problemas e pens social cristao 2 -...

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1 A Doutrina Social da Igreja e problemas de A Doutrina Social da Igreja e problemas de A Doutrina Social da Igreja e problemas de A Doutrina Social da Igreja e problemas de nosso tempo nosso tempo nosso tempo nosso tempo Prof. Dr. Nilo Agostini Texto publicado no livro Ética cristã e desafios atuais, Petrópolis, Editora Vozes, 2002, p. 201-255 (esgotado). Todos sabemos que estamos passando, em nossos dias, por uma crise que ressoa fortemente nos campos social, econômico e político. Seu contorno, sua profundidade e sua extensão nos apontam para um desequilíbrio do vital humano 1 . Este ressoa em suas raízes mais profundas, o que fez a própria CNBB afirmar que, nesta crise, “chega-se à deformação das consciências, que aceitam como ‘normal’ ou ‘inevitável’ o que não tem nenhuma justificativa ética” 2 . A desproporção dos indicadores econômicos mostra-nos que o preço social pago por causa desta crise é de grandes proporções, conjugando concentração de renda com condições miseráveis de vida e exclusão de grandes parcelas de nossa população. Ao mesmo tempo, a sede voraz do lucro imediato agride também a natureza, hoje num desequilíbrio ecológico comprometedor. Os costumes políticos reinantes persistem na linha de uma política da demagogia, do clientelismo, do oportunismo, da impunidade, com altas taxas de corrupção. Falta transparência na condução da “coisa” pública (res publica) que acaba, não raro, sendo privatizada para saciar os interesses dos que, insensíveis ao bem comum, dele se servem irresponsavelmente e com prepotência. As próprias instituições estão em crise e encontram-se debilitadas ante o abismo existente entre as bases jurídicas da ordem social e política e a realidade social que não incorpora de fato a lei enquanto garantia dos direitos do cidadão. Urge uma produção ética das instâncias normativas, “encarregadas de dizer o que antes ia por si, de decretar positivamente o que é preciso fazer, a fim de salvaguardar o consenso social” 3 . Existe, portanto, uma função social fundamental que é preenchida pela produção tanto moral quando jurídica. Tal produção “desempenha um papel dinâmico e constituinte tendo em vista a definição do sentido social das práticas em termos de coesão, 1 Cf. N. AGOSTINI, “Entre o instituinte e o instituído – Do ethos à ética”, in CNBB (org.), Ética, direito e justiça. Reflexões sobre a reforma do judiciário, Petrópolis: Vozes, 1996, p. 100-108. 2 CNBB – XXXI Assembléia Geral, “Ética: Pessoa e Sociedade”, SEDOC 26 (1993), n° 3, p. 41. 3 Cf. B. QUELQUEJEU, “Ethos historiques et normes éthiques”, in B. LAURET e F. REFOULÉ (dir.), Initiation à la pratique de la théologie, tomo IV: Éthique: Paris, Cerf, 1983, p. 76.

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    A Doutrina Social da Igreja e problemas de A Doutrina Social da Igreja e problemas de A Doutrina Social da Igreja e problemas de A Doutrina Social da Igreja e problemas de

    nosso temponosso temponosso temponosso tempo

    Prof. Dr. Nilo Agostini

    Texto publicado no livro Ética cristã e desafios atuais, Petrópolis, Editora Vozes, 2002, p. 201-255 (esgotado).

    Todos sabemos que estamos passando, em nossos dias, por uma crise que ressoa fortemente nos campos social, econômico e político. Seu contorno, sua profundidade e sua extensão nos apontam para um desequilíbrio do vital humano1. Este ressoa em suas raízes mais profundas, o que fez a própria CNBB afirmar que, nesta crise, “chega-se à deformação das consciências, que aceitam como ‘normal’ ou ‘inevitável’ o que não tem nenhuma justificativa ética”2. A desproporção dos indicadores econômicos mostra-nos que o preço social pago por causa desta crise é de grandes proporções, conjugando concentração de renda com condições miseráveis de vida e exclusão de grandes parcelas de nossa população. Ao mesmo tempo, a sede voraz do lucro imediato agride também a natureza, hoje num desequilíbrio ecológico comprometedor. Os costumes políticos reinantes persistem na linha de uma política da demagogia, do clientelismo, do oportunismo, da impunidade, com altas taxas de corrupção. Falta transparência na condução da “coisa” pública (res publica) que acaba, não raro, sendo privatizada para saciar os interesses dos que, insensíveis ao bem comum, dele se servem irresponsavelmente e com prepotência. As próprias instituições estão em crise e encontram-se debilitadas ante o abismo existente entre as bases jurídicas da ordem social e política e a realidade social que não incorpora de fato a lei enquanto garantia dos direitos do cidadão. Urge uma produção ética das instâncias normativas, “encarregadas de dizer o que antes ia por si, de decretar positivamente o que é preciso fazer, a fim de salvaguardar o consenso social”3. Existe, portanto, uma função social fundamental que é preenchida pela produção tanto moral quando jurídica. Tal produção “desempenha um papel dinâmico e constituinte tendo em vista a definição do sentido social das práticas em termos de coesão,

    1 Cf. N. AGOSTINI, “Entre o instituinte e o instituído – Do ethos à ética”, in CNBB (org.), Ética, direito e justiça. Reflexões sobre a reforma do judiciário, Petrópolis: Vozes, 1996, p. 100-108. 2 CNBB – XXXI Assembléia Geral, “Ética: Pessoa e Sociedade”, SEDOC 26 (1993), n° 3, p. 41. 3 Cf. B. QUELQUEJEU, “Ethos historiques et normes éthiques”, in B. LAURET e F. REFOULÉ (dir.), Initiation à la pratique de la théologie, tomo IV: Éthique: Paris, Cerf, 1983, p. 76.

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    de integração, de proteção contra dissensões, a fim de estruturar de maneira programada a mobilidade de papéis, dos poderes e dos valores dentro da sociedade”4. Diante dos desafios sócio-econômicos e políticos de diversa índole, a Doutrina Social da Igreja busca captar justamente as dimensões éticas dos problemas humanos, identificando as responsabilidades do ser humano e aguçando, a partir da fé, o sentido moral do seu agir. Hoje, necessitamos redescobrir o grande aporte que este ensino social nos traz, capaz de iluminar a atividade social, política e econômica dos cristãos, esclarecendo os compromissos políticos, discernindo as ideologias, capacitando para a análise de sistemas e situações5. Ele é parte integrante do seguimento de Jesus Cristo e, como tal, deve estar integrado tanto na educação católica6 quanto na catequese7, tendo “o valor de um instrumento de evangelização”8. Nos propomos, a seguir, percorrer a Doutrina Social da Igreja na iluminação que ela nos traz ante os problemas de nosso tempo. Urge redescobri-la e resgatar a sua dinamicidade através da história. Ela não reclama para si a competência técnica na solução dos problemas, mas capta, à luz da fé, as dimensões éticas, as responsabilidades morais, a densidade teologal das realizações humanas. Ciosa do desenvolvimento pleno e da salvação integral do ser humano, ela ausculta os acontecimentos da história e acompanha-os ciente da interpelação recíproca entre Evangelho e vida social, entre fé e vida. 1. A centralidade da experiência de fé

    É bom nunca perder de vista que a experiência de fé constitui o elemento central,

    fundante mesmo, do cristão, inclusive nas questões sociais, econômicas e políticas. O objeto primeiro desta experiência de fé é Deus, enquanto revelado em plenitude em Jesus Cristo e enquanto presença viva e ativa do Espírito Santo. No entanto, notemos bem que, além do Deus revelado, a experiência de fé nos desperta para um olhar atencioso ante todas as coisas e acontecimentos, contemplados à luz de Deus. Nada escapa deste olhar e da ausculta das próprias interpelações de Deus na nossa história.

    Nesta experiência de fé, verbalizada por sua vez pela teologia, o cristão consegue

    captar o sentido teologal presente numa determinada realidade ou acontecimento. Isto

    4 Ibidem, p. 79-80. 5 Cf. CELAM – III Conferência Geral, A evangelização no presente e no futuro da América Latina (documento final de Puebla), 2ª edição, Petrópolis: Vozes, 1979, n° 472, 511, 525, 1227; CELAM – IV Conferência Geral, Nova evangelização, promoção humana, cultura cristã, (documento final de Santo Domingo), Petrópolis: Vozes, 1992, n° 150, 158 200-203. 6 Cf. Puebla, n° 1033, in CELAM – III Conferência Geral, op. cit., p. 256. 7 Cf. Puebla, n° 1008, in CELAM – III Conferência Geral, op. cit., p. 251. 8 Cf. JOÃO PAULO II, Carta encíclica ‘Centesimus Annus’, col. “Documentos Pontifícios” n° 241, Petrópolis: Vozes, 1991, n° 53.

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    significa saber captar a densidade da graça ou do pecado que tais realidades ou acontecimentos possam conter ou apontar. Neste sentido, nada escapa do olhar da teologia e, assim, da própria experiência de fé. O social, o econômico, o político, etc, passam a ser terreno comum e até necessário para a teologia; eles necessitam ser explicitados pela fé.

    Outro passo é reconhecer que em Deus a história é uma só, seja ela sobrenatural seja ela natural. O divino e o humano se entrelaçam; assim deu-se com Jesus Cristo. Existe uma única história real, que é de salvação ou de perdição, de realização do Reino de Deus ou de afastamento dele. Todas as dimensões do ser humano estão aí incluídas, bem como toda e qualquer opção humana e respectivas ações. Supera-se, assim, aquela visão dualista, calcada numa visão negativa do ‘mundo’ e do ‘humano’, como lugares de armadilhas, fraquezas e perigos de toda sorte. O mundo é, antes, o palco maravilhoso onde fazemos a experiência da manifestação amorosa de Deus, que nos chama a ser seus colaboradores na construção do seu Reino. Por isso, este tempo que nos é dado viver, aqui e agora, constitui-se no tempo da graça de Deus para nós.

    Na realização de sua missão, a Igreja sabe que “o homem é o primeiro caminho que ela deve percorrer na realização de sua missão”, isto porque ela tem consciência de sua “centralidade dentro da sociedade”, enquanto ele é um “ser social” por excelência9. “Não se trata do homem ‘abstrato’, mas do homem real, ‘concreto’, ‘histórico’...”10. Isto significa que a Igreja, para realizar a sua missão, tem que acompanhar as situações em que o ser humano se encontra, valorizar a sua dimensão social e política, detectar nas estruturas os mecanismos que correspondem ou não à proposta do Reino.

    Sabemos que, por um lado, a sociedade, com suas estruturas, age sobre o ser humano e imprime nele as suas marcas, sendo capaz de levar à exclusão e ao sacrifício de vidas humanas. Porém, o ser humano mostra-se capaz, outrossim, de interferir nestes processos com projetos alternativos e um mundo de aspirações e desejos que apontam para uma sociedade alicerçada no que é bom, justo e belo. Hoje, já sentimos emergir apelos éticos que apontam para uma revisão dos valores vitais e dos eixos básicos da vida humana, tanto em nós mesmos quanto na sociedade. Os movimentos sociais, a construção da cidadania, a consciência ecológica e o resgate da ética são expressões claras do alternativo em emergência11.

    Esta centralidade do ser humano abre espaço, em nossos dias, para uma visão ecológica. Temos consciência que a criação toda, que é a casa comum (=oikos) de todos os

    9 Cf. ibidem. 10 Ibidem. 11 Sobre os movimentos sociais, a construção da cidadania e o resgate da ética, leia N. AGOSTINI, “O alternativo em emergência”, in Teologia Moral: entre o pessoal e o social, Petrópolis: Vozes, 1995, p. 140-154.

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    seres vivos e não vivos, está sofrendo com a falta de preservação e com a gananciosa depredação. O desequilíbrio ecológico ameaça todos os seres. Surge daí o imperativo ético de uma comunhão “ecocêntrica”, captando a necessidade de um equilíbrio entre todos os seres (vivos e não vivos) da criação. Nesta comunhão “ecocêntrica”, sentimo-nos parte de uma rede de relações e convocados a uma co-responsabilidade em vista de um equilíbrio ético da criação12.

    Já dissemos que nosso olhar é teológico. Parte da experiência da fé. Por isso, cabe-nos, neste tempo da graça que nos é dado viver, saber sempre de novo apreender a presença secreta de Deus, contemplar os sinais do Espírito, discernir as sementes do Verbo. A qualidade de nossa vida vai depender muito desta respeitosa ausculta da revelação de Deus que se dá tanto no espelho das criaturas quanto nos seus desígnios e sinais no seio da história humana.

    Isto nos leva a mergulhar no próprio mistério da encarnação, no qual entrevemos um Deus próximo, em quem tudo se vincula e torna-se comunhão. Criação e história estão unidos; o ser humano é aí convocado a participar com todo o seu ser. Tudo se une numa presença eloqüente, porque aponta para o Deus vivo, primeiro princípio de tudo, numa ontologia do amor.

    A criação e a história transformam-se no cenário maravilhoso da manifestação amorosa de Deus. A eloqüência visual e acústica de todo o ‘criado’, como manifestação de Deus, é tão forte que “nos incorpora” suscitando um olhar amoroso e de afeto, numa expansão de simpatia e cortesia ante todos os seres da criação. “Abre os olhos, utiliza os ouvidos de tua alma, solta teus lábios, aplica teu coração; todas as criaturas far-te-ão ver, escutar, servir, glorificar e adorar Deus”, afirma-nos lapidarmente São Boaventura em sua obra Itinerarium mentis in Deum (c. 1, n. 15).

    Aqui cai por terra todo dualismo. Não resiste uma vida dividida em compartimentos. Isto nos remete para uma relação integral, na qual todos os seres estão incluídos. Fazemos a experiência de uma profunda unidade de vida. Descobrimo-nos parte de uma comunhão que une a criatura ao Criador e vincula todos os seres e acontecimentos numa sincronia de relações. Tudo se inclui como pólo de uma mesma expressividade. A própria ação não exclui a contemplação, antes uma remete à outra constantemente, numa inclusão que as torna realmente fecundas.

    A partir deste ancoradouro, dar-nos-emos conta que este é o espaço propício para o cultivo de uma qualidade evangélica de vida, sem perder a riqueza profética e sem deixar 12 Leia mais sobre este assunto em N. AGOSTINI, “Por um resgate da criação”, in A crise ecológica: O ser humano em questão - Atualidade da proposta franciscana, in A. da SILVA MOREIRA (org.), Herança franciscana, Petrópolis: Vozes, 1996, p. 233-238.

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    de ser um sinal escatológico, enquanto antecipação do Reino futuro. Isto nos engaja muito concretamente na promoção da qualidade da vida existente. Por um lado, isto implica na “reafirmação precisa e firme do valor da vida humana e da sua inviolabilidade”13. Por outro lado, incluirá, ao mesmo tempo, o respeito e a preservação da integridade da criação, hoje ferida de morte em seu equilíbrio ecológico. Destes dois pólos emanam todas as demais opções.

    Deploramos os múltiplos crimes e atentados contra a vida humana. Identificamos sistemas modernos de exclusão, que sacrificam vidas humanas e depredam a natureza, fazendo crescer o clamor dos empobrecidos. Estes nos solicitam profetas destemidos que se coloquem ao seu lado, alimentem com a fé as suas lutas, aliem-se às suas organizações e identifiquem as raízes do “pecado” encravado nas estruturas sociais, políticas, econômicas e mesmo culturais. Urge um constante discernimento diante dos processos de mundialização ou de globalização hoje em curso. Importa aguçar a nossa ausculta das interpelações de Deus nos sinais dos nossos tempos14. 2. Alcance da Doutrina Social da Igreja

    A expressão “Doutrina Social da Igreja” pode ter variantes possíveis. Podemos falar em “ensino social” ou ainda “magistério social” da Igreja15. Este, como qualquer outro ensino, costuma ser oferecido pela Igreja por meio de dois tipos de documentos, a saber, os de cunho doutrinal e os de incidência pastoral. Quando o faz num documento estritamente doutrinal, o magistério eclesial tem a intenção de propor uma doutrina ou mesmo um dogma, desfazendo qualquer dúvida. No segundo caso, ou seja, num documento pastoral, a questão de fundo não é tanto a veracidade ou não de uma doutrina, já subentendida, mas apontar caminhos possíveis ou necessários para traduzir esta ou aquele verdade de fé ou inspiração evangélica para as realidades de âmbito pessoal, familiar, comunitário, social. Quando se trata do ensino social da Igreja, estamos oscilando mais para o pastoral, mesmo que haja proposições de caráter doutrinal. Há todo um corpo de documentos - “encíclicas” e outros - que formam um conjunto chamado de “Doutrina Social da Igreja” (DSI)16. A encíclica Rerum Novarum, sobre a condição do operários, do Papa Leão XIII, de

    13 Cf. JOÃO PAULO II, Carta encíclica ‘Evangelium Vitae’, col. “Documentos Pontifícios” nº 264, Petrópolis: Vozes, 1995, nº 5. 14 Cf. CELAM – II Conferência Geral, A Igreja na atual transformação da América Latina à luz do Concílio (Conclusões de Medellín), 7ª edição, Petrópolis: Vozes, 1980, n° 7,13. 15 Cf. JOÃO PAULO II, Carta encíclica ‘Centesimus Annus’, op. cit., n° 2. 16 Cf. A. DE SANCTIS (org.), Encíclicas e documentos sociais: da “Rerum Novarum” à “Octogesima Adveniens” – De Leão XIII, Pio XI, Pio XII, João XXIII, Concílio Vaticano II e Paulo VI, vol. 1, São Paulo: LTR, 1991; cf. C. BOMBO (org.), Encíclicas e documentos sociais: do documento sinodal “A justiça no mundo” à “Centesimus Annus”, incluindo a “Pacem in Terris” – De João XXIII, Paulo VI, João Paulo II, Santa Sé e CNBB, vol. 2, São Paulo: LTR, 1993.

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    1891, é considerado o ato primeiro deste ensino social ou do magistério social da Igreja. Não estamos diante de uma promulgação dogmática, para a qual a infalibilidade teria sido invocada. Porém, estamos sim diante de um ensinamento que é feito a partir da fé e com autoridade pelo magistério autêntico da Igreja. Isto significa que o dever de adesão do fiel não o obriga a um assentimento absoluto, porém ele é convidado a espelhar a sua vida neste ensino e conduzi-la tendo como referência os valores aí propostos. Percorrendo os diferentes documentos, notamos logo que o ensino social da Igreja não é algo monolítico, nem unívoco. Não tem a pretensão de “pronunciar uma palavra única, como propor uma solução que tenha valor universal”, perante situações tão diversificadas17. Percebe-se uma “continuidade da doutrina social da Igreja e, conjuntamente, a sua renovação constante”18. Por um lado, a DSI contém valores fundamentais, pois funda-se em “princípios sempre válidos” e busca considerar o ser humano “na plena verdade da sua existência, do seu ser pessoal e ao mesmo tempo do seu ser comunitário e social”19. Por outro lado, este ensino não se apresenta como um sistema fechado, mas “atento ao evoluir das situações” para “responder adequadamente aos novos problemas e ao novo modo de os impostar”20. O Papa Paulo VI não mediu palavras para chamar as comunidades cristãs a participar neste empenho do ensino social da Igreja, em comunhão com os Pastores, à luz do Evangelho. Vejamos o texto: “É às comunidades cristãs que cabe analisarem, com objetividade, a situação

    própria do seu país e procurarem iluminá-la, com a luz das palavras inalteráveis do Evangelho; a elas cumpre o haurirem princípios de reflexão, normas para julgar e diretrizes para a ação, na doutrina social da Igreja (...). A essas comunidades cristãs incumbe discernirem, com a ajuda do Espírito Santo, em comunhão com os bispos responsáveis e em diálogo com os outros irmãos cristãos e com todos os homens de boa vontade, as opções e os compromissos que convém tomar, para se operarem as transformações sociais, políticas e econômicas que se apresentam como necessárias, com urgência, em não poucos casos”21.

    Este caráter dinâmico da DSI traz à tona a relação existente entre a mensagem deste ensino social e o próprio contexto. Esta é, inclusive, a perspectiva que se afirma com o Concílio Vaticano II, numa valorização da coordenada da historicidade; ou seja, estamos

    17 Cf. PAULO VI, Carta Apostólica ‘Octogesima Adveniens’, n° 4, in A. DE SANCTIS (org.), op. cit., p. 434. 18 Cf. JOÃO PAULO II, Carta encíclica ‘Sollicitudo Rei Socialis’, n° 3, in C. BOMBO (org.), op. cit., p. 386. 19 Cf. CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA, A Doutrina Social da Igreja na formação sacerdotal, col. “Documentos Pontifícios” n° 229, Petrópolis: Vozes, 1989, n° 13, p. 20. 20 Cf. ibidem, n° 11, p. 19. 21 Cf. PAULO VI, Carta Apostólica ‘Octogesima Adveniens’, n° 4, in A. DE SANCTIS (org.), op. cit., p. 435.

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    inscritos no tempo e no espaço e nele necessitamos realizar um discernimento constante por causa das situações tão diversificadas aí encontradas. Ao esforço do magistério, deve somar-se o das Igrejas locais e das comunidades cristãs, num diálogo aberto com todos os setores da sociedade e pessoas de boa vontade. Um exame cuidadoso dos textos da DSI mostra, de imediato, o quanto eles estão inseridos num determinado contexto social. As situações específicas são um componente que influi no conteúdo do próprio texto. E, como as situações mudam constantemente, verificamos no ensino social da Igreja, de igual forma, conteúdos novos, abordagens diferentes, métodos que se atualizam. O texto tem, portanto, um subtexto, ou seja, um lugar social no qual está inserido o discurso magisterial. A continuidade de valores permanentes alia-se aqui com o evoluir das situações e a resposta adequada aos novos problemas e ao novo modo de impostar, como vimos. Por isso, o texto magisterial deve ser entendido dentro do seu contexto, para não virar mero pretexto. Este é um princípio hermenêutico de especial importância. Com brevidade, num intuito mais indicativo, vejamos os principais documentos sociais da Igreja e seus respectivos contextos para, em seguida, iluminar alguns problemas de nosso tempo com o aporte dos mesmos.

    a) Rerum Novarum (RN): Carta encíclica do Papa Leão XIII sobre a condição dos operários, publicada no dia 15 de maio de 1891. Contexto: A situação de miséria dos operários por ocasião da primeira industrialização que conhece o seu apogeu no final do século XIX.

    b) Quadragesimo Anno (QA): Carta encíclica do Papa Pio XI sobre a restauração

    da ordem social e seu aperfeiçoamento, publicada no dia 15 de maio de 1931. Contexto: A grande crise econômica de 1929 que joga milhões no desemprego, primeiro nos Estados Unidos e, em seguida, na Europa, repercutindo pouco a pouco nos demais países.

    c) Mater et Magistra (MM): Carta encíclica do Papa João XXIII sobre a evolução

    contemporânea da vida social à luz dos princípios cristãos, publicada no dia 15 de maio de 1961. Contexto: Há uma grande produção de riquezas, introdução de técnicas modernas, o que leva os desníveis sociais a proporções maiores, sobretudo entre os países industrializados e os países em via de desenvolvimento, com um atraso preocupante no desenvolvimento da agricultura nestes últimos.

    d) Pacem in Terris (PT): Carta encíclica do Papa João XXIII sobre a paz,

    publicada no dia 11 de abril de 1963. Contexto: A guerra fria está em alta,

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    acelerando a corrida armamentista e apontando para a ameaça de guerra nuclear; cresce, ao mesmo tempo, o fenômeno da socialização, o movimento de independência de muitos países do Terceiro Mundo, a presença da mulher na vida pública e atuação das classes trabalhadoras.

    e) Gaudium et Spes (GS): Constituição pastoral do Concílio Vaticano II sobre a

    Igreja e o Mundo de hoje, publicada no dia 7 de dezembro de 1965. Contexto: Numa busca de diálogo com o mundo moderno, o Concílio traça o perfil da presença da Igreja no mundo de hoje, buscando atualizar-se (aggiornamento), numa atitude pastoral, marcada pela estima e simpatia face ao mundo contemporâneo e suas conquistas. A Igreja compreende-se como um “dom” de Deus à “serviço” da humanidade.

    f) Populorum Progressio (PP): Carta encíclica do Papa Paulo VI sobre o

    desenvolvimento dos povos, publicada no dia 16 de março de 1967. Contexto: Cresce a consciência da gravidade da fome, da miséria, das doenças endêmicas, da ignorância, enfim, do problema do desenvolvimento; a independência dos países não está significando independência econômica, nem um justo acesso aos próprios recursos, aumentando a disparidade entre riqueza e pobreza e a dependência entre as nações ricas e as nações pobres.

    g) Octogesima Adveniens (AO): Carta apostólica do Papa Paulo VI, endereçada ao

    cardeal Maurice Roy, presidente da Comissão Justiça e Paz e do Conselho dos Leigos, no dia 14 de maio de 1971. Contexto: A urbanização rápida e até abrupta provoca o inchaço das cidades e conseqüente empobrecimento de grandes parcelas da população. Verifica-se mudança de costumes ante a emergência da civilização urbana. Cresce a força dos meios de comunicação, em especial da televisão. As ideologias, construídas no século XIX, dão sinais de inadequação. O quadro é de incertezas e interrogações face às rápidas e profundas mudanças que estão ocorrendo.

    h) A justiça no mundo: Documento do Sínodo dos Bispos sobre o Sacerdócio e a

    Justiça no mundo, publicado no dia 24 de novembro de 1971.Contexto: Milhões de pessoas sofrem com as guerras, com a fome, nas prisões e com o racismo; 75% dos recursos são absorvidos por um terço da humanidade, o desemprego aumenta, bem como o fosso que separa ricos e pobres.

    i) Exigências cristãs de uma ordem política: Documento aprovado pela XV

    Assembléia Geral da CNBB, realizada nos dias 8 a 17 de fevereiro de 1977. Contexto: A Igreja, no Brasil, partilha com o povo os momentos difíceis da repressão do regime militar, sendo acusada de intromissão indevida nos assuntos

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    do governo e de subversão porque denuncia o Estado autoritário de segurança nacional.

    j) Laborem Exercens (LE): Carta encíclica sobre o trabalho humano do Papa João

    Paulo II, publicada no dia 14 de setembro de 1981. Contexto: Grandes, profundas e rápidas transformações se fazem sentir no mundo do trabalho. Tecnologias avançadas e modernas suscitam mudanças na estrutura e nas relações do trabalho, particularmente com a introdução da informática. Há necessidade de aprofundar o sentido do trabalho neste novo contexto.

    k) Por uma nova ordem constitucional: Declaração pastoral da CNBB, aprovada

    na Assembléia Geral, reunida em Itaici, SP, nos dias 9 a 18 de abril de 1986. Contexto: O Brasil se prepara para escolher, naquele ano, a Assembléia Constituinte que irá elaborar a nova Constituição do país.

    l) Sollicitudo Rei Socialis (SRS): Carta encíclica do Papa João Paulo II sobre a

    solicitude social da Igreja, publicada no dia 30 de dezembro de 1987. Contexto: A situação agravou-se em termos de “produção e distribuição de víveres, higiene, saúde e habitação, disponibilidade de água potável, condições de trabalho, especialmente feminino, duração da vida e outros índices sociais”, como apresenta a própria encíclica no parágrafo 14. Há velocidades diferentes de desenvolvimento; em alguns casos, verifica-se uma verdadeira estagnação, deixando uma impressão prevalentemente negativa.

    m) Orientações para o estudo e o ensino da Doutrina Social da Igreja na

    formação sacerdotal: Documento da Congregação para a Educação Católica, publicado no dia 30 de dezembro de 1988. Contexto: Sente-se a necessidade de continuar na linha do decreto Optatam Totius, do Concílio Vaticano II, que tratou da formação sacerdotal, propondo orientações sobre o estudo e o ensino da DSI nos Seminários. “Coloca em evidência os pontos que no estudo desta disciplina são fundamentais e, portanto, indispensáveis para uma sólida formação teológica e pastoral dos futuros sacerdotes”22. Como dirá João Paulo II, logo depois, a “doutrina social, por si mesma, tem o valor de um instrumento de evangelização”23.

    n) Exigências éticas da ordem democrática: Documento aprovado pela XXVII

    Assembléia Geral da CNBB, realizada nos dias 5 a 14 de abril de 1989.

    22 Cf. CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA, op. cit., n° 66, in C. BOMBO (org.), op. cit., p. 523. 23 Cf. JOÃO PAULO II, Carta encíclica ‘Centesimus Annus’, op. cit., n° 54, in C. BOMBO (org.), op. cit., p. 631.

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    Contexto: Após um longo período de regime militar, o país está passando por um processo de redemocratização. Com a promulgação da nova Constituição, no ano anterior, há um desejo do povo brasileiro em participar mais ativamente nos destinos do país.

    o) Centesimus Annus (CA): Carta encíclica por ocasião do centenário da Rerum

    Novarum, publicada no dia 1° de maio de 1991. Contexto: Revela-se, nesta encíclica, uma preocupação com o crescente consumismo, com o empobrecimento de muitos países e a miséria de seus povos, com a questão ecológica, com a opulência e a miséria que separam ricos e pobres. Insere-se também no contexto da queda dos regimes marxistas do Leste europeu e do capitalismo que se apresenta como o vencedor.

    p) A fome no mundo – Um desafio para todos: o desenvolvimento solidário:

    Texto preparado pelo Pontifício Conselho “Cor Unum”, por indicação do Papa João Paulo II, apresentado e levado ao conhecimento público pelo Cardeal Ângelo Sodano, Secretário de Estado do Vaticano, no dia 4 de outubro de 1996. Contexto: Na apresentação deste documento aparece muito bem o contexto, ao constar o que segue: “A multidão de famintos, constituída por crianças, mulheres, idosos, imigrantes, prófugos e desempregados, eleva para nós o seu grito de dor. Eles imploram-nos, à espera de ser escutados”.

    q) Para uma melhor distribuição da terra – O desafio da reforma agrária:

    Documento do Pontifício Conselho de “Justiça e Paz”, publicado em Roma no dia 23 de novembro de 1997. Contexto: Há uma consciência clara dos dramáticos problemas humanos, sociais e éticos, advindos do fenômeno da concentração e apropriação indevidas da terra. Isto atenta contra a dignidade humana de milhões de seres humanos, torna-se um obstáculo à paz pelas inaceitáveis injustiças que acarreta.

    Este conjunto de documentos é indicativo de um patrimônio, cuja riqueza aparece na percepção e nos avanços que representam os textos sucessivos. Outros mais poderiam ser citados, como por exemplo: as mensagens e alocuções do Papa Pio XII24, discursos e alocuções do Papa João Paulo II, quer na abertura da III Conferência dos Bispos Latino-americanos (Puebla)25, quer nas suas viagens (por exemplo, ao México, à Argentina, à Polônia)26. Os documentos do Episcopado latino-americano aprovados nas Conferências de

    24 Cf. A. DE SANCTIS (org.), op.cit., p. 103-221. 25 Cf. C. BOMBO (org.), op. cit., p. 97-118. 26 Cf. Discursos de João Paulo II: Saudação aos índios (México, 29/01/1979), in ibidem, p. 123-126; Discurso aos campesinos, empregados e trabalhadores de Monterrey (México, 31/01/1979), in ibidem, p. 131-135; Basta! A tudo o que atenta contra a dignidade dos trabalhadores (Buenos Aires, 10/04/1987), in ibidem,

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    Medellín (em 1968), de Puebla (em 1979) e de Santo Domingo (em 1992) também podem ser enumerados entre os que têm um aporte importante para o ensino social da Igreja. 3. Problemas de nosso tempo Buscaremos, nesta parte, focalizar alguns dos problemas ou realidades mais candentes de nosso tempo e sobre eles projetar a riqueza que nos vem da Doutrina Social da Igreja. Nossa escolha fixou-se nos seguintes pontos: O Estado e a Sociedade, o trabalho e as novas tecnologias, a empresa e o trabalhador, a primazia do bem comum e a propriedade privada, o mercado numa economia de globalização, a paz como dom de Deus e tarefa do ser humano. 3.1. O Estado e a Sociedade O ensino social da Igreja enfatiza “a centralidade do homem dentro da sociedade”, enquanto “ser social”27, constituindo-se no “primeiro caminho que a Igreja deve percorrer na realização de sua missão”28. Este ser humano é essencialmente chamado a coexistir, vivendo com os outros em sociedade. Ele necessita dos outros e juntos crescem e se aperfeiçoam. A relação com o próximo passa a ser estruturante da vida humana, bem como pertence à essência da vida cristã. “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo 15,13). “Qualquer outro preceito se resume nesta palavra: Amarás o próximo como a ti mesmo” (Rm 13,9). Tendo presente esta base primeira, a impostação cristã leva-nos a organizar o espaço social tendo em vista a primazia do bem comum. Assim, “toda convivência humana tem que fundar-se no bem comum”29. O próprio Estado encontra a sua razão de ser na promoção do bem comum, incluídos nesta tarefa todos os poderes públicos. Isto significa garantir o respeito da pessoa humana e de seus direitos fundamentais, a realização de sua vocação na liberdade; garantir o bem-estar e o desenvolvimento do grupo social; garantir a paz, com estabilidade e segurança, numa ordem justa30. A autoridade tem, por sua vez, a missão de coordenar, estimular e controlar os esforços dos cidadãos em favor ou na busca do bem comum; esta tarefa não se realizará com violência, ameaça, medo ou demagogia. “A autoridade é, sobretudo, uma força moral. Deve, pois, apelar à consciência do cidadão, isto é, ao dever de prontificar-se em contribuir p.361-367; Restituir ao trabalho a plena dimensão pessoal e social (Danzigue, Polônia, 12/06/1987), in ibidem, p. 373-380; cf. também a alocução: Importância do ensinamento social – Parte integrante da concepção cristã da vida (Fátima, Portugal, 13/05/1981), in ibidem, p. 141-145. 27 Cf. JOÃO PAULO II, Carta encíclica ‘Centesimus Annus’, n° 53, in C. BOMBO (org.), op. cit., p. 630. 28 Ibidem. 29 Cf. Puebla, n° 317. 30 Cf. Catecismo da Igreja Católica, n° 1906 a 1909.

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    para o bem comum”31. Desta forma, os cidadãos são convocados a trabalhar pelo bem comum, bem como têm o direito de gozar dele, em termos de bens materiais e espirituais, com iguais oportunidades. Para isso, deve concorrer o maior grau de justiça possível. O ensino social da Igreja sublinha que a autoridade deve fazer valer um olhar preferencial em favor dos mais pobres, em vista de seus legítimos direitos, compatíveis com a dignidade humana. Todos têm “direito que sejam respeitados e não sejam privados... do pouco que têm..., que se levantem as barreiras da exploração...; têm direito a uma ajuda eficaz – que não é esmola nem migalhas de justiça – para que tenham acesso ao desenvolvimento que sua dignidade de homem e de filho de Deus merece”32. “Todos os membros da sociedade devem participar deste bem comum..., sem preferências de pessoas ou grupos... Acontece, no entanto, que, por razões de justiça e de eqüidade, devem os poderes públicos ter especial consideração para com membros mais fracos da comunidade, os quais se encontram em posição de inferioridade para reivindicar os próprios direitos e prover a seus legítimos interesses”33. Aos que “se contam no número dos débeis e necessitados, o Estado deve preferentemente dirigir os seus cuidados e as suas providências”34. Cabe aos poderes públicos buscar um desenvolvimento econômico que corresponda a igual progresso social. Por isso, desenvolvam proporcionalmente os sistemas produtores e os serviços essenciais. Serviços de previdência, remuneração justa do trabalho, organismos intermediários e participação nos bens da cultura são outros quesitos solicitados pelo ensino social da Igreja35. Para que isso seja desenvolvido com equilíbrio, o Estado torna-se o garante de certos bens coletivos relativos ao ambiente natural e humano, “cuja salvaguarda não pode ser garantida por simples mecanismos de mercado.... Ele e toda a sociedade tem a obrigação de defender os bens coletivos que, entre outras coisas, constituem o enquadramento dentro do qual cada um poderá conseguir legitimamente os seus fins individuais”36. É importante salientar que há um limite para o mercado. “Há necessidades coletivas e qualitativas, que não podem ser satisfeitas através dos seus mecanismos; existem exigências humanas importantes, que escapam à sua lógica; há bens que, devido à sua natureza, não se podem nem se devem vender e comprar”37. É bem verdade que os mecanismos de mercado oferecem algumas vantagens na utilização de recursos, no

    31 JOÃO XXIII, Carta encíclica ‘Pacem in Terris’, n° 48, in . C. BOMBO (org.), op. cit., p. 30. 32 JOÃO PAULO II, Discurso do Cuilapán (México), 29 de janeiro de 1979; cf. R. L. BRARDINELLI, C. L. GALAN, Manual de Doctrina Social de la Iglesia, Buenos Aires: Ediciones del Encuentro, 1993, p. 63. 33 JOÃO XXIII, Carta encíclica ‘Pacem in Terris’, n° 56, in C. BOMBO (org.), op. cit., p. 32. 34 JOÃO PAULO II, Carta encíclica ‘Centesimus Annus’, n° 10, in C. BOMBO (org.), op. cit., p. 580. 35 Cf. JOÃO XXIII, Carta encíclica ‘Pacem in Terris’, n° 64, in C. BOMBO (org.), op. cit., p. 34. 36 Cf. JOÃO PAULO II, Carta encíclica ‘Centesimus Annus’, n° 40, in C. BOMBO (org.), op. cit., p. 615. 37 Ibidem.

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    intercâmbio dos produtos e no exercício livre da vontade e preferências da pessoa. “Todavia, eles comportam o risco de uma ‘idolatria’ do mercado, que ignora a existência de bens que, pela sua natureza, não são nem podem ser simples mercadoria”38. João XXIII, seguindo o ensinamento de seus predecessores, não mediu palavras ao afirmar que a tão propalada “liberdade do mercado foi substituída pela ditadura econômica; a cupidez do lucro pela desenfreada sede de domínio e toda a vida econômica tornou-se horrivelmente dura, implacável, atroz. Daí resultou até a submissão dos poderes públicos aos interesses dos poderosos e, em conseqüência, a instauração de uma verdadeira ditadura internacional do dinheiro”39. Para que tudo isso se realize, a Igreja não se coliga a nenhum sistema político ou regime de governo. O seu interesse reside em assinalar as características que brotam dos ensinamentos do Evangelho. Leão XIII chegou a afirmar que, de per si, nenhuma forma de governo seria incompatível com a Igreja40. Há uma abertura para distintos modelos. Percebe-se, no entanto, uma preferência progressiva pela democracia. Há, em favor dela, uma “aprovação e consentimento daqueles que aspiram a colaborar com maior eficácia nos destinos dos indivíduos e da sociedade”41. Ela parece mais próxima do Evangelho. “A Igreja encara com simpatia o sistema da democracia, enquanto assegura a participação dos cidadãos nas opções políticas e garante aos governados a possibilidade quer de escolher e controlar os próprios governantes quer de os substituir pacificamente, quando tal se torne oportuno”42. O regime de governo que mais se adaptaria às exigências do Evangelho vem descrito com as seguintes características:

    - “o reconhecimento da dignidade da pessoa humana; - o respeito e a garantia dos direitos das pessoas, das famílias e das associações,

    (especialmente os de reunião, associação, liberdade de opinião, liberdade religiosa etc);

    - a igualdade de oportunidades para que todos os cidadãos participem no destino da sociedade;

    - a busca do bem comum como objetivo fundamental; - a existência de instituições que garantam a justiça nas relações sociais; - a livre escolha das formas de governo e das pessoas que exerçam a autoridade;

    38 Ibidem. 39 JOÃO XXIII, Carta encíclica ‘Mater et Magistra’ n° 36, in . A. DE SANCTIS (org.), op.cit., p. 233. 40 Cf. LEÃO XIII, Carta encíclica ‘Au milieu des Sollicitudes’, 16/02/1892; cf. cf. R. L. BRARDINELLI, C. L. GALAN, op. cit., p. 70. 41 PIO XII, Benignitas et humanitas, Radiomensagem de Natal de 1944; cf. cf. R. L. BRARDINELLI, C. L. GALAN, op. cit., p. 70. 42 JOÃO PAULO II, Carta encíclica ‘Centesimus Anuus’, n° 46, in C. BOMBO (org.), op. cit., p. 620.

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    - a limitação do poder e seu controle pelo povo”43.

    Respeitadas estas características básicas, “cada povo deve encontrar o sistema que vá respondendo melhor às suas próprias condições históricas, geográficas, culturais, econômicas e políticas”44. No entanto, a Igreja tem criticado, e até condenado, formas de governo ou sistemas que apresentem situações inequívocas de injustiça, de desrespeito dos direitos humanos essenciais e de limitação da liberdade das pessoas, mesmo naqueles casos em que os governantes se dizem cristãos45. Opôs-se a sistemas políticos totalitários e/ou autoritários, como o fascismo, o nazismo, o comunismo e aqueles fundados nas doutrinas de segurança nacional, bem como criticou toda sorte de mau uso do poder, assinalando igualmente para o perigo da anarquia e da demagogia.

    Além disso, dentro da sociedade, várias são as associações intermédias que devem ser respeitadas, numa harmonização das relações no campo social. Se não se pode confiar cegamente no mecanismo do mercado, tampouco se pode entregar tudo para um Estado-Providência que venha a invadir todas as áreas da vida dos cidadãos, expulsando a iniciativa privada. “Os governantes tenham o cuidado de não impedir as associações familiares, sociais ou culturais e os corpos ou organismos intermédios, nem os privem da sua atividade legítima e eficaz: pelo contrário, procurem de bom grado promovê-las ordenadamente. Evitem, por isso, os cidadãos quer individualmente quer associativamente conceder à autoridade um poder excessivo, nem lhe peçam, de modo inoportuno, demasiadas vantagens e facilidades, de modo que se diminua a responsabilidade das pessoas, famílias e grupos sociais”46.

    Dois princípios auxiliam na harmonização das relações no campo social. São eles a solidariedade e a subsidiariedade. “Em virtude do primeiro, o homem deve contribuir, com os seus semelhantes, para o bem comum da sociedade em todos os seus níveis. Sob este ângulo, a doutrina da Igreja opõe-se a todas as formas de individualismo social ou político. Em virtude do segundo, nem o Estado, nem sociedade alguma, devem substituir-se à iniciativa e à responsabilidade das pessoas e das comunidades intermediárias, no nível em que essas possam agir, nem destruir o espaço necessário à liberdade das mesmas. Por este lado, a doutrina social da Igreja opõe-se a todas as formas de coletivismo”47.

    Hoje, o ensino social da Igreja toma eqüidistância ante qualquer forma de Estado totalitário ou autoritário bem como neo-liberal, para propor aquele que respeita e até 43 R. L. BRARDINELLI, C.L. GALAN, op. cit., p. 70-71. 44 Ibidem, p. 71. 45 Cf. Puebla, n° 42. 46 CONCÍLIO VATICANO II, Constituição Pastoral ‘Gaudium et Spes’ n° 75, in A. DE SANCTIS (org.), op.cit., p. 371. 47 CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Instrução sobre a liberdade e a libertação (‘Libertatis conscientia’), col. “Documentos Pontifícios” n° 207, Petrópolis: Vozes, 1986, n° 73, p. 59-60.

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    promove uma experiência mais comunitária, num regime democrático que venha a favorecer a participação de todos48. Neste patamar saudável de democracia, são favorecidas as associações intermédias, numa articulação em diferentes níveis. A colaboração solidária e o fomento da subsidiariedade desencadeiam verdadeiras redes solidárias, surgindo como alternativas face à globalização neo-liberal e capitalista, fortemente calcada na lei do mercado, bem como face a qualquer pretensão totalitária49. 3.2. O trabalho e as novas tecnologias Para o ensino social da Igreja, o trabalho é apresentado como “a chave essencial de toda a questão social”50. O trabalho revela o grau de humanidade que atinge tanto a pessoa humana quanto a sociedade. Trata-se de uma atividade que caracteriza e realiza o ser humano; é reflexo de sua vocação, revela a sua condição e conta a sua história. Através do trabalho, o ser humano distingue-se dos demais seres da criação. O trabalho não é definido só enquanto produção de bens, nem é um fim em si mesmo. Ele exprime o ser humano que se desdobra a serviço dos outros, constituindo-se numa oferenda ao próprio Deus. “O trabalho é como uma ‘vocação’ ou um chamado que eleva o homem a ser partícipe da ação criadora de Deus. É o meio que Deus oferece ao homem para ‘submeter’ a terra, descobrir seus segredos, transformá-la, usufruir e, deste modo, enriquecer sua própria personalidade”51. Isto nos faz recordar o texto: “Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a” (Gn 1,28). Este texto encontra-se inserido no relato do Gênesis que aponta para o ser humano criado à imagem e semelhança de Deus, sendo assim o ponto alto da criação. Mostra que esta semelhança a Deus é vivida, entre outros modos, no “domínio que Deus lhe concede em relação ao resto da criação. ‘Dominar’ significa aqui o cuidado que o pastor tem com seu rebanho. Assim, o ser humano deve cuidar do mundo que o cerca”52. Este “domínio” sobre a terra realiza-se pelo trabalho. Todos os seres humanos dele tomam parte através de um número incalculável de formas, parte de um progresso gigantesco através da história. Verificamos, portanto, um “domínio” progressivo que se deu e continua se dando em distintas fases/modos:

    - extraindo da terra e dos mares recursos naturais;

    48 Cf. JOÃO PAULO II, Carta encíclica ‘Sollicitudo Rei Socialis’ n° 44, in C. BOMBO (org.), op. cit., p. 438. 49 E. A. MANCE, A revolução das redes. A colaboração solidária como uma alternativa pós-capitalista à globalização atual, Petrópolis: Vozes, 2000. 50 Cf. JOÃO PAULO II, Carta encíclica ‘Laborem Exercens’ n° 3, in C. BOMBO (org.), op. cit., p. 181. 51 IDEM, Mensagem aos trabalhadores argentinos (10/04/1987), in R. L. BRARDINELLI, C. L. GALAN, op. cit., p. 142. 52 Cf. Bíblia ‘Vozes’, comentário a Gn 1,26-28.

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    - domesticando os animais para garantir alimento, vestimenta e até força de trabalho;

    - cultivando a terra e desenvolvendo a agricultura; - desenvolvendo a indústria e chegando à produção em cadeia ou em série; - chegando à eletrônica, com os desdobramentos na informática e a agilidade daí

    decorrente; - adentrando-se no “genoma” e desenvolvendo a engenharia genética e

    habilidades afins.

    Nesta passagem de século e de milênio, profundas mudanças estão ocorrendo nas formas de trabalho, com uma rapidez nunca vista. É como se uma nova revolução atingisse o mundo do trabalho, como foi a revolução industrial no século XIX. Esta constatação das mudanças não pode nos deixar paralisados, abdicando de acompanhar devidamente a dinâmica de progressão aí existente.

    Na sociedade, as tecnologias avançadas e modernas suscitam transformações na

    estrutura e nas relações do trabalho, particularmente com a introdução da eletrônica e mais recentemente com a engenharia genética. Este quadro “exige que se descubram os novos significados do trabalho humano e, além disso, que se formulem as novas tarefas que neste setor se deparam indeclinavelmente a todos os homens, à família, a cada uma das nações e a todo o gênero humano e, por fim, à própria Igreja”53.

    A Igreja participa desse esforço, porém não concentra suas atenções na análise

    propriamente científica de tal cenário, mas na relação fundamental existente entre o ser humano e o trabalho neste novo contexto. A pergunta que importa aqui é a seguinte: Qual é o novo tipo de relação e de organização que este contexto supõe quer na relação com a natureza quer na relação dos seres humanos entre si?

    Além disso, a questão do trabalho vai além dos limites de uma classe e de uma

    nação; toma-se consciência de sua dimensão internacional e mundial. A relação entre capital e trabalho aparece sempre presente e aguda, sem uma solução adequada. O aumento do desemprego é preocupante; não é mais um fenômeno cíclico, mas torna-se uma realidade permanente e estrutural.

    Damo-nos conta que não basta falar do trabalho em si; é preciso assumi-lo em sua

    relação com a automação em muitos campos da produção, com o custo da energia e das matérias de base, com a crescente consciência da limitação do patrimônio natural (ecologia...), com a existência de povos que ainda não ocuparam seu legítimo lugar nas decisões internacionais. “Estas novas condições e exigências irão requerer uma reordenação

    53 Cf. JOÃO PAULO II, Carta encíclica ‘Laborem Exercens’ n° 2, in C. BOMBO (org.), op. cit., p. 179.

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    e um novo ajustamento das estruturas da economia hodierna, bem como da distribuição do trabalho”54. Mais do que uma simples indicação de problemas, importa buscar a maneira melhor de enfocá-los, bem como de identificar suas raízes, num quadro menos linear de análise.

    Devemos reconhecer que as tecnologias tornaram-se uma mediação para a

    realização do trabalho. No entanto, a ambivalência com que o ser humano se investe nas suas ações, faz com que a técnica possa estar a favor ou contra a sua realização:

    - “entendida como um conjunto de instrumentos que são utilizados para o trabalho, a técnica é uma aliada do homem, quando facilita o seu trabalho, o aperfeiçoa, o acelera e o multiplica;

    - por outro lado, a técnica pode ir contra o homem:

    • quando a mecanização do trabalho o substitui, tirando-lhe toda satisfação pessoal e o estímulo à criatividade e à responsabilidade;

    • quando produz desemprego;

    • ou quando o homem converte-se em escravo da máquina”55.

    Para o ensino social da Igreja, o trabalho é um bem do ser humano, não é uma mercadoria ou um simples instrumento de produção56. Fica corrigido assim o princípio reducionista do capitalismo que entende o trabalho como caminho para o lucro. Pelo trabalho, o ser humano, homem e mulher, completa e prolonga a obra criadora de Deus e realiza-se enquanto pessoa e enquanto membro de uma comunidade quer familial quer nacional.

    Além disso, este ser humano “imagem de Deus” é uma pessoa chamada a ser sujeito

    do trabalho, operando conscientemente as técnicas, decidindo sempre com liberdade para que o trabalho possa ser fonte de realização. O pensamento social da Igreja, na voz de João Paulo II, afirma que “a finalidade do trabalho, de todo e qualquer trabalho realizado pelo homem – ainda que seja o trabalho mais humilde de um ‘serviço’ e o mais monótono... – permanece sempre o mesmo homem”57.

    O ser humano é “o protagonista, o centro e o fim de toda a vida econômico-

    social”58. “A solução da maioria dos gravíssimos problemas da miséria encontra-se na

    54 JOÃO PAULO II, ibidem, n° 2, in C. BOMBO (org.), op. cit., p. 176. 55 R. L. BRARDINELLI, C. L. GALAN, op. cit., p. 143. 56 Cf. JOÃO PAULO II, Carta encíclica ‘Laborem Exercens’ n° 7, in C. BOMBO (org.), op. cit., p. 191. 57 Ibidem, n° 6, in C. BOMBO (org.), op. cit., p. 191. 58 CONCÍLIO VATICANO II, Constituição Pastoral ‘Gaudium et Spes’ n° 63, in A. DE SANCTIS (org.), op. cit., p. 358.

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    promoção de uma verdadeira civilização do trabalho”59, já que, em definitivo, “o trabalho é a chave essencial de toda a questão social”60. Desde Pio XI, na Quadragesimo Anno, passando por Pio XII, o ensino social da Igreja chama a atenção para a necessidade de que o fruto do trabalho, resultado da eficaz cooperação com o capital, seja partilhado devidamente. João XXIII assinalava para a possibilidade de os trabalhadores serem “associados à propriedade e à gestão da empresa ou participarem, de algum modo, dos lucros que ela proporciona”61; isto é, inclusive, uma aspiração legítima dos operários. O Concílio Vaticano II aponta para a participação ativa de todos na gestão das empresas, respeitadas as funções de cada um62. Esta participação vale também para as instâncias superiores que decidem as políticas econômicas e sociais. Três são, portando, os níveis de participação dos trabalhadores, preconizados pelo pensamento social da Igreja:

    - participação na gestão das empresas em que o operário trabalha; - participação na propriedade destas empresas; - participação na tomada de decisões sobre temas econômicos e sociais que os

    afetam.

    Hoje, cresce a consciência de que não é possível avançar, como sujeitos e eticamente fundados, senão dentro de um espírito empreendedor, capaz de situar o ser humano como fim da atividade humana, tendo em vista o seu bem integral. Estamos cientes da necessidade de ações cooperativas em todos os níveis, capazes de formar redes de solidariedade. Trata-se, sim, de uma colaboração solidária que venha a se tecer, somando forças e superando fronteiras de todo tipo, numa perspectiva de inclusão do ser humano em todas as suas dimensões, bem como de todos os seres humanos indistintamente.

    Se há algo a ser globalizado hoje é a solidariedade. Células de cooperação solidária podem surgir em qualquer local, desde na maneira de realizar o trabalho num setor da empresa até nas interações entre países, corporações etc. Importa aqui “dispor de mediações materiais, políticas, educativas e informacionais para o exercício das liberdades humanas... A colaboração solidária é, pois, uma atitude ética que orienta a nossa vida e uma posição política frente à sociedade em que estamos inseridos. Eticamente trata-se de promover o bem-viver de cada um em particular e de todos em conjunto, e politicamente de promover transformações na sociedade com esse mesmo fim”63.

    59 CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Instrução ‘Libertatis conscientia’, op. cit., n° 83, p. 68. 60 Cf. JOÃO PAULO II, Carta encíclica ‘Laborem Exercens’ n° 3, in C. BOMBO (org.), op. cit., p. 182. 61 Cf. JOÃO XXIII, Carta encíclica ‘Mater et Magistra’ n° 32, in A. DE SANCTIS (org.), op. cit., p. 232. 62 Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Constituição Pastoral ‘Gaudium et Spes’ n° 68, in A. DE SANCTIS (org.), op. cit., p. 363-364. 63 E. A. MANCE, op. cit., p. 18-19.

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    3.3. A empresa e o trabalhador

    As empresas são responsáveis, em nossos dias, pela produção da maior parte dos bens e serviços. São organizações, com suas formas múltiplas e diferenciadas, que coordenam as atividades que intervêm nessa produção, desde as matérias primas, o trabalho, a tecnologia, as comunicações etc. Convém igualmente ter presente que há toda uma produção que é realizada por trabalhadores independentes e pelo setor informal.

    O ensino social da Igreja sempre enfatizou a função social da empresa. Parte, para isso, da concepção de que ela é uma comunidade de pessoas. João Paulo II é enfático ao afirmar: “A empresa não pode ser considerada apenas como uma ‘sociedade de capitais’; é simultaneamente uma ‘sociedade de pessoas’, da qual fazem parte, de modo diverso e com específicas responsabilidades, quer aqueles que fornecem o capital necessário para a sua atividade, quer aqueles que aí colaboram com o seu trabalho”64. Nenhuma pessoa ou grupo pode ser proprietário de indivíduos, nem de uma sociedade ou do Estado. A noção proposta é realmente a de “comunidade de pessoas”, noção capaz de lastrear uma atividade econômica e empresarial no seu sentido verdadeiramente humano65. Enquanto tal, a empresa buscará a satisfação das necessidades básicas das pessoas, pensando também na colaboração que possa dar à sociedade como um todo66. A atitude fundamental é a da solidariedade; através dela, proprietários, gerentes e trabalhadores empenham-se responsavelmente e criativamente numa “cadeia solidária”, fundamental para cada ser humano realizar-se integralmente como pessoa e atender às necessidades em todos os recantos da sociedade.

    Com isso, fica evidente a função social da empresa. Realizá-la é, inclusive, galgar o

    patamar ético esperado, que se realiza à medida que contribui ao aperfeiçoamento do ser humano, sem discriminações, garante o desenvolvimento das capacidades pessoais, chega a uma produção eficaz, traz um acréscimo de riqueza material e cria condições de vida mais humana67.

    Este acréscimo de riqueza material aponta para a função do lucro. Sobre este ponto,

    “a Igreja reconhece a justa função do lucro, como indicador do bom funcionamento da empresa: quando esta dá lucro, isso significa que os fatores produtivos foram

    64 JOÃO PAULO II, Carta encíclica ‘Centesimus Annus’ n° 43, in C. BOMBO (org.), op. cit., p. 619. 65 CELAM – II Conferência Geral, op.cit., ‘Justiça’ n° 10. 66 JOÃO PAULO II, Carta encíclica ‘Centesimus Annus’ n° 35, in C. BOMBO (org.), op. cit., p. 608ss. 67 Cf. JOÃO PAULO II. Discurso em Barcelona, 07/11/1982; Discurso aos empresários argentinos, 11/04/1987. Cf. R. L. BRARDINELLI, C. L. GALAN, op. cit., p. 162.

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    adequadamente usados e as correlativas necessidades humanas devidamente satisfeitas. Todavia, o lucro não é o único indicador das condições da empresa. Pode acontecer que a estabilidade esteja em ordem e simultaneamente os homens, que constituem o patrimônio mais precioso da empresa, sejam humilhados e ofendidos em sua dignidade. Além de ser moralmente inadmissível, isso não pode deixar de se refletir futuramente de modo negativo na própria eficiência econômica da empresa... O lucro é um regulador da vida da empresa, mas não o único; a ela se deve associar a consideração de outros fatores humanos e morais que, a longo prazo, são igualmente essenciais para a vida da empresa”68.

    “Os lucros têm como objetivo: - o incremento do capital, mas também: - a melhoria do salário; - os serviços sociais; - a capacitação técnica; - a pesquisa; - a promoção cultural”69.

    Por outro lado, num discurso a empresários em Milão, em 1983, João Paulo II

    observava que “o grau de bem estar de que goza hoje a sociedade, seria impossível sem a figura dinâmica do empresário, cuja função consiste em organizar o trabalho humano e os meios de produção para dar origem aos bens e serviços”70. É bom observar que a figura do empresário tem sido compreendida não só como o proprietário do capital, mas também inclui os gerentes e os investidores. Se a estes faz-se necessário garantir a liberdade, ao mesmo tempo deve haver uma responsabilidade ante o bem comum e a justiça.

    Visto o montante de recursos que um empresário maneja, ele aparece como “fiel

    depositário” de tais recursos, no sentido de que cabe a ele tomar cuidado, custodiar, na linha de uma reta administração dos bens. Aqui, reencontramos aquela noção, presente desde os primórdios da Igreja, de que ninguém é dono absoluto dos bens e de que estes bens devem ter sempre uma função social. O empresário deverá tomar em conta tanto os demais membros/trabalhadores na empresa quanto a sociedade no seu conjunto.

    Lembre-se que o montante de recursos é sempre fruto do esforço humano. “Esse

    instrumento gigantesco e poderoso – isto é, o conjunto dos meios de produção, considerados, até certo ponto, como sinônimo do ‘capital’ – nasceu do trabalho e é portador das marcas do trabalho humano”71. Isto implica que qualquer decisão tomará em conta

    68 JOÃO PAULO II, Carta encíclica ‘Centesimus Annus’ n° 35, in C. BOMBO (org.), op. cit., p. 609. 69 R. L. BRARDINELLI, C.L. GALAN, op. cit., p. 163. 70 Ibidem, p. 160. 71 JOÃO PAULO II, Carta encíclica ‘Laborem Exercens’ n° 12, in C. BOMBO (org.), op. cit., p. 207.

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    tanto os empresários quanto os trabalhadores, bem como as comunidades donde procedem as forças vivas para o trabalho.

    “Os responsáveis pelas empresas têm perante a sociedade a responsabilidade

    econômica e ecológica pelas suas operações (cf. CA 37). Têm o dever de considerar o bem das pessoas e não apenas o aumento dos lucros. Entretanto, estes são necessários, pois permitem realizar os investimentos que garantem o futuro das empresas, garantindo o emprego”72.

    Para o pensamento social da Igreja, torna-se evidente – nas palavras mesmas de

    João Paulo II – a necessidade de “um modelo de empresário profundamente humano, consciente dos seus deveres, honesto, competente e imbuído de um profundo sentido social que o torne capaz de superar a inclinação para o egoísmo, para preferir mais a riqueza do amor do que o amor à riqueza”73.

    Sendo a empresa uma comunidade de pessoas, aponta-se para a necessária

    participação de todos que a constituem. Isto terá em conta “o estado concreto que apresenta cada empresa. Esta situação pode variar de empresa para empresa e, dentro de cada empresa, está sujeita a alterações muitas vezes rápidas e fundamentais”74.

    A participação dos trabalhadores na empresa pode se dar de diferentes formas: - no controle da produtividade; - na participação da gestão; - na participação nos lucros; - na participação acionária75. A isto vale acrescentar o que já dizia João XXIII: “Uma empresa verdadeiramente

    preocupada com a dignidade da pessoa humana deve defender a necessária e efetiva unidade de sua direção. Mas, daí, de nenhum modo é lícito concluir que aqueles que nela trabalham diariamente devam ser tidos na condição de meros e silenciosos executores de ordens, sem a possibilidade de opinar ou de fazer valer a sua experiência, inteiramente passivos diante das decisões que afetam as suas pretensões e a organização do seu trabalho”76.

    72 Catecismo da Igreja Católica, n° 2432. 73 JOÃO PAULO II. Discurso aos empresários, Buenos Aires, 11/04/1987. Cf. R. L. BRARDINELLI, C.L. GALAN, op. cit., p. 161. 74 JOÃO PAULO II, Carta encíclica ‘Mater et Magistra’ n° 91, in A. DE SANCTIS (org.), op.cit., p. 248. 75 Cf. R. L. BRARDINELLI, C. L. GALAN, op. cit., p. 163. 76 JOÃO PAULO II, Carta encíclica ‘Mater et Magistra’ n° 91, in A. DE SANCTIS (org.), op. cit., p. 249.

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    Aqui importa mencionar a primazia que tem o trabalho sobre o capital. O objetivo é preservar o bem dos próprios trabalhadores, numa hierarquia claramente estabelecida na Laborem exercens. A Instrução Libertatis conscientia, n° 87, da Congregação para a Doutrina da Fé explicita, por sua vez, esta questão com as seguintes palavras: “A prioridade do trabalho sobre o capital faz com que os empresários tenham o dever de justiça de considerar o bem dos trabalhadores antes do aumento dos lucros. Têm a obrigação moral de não manter capitais improdutivos, e de procurar, nos investimentos, antes de tudo, o bem comum. Este exige que se busque, como prioridade, a consolidação ou a criação de novos postos de trabalho, na produção de bens realmente úteis”.

    Tudo isto supõe uma relação entre o empregador e o trabalhador mediada por um

    contrato de trabalho. Nele, busque-se estabelecer uma remuneração “justa”; esta é uma exigência geral e uma disposição requerida pela justiça. Esta questão já era captada por Leão XIII como “assunto da maior importância”, dispondo ele que, em princípio, o salário deve ser “suficiente para socorrer com desafogo às suas necessidades e às da sua família”77. Pio XI segue a mesma linha78. Acrescenta que “é necessário atender também ao empresário e à empresa ao determinar a importância dos salários; seria injustiça exigir salários elevados, que eles não pudessem pagar sem se arruinarem e arruinarem consigo os operários”79.

    O pensamento social da Igreja não aprova os salários muito baixos, nem os salários

    muito altos. Tanto um quanto outro é oneroso ao bem comum. O desemprego não teria aí uma de suas fontes?80 João XXIII não teve dúvidas em afirmar: “Estimamos do nosso dever afirmar, mais uma vez, que a fixação dos níveis salariais não pode ser deixada inteiramente à livre concorrência, nem ao arbítrio dos poderosos, mas deve ser feita, segundo as normas da justiça e da eqüidade. Estas exigem que os trabalhadores recebam um salário suficiente para que possam levar uma vida humanamente digna e atender, convenientemente aos seus encargos de família. Mas, na fixação do justo salário, é mister, também, que se leve em conta, primeiro, a contribuição efetiva de cada um à produção; logo, a situação financeira da empresa em que trabalha e, ainda, as exigências impostas pelo bem do país, em particular as do pleno emprego; e, finalmente, o que exige o bem comum de todas as nações, a saber, das várias comunidades internacionais, compostas de Estados de natureza e extensão diferentes”81.

    77 LEÃO XIII, Carta encíclica ‘Reum Novarum’ n° 30, in A. DE SANCTIS (org.), op. cit., p. 38. Na numeração da coleção “Documentos Pontifícios” da Editora Vozes, este parágrafo vem assinalado como o de n° 65. 78 Cf. PIO XI, Carta encíclica ‘Quadragesimo Anno’ n° 71, in A. DE SANCTIS (org.), op. cit., p. 75. 79 Ibidem, n° 72, in op. cit., p. 75. 80 Cf. ibidem, n° 74, in op. cit., p. 76. 81 JOÃO XXIII, Carta encíclica ‘Mater et Magistra’ n° 71, in A. DE SANCTIS (org.), op. cit., p. 243-244.

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    Na verdade, duas são as coordenadas básicas para se estabelecer o salário: a) o digno sustento do trabalhador e sua família; b) as possibilidades econômicas da empresa e de todo o sistema de produção. O cuidado deverá estar tanto na quantia do salário quanto na preocupação em garantir o maior número de empregos. Deverá haver aí uma harmonia, resguardando sempre o bem comum.

    Além disso, o ensino social da Igreja teve sempre presente “o direito de se associar, quer dizer, o direito de formar associações ou uniões, com a finalidade de defender os interesses vitais dos empregados nas diferentes profissões. Estas uniões têm o nome de sindicatos”82. Isto é salientado como um “direito fundamental da pessoa humana..., direito de participar, livremente, sem risco de represálias, na atividade das mesmas”83.

    Quanto a esta questão, Leão XIII constatava: “O século passado destruiu, sem as

    substituir por coisa alguma, as corporações antigas, (...) e assim, pouco a pouco, os trabalhadores isolados e sem defesa têm-se visto, com o decorrer do tempo, entregues à mercê de senhores desumanos e à cobiça de uma concorrência desenfreada. A usura voraz veio agravar ainda mais o mal”84. João Paulo II, por sua vez, assinalava que “os sindicatos diferem destas corporações neste ponto essencial: os modernos sindicatos cresceram a partir da luta dos trabalhadores, do mundo do trabalho e, sobretudo, dos trabalhadores da indústria, pela tutela de seus justos direitos, em confronto com os empresários e os proprietários dos meios de produção”85.

    Com relação aos sindicatos, João Paulo II fala de sua necessidade com as seguintes palavras: “A experiência histórica ensina que as organizações deste tipo são elemento indispensável da vida social, especialmente nas modernas sociedades industrializadas”86. As cooperativas são também saudadas pelo ensino social por fomentarem o sentimento de responsabilidade e o espírito de colaboração e por contribuírem para o progresso da civilização e o desenvolvimento das comunidades87. 3.4. A primazia do bem comum e a propriedade privada

    82 JOAO PAULO II, Carta encíclica ‘Laborem Exercens’ n° 20, in C. BOMBO (org.), op. cit., p. 230. 83 CONCÍLIO VATICANO II, Constituição Pastoral ‘Gaudium et Spes’ n° 68, in A. DE SANCTIS (org.), op. cit., p. 364. 84 LEÃO XIII, Carta encíclica ‘Rerum Novarum’ n° 2, in A. DE SANCTIS (org.), op.cit., p. 38. Este parágrafo vem assinalado como o de n° 6 na numeração da coleção “Documentos Pontifícios” da Editora Vozes. 85 JOAO PAULO II, Carta encíclica ‘Laborem Exercens’ n° 20, in C. BOMBO (org.), op. cit., p. 230. 86 Ibidem, n° 20, in op. cit., p. 230; cf. PAULO VI, Carta encíclica ‘Populorum Progressio’ n° 38, in A. DE SANCTIS (org.), op. cit., p. 408. 87 Cf. JOAO XXIII, Carta encíclica ‘Mater et Magistra’ n° 89, 90, in A. DE SANCTIS (org.), op. cit., p. 248.

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    O direito de propriedade é uma questão social central para a vida em sociedade. São várias as indagações que costumam ser levantadas a seu respeito. As mais freqüentes dizem respeito à sua legitimidade, seu alcance e o lugar que o Estado tem/pode ocupar. Muitos são os matizes através dos tempos na forma de tratar este tema.

    A Igreja aborda esta questão da seguinte maneira:

    • “Os bens da Criação estão destinados ao uso de todos os homens e de todos os povos;

    • é legítimo o direito de propriedade privada, inclusive dos bens de produção;

    • no entanto, este direito não é absoluto, porque a propriedade tem uma função social;

    • junto à propriedade privada, é legítima a existência de uma propriedade pública, se esta se mostrar necessária”88.

    João Paulo II é enfático ao afirmar que “entre os princípios fundamentais da

    doutrina social da Igreja encontra-se o do destino universal dos bens”89. E no Concílio Vaticano II, a Igreja afirma: “Deus destinou a terra, com tudo o que ela contém, para o uso de todos..., com eqüidade, sob as regras da justiça, inseparável da caridade. Sejam quais forem as formas de propriedade...”90. Isto implica reconhecer que a propriedade privada deve ser subordinada ao seu originário destino comum dos bens91. Para o Papa Paulo VI, isto já estava claro nas primeiras páginas da Bíblia. Ela “ensina-nos que toda a criação é para o homem... Se a terra é feita para fornecer a cada um os meios de subsistência e os instrumentos do progresso, todo o homem tem o direito, portanto, de nela encontrar o que lhe é necessário”92. Desde a época dos Padres da Igreja, encontramos o princípio ético, até hoje presente no ensino social, de que os bens da terra estão destinados a todos os seres humanos. São Cipriano era claro ao afirmar que “o que é de Deus é de todos”. Este pensamento traz algumas conseqüências:

    • “Todos os homens têm direito a possuir uma parte de bens suficiente para si mesmos e para suas famílias;

    88 R. L. BRARDINELLI, C. L. GALAN, op. cit., p. 134. 89 Cf. JOÃO PAULO II, Exortação apostólica ‘Christifideles laici’, col. “Documentos Pontifícios” n° 225, Petrópolis: Vozes, 1989, n° 43. 90 CONCÍLIO VATICANO II, Constituição Pastoral ‘Gaudium et Spes’, n° 69. Nesta citação, seguimos o Compêndio do Vaticano II, constituições, decretos, declarações, 22ª edição, Petrópolis: Vozes, 1991, p. 224. 91 JOAO PAULO II, Carta encíclica ‘Centesimus Annus’ n° 30, in C. BOMBO (org.), op. cit., p. 602. 92 PAULO VI, Carta encíclica ‘Populorum Progressio’ n° 22, in A. DE SANCTIS (org.), op. cit., p. 401; cf. CONCÍLIO VATICANO II, Constituição Pastoral ‘Gaudium et Spes’ n° 69, in A. DE SANCTIS (org.), op. cit., p. 364.

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    • os que têm mais estão obrigados a ajudar aos que se encontram em situação de necessidade;

    • os que estão em situação de necessidade extrema tem direito a tomar da riqueza alheia o que é necessário para si;

    • todos os demais direitos, sejam quais forem, compreendidos os de propriedade e livre comércio, estão subordinados a este princípio; ‘não devem, portanto, impedir, mas, pelo contrário, facilitar a sua realização’”93.

    Por outro lado, o pensamento social da Igreja afirma a legitimidade do direito de

    propriedade. Pode ser resumido da seguinte maneira:

    • é um direito natural;

    • é necessária como expressão da liberdade humana;

    • é um meio de expressão da iniciativa e da responsabilidade social do homem;

    • é um elemento de segurança para o futuro;

    • é fruto e conseqüência do trabalho humano;

    • igualmente, aponta-se para as conseqüências prejudiciais da supressão da propriedade privada94.

    O regime de propriedade funda-se “no primado do homem em relação às coisas”95,

    na “transcendência da pessoa sobre o mundo material (cf. Gn 1,28 e Mt 16,26), e nos fins superiores da existência: não se é para ter, mas antes possuir-se para ser”96. Para o pensamento social cristão o ter segue o ser. O ser humano não é um indivíduo-átomo, que se basta a si mesmo, sem a relação com o próximo e sem a comunhão com o próximo e com Deus. O liberalismo clássico exagerou nesta visão extremamente calcada sobre o indivíduo. Por outro lado, a substância fundamental do existir não é a coletividade, sendo os indivíduos apenas células da mesma, o que significaria que o sujeito da propriedade seria a coletividade. Sabemos como o socialismo clássico incorreu nesta versão.

    A referência é a pessoa humana. A ela cabe o direito de propriedade privada,

    “direito natural, pelo qual o homem é anterior à sociedade que a ele se ordena como ao seu fim”97. Por outro lado, “pelo motivo de a pessoa ser intrinsecamente sociável, o direito de propriedade não é um direito individual absoluto, mas antes tem uma função intrinsecamente social”98. Importa, neste particular, evitar tanto o individualismo quanto o coletivismo99.

    93 R. L. BRARDINELLI, C. L. GALAN, op. cit., p. 135. 94 Cf. ibidem, p. 136. 95 Cf. JOAO PAULO II, Carta encíclica ‘Laborem Exercens’ n° 12, in C. BOMBO (org.), op. cit., p. 207. 96 J. M. I. LANGLOIS, Doutrina Social da Igreja, 2ª edição, Lisboa: Rei dos Livros, 1990, p. 192. 97 Cf. JOÃO XXIII, Carta encíclica ‘Mater et Magistra’ n° 109, in A. DE SANCTIS (org.), op. cit., p. 252. 98 Cf. J. M. I. LANGLOIS, op. cit., p. 195. 99 Cf. PIO XI, Carta encíclica ‘Quadragesimo Anno’ n° 46, in A. DE SANCTIS (org.), op. cit., p. 65.

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    Outro desdobramento desta temática reside na questão do privado e do público. O

    pensamento social da Igreja evita cair tanto numa visão estatista ou coletivista quanto numa visão liberal extrema. A primeira equivale a dar ao Estado a propriedade dos bens, sendo os indivíduos meros administradores delegados da propriedade coletiva. A segunda nega ao Estado qualquer forma de propriedade. Para o pensamento social da Igreja, não se pode negar o direito à propriedade privada, nem cortar a iniciativa privada e muito menos colocar sob controle a liberdade humana. Por outro lado, não podemos absolutizar o direito à propriedade privada a ponto de esquecer do bem comum ou do seu destino universal. Em vista do bem comum, a autoridade competente pode requisitar uma propriedade particular para fins públicos, “com a compensação eqüitativa”100. Fala-se, então, de propriedade pública que, neste caso, não contradiz a noção de propriedade privada. Ou, o direito à propriedade privada “não é incompatível com as diversas formas de propriedade pública”101. Alguns requisitos são elencados para a legitimidade da propriedade pública:

    • o mais importante é quando ela é uma exigência do bem comum;

    • por exemplo, no atendimento que o Estado deve prestar: exercício da justiça, garantia da ordem, a necessidade de legislar, atender a saúde pública, assegurar a educação básica etc;

    • para prestar um serviço quando a iniciativa particular não o realiza adequadamente;

    • para promover atividades econômicas102.

    Se, por um lado, o Estado não deve suprimir a liberdade de ação dos particulares, por outro lado, a propriedade privada não deve ser fonte de dominação e de exploração e muito menos de especulação. Existe aí o chamado, que é como que uma obrigação, de buscar gerar e aumentar uma riqueza que seja socialmente partilhada. Sem isso, a propriedade privada não se justifica e pode ser uma ofensa a Deus porque atenta contra o próximo. João Paulo II chama a nossa atenção para este ponto ao afirmar:

    “A propriedade dos meios de produção, tanto no campo industrial como agrícola, é

    justa e legítima quando serve para um trabalho útil; pelo contrário, torna-se ilegítima, quando não é valorizada ou serve para impedir o trabalho dos outros, para obter um ganho que não provém da expansão global do trabalho humano e da riqueza social, mas antes da sua repressão, da ilícita exploração, da especulação e da ruptura da solidariedade no mundo 100 CONCÍLIO VATICANO II, Constituição Pastoral ‘Gaudium et Spes’ n° 71, in A. DE SANCTIS (org.), op. cit., p. 367. 101 Cf. ibidem. 102 Cf. R. L. BRARDINELLI, C. L. GALAN, op. cit., p. 138.

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    do trabalho. Semelhante propriedade não tem qualquer justificação e constitui um abuso diante de Deus e dos homens”103. 3.5. O mercado numa economia de globalização “A globalização, a priori, não é nem boa nem má. Será aquilo que as pessoas fizerem dela. Nenhum sistema tem a si mesmo como fim e é necessário insistir sobre o fato que a globalização, como qualquer outro sistema, deve estar a serviço da pessoa humana, da solidariedade e do bem comum”104. O processo de globalização pode ser identificado como o produto da revolução tecnológica (no seu terceiro estágio, ou seja, microeletrônico e informacional) e das novas formas de competição econômica em escala global. Decresce a força das ideologias, das vontades políticas ante a força expansiva dos mercados e de sua capacidade de atravessar/dissolver fronteiras. A força dos Estados fica reduzida, quando não confinada a administrar alguns quesitos. O mundo do trabalho perde igualmente sua importância, agora fragmentado, tendendo a ser dissolvido enquanto expressão de classe social. No entanto, a globalização nos é projetada ideologicamente como “um futuro luminoso em que o desenvolvimento e a difusão tecnológica universal promoverão a convergência e a homogeneização crescentes da riqueza das nações e a paz cada vez mais duradoura entre os estados”105. Mas a realidade não é bem essa. É bom notar que a globalização não se resume apenas ao econômico ou tecnológico. Ela repercute no político, no geopolítico, microeconômico e ideológico. Supõe uma hegemonia da ideologia neoliberal, numa comercialização em escala mundial, supondo consumo, impondo uma desregulamentação dos mercados de bens e de capitais em atividade 24 horas por dia no mercado mundial. Este processo teve seus inícios nos anos 70 do século XX; aprofundou-se/estendeu-se nos anos 80 e, desde então, está buscando se impor sem mais.

    Não podemos duvidar dos benefícios trazidos pela globalização. Podemos afirmar que a revolução tecnológica tem seu lado útil e precioso, pelos serviços que presta e pela qualidade dos mesmos, com benefícios ao ser humano. “A produtividade crescente, os avanços na saúde, a melhoria dos meios de transporte e comunicação, a informatização e muitos outros aspectos importantes poderiam ser elencados, elementos estes que trazem uma comodidade sem fim ao ser humano e um prazer de bem viver”106. Estes aspectos são

    103 JOÃO PAULO II, Carta encíclica ‘Centesimus Annus’ n° 43, in C. BOMBO (org.), op. cit., p. 619. 104 IDEM, Discorso ai membri della Pontifícia accademia delle scienze sociali, 27/04/2001. 105 C. IGNÁCIA, Globalização: desafios éticos. Petrópolis, ITF, policopiado, 2001, p. 2. 106 Ibidem, p. 3.

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    disseminados como idéias-força, transformando-se em desejo, até chegar à busca desenfreada dos mesmos, rendendo-se a eles todos os campos da vida humana. Três mitos constroem-se a partir daí:

    a) As forças econômicas e as transformações tecnológicas têm um curso irreversível e irrecusável; aceitá-las sem mais seria uma questão de realismo e bom senso;

    b) A globalização seria um fenômeno universal, inclusivo e homogeneizador; c) A globalização promoveria a redução pacífica e inevitável da soberania dos

    Estados, sem trazer problemas ou ser fonte de ingovernabilidade.

    No entanto, sabemos como o atual processo de globalização é fortemente marcado pela lei do mercado. Este faz do lucro e do investimento com fins lucrativos a lei universal. Seus benefícios, na prática, não atingem nem beneficiam a todos, sendo desiguais. Não raro, as desigualdades aumentam, fazendo surgir o flagelo da exclusão sem mais. Para grandes parcelas da humanidade, os benefícios da globalização permanecem uma miragem deslumbrante, portanto fictícia. Falta inserir-se nela ou poder dela fazer parte. Não seria, então, a globalização uma “nova expansão do capitalismo, que impõe uma racionalidade, padroniza culturas e acaba criando uma ilusão de uma totalidade que de fato não existe”107, radicalizando a disparidade entre incluídos e excluídos, entre vida e morte? É certo que, nos dias atuais, a exclusão social continua com seus altos índices, numa ampliação das desigualdades entre países e no seio dos próprios países. O pobre, hoje, nem parece ser mais aquele “mal” necessário; tornou-se uma massa sobrante, que pode (vir a) ser esquecida. O ensino social da Igreja tem afirmações que podem nos auxiliar na abordagem desta questão. Vamos aos textos:

    • “Uma condição essencial é a de dar à economia um sentido e uma lógica humanos”108.

    • “O homem é o protagonista, o centro e fim de toda a vida econômico-social”109.

    • “A essência dessa doutrina consiste em que o homem é, necessariamente, o fundamento, a causa e o fim de todas as instituições sociais”110.

    107 L. M. M. BÓGUS, “Globalização e migração internacional: O que há de novo nesses processos”, in L. DAWBOR, O. IANNI, P.-E. A. RESENDE (org.), Desafios da globalização, Petrópolis, Vozes, 1998, p. 165. 108 JOÃO PAULO II, “Encontro com os operários” (São Paulo, 03/07/1980), in IDEM, Pronuciamentos do Papa no Brasil, Petrópolis, Vozes, 1980. 109 CONCÍLIO VATICANO II, Constituição Pastoral ‘Gaudium et Spes’ n° 63, in A. DE SANCTIS (org.), op. cit., p. 358. 110 JOÃO XXIII, Carta encíclica ‘Mater et Magistra’ n° 219, in A. DE SANCTIS (org.), op. cit., p. 282.

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    • “Qualquer programa feito para aumentar a produção não tem, afinal, razão de ser senão colocado ao serviço da pessoa. Deve reduzir desigualdades, combater discriminações, libertar o homem da servidão, torná-lo capaz de, por si próprio, ser o agente responsável do seu bem-estar material, progresso moral e desenvolvimento espiritual... Economia e técnica não têm sentido, senão em função do homem, ao qual devem servir”111.

    Segundo o pensamento social da Igreja, deve-se evitar erros como esses:

    • a absolutização da economia que coloca a produção e o consumo como os únicos valores da sociedade;

    • o egoísmo, que leva à segregação, à exclusão de vidas, à indiferença, à falta de solidariedade;

    • a massificação, num nivelamento e desenraizamento, sem o respeito devido ao constitutivo de cada pessoa;

    • a divisão entre classes fechadas, competitivas e agressivas, o que gera mais divisões, ódio e estraçalha os direitos humanos;

    • o uso abusivo da riqueza natural, num desequilíbrio ecológico de proporções que podem ser irreversíveis.

    Os poderes públicos, na sua função de promover o bem comum, não devem se

    submeter sem mais às leis do mercado112. Cresça a decisão de assumir “a responsabilidade coletiva de promover o desenvolvimento”113. Faz-se necessário “uma concertação mundial para o desenvolvimento, que implicaria inclusive o sacrifício das situações de lucro e de poder, usufruídas pelas economias mais desenvolvidas”114.

    Neste sentido, faz-se necessário ir além do liberalismo que tem no livre mercado ou

    na livre troca a sua lei maior. Paulo VI exprimia-se sobre isso com as seguintes palavras: “Quer dizer que a regra da livre troca já não pode, por si mesma, reger as relações internacionais. As suas vantagens são evidentes quando os países se encontram mais ou menos nas mesmas condições de poder econômico: constitui estímulo ao progresso e recompensa do esforço. Por isso, os países industrialmente desenvolvidos vêem nela uma lei de justiça. Já o mesmo não acontece quando as condições são demasiado diferentes de país para país: os preços ‘livremente’ estabelecidos no mercado podem levar a conseqüências iníquas. Devemos reconhecer que está em causa o princípio fundamental do liberalismo, como regra de transações comerciais”115.

    111 PAULO VI, Carta encíclica ‘Populorum Progressio’ n° 34, in A. DE SANCTIS (org.), op. cit., p. 406. 112 Cf. JOÃO XXIII, Carta encíclica ‘Pacem in Terris’ n° 63, 64, in C. BOMBO (org.), op. cit., p. 34; JOÃO PAULO II, Carta encíclica ‘Centesimus Annus’ n° 40, in C. BOMBO (org.), op. cit., p. 615. 113 Cf. ibidem, n° 52, in C. BOMBO (org.), op. cit., p. 629. 114 Ibidem, in C. BOMBO (org.), op. cit., p. 629. 115 PAULO VI, Carta encíclica ‘Populorum Progressio’ n° 58, in A. DE SANCTIS (org.), op. cit., p. 417.

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    O ensino social da Igreja sente ecoar um chamado para que a humanidade forme

    uma grande e mesma família, numa unidade de todo gênero humano, solidamente estabelecida sobre os fundamentos da justiça, solidariedade e amor. Conseqüentemente, importa cuidar do patrimônio comum e indiviso, desde o econômico até o ecológico/ambiental. Para isso, deve concorrer uma solidariedade lastreada na justiça, que nos leve a superar uma globalização não respeitosa dos direitos humanos, individuais e coletivos, e que não soçobre nos problemas econômico-financeiros, sanitários, sociais, culturais, ambientais, políticos.

    Importa fazer da justiça a pilastra fundamental e irrenunciável da convivência

    humana e fazer da solidariedade a expressão consciente e forte de um empenho firme e perseverante pelo bem comum116. É a solidariedade, que nasce da justiça, que necessita ser hoje vivida num horizonte globalizado. Com isso, o processo de globalização hoje em curso superará sua ambigüidade, visto que traz no seu bojo níveis intoleráveis de marginalização e, não raro, de exclusão. Por isso, “a globalização exige ser ‘governada’”117. 3.6. A paz, dom de Deus, tarefa do ser humano

    Falar de paz é certamente tocar num anseio que acompanha desde sempre a humanidade. Esta, por sua vez, faz a experiência da conflitividade nas mais diversas formas: conflitos, guerras, armamentos, tensões, divisões etc118. A conflitividade traduz o enfrentamento entre pessoas, grupos, categorias, nações, grupos de nações (blocos). Faz-se presente um antagonismo que assume várias formas de violência, terrorismo, guerra. Por motivos os mais diversos (poder, riqueza, etnia...), difunde-se a luta, a desagregação, a opressão, a confusão. Neste contexto, o valor da paz ressurge com toda força. É uma aspiração de toda pessoa de boa vontade. Tem reconhecimento universal “como um dos valores mais altos que temos que buscar e defender”119. Sabemos como após a Segunda Guerra Mundial, o mundo dividiu-se em dois grandes blocos, Leste-Oeste, formados por grupos de nações que se opunham por ideologias políticas e econômicas diversas. Um queria se sobrepor como alternativa ao outro. No Ocidente, prevalecia um sistema inspirado no capitalismo liberal. No Oriente, era

    116 Cf. JOÃO PAULO II, Carta encíclica ‘Sollicitudo Rei Socialis’ n° 38, in C. BOMBO (org.), op. cit., p. 429. 117 VESCOVI LIGURI, “Lettera dei vescovi liguri”, Il regno – documenti 15 (2001), p. 509. 118 Cf. JOÃO PAULO II, Exortação apostólica ‘Christifideli laici’, op. cit., n° 6, p. 20. 119 IDEM, Mensagem de 01/01/1993.

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    muito disseminado o sistema inspirado no coletivismo marxista120. É bom constatar que o alinhamento dos países não obteve da parte de todos o mesmo grau de adesão e de compromisso, com uma diversidade muito grande de matizes. Conhecemos, no entanto, como a contraposição ideológica acima deu origem à chamada “guerra fria”. Ela, por sua vez, alimentou muitas guerras locais, instrumentalizando não raro disputas de caráter local. No entanto, João Paulo II, antes mesmo da “queda do murro de Berlim” e sucessiva queda dos regimes do Leste, em especial a dissolução da União Soviética, afirmava que não se devia ocultar que o conflito mais fundamental situava-se e situa-se nas relações No