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Entre os prprios segmentos pentecostais no tem sido diferente a inquietao acerca da IURD. Diante do episdio envolvendo as malas de dinheiro, anteriormente citado, o influente pastor e escritor Ricardo Gondim, lder da Igreja Assemblia de Deus maior igreja evanglica em nmero de membros no Brasil - em tom de denncia e protesto proferiu as seguintes palavras:As sete malas cheias de dinheiro apreendidas em Braslia provocam minha indignao. No, no estou zangado s com a Igreja U ni v e r s a l d o R e i n o d e D e u s e s e u p r e s i d e n t e , o d e p u t a d o J o o Batista Ramos. Tambm estou com raiva de mim mesmo. Eu precisava ter afirmado, com todas as letras, que essa igreja uma empulhao medonha; seus bispos, picaretas e seu fundador, um maquiavlico estrategista. Por que tive receios de denunciar suas interminveis campanhas de libertao? Eu no notava que eram meros artifcios para extorquir o povo? Lamento no haver nomeado essa falsa igreja em artigos. H muito, percebia que o dinheiro dos crentes era insuficiente para bancar suas mega catedrais, redes de televiso, inmeras estaes de rdio, avies, helicpteros e financiamento de eleies. A maioria do povo brasileiro ganha salrio mnimo e por mais que comparecesse a seus vrios cultos e f os s e e s p o l i a d o , n o h a v i a c o m o f i n a n c i a r t a n t a m e g a l o m a n i a . N o e nt e n d o p o r q u e n o a l a r d e e i q u e e s s e c l e r o d a U n i v e r s a l c o m p o s t o de lobos, que j nem se preocupam de fantasiar-se de cordeiros. Eles representam a escria nacional. Por que me embaracei com a pecha que a imprensa lhes dava de charlates vigaristas e estelionatrios? Eu sabia que pastores obcecados pelo poder, terminam como Lcifer. Eu devia ter apontado que o sucesso da U ni v e r s a l r e s u l t a d o d a s u a f a l t a d e e s c r p u l o s . E s s a e m p r e s a religiosa explora o povo que mendiga esperana. Chegou a hora de outras igrejas se unirem e afirmarem, como fizeram os portugueses h vrios anos, que a Universal no evanglica. Ela precisa ser a po n t a d a c o m o u m m o v i m e n t o a p s t a t a , q u e n o p r e g a o s v a l o r e s d o Evangelho. L, ensina-se a amar o que Jesus proibiu: dinheiro, ganncia e glria humana. Seus cultos no buscam gerar uma espiritualidade livre. As pessoas so induzidas ao medo. Eles incutem sentimentos de culpa e geram neurticos religiosos, que precisam aplacar seus traumas com dinheiro. 23

Uma terceira dimenso explicativa engloba propriamente o campo acadmico. Tm-se avolumado as tentativas de compreenso dessas novas expresses religiosas, especialmente pelo seu grande apelo s massas e pelo novo perfil por elas criado em relao s tipologias que j demarcavam a configurao do cenrio religioso do pas. Inicialmente, empenharam-se nessa tarefa alguns cientistas sociais, com destaque para o trabalho pioneiro de Beatriz Muniz de Souza, publicado em 1969, com o ttulo A experincia da salvao: Pentecostais em So Paulo. Porm, nos anos 70 ainda eram poucos os estudos que se propunham a explicar o significado e o crescimento de grupos pentecostais no Brasil. E, mesmo em 1984, Rubem Csar Fernandez ainda afirmava: os crentes so23

http: // www.ricardogondim.com.br/artigos. Acesso em: 27 jul. 2005.

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minoria no pas e tambm nos estudos sobre religio.24 Mas foi a partir de 1980, com mais de 13 milhes de adeptos e 80 anos no Brasil, englobando centenas de denominaes de pequeno, mdio ou grande porte, que as novas expresses evanglicas se tornaram finalmente objeto de grande interesse das pesquisas acadmicas, rendendo a publicao de vrios artigos e livros. A seguir, so apresentados alguns desses principais trabalhos que representam diferentes olhares ou interpretaes de autores brasileiros sobre a Igreja Universal. O propsito observar algumas de suas contribuies, mas, principalmente, os seus limites explicativos, para que melhor se perceba a necessidade de se avanar no alcance de anlise a partir de um outro parmetro de investigao: o vis historiogrfico. Um detalhado mapeamento da configurao do campo religioso brasileiro, referente ao perodo que delineia o advento iurdiano, feito por Maria Lucia Montes, na obra Histria da Vida Privada no Brasil, volume 4. Nesse texto , a autora aponta para um deslocamento do pblico para o privado que a economia do simblico tem sofrido no contexto brasileiro. So sinais dessas mudanas e da ascenso de novos fenmenos religiosos os seguintes aspectos:A evidente ampliao e diversificao do mercado dos bens da salvao. Igrejas enfim gerenciadas como verdadeiras empresas. Os modernos meios de comunicao de massa postos a servio da c on q u i s t a d a s a l m a s . I n s t i t u i e s r e l i g i o s a s q u e , d o p o n t o d e v i s t a organizacional, doutrinrio e litrgico, pareciam fragilizar-se ao e xt r e m o , m a i s o u m e n o s e n t r e g u e s i m p r o v i s a o a d h o c s o b r e sistemas de crenas fludos, deixando ao encargo dos fiis c om p l e m e n t a r e m s u a m a n e i r a a r i t u a l i z a o d a s p r t i c a s r e l i g i o s a s e o conjunto de valores espirituais que elas supem. Uma maior a ut o n o m i a r e c o n h e c i d a a o s i n d i v d u o s q u e , u m p a s s o a d i a n t e , s e r i a m julgados em condio de escolher livremente sua prpria religio, diante de um mercado em expanso. (...) Proliferao de seitas, f ra g m e n t a o d e c r e n a s e p r t i c a s d e v o c i o n a i s , s e u a r r a n j o c on s t a n t e a o s a b o r d e c r e n a s e p r t i c a s p e s s o a i s o u d a s v i c i s s i t u d e s da vida ntima de cada um.25

Montes registra transformaes profundas observadas nas ltimas dcadas no campo religioso brasileiro e que nos anos 90 emergiram escancaradamente superfcie.26 Essa autora aponta algumas das caractersticas dessas mutaes. Primeiro, h um novo poder de dimenses inditas do protestantismo no Brasil, pas tradicionalmente considerado catlico. Segundo, uma transformao importante no prprio campo protestante, evidenciada pelo crescimento no interior do protestantismo histrico e muitas vezes emFERNANDES, R. C. Religies populares: uma viso parcial da literatura recente. Boletim Informativo de Cincias Sociais, ANPOCS/ USP, So Paulo, p. 84, 1984. 25 MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o pblico e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p. 63-171. 26 Id., ibid., p. 68.24

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oposio a ele. E, por fim, a transformao em curso significava mutao interna, demonstrada pela proximidade com os compsitos das crenas afro-brasileiras. Tais remodelaes envolveram maior fluidez, baixo grau de institucionalizao das igrejas e o uso dos modernos meios de comunicao de massa a servio da conquista das almas. As anlises feitas por Maria Lucia Montes so de grande relevncia, especialmente por identificar um elemento decisivo: a fragmentao de crenas e prticas devocionais e seu rearranjo ao sabor das inclinaes pessoais ou das vicissitudes da vida ntima de cada um.27 Porm, trata-se de um trabalho de mapeamento amplo do campo, sem uma concentrao mais especfica no caso da Igreja Universal, que o propsito do trabalho que ora desenvolvemos. Mas a prpria autora faz uma observao instigante ao lembrar a necessidade de um aprofundamento na investigao das razes mais profundas do recente rearranjo global do cenrio religioso do pas, quando diz que seus efeitos ainda deveriam ser melhor explorados para que pudessem ser devidamente avaliados. Menciona ainda dois aspectos que justificam a importncia de se trabalhar com conceitos empregados por Pierre Bourdieu no empreendimento dessas novas pesquisas: a economia do simblico e a gnese do campo religioso. Argumenta Montes: nunca a economia poltica do simblico havia parecido mais adequada explicao do fenmeno religioso no Brasil;28 e ainda, supe-se que se compreenda em primeiro lugar (...) a gnese das transformaes que resultaram na atual configurao do campo religioso brasileiro.29 O socilogo Ricardo Mariano autor de uma dissertao de Mestrado, apresentada na Universidade de So Paulo, publicada com ttulo Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. 30 Esse trabalho se tornou referncia na abordagem dessa temtica. A partir de exaustiva pesquisa de campo, tendo como universo terico a sociologia compreensiva de origem weberiana, descreve as mudanas ocorridas no pentecostalismo brasileiro, apresentando a Igreja Universal como a principal representante desse novo perfil. Mariano discute as tipologias das formaes pentecostais, faz relato da histria e da organizao das denominaes que classifica como representantes do neopentecostalismo: Universal do Reino de Deus, Internacional a Graa de Deus, Renascer em Cristo e Comunidade Evanglica Sara a Nossa Terra; e, por fim, analisa as caractersticas distintivas desse novo segmento evanglico, a saber: a guerra contra o Diabo, a liberao dos usos eId., ibid., p. 69. Id., ibid. 29 Id., ibid., p. 71. 30 MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. So Paulo: Loyola, 1999.27 28

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costumes e, principalmente, a Teologia da Prosperidade. Analisa o papel de seduo que esse modelo de teologia exerce sobre os adeptos ao propor que os cristos se tornam scios de Deus medida que financiam a obra divina, o que lhes outorga o direito de usufrurem os melhores produtos oferecidos pelo mercado, serem felizes, saudveis e vitoriosos em todos os seus empreendimentos aspectos esses que pem em xeque o velho ascetismo pentecostal. No obstante a relevncia do trabalho de Mariano, especialmente pelo pioneirismo da abordagem de um fenmeno religioso que cada vez mais marcava presena no pas, a pesquisa apresenta limites: fica restrita abordagem de cunho sociolgico, no trabalhando por isso com os elementos histricos mais profundos de longa durao que propiciaram o surgimento das prticas como as que se observam no movimento iurdiano; enfatiza-se bastante o estrangeirismo de algumas prticas, como a Teologia da Prosperidade, como se o campo religioso brasileiro fosse mais um receptculo de reproduo de experincias externas, sem que seja diretamente produtor desses bens simblicos; essas novas expresses se projetam por um processo de adaptao ou acomodao aos novos valores da sociedade, como uma religio de mercado, em que h produtores e consumidores. O trabalho do socilogo Leonildo Silveira Campos, intitulado Teatro, Templo e Mercado,31 originalmente uma tese de doutorado, posteriormente publicado, consiste numa anlise minuciosa da Igreja Universal do Reino de Deus em que se destacam a partir das figuras empregadas no ttulo a maneira como o sagrado ritualisticamente vivenciado nas prticas desse segmento religioso e, principalmente, as estratgicas de mercado empregadas por essa igreja. No obstante os valores da pesquisa, sobretudo pelo trabalho de campo realizado, a IURD descrita mais como um empreendimento que lana mo de estratgias de propaganda e marketing, gerenciamento empresarial e investimento pesado no uso dos meios de comunicao de massa para obteno de seus resultados, principalmente em relao s camadas mais perifricas da sociedade brasileira. A Universal, inserida num mercado de bens simblicos, apresentada como tendo seu foco voltado s necessidades do cliente, demonstrando agilidade no lanamento de novos produtos. O trabalho de Campos, portanto, no se prope a investigar os elementos culturais de longa durao que configuram as expresses religiosas do pas e que possibilitaram o xito e a sustentao das prticas que hoje se observam no movimento iurdiano.

CAMPOS, Leonildo Silveira. Teatro, templo e mercado. Organizao e marketing de um empreendimento neopentecostal. Petrpolis: Vozes, 1997.31

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O trabalho Igreja Universal do Reino de Deus, os novos conquistadores da f,32 apresenta uma coletnea de artigos sobre a expanso internacional da IURD, hoje presente em mais de 100 pases. Destaca que essa expanso efetuou-se graas a um verdadeiro imprio financeiro, miditico e, s vezes, poltico, mas tambm graas sua grande capacidade de adaptao s diversidades locais. Rapidamente ela superou numericamente outras igrejas multinacionais, mantendo brasileiros nos postos de comando na maioria dos pases. Destaca-se, na presente obra, que a IURD procura mobilizar um imaginrio globalizado em diferentes lugares, porm, flexvel para encontrar outras representaes do Diabo e seus demnios visando a obteno de ressonncia de sua mensagem. Assim, internacionalmente, a frmula made in Brazil iurdiana se apresenta sob cores de mestiagem, fazendo que os pastores se adaptem s condies locais de cultos carismticos. Naturalmente, analisar como a IURD consegue xito em outros contextos culturais, diferentes daquele que lhe deu origem em solo brasileiro, apresenta-se uma temtica instigante para pesquisas. Porm, no trabalho aqui proposto, a meta investigar o espao e as circunstncias que lhe propiciaram originalmente surgimento e projeo, ou seja, estabelecer como recorte ao campo religioso-cultural brasileiro. Hlide Maria S. Campos, em dissertao de mestrado de Comunicao Social, posteriormente publicada com o ttulo Catedral Eletrnica, analisa a Igreja Universal do Reino de Deus como igreja eletrnica, ou seja, a nova tendncia de mudana da igreja para o interior dos lares. A autora se prope a compreender como interagem comunicadores e destinatrios frente s cmeras de TV, pois muitas pessoas trocaram os bancos das igrejas pelo confortvel aconchego de seus sofs.33 Entretanto, no obstante ao recorrente uso da TV para a veiculao de sua mensagem, a IURD no deve ser classificada como igreja eletrnica, pois o prprio bispo Edir Macedo faz questo de posicionar-se contrrio a essa idia. Em entrevista concedida revista Veja, o bispo afirmou que os televangelistas eletrnicos oferecem espetculos, que geram pessoas acomodadas em casa e por comodismo deixam de ir aos templos: Sou contra a igreja eletrnica do tipo das existentes nos Estados Unidos, em que o pastor fica no vdeo e as pessoas o assistem em casa, distraindo-se com a campainha da porta ou com o gato que mia. Na minha igreja preferimos o contato direto com o povo.34CORTEN, Andr; DOZON, Jean-Pierre; ORO, Ari Pedro (Orgs.). Igreja Universal do Reino de Deus: os novos conquistadores da f. So Paulo: Paulinas, 2003, p. 23. 33 CAMPOS, Hlide Maria Santos. Catedral eletrnica. Itu SP: Ottoni Editora, 2002, p. 14. 34 Revista Veja, So Paulo, p. 30, 14 nov. 1990.32

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Outra obra publicada, Converso ou Adeso: uma reflexo sobre o neopentecostalismo no Brasil, de Estevam Fernandes de Oliveira,35 consiste numa dissertao de mestrado em Sociologia, que se prope a mostrar como o neopentecostalismo, especialmente a IURD, caracteriza-se pela identificao com a cultura religiosa brasileira a qual combina elementos do catolicismo, religies dos escravos africanos e crenas indgenas, que formaram um sincretismo, dando origem a uma matriz simblica, um ncleo comum. Nesse caso, segundo o autor, no haveria nas propostas da IURD uma converso, e sim, uma adeso continuada, sem rupturas com aquele universo cultural matriz, facilitada pelo sincretismo. Dois principais limites podem ser observados nessa perspectiva adotada pelo autor: primeiro, o emprego do termo sincretismo; segundo, a idia de uma continuidade das prticas iurdianas. preciso ir alm destes aspectos, pois a IURD, mesmo sendo combinao de elementos, no continuidade, no simples ciso, ela se apropria de elementos do campo e cria algo absolutamente novo. De igual modo preciso haver cuidado com o emprego do termo sincretismo, pois, no caso do campo religioso brasileiro, aculturao ou hibridismo se tornam conceitos mais plausveis para anlise, como o veremos mais adiante nesta pesquisa. Ronaldo Almeida, em artigo intitulado A Universalizao do Reino de Deus,36 analisa o discurso religioso elaborado pela IURD assim como o seu expressivo crescimento. Destaca os conflitos com a Rede Globo de televiso e com a Igreja Catlica durante o segundo semestre de 1995; a partir do que so apresentados os elementos internos da IURD e de que maneira rege sua relao com a sociedade. Falando mais especificamente sobre o perfil dessa igreja, afirma-se queS ob r e o t r i p c u r a , e x o r c i s m o e p r o s p e r i d a d e f i n a n c e i r a , e t e n d o o diabo como a origem de todos os males, a Igreja Universal demarcou o seu espao no cenrio da religiosidade popular brasileira. Sem maiores elaboraes teolgicas, esta igreja, mais do que qualquer outra denominao evanglica, elaborou uma mensagem para atender s demandas mundanas imediatas.37

Esse autor comete um equvoco ao afirmar que a IURD no elabora teologia. Pois h, sim, em suas prticas, uma formulao teolgica diferente, verdade, do modelo clssico mas que se caracteriza pelo vivido, pela teologia prtica, que nasce de

OLIVEIRA, Estevam Fernandes. Converso ou adeso. Uma reflexo sobre o neopentecostalismo no Brasil. Joo Pessoa: Proclama Editora, 2004. 36 ALMEIDA, Ronaldo R. M. A Universalizao do Reino de Deus. Novos Estudos CEBRAP, So Paulo, n. 44, p. 12-23, 1996. 37 Id., ibid, p.16.35

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um imaginrio filtrado pela leitura bblica sem os crivos exegticos dos dogmas institucionais. Anders Ruuth, em tese de doutorado sobre da Igreja Universal do Reino de Deus, destaca que, dentre outros fatores, a expulso dos jesutas do Brasil, em 1759, gerou grande falta de sacerdotes e religiosos oficiais a servio da Igreja Catlica, fato este que contribuiu ainda mais para o desenvolvimento de expresses de crenas sem maior controle institucional, as quais teriam estabelecido o solo no qual movimentos contemporneos, como a Igreja Universal, fincam suas razes. As prticas vivenciadas pela IURD poderiam ser assim descritas revitalizaes do modo( .. . ) c o m o u m a p e s s o a , l i v r e d a s r e g r a s e r i t u a i s d a s i g r e j a s o f i c i a i s , particularmente da instituio religiosa dominante, expressa e realiza os seus anseios religiosos, aproveitando diferentes modelos, a nt i g o s o u c o n t e m p o r n e o s , c r i s t o s e n o - c r i s t o s p a r a b u s c a r a D eu s . A p e s s o a l i v r e p a r a s o l i c i t a r a j u d a d e r e p r e s e n t a n t e s religiosos, preferencialmente, para presentear seus deuses como tambm para oferecer algo em troca.38

O limite de abordagem desse trabalho reside, principalmente, na perspectiva quase apologtica adotado pelo autor em determinados momentos da pesquisa: submete as prticas iurdianas a dogmas preconizados pelo protestantismo clssico, deixando transparecer certa defesa pessoal em relao aos mesmos. Soma-se a essa dificuldade metodolgica, o distanciamento que o autor mantm de seu objeto de anlise, o que dificulta uma observao mais densa, isto , maior insero no universo vivenciado pelo prprio grupo, com o propsito de melhor se perceber os elementos que so plausveis para os seus agentes. O trabalho de Clara Mafra, Os Evanglicos, tambm relaciona o neopentecostalismo s transformaes ocorridas na configurao religiosa do Brasil nas ltimas dcadas, afirmando que quando do surgimento da IURD,O Rio de Janeiro j era um celeiro de produo de novas religiosidades. Entre as camadas populares, as vastas ondas migratrias que chegaram cidade, especialmente do nordeste, intensificaram o conjunto de experimentos culturais, seja com o catolicismo popular que se misturava umbanda e ao candombl cariocas; seja com o pentecostalismo clssico que se tornava mais digervel para uma classe mdia atravs de uma maior aceitao dos referentes do mundo (...). Profetas de todas as ordens circulavam nos mais diversos meios (...).39

RUUTH, Anders. Igreja Universal do Reino de Deus. Estudos de Religio. So Bernardo do Campo, UMESP, ano XV, n. 20, p. 85, jun. 2001. Artigo extrado da tese de doutorado em Teologia sobre a Igreja Universal do Reino de Deus, defendida no ISEDT, Buenos Aires, maio 1995. 39 MAFRA, Clara. Os evanglicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 37.38

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Mafra desenvolve, em seu texto, mais propriamente um mapeamento geral do campo religioso, sem maior aprofundamento em casos especficos, como o da Igreja Universal do Reino de Deus. Outra anlise da configurao religiosa brasileira atual apresentada pelos Novos Estudos CEBRAP. Nesses trabalhos, Pierucci e Prandi, afirmam que no Brasil do ltimo trinio, a vida religiosa mudou e tem mudado em um grau, uma extenso e uma velocidade nunca vistos em nossa histria. Ressaltam ainda que este processo, do qual participam o pentecostalismo, o kardecismo e a umbanda, a contraface do declnio e da eroso da religio dominante tradicional, o catolicismo, e acrescentam:O panorama religioso brasileiro tem mudado no s porque h pessoas que desertam de seus deuses tradicionais laicizando suas vidas e seus valores, mas tambm porque h outras que em nmero crescente aderem a novos deuses, ou ento redescobrem seus velhos deuses em novas maneiras.40

O antroplogo Ari Pedro Oro, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na obra Avano Pentecostal e Reao Catlica, considera trs ordens de fatores responsveis pelo crescimento evanglico no Brasil, nos ltimos anos. O primeiro fato se deve ao evangelizadora das prprias igrejas evanglicas que se atualizaram, tornaram-se empreendedoras, aproveitando os recursos da tcnica e da modernidade para uso evanglico. Na seqncia vem o momento histrico favorvel, e o que o que Oro descreve como esgotamento de modelo religioso. Num pas historicamente catlico a existncia de um ambiente social de tolerncia religiosa favoreceu a expanso dos evanglicos, bem como de outras expresses religiosas declara. E, em terceiro lugar, um certo esgotamento de um modelo religioso histrico implantado no Brasil que abriu espaos para outras possibilidades de modos de ser religioso que as igrejas evanglicas souberam ocupar.41 O trabalho de Oro contribui para anlise do crescimento do pentecostalismo, sobretudo pelo vis antropolgico adotado o qual valoriza a apropriao pelas novas expresses evanglicas do que chama de repertrio simblico. Porm, a obra no apresenta uma observao mais ampla do movimento iurdiano, pois prioriza um estudo de caso: o Estado do Rio Grande do Sul. Outras abordagens de cunho mais acadmico, que primam bastante pelo vis sociolgico, tendem a associar o advento de tal religiosidade a questes de ordem mais econmica ou social, apontando para a misria, a falta de educao, sade e o no atendimento satisfatrio por parte do Estado das necessidades do ser humano crises que sePIERUCCI, Antnio Flvio; PRANDI, Reginaldo. Religio popular e ruptura na obra de Procpio Camargo. Novos Estudos CEBRAP, So Paulo, n. 17, p. 30, 1987. 41 ORO, Ari Pedro. O avano pentecostal e reao catlica. Petrpolis: Vozes, 1996.40

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agravaram sobre o pas nas ltimas dcadas - como responsveis pela recorrncia a tais prticas. Assim, a antinomia riqueza-pobreza continua a ser recorrentemente utilizada para anlise do pentecostalismo em suas diferentes tipologias como forma de se conviver ou se combater a pobreza, como o demonstram os trabalhos de Ceclia Loreto Mariz e de Maria das Dores Campos Machado. Afirmam essas autoras que a extrema privao gera uma sensao de baixa estima, excluso, insegurana e que as religies pentecostais oferecem experincias que ajudam a superar esses sentimentos e a restabelecer a dignidade do pobre de diferentes maneiras.42 Os socilogos Richard Shaull e Waldo Csar igualmente representam bem tal perspectiva, quando afirmam que o neopentecostalismo se apresentou como uma forma encontrada pela grande massa populacional para superar suas contingncias do dia-a-dia:O aglomerado humano presente nos templos, sejam membros ou simples agregados, constitudo de homens e mulheres partcipes da grande multido que circula nas ruas da cidade, dos pobres que f or m a m o g r o s s o d a p o p u l a o b r a s i l e i r a . 4 3

Segundo o antroplogo Otvio Velho, o crescimento tanto do poder de influncia como de prestgio da IURD so provenientes da forma como ela conseguiu estar presente no dia-a-dia das pessoas alm de ajud-las a organizar suas vidas em famlia. Outro fator determinante que a igreja deixou de ser, para a sociedade, local apenas para os pobres ou problemticos, tendo alcanado tambm outras camadas sociais. Ela consegue auxiliar a populao na resoluo de seus problemas, principalmente nesses anos de tantas mudanas no pas. Esses locais tm servido de referncia para o indivduo no apenas na vida espiritual, mas tambm na rea social.44 Em entrevista ao jornal Folha Universal, o autor afirma que, no momento, as pessoas no esto mais dispostas a dar jeitinhos atravs da dependncia de santos e promessas. Querem ser respondidas por Deus.45 Contudo, h de se ressaltar que o neopentecostalismo representado pela IURD agrega hoje entre seus adeptos pessoas dos mais variados nveis econmicos e sociais: desde um contingente que se concentra nas grandes periferias at artistas famosos e empresrios bem sucedidos. Isso deixa evidente que nas prticas ali desenvolvidas a

MACHADO, Maria das Dores Campos; MARIZ, Ceclia Loreto. Sincretismo e trnsito religioso: comparando carismticos e pentecostais. Comunicaes do ISER, Rio de Janeiro, n. 45, ano 13, 1994. 43 SHAULL, Richard; CESAR, Waldo. O pentecostalismo e o futuro das igrejas crists. Petrpolis: Vozes: So Leopoldo: Sinodal, 1999, p. 45. 44 Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produes, n. 106, p. 70, 2004. 45 Folha Universal, Rio de Janeiro, n. 631, 09 maio 2004.42

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clivagem cultural no coincide com a estratificao social.46 Nesse sentido, Paulo Bonfatti, psiclogo, acredita que um dos pontos favorveis ao crescimento da aceitao da Universal na sociedade foi sua facilidade de adaptao com a linguagem e os costumes do pas. Alm disso, afirma que a presena dela na mdia tambm pode ser apontada como de grande organizao, pois gera um efeito positivo. A igreja mudou sua prpria linguagem e ficou mais sintonizada com a classe mdia. A prpria esttica da programao em suas mdias passou a abordar discusses mais elaboradas, com a presena de especialistas. Acredita que esteja ocorrendo um fenmeno bilateral em relao a Universal. As classes mais altas esto tendo maior simpatia pela Igreja Universal porque ela est mudando seu discurso e por sua vez, o discurso da IURD est mudando pela demanda das classes mais altas.47 As incurses feitas por diferentes autores, anteriormente destacadas, apontam elementos importantes que marcam a atual configurao do sagrado no campo religioso brasileiro. Porm, no obstante as contribuies de anlise para os propsitos mais especficos de suas respectivas reas de conhecimento, esses trabalhos apresentam dois principais limites: primeiro, no avanam no mbito cultural, e isso impossibilita uma compreenso mais profunda do que ocorre nas prticas da Igreja Universal do Reino de Deus;48 segundo, no utilizam parmetros terico-metodolgicos mais propriamente historiogrficos para investigao das fontes disponveis para anlise deste objeto. Em outras palavras, h uma lacuna de pesquisas com perspectivas mais propriamente historiogrficas, sobretudo pelo vis da cultura, na abordagem de tal temtica. Nesse sentido, vale citar Ronaldo Vainfas quando observa que nossos historiadores quase no se dedicaram ao estudo das religiosidades, trao essencial da histria e da vida do Brasil, deixando assim uma lacuna que prejudica a compreenso histrica de nossa sociedade:N o d e i x a d e s e r i n t r i g a n t e e s s a l a c u n a , s e n d o o B r a s i l a t h o j e embebido de religio, pas catlico onde se multiplicam seitas protestantes e onde o sincretismo religioso est em toda parte, como na Umbanda carioca. Isso sem falar nas africanidades, como o candombl baiano, e noutros ritos de morfologia complexa, como os catimbs tradicionais ou o moderno Santo Daime. evidente o LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Mdia. Tempo, trabalho e cultura no ocidente. Lisboa: Editorial Estampa, 1980, p. 210. 47 BONFATTI, Paulo. A expresso popular do sagrado. So Paulo: Paulinas, 2000. 48 Algumas abordagens que tm acenado, neste sentido, para um vis mais antropolgico, podem ser observadas nos seguintes trabalhos: no levantamento feito por Luiz Eduardo Soares, no artigo A guerra dos pentecostais contra o afro-brasileiro; dimenses democrticas de conflitos religiosos no Brasil. Cadernos do ISER, Rio de Janeiro, n. 44, ano 12, 1992; na anlise feita por Pierre Sanchis O repto pentecostal cultura catlicobrasileira. In: ANTONIAZZI, A. et al. Nem anjos nem demnios. Interpretaes sociolgicas do pentecostalismo. Petrpolis: Vozes, 1996; no artigo de Otvio VELHO, Globalizao: antropologia e religio. Mana, vol. 3, n. 1, 1997. Nesses trabalhos pode-se observar um processo de pentecostalizao do campo religioso brasileiro.46

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c on t r a s t e e n t r e a f o r a d e n o s s a r e l i g i o s i d a d e e a d e s a t e n o d e nossa historiografia.49

preponderante, portanto, uma investigao de mbito histrico-cultural50 em relao s prticas e representaes que so vivenciadas pelo segmento iurdiano a partir do compsito de tradies configuradas em capital simblico, no campo, para compreender os elementos culturais que do sustentao a tais prticas e que orientam o comportamento coletivo; analisar o universo da crena que possibilita tais representaes e entender como se acredita nas prticas ali vivenciadas; compreender o campo social dos objetos simblicos utilizados pela IURD, estabelecendo os referentes sociais dos smbolos presentes, a fim de perceber a sua eficcia no mbito do grupo e a coeso dada s prticas que ali ocorrem.51 Pensando-se ento em avanar nesse alcance explicativo, atravs de criterioso exame da documentao disponvel, imprescindvel estar atento s manifestaes que tornam a IURD distintiva: sua relao profunda com a matriz cultural-religiosa brasileira, com prticas que demonstram coerncia com as regras do campo, em um processo de apropriao com criativa resignificao de fertilssimos elementos de um passado de longa durao. Em outras palavras, suas prticas esto fincadas nos substratos de elementos trazidos pelo catolicismo portugus, pelas religies dos escravos africanos e pelas crenas indgenas estabelecidos no campo desde os tempos do Brasil colonial. Essa combinao deu origem a um pluralismo com intercmbios, formando uma matriz simblica, um ncleo comum. O eixo principal consiste, portanto, no fato de que existe uma matriz simblica representativa da religiosidade folclrica brasileira, que foi historicamente formada a partir das interpenetraes dessas trs grandes culturas responsveis pela formao do ethos brasileiro. Dessa forma, em sua fluidez de reelaboraes, a IURD assume positivamente as religiosidades folclricas, ao contrrio do catolicismo institucional desenvolvido no pas, que trabalhou tais expresses como um fundo rebelde; diferentemente do protestantismo clssico, que optou pelo combate ou rejeio de tais elementos; e, at mesmo, do prprio pentecostalismo tradicional que, no obstante apresentar algumas aproximaes com aFolha de S. Paulo, So Paulo, 02 abr. 2000. Um exemplo disto pode ser observado no trabalho de Natalie Z. Davis, quando analisa os ritos religiosos de violncia praticados na Frana no sculo XVI e supera a compreenso de mbito econmico-social que havia sido predominante at os anos de 1960, ao considerar tais fenmenos pelo vis da cultura, afirmando que os mesmos estavam relacionados a um estoque de tradies que configurava o imaginrio daquele perodo. Eram aes carregadas de simbolismo e de representao. Cf. DAVIS, Natalie Z. Ritos de violncia. In: Culturas do povo: sociedade e cultura no incio da Frana noturna. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 129-172. 51 Evitando aqui o longo debate sobre as possveis diferenas entre os conceitos de smbolo, signo e sinal, ao empregarmos aqui os termos ritos e smbolos referindo-se a todo objeto usado, todo gesto realizado, todo canto ou prece, toda unidade de espao e de tempo que representa alguma coisa diferente de si mesma. Cf. TURNER, Victor W. O processo ritual. Estrutura e antiestrutura. Petrpolis: Vozes, 1974, p. 29.49 50

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experincia de possesso existente no campo, mediante batismo com o Esprito Santo, ainda assim busca assegurar o fim da disperso identitria quanto s expresses culturais de religiosidades presentes no referido do campo.52 Em conformidade com as palavras de Jacques Le Goff, de que o historiador tem o dever de colocar questes como eixo do seu trabalho e, em seguida, ver como respond-las - apoiando-se naquilo que e continua sendo o seu material especfico, que so os documentos53 - cabe, ento, perguntar: Que elementos culturais, relacionados ao imaginrio social, tm possibilitado a construo e a recepo das prticas e das representaes desse modelo religioso, tornando-o um mecanismo to eficiente? Em que contexto histrico se deu o surgimento e a projeo dessa Igreja? De que maneira e em quais dimenses as prticas e representaes vivenciadas pela IURD tm poder de orientar o comportamento coletivo e atribuir sentido ao grupo? Ou ainda, como as prticas da IURD promovem mutaes no campo religioso brasileiro? Buscando compreender mais profundamente algumas dessas questes, o contedo da pesquisa aqui desenvolvida est distribudo em quatro captulos. O primeiro tem um carter terico-metodolgico, no qual se procura estabelecer o lugar e a importncia do sagrado como objeto da Nova Histria Cultural. Depois de terem sido localizados os ncleos explicativos de trabalhos que tambm discutem e analisam o fenmeno iurdiano, so apontados novos parmetros conceituais, de vis historiogrfico, para a abordagem desse tema. Os pensamentos de Roger Chartier e Pierre Bourdieu se constituem ncora do caminho metodolgico que se procura seguir. Porm, so estabelecidas interfaces com outros autores medida que apresentam contribuies para a investigao do tema proposto, havendo para isto o devido cuidado acadmico de se manter, ao longo de todo o trabalho, os parmetros terico-metodolgicos norteadores propostos pelos dois autores referenciais. Alm disso, nesse captulo feita a identificao das fontes que fundamentam a pesquisa, sendo apresentados os procedimentos metodolgicos de como sero utilizados tais documentos, procurando-se perceber seus limites, possibilidades e problematizaes para a investigao do tema proposto. O segundo captulo est voltado anlise do contexto histrico-social brasileiro, no perodo correspondente ao desenvolvimento do pentecostalismo. Pesquisa-se a cultura e a sociedade brasileira, procurando mostrar quais ambientes e elementos contribuemSANCHIS, Pierre. O repto pentecostal cultura catlico-brasileira. In: ANTONIAZZI, A. et al. Op. cit., p. 47. 53 CASTRO, Celso; FERREIRA, Marieta de M.; OLIVEIRA, Lcia Lippi. Conversando com Jacques Le Goff. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003, p. 115.52

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para a exploso do pentecostalismo ocorrida no movimento iurdiano. Com isso, pretendese perceber melhor as dimenses de tempo, lugar e circunstncias em que a IURD estabelece suas razes e seu alicerce histrico; compreender-se mais profundamente as latncias sociais que possibilitaram a configurao das prticas e representaes vivenciadas com tanta fertilidade no mbito dessa Igreja. Nota-se a eficiente capacidade iurdiana, em articular o universo simblico, com condies objetivas de um perodo profundamente marcado por crises, que se expressam, por exemplo, na urbanizao e formao de grandes periferias, globalizao promotora de individualismo e dura competitividade, acelerado processo de violncia e desagregao social. Ser observado que tal contexto contribuiu como um componente externo para o surgimento e a operosidade das prticas iurdianas. Nesse captulo, ainda, apresenta-se um mapeamento histrico de expresses do sagrado que marcadamente configuram o campo religioso brasileiro. Busca-se fazer um trabalho de classificao e delimitao atravs do qual a realidade do campo foi contraditoriamente construda pelos diferentes grupos que o compem e que, de modo direto ou direto, preparam o caminho para o advento iurdiano.54 Com isso se pode tambm melhor compreender o processo de apropriao e resignificao feito pela IURD desses compsitos culturais em relao ao universo simblico-ritualstico que marca as suas prticas e representaes. O terceiro captulo investiga propriamente o surgimento da IURD e seu impacto no pas. Busca analisar as prticas que lhe deram origem, possibilitaram-lhe desenvolvimento, projeo e grande visibilidade social. Seguindo uma das formulaes postuladas por Chartier para a Histria Cultural, quer-se observar as formas institucionalizadas e objetivadas graas s quais uns representantes (instncias coletivas ou pessoas singulares) marcaram de forma visvel e perpetuadas a existncia do grupo ou da comunidade55 iurdiana. Sero procuradas respostas a perguntas como: que sistemas de disposies adquiridas pela aprendizagem implcita ou explcita, que funcionam como um sistema de esquemas geradores de comportamento...,56 promoveram transformaes na configurao religiosa do Brasil? Quais dinamismos da histria possibilitaram tais mutaes? Procura-se mostrar ainda o lado objetivo da IURD: sua estrutura, organizao, crescimento; sua fora no campo: impactos, mutaes, conflitos, novidades, modificaes; a sua originalidade, sua teologia inovadora e promotora de disputas; as dimenses de rompimento com o protestantismo e mesmo com pentecostalismo clssico. O fato que, ao se apropriarCHARTIER, Roger. A Histria Cultural: entre prticas e representaes. Difel: Lisboa, 1990, p. 22. Ibid. 56 BOURDIEU, Pierre. Questes de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983, p. 94.54 55

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de elementos de uma matriz cultural-religiosa, a IURD realiza um eficaz rearranjo do campo religioso brasileiro, ao passo que tambm promove uma evoluo interna do protestantismo, atravs da formao de um habitus pentecostal especfico. O quarto captulo dedicado ao elemento das representaes vivenciadas por esse segmento religioso. Quer-se compreender o seu dinamismo interno, os mecanismos representacionais e o universo simblico que orientam o comportamento coletivo no mbito da IURD. Busca-se entender o conjunto de disposies adquiridas o qual faz que os agentes que as possuam, comportem-se de uma determinada maneira, em determinadas circunstncias,57 e como esse foi interiorizado pelos adeptos da IURD, tornando-se gerador de suas aes. A partir de densa pesquisa de campo, quer se aprofundar nos bastidores desse movimento, as vivncias internas do seu funcionamento: suas especificidades, crenas e comportamentos; seu universo simblico, a resignificao dos ritos e smbolos, magia, a teatralizao, os exorcismos, os dzimos. Assim, o captulo investiga os mecanismos culturais de produo, consagrao e circulao dos bens simblicos no mbito dessa Igreja; os ritos e os smbolos como linguagem incorporada na vivncia diria de lderes e fiis. Destaca-se ainda, em tal processo, que o carisma, por exemplo, transforma-se ali em poder simblico, ganhando projeo nas representaes que envolvem os lderes. Em sntese, a pesquisa desenvolvida percorre o seguinte caminho metodolgico na composio de seus captulos: no primeiro, so construdos os referenciais terico-metodolgicos para anlise do objeto em estudo; no segundo, a localizao do objeto no seu devido tempo e espao social, com o mapeamento do campo religioso em que se constituiu todo o compsito cultural em que a IURD finca suas razes e do qual se apropria para desenvolver suas prticas; no terceiro captulo, a descrio e anlise do surgimento da IURD, sua organizao, crescimento, originalidade e impactos modificadores no campo religioso; e, por fim, a investigaes das vivncias e especificidades internas, os carismas, as crenas e o universo simblico resignificado que orienta o comportamento coletivo de seus adeptos. Em linhas gerais, mediante intensivo trabalho de campo, com observaes participantes nos cultos e reunies promovidos pela Igreja, alm de uso de outras fontes primrias, analisa-se o eficiente processo de apropriao e resignificao, ou at mesmo de desnaturao, que a IURD faz em suas prticas de elementos simblicos culturalmente dispostos no campo religioso. Tornando-se linguagem, tais sistemas simblicos so capazes de orientar comportamento, atribuir sentido e coletivamente conferir identidade aos que57

Id., Coisas ditas. So Paulo: Brasiliense, 1990, p. 21, 98.

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integram esse segmento religioso, ou seja, investigam-se as prticas que visam fazer conhecer uma identidade social, exibir uma maneira prpria de estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma posio.58 Observa-se que a investigao aqui desenvolvida procura manter o devido cuidado quanto a um possvel juzo de valor, a partir de qualquer referencial de ortodoxia ou concepo teolgica, em relao s prticas e representaes vivenciadas pela Igreja Universal do Reino de Deus. At porque, segundo Durkheim, no h religies que sejam falsas. Todas so verdadeiras sua maneira. Todas respondem, ainda que de maneiras diferentes, a determinadas condies da vida humana.59 O que se objetiva, portanto, compreender como na IURD, atravs de uma histria cultural, o presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligvel e o espao, decifrado.60 Assim, ao pesquisador de temas religiosos cabe no a preocupao com a verdade ou falsidade dos elementos que envolvem seu objeto de pesquisa, mas, ao contrrio, a compreenso de que as crenas e as experincias com o sagrado consistem em prticas culturais e sociais, devendo ser, por isso mesmo, historicamente investigadas.

CHARTIER, R. Op. cit., p. 22. DURKHEIM, mile. As formas elementares da vida religiosa. So Paulo: Paulinas, 1983, p. 31. 60 Id., ibid., p. 17.58 59

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1 PARMETROS TERICO-METODOLGICOS PARA UMA HISTRIA CULTURAL DA IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS 1.1 - O lugar do sagrado na Histria Cultural O desenvolvimento da Igreja Universal do Reino de Deus coincide com um perodo de significativas transformaes no campo da pesquisa historiogrfica. Assim, a localizao desse objeto em tal contexto se torna oportuna, pois, devido a seu alcance social e cultural, representa oportunidade do emprego de novas perspectivas conceituais e metodolgicas conquistadas pela historiografia para a abordagem do sagrado. Foi mais especificamente a partir dos anos 1960 e 1970 que a Histria Social adquiriu grande projeo, levando historiadores a optativamente recorrer ou ento estabelecer interfaces com conceitos e mtodos de outras reas do conhecimento, como a Sociologia e a Antropologia. Esses novos rumos da Histria, tributrios de trocas interdisciplinares, vieram a se consolidar na dcada de 1980, com o surgimento da Nova Histria Cultural, fazendo que abordagens de temas voltados religiosidade com maior alcance popular ganhassem evidncia nessa rea de conhecimento, com estreitas aproximaes dos elementos da cultura.61 Essa dimenso simblica e suas interpretaes passaram a constituir, portanto, um terreno comum sobre o qual se debruam historiadores, multiplicando-se assim os possveis objetos de estudo:O terreno comum dos historiadores da cultura pode ser descrito c om o a p r e