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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO) CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE PRIMEIRA VERSÃO ANO VI, Nº 233 - SETEMBRO - PORTO VELHO, 2008. VOLUME XXIII – Set/Dez ISSN 1517-5421 Desenho da Capa: Flávio Dutra EDITOR NILSON SANTOS CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP MARIO COZZUOL – Biologia – PUC-RGS MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows” deverão ser encaminhados para e-mail: [email protected] CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO TIRAGEM 200 EXEMPLARES EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA 233 BATALHA DA BORRACHA ARIADNE ARAÚJO BATALHA DA BORRACHA PRIMEIRA VERSÃO ISSN 1517-5421 lathé biosa

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO VI, Nº 233 - SETEMBRO - PORTO VELHO, 2008.

VOLUME XXIII – Set/Dez

ISSN 1517-5421

Desenho da Capa: Flávio Dutra

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia – PUC-RGS MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for

Windows” deverão ser encaminhados para e-mail:

[email protected]

CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

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BATALHA DA BORRACHA

ARIADNE ARAÚJO

BATALHA DA BORRACHA

PRIMEIRA VERSÃO ISSN 1517-5421 lathé biosa

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ARIADNE ARAÚJO – FORTALEZA

Isto É online – dezembro de 1998.

A operação montada por Getúlio Vargas para garantir aos EUA a matéria-prima estratégica na Segunda Guerra Mundial levou à morte 30 mil nordestinos,

heróis que foram esquecidos na floresta amazônica

Um exército abandonado no inferno verde – a floresta amazônica – durante a Segunda Guerra Mundial espera, há 50 anos, os direitos e a homenagem

prometidos pelo governo federal. Em 1942, o presidente Getúlio Vargas recrutou a tropa para uma operação de emergência que coletaria látex para os americanos.

Eram 55 mil nordestinos, 30 mil só do Ceará, que fugiam da seca em busca de riqueza e honra naquela que ficou conhecida como a Batalha da Borracha. Eles não

enfrentaram alemães nem japoneses. Lutaram contra os males tropicais, a fome, a escravidão e o abandono. Uma reportagem publicada na época, pelo jornal New

Chronicle, de Londres, já denunciava que 31 mil migrantes morreram nesse esforço para conquistar matéria-prima para o arsenal do Tio Sam. Só seis mil

conseguiram voltar para casa. Os demais sobreviventes, hoje com mais de 60 anos, são reféns da miséria e moram no Acre, região que recebeu a maior parte dos

alistados. Aos precursores do segundo ciclo da borracha, na época batizados de arigós, só restou uma festa. Para eles o dia do trabalho é também o dia do soldado da

borracha, data em que relembram as tradições da terra natal. Durante um dia inteiro, um galpão em Rio Branco se transforma em pista de forró. Eles dançam e

contam as histórias do front. Além de reclamar a recompensa que nunca veio e a aposentadoria não reconhecida, esses heróis desconhecidos gostariam de desfilar no

7 de setembro ao lado dos combatentes da FEB.

Os nordestinos arregimentados não tinham a menor idéia do que era o trabalho nos seringais. Adoeciam e morriam com facilidade. Demoravam a se

acostumar à solidão e à lei da mata. O alfaiate João Rodrigues Amaro, 72 anos, se arrependeu antes de chegar. Mas já era tarde demais. Aos 17 anos ele deixou

Sobral só com a passagem de ida. A Campanha da Borracha uniu o útil ao útil. Em um ano de seca, encontrou no Nordeste um exército de flagelados pronto para

partir, ou melhor, fugir. Nos postos de arregimentação, um exame físico e uma ficha selavam o compromisso. Para abrigar tanta gente – às vezes mil em um único

dia –, o jeito foi construir alojamentos, como a hospedaria modelo, de nome Getúlio Vargas, em Fortaleza. Lá, eles passavam a viver até o dia da viagem, sob um

forte regime militar.

A missão do exército de Getúlio Vargas não era segredo para ninguém: salvar os aliados da derrota para os países do Eixo. A propaganda oficial era um

chamado: a vitória dependia da reserva de látex brasileira e da força de voluntários, chamados pela imprensa e governo de soldados da borracha. Para uma operação

de guerra, foi montada uma parafernália de organizações que, aliás, não se entendiam. Os americanos tinham a Board of Economic Warfare, a Reconstruction

Finance Corporation, a Rubber Reserve Company, a Defense Suplies Corporation. Os brasileiros criaram o Serviço de Mobilização de Trabalhadores para a

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Amazônia (Semta), a Superintendência para o Abastecimento do Vale da Amazônia (Sava), o Serviço Especial de Saúde Pública (Sesp), o Serviço de

Navegação da Amazônia e de Administração do Porto do Pará (Snapp). Cada um desses órgãos tinha um pedaço da responsabilidade de fazer ser um sucesso a

Batalha da Borracha. O artista plástico suíço Pierre Chabloz, contratado pela Semta, era responsável pelos cartazes que incentivavam a produção de látex. Criou

também mapas dos biotipos nordestinos para ajudar na seleção dos candidatos. Foram classificados em normolíneo – tipo normal com pêlos e pescoço longo;

mixotipo – tronco longo e pouco volumoso, mais próximo do normal; brevilíneo – ventre avantajado e ausência de pêlos que desvalorizava o tipo; e o disgenopata –

com joelhos arcados e inferioridade psíquica. Chabloz o retratou como "um débil mental".

Fama e fortuna A propaganda dirigida e veiculada nos meios de comunicação trazia promessas mirabolantes e era chamariz para os desavisados. No

discurso, os voluntários para a extração da seringa eram tão importantes quantos os aviadores e marinheiros que lutavam no litoral contra a pirataria submarina ou

ainda os soldados das Nações Unidas. Nas esquinas do País, retratos de seringueiros tirando ouro branco das árvores com um simples corte. "Tudo pela Vitória",

"Terra da Fortuna", eram as palavras de ordem. Mas foi Getúlio Vargas, em discursos pelo rádio, que convenceu mais."Brasileiros! A solidariedade de vossos

sentimentos me dá a certeza prévia da vitória.’’ Para garantir a adesão, se prometia um prêmio para o seringueiro campeão. O maior fabricante de borracha em um

ano levaria 35 mil cruzeiros. Os voluntários ganhavam um enxoval improvisado – uma calça de mescla azul, uma blusa de morim branco, um chapéu de palha, um

par de alparcatas de rabicho, uma caneca de flandre, um prato fundo, um talher, uma rede, uma carteira de cigarros Colomy e um saco de estopa no lugar da mala. O

cearense Pedro Coelho Diniz, 72 anos, acreditou que ia ficar rico na Amazônia. Levou um chapéu de couro e a medalha de São Francisco das Chagas, mas não

adiantou a fé nem a coragem de vaqueiro. O dinheiro que conseguiu deu só para voltar ao Ceará uma única vez, para rever a família.

Iam em carrocerias de caminhões, em vagões de trem de carga, na terceira classe de um navio até o Amazonas. A viagem do exército da borracha podia

demorar mais de três meses, incluindo aí paradas à espera de transporte. Pior que o desconforto, só o perigo de ir a pique no meio do mar. Afinal, aqueles eram dias

possíveis de ataque de submarino alemão. Para prevenir, além da companhia de caça-minas e aviões torpeadores, os nordestinos recebiam colete salva-vidas. Em

caso de naufrágio, havia nos bolsos internos uma pequena provisão de bolachas e água. Em caso de captura, uma pílula de cianureto para escapar da vergonha de

uma prisão inimiga.

Males tropicais Um arigó que se preze traz cicatriz de briga com onça, flecha de índio, bala de patrão ruim e histórias de malária, febre amarela, beriberi,

icterícia e ferimentos da árdua atividade na selva. Cearenses, paraibanos, pernambucanos, baianos e maranhenses aprenderam, no susto, a escapar dos perigos

insuspeitáveis da floresta amazônica. Mutucas, meroins, piuns, borrachudos e carapanãs fizeram banquete dos novatos. Dos portos de desembarque, a tropa foi

entregue aos patrões seringalistas. Na partilha dos grupos, novas e velhas amizades se separaram. Nada valia do que foi prometido por Getúlio Vargas: cuidados de

pai e fortuna fácil. A lei era da bala, surras, ameaças, mortes. O patrão controlava a comida, a roupa, o transporte, o remédio. "Tudo ladrão, do calibre de Lampião’’,

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diz Armédio Said Dene, 81 anos, que foi dono de cinco seringais no Acre e teve muitos arigós sob seu comando. Para ele, os soldados da borracha não mereciam

confiança. Ele exercia seu comando usando a velha carabina. "Era nós ou eles.’’ De um modo geral, era esta a maneira de o patrão tratar o seringueiro. O preconceito

se fortaleceu por causa das brigas e confusões em que a tropa se envolvia. Hoje Armédio Said não tem mais produção de seringa. "Tudo perdido. Em tempos bons,

comprei até apartamento no Rio de Janeiro.’’ Quando o último ciclo da borracha acabou, levou ao chão também os planos da família Said de voltar à Síria.

O exército cativo era enviado para os seringais para extrair o máximo que pudesse de borracha. Só no ano de 1945, os arigós aumentaram o estoque de

borracha natural dos aliados de 93.650 para 118.715 toneladas. Castigo para desertor era a morte. Alegria só nos fins de semana, nas festas de barracões, quando, na

falta de mulher, dançava homem com homem. Lembrança para se resolver nas festas de 1° de maio. Afinal, hoje são muitas as viúvas, irmãs e filhas do exército

enganado. Maria Rosa Lajes, 71 anos, chora de revolta. Ela luta pela aposentadoria de uma prima que veio com o marido numa leva de 600 pessoas do Ceará. No

Acre, pelo menos 11 mil seringueiros já conseguiram o direito a dois salários mínimos, mas a falta de documentação e os anos de espera quebraram a esperança dos

que sobreviveram à Batalha da Borracha.

Uma Comissão Parlamentar de Inquérito foi criada para apurar a situação dos trabalhadores enviados à Amazônia no período de 1942 a 1945. A CPI da

Borracha foi dissolvida sem conclusão. O que a CPI não disse em seu relatório é que, com o fim da guerra e a fabricação da borracha sintética, a extração desvairada

de látex era dispensável e os aliados não precisavam mais do Brasil, muito menos dos arigós. No Vale da Amazônia, ainda hoje há denúncias de que integrantes da

nova geração de seringueiros vivem como escravos, uma herança do modelo da década de 40. Às margens do rio Paraná do Ouro, em Feijó, a 366 quilômetros de

Rio Branco, mais de 300 famílias não têm roupa para vestir, utensílios para fazer fogo e são proibidos de vender a produção da borracha para outros comerciantes. A

comunidade é uma das muitas que ficaram perdidas na mata quando a guerra acabou. São um pedaço do exército recrutado por Getúlio Vargas, esperando um

resgate que não veio nunca. Às margens do rio Juruá, no Acre, um seringal ainda tem o nome de Fortaleza. Outras dezenas de vilarejos têm os nomes de localidades

no Nordeste. Uma maneira de os soldados da borracha se sentirem em casa.

José Pereira da Silva, 64 anos, pode dizer, por exemplo, que mora em Fortaleza, a capital onde nasceu o pai dele. Hoje ele não corta mais seringa nem

conseguiu a aposentadoria como soldado da borracha. Mas os vestígios da vida de soldado estão em toda parte. Em um dos quartos da palafita em que mora, às

margens do rio, ele guarda as peles de onça-pintada que matou com sua espingarda nas madrugadas de retirada de látex. "Foram mais de 20. Nunca tive medo delas.

A carne eu trazia para a mulher fazer a comida pros meninos." Até hoje ninguém sabe quantas pessoas e quantos são os seringais do Vale da Amazônia. A

Universidade Federal do Acre (Ufac) só conseguiu mapear uma colocação (sítio dentro dos seringais). É a reserva de extrativismo Chico Mendes.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO VI, Nº 234 - OUTUBRO - PORTO VELHO, 2008.

VOLUME XXIII – Set/Dez

ISSN 1517-5421

Desenho da Capa: Flávio Dutra

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia – PUC-RGS MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for

Windows” deverão ser encaminhados para e-mail:

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O MISTÉRIO DO PAÇO DO MILHAFRE: UMA POÉTICA DA ORALIDADE

Paulo Meneses

PRIMEIRA VERSÃO ISSN 1517-5421 lathé biosa

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O MISTÉRIO DO PAÇO DO MILHAFRE: UMA POÉTICA DA ORALIDADE

Paulo Meneses

(Universidade dos Açores) Texto lido no âmbito das actvidades do I Congresso do Seminário Internacional de Estudos Nemesianos. A publicar nas rspectivas "Actas", já em preparação

"O acto de narrar acha-se sempre imune a qualquer modalidade de inocência. E toda a narrativa que se constitua como moldura de uma outra faculta ao

escritor as virtudes da dramatização dos resultados do labor enunciativo executado pelo seu narrador." Sustenta-o Peter Brooks (1994: 77), experimentado e exigente

cultor de um modelo de exegese narrativa de matriz freudiana. E isto a propósito dos estreitos vínculos que unem a cura analítica àquele mesmo acto de narrar.

Escutemo-lo de novo, a fim de permitimos que a minúcia do seu raciocínio nos conduza ao núcleo de um seu conceito operatório, o de transferência como modelo de

construção e de recepção dos textos narrativos:

"A psicanálise é, estamos certo, não apenas linguística e narrativa na sua natureza, mas também oral, quer dizer, a praxis de uma construção narrativa

situacionalmente marcada por um contexto narrativo vivo. À exploração de um modelo de transferência do significado de uma narrativa aproveitará, com certeza, a

consideração do papel desempenhado pela oralidade no interior da própria escrita, ou melhor, a ponderação das vias percorridas por uma literatura, longa e

estreitamente ligada a práticas comunicativas determinadas pela escrita e pela impressa, no sentido de simular, evocar ou comportar vestígios de uma situação de

comunicação narrativa oral. Com efeito, é neste tipo de contexto narrativo, mesmo quando produto de uma inequívoca elaboração literária, que mais facilmente

poderemos surpreender, porque textualizados, os traços constitutivos da chamada transferência narrativa" (ibidem: 76).

Não é a abertura à psicanálise, de inequívoco fascínio em seus construtos como em suas práticas, que nos interessa em Brooks. É antes o amplo salto que

possibilita até um texto de Walter Benjamin, que o Professor de Yale também comenta, e quase sempre em termos que ao nosso objectivo muito aproveitam. Trata-

se de um luminoso, denso e aforisticamente enérgico, como o são quase todos os de Benjamin, ensaio sobre Nicolai Leskow (1831-1895), publicado em 1936 sob o

título "O Narrador. Considerações acerca da obra de Nicolai Leskow" (1995: 51-71). Apesar do relevo que o título lhe confere, a obra de Leskow constitui-se, na

verdade, menos como elemento estruturador das reflexões de Benjamin do que como exemplo paradigmático de um legado em acelerado processo de fragmentação,

esse sim núcleo de seu estudo e de seu pensamento em acto. O que, de facto, aqui ensaia Benjamin é a demanda de uma resposta activa à perda (e às consequências

dela) do narrador enquanto presença viva e influente. Sigamos, pois, no encalço de Benjamin: começa justamente por sustentar a tese da ausência de um tal tipo de

narrador (2), gesto caucionado pela subsequente apresentação dos motivos que lhe subjazem. A arte de narrar havia sido entendida por Benjamin como a faculdade

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de trocar experiências. Ora, se a experiência — a que vai de boca em boca — está em queda, então reduzido ou nulo se torna o espaço dantes disponível para esta

disposição cognitiva do acto de narrar, ou seja, para o entendimento da narrativa como dom, como acto de generosidade em que os próprios receptores se acham

compreendidos, quer porque narram eles próprios novas histórias (é este o modelo do "Decameron"), quer porque comentam a que acabaram de escutar, quer ainda

porque da sua positiva e efectiva recepção fornecem qualquer outro sinal (Brooks, 1994: 87). Vejamos, porém, como equaciona Benjamin esta problemática:

"A experiência transmitida de boca em boca é a fonte a que foram beber todos os narradores. E os maiores entre os que escreveram histórias são aqueles cuja

escrita menos se distingue do discurso dos muitos narradores anónimos. Por sua vez, entre estes últimos, existem dois grupos que, é certo, se interpenetram de

múltiplas maneiras. E também a figura do narrador só adquire plena corporalidade para quem tiver presente os dois. "Quando alguém faz uma viagem tem algo para

contar", e é a voz do povo, imaginando o narrador como alguém vindo de longe. Mas não é com menos gosto que se escuta aquele que, ganhando o pão, ficou na sua

terra e conhece as suas histórias e tradições." (1995: 52).

É, pois, o marinheiro comerciante e o agricultor sedentário que o ensaísta de Berlim converte em paradigma de uma arte de narrar sustentada por uma

intrínseca ligação a um mundo vivo e autêntico, quer dizer, capaz de alimentar a natural vocação do acto narrativo para a troca e partilha de experiências, exercício

não isento de enérgicas virtualidades perlocutivas, cuja eficácia aumenta em razão directa da habilidade do narrador para transformá-lo em genuíno acto de sabedoria

(3) .Quem não recordará, a propósito daquele primeiro tipo de homem-narrativa, o marinheiro-contador de histórias inventado por Conrad, a cujo fascínio se rendem

quantos arrastaram a sua existência em terra? E a respeito do segundo, não o vislumbramos todos no típico narrador do conto popular, imaginando-o sentado à

lareira, voz sedutora e gesto envolvente, portador de uma autoridade que as cãs e a amplitude de uma experiência armazenada na memória deixam adivinhar com

facilidade? Ora, um como o outro são filhos de um tempo já extinto, o da estruturação do sistema de trabalho artesanal, cujos contornos a Idade Média muito ajudou

a desenhar:

"A extensão real do reino dos contos em toda a sua amplitude histórica é impensável sem a íntima interacção destes dois tipos arcaicos. Foi muito

particularmente a Idade Média que conseguiu realizar uma tal interacção no seu sistema de trabalho artesanal. O mestre sedentário e os aprendizes nómadas

laboravam juntos na mesma oficina; e todo o mestre tinha sido aprendiz ambulante antes de se estabelecer na sua terra ou em terra estranha. Se, por um lado, os

camponeses e os marinheiros foram os primeiros mestres de contar, por outro, o sistema do trabalho artesanal foi a sua grande escola. Aqui se aliavam o

conhecimento de terras longínquas, tal como os muitos viajados o trazem para casa, com o conhecimento do passado, tal como era confiado preferencialmente ao

sedentário." (Benjamin, 1995: 53).

Contar e escutar histórias eram gestos, eles próprios, artesanais. Implicavam uma disposição interna do narrador e da sua audiência para a reiteração e a

interacção. Ao narrador não interessa transmitir o puro "em si" da coisa, mas antes mergulhar a coisa na vida do relatador, para voltar a fazê-la sair dele, estratégia

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que se traduz em habitual e detalhada referência às circunstâncias em que a matéria da narração foi por ele apropriada, quando não mesmo vivida (ibidem: 58). O seu

objectivo fundamental é imprimir ao seu acto narrativo uma marca pessoal, que à audiência caberá entrever e decodificar. Debilitado o dom da escuta, o de narrar,

uma sua função, agoniza (no entender de Benjamin, às mãos do romance, da particular natureza do seu suporte, dos circuitos da sua difusão e do seu público):

"Se o sono representa o máximo da distensão do corpo, a do espírito traduz-se no tédio. O tédio é o pássaro do sonho que choca o ovo da experiência. O

restolhar nas folhagens afugenta-o. Os seus ninhos — aquelas actividades intimamente associadas ao tédio — já desapareceram nas cidades, na província

desmoronam-se também. Deste modo se perde o dom de escutar. Contar histórias é sempre a arte de as contar de novo [a marca nelas impressa pelo narrador], que se

vai perdendo quando as histórias já não são retidas. Ela perde-se porque ninguém tece nem fia enquanto as escuta. Quanto mais aquele que escuta se esquece de si,

mais fundo lhe fica gravado o que ouviu." (ibidem: 57).

Nostálgico, se não mesmo utópico (Leskow, por mais destro que se revele na apropriação dos mecanismos da narração oral, a custo poderá integrar a galeria

arquetípica do narrador benjaminiano!), este manifesto pelo narrador? Talvez mais na aparência do que na realidade, pelo menos se nos dispusermos a lê-lo, nos

termos em que persuasivamente o fez Peter Brooks, menos como um programa do que como uma estratégia. Quer dizer, ao olhar e à percepção de Benjamin

interessaria não tanto o retorno a uma irrecuperável situação de comunicação narrativa oral (mesmo que fictivamente (4) construída, como nos contos de Leskow),

mas antes e sobretudo o combate contra as condições em que se processa a comunicação narrativa num tempo que o próprio havia já caracterizado como a era da

reprodução mecânica dos objectos estéticos. E o que um tal combate parece induzir é um protesto contra qualquer forma de descontextualização do discurso

narrativo, e um esforço para re-descobrir as várias coordenadas da narrativa na voz que a articula e actualiza, na transmissão de uma certa "sabedoria", que o

narrador se dispõe a partilhar com o narratário, e na transacção ou transferência que tem lugar sempre que alguém conta/re-conta alguma coisa a outro alguém

(Brooks, 1994: 85). Para que a leitura, enquanto investimento ético e estético, possa recuperar a experiência — ou a ilusão dela — de uma troca entre criaturas vivas,

que abre caminho à reflexão, geradora daquela forma de sabedoria que é a partilha de um conselho (ibidem: 87). Uma postura entendida por Benjamin como bem

distinta da evidenciada pelo leitor do romance, cujo aposento natural é, em seu sugestivo dizer, o do indivíduo na sua solidão (1995: 55).

Vêm estas já alongadas considerações propedêuticas a propósito de um texto de Nemésio que sempre nos tocou fundo, talvez porque da experiência da sua

leitura jamais tenhamos conseguido arredar gratas memórias de uma infância vivida no espaço, que não obviamente no tempo, por Nemésio convocado em muitas

das narrativas que integram O Mistério do Paço do Milhafre. O texto particular a que acima nos referimos é justamente o que encabeça e dá o título àquele exercício

de retorno à Ilha, não raro também à infância e à adolescência, que uma acentuada nostalgia, dobrada pela distância, parece ter imposto ao nosso autor (Garcia, 1988:

73-4). Concentremo-nos, então, neste texto matricial, gráfica e topograficamente marcado, que enquadra e de algum modo determina a matéria e o tom de grande

parte dos contos desta colectânea, muito em particular aqueles que se acham vinculados ao esforço enunciativo de Mateus Queimado.

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Topograficamente, já o dissemos, "O Mistério do Paço do Milhafre" abre a compilação de contos a que emprestou o título genérico. E graficamente também

deles se quer distinguir, já que se vê impresso em itálico. Além disso, quer a matéria que evoca e tematiza — as coordenadas da formação literária do próprio sujeito-

enunciador, Mateus Queimado —, quer as estratégias retórico-enunciativas que assistem a sua textualização — as adequadas à génese de um mundo comentado

(Weinrich, 1974: 61ss) — parecem unir esforços no sentido de lhe outorgarem alguma especificidade funcional na arquitectura e na economia globais deste conjunto

de narrativas. Não se trataria, por conseguinte, de mais um conto entre quantos o integram, mas de um "prefácio actorial fictivo" (Genette, 1987: 175-6) onde se

acham inscritos, ao jeito de uma poética implícita, os fundamentos de uma arte de narrar que muito aproveita ao seu presumível autor, Mateus Queimado.

Antes, porém, de escrutinarmos a natureza de uma tal poética narrativa, convém dar conta das dificuldades advenientes do confronto do leitor com uma

criatura como Mateus Queimado. É ele um ente de ficção, uma criatura de Nemésio, de resto com ampla representação em seus contos e crónicas (5). Este sábio

narrador e interessante personagem de sete dos quinze contos d’ O Mistério do Paço do Milhafre (deste cômputo excluímos deliberadamente o texto inicial, pelas

razões há pouco esboçadas) conforma-se como um quase-heterónimo de Nemésio, já que, enquanto sujeito responsável pela enunciação daqueles contos e de cerca

de uma dezena de crónicas do "Corsário das Ilhas", não se acha nunca completamente autonomizado face ao seu criador empírico. Isto mesmo poderemos verificar

se olharmos a sua funcionalidade na obra de Nemésio à luz de um quadro teórico como o que Jon-K Adams estabeleceu em sua rigorosa determinação das

circunstâncias inerentes à pragmática da comunicação narrativa ficcional (1985: passim, mas particularmente 12-5). Na verdade, se a estrutura pragmática da

comunicação é formada pela correlação de três elementos, um emissor e um receptor, com um texto de permeio, então a estrutura pragmática da narrativa ficcional

assumirá uma feição bem mais complexa, pois, para além elementos correlatos dantes referidos, em que o emissor e o receptor são co-referenciais com o autor e com

o leitor empíricos, de permeio ficam outros elementos que não apenas o texto. São esses elementos o narrador e o narratário/leitor implicado, entidades situadas já no

plano da textualidade, ontologicamente diferenciadas, portanto, do autor e do leitor empíricos, com os quais poderão sustentar relações complexas, porém não

imediatas. Ora bem, para que a Mateus Queimado pudéssemos outorgar o estatuto de autêntico heterónimo seria necessário que, na estrutura pragmática dos textos

de sua lavra, lhe coubesse um lugar de extensão coincidente com a do autor empírico, o que nunca é o caso. Temos assim que Mateus Queimado não se institui —

melhor seria dizermos não é instituído — como um autor empírico substituto do escritor Vitorino Nemésio, ou seja, como um seu heterónimo, mas antes como um

efectivo narrador intraficcional ("narrador interposto", nos termos do Professor Martins Garcia), dependente, enquanto tal, das curtas, formulares e parentéticas

declarações "conta/escreve Mateus Queimado", produzidas por uma voz narrativa anónima, extra e heterodiegética relativamente ao nível em que se coloca e à

relação que assume face à/com a diegese. É por ocupar este peculiar e relevante espaço na ficção e na crónica nemesiana que Mateus Queimado se eleva à condição

de um outro eu-mesmo a que recorre o escritor sempre que, nos seus textos, procura penetrar e transmitir o mais profundo significado da vivência insular (Garcia,

1988: 80; Gouveia, 1986: 120-3; Pires, 1983: 10-22).

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É a este mesmo Mateus Queimado, já o afirmámos, que é atribuída a autoria do paratexto fictivo que aqui nos interessa. E é ainda o próprio quem filia a sua

actividade de escritor/narrador nas memórias literárias da sua infância: "Tenho mais saudades das minhas pobres e avulsas leituras de infância (escreve Mateus

Queimado) do que de todos os livros doutos e graves que li depois." (Nemésio, 1949: 9) (6). O avanço do nosso contacto com o texto depressa nos revela a pouco

ortodoxa natureza daquelas leituras, já que conformadas como o resultado de uma escuta atenta das vozes narrativas do Aldino e do João Grande, exímios contadores

de contos e de "causos". Do primeiro, porque dificultada a integração na tertúlia dos velhos que tinha por audiência, regista apenas as impressões que lhe ficaram de

uma atenta observação das decisões empáticas da audiência (justamente um dos componentes específicos do código regulador de uma situação de comunicação

oral). Quanto ao segundo, desse conserva pregnante e grata memória, não tivesse sido seu o privilégio de se juntar a quantos lhe bebiam as palavras e os gestos nos

dias em que o temporal confinava os pescadores da Vila da Praia ao barracão das redes. Vejamos, então, como apreende e nos revela João Grande:

"João Grande era a eloquência em pessoa, feita de nobre estatura, de solenidade bem disposta e adubada de gestos peregrinos, de pausas estratégicas e de

interjeições canoras. Contava casos que requerem silêncios de horas — e tinha-os daquele bando grulhento só costumado a pragas, a barulheira, a gestos pouco

franciscanos... Na meia luz coada pelas lucarnas do barracão criava-se a atmosfera boreal dos contos de mar e guerra, a atmosfera lilás dos casos de amor bretão, a

atmosfera estridente das bufonadas de Bertoldo e Casseno." (15).

Acham-se aqui reunidas, já explícita já implicitamente, as qualidades inerentes a todo agente de uma cultura marcada pela oralidade que se queira eficaz —

voz e postura adequadas, a que se aliam um equilibrado exercício de faculdades como a memória e a razão. Justamente aquelas que o nosso Gil Peres Conde,

trovador activo na segunda metade do século xiii , satiricamente aconselhava a um jogral de fracos dotes — ter doairo, voz, aprender ben e seer de bon sen. A

eloquência de João Grande, a nobreza da estatura, a cuidada gestão dos gestos e das modulações vocais, o claro sentido do ritmo narrativo, o controlo da disposição

receptora da sua audiência e o domínio de um variado repertório (atente-se na multiplicidade de atmosferas que é capaz de re-criar, correspondentes a outras tantas

tradições narrativas) fazem dele o homem-narrativa cuja lição Mateus Queimado não esquece, antes emula.

Apresentado João Grande, perscrutemos esta sua eficácia narrativa em acto, seguindo de perto os comentários dispensados por Mateus Queimado a uma das

suas actualizações do «Toiro Azul»:

"Graça, verdade e medida, o sentido do mistério, o gosto do pormenor e do ressaibo histórico, a fala natural e ao mesmo tempo guindada, misto de dize-tu

direi-eu da lota do varadoiro e de reminiscências da prédica do Vigário ao domingo — tudo isso compunha a arte de narrar de João Grande, que baixava a voz para

falar de coisas tristes, fazia uma carranca para imitar a má madrasta, e a tudo dava um valor e uma intenção.

Neste e noutros contos que lhe ouvi, o esquema da intriga era conforme ao que vinha nos folhetos de cordel, que ele mandava coser à filha e que a mulher

lhe lia à noite — até que João Grande, que mal conhecia as letras, passasse os epítetos e as cláusulas do texto à sua memória sem fundo, verdadeiro écran verbal,

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como o dos autênticos escritores, onde se acendam e apagam as palavras ligadas para sempre em sua milagrosa indução. Mas, uma vez decoradas páginas e páginas

de discurso, João Grande mondava, cerzia, encurtava, floria aqui o que deixava seco além, com negligências e preciosismos intencionais, dignos de Garrett e de

Camilo." (27-28).

Não será, pela certa, com dificuldade que aqui entrevemos o narrador-tipo de que a indagação de Benjamin nos afirma privados: o entendimento do acto de

narrar como faculdade de trocar experiências e como lugar de inscrição de uma marca do narrador depara-se aqui com uma exemplar tradução. Nisto se revela a arte

de narrar de João Grande herdeira e devedora daquela remota tradição narrativa suportada pela experiência transmitida de boca em boca e pela presença viva e

influente do próprio narrador. Nisto e na criteriosa selecção de peças de um repertório não apenas folclórico mas também culto, como o atestam a referência às

histórias da Donzela Teodora, de Carlos Magno, de Bertoldo, da Princesa Mangalona, etc. — todas elas conhecedoras de grande fortuna ao longo da Idade Média,

posteriormente dilatada, no contexto da Península Ibérica, pela sua entrada nesse amplo e complexo domínio da literatura oral tradicional que é o romanceiro. Quer

isto dizer que na inventio como na dispositio a sua poética narrativa, que Mateus Queimado evoca e desvenda, é a da oralidade.

Que a esta poética da oralidade Nemésio não se mostra imune já o revelou Natália Correia, em palestra em sua memória proferida na Casa dos Açores de

Lisboa: "A oralidade — disse-o então — é indiscernível da magia verbal de Vitorino Nemésio. É-o em toda a gama da sua multifacetada produção literária. É-o de

uma forma muito marcada no carácter oral da sua poesia romancística. A poesia de Nemésio é, de facto, depositária da tradição romanesca. E nisto o poeta é

requisitado pela oralidade que na infância obsessivamente o chamou lá da ilha no seu avatar de ficcionista, lhe afinou o ouvido pela voz aédica das amas e dos torna-

viagens" (apud Garcia, 1981: 14). Como se vê, daqui a "O Mistério do Paço do Milhafre" vai um passo muito curto, cuja transposição, em jeito de cláusula final,

gostaríamos de ensaiar.

A via mais adequada seria, estamos em crer, a de uma minuciosa indagação das incidências desta abertura às psicodinâmicas da oralidade (Ong, 1987: 38ss)

nas estratégias compositivas de cada um dos quinze contos que integram aquela colectânea, ou pelo menos de cada um dos que acusam a presença de Mateus

Queimado, autoproclamado depositário do legado de João Grande. Não a aconselham, contudo, nem as coordenadas que determinam esta nossa intervenção, nem tão

pouco a própria natureza de algumas das peças narrativas que lá se encontram. Logo, há que operar por amostra selectiva, impondo-se-nos, já em função de uma

muito pessoal disposição receptora já em virtude da exemplaridade do próprio texto, "Quatro Prisões Debaixo de Armas".

Cremos sobejamente conhecida a sua história. Fortuna, pelo menos, não lhe terá faltado, pois não só se autonomizou, em termos de edição, da colectânea-

mãe, como circulou, à boa maneira dos velhos folhetins, por entre as páginas de um nosso vespertino. Convém, apesar de tudo, recordá-la: trata-se da evocação,

empreendida por Mateus Queimado, dessa curiosa figura de pícaro que é o Matesinho de S. Mateus, pescador de ofício e ex-soldado, condição esta que o forçou a

cruzar o oceano rumo ao Continente, onde protagonizou uma mão cheia de aventuras, depressa e sabiamente convertidas em importante património antropo-

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biológico. Entre tais experiências vitais constam quatro desmandos — um deles omisso, tal a delicadeza dos pormenores que o terão rodeado —, conducentes a

idêntico número de prisões debaixo de armas. E delas faz ainda parte uma de cariz positivo, que o redime e o traz de volta ao torrão natal e ao entorno familiar.

Passemos, agora, à configuração discursiva desta história. Determinada a identificação do seu sujeito enunciador pela notação parentética escreve Mateus

Queimado, natural se torna que uma narrativa como "Quatro Prisões Debaixo de Armas" se veja afectada pelos traços caracterizadores da série mais ampla em que se

insere. Queremos com isto dizer que o relato de Mateus Queimado poderá, sem obstáculos de monta, ser lido como a evocação, facultada pelos dispositivos da

memória, de um dos múltiplos ficheiros que integram a sua enciclopédia islenha — a saber, o relativo à peculiar figura do Matesinho de S. Mateus. Dá-se, todavia, o

caso de o narrador Mateus Queimado endossar, a partir de determinado momento, ao próprio Matesinho de S. Mateus, o objecto evocado, a função de narrador do

conjunto das peripécias por este vividas em suas andanças por terras longínquas e estranhas. Institui-se, assim, um nível narrativo hipodiegético, em cujo processo

compositivo Matesinho assume a dupla condição de narrador e de personagem nuclear.

Não é, obviamente, inocente esta opção de Mateus Queimado. E tanto menos o parecerá quanto mais evidente nela se revelar a lição de Aldino e de João

Grande. Torna-se, por isso, necessário recordarmos o modo como, em diferenciadas tradições narrativas, a simulação de situações de comunicação narrativa

marcadas pela oralidade se acham estreitamente vinculadas à instituição de um ou mais níveis narrativos hipodiegéticos (pense-se, a título de exemplo, nas "Mil e

Uma Noites", ou no "Decameron" de Boccaccio, ou ainda em algumas narrativas de Joseph Conrad). É que a activação deste dispositivo técnico-narrativo facilita a

emergência de um ou mais narratários textualmente explícitos, condição indispensável ao entendimento do discurso narrativo como espaço favorável ao exercício

daquela troca de experiências em que Benjamin havia entrevisto a medula das práticas narrativas orais ou oralizantes.

Quanto a Mateus Queimado, já sabemos da sua total disponibilidade para a escuta que uma tal poética narrativa exige — outro móbil não o conduzia à

transgressão das disposições familiares relativamente à frequência do barracão das redes, donde a custo o pai o arrancava:

"Às vezes —confessara-nos em seu prefácio fictivo —, na força da verve, as tardes de inverno passavam; os homens esqueciam-se da ceia, da taberna e da

vida. […]. E meu pai, que vinha buscar-me inquieto, julgando levar-me pela mão quem levava era outro: Era o meu primeiro fantasma: o amor de Pierres, filho de

João de Sólis, Conde da Provença, por Dª Magalona a longínqua, que eu vim a encontrar trinta anos depois encantada nas pedras e trepadeiras dos arredores de

Mompilhér, como mais tarde achei a pobre Genoveva, maltratada por Segifredo, numa floresta do Brabante…" (28-9).

Mais adequada tradução do princípio benjaminiano da total disponibilidade do receptor ("Quanto mais aquele que escuta se esquece de si próprio, mais

fundo lhe fica gravado o que ouviu.") será certamente difícil de encontrar. Assim sendo, desvanecem-se as razões para nos surpreendermos com a generosidade do

seu gesto, o da transferência da condução dos eventos narrativos, e da autoridade que simbolicamente se lhe acha associada, do seu domínio interventivo para o do

Matesinho de S. Mateus. Portador de uma cultivada disposição para a escuta, Mateus Queimado sabe entrever a eficácia da voz e dos gestos do seu herói, razão por

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que, ao evocar as pacoetas em um tempo experimentadas e múltiplas vezes actualizadas por Matesinho, deixa ao leitor a ilusão de com ele partilhá-lhas como que em

acto (7). Fazer da nossa leitura um pleno movimento de preensão daqueles fragmentos do percurso existencial de Matesinho é agora o seu objectivo prioritário.

Logra concretizá-lo mediante uma equilibrada e competente gestão do espaço de manobra ao seu dispor, enquadrando com justeza a postura e as motivações daquele

narrador-protagonista, e sublinhando com acerto suas inatas virtualidades de homem-narrativa. É vermos como prepara a transferência da função narrativa para o

Matesinho:

"Dizia-se que correra um cabedal de mundo, lá para a outra borda … E consolava, ouvi-lo contar assucedimentos e pacoetas passadas em praças de guerra:

Évora-Cidade… Valência do Minho… Almeida… Elvas…

Ah! Elvas! Em Elvas é que tinha sido!" (130-1);

ou como enquadra o relevo por aquele dado à experiência redentora que acabara de recordar/reviver (o salvamento do menino Quiatanino, filho de Sua

Incelência o General Rovernador da Praça, José Maria d’Almeida):

"O Matesinho fez uma pausa, emproou-se um pouco, como era seu costume em lances expressivos e solenes. Os seus belos olhos azuis estavam vidrados de

lágrimas. Mas o sorriso fresco e cheio que lhe iluminava os dentes enrugava-lhe a pele dos malares de uma fina ironia, como quem diz: "Coisas que acontecem…

Coisas que se gosta de contar…" Depois, endireitando os fios de prata da marrafa que se lhe rebelavam na testa, lá tirou da fábula a moral que lhe convinha: […]."

(162) (8).

Mas este homem-narrativa manifesta-se também por sinais próprios, autónomos, por conseguinte, relativamente aos comentários de Mateus Queimado, o

narrador de primeiro grau. Ele é, de facto, visível na destreza com que manipula e organiza os eventos de uma experiência passada, para cada um dos segmentos

espácio-temporais em que os congrega procurando as modalidades de textualização que melhor se lhes adequam. E é-o sobretudo nos incontáveis comentários

parentéticos que aproveitam a um apurado sentido de concretização de os eventos narrativamente evocados/re-vividos (9):

(um piscocinho peludo, mais fofo cà penuge dua graça!) — observa, na p. 138, a propósito da bela Consuelo, com quem se cruzara e de quem se aproximara

numa taberna de Badajoz;

"(que perna!) — comenta e avalia, em seguindo o movimento de Consuelo para apanhar o cuchilho de ponta e mola qua guradava na liga, isto no contexto da

refrega em que na mesma taberna se vira envolvido" (143);

ou nos que, conscientemente ou não, propiciam a emergência da situação de comunicação oral em que o seu trabalho narrativo se processa (10):

"(Oh piqueno, sume-te de diente de mim! (Esta garotada o que quer é só chocalheirar!). Vai Brincar co a bichinha pà areia)" — desabafa na p. 137, em vendo

perturbada o ritmo ascendente que emprestara à narração de outra das suas vivências.

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Desviemo-nos, porém, da garotada e sigamos a voz do Matesinho. Pois é por ela que o mundo da sua experiência se actualiza e nos confronta, num regime

de partilha e de solicitude não distante daquela cadeia de solidariedade que une Nemésio a Mateus Queimado e este último a João Grande e ao próprio Matesinho.

Notas:

(2) Atente-se nos dois períodos iniciais deste ensaio, "incipit" de cujas coordenadas o autor tende a não se afastar: "O narrador — por muito familiar que o

nome nos soe — não está de modo algum presente entre nós enquanto influência viva. É algo já distante de nós, que continua ainda a afastar-se." (ibidem: 51).

(3) Tenha-se em conta o quase-aforisma com que Benjamin põe termo a esta sua incursão aos domínios do narrador: "Na figura do narrador o justo encontra-

se consigo próprio" (1995: 71). Assim era porque a mais legítima tradução desta sabedoria se consumava no acto de dar um conselho, constituindo-se este menos

como uma resposta a uma pergunta do que como uma proposta respeitante à continuação de uma história então em processo de desenvolvimento (ibidem: 54).

(4) O conceito de oralidade ou vocalidade fictiva surge em Paul Zumthor, justamente no contexto da descrição e interpretação da presença residual da voz

em acto em práticas narrativas medievas claramente dependentes de uma situação de comunicação marcada pela escrita. Refere Zumthor, como caso exemplar, o

"Chevalier au Lion", de Chrétien de Troyes, no interior do qual podemos surpreender, como que "en abyme", uma vocalidade fictiva (1987: 303).

(5) Se é em O Mistério do Paço do Milhafre que Mateus Queimado se vê instituído como entidade autoral, o fermento que lhe emprestou uma tal vida fora já

por Nemésio preparado em 1940, na conferência proferida em Nice, onde esboça a identidade e examina as obsessões desta sua criatura (1986: 403-15). De resto,

uma breve e não muito explícita nota de 1938 — uma provável dedicatória ao casal Vauthier, redigida nas costas de um recibo respeitante, ao que tudo indica, à sua

cota de sócio da Sociedade de Geografia — desenha já aquele que virá a revelar-se o mais notável e persistente traço individuador de Mateus Queimado: a abertura à

ficcionalização de um espaço e de um tempo islenhos, eficaz sedativo para quem, como ele, convive mal com os constrangimentos impostos por mais ou menos

dilatadas separações. Eis, pois, o conteúdo desta nota, cujo conhecimento ficámos a dever à informação disponibilizada pela nossa colega Margarida Maia Gouveia,

a quem aqui registamos o mais sincero dos agradecimentos:

A Etienne Vauthier e Veva Vauthier, de cujo veleiro ancorado Avenue [Borant] Whitlock se avistava, em 1938, a minha casquinha de noz de Robinson

Queimado (Mateus Queimado, chegado dos Açores, já arrastava em Bruxelas estes papéis fictícios), dando reboque, mantimentos, bière Ménage, o calor de uma

casa e a vizinhança de campos e de sinos ao aventureiro: com desejos de paz (documento do espólio nemesiano, depositado na BNL).

(6) Indicada a edição utilizada, limitar-nos-emos, doravante, ao registo parentético do número de página a que os fragmentos citados disserem respeito.

(7) Quaisquer dúvidas a este respeito facilmente se dissipariam ante o percuciente olhar que, em jeito de intróito, acompanha o movimento de aproximação

de Mateus Queimado ao seu narrador-protagonista:

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O Matesinho de S. Mateus era o maior gavola que a Vila da Praia tinha. Isto diziam certos pescadores, cheios de invejidade da sua fisga certeira. Por mim

(escreve Mateus Queimado) nunca vi peito mais firme, dentes e riso mais abertos, bizarria maior a contar uma vida caipora, sim, mas mais divertida e rasgada que

uma tarde de toiros cheia de fava torrada e de guiseiras. (123).

Da íntima relação entre a matéria que sustenta as narrativas de Matesinho e a competência narrativa de quem as relata nos fala sem rodeios o termo-objecto

da comparação de que aquele narrador-protagosnista é o termo-sujeito: uma tarde de toiros cheia de fava torrada e de guiseiras. Percorre-o, de facto, a energia e a

intensidade expressivas com que Matesinho não raro subjugava os seus ouvintes, em particular os de elevado estatuto social:

"Matesinho — informa-nos ainda Mateus Queimado — era prezado por esses meus-senhores de boa vida, que gostam de desafios e de cracas. Lá boas partes

tinha-as ele, grandessíssimo mariola! Aquilo tirava cantigas nem que soubesse ler por cima; […].

[…] Quando o Matesinho caçava ouvinte de respeito [como Mateus Queimado, poderíamos nós acrescentar] para as suas pacoetas de tropa dava-lhe às vezes

a veneta: corria a casa, à caixa: levava a Serena e aquele quadrado de percalina preta, todo ensebado das consultas. E batia-a no peito, o gavola:

— É a viuvinha do rapaz… Há mais de vinte anos que lhe eu falto! [e dava, então, início ao relato de suas quatro prisões debaixo de armas]." (127-8).

(8) A este mesmo respeito, tenham-se ainda em conta alguns incisos parentéticos da lavra de Mateus Queimado (pp. 147 e 150), a que devemos juntar o

curto comentário dispensado à escusa de Matesinho ao relato da quarta prisão (p. 157).

(9) Observações de semelhante natureza e função surgem ainda nas páginas 131-2, 135, 139, 150, 158, 159, 167 e 168.

(10) No mesmo sentido, vejam-se ainda as páginas 128, 133-4, 144 e 161.

Referências:

Adams, Jon-K 1985 "Pragmatics and Fiction". Amsterdam-Philadelphia: John Benjamins. Benjamin, Walter 1930 "O Narrador. Considerações acerca da obra de Nicolai Leskow". In Seruya, ed. (1995: 51-71). Brooks, Peter 1994 "Psychoanalysis and Storytelling". Oxford-Cambridge, Mass.: Blackwell. Garcia, José Martins 1981 "Temas Nemesianos". Angra do Heroísmo: Secretaria Regional da Educação e Cultura. 1988 "Vitorino Nemésio — à luz do Verbo". Lisboa: Vega. Genette, Gérard 1987 "Seuils". Paris: Éditions du Seuil. Gouveia, Maria Margarida Maia (ed.) 1986 "Vitorino Nemésio. Estudo e Antologia". Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa. Nemésio, Vitorino

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1940 "Le Mythe de Monsieur Queimado". In Gouveia, ed. (1986: 403-15). 1949 "O Mistério do Paço do Milhafre". Lisboa: Livraria Bertrand. Ong, Walter 1987 "Oralidad y escritura". Tecnologías de la palabra. México: Fondo de Cultura Económica. Pires; António Manuel Bettencourt Machado 1983 "Prefácio" a "Corsário das Ilhas", de Vitorino

Nemésio. Lisboa: Livraria Bertrand. Seruya, Teresa (ed.) 1995 "Sobre o Romance no Século xx. A Reflexão dos

Escritores Alemães". Lisboa: Edições Colibri. Weinrich, Harald 1974 "Estructura y Función de los Tiempos en el Lenguaje".

Madrid: Editorial Gredos. Zumthor, Paul 1987 "La lettre et la voix. De la ‘‘littérature" médiévale’.

Paris: Éditions du Seuil

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO VI, Nº 235 - NOVEMBRO - PORTO VELHO, 2008.

VOLUME XXIII – Set/Dez

ISSN 1517-5421

Desenho da Capa: Flávio Dutra

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia – PUC-RGS MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for

Windows” deverão ser encaminhados para e-mail:

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DRAMATIZANDO A FILOSOFIA

Matthew Lipman

DRAMATIZANDO A FILOSOFIA

Matthew Lipman

PRIMEIRA VERSÃO ISSN 1517-5421 lathé biosa

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Universidade Estadual de Montclair Tradução: Leoni Maria Padilha Henning.

Quando eu falo da dramatização da filosofia, eu antevejo um vasto espectro de atividades designadas a mexer com o interesse de populações variadas –

estudantes universitários, crianças da escola fundamental, aqueles que buscam graduar-se nas escolas noturnas como adultos, pessoas aposentadas, e outras – na

disciplina de filosofia.

Estas atividades podem ter a forma das biografias dos filósofos, das autobiografias feitas pelos filósofos, filosofia escrita mais na forma literária do que

argumentativa – como alegoria, parábola, drama, filme, poesia, conto ou romance – histórias populares da filosofia, a representação teatral da filosofia ou a sua

combinação com outras formas de expressão tais como a música, a dança ou a ópera.

Nós podemos distinguir entre a filosofia que já está em forma dramática quando é apresentada pela primeira vez, tal como o notável poema de Parmênides,

ou a República ou Simpósio de Platão, e a filosofia que é originalmente não-dramática no modo ou apresentação, mas adquire a dramatização subseqüentemente. Eu

estou pensando aqui do trabalho de Demócrito sendo relançado em forma poética por Lucrécio, ou no re-lançamento de muitos filósofos notáveis no currículo de

filosofia que tem sido designado às crianças. (Há uma analogia aqui com a distinção entre as artes de uma etapa, como a pintura, e as artes de duas etapas, como a

música. Neste sentido, o trabalho de Parmênides é uma dramatização de etapa única; aquele de Lucrécio é uma dramatização de segunda etapa.)

Nós podemos seguir distinguindo a dramatização da vida dos filósofos da dramatização dos seus trabalhos, e podemos distinguir a dramatização dos seus

trabalhos da dramatização do ensinamento dos seus trabalhos.

A dramatização da vida dos filósofos

Não muitos anos atrás, a Divisão de Mídia da Fundação Nacional para as Humanidades solicitou propostas para projetos que poderiam tornar as disciplinas

das humanidades mais populares, através do desenvolvimento de uma série de programas de televisão. Pareceu-me que poderia ser feita uma série de 13 partes da

vida de Platão, e eu discuti esta idéia muitas vezes com Gregory Vlastos, que tinha, desde o início, expressado um interesse favorável pela Filosofia para Crianças.

Vlastos gostou da idéia das séries, e sugeriu que eu incluísse seguramente, Terence Irwin no meu grupo de trabalho para preparar a proposta para o programa

piloto.(Vlastos sugeriu também que Charles Kahn fosse considerado para o papel de Platão.) Irwin aceitou o meu convite conforme a sugestão, como também o fez

Edward Pols e John Anton. Eu sugeri que nós nos concentrássemos no segundo retorno de Platão da Sicília, e Pols escreveu um longo sumário de um roteiro

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possível. Depois de feito, nosso projeto foi fatalmente rejeitado perdendo para uma proposta para dramatizar a vida de William James. O último projeto, ainda que

consolidado, nunca foi realizado.

Eu mencionei estes esforços fracassados porque eles bem ilustram um tipo particular de dramatização da filosofia: biografia cinematográfica. Dificilmente,

elas teriam sido as primeiras, pois eu posso citar, no mínimo, o fino retrato projetado por Roberto Rossellini no seu filme, Sócrates. Nem seria um extraordinário erro

esperar-se que os produtores de filme algum dia sucederiam ao dramatizar a vida de filósofos como Nietzsche, Kierkgaard, Rousseau, Heidegger, Sartre e

Wittgenstein.

Outra variação da dramatização é a biografia de um filósofo particular, ou uma crônica histórica de uma série de vidas de filósofos. Isto pode abranger,

certamente, do predominantemente factual e analítico ao predominantemente ficcional e especulativo. A Antigüidade foi um tempo fértil para ambas as variações,

incluindo tais trabalhos como A Vida de Plotino de Porfírio, Vidas de Plutarco, Vidas de Filósofos Eminentes de Diógenes Laércio. Em tempos modernos, alguns

filósofos tem tido um número de biografias devotadas a eles, e não é necessário supor-se que estas cessarão de aparecer um dia. Ainda agora, a vida de Giordano

Bruno tem sido reexaminada, e um novo olhar tem sido projetado nas vidas de Dewey, Wittgenstein, Sartre, unamuno, Heidegger e outros.

Eu preciso confessar com algum receio quando eu falo de uma extensão "do factual e analítico ao ficcional e especulativo". Uma abordagem factual de uma

vida não precisa estar desprovida dos elementos dramáticos e uma abordagem analítica de uma filosofia pode estar impregnada de interpretações imaginativas. De

modo oposto, é possível se escrever uma biografia ficcional marcado por fatos pesquisados meticulosamente – eu estou pensando nos trabalhos dos novelistas como

Norman Miller (sobre as esposas dos astronautas ou sobre Marilyn Monroe) ou Truman Capote (em Sangue Frio) como também os trabalhos das histórias

imaginativas como aquelas de Stephen Schama. Mas, mais uma vez novamente, a distinção "one-step/two-step" pode vir a nos assistir aqui: por dramatização "one-

step" eu entendo o fazer crônica de uma vida que é tão vívida que mesmo uma narrativa inexpressiva do biógrafo não pode esconder o drama inerente na vida do

filósofo. Revelar a vida é revelar o drama. A abordagem "two-step" propõe-se a tomar uma história pessoal que é, à primeira vista, inerte e soprar-lhe vida,

animando-a por meio de uma re-narrativa compreensiva que é verdadeira no espírito, se não na letra, da história de vida revelada pela evidência documentária.

Certamente, o relato da vida do filósofo que aparece emocionante aos seus ou suas companheiros/companheiras pode parecer um tanto insípido ao público

leitor acostumado aos romances burlescos. É muito extraordinário por essa razão, quando um trabalho como a História da Filosofia de Durant, com sua oscilação

eloqüente entre as vidas detalhadamente relatadas e as sinópses rápidas das posições filosóficas, invade a lista dos mais vendidos e permanece, ano após ano, para

dar ao público não-filosófico um intrigante relance da disciplina que é um mistério para as outras disciplinas (e para ela mesma também) e de um mundo de idéias

tão diferente do – e ainda tão freqüentemente confundido com – o domínio dos conceitos científicos.

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Agora eu chego na dramatização da vida dos filósofos realizada por seus próprios esforços. Uma forma disto poder ocorrer é através da preservação dos

diários e jornais. Pode-se pensar, neste sentido, dos Jornais Metafísicos de Gabriel Marcel, ou das agendas guardadas por Simone Weil. Outra forma é através da

autobiografia, exemplificada pelas Confissões de Rousseau, Autobiografia de Solomon Maimon, A Sétima Carta de Platão, Autobiografia de Colingwood, e assim

por diante. Algumas vezes estes relatos feitos pelos próprios filósofos podem ser mais ou menos velado tenuamente. A narrativa é relatada na terceira pessoa (Henry

Adams é o exemplo óbvio aqui) ou é suavizada por uma informação enublada ou relembrada. Mas muitos que tem contribuído para a literatura da filosofia tem

escrito suas memórias – Hume,Russell, Tostoy, Jaspers, e uma variedade de outros pode ser adicionada aos nomes daqueles já citados – e tem sido considerados

muito acurados neste processo. Em contraste, temos encontrado muitos filósofos que fazem ficção de suas próprias vidas, como Bernard Groethysen que ao lembrar

sua própria infância, o faz, como se estivesse narrando a infância de Kierkegaard. Ainda, como eu disse antes, a autobiografia ficcional pode meramente exibir o

drama que já se encontrava na vida, mais do que então adicionar a ela artificialmente, como o chantily decorando o bolo. Em tudo isso pode-se incluir O Último

Puritano de Santayana e o Diário de um Sedutor de Kierkgaard.

Além da ficção da vida dos filósofos que realmente viveram, pode-se ao menos fazer referência àquelas narrativas que objetivam a apresentação (mais do

que a re-presentação) da vida dos filósofos ficcionais. Os Caminhos da Liberdade de Sartre me vem em mente, com seu herói ficcional, Mathieu, ou a série de Lanny

Budd de Somerset Maugham, ou talvez, Jude, o Obscuro de Hardy e Guerra e Paz de Tolstoy. Nem nós devíamos esquecer que vidas presumivelmente ficcionais, no

contexto da roman à clé, podem ser substitutos da vida das pessoas reais – pense em Point Courterpoint de Aldous Huxley, ou To the Lighthouse de Virgínia Woof,

com seu esboço irônico do seu pai, o filósofo Leslie Stephen.

Outra maneira pela qual a vida dos filósofos possa ser dramatizada é através de suas correspondências. Eu já mencionei a Sétima Carta de Platão, que

considero genuína, mas como apreciar as luzes refletidas na vida de Diderot através de suas cartas Cartas para Sophue Vollant? Ou sobre a vida de Leibniz através

de suas cartas a vários correspondentes, incluindo Spinoza e Descartes? Ou a compreensão que nós podemos ganhar sobre a vida de mentes como William e Henry

James através de suas correspondências entre si?

Há, certamente, um limite de até onde podemos ir para polir o carisma da filosofia através da dramatização da vida daqueles autores que tem produzido

trabalhos filosóficos. Existem muitas objeções para a simples suposição de que pode-se traçar conexões importantes e significativas entre as condições da

criatividade filosófica e os produtos de tal criatividade. Mas nós somente tocamos na superfície quando se explora a relação entre a arte do produtor e a

inteligibilidade do produto, de maneira que nós não estamos em posição para insistir que um deles seja irrelevante ao outro ou que não possa iluminar o outro.

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Dramatização dos materiais filosóficos

Volto-me agora para o redesign dos textos filosóficos, como este é feito com o objetivo de torná-los mais dramáticos, e logo mais interessantes a cada vez

maiores audiências. Eu gostaria também de considerar os trabalhos originais em filosofia, cujo design é mais literário ou dramático do que normalmente é

encontrado nas exposições estritamente escritas da tradição filosófica.

Deixe-nos considerar a última questão primeiro. Ela levanta, certamente, algumas intrigantes questões de estética: existem formas puras de arte, como

argumentou Lessing – pintura é puramente espacial e música puramente temporal – ou são gêneros amalgamados capazes de tanta autenticidade como os gêneros

isolados? O trabalho de Lucrécio, digo, poesia disfarçada de filosofia, filosofia disfarçada de poesia, ou nenhum caso de disfarce, absolutamente, mas uma autêntica

mistura das duas? Existe uma rivalidade entre filosofia e poesia, que decisivamente as previne de cooperarem na mesma ventura artística? Estão aqueles professores

de literatura corretos ao afirmar que a filosofia é necessariamente deficiente de um ponto de vista literário, e estão aqueles professores de filosofia corretos ao

afirmar que a literatura (por exemplo, novelas, drama, poesia) é necessariamente deficiente de um ponto de vista filosófico? A parada de tais questões ameaça

evoluir, portanto eu colocarei um ponto final nisto aqui, e considerarei alguns dos modelos que expressam uma perspectiva filosófica ou argumento através dos

meios usualmente reservados às articulações não-filosóficas. Eu direi somente que, em minha opinião, a filosofia pode ser legitimamente expressada através de

modalidades não-filosóficas quando tais expressões triunfam em tornar evidentes certas relações que teriam sido negligenciadas, de outra forma, exatamente como as

figuras de linguagem, como as metáforas tem uma autenticidade expositiva e não meramente decorativa quando elas chamam a nossa atenção para relações sutis e

recônditas que, de outra forma, nós poderíamos não percebê-las completamente. Assim, quando nós emprestamos termos derivados de outros modos de percepção

para descrevermos cores como quentes ou frias, suaves ou deliciosas, nós estamos capazes de trazer à tona os aspectos daquelas cores que, de outra forma, não

teriam sido notados; assim Platão, usando mitos, pode ter mostrado aspectos de sua filosofia que, de outra maneira, teria chamado muito menos a nossa atenção.

Eu não tomo Homero como um filósofo que tenta expressar suas idéias filosóficas através da poesia ou como um poeta tentando dar aos seus versos épicos

algum lastro filosófico. Eu o vejo mais como aquele que oferece uma perspectiva imparcial seu a qual a filosofia futura poderia não ter desenvolvimento. Os pré-

Socráticos, por outro lado, cultivaram uma espécie de minimalismo filosófico, no qual eles procuravam sugerir vistas globais ou cósmicas da forma mais concisa e

mais eficaz de aforismas. Em contraste, as alegorias, tal como Ésopo, oferecem meramente um bocado de mensagem, um pouco de sabedoria proverbial servindo

como arremate precedido de uma estória ao invés de um sermão.

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O que Platão tenta capturar e preservar, ao menos em seus trabalhos iniciais, é o espírito de investigação dialógica que muito freqüentemente torna-se a

própria filosofia. Os dramas intelectuais de Platão não são casos de filosofia em roupagem de teatro, mas esforços para representar, mais ou menos fidedignamente, o

contexto social que subjaz no conflito das perspectivas filosóficas e na articulação das metodologias filosóficas.

No Platão tardio, como em Aristóteles, a tradição acadêmica tem seu ponto de origem. Diálogo é convertido em monólogo, discussão em leitura, narração

em exposição, investigação em argumento. Do ponto de vista do estudioso, este é um enorme passo adiante; do ponto de vista do público em geral, ele meramente

representa alienação esmorecendo-se em aparente irrelevância. O problema agora não é transformar as duas perspectivas em uma, mas localizá-las numa ordem que

seja possível, por uma série de gradações de perspectivas, para mostrar sua continuidade de uma com outra.

A forma de diálogo tem sido continuamente empregada pelos filósofos que buscam retratar as idéias num ambiente que sugere uma relação psicológica tanto

quanto literária. E se algum dramaturgo Grego, como Aristófanes, que caricaturou a filosofia e seus proponentes, como em As Nuvens, outros, como Eurípides em

sua peça Ifigênia, incorporaram intercâmbios filosóficos em textura dramática de seu diálogo.

Entre os filósofos desde a Antiguidade que fizeram uso da forma do diálogo, pode-se especialmente citar Agostinho, Leibniz, Berkeley, Diderot, Fontanelle

e Santayana, ainda que destes, os diálogos criados não para os propósitos de exibir a sua originalidade filosófica mas para promover ou comerciar a filosofia

estabelecida mais efetivamente, pode-se citar como típicos os diálogos de Fontanele.

A apresentação da filosofia à guisa da poesia, praticada por filósofos, é raramente encontrada. Eu já mencionei Parmênides como um exemplo, para se

começar, de uma filosofia que é poética, e Lucrécio como um exemplo de conversão de uma filosofia que não é poética para uma filosofia que é. Por outro lado, a

apresentação da filosofia à guisa da poesia como a praticada pelos poetas é tão prevalecente que é quase mais uma regra do que uma exceção. Pode-se citar figuras

altaneiras como Dante, Shakespeare e Goethe ou pode-se simplesmente listar os poetas de língua Inglesa do Século XIX e XX como Wordsworth, Blake, Dickinson,

Hardy, Yeats e Wallace Stevens, para ver como é ubíqua esta prática e como o pensamento filosófico é freqüentemente uma parte do pensamento poético.

A tradição aforística procedente dos pré-Socráticos também quase não sobreviveu. Poucos filósofos continuam a escrever em aforismos – Wittgenstein é

exceção, e existe pouco deixado à tradição literária da expressão aforística. (Provérbios, em contraste, continuam sendo produzidos em quantidade, mas eles são mais

amplamente, o produto de uma cultura do que dos escritores individuais).

Em minha opinião, os gêneros que se prestam mais prontamente para a apresentação das idéias filosóficas através de modo não-expositivo e não-

argumentativo são a poesia e a ficção. Ambos concentram, como a filosofia, sobre a dimensão puramente lingüística, em contraste ao filme, televisão, drama e ópera,

que ao adicionar as dimensões visuais e auditivas, mais adiante, nos distrai dos significados puramente lingüísticos. Assim o trabalho pelo teatro por tom Stoppard é

pleno de idéias filosóficas, mas suas peças triunfam mais em mostrar os produtos da reflexão do que de promover a reflexão mesma. Por outro lado, poderia ser

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difícil encontrar na literatura da filosofia acadêmica uma tão forte confrontação intelectual do que a parte do Grande Inquisitor de Os Irmãos Karamazov. De fato,

este é um caso paradigmático, contra o qual nós podemos testar os outros, no qual a qualidade da dramatização é tão soberba como a qualidade dos conteúdos

filosóficos sendo dramatizado. Este é o critério que Platão empenha-se em satisfazer, ainda que ele nem sempre triunfe nisto.

Um dos problemas naturais para a dramatização da filosofia é que o autor pode muito prontamente errar no exagero da dramatização. Fazendo o texto

minimamente triste, a atenção do leitor se desvia das idéias filosóficas e embebeda-se por aqueles aspectos do conteúdo que são efetivamente atrativos.

Conseqüentemente as qualidades literárias tem que ser apropriadamente sutis para não bloquear a dimensão filosófica. Nesse sentido, as comédia comuns de

costumes pode fornecer um ambiente mais adequado para a interação filosófica do que poderia fazê-lo uma forma de dramatização mais luxuosa, na qual uma

atmosfera pesada poderia proporcionar tão somente um pensamento superficial.

Para o bem ou para o mal, esta é a fórmula que tem sido seguida na composição das novelas que compõem o currículo da Filosofia para Crianças. Os

enredos, tais como são, são quase de importância insignificante quando comparadas com a qualidade de reflexão comprometida pelas personagens ficcionais, pois

num sentido é esta qualidade que é a verdadeira protagonista de cada uma das novelas. (Em contraste, o que Henry James evidentemente busca captar, naquelas

conversações rarefeitas que estão espalhadas nas novelas, é mais o fluxo e o refluxo da consciência que acompanha o pensamento filosófico do que aquele

pensamento, ele mesmo).

Espalhadas nas páginas das novelas da Filosofia para Crianças, em vez disso, são referências aos conceitos que estão contidos no repertório da tradição

filosófica: verdade, justiça, amizade, realidade e similares. Ao invés, estuda-se estas idéias no contexto próximo às próprias experiências da juventude. Liberto das

suas amarrações a Aristóteles, Sto Tomás e Kant, estas idéias deslizam levemente na superfície das narrativas. Os estudantes estão livres para apanhá-las e jogar com

elas, sem precisar de possuir o aparato acadêmico necessário para entendê-las no contexto exato de seu surgimento histórico. Nesse sentido, as idéias filosóficas são

para as crianças os mais apelativos e indestrutíveis dos brinquedos cognitivos, sem mencionarmos, como a retribuição que as crianças tem destas experiências possa

significar, em sua busca pelo geral, pelo valoroso e pelo ideal.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO VI, Nº 236 - DEZEMBRO - PORTO VELHO, 2008.

VOLUME XXIII – Set/Dez

ISSN 1517-5421

Desenho da Capa: Flávio Dutra

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia – PUC-RGS MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for

Windows” deverão ser encaminhados para e-mail:

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CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

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NEM CÉU NEM INFERNO

Bruno Latour

PRIMEIRA VERSÃO ISSN 1517-5421 lathé biosa

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ISSN 1517 - 5421 25

NEM CÉU NEM INFERNO Bruno Latour

Folha de São Paulo, Caderno Mais!, Domingo, 28/03/1999

Há séculos que um mito fundador organiza as relações entre os ocidentais e a política. Trata-se do mito da caverna, de Platão, que todo estudante

aprende, seja na escola, seja na universidade. A narrativa, que faz do Sócrates da "República" o inventor do cinema de Hollywood nome próprio que de resto

designa, não nos esqueçamos, a "bosque de azevinhos" dos povos americanos!, já foi recontada diversas vezes: prisioneiros das aparências, acorrentados aos bancos

de um anfiteatro, sem possibilidade de desviar a visão, os "clientes" olham para uma tela em que está a projeção de formas cuja origem eles não vêem e que tomam,

portanto, pela realidade.

Só o filósofo, bem-sucedido em romper seus laços, se subtrai à contemplação dessa "câmara obscura" para ir ver no local técnico a verdadeira

origem dessa produção espetacular. Ele passa da aparência à realidade e compreende que seus infelizes compatriotas permanecerão para sempre prisioneiros das

aparências. Quando retorna, após ter conhecido a claridade do Sol, e explica a eles sua existência do lado de fora da sala de cinema, um mundo de verdade, os

prisioneiros riem-se dele e o condenam à morte como um profeta da desgraça, como um outro Cristo.

Tem-se frequentemente criticado esse mito devido a seu idealismo. As pessoas se riem de Sócrates e de Platão devido à confiança ilimitada que

depositavam na busca das idéias, modelos de todas as sombras projetadas. Desprezou-se o engano pelas aparências que o mito implicava. Ao platonismo, pretendeu-

se responder com um saudável materialismo. Contra o gosto exagerado pelas essências, pretendeu-se, à maneira de Nietzsche, contentar-se com as aparências.

Ora, ao criticar Platão por seu apelo a uma transcendência inútil, age-se como se ele tivesse descrito com propriedade o mundo inferior no qual

estaríamos imersos. Se é preciso criticar o mito, não é por seu idealismo, mas, ao contrário, por sua total inverossimilhança quanto à descrição que faz do "mundo

inferior".

Para começar, inverossimilhança sociológica. Como imaginar que o mundo social possa ser composto de indivíduos isolados, incapazes de se ver, de

se tocar, de falar entre si, de se deslocar e no qual cada um está acorrentado a seu lugar, impossibilitado de verificar por si mesmo aquilo de que são feitas as

aparências que se projetam diante dele?Mesmos os adolescentes tornados amorfos diante da televisão aquilo que os norte-americanos chamam "couch potato" são

mais ativos do que isso. Um grupo de seres humanos fechado em uma caverna escura iria se falar, se tocar, discutir, ferir-se, apalpar a tela e compreender o ardil em

menos de um minuto. "É isso, estamos no cinema; e se nos acomodarmos de novo confortavelmente em nossas poltronas para aproveitar o filme, será

voluntariamente, a fim de desfrutar o jogo das aparências, e não porque ignoremos a existência de um mundo exterior, do outro lado da tela".

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Isso que o filósofo pretende fazer passar por uma narração tão trágica quanto a Paixão, o simples bom senso em um instante despacha. Toda a beleza

do mito, toda a tormentosa narrativa da fratura em relação às aparências, da escalada em direção ao céu das idéias, de queda heróica e morte, depende inteira e

unicamente da inverossimilhança sociológica em que é preciso manter esse pobre povo. Esse não pode ser salvo por um filósofo-Cristo a um preço menor do que

permanecer nas trevas, fixo, prisioneiro, atomizado, mantido em um estado de estupidez e abjeção de que nenhuma vida social (tanto animal como humana) dá idéia.

Dito de outra forma, sem uma concepção sociológica da vida em comum particularmente inepta não existe contraste possível entre o filósofo santo e profeta e o

homem comum.Imagine um Sócrates que voltasse à Terra e fosse interromper uma sessão do "Titanic", explicando que aquilo é apenas aparência vã, não mais

espessa do que a imagem sobre a tela. Ele seria enxotado a tapas, é bem verdade, por ter estragado o espetáculo. Ele se vangloriaria, acreditando que as pessoas lhe

bateram porque viera denunciar a falsidade das ilusões, para nos fazer ascender à realidade plena e inteira. Falando agora com mais crueza: o platonismo não

funciona a não ser que mergulhe as pessoas comuns em uma abjeção sem par. Mas quem teria encarcerado o povo na caverna? Platão. Ele não poderia salvá-los sem

antes tê-los ele mesmo aprisionado... É tempo de terminar com essa duplicidade que passa por mais alta moralidade.

Platão não peca por idealismo, mas por sociologismo, por "abjetismo", poderíamos dizer (coisa engraçada: a maioria dos sociólogos o seguiram

nessa visão pouco verossímil do mundo social). Por que, diríamos, imaginar um mundo social tão pouco realista? Porque permite a outra operação: a verdadeira

inverossimilhança, a que explica a potência do mito.Quando o filósofo ascende ao céu das idéias, ele o faz só, sem levar consigo nenhum elemento do mundo social

cruel e corrompido, e se chega à realidade plena, isso se deve a uma conversão radical, a um abandono de todos seus antigos laços. É porque o infeliz povo

permanece absolutamente alienado de todo acesso à realidade que o filósofo, quando ascende a ela, está totalmente desligado do povo, absolutamente virgem de toda

contaminação pelo social!

A epistemologia não tem sentido a menos que antes se imagine uma sociologia. A idéia inverossímil de que seria possível chegar à realidade por uma espécie de

conversão radical que nos arrancasse do social não é nem sequer pensável se não se tiver antes a idéia de um social infernal. Todo o debate atual sobre a "guerra das

ciências", sobre os perigos do pós-modernismo, sobre o que se chama o "caso Sokal", depende de um arranjo prévio entre sociólogos e epistemólogos para que todos

reativem o mito da caverna: de um lado, o inferno social e, de outro, a realidade plena e inteira.

Entre ambos, uma conversão na partida e outra na volta: esquece-se sempre que o filósofo, tornado nesse ínterim um cientista, torna-se capaz de

passar sem grande problema do inferno da caverna ao céu das idéias e deste retornar para pôr ordem no inferno social, graças aos conhecimentos que obteve na viva

claridade do sol.Para registro: nenhum cientista atual é condenado à morte quando vai de um mundo a outro: se é que se converte, isso não é observado e ele não

parece com isso sofrer! Se ele pode, na volta, ditar as regras aos escravos prisioneiros das aparências, isso se deve em parte a estes tomarem as sombras por realidade

e, em parte, porque ele, e ele apenas, dispõe das leis naturais que não vêm contaminadas por qualquer marca social. Sem o absurdo da sociologia, não é possível

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nenhum sonho de grandeza da epistemologia. O direito do filósofo-cientista de ditar suas leis ao mundo social não é possível a menos que ele tenha tido acesso ao

céu das idéias sem nenhuma ajuda desse mesmo mundo social.É mesmo preciso lembrar disso, depois de quase 25 anos de "science studies", isto é, da descrição

meticulosa da atividade científica? A descrição do cientista em contato com a realidade plena e inteira é tão pouco verossímil quanto a imagem de um mundo social

assimilado ao inferno da caverna. Sem instrumento, sem colega, sem artigo, sem corpo, sem realidades intermediárias, sem mediação, nenhum cientista seria capaz

de ascender a qualquer realidade verificada e durável.

Se os cientistas têm horror ao mundo social, a ponto de dele quererem se destacar para ascender ao mundo real, isso se deve unicamente a essa idéia

bizarra do social a eles dada pelo mito platônico e que os leva a crer que seria necessário se desligar do social para começar a pensar verdadeiramente. É inútil

debater para saber se se deve dar ou, pelo contrário, recusar uma "explicação social" da atividade científica. A questão se revelaria novamente em crer,

primeiramente, na sociologia da caverna e, em segundo lugar, na epistemologia da conversão fora da caverna e, em terceiro lugar, na tentativa de explicar a segunda

a partir da primeira.

Tentativa fadada ao paradoxo, pois é tornada voluntariamente impossível pelo trabalho de Platão e de seus êmulos. Diante de todas as discussões

vãs, não existe senão uma forma de sair: de forma alguma penetrar na caverna. Sim, é tempo de os ocidentais, enfim adultos, saírem das cavernas e proclamarem

diante de todos esses debates entre sociólogos e epistemólogos: "Mas, enfim, senhoras e senhores, não estamos mais na Idade das Cavernas e outros objetivos

importantes nos aguardam a partir de agora!".

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VITRINE

SUGESTÃO DE LEITURA

A VOZ DO PASSADO: HISTÓRIA ORAL

PAUL THOMPSON Paz e Terra

RESUMO: A história oral não é necessariamente um instrumento de mudança; isso depende do espírito com que seja utilizada. Não obstante, a história oral pode certamente ser um meio de transformar tanto o conteúdo quanto a finalidade da lingüística e da história. Pode ser utilizada para alterar o enfoque da própria história e revelar novos campos de investigação, pode derrubar barreiras que existam entre professores e alunos, entre gerações, entre instituições educacionais, e pode devolver às pessoas que fizeram e vivenciaram a história um lugar fundamental, mediante suas próprias palavras. SUMÁRIO: História e Comunidade; Historiadores e história oral; A contribuição da história oral; Evidência; A memória e o eu; Projetos; A entrevista; Armazenamento e catalogação; Interpretação: a construção da história. Áreas de interesse: Letras, História, Lingüística. Palavras-chave: memória, oralidade, história oral.