princípios constitucionais

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73 Revista da EMERJ, v. 6, n. 22, 2003 1 BEVILÁQUA, Clóvis – Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1977, t. I, p. 11. OS Princípios Constitucionais e o Novo Código Civil CÁRMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA Procuradora de Justiça - MG “Um Código Civil não é obra da ciência e do talento unicamente; é, sobretudo, a obra dos costumes, das tradições, em uma palavra, da civilização, brilhante ou modesta, de um povo.” José de Alencar, citado por Clóvis Beviláqua INTRODUÇÃO Ao iniciar a sua exposição sobre o Código Civil de 1916, o seu princi- pal fautor, Clóvis Beviláqua esclarecia que “as codificações, além de corresponderem às necessidades mentais de clareza e sistematização, constituem, do ponto de vista social, formações orgânicas do direito, que lhe aumentam o poder de precisão e segurança, estabelecendo a harmonia e a recíproca elucidação dos dispositivos, fecundando prin- cípios e institutos que, no isolamento, se não desenvolveriam suficien- temente, contendo, canalizando e orientando energias que só poderi- am prejudicar, na sua ação dispersiva” 1 . Refletia-se, naquela exposição, o entendimento que prevalecia então sem qualquer questionamento quanto à necessidade, conveniência e operacionalidade das codificações. Expondo toda a tramitação do Código Civil que se promulgava na- quele ano, Clóvis refletia sobre os noventa e seis anos de ausência de uma legislação civil brasileira. Anunciado desde a Independência do Estado na- cional, em 1822, o Código Civil fora objeto de determinação constitucional específica em 1824 quanto à sua formulação e somente viera a lume sob a égide já de uma outra Constituição, a primeira Republicana, que expunha um Brasil diferente daquele primeiramente pensado quando da independên-

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  • 73Revista da EMERJ, v. 6, n. 22, 2003

    1 BEVILQUA, Clvis Cdigo Civil dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: EditoraRio, 1977, t. I, p. 11.

    OS Princpios Constitucionais e oNovo Cdigo Civil

    CRMEN LCIA ANTUNES ROCHAProcuradora de Justia - MG

    Um Cdigo Civil no obra da cincia e dotalento unicamente; , sobretudo, a obra doscostumes, das tradies, em uma palavra, dacivilizao, brilhante ou modesta, de umpovo.

    Jos de Alencar, citado por Clvis Bevilqua

    INTRODUO

    Ao iniciar a sua exposio sobre o Cdigo Civil de 1916, o seu princi-pal fautor, Clvis Bevilqua esclarecia que as codificaes, alm decorresponderem s necessidades mentais de clareza e sistematizao,constituem, do ponto de vista social, formaes orgnicas do direito,que lhe aumentam o poder de preciso e segurana, estabelecendo aharmonia e a recproca elucidao dos dispositivos, fecundando prin-cpios e institutos que, no isolamento, se no desenvolveriam suficien-temente, contendo, canalizando e orientando energias que s poderi-am prejudicar, na sua ao dispersiva1.

    Refletia-se, naquela exposio, o entendimento que prevalecia entosem qualquer questionamento quanto necessidade, convenincia eoperacionalidade das codificaes.

    Expondo toda a tramitao do Cdigo Civil que se promulgava na-quele ano, Clvis refletia sobre os noventa e seis anos de ausncia de umalegislao civil brasileira. Anunciado desde a Independncia do Estado na-cional, em 1822, o Cdigo Civil fora objeto de determinao constitucionalespecfica em 1824 quanto sua formulao e somente viera a lume sob agide j de uma outra Constituio, a primeira Republicana, que expunhaum Brasil diferente daquele primeiramente pensado quando da independn-

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    2 Relatava Clvis Bevilqua, quando do advento do Cdigo Civil de 1916, que publicado oCdigo Civil, houve, no pas, um duplo movimento. A maior parte dos brasileiros regozijaram-se com a terminao do trabalho, que se no supunham perfeito, consideravam satisfatrio, eem melhores condies do que as leis dispersas, desconexas e antiquadas que antes regulavamas nossas relaes civis. ... Na corrente oposta, foi figura proeminente Lacerda de Almeida, queest em desarmonia integral com o Cdigo Civil: quando este realiza um avano em relao aodireito anterior, acha que se devera, antes, ter mantido a sabedoria da tradio e quando nose atira a inovaes, censura-o por ficar petrificado, criando obstculos ao progresso dodireito (Op. cit., t. I, p. 61).

    cia e que transitara por profundas transformaes em suas instituiespolticas e jurdicas.

    outro tempo, outro sculo, outro Brasil. H outro Cdigo Civil emvigor desde 11 de janeiro de 2003. Noventa anos depois dos debates queconstituram preocupao primeira da comunidade jurdica brasileira, novaonda de discusses impe-se sobre a nova legislao civil. Diversamentedaquele primeiro diploma, que se fez objeto de um grupo restrito de juristas,advogados, magistrados e pensadores atentos a uma legislao especfica,a mudana da sociedade permitiu a democratizao do direito. Os debatessobre o Direito e os direitos j no se atm soleira das portas de faculda-des de direito ou dos tribunais, seno que ganhou ruas, praas e fez-selinguagem de todo o povo. Todos querem saber como e para que o CdigoCivil vem lhes aportar mudanas na vida e nas relaes sociais.

    Como naquele primeiro documento promulgado, pode-se dizer queainda nos albores do sculo XX uma vez que sequer se tinha completadoa segunda dcada daquele perodo -, tambm agora a marca havida nestavista inicial do novo Cdigo a polmica.2

    Nada de novo e tambm nada de mais. Afinal, tudo quanto toca deuma forma mais direta a vida das pessoas suscita opinies, razes diversas,propostas diferentes e exposies distintas. da liberdade que a cada um dado opinar e que se sustente o que se lhe parea melhor.

    O nico cuidado que me parece necessrio atentar e promover deimediato com a lei nova o que sustenta Pontes de Miranda, segundo o qualh que se haver com simpatia em relao a uma nova norma, porque comantipatia no se interpreta, combate-se. O que se h de buscar, parece-me, que a nova legislao chegue a uma aplicao justa, que seja um instru-mento competente para concretizar os melhores ideais de uma sociedadesolidria e livre, tal como determina, em seus princpios fundamentais, aConstituio da Repblica de 1988, sob a gide da qual sobrevm o novo

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    3 Leciona Caio Mrio da Silva Pereira que a expresso direito civil experimenta mudanas designificado no tempo, tendo sido considerado, no direito romano, ...que considerava o direitoem razo de suas condies peculiares ... o direito da cidade, destinado a reger a vida doscidados independentes e, rigorosamente, correspondia a direito quiritrio, ius quitiium. ... deum lado correspondia ao sistema dos princpios tradicionais, em contraposio ao iushonorarium, de elaborao pretoriana; ao sistema nacional, e em antinomia ao iusgentium...(PEREIRA, Caio Mrio da Silva. Instituies de direito civil. Rio de Janeiro:Forense, 1978, t. I, p. 31). Na Idade Mdia, ainda aquele grande civilista que demonstra ter tidoo direito civil o entendimento de ser o corpo jurdico-normativo a se contrapor ao direitocannico, tendo o direito ingls feito distino entre o civil law, que correspondia ao direitoromano tomado como referncia, enquanto a denominao mais restritiva, tal como agoraaproveitada no direito ocidental, invocada pela expresso private law. (Idem, ibidem)

    Cdigo Civil. Muda-se, sempre, em busca de aperfeioamento dos institutose das instituies. Cuidando-se do ofcio do direito, esta tarefa e objetivo no soafeitos exclusivamente ao legislador, seno que principalmente ao intrprete, aoaplicador da norma, ao advogado e ao magistrado. Boa vontade com lei nova o mnimo que se pode pedir de quem tem o dever de ter esperana de que odireito no se frustrou, e que mesmo nesta nova civilizao conturbada e nummundo em runas de tudo o que lhe antecedeu e faz-se uma vertigem de mudan-as permanentes e desenfreadas rumo ao desconhecido, deve acreditar que odireito pode propiciar segurana pessoa, mesmo no incerto da vida.

    I A CONSTITUCIONALIZAO DOS RAMOS DO DIREITO

    O direito civil do sc. XIX e incio do XX guardava, ainda, a condioherdada dos Antigos, sendo o direito comum, tanto significando o veio mes-tre do Direito, do qual partiam as demais instituies jurdicas, de onde bro-tavam os institutos, legatrios das idias contidas nas leis civis.3

    O avano do movimento de publicizao das instituies e dos institu-tos jurdicos, as transformaes havidas nas relaes dos indivduos no Es-tado e com o Estado, determinando a submisso do ente do Poder Pblicoao direito e definindo os contornos novos do Direito Constitucional e doDireito Administrativo, em especial, determinaram a autonomizao dosramos pblicos do Direito.

    Em especial, deve ser realado que a constitucionalizao dos diver-sos campos de especializao do Direito determinou uma mudana de rumoda corredeira foz, enaltecendo a condio do direito constitucional de raize tronco dos quais brotam os ramos e segundo os quais se do os frutos dodireito cultivado. Todos os ramos surgidos do direito constitucional de um

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    4 Segundo Seabra Fagundes a preeminncia das instituies de Direito Privado na cronologia daevoluo do Direito, resultante da estrutura absolutista do Estado, que levava o poder pblico fuga da disciplina jurdica, enquanto caminhava para a regulao legal das relaes entre osindivduos como pessoas privadas do que tpico o fenmeno do Estado romano, com umlegado magnfico de princpios jurdicos para o Direito Civil, e praticamente sem nada denotvel transferido aos psteros em matria de Direito Pblico fez que o Direito Administra-tivo, o direito atravs do qual se dinamizam, por excelncia, as relaes do binmio Estado-indivduo, tivesse na legislao civil a origem de algumas das suas principais instituies, delarecebendo-as por cissiparidade... (FAGUNDES, M. Seabra Da contribuio do Cdigo Civilpara o direito administrativo. In Revista Forense, p. 1).

    povo fluram para uma condio de dependncia do quanto plantado nosfundamentos jurdico-normativos havidos somente na Constituio.

    Aquela condio de quase supremacia vinculada idia de ser otronco jurdico contenedor da seiva viva de todas as instituies -, que antesdetinha o direito civil, cedeu lugar para o direito constitucional a partir doEstado moderno liberal. A explicao simples. O Direito, no Estado abso-lutista, no tocava o Estado, menos ainda o governante. As relaes deadministrao eram desenvolvidas entre particulares, no tangenciando osentes do Poder Pblico.4 A submisso do Estado ao direito (idia chave doEstado de Direito) determinou que os ramos do direito pblico, e, muitomais, o constitucional, no qual se estrutura e organiza e Poder Pblico esegundo o qual esse desenvolve as suas competncias, transformou todo odireito, fazendo florescer os regimes jurdicos de direito pblico, cuidadosem sede prpria e formalizando-se em documentos especficos.

    parte a mudana na estrutura estatal, a determinar o fortalecimen-to das instituies e dos institutos de direito pblico e, paralela e necessari-amente, uma grande transformao nas idias fundamentais de sistema eordenamento jurdico, e, no sistema, das relaes entre os diversos ramosdo direito, tambm h que se acentuar a modificao havida no papel a serdesempenhado pela pessoa humana e pelos agentes, rgos e entidadespblicos. Relevo deve ser dado ao papel do juiz, o qual, dotado de compe-tncia para interpretar e reinterpretar para manter viva a norma e atualiza-do e necessrio o direito para a sociedade, teve-se uma reverso nas idiasque prosperaram e se sedimentaram entre os Antigos e, mesmo, no Estadomoderno absolutista.

    Tudo isto e mais a democratizao social, que tambm contribuiudecisivamente para que se ampliassem no apenas os debates sobre apoltica do direito e o direito da poltica mas o universo dos que discutem e

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    lutam pela conquista de novos direitos, foraram a que as Constituiesmaterializassem objetos antes lanados na condio de matriainfraconstitucional, a ser pensada e formalizada, se e quando fosse o caso,de ser transformada em lei, na rea de competncia do legislador.

    A Constituio mudou, porque o mundo mudou e o Direito no para o tempo que foi, mas para o que e o que se prepara para vir. Estatalvez seja, dentre outras, razo que pe em causa hoje at mesmo a valida-de e a atualidade necessria das codificaes, includas as de matria civil.

    A importncia da Constituio na vida das pessoas, a condio defundamentalidade das matrias ali formalizadas, especialmente no que concerne dignidade que se quer garantir para todos como justificativa maior do Estado,aliada obrigatoriedade de se vincular a conduta estatal a includo o legisladorinfraconstitucional ideologia de Justia estabelecida no sistema constitucio-nal, obrigando todos a dar-lhes efetividade jurdica e acatamento administrativo,contribuiu, decisiva e incontornavelmente, para que o Direito se mostrasse inte-gralmente redimensionado. As Constituies contemporneas ganharam noapenas em extenso e largueza formal, sendo essas caractersticas decorrnciado quanto havido na sociedade sobre o que se considera fundamental.

    Assim, a famlia que no era objeto de muito cuidado constitucional, sendo,em geral, apenas mencionados nos primeiros textos constitucionais, os sujeitos dedireitos sociais, como as crianas, os adolescentes, os velhos, etc., os direitosdifusos, que antes no eram sequer mencionados, tendo galgado reconhecimentoinicial na legislao infraconstitucional, tantos os assuntos que antes eram legadosaos legisladores passaram a ser objeto de cuidado dos constituintes.

    No Brasil, as Constituies sempre foram minudentes em seus pre-ceitos.5 O direito de propriedade nunca deixou de ser objeto de cuidado,considerado como sempre foi um dos direitos fundamentais individuais, masa seu lado sempre compareceram institutos como o da empresa, ainda quereferente ao patrimnio pblico, desde 1934, o do trabalho, dentre outros.

    A Lei Fundamental do Brasil de 1988, entretanto, inaugurou uma faseindita do constitucionalismo ptrio. Saudada por muitos como cidad,6

    5 Exemplo disto que a de 1824, outorgada em perodo tipicamente liberal e sob o plio doautoritarismo ento prevalecente, nem por isso deixou de mencionar o que somente viria a serconquista sedimentada na fase de Estado social, como o direito educao fundamental obriga-tria, gratuita e a ser prestada como dever do Estado (art. 179, 32).

    6 Ttulo que lhe foi atribudo por Ulysses Guimares, Presidente do Congresso Constituinte e quese difundiu amplamente.

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    7 As caractersticas que dominam a Constituio do Brasil de 1988 so as mesmas que envolvem,com as peculiares condies de cada qual, as Constituies promulgadas mais recentemente emtodo o mundo, quanto sua matria e quanto sua forma mais extensa do que anteriormenteaproveitado como modelo.

    8A denominada Lei de Introduo ao Cdigo Civil , formalmente, um Decreto-lei (n. 4657) e datade 4 de setembro de 1942. Por ter sido expedido na vigncia do Estado Novo, denominao dada aoregime autoritrio que prevaleceu no Brasil desde 10 de novembro de 1937 at a deposio deGetlio Vargas em 1945, j teve alguns dispositivos declarados no recepcionados desde a Constitui-o de 1946 (por exemplo, o 2 do art. 2). Em sua quase totalidade, contudo, o documentopermanece vigente e vem ganhando importncia, inclusive para a jurisprudncia que atenta, cadavez mais, aos ditames ali contidos para se firmar a interpretao das leis segundo os fins sociais a quese destina a norma (art. 5), o que vem se fortalecendo com a redemocratizao do Brasil desde adcada de 80 e as novas concepes e prticas jurisdicionais, que ampliam o papel do juiz.

    criticada por outros como analtica, demasiado longa etc., se no foi unani-midade quanto a seus termos, foi plenamente aceita quanto sua necessi-dade. E no apenas pelas contingncias polticas ento vivida pelos brasilei-ros, e que era refletida no documento decado em 1988, como, ainda, pelainadequao dos textos anteriormente vigentes s normas e ao prprio mo-delo adotado pelo direito contemporneo.7

    A Constituio deixou de ser um documento jurdico-normativo fun-damental com princpios e passou a ser um documento fundamental jurdi-co-normativo de princpios. Do constitucionalismo de preceitos chegou-seao constitucionalismo de princpios, tidos como necessrios, autnomos eobrigatrios com fora normativa imperativa e vinculante a todos, includosos legisladores, como bvio.

    De Carta de Liberdades passou a Lei Fundamental da Libertao. DeLei Fundamental do Estado passou a Constituio do Povo. O direitoinfraconstitucional no poderia negar-se a acatar tais mudanas: so elas abase do novo sistema jurdico e o fortalecimento dos sistemas de controle deconstitucionalidade determinou a curvatura de todos a esta constitucionalizaode todos os ramos do direito. No h desimportncia dos ramos do direito,cuidados em nvel infraconstitucional. Ao contrrio, o que se tem , bem di-versamente, uma constitucionalizao das matrias que afetam a pessoa, ten-do cabido o cuidado bsico dos seus termos na sede base do direito positivo.

    II OS PRINCPIOS CONSTITUCIONAIS E O NOVO CDIGO CIVIL

    A) Uma palavra inicial, ainda que brevssima, deve ser lembrada so-bre a Lei de Introduo ao Cdigo Civil.

    Cdigo Civil novo, Lei de Introduo velha. Estaria mesmo ela velhamaterialmente como os seus sessenta anos de vigncia poderiam fazer ini-cialmente supor?8

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    9 Referncia feita ao sc. XIX.

    10 LACERDA, Paulo de Manual do Cdigo Civil Brasileiro. v. I, p. 18.

    11 Afirma Maria Helena Diniz que a Lei de Introduo ao Cdigo Civil contm ... normas desobredireito ou de apoio que disciplinam a atuao da norma jurdica (DINIZ, Maria Helena Direito civil brasileiro. So Paulo. Ed. Saraiva, 2003, v. I, p. 57). Conquanto no creia emsobredireito, mas num sistema jurdico que comporta e acata o princpio da hierarquia dasnormas, em cujo pice se tem a Constituio, parece-me que o que ocorre, aqui, e que no guardaqualquer ineditismo jurdico, que se tem, na denominada Lei de Introduo ao Cdigo Civil umcuidado de matria constitucional pela via da legislao infraconstitucional, o que no inditoou absolutamente incomum. A Lei urea mesma considerada, unanimidade, uma lei material-mente constitucional, conquanto formalmente fosse lei ordinria.

    Duas observaes preambulares impem-se neste passo: a primeira,a de que a despeito de conhecido e publicado aquele Decreto-lei como Leie, na seqncia, como Lei de Introduo ao Cdigo Civil, ela no respei-ta, especfica e diretamente, o Cdigo Civil. A segunda, a de que, a despeitode ser sempre publicada como um item previamente vinculado a este docu-mento, no se tem, aqui, uma relao direta e unicamente vinculada a esteCdigo.

    A denominada Lei de Introduo ao Cdigo Civil cumpre um pa-pel j enfatizado por Paulo de Lacerda, que observa que examinando ocontedo dos cdigos, se reconhece que eles no se limitam, quase sempre, matria objetivada; certos assuntos outros so mesmo tratados, com de-senvolvimento aprecivel, em leis anexas denominadas Introduo, Lei deIntroduo, Ttulo Preliminar etc. ... o modelo francs, estabelecido desdea primeira dcada do sculo passado.9 Segundo esse modelo, elabora-se umcdigo civil, contendo o direito civil material, parte do internacional privado,e at algo do direito civil formal e do direito pblico... Tal modelo tem domi-nado, com algumas variantes10.

    A despeito de sua denominao e de sua divulgao, sempre comoadendo preliminar ao Cdigo Civil, bem certo que no h vinculao estreitaou exclusiva entre aquela Lei de Introduo e o Cdigo Civil que seria, nasua forma verbalmente divulgada, por ela introduzida. A Lei de Introduo aoCdigo Civil , em sua matria, mais de direito pblico que de direito privado,sendo mais norma sobre normas que norma civil ou de direito privado11.

    Norma normarum, lei das leis como a prpria Constituio o , adenominada Lei de Introduo ao Cdigo Civil uma lei que cuida deleis, de sua eficcia, vigncia e interpretao. Por isto, no substituda por-que no guarda adequao plena matria civilmente cuidada e que respeita

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    aos indivduos, continua plenamente em vigor, com o jargo jurdico-positivoque lhe foi aposto em 1942, com o quanto recepcionado pela Constituio de1946 e as que se lhe seguiram. Deve ser enfatizado que, quanto elaboraode normas jurdicas, o Brasil obedece, conjugada ao Decreto-lei n. 4.657/1942, a Lei Complementar n. 95, de 36 de fevereiro de 1998, que estabelecenormas sobre a redao, a alterao e a consolidao das leis. Quanto suavigncia espacial e temporal, mantm-se ntegro o Decreto-lei n. 4657/42,sendo de se interpretar a norma conforme Constituio de 1988.

    B) O constitucionalismo contemporneo caracteriza-se, consoanteacima salientado, por ser de princpios. O que lhe marca e demarca a natu-reza e a forma a principiologia que se impe inteireza do sistema jurdicopositivo com fora normativa determinada e determinante. A marca funda-mental e distintiva de sua essncia , exatamente, traar e retraar os prin-cpios que configuram os veios sustentadores de toda construo jurdica econtra os quais nada pode ser considerado vlido.

    O constitucionalismo de princpios, hoje vigente, determina a descrioexpressa de alguns dos princpios que so acolhidos nos sistemas positivados,mas permite que, ao lado dos expressos, tambm outros, inexpressos, explicitadosainda que no expressos, ou implcitos, componham a principiologia que se querfazer prevalecer.A Constituio Lei, a Lei maior em eficcia e vigor, pelo queno se lhe pode negar cumprimento ou acatamento. Por isso, os seus princpiospenetram, estendem-se, configuram-se, concretizam-se, espalham-se com maisdensidade e concretude vinculada a cada qual das normas que componham oordenamento jurdico-positivo especfico.

    Eles so vinculantes, obrigatrios, incontornveis e, em geral, autno-mos. Da porque o novo Cdigo Civil, como qual nova lei ou norma de qual-quer natureza e grau hierrquico, includo aquele inferiormente dependentede lei, haver que se fazer cumpridor dos princpios constitucionais.

    III - OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A CODIFICAO CIVIL DOS DIREI-TOS DA PERSONALIDADE.

    1. A espinha dorsal de uma Constituio o seu sistema de direitosfundamentais assegurados a qualquer pessoa humana. O corao do siste-ma constitucional, do pensamento constitucional, da prtica constitucional

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    o homem, sua vida digna e sua condio social para permitir-se realizar oque lhe permita ser feliz.

    A Constituio da Repblica brasileira de 1988 erigiu em princpiofundamental o da dignidade da pessoa humana (art. 1o, III). No basta ga-rantir o direito vida, seno que a vida digna; no basta garantir a liberdade,seno aquela que garante a vida livre que dignifica em igualdades sociais,polticas, econmicas as pessoas humanas. No basta existir o direito, masaquele que realiza a justia pensada por um povo em certo momento e emdada situao concreta. No h direito sem justia pensada, acreditada porum povo; no h justia sem dignidade de todos e de cada um dos quecompem o Estado; no h direito sem princpios concretizveis, o que de-pende do acatamento das prescries constitucionais dos princpios que le-gitimam o sistema e tornam-no possvel de ser eficaz socialmente para con-verter-se em eficaz juridicamente.

    A Constituio da Repblica brasileira de 1988 cuidou do homem, ou,no dizer de Ulysses Guimares, presidente do Congresso Constituinte que aelaborou e promulgou, o homem o problema da sociedade brasileira...diferentemente das sete Constituies anteriores, comea com o homem.Graficamente testemunha a primazia do homem, que foi escrita para o ho-mem, que o homem seu fim e sua esperana. O Cdigo Civil promulgadoem 2002 para vigorar a partir de 2003, tambm. O seu incio e o seu fim ohomem, mas assim considerado em suas relaes privadas. Todavia, como bvio e juridicamente incontornvel, no pode ser cogitado seno comtodas as garantias de que se acha investido constitucionalmente.

    Da porque o primeiro item a chamar a ateno do estudioso do novoCdigo Civil a referncia pessoa. Em primeiro lugar, mantm-se o quehavia no Cdigo Civil de 1916, a saber, a meno s pessoas naturais.Expresso aproveitada pelo direito europeu, particularmente o francs quemuito influenciou, no sc. XIX e incio do sc. XX o direito latino-americano,foi ela substituda por outra, mais direta e objetiva, pessoa humana.

    A referncia constitucional pessoa humana marca o direito consti-

    tucional brasileiro de 1988 (arts. 1o, III; 17; 34, VII, b; 226, 7o; alm das

    referncias especficas dignidade humana).

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    A meno civilista pessoa natural anterior Constituio da Re-pblica brasileira de 1988 e mantm, sem maior indagao ou questionamento,o quanto antes positivado em 1916.

    D-se que como o Cdigo Civil a pormenorizao do quanto cons-titucionalmente estabelecido, parece que seria prpria a meno pessoahumana, que uma expresso que se fortalece pelo seu supedneo consti-tucional e que tem sede no direito contemporneo sem qualquer indagao.

    2. O Cdigo Civil remete-se, logo em seu art. 1o, pessoa como sercapaz de direitos e deveres na ordem civil.

    A pessoa aqui mencionada a humana, o que no seria demasiaobservar, uma vez que tanto se conjuga com o quanto constitucionalmenteposto. Todavia, como se contm no captulo a referncia matriaenucleadora dos cuidados legais, parece que se satisfaz com tal meno olegislador, o que deve ser observado pelo intrprete.

    A expresso ordem civil deve ser referncia a direitos, deveres eresponsabilidades nas relaes interpessoais privadas, uma vez que a or-dem nica e sistmica vigente a ordem jurdico-positiva e, portanto, no huma ordem separada, estanque, distinta das demais, mas um nicoordenamento constitudo na forma sistmica de um sistema, no qual subsis-tem, paralela, simultnea e conjugadamente, subsistemas que se compempelo atendimento pronto e permanente aos princpios insculpidos noordenamento constitucional.

    Aqui parece ter subsistido a terminologia que antecede a Constitui-o da Repblica de 1988, sem qualquer ordenao ou composio com anova sistemtica adotada a partir daquela data.

    Mais problemtico parece ser o art. 2o, no qual se dispe que:Art. 2o A personalidade civil da pessoa comea do nascimen-to com vida, mas a lei pe a salvo, desde a concepo, os direi-tos do nascituro.Deve ser anotado, preliminarmente, que a personalidade civil da pes-

    soa soa duplamente estranho: em primeiro lugar, porque a referncia civilparece fazer supor a existncia de personalidade criminal etc., o que no sed no sdireito brasileiro. A referncia capacidade civil tem lugar e cabi-mento, uma vez que legtima a meno capacidade poltica, capacida-de eleitoral, capacidade para exercer cargos e empregos administrativos,etc., mas a personalidade no tem o desdobramento que poderia o maisdesavisado supor em face do quanto positivado na norma em foco.

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    certo que se tem no art. 50, do mesmo Cdigo, que em caso deabuso da personalidade jurdica, caracterizado pelo desvio de finalida-de, ou pela confuso patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da par-te, ou do Ministrio Pblico, quando lhe couber intervir no processo, que osefeitos de certas e determinadas relaes de obrigaes civis sejam estendi-dos aos bens particulares dos administradores ou scios da pessoa jurdica.

    A referncia ali feita personalidade jurdica parece servir debase para uma interpretao possvel sobre a meno personalidade civil,que seria o seu contrrio. Nada disto, entretanto, tem assento na doutrina ouno ordenamento normativo-jurdico do sistema brasileiro, pelo que a utiliza-o novidadeira no parece, de toda sorte, a mais feliz.

    Ademais, personalidade ... da pessoa (art. 2o) faz soar estranha aredao da norma, sendo aqui de se lembrar a advertncia de Ruy, segundoo qual so as codificaes monumentos destinados longevidade secular;e s o influxo da arte comunica durabilidade escrita humana, s elemarmoriza o papel, e transforma a pena em escopro. Necessrio , portan-to, que, nestas grandes formaes jurdicas, a cristalizao legislativa apre-sente a simplicidade, a limpidez e a transparncia das mais puras formas dalinguagem, das expresses mais clssicas do pensamento. Dir-se- que po-nho demasiado longe, alto em demasia, a meta, que a sublimo a um idealpraticamente irrealizvel. Mas eu no exijo que igualemos essa perfeiocustosa e rara. Basta que, ao menos, dela nos acerquemos, no a podesalcanar; que a lei no seja imprecisa, obscura, manca, disforme, solecista.Porque, se no tem vernaculidade, clareza, conciso, energia, no se enten-de, no se impe, no impera; falta s regras da sua inteligncia, do seudecoro, de sua majestade12.

    Personalidade somente pode se referir, no direito pessoa, pelo queafirmar-se, em norma jurdica, que a personalidade ... da pessoa come-a... parece afrontar qualquer das ponderaes aludidas por Ruy Barbosah exatos cem anos sem aprender-lhe as lies.

    Ademais, reitere-se, personalidade civil no encontra eco nas idiasprevalecentes juridicamente, uma vez que no h adjetivaoinfraconstitucional da personalidade.

    Firma-se na doutrina juscivilista a noo de que personalidade oconceito enucleador de todo o Direito13. No! O que se tem como definio

    12 BARBOSA, Ruy Escritos e discursos seletos. Rio de Janeiro: Nova Aguillar S. A., p. 905.

    13 Cf. , dentre outros, DINIZ, Maria Helena Op. cit., p.

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    constitucional fundamental no direito contemporneo includo no direitobrasileiro que demarca a sede de elaborao juscivilista a de pessoa etudo o que da advm e que resguardado pelo direito. E neste sentido o que fundamental a dignidade que permite a expresso livre da personalidade,e no essa, que uma manifestao da existncia digna e livre daquela.

    3. parte a referncia pessoa e personalidade, quanto capaci-dade civil, que matria tpica e originariamente cuidada pela legislaojuscivilista, deve ser anotado que parece no ter o legislador de 2002 levadoem considerao os cem anos de modificaes constitucionais que erigiramnovos preceitos normativos fundamentais.

    Assim que se verifica no inciso III do pargrafo nico do art. 5o donovo Cdigo Civil brasileiro que cessar, para os menores, a incapaci-dade... III pelo exerccio de emprego pblico efetivo.

    A Constituio da Repblica brasileira de 1988 estabelece, no art. 37,II, distino insupervel entre cargo e emprego pblico. O cargo pblico, esomente ele, pode dotar-se da qualificao de provimento efetivo, no ha-vendo a efetividade de emprego pblico na Administrao Pblica. O em-prego qualidade de uma ocupao transitria, efmera, no dotado daqualidade de provimento efetivo. A repetio da norma do Cdigo de 1916,de que aqui se cuida, no autoriza o entendimento de que se cuida de umanegligncia ou desconhecimento, seno que de desimportncia inegvel atri-buda ao texto constitucional o que no aceitvel ou permitido juridica-mente quase quinze anos aps a sua promulgao - ao qual bastaria umabreve passada de olhos para se verificar a mudana administrativista pro-cessada nas definies agora adotadas e que j perpassam a legislao e ajurisprudncia quanto a estes termos.

    Tambm merecer uma interpretao sistmica dos juzes e tribunaisptrios a referncia havida averbao dos atos judiciais ou extrajudiciaisque declararem ou reconhecerem a filiao, bem assim aqueles de adoo. que qualquer formalizao e exposio a pblico como prprio daaverbao dos documentos que distingam entre os filhos poder ensejarou ser considerado, a uma, desigualador das condies naturais da pessoa e,a duas, determinante de uma exposio a pblico de dado referente exclusi-vamente pessoa, em violao a seu direito constitucional privacidade e intimidade (art. 5o, X, da Constituio da Repblica).

    4. O cap. II do ttulo I do Livro I do novo Cdigo Civil refere-se aosdireitos da personalidade.

    Cabe, tambm aqui, uma palavra quanto terminologia apro-veitada pelo legislador civil. Segundo Carlos Alberto Bitar, em obramonogrfica sobre o tema, ... consideram-se como da personalida-

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    de os direitos reconhecidos pessoa humana tomada em si mesma eem suas projees na sociedade, previstos no ordenamento jurdicoexatamente para a defesa de valores inatos no homem, como a vida,a higidez fsica, a intimidade, a honra, a intelectualidade e outros tan-tos.14

    O confronto deste conceito, doutrinariamente oferecido, com as defi-nies normativas contidas nos documentos constitucionais ou internacio-nais dos direitos fundamentais conduzem inexorvel concluso de que secuidam de um mesmo dado subjetivo e de uma mesma contingncia jurdicaobjetiva. Por exemplo, o que se pode verificar da leitura simples e objetivado art. 2o da Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado da ONU de1948, segundo a qual todo homem tem capacidade para gozar os direitos eas liberdades estabelecidas nesta Declarao, sem distino de qualquerespcie, seja de raa, sexo, lngua, religio, opinio poltica ou e outra natu-reza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra con-dio.15

    Se os direitos da personalidade so aqueles referidos constitu-cionalmente como os direitos fundamentais, a sua expresso, asua manifestao ou a sua exposio nas relaes sociais, comose contm nos trabalhos de direito civil e nos comentrios feitossobre as normas recm-vigentes, fica ainda mais difcil percebere aceitar a referncia feita, uma vez quea)no art. 52 do Cdigo Civil se contm que aplica-se s pessoasjurdicas, no que couber, a proteo dos direitos da personalida-de.Os direito fundamentais individuais, vale dizer, dos indivduos,so inatos ao ser humano, no podendo ser estendido, menosainda por deciso normativa infraconstitucional, a qualquer

    14 BITTAR, Carlos Alberto Os direitos da personalidade. Rio de Janeiro: Forense Universitria,2001, p. 1.

    15 Ensina Jos Afonso da Silva que direitos fundamentais do homem constitui a expresso maisadequada... porque alm de referir-se a princpios que resumem a concepo do mundo e infor-mam a ideologia poltica de cada ordenamento jurdico, reservada para designar, no nvel dodireito positivo, aquelas prerrogativas e instituies que ele concretiza em garantias de umaconvivncia digna, livre e igual de todas as pessoas.... A expresso direitos fundamentais dohomem ... no significa esfera privada contraposta atividade pblica, como simples limitaoao Estado ou autolimitao deste, mas limitao imposta pela soberania popular aos poderesconstitudos do Estado que dela dependem (SILVA, Jos Afonso da Curso de direito consti-tucional positivo. So Paulo: Malheiros, 2001, p. 182).

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    criatura jurdica dotada de personalidade pelo s desejo do le-gislador;b)no livro IV da Parte Especial do direito de famlia o CdigoCivil apresenta o ttulo I com a referncia ao direito pessoal.Direito pessoal vem a ser o da pessoa, como bvio. Direito pes-soal, direito da personalidade e direito fundamental da pessoaso ou se pem a ser uma mesma realidade a ser protegida pelodireito brasileiro? imprescindvel que venha a prevalecer interpretao que assegu-re a coerncia entre as normas civis vigentes e o seu fundamentoconstitucional, includos os elementos que contm definies toimportantes para os indivduos e suas criaes jurdicas, includasas pessoas, sob pena de se ter uma confuso de difcil desfazimentoe de graves conseqncias em tema que no o admite.O que chama, contudo, a ateno no somente a disparidade dos

    termos e expresses utilizadas constitucionalmente e na legislao civil, se-no a confuso de dados definidores havidos no novo Cdigo e que tero deser harmonizados com o quanto constitucionalmente posto.

    Assim que, guisa de exemplo, tem-se o disposto no art. 11, donovo Cdigo Civil, segundo o qual: com exceo dos casos previstos emlei, os direitos da personalidade so intransmissveis e irrenunciveis, nopodendo o seu exerccio sofrer limitao voluntria.

    Caracterstica dos direitos fundamentais que so eles intransmissveise irrenunciveis (alm de intransferveis, inatos, etc.) no podendo o seu exer-ccio ser restringido ou limitado, seno na forma constitucionalmente legitima-da, independente da vontade. Assim em relao ao direito vida e compea essncia deste direito combinado com aquele que se refere liberdade.

    Nos termos postos na letra simples da norma civil, em cujo ramo dodireito predomina a autonomia da vontade, de se perguntar se pode haverexceo liberdade constitucionalmente assegurada em relao naturezanuclear dos direitos fundamentais da pessoa. A norma, conforme antes acen-tuado, depender de interpretao que somente poder prevalecer no siste-ma se composta e compossvel com a natureza normativa fundamental dapreviso constitucional (art. 5o).

    De outra parte, a norma civil contida no art. 12 do novo Cdigo, ade-mais da indeterminao do sujeito, das condies de exerccio do direito econtra quem se h de exigir o que ali se faculta, somente poder prevalecer,identicamente, se interpretada conforme a Constituio, uma vez que se

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    cuida de norma contenedora de elementos que dependem da complementaodos dados de esclarecimento para a sua eficcia plena e vlida.

    Por igual, a norma do art. 13 demanda interpretao segundo osprincpios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da liberdade queconduz a leitura e aplicao dos direitos fundamentais.

    O art. 15, sua vez, contm expresso que constitui complicadorgrave para a interpretao, uma vez que ali se dispe que ningum podeser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento mdico oua interveno cirrgica. A principiologia constitucional, especialmente noque concerne aos direitos fundamentais da pessoa humana, no permite quequem quer que seja constrangido a submeter-se a tratamento mdico, comou sem risco de vida, pela singela circunstncia de que o direito liberdade assegurado plenamente, salvo as restries legais, que no se afirmamquanto subsuno a tratamento mdico.

    O art. 18 estabelece que sem autorizao, no se pode usar o nomealheio em propaganda comercial.

    Ao mais desavisado poderia parecer que somente em propagandacomercial no se poderia usar o nome alheio, uma vez que apenas para estaest prevista, expressamente, na norma a vedao.

    Todavia, o nome direito personalssimo, que no pode ser utilizadoseno pela prpria pessoa, que pode transmitir a outrem o seu uso, massempre como manifestao do titular deste direito. Da porque, para finscomerciais, ou no, o uso de nome alheio vedado por fora do sistemaconstitucional vigente.

    Por igual, parece-me que o art. 20 do novo Cdigo Civil haver quereceber interpretao que permita combinar os direitos de quem divulga oescrito ou transmite a palavra, por exemplo, com os direitos de quem delesautor. que os direitos fundamentais e os princpios constitucionais nopodem ser garantidos a uma pessoa excluindo de sua garantia o outro. Oprincpio haver que ser garantido com outro, ponderando-se o que sobrele-va, mas sem se afastar, anular-se, aniquilar-se direito.

    Os direitos fundamentais impem a tica da compreenso e a dasolidariedade, que no podem ser desconhecidas ou mantidas desavisadasao argumento de que a vontade autnoma sobrepe-se a qualquer expres-so da liberdade. Por isso que todas as normas civis referentes aos direi-tos fundamentais no podem desconhecer os princpios constitucionais daliberdade, da igualdade, da solidariedade e da responsabilidade jurdicas.

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    Afinal, o homem que definitivo. O mais so normas, direitos que apenasservem ao ser maior sujeito-incio, princpio e fim da construo do direito eobjetivo permanente de justia. Direito no se descuida ou acaba sem jeito.

    O ttulo III do Livro I, da Parte Geral, que cuida do domiclio, mante-ve situao que vem sendo objeto de preocupao dos trabalhadores doDireito. que a distino civil feita no Cdigo de 1916 e agora repetido node 2002 entre domiclio e residncia no atenta ou atende ao que se contmna Constituio, mormente no art. 5o, no qual se estabelece a garantia obri-gatria pelo Estado dos direitos fundamentais dos brasileiros e estrangeirosresidentes no Pas.

    Como o Cdigo Civil faz distino entre domiclio e residncia, paraessa acentuando a possibilidade de ser plural, haver que se delinearjurisprudencialmente o contedo da norma para no restringir direitos funda-mentais e deveres intransponveis do Estado a serem honrados para a suaplena garantia.

    Apenas guisa de observao, deve ser mencionado que o art. 75 doCdigo Civil determina que o domiclio da Unio o Distrito Federal oque, em 1916, correspondia capital da Repblica -, enquanto a Constitui-o, em seu art. 18, preceitua que a capital da Unio Braslia.

    IV O PODER PBLICO E O TRATAMENTO CIVIL DOS SEUS BENS

    No captulo I do ttulo II, referente s pessoas jurdicas, o CdigoCivil refere-se s pessoas jurdicas de direito pblico a que se tenhadado estrutura de direito privado (art. 41, pargrafo nico; art. 99, par-grafo nico).

    Entretanto, os publicistas tm enfatizado as suas crticas a tal refe-rncia, uma vez que, na lio de Celso Antnio Bandeira de Mello, no h,nem pode haver pessoa de direito pblico que tenha estrutura de direi-to privado, pois a estrutura destas entidades auxiliares um dos prin-cipais elementos para sua categorizao como de direito pblico oude direito privado.16

    O art. 101 do novo Cdigo Civil inaugura entendimento que vi-nha prevalecendo em face da jurisprudncia predominante, segundo aqual somente os bens afetos prestao de servios pblicos (bens de

    16 MELLO, Celso Antnio Bandeira de Curso de direito administrativo. So Paulo: Malheiros,2003, p. 780.

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    uso comum e de uso especial) que so dotados da caracterstica de inali-enabilidade. Tem-se no art. 100 que este atributo somente prevalece en-quanto os bens estiverem comprometidos pela afetao ao servio pblicoe, por isso, forem destinados ao uso comum e ao uso especial do povo.

    Tal como observado quanto referncia s pessoas administrativas dota-das de estrutura e submetidas ao regime jurdico predominante de direito privadoquanto a seu desempenho, tambm o pargrafo nico do art. 99 no encontraressonncia ou respaldo nos princpios constitucionais, mormente aqueles expres-sos ou implicitamente postos no art. 37 e seguintes da Constituio da Repblica.

    Deve ser anotado que a referncia s pessoas que compem a Ad-ministrao Pblica foram distinguidos no novo Cdigo Civil segundo o quantoaceito constitucionalmente, o que configura ponto positivo.

    Tambm se consideram adaptados na nova legislao civil os disposi-tivos referentes aos bens do subsolo (art. 20, IX e 176, da Constituio daRepblica), que j recebem tratamento fundamental, independente de refe-rncia expressa do legislador civil.

    V A RESPONSABILIDADE PATRIMONIAL DOS ENTES DA ADMINISTRA-O PBLICA

    A Constituio da Repblica estabelece, expressamente, em seu art.37, 6o, a responsabilidade das pessoas jurdicas de direito pblico e as dedireito privado prestadoras de servios pblicos. O novo Cdigo Civilrefere-se matria em seu art. 43, ficando, contudo, aqum do quanto cons-titucionalmente disposto, especialmente em relao pessoa de direito pri-vado prestadora de servios pblicos, o que no se altera, entretanto, emface do quanto estabelecido na Lei Fundamental da Repblica.

    A importncia desta nfase est em que mesmo a responsabilidade subsi-diria do Estado quanto aos atos lesivos havidos contra algum e praticado porparticular no desempenho de servio pblico est amparado constitucionalmente,pelo que no pode ser desconhecido pela ausncia de norma civil expressa.

    VI PRINCPIOS CONSTITUCIONAIS DA ORDEM ECONMICA E O DIREI-TO DE EMPRESA

    Ao cuidar da ordem econmica, a Constituio da Repblica de 1988estabelece os princpios que a informam e que tm aplicao plena, pela sua

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    natureza, e eficcia incontrastvel. Assim, a valorizao do trabalho huma-no e a livre iniciativa, a fim de assegurar a todos existncia digna conformeos ditames da justia social so os elementos determinantes da dinmicaeconmica, formando e conformando o desempenho empresarial.

    Ao inaugurar cuidado especfico com o direito de empresa (livro II daParte Especial), o Cdigo Civil inaugura legislao infraconstitucional quese conforma com os princpios constitucionalmente adotados, especialmen-te os que se referem ao princpio da funo social das atividades e de todosos bens (art. 170 e seus incisos II e III) que tm de se voltar aos interessesda sociedade, bem como para garantir a pessoa a que se destina a presta-o da atividade econmica.

    De se ressaltar tambm a funo social do contrato (arts. 421 e 2.035,pargrafo nico, do Cdigo Civil), antes nunca mencionada e que se ajus-tam, perfeitamente, ao quanto constitucionalmente encarecido no sistemafundamental vigente nos ltimos quinze anos.

    VII DIREITO CONSTITUCIONAL DE PROPRIEDADE E CUIDADO CIVIL DAPROPRIEDADE

    Quanto ao direito de propriedade, realce dado propriedade cujodiresito recaia sobre bem imvel, que tema enfatizado constitucionalmen-te (art. 5o, inciso XXII, XXIII e XXIV, art. 182 a 191, da Constituio daRepblica), o Cdigo Civil vai alm do quanto disposto no texto do art. 524,do Cdigo Civil de 1916, como no poderia deixar de ser.

    Aquele documento civil fora preparado sob a gide da Constituio de1891, nico documento fundamental do direito positivo brasileiro a estatuir que odireito de propriedade mantm-se em toda a sua plenitude...(art. 72, 17).

    No obstante aquele preceito - que se justificava como tentativa depacificar os senhores de terras, preocupados em razo da abolio da es-cravatura que poderia, segundo o seu preocupar, ensejar novas expropria-es (sic) a jurisprudncia dos tribunais cuidou de adaptar aquele preceitoaos novos ditames constitucionais. Modificada a natureza, a extenso e osefeitos do direito de propriedade a partir da Constituio brasileira de 1934(preparada segundo os pensares predominantes a partir da Constituio deWeimar, de 1919), a norma do art. 524 do Cdigo Civil de 1916 passou porverdadeira mutao (mudana informal da norma), a fim de persistir segun-

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    do o princpio da funo social da propriedade que logrou persistir a partirdaquele perodo.

    A Constituio de 1988 encareceu o princpio da funo social dapropriedade (o qual, conforme acentuado, estendeu-se naquela Lei Funda-mental a toda atividade econmica, em orientao expressamente seguidapelo Cdigo Civil de 1916), expressando-o, em nvel legal o legislador civilde 2002, no art. 1228, 1o.

    Parecendo combinar-se com aquele princpio, se tem o 2o do mes-mo dispositivo legal, o qual, todavia, contamina-se por disposio extrema-mente embaraada e de difcil compreenso, pois impede tanto a liberdadede dispor do bem quanto de se exercer o direito de propriedade quando nohaja contrariedade ao bem pblico ou inteno de prejudicar outrem.

    O 3o do mesmo art. 1228 no se compadece com as normas de direitopblico, menos ainda com a inteligncia aceita do direito de propriedade consti-tucionalmente assegurado com limitaes (art. 5o, XXIV, da Constituio daRepblica). O que a Constituio da Repblica garante o direito de proprieda-de, vale dizer, a propriedade desenhada no sistema constitucionalmente adota-do, no qual se contempla a desapropriao como instrumento do Poder Pblicopara a concretizao do interesse pblico. Por isso que a requisio no posta constitucionalmente como hiptese de privao da coisa (art. 5o, XXV),seno que limitao precria a seu direito de uso temporariamente.

    Mais complicada parece ser a construo jurisprudencial para darplena eficcia ao preceito previsto no 4o do art. 1228 do Cdigo Civil,pleno de conceitos indeterminados e que convertem a competncia judicialem discricionariedade difcil de ser contornada, mas que, tal como se tementendido, no pode prevalecer sem que haja critrios objetivos a seremacatados e fundamentados na deciso prolatada.

    Deve ser anotado que algumas normas referentes desapropriao e queprevaleciam com base em interpretao doutrinria e jurisprudencial oferecida aoDecreto-lei n.3.365/41 foram alteradas pela nova legislao, como o direito dereaver o bem (art. 519 do Cdigo Civil) em retrocesso entendida como direitoreal e que j no mais comporta debate em face dos termos legais estritos.

    VIII O HOMEM E A FAMLIA NA CONSTITUIO E NO CDIGO CIVIL

    Ao centrar o sistema constitucional no homem (o qual foi enfatizadoat mesmo na topografia normativa para bem acentuar o ncleo da constru-

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    o jurdica da poltica a ser implementada), a Constituio da Repblicasinalizou o cuidado a ser oferecido a todas as pessoas e s formas aceit-veis de configurao social. O afeto fez-se fonte de direitos e de cuidados.

    O princpio constitucional da igualdade, aquele que mais vezes foiexpressamente enfatizado pelo constituinte de 1987/88, compareceu forte-mente no novo Cdigo Civil, especialmente quanto aos cnjuges, aos filhos,interferindo at mesmo na nova concepo de direitos sucessrios.

    Conquanto se tenha sob questo alguns dispositivos, que tm de re-ceber interpretao conforme para serem considerados vlidos (hiptese,por exemplo, dos arts. 1565, 2o, 1566, II, do Cdigo Civil), bem certo quehouve a preocupao, em primeiro lugar, de se adequar e sistematizar oquanto esparso em legislao que no se coadunava com princpios ordena-dos e, em segundo lugar, de se formalizar o quanto aceito pela jurisprudn-cia que tinha cuidado de dar acolhimento ao que a sociedade j absorverapelos costumes.

    CONCLUSO

    O Direito brasileiro fez-se mais popular nos ltimos anos. Poder-se-ia dizer que se democratizou, conquanto ainda no se tenha um verdadeirosentimento de Constituio ou sentimento do Direito na sociedade. Mastransformaes na raiz de modelos polticos que no contemplaram, em suaraiz histrica, a participao do povo nas formulaes constitucionais e le-gais acabam por se fazerem mais lerdas e difceis.

    O Cdigo Civil, que vem de iniciar a sua trajetria viva, tende a acen-tuar o que desde a dcada de 80 do sc. XX se vem mostrando: a vontadede que se mostram dispostas as pessoas de conhecer e exigir os seus direi-tos. Como direito ignorado direito no reivindicado, o brasileiro busca,agora, fazer-se ciente do quanto conquistado.

    As normas civis somente so vlidas como qualquer normainfraconstitucional quando compatveis, consoantes, conformes ao siste-ma constitucional, especialmente quanto aos seus princpios. Por isto quecompete aos advogados e juzes, em especial, fazer com que a interpreta-o a prosperar mantenha as normas recentemente iniciadas em sua vign-cia, a fim de que o brasileiro veja-se abrigado por direito justo e perfeita-mente compatvel com a Constituio, em respeito ao princpio da justiaconstitucional e da segurana jurdica.

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    No h leis perfeitas, por serem obras do homem, imperfeito em si eem sua criao. Fazer leis, lembrava Maquiavel, a obra mais difcil doPrncipe. Mas o imperfeito d-se ao aperfeioamento, podendo ser melho-rado pelos instrumentos legtimos e, em especial, pela ao conjunta daque-les que tm a funo de fazer operante, eficaz e eficiente tanto quanto olegislador em benefcio da sociedade, que precisa de leis atuais para viversegundo ela. A vida no estanca perante a lei defasada da idia de Justiacontemplada pela sociedade e esvaziada em sua eficcia social.u