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Por que sou liberal, ou o discurso que quase não foi pronunciado1 Paulo Kramer Membro do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa”, da UFJF. Doutor em Ciência Política pelo IUPERJ – Rio de Janeiro. Professor de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB). Analista da Kramer & Ornelas – Consultoria. [email protected] NOTA EXPLICATIVA – Este artigo teve origem no discurso de patrono que eu havia preparado para a cerimônia de colação de grau da turma "Max Weber" de bacharelandos em Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), realizada no dia 31 de janeiro último. Assim que tomei meu lugar à mesa da solenidade, porém, percebi que, da forma como o cerimonial a organizara, eu teria tempo apenas para selecionar umas poucas frases e dirigi-las apressadamente aos meus ex- alunos, o que acabei fazendo. Saí do evento pensando que alguém mais poderia se interessar pelo que eu tinha a dizer e não disse (um ou outro leitor do Congresso em Foco, por exemplo). Dedico o presente ensaio a Antônio Paim, José Osvaldo de Meira Penna e Ricardo Velez Rodríguez – e também à memória de Antônio Carlos Pojo do Rego (1948-2007). Acredito que o convite com que esta turma de ex-alunos, agora graduandos em Ciência Política, me honrou, pedindo que lhes servisse de patrono, não poderia traduzir tão-somente uma homenagem às minhas parcas luzes ou aos meus modestos talentos didáticos. Prefiro pensar neste gesto generoso de vocês como um sinal de reconhecimento ao entusiasmo e 1 Texto inicialmente publicado in: http://congressoemfoco.ig.com.br/DetArticulistas.aspx?colunista=8&articulista=339

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Por que sou liberal, ou o discurso que

quase não foi pronunciado1

Paulo Kramer Membro do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de

Sousa”, da UFJF.

Doutor em Ciência Política pelo IUPERJ – Rio de Janeiro.

Professor de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB).

Analista da Kramer & Ornelas – Consultoria.

[email protected]

NOTA EXPLICATIVA – Este artigo teve origem no discurso de patrono que eu havia preparado para a cerimônia de colação de grau da turma "Max Weber" de bacharelandos em Ciência Política

da Universidade de Brasília (UnB), realizada no dia 31 de janeiro último. Assim que tomei meu lugar à mesa da solenidade, porém, percebi que, da forma como o cerimonial a organizara, eu teria

tempo apenas para selecionar umas poucas frases e dirigi-las apressadamente aos meus ex-alunos, o que acabei fazendo. Saí do evento pensando que alguém mais poderia se interessar pelo

que eu tinha a dizer e não disse (um ou outro leitor do Congresso em Foco, por exemplo).

Dedico o presente ensaio a Antônio Paim, José Osvaldo de Meira Penna e Ricardo Velez

Rodríguez – e também à memória de Antônio Carlos Pojo do Rego (1948-2007).

Acredito que o convite com que esta turma de ex-alunos, agora graduandos em Ciência

Política, me honrou, pedindo que lhes servisse de patrono, não poderia traduzir tão-somente uma

homenagem às minhas parcas luzes ou aos meus modestos talentos didáticos.

Prefiro pensar neste gesto generoso de vocês como um sinal de reconhecimento ao entusiasmo e

1 Texto inicialmente publicado in:

http://congressoemfoco.ig.com.br/DetArticulistas.aspx?colunista=8&articulista=339

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à vibração que porventura lhes tenha transmitido um dia ao abordar um tema que me é

especialmente caro, qual seja o da liberdade e o liberalismo. Considero-o um dos maiores legados

da história das idéias e instituições políticas e sociais aos homens e mulheres de boa vontade do

passado, do presente e, sobretudo, do futuro, pois que reúne as melhores dimensões da moral, do

intelecto, da imaginação, da vida cívica e política – numa palavra da existência humana como um

todo.

Confesso a vocês que não queria, nesta noite de alegria descontraída, depois de tantos obstáculos

transpostos e deveres cumpridos, torturá-los, mais uma e derradeira vez, ressuscitando o pesadelo

das minhas aulas de Teoria Política Moderna, mais conhecida – e com razão – pelas iniciais TPM...

Vocês, porém, estão familiarizados com este professor há tempo suficiente para saber que jamais

me furto ao que considero um bom combate.

Sem dúvida alguma, já há algum tempo, os termos liberal e liberalismo são muito mais bem-

recebidos lá fora, no mundo real, do que aqui dentro dos jardins da academia. Nas universidades

brasileiras, a mera articulação daquelas duas palavrinhas costuma ainda provocar dois efeitos.

De um lado, no mínimo 90% dos interlocutores – alunos ou colegas – sentem ganas de sair

correndo à procura da igreja mais próxima para se banharem em água benta, como quem acaba

de ver e ouvir Satanás ao vivo!

(Por sinal, não é de hoje que vocábulos como neoliberal e neoliberalismo freqüentam

assiduamente as polêmicas intelectuais pátrias, quase nunca como conceitos descritivos ou

analíticos, e sim como palavras de abuso, termos ofensivos, desaforo lançado aos piores inimigos

do povo e da classe trabalhadora...)

De outro lado, aqueles 10% que se dispõem a prosseguir dialogando conosco são assaltados pela

lembrança, algo difusa, de alguns nomes centrais do pensamento político do século XVII aos

nossos dias, tais como: Baruch Spinoza (1); John Locke (2); David Hume (3); Montesquieu (4);

Adam Smith (5); Immanuel Kant (6); os federalistas americanos Alexander Hamilton e James

Madison (7); Wilhelm von Humboldt (8); Benjamin Constant de Rebecque (9); John Stuart Mill (10);

Alexis de Tocqueville (11); John Emerich Edward Dalberg-Acton (12), ou, para os íntimos, lord (“o

poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente”) Acton; Max Weber (13);

John Maynard Keynes (14); José Ortega Y Gasset (15); Ludwig von Mises (16); Friedrich Hayek

(17); Raymond Aron (18); Isaiah Berlin (19); Milton Friedman (20) – e, para não dizerem que não

falei de nuestra América nem de Pindorama: Domingo Sarmiento (21); Octávio Paz (22); Aureliano

Cândido Tavares Bastos (23); o estadista e abolicionista Joaquim Nabuco (24); Armando de Salles

Oliveira (25); os saudosos José Guilherme Merquior e Roberto Campos (26) – de quem aprendi

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epigramas deliciosos como: "No socialismo, as intenções são melhores que os resultados; no

capitalismo, os resultados são melhores que as intenções"; e os felizmente vivos e salubérrimos –

Deus os conserve assim! – Antônio Paim (27), Celso Lafer (28), J. O. de Meira Penna, Ricardo

Vélez Rodríguez e Eduardo Gianetti da Fonseca(29).

Aí está uma plêiade tão numerosa quanto variegada, não fosse o liberalismo uma doutrina

enaltecedora da diversidade humana, do respeito pelas diferenças e opiniões alheias, da

multiciplicidade de projetos e finalidades de vida.

Daí por que peço licença para tecer algumas considerações que esclareçam e justifiquem a

relevância do valor da liberdade e da idéia liberal como aquilo que dá sentido a tudo o que penso,

escrevo e, principalmente, leciono.

Meus amigos e minhas amigas,

Na verdade, as raízes do liberalismo remontam a épocas muito mais longínquas que aquelas

habitadas pelos pensadores que acabo de enumerar.

É só pensar, por exemplo, em Santo Tomás de Aquino (1225 -1274), cujas obras, coroadas pela

Suma Teológica, depois das Sagradas Escrituras propriamente ditas, são a principal fonte de

autoridade intelectual da Igreja Católica, e que não apenas ensinava que a origem do poder

soberano era Deus, mas que os governantes dEle recebiam esse poder por meio do povo, pelo

que não deveriam oprimir ou servir-se deste mesmo povo, mas sim servi-lo com justiça, seriedade

e benevolência(30). Tal concepção de governo limitado, que só iria reaparecer vários séculos

depois, com os contratualistas, valeu a Santo Tomás epíteto de “o primeiro liberal” (“the first whig”),

cunhado pelo escritor católico americano Michael Novak (30).

Adentremos ainda mais o território do passado, até a época de Santo Agostinho (354 - 430). Sua

famosa obra sobre o livre-arbítrio, produzida no calor da polêmica que travou contra os

maniqueístas, assinalava que a Razão, dádiva de Deus às criaturas humanas, é propriedade

espiritual que permite a cada um distinguir o bem do mal, o que implica a responsabilidade da

pessoa pelas conseqüências das suas opções, ações ou omissões. Em Agostinho, portanto, a

razão era a sede da liberdade.

Recordar Santo Agostinho, bispo de Hipona (norte da África), doutor da Igreja e expoente máximo

da patrística é recordar, também, sua dívida para com o pensamento platônico – o mesmo Platão

que, filosofando pela boca de seu mestre Sócrates, na Atenas do quarto século antes de Cristo,

evocou a aventura da alma que escolhe o seu destino.

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Agora que recuamos até a Antigüidade, vale a pena recordar a figura de um dos maiores

classicistas do século passado, Leo Strauss(31). Nascido na Alemanha (em 1899), abandonou o

país perseguido pelo anti-semitismo nazi, morou na Inglaterra, onde veio à luz seu importante

estudo sobre o jusnaturalismo de Thomas Hobbes, até se instalar definitivamente nos Estados

Unidos, onde lecionou filosofia política clássica na Nova Escola de Pesquisa Social, de Nova York,

e mais tarde, durante muitos anos,quase até sua morte (em 1973), na Universidade de Chicago .

Em sua coletânea sobre o liberalismo antigo e o liberalismo moderno, útil introdução à rica e

exigente meditação straussiana – jamais, infelizmente, traduzida para o português –, ele nos revela

o abismo que separa o significado de liberal, liberdade e liberalismo, na Antigüidade greco-romana,

dos sentidos que revestem estes vocábulos na atualidade. Paralelamente, Strauss nos aponta os

poucos tênues e preciosos elos que ainda unem eras entre si tão distantes.

Assim, para um cidadão de Atenas no Século de Péricles, época em que viveu Sócrates, o termo

liberalidade – de uso bem mais corrente que liberdade – significava a virtude do homem livre, isto

é, não-escravo, alguém abastado o suficiente para ser – na certeira expressão de Max Weber (32)

– “economicamente dispensável” e estar socialmente disponível para dedicar o melhor do seu

tempo, da sua energia e do seu talento à discussão e à deliberação políticas, participando

diretamente do governo da polis, a cidade-Estado, em prol dos governados, de vez que Platão e

o mais brilhante ex-aluno da sua Academia, Aristóteles, consideravam os governos que funcionam

exclusivamente em proveito dos governantes como formas patológicas, ou degeneradas, de

convivência política.

Naquele contexto, as chamadas artes liberais, em contraposição às artes mecânicas, baseadas

estas últimas no trabalho manual, compendiavam os ensinamentos que o tal cidadão deveria

absorver, quando criança e rapazola, para aprender a ser um homem-livre e como tal permanecer.

Na lição de Leo Strauss, o liberalismo antigo se identifica, portanto, com a busca, ou melhor, o

cultivo da excelência humana, mobilizando as qualidades mais nobres e elevadas na natureza do

homem – nobreza e elevação cujo ápice corresponderia à atividade inquiridora do filósofo, alguém

que põe em questão as crenças do seu tempo e os seus próprios conhecimentos com a finalidade

alcançar a contemplação última da Verdade, da Justiça, da Beleza, em suma, do Bem, na sua

forma eterna, porque perfeita.

E o que dizer do liberalismo que Strauss rotulou de moderno?

Este se distingue pela crença de que todos os seres humanos – e não apenas um punhado de

aristocratas abastados e cultivados – nascem com igual direito à liberdade (direito, por

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conseguinte, natural; foi a ele, por exemplo, que se referiu Thomas Jefferson ao redigir a

Declaração de Independência dos Estados Unidos em 1776: direito “à vida, à liberdade e à busca

da felicidade”).

É a liberdade tomada tanto no seu sentido ‘negativo’, ou seja contra invasão de nossa esfera de

individualidade por governantes opressivos, mas também por intrometidos guardiães da opinião

e/ou da moralidade pública -- como, aliás, bem o sabia Stuart Mill -- quanto na sua acepção

‘positiva’ de ser livre para formular e perseguir projetos pessoais e, por meio deles, desenvolver as

respectivas potencialidades, desde, é claro, que isso não comprometa o exercício do mesmo

direito pelos semelhantes (33).

Como nos esclareceu Tocqueville, em sua Democracia na América, o responsável maior pelo

desenvolvimento dessa radical translação semântica, entre liberalismo antigo e aristocrático, de um

lado, e liberalismo moderno e igualitário (ou democrático, conforme preferia o próprio Tocqueville),

de outro, fora o advento do Cristianismo, portador da boa nova de que, em essência, todos somos

irmãos, pois que filhos espirituais do mesmo Pai criador, que é Deus..

Como referi há pouco, Leo Strauss não se limitou a apontar a grande ruptura entre os dois

liberalismos; também observou, com característica sutileza, um laço, igualmente sutil, a ligá-los. E

fê-lo recorrendo à autoridade de ninguém menos que Aristóteles, pensador tão essencial que, na

Idade Média, virou metonímia, pois era conhecido, simplesmente, como O Filósofo; o mesmo

Aristóteles, cujas respostas (acerca, sobretudo, dos fenômenos naturais) foram sem dúvida

ultrapassadas pelo ulterior desenvolvimento científico, mas cujas perguntas (especialmente no

domínio da ética e da teoria do conhecimento) continuam a nos orientar e provocar até hoje.

No seu tratado sobre a política, Aristóteles dissecou o que chamava de regime misto (politéia),

cotejando-o com as formas ditas puras de governo – monarquia (governo de um), aristocracia

(governo de poucos, no sentido de os melhores) e democracia (governo de muitos) –, para

concluir que a sua politéia, por mesclar características desses três tipos, revelava-se o mais

estável e durável dos regimes (34).

Seu arranjo institucional compreendia pequeno grupo de aristocratas traquejados na arte

de governar e selecionados(formalmente mediante sorteios), para exercer funções executivas, por

assembléia popular (corpo legislativo integrado por todos os cidadãos livres, fossem eles ricos ou

pobres, agricultores, mercadores ou artesãos), à qual esta mesma elite deveria prestar contas com

alguma regularidade, e, finalmente, um rei (eleito ou hereditário), no supremo comando do exército.

Segundo Strauss, a concepção da politéia era quase uma prefiguração, em certas linhas

essenciais, das modernas repúblicas, governadas por líderes políticos eleitos com

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responsabilidade perante uma assembléia, composta agora não mais de todo o povo, e sim de

seus representantes, também eleitos, uma vez que a grande maioria dos cidadãos é absorvida

pela cotidiana perseguição dos seus interesses privados (35). O que importa fixar, neste momento,

é que o bom funcionamento do sistema requer que o poder político jamais seja absoluto, e sim

dividido entre diferentes instituições, e sempre limitado pelo consentimento dos governados, os

quais votam periodicamente, a fim de manter seus representantes ou trocá-los por outros.

Esta, aliás, viria a ser a justificativa de Montesquieu para a sua célebre doutrina da

separação de poderes. Nela também se apoiaram os Federalistas americanos, com seus

argumentos a favor de uma república moderna, em contraste com as instáveis democracias diretas

da Antigüidade, sempre ameaçadas pelos perigos polares da anarquia e da tirania -- formas

degeneradas do governo de muitos e do governo de um, respectivamente. O melhor antídoto para

estas imperfeições seria um mecanismo de mútuos controles, em que um poder fosse limitado

pelos demais poderes; os legítimos interesses dos grupos e classes de uma sociedade pluralista

estivessem representados; e os seus conflitos fossem regulados pacificamente no marco geral de

uma Constituição. E olhem que essa Constituição (a dos Estados Unidos) já tem 220 anos!

A propósito, temos aqui um útil referencial para distinguir pensamento político antigo e

moderno. Enquanto o primeiro fazia o bom governo depender da excelência pessoal dos

governantes, o segundo considera mais prudente apostar em instituições e regras que funcionam

normalmente mesmo que os governantes da hora sejam uns pulhas. (Só falta alguém capaz de me

convencer de que é possível que um bando de canalhas fabrique regras e instituições próprias de

um bom governo...)

Meus caros formandos e formandas em Ciência Política!

Este meu último questionamento orienta nossa atenção para uma segunda ponte, hoje em

péssimo estado de conservação, estendida sobre o abismo que separa os dois liberalismos: a

ponte de cultura humanística, alicerçada nos Grandes Livros, patrimônio da nossa Civilização

Ocidental, a meu ver tão injustamente vilipendiada pela contracultura dos anos 60 e 70 e, mais

recentemente, pelo pós-modernismo multiculturalista. (Esse notável humanista disfarçado em

humorista que é Millôr Fernandes, há mais 30 anos nas páginas d’O Pasquim, já reclamava

daqueles que, mergulhando e cabeça na contracultura, não passaram sequer pela Cultura...)

Neste ponto, ainda que me arrisque a ser tomado por uma patética reencarnação do velho

do Restelo camoniano, insisto em dramatizar o perigo para a liberdade e, por conseguinte, para o

liberalismo, representado pelo esquecimento e pela obliteração das já mencionadas artes liberais.

Artes liberais que, repito, ensinavam o cidadão antigo a ser livre e digno da sua liberdade; artes

liberais que foram sistematizadas nas universidades medievais sob o formato de trivium (a trinca

de disciplinas composta de gramática, retórica e dialética) e quadrivium (o quarteto aritmética-

geometria-música-astronomia); arte liberais que, com o passar do tempo, adquiriram perfil mais

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diversificado, passando a identificar-se com o estudo e a meditação sistemáticos dos referidos

Grandes Livros; artes liberais que ainda, hoje designam os títulos de bacharel em artes (bachelor

of arts, B. A.) concedidos pelos colleges americanos; artes liberais que, até começos do século

passado ainda eram consideradas o caminho para a modelagem do intelecto e o amadurecimento

da sensibilidade de quem pretendesse cultivar o espírito da pessoa moralmente autônoma, capaz

de pensar com a própria cabeça e deliciar-se no convívio tolerante e civilizado dos seus

semelhantes; artes liberais que, enfim, cumpriram papel tão crucial na formação da personalidade

de líderes políticos ou espirituais admirados pelo mundo inteiro, a exemplo de sir Winston

Churchill, Charles de Gaulle, Jacques Maritain – (1882 -1973), filósofo católico francês neotomista

(inspirado na filosofia e na teologia de Santo Tomás de Aquino) e um dos mais influentes

formuladores da idéia democrata-cristã, compartilhada por governos do pós-guerra, em países

como Itália, Alemanha e a própria França, que lograram combinar liberdades democráticas,

propriedade privada e ação do Estado na promoção do bem-estar e da coesão sociais, em um

marco de prosperidade sustentada e paz duradoura, até então inédito na história do Velho

Continente – e Karol Woytila, o saudoso, lúcido e valente papa João Paulo II. A este propósito,

nossa falta de tempo me permite pouco mais que retransmitir a vocês a advertência de Strauss

quanto ao sério perigo que corre o liberalismo moderno, em outras palavras, a nossa liberdade no

seio da democracia representativa, em razão do esquecimento e da obliteração das já

mencionadas artes liberais ou disciplinas humanísticas.

Quando isso ocorre, ou seja, quando se ignora ou desconsidera completamente o ideal de

excelência humana legado pelo liberalismo antigo, nada é capaz de impedir o rebaixamento dos

padrões morais e estéticos ao nível da sarjeta; o valor das relações humanas passa a ser medido

pelo preço de mercado; e, sob o império de um utilitarismo cego e de um hedonismo irresponsável,

a razão substantiva da vida é triturada pela razão meramente instrumental daquele novo tipo

humano ao qual Weber - mais uma vez, ele! - apostrofou de especialistas sem alma e sensualistas

sem coração (36).

Estas palavras hão de soar familiares aos meus ex-alunos, conhecedores do conselho de

Tocqueville, no segundo volume da Democracia na América, dirigido ao moderno homo

democraticus, para que este voltasse a cultivar os estudos clássicos (em outras palavras,

retornasse de quando em vez aos Grandes Livros) como contrapeso ao que chamou de tendências

despóticas da democracia – indiferença cívico-política decorrente da obsessão generalizada por

ganhar dinheiro e consumir cada vez mais, a ponto de transformar o povo em presa fácil e servo

voluntário de futuros tiranos e suas melífluas promessas de diligenciar para que cada indivíduo se

concentre de corpo e alma na busca do conforto em troca da abdicação de sua liberdade e

responsabilidade públicas.

Novíssimos bacharéis em Ciência Política,

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Fico triste ao lembrar que muita gente desprezará as considerações que lhes faço,

preferindo engolir a balela de que liberalismo não passa de mistificação ideológica destinada a

justificar a injustiça social, o filisteísmo cultural e o egoísmo amoral. Nada mais falso, como

denunciou Sidney Hook, notável educador e filósofo liberal americano do século passado, neste

breve, porém eloqüente, trecho de suas memórias:

Aqueles cuja lealdade primordial é votada à livre-empresa, como sistema econômico,

jamais morrerão por ela.

Para eles, liberdade em primeiro lugar significa lucro em primeiro lugar; com os olhos fixos nos

ganhos e perdas de curto prazo, chegarão ao ponto de fornecer as competências necessárias e os

meios técnicos eficazes aos regimes totalitários para a destruição das culturas livres.

(Aqui, peço licença para abrir parênteses e recordar o rótulo que, em nossas aulas, eu

atribuía aos empresários que, aqui, na Venezuela, ou em qualquer outro lugar, agem

inconscientemente para esse fim: violinistas de Auschwitz! Voltando a Hook:)

Os que definem a cultura livre não em termos de mercado livre, mas do direito das pessoas de

escolherem por si mesmas [...], estes, sim, serão capazes de assumir compromisso com a defesa

da liberdade até as últimas conseqüências (37).

Ora, meus amigos e minhas amigas! A preferência dos liberais pelo regime econômico da

propriedade privada dos meios de produção radica no temor – para lá de bem fundado

historicamente – de que a estatização concentre todos os tipos de poder nas mãos da burocracia

governamental, e que o fim da competição no mercado e do conflito de interesses entre os setores

público e privado decrete o assoreamento de múltiplas fontes de inovação criadora , transformando

o futuro, na sombria alegoria weberiana – sempre ele, MW! – em uma "jaula de ferro". Espantoso,

aliás, como Weber, não tendo vivido sequer para assistir à plena consolidação do poder soviético,

foi capaz de distinguir as patologias econômicas, políticas e, sobretudo, morais que redundariam

no seu colapso no final do século passado. (38)

Meus jovens companheiros e companheiras de curiosidade e amor pela inteligência,

Creio que, agora, posso finalmente clarificar o que significa ser liberal no Brasil e no

mundo de hoje em dia e por que como liberal me defino.

Ser liberal significa crer na dignidade fundamental de todos os seres humanos, dotados

que foram pelo Criador de racionalidade para fazer suas escolhas e responsabilidade para arcar

com as conseqüências das mesmas.

Sou liberal porque, em todas as minhas interações, em todos os encontros com meus

semelhantes, em todos os momentos da vida, procuro me comportar de acordo com a crença de

que cada pessoa deriva dessa dignidade intrínseca o direito de agir conforme o seu " interesse

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bem compreendido" – mais uma expressão legada por Tocqueville – , o que não exclui, mas

muitas vezes requer, a cooperação em prol de metas comuns e do bem-estar geral, envolvendo

indivíduos com inclinações, histórias de vida, talentos e pontos de vista distintos e, por

conseguinte, complementares.

Sou liberal porque vivi para testemunhar o fracasso das estratégias de desenvolvimento

econômico e social baseadas na planificação central socialista ou comunista, ou então no

neomercantilismo cepalino; e também porque reconheço o liberalismo embutido nas políticas de

combate à miséria e à exclusão propostas por sábios como o indiano Amartya Sen, prêmio Nobel

de economia de 1998, com sua forte ênfase na ampliação das oportunidades para que os pobres

possam exercer o direito de escolha de que sempre foram privados por tradições culturais

opressivas e por governantes despóticos, muitos deles disfarçados sob a máscara hipócrita do

paternalismo populista. Os pais dos pobres são, na verdade, mães dos ricos, como provam os

números da acelerada concentração de renda na Venezuela bolivariana de Hugo Chávez.

Ser liberal significa, e aqui cito Leo Strauss mais uma vez, "dedicação à liberdade, no sentido de

que a liberdade e a dignidade de qualquer um pressupõem liberdade e dignidade para todos" (39).

Sou liberal porque, assim como não temo arrostar maiorias ou consensos unânimes interessadas

em suprimir os direitos das minorias, tampouco receio denunciar certas lideranças sectárias e

intolerantes dessas mesmas minorias sempre que pretendam impor, via coerção simbólica quando

não física, as agendas de sua preferência aos demais segmentos da sociedade.

Sou liberal porque acredito na justiça, e justiça significa premiar cada um de acordo com seu

mérito, sem nenhuma outra consideração (de origem social, de natureza estética ou ideológica, de

credo religiosos, de gênero ou orientação sexual, de procedência étnica ou geográfica, ou ainda –

por último, mas não em último – de coloração da pele).

Sou liberal porque, apesar deste honroso título de patrono, não paternalizo ninguém, preferindo

respeitar e incentivar as pessoas em busca do seu amadurecimento, ou para usar a fórmula desse

argonauta da alma humana que foi Carl Gustav Jung, sua individuação.

Sou liberal por razões semelhantes às que levaram os democratas americanos a

assumirem o rótulo de liberais, entre o final dos anos 50 e o início dos 60 do século XX, quando

deixaram de ser um partido predominantemente conservador do Sul – melhor seria dizer

reacionário, imobilista –, de um racismo quase sempre segregacionista, para abraçar a causa dos

direitos civis dos negros, das mulheres e dos homossexuais.

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Ser liberal é repetir, mas, sobretudo, praticar o famoso aforisma de Voltaire: "Não concordo com

uma só palavra do que dizes, mas lutarei até a morte pelo direito que tens de dizê-las". Liberdade

de expressão é, principalmente, a dos outros e contra nós!

É este, meus amigos e minhas amigas, é este o liberal que me orgulho de ser. E quero de que

aqueles dentre vocês que partilham desse ideal generoso também não tenham receio, muito

menos vergonha, do seu liberalismo. NÃO TENHAM MEDO DE SER LIBERAIS; A

MODERNIZAÇÃO DAS IDÉIAS E INSTITUIÇÕES DO BRASIL, ASSIM COMO A PROSPERIDADE

MATERIAL E O AMADURECIMENTO CULTURAL DO NOSSO POVO DEPENDEM DESTA

CORAGEM!!!

Neste chamado à liberdade com responsabilidade pessoal, termino esta mensagem, desejando à

turma "Max Weber" de formandos em Ciência Política da UnB muitas felicidades e muito sucesso

na vida e na carreira que estão iniciando e presenteando-os com estes versos do Romanceiro da

Inconfidência, de Cecília Meireles:

"Liberdade – essa palavra

que o sonho humano alimenta,

que não há ninguém que explique

e ninguém que não entenda."

Notas e referências:

(1) Spinoza (1632 - 1677), filósofo holandês de origem judia, cuja família abandonara Portugal para fugir às perseguições aos cristãos novos, judeus convertidos à força ao catolicismo. Por seu antidogmatismo e independência de espírito, acabou excomungado pelas autoridades judaicas de Amsterdam. Principais obras: Tratado teológico-político(1670; edição brasileira da Martins Fontes); Ética; Tratado político; e Tratado da correção do intelecto -- os três últimos títulos fazem parte de suas obras póstumas e integram o volume "Espinosa" da coleção OS PENSADORES, S. Paulo: Nova Cultural, 1997, com numerosas edições/reimpressões anteriores e posteriores.

(2) Locke (1632 - 1704), médico e pensador inglês cujo empirismo (nada existe na mente que antes não tenha passado pelos sentidos) foi um dos fundamentos da ciência moderna e da doutrina liberal. Obras principais: Ensaio sobre o entendimento humano (1690, publicado na íntegra no volume "Locke" de OS PENSADORES, São Paulo: Nova Cultural, 1997) e Segundo tratado sobre o governo civil (1689-1690, em edições/impressões anteriores da mesma coleção).

(3) Hume (1711-1776), filósofo e escritor escocês, expoente maior do ceticismo moderno (nas ciências empíricas -- aquelas cujo objeto se situa fora de nossa mente, tais como a física, a química, a biologia e também a política, entre outras -- as relações de causa e efeito não podem ser demonstradas irrefutavelmente, ao contrário do que ocorre nas chamadas ciências formais -- cujo objeto está dentro da nossa mente, a exemplo da lógica e das matemáticas. Assim,as conexões de causa e efeito que aprendemos a traçar na vida cotidiana decorrem, na verdade, do hábito). Teve o conjunto de suas obras colocado no Index dos livros proibidos pela Igreja Católica. Obras principais: Tratado da natureza humana (1739); Investigação sobre os príncípios da moral (1751); Investigação acerca do entendimento humano (publicada na íntegra no volume "Hume" de OS PENSADORES. S. Paulo: Nova Cultural, 1996, juntamente com parte dos seus Ensaios morais, políticos e literários; a coleção completa desses mesmos ensaios acaba de ser reunida,

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em um único volume, pela Topbooks, numa edição co-patrocinada pelo Instituto Liberdade, de Porto Alegre, e o Liberty Fund.

(4) Montesquieu, por extenso Charles-Louis de Secondat, barão de la Brède e de Montesquieu (1689 - 1755), magistrado e escritor francês cuja obra principal é Do espírito das leis (1750), publicada na íntegra, em dois tomos, no volume "Montesquieu" de OS PENSADORES, S. Paulo: Nova Cultural, 1997. Escreveu antes Cartas persas, deliciosa crítica, disfarçada de relato de viagem, aos costumes e à etiqueta do antigo regime absolutista francês, e Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e da sua decadência (1721 e 1734, respectivamente).

(5) Smith (1723 - 1790), moralista escocês e pai da teoria econômica liberal, com sua obra A riqueza das nações (1776), publicada integralmente no volume "A. Smith"da coleção OS ECONOMISTAS, da Abril Cultural (várias reimpressões). Idéia central: não é da benevolência do padeiro, do açougueiro e do cervejeiro que provém o meu jantar, mas sim da complementaridade entre o que eu procuro e eles me ofertam. Outra: a divisão do trabalho gera especialização, que, por sua vez estimula a produtividade, tanto entre os setores econômicos de um mesmo país, como entre as nações; oferta e demanda se encontram no mercado, instituição impessoal que se regula automaticamente como se movida por mão invisível. Professor de Lógica e Filosofia Moral na Universidade de Glasgow, escreveu também A teoria dos sentimentos morais (1759), da qual há edição parcial em espanhol (México, DF: Fondo de Cultura Económica, 1992).

(6) Kant (1724 -1804), filósofo alemão que nasceu e passou toda a vida em Koenigsberg, Prússia -- hoje Kalinigrado, Rússia. Sua reflexão sistemática nos campos da epistemologia (teoria do conhecimento), ética e estética influenciou praticamente todas as escolas de pensamento posteriores, sobretudo na Alemanha. Seu trabalho mais conhecido é A crítica da razão pura (1781; segunda edição de 1787. Nosso conhecimento do mundo é mediado pelo sistema nervoso, constituído de categorias que condicionam esse conhecer, tais como tempo, espaço, casa-efeito; temos acesso aos fenômenos, em outras palavras, manifestações exteriores da realidade, mas nunca à essência dessa realidade, o que Kant chamou de coisa-em-si.), cuja íntegra corresponde ao volume "Kant" de OS PENSADORES. Escreveu, também, entre muitos outros tratados, Crìtica da razão prática (1788); Crítica da capacidade de julgar (1790); e Fundamentos da metafísica dos costumes (1785). A ética preconizada por Kant condiciona a validade de qualquer preceito moral à sua universalizabilidade (perdão, leitores!); trocando em miúdos: só devo fazer aos meus semelhantes o que eu gostaria que eles me fizessem -- como se vê, uma tentativa de fundamentação laica da famosa regra aúrea da reciprocidade, presente desde muitíssimo antes nos ensinamentos das grandes religiões mundiais. Uma boa via de acesso ao pensamento político liberal de Kant é sua A paz perpétua (um projeto filosófico), 1795, com segunda ed., ampliada, em 1796, onde ele prega uma confederação de Estados soberanos como antídoto à guerra; esses Estados deveriam ser republicanos (=não-despóticos): o poder dos governantes limitado pelo consentimento dos governados, expresso mediante mecanismos de representação. Para Kant, as diferenças formais entre os governos (monarquias, aristocracias, democracias) eram menos cruciais que a distinção entre repúblicas e despotismos. O melhor exemplo do que ele queria dizer é dado pelos reinos europeus de hoje em dia (Grã-Bretanha, Países Baixos, Bélgica, Dinamarca, Noruega, Suécia, Espanha), muito mais republicanos que a maioria das democracias do Terceiro Mundo.A tese de Kant é que Estados com sistema representativo em bom funcionamento não fariam guerra uns aos outros, pelo simples fato de que os cidadãos, com voz e voto na política de seus respectivos países, seriam suficientemente racionais para não aceitarem servir como carne de canhão às pretensõles expansionistas de seus governantes; o perigo da guerra residiria, assim, nas relações entre Estados despóticos ou na agressão movida por um despotismo contra um regime republicano. Nesse mesmo trabalho, derivava Kant, de sua ética, a noção de que ninguém tem o direito de fazer dos semelhantes meios, instrumentos, para a consecução dos próprios objetivos (cada pessoa deve ser considerada como um fim em si mesma), razão pela qual não cabia ao Estado interferir nos projetos de vida dos seus súditos, mas tão-somente zelar para que estes não se prejudicassem mutuamente interferindo nos projetos uns dos outros. Daí a pertinência da metáfora do governo como guarda de trânsito, encarregado de evitar desastres e conflitos envolvendo motoristas e pedestres, sem jamais pretender impor-lhes um determinado itinerário; nesta concepção ultraliberal, os deveres do Estado deveriam limitar-se a

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distribuir justiça e punir os recalcitrantes. Veja BOBBIO, Norberto, Direito e Estado no pensamento político de Immanuel Kant (edições brasileiras: UnB e Mandarim/Siciliano). Edição portuguesa da Paz perpétua: Edições 70, 1996.

(7) Os Federalist Papers (ed. bras.: Artigos federalistas, Rio: Nova Fronteira, 1993) foram publicados, sob o pseudônimo Publius, na forma de uma série com 85 artigos por jornais de Nova York, entre 1787 e 1788, sendo seus autores Hamilton (1755 ou 1757 - 1804) -- constituinte americano por NY e depois primeiro secretário do Tesouro americano -- e Madison (1751 - 1836) -- constituinte pela Virgínia, depois secretário de Estado do governo Thomas Jefferson e quarto presidente dos Estados Unidos --, com a colaboração de John Jay (1745 - 1829), diplomata e primeiro presidente da Suprema Corte Americana, defendendo a transição do modelo de confederação (estados constitutivos mantém sua soberania, com moeda e políticas externa e de defesa próprias), adotado pelos Estados Unidos na proclamação de sua independência (1776) para o de federação ( estados conservam ampla margem de autonomia em seus assuntos internos, mas abdicam da soberania em favor do governo da União), consagrado pela Constituição de 1787, finalmente promulgada em 1789, e procurando disso persuadir a legislatura de Nova York, a fim de que seus membros aceitassem (e ratificassem) o projeto constitucional aprovado pela Convenção da Filadélfia.

(8) Von Humboldt (1767 - 1835), filósofo, estudioso de línguas e reformador universitário alemão, irmão mais velho do naturalista Alexander von Humboldt (1769 - 1859), escreveu Dos limites da ação do Estado (1792), recentemente publicado em português pela Topbooks, graças a co-patrocínio Instituto Liberdade (Porto Alegre)/Liberty Fund.

(9) Benjamin Constant de Rebecque (1767 - 1830), escritor, ensaísta e político franco-suíço, autor do importante ensaio "Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos" (baseado em conferência que proferiu no Ateneu de Paris, em 1819), que fundamenta o moderno regime representativo, publicado na revista Filosofia Política, 2, 1985 (UFRGS/Editora L&PM), com apoio do CNPq. Entre várias obras, escreveu famoso romance psicológico (Adolphe, em 1806). Avesso tanto ao absolutismo do antigo regime Bourbon quanto ao regime do Terror robespierriano e, mais tarde, também ao império de Napoleão Bonaparte, reconciliou-se com este e redigiu o projeto liberal dos chamados Cem Dias -- período compreendido entre a volta do imperador do exílio na ilha de Elba, Mediterrâneo, e seu degredo definitivo na ilha de Santa Helena, Oceano Atlântico, depois de derrotado pelas forças sob o comando britânico do duque de Wellington em Waterloo, na Bélgica (1815). A inovação de Constant, que introduziu no texto o chamado Poder Neutro, à parte da tríade Legislativo-Executivo-Judiciário, frutificaria no Brasil, sob a forma do Poder Moderador (privativo da Coroa, assessorada pelo Conselho de Estado), na Carta outorgada pelo imperador Pedro I, em 25 de março de 1824.

(10) Mill (1806 - 1873), economista, lógico e publicista inglês, filho do filósofo utilitarista escocês James Mill (1773 - 1836). Obras principais de Stuart Mill: Sistema de lógica (1843), Princípios de economia política (1848) , Considerações sobre o governo representativo (1861, uma defesa da adoção do sistema eleitoral da representação proporcional -- mediante o qual as diversas correntes de opinião e os grupos de interesse da sociedade são espelhados no parlamento -- contra o sistema majoritário do voto distrital puro, em vigor na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos até hoje -- o vencedor em cada distrito ganha a cadeira de deputado respectiva, e a minoria fica sem representação, mesmo havendo perdido por pequena margem de votos) e Sobre a Liberdade, com mais de uma edição no Brasil, genial panfleto contra qualquer ingerência na esfera individual de decisão e ação do indivíduo, proveniente quer do governo, quer da opinião pública, que não se justificasse pela proteção do mesmo direito de terceiros.

(11) De Tocqueville (1805 -1859), escritor e político francês, autor, entre outras obras, de A democracia na América (primeiro volume publicado originalmente em 1835 e o segundo, em 1840. Edições brasileiras: Belo Horizonte/ S. Paulo: Itatiaia/Edusp, 1977, em volume único; e, mais recentemente, S. Paulo, Martins Fontes, em dois volumes); O antigo regime e a revolução (1856; ed. bras.: Brasília: UnB, 1989); e Lembranças de 1848 ( póstuma, 1893; ed. bras.: S. Paulo: Companhia das Letras, 1989). Na primeira, Tocqueville baseou-se-se em suas observações de viagem aos Estados Unidos para fundamentar sua famosa tese do inexorável avanço da igualdade

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no mundo ocidental -- entendido como tendência crescente à deslegitimação das desigualdades fundadas quer nos costumes, quer nas leis --, com seus aspectos positivos e negativos; na segunda, valendo-se de farta documentação histórica, sustentou que, a par das óbvias rupturas com o passado, ainda assim o Estado criado pela Revolução francesa manteve e aprofundou a centralização administrativa do antigo regime; na terceira, recapitulou seus 10 anos de Câmara dos Deputados, como representante de um distrito da Normandia, com ênfase na crise política e social que derrubou o regime da Monarquia de Julho de 1830 (do rei Luís Filipe de Orleans) e produziu a Segunda República francesa, em que Tocqueville atuaria por pouco tempo como ministro das Relações Exteriores do presidente Luís Bonaparte, até o autogolpe dado por este,em 1851, empalmando o poder como Napoleão III. Preso por protestar contra o fechamento do Legislativo naquele episódio, Tocqueville acabaria se recolhendo a um exílio interno até sua morte, graças ao qual trouxe à luz a primeira parte do já referido O antigo regime e a revolução, obra que ficaria incompleta. Em 2003, graças ao erudito empenho de J. O. de Meira Penna, a editora da UniverCidade, do Rio, publicou edição crítica do Ensaio sobre a pobreza, de um ainda jovem Tocqueville (1835).

(12) Acton (1834-1902), expoente do catolicismo liberal inglês. O texto de duas palestras que proferiu em Bridgnorth, em 1977, é competentemente resumido pelo economista liberal brasileiro Roberto Fendt e publicado em fascículo da série Clássicos do Liberalismo como encarte ao número 26 , 2004, da revista Banco de Idéias, do Instituto Liberal (título: "Ensaios sobre a história da liberdade").

(13) Weber (1864 - 1920), jurista, economista, historiador e politólogo alemão, um dos mais influentes pçensadores do século XX. A meu ver, os melhores títulos de introdução ao pensamento weberiano são seus Ensaios de sociologia, organizados por Hans Gerth e C. Wright Mills, co várias edições braileiras (Zahar, Guanabara, LTC); o livro de Reinhard Bendix, Max Weber (um perfil intelectual), Brasília: UnB, várias reimpressões; e o monumental (e canônico) Max Weber (uma biografia), escrito por sua viúva, Marianne Weber, e finalmente publicado há pouco no Brasil pela Casa Jorge Editorial. O leitor interessado na metodologia weberiana precisa conhecer, de Gabriel Cohn, professor emérito da Universidade de São Paulo, Crítica e resignação (fundamentos da sociologia de Max Weber), S. Paulo: T. A. Queiroz, 1979, com reimpressões mais recentes. A obra propriamente política de Weber mais acessível ao leitor brasileiro, além do texto de sua conferência "A política como vocação" (no já referido volume de Ensaios de sociologia), é o importante ensaio Parlamento e governo, Petrópolis: Vozes, 1993. E, para uma breve análise comparativa dos pensamentos políticos de MW e Tocqueville, consulte o meu ensaio "Alexis de Tocqueville e MW (respostas políticas ao individualismo e ao desencantamento na sociedade moderna", publicado na coletânea A atualidade de Max Weber, organizada por Jessé Souza, Brasília: UnB, 2000, pp. 163-196, o qual reproduz a "Introdução" à minha tese de doutoramento em Ciência Política, "Homo democraticus/Homo burocraticus (Tocqueville, Weber e a política como arma contra o individualismo e o desencantamento)", defendida, em 1999, no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), disponível em www.iuperj.br

(14) Keynes (1883 - 1946),inglês, um dos maiores economistas do século passado. Tentou salvar o capitalismo dos efeitos política e socialmente devastadores da Grande Depressão mundial, desencadeada pela quebra da bolsa de Nova York, em 1929, receitando o aumento dos gastos governamentais (obras públicas, principalmente) para criar empregos e fortalecer a demanda agregada. A receita, constante de sua mais prestigiosa obra -- A teoria geral do emprego, do juro e do dinheiro --, foi em grande medida aplicada pelo ex-presidente americano Franklin Roosevelt, por meio da legislação econômica e social do New Deal, embora, em retrospectiva histórica, hoje saibamos que o impulso decisivo para que os Estados Unidos saíssem da depressão, 'puxando' a economia mundial, foi a mobilização econômica destinada a garantir a vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial. Ao final do conflito, Keynes, que já havia participado da delegação britânica à conferência de paz de Paris (Tratado de Versalhes,1919, fim da Primeira Guerra Mundial -- 1914 a 1918) e condenado duramente as pesadas 'compensações' impostas à Alemanha pelos vencedores (especialmente a França) no texto As conseqüências econômicas da paz, participou ativamente dos trabalhos na conferência de Bretton -Woods, Estados Unidos, onde foi traçada a arquitetura institucional da economia internacional (Banco Mundial, Fundo

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Monetário Internacional), em torno da hegemonia americana. Para uma visão de conjunto do seu pensamento de , veja o volume "Keynes" da coleção Grandes Cientistas Sociais, publicada pela editora Ática.

(15) Ortega y Gasset (1883 - 1955), espanhol, autor de ampla obra ensaística consagradora da filosofia raciovitalista, muito conhecido pela frase "Eu sou eu e a minha circunstância". Um dos seus textos de maior significado sociopolítico é A rebelião das massas, de 1930, publicado no Brasil pela Martins Fontes.

(16) Von Mises (1881 - 1973), economista liberal austríaco, radicado nos Estados Unidos, tendo lecionado na Universidade de Nova York. Sua obra maior, o livro Ação humana, foi publicada no Brasil pelo Instituto Liberal (www.il.org.br), assim como o manual econômco introdutório As seis lições.

Mises entronizou o consumo como motor da economiar e criticou a mentalidade anticapitalista da grande maioria dos intelectuais, inconformados e ressentidos do sucesso material de empreendedores que consideram menos brilhantes e, quase sempre, tipos vulgares e de um profundo mau gosto. (Seusespécimes abundam nos departamentos de Ciências Humanas das universidades de nossa pátria, onde ensinam os jovens a odiar o capitalismo democrático e a cultuar tiranos genocidas como o russo Vladimir Ilitch Ulianov, dito Lênin [1870-1924];o chinês Mao Zedong [1893 - 1976];o moribundo ditador cubano Fidel Castro [1926];e o seu irrequieto discípulo venezuelano,Hugo Chávez, além de candidatos frustrados à tirania, como o comunista italiano Antonio Gramsci [1891 -1937], que apesar -- ou, quem sabe, por causa -- do fracasso político representado por sua morte em um cárcere do regime fascista de Benito Mussolini [1883 -1945], tem sua vida e obra fortemente cultuadas nos círculos intectuários de nossa pátria, em razão de sua tese favorável à conquista do poder político pelos meios mais ou menos pacíficos de uma nova hegemonia intelectual e moral protagonizada por professores universitários, escritores, jornalistas e outros ocupantes de posições estratégicas na mídia de massa.)

(17) Hayek (1899 -1992), outro grande representante da chamada escola econômica austríaca. Sua obra mais popular é O caminho da servidão (InstitutoLiberal), publicado pela primeira vez em Londres, em 1942. Foi professor da London School of Economics e ganhou o Nobel de economia de 1974, dividindo-o com o sociólogo e economista sueco Gunnar Myrdal, estudioso dos problemas do subdesenvolivmento e também do negro nos Estados Unidos, com teses opostas ao ferrenho antiintervencionismo estatal de Hayek.Outros livros impoetantes: A Constituição da lberdade (edição UnB/revista Visão, início dos anos 80) e Law, legislation and liberty (1978, ao que eu saiba não traduzido)

(18) Aron (1905 -1983), filósofo da história, sociólogo, analista político e estratégico francês: As etapas do pensamento sociológico (Martins Fontes),O ópio dos intelectuais (UnB), Paz e guerra entre as nações (UnB), Pensar a guerra/Clausewitz (UnB, em dois tomos), Estudos políticos (UnB, 1985) e o Marxismo de Marx (Arx), entre numerosas obras,importantíssimas todas elas. Na Paris do pós-guerra, enquanto seu antípoda ideológico, o filósofo existencialista Jean-Paul Sartre, demonizava o imperialismo americano e aplaudia o totalitarismo comunista da União Soviética de Stalin -- antes de tornar-se maoísta e vedete crepuscular da revolta estudantil de maio de 68 ...-, fazendo vista grossa às execuções ou prisões em campos de oncentração de inúmeros opositores (reais ou imaginários) daquele regime, Aron, em obras como Dezoito lições sobre a sociedade industrial (UnB), Democracia e totalitarismo,A luta de classes, Em defesa da Europa decadente (com edições portuguesas), bem como em suas colunas de Le Figaro e L'Express, sem dar bola para a patrulha ideológica esquerdista, esbanjava lucidez analisando o sucesso do modelo híbrido de economia de mercado, democracia política e intervenção do Estado na promoção do bem-estar e da coesão sociais, vigente na América e na Europa ocidental, contra o pano de fundo da rivalidade Leste-Oeste na guerra fria como disputa de poder entre a aliança de nações capitalistas democráticas pertencentes à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), liderada pelos Estados Unidos, de um lado, e o bloco formado pela antiga URSS e seus regimes-satélites da Europa oriental, de outro.

(19) Berlin (1909 - 1997), ensaísta e historiador das idéia inglês de origem judaica,nascido em Riga, Letônia. Por toda a vida ligado ao All-Souls College da Universidade de Oxford, escreveu

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obras, já consideradas clássicas sobre o liberalismo e também sobre o antiiluminismo romântico, sobretudo alemão, tais como Quatro ensaios sobre a liberdade (UnB, 1981), Vico e Herder (UnB), Limites da Utopia (Companhia das Letras, 1991) , O sentido da realidade Civilização Brasileira, 2000, incluindo o ensaio "Discernimento político") e Contra la corriente (México, DF: FCE, 1992). Muitos dos seus mais famosos escritos inte gram a coletânea Estudos sobre a humanidade, organizada por Henry Hardy e Roger Hausheer (Companhia das Letras, 2002). Para a biografia de Berlin, muito interessante não só pelo que ele pensou e escreveu, mas também pelos episódios que viveu (analista do serviço de inteligência britânica na embaixada em Washington durante a Segunda Guerra Mundial) e pelas grandes personalidades mundiais que conheceu, veja Isaiah Berlin(uma vida), de Michael Ignatieff (Record, 2000) e Com toda a liberdade (Perspectiva, 2003), longa entrevista ao escritor iraniano Ramin Jahanbegloo, atualmente prisioneiro em seu país, onde poderá mesmo ser condenado à morte pelo regime teocrático xiita.

(20) Friedman (1912 - 2006), o mais influente pensador econômico do final do século passado, Nobel de economia de 1976, ex-professor da Universidade de Chicago, estando, nos seus últimos anos, ligado como pesquisador à Hoover Institution for War, Revolution and Peace, da Universidade Stanford, Califórnia. Autor de uma famosa história monetária dos Estados Unidos, de 1867 a 1960 -- onde reafrmou o clássico diagnóstico liberal da inflação como fenômeno decorrente do excesso de meios de pagamento sobre a disponibilidade de bens e serviços -- e de livros de popularização de suas idéias, escritos com sua mulher, Rose: Capitalismo e liberdade (de 1962; ed. bras.: coleção OS ECONOMISTAS, da Abril Cultural, várias reedições) -- em que apresentou a proposta liberal de políica social baseadano pagamento mensal de uma renda mínima a quem ganhasse abaixo de determinada quantia, o que permitiria eliminar as imensas burocacias governamentais de previdência e assistência sociais --, A tirania do status-quo e Livres para escolher (ed. bras.: Record).

(21) Sarmiento (1811 - 1888), escritor e estadista argentino, presidente da República entre 1868 e 1874. Em seu livro Facundo, analisou e discutiu a tradição caudilhesca do Pampa como obstáculo à implantação de uma sociedade liberal moderna.

(22) Paz (1914 -1998), peta, diplomata e humanista mexicano. Nobel de literatura de 1990. Autor de El laberinto de la soledad(México, DF: Fondo de Cultura Económica, 1959, segunda edição), visão erudita e original da formação sociocultural de seu povo. Escreveu a melhor introdução que conheço à antropologia estruturalista, Claude Lévi-Strauss, o el nuevo festin de Esopo Ed. bras.: Perspectiva). Ensaios políticos: El ogro filantrópico-- com este título, só pode mesmo tratar-se do Estado na América Latina... -- (México: Joaquín Mortiz, 1979. Ed. bras.: Guanabara, 1989) e Tiempo nublado (Barcelona: Seix Barral, 1983).

(23)Tavares Bastos (1839 - 1975), político e escritor alagoano, deputado geral , pelo Partido Liberal, no segundo reinado. Em A província -- republicada em 1997 pelo Senado Federal -- pregou a descentralização administrativa. Escreveu, também, entre outros trabalhos, Os males do presente e as esperanças do futuro (1861), Cartas do solitário (1862) e Estudos sobre a reforma eleitoral (1873).

(24) Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo (1849 - 1910), escritor, estadista e diplomata pernambucano. Em sua obra O Abolicionismo defendeu a libertação dos escravos e propôs políticas de promoção social e humana do negro para sua inserção no mundo do trabalho livre. Em Um estadista do Império (1897-1899, recentemente republicado pela Topbooks), biografia de seu pai, o senador José Tomás Nabuco de Araújo, traçou um amplo e minucioso panorama da política brasileira no segundo reinado. Membro-fundador da Academia Brasileira de Letras. Advogado do Brasil na questão de limites com a Guiana Inglesa, foi o primeiro embaixador brasileiro em Washington, onde morreu.

(25) Salles de Oliveira (1887 - 1945), engenheiro e estadista paulista. Fundou a Universidade de São Paulo (USP), em 1934, quando interventor federal em seu estado, designado pelo presidente Getúlio Vargas para aplacar a resistência paulista após a derrota da Revolução Constitucionalista de 1932. Eleito governador em 1935, era forte candidato à eleição presidencial programada para 1938, mas teve sua ascensão truncada pelo golpe político-militar do Estado Novo, um ano antes. Preso e, em seguida, exilado na Europa, voltou, a saúde seriamente abalada, em 1945, quando a

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ditadura varguista chegava ao fim, apenas para morrer no mesmo ano. Seus Escritos políticos foram organizados por Antônio Paim e publicados pela Arx/Siciliano, em 2002.

(26) Merquior (1941 -1991), diplomata, ensaísta e grande divulgador do liberalismo no Brasil do final do século XX.Sua longa relação de obras inclui: Rousseau e Weber (dois ensaios sobre a teoria da legitimidade), tema de sua tese de doutoramento pela London School of Economics, ed. bras.: Zahar; As idéias e as formas; O argumento liberal; e A natureza do processo (todos títulos publicados pela Nova Fronteira). Historiou e analisou, com precisão e elegância as grandes correntes do liberalismo e os seus principais autores na obra póstuma Liberalismo (antigo e moderno), publicada peola Paz e Terra em 1991.

Nelson Rodrigues (1912 - 1980) considerava Roberto (de Oliveira) Campos (1917 - 2002) a maior inteligência do Brasil; também neste ponto, estou com Nelson e não abro. Embaixador do Brasil em Washington e na Corte de St James (Londres), ministro do Planejamento de 1964 a 1967 (governo do marechal-presidente Humberto Castelo Branco), foi também senador por seu Mato Grosso natal, sob a legenda da Arena, depois PDS, em seguida PPR, finalmente PPB (hoje PP), quando participou da Constituinte de 1987/88 criticando o exagerado estatismo da Carta ali produzida. Depois do Senado, foi eleito três vezes deputado federal pelo Rio de Janeiro. Os bem-humorados e fundamentados artigos dominicais para O Globo (reproduzidos no Estado de S. Paulo e mais tarde na Folha de S. Paulo) desancavam a teimosia do atraso brasileiro e traduziam para o leitor as complexidades da política internacional, tendo sido compilados em vários livros, dentre os quais, Além do cotidiano, O século esquisito e Ensaios imprudentes (Record). Foram a minha primeira escola de liberalismo. Sua defesa da participação de capitais estrangeiros na economia brasileira, de modo a compensar nossa crónica deficiência de poupança interna e reduzir a defasagem tecnológica do país, e sua oposição à política de reserva de mercado para informática, que considerava fator de prolongamento dessa mesma defasagem, levaram as esquerdas e setores da direita patrioteira a tachá-lo de Bob Fields, símbolo do entreguismo etc. Campos seria vingado pela história: pouco tempo depois da derrocada do comunismo soviético, no início dos anos 90, o Folhetim, caderno de idéias então publicado pela Folha de S. Paulo, estampou na capa seu sorriso de satisfação, de quem ri por último, com a frase: OK, BOB, VOCÊ VENCEU. Seu livro de memórias, A lanterna na popa (Topbooks, 2001, quarta edição, revista e aumentada, em dois volumes). é indispensável para quem quer conhecer os bastidores políticos e econômicos das grandes decisões nacionais e internacionais do último meio século, narradas por alguém que testemunhou de perto muitos desses lances, quando não os protagonizou.

(27) Paim (1927, em Jacobina/BA), dono da mais cativante biografia entre os intelectuais que conheço. Desiludido com o marxismo, que conhecera na prática, na primeira metade dos anos 50, quando, membro do PCB, foi destacado para a Escola de Quadros do PCUS, em Moscou, aproximou-se do pensamento liberal, assim inaugurando uma carreira intelectual brilhante e produtiva. Ex-professor de filosofia na PUC e na Universidade Gama Filho, no Rio, hoje se divide entre Lisboa, onde leciona no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica de Portugal, e Brasília, atuando como assessor do Instituto Tancredo Neves (dentro em breve Instituto Liberdade e Cidadania), do PFL. Seu ritmo de lançamento supera a média de um livro por ano, com obras influentes nas áreas de história da filosofia, análise sociopolítica e divulgação da cultura humanística, tais como: História das idéias filosóficas no Brasil (quinta edição, Londrina: Universidade Estadual de Londrina [UEL], 1997) ; Problemática do culturalismo (Porto Alegre: EdiPUC-RS, 1995; O liberalismo contemporâneo (segunda edição, Rio: Tempo Brasileiro, 2000); Evolução histórica do liberalismo (em co-autoria, BH: Itatiaia, 1987); a minúscula e preciosa 'lista das listas' de Grandes Livros, Leituras ligadas à cultura geral (Rio: Expressão e Cultura, 2001). Colaborou em O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde, entre numerosos periódicos brasileiros, e atualmente é articulista quinzenal de O Público, de Lisboa.

(28) Lafer (1941, na capital paulista), jurista, cientista político e escritor, é professor -titular de Direito Internacional da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP). Foi ministro das Relações Exteriores do governo Collor e do primeiro governo FHC (1992 e 1995 - 1999, respectivamente).Celso Lafer é o pioneiro e maior divulgador no Brasil do pensamento da filósofa judia alemã Hannah Arendt (1906 - 1975), de quem foi aluno na Universidade de Cornell, estado de Nova York, por onde se doutorou em Ciência Política, com tese sobre o Plano de Metas do

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governo do presidente Juscelino Kubitschek. Algumas de suas principais obras: Hannah Arendt (pensmamnto, persuasão e poder), Paz e Terra, 1979; O sistema político brasileiro (estrutura e processo), Perspectiva, 1975; Hobbes, o direito e o Estado Moderno, publicado pela Associação dos Advogados de São Paulo, em 1980; Paradoxos e possibilidades e O Brasil e a crise mundial (ambos sobre relações internacionais e política externa; Nova Fronteira, 1982, e Perspectiva, 1984, respectivamente); Desarmamento, comércio e direitos humanos, pela Paz e Terra, 1999 (uma visada sobre estes três temas mundiais sob a perspectiva de sua esxperiência como embaixador do Brasil aos órgãos das Nações Unidas sediados em Genebra);e Ensayos liberales (México:FCE, 1993).

(29) O embaixador aposentado, ensaísta, analista junguiano e ex-professor de Relações Internacionais na UnB, José Osvaldo de Meira Penna (90 anos em 2007!) é o decano da inteligência liberal brasileira. Costumo dizer aos meus alunos que a leitura de seu Em berço esplêndido (Topbooks, segunda edição, revista e aumentada, 1999), original análise do caráter nacional brasileiro, é algo mais proveitoso e instrutivo que a maioria dos cursos de pós-graduação em ciências humanas que eu conheço. Escreve muito e bem; aqui está uma pequena relação de suas obras, todas elas um primor de erudição, que poderiam muito bem ser simbolizadas pelo lema "Tudo que é humano me interessa": A ideologia do século XX (segunda edição, Nórdica/Instituto Liberal); O elogio do burro (Agir, 1980); O espírito das revoluções (Rio: Faculdasde da Cidade, 1997) e o recente Polemos (UnB), diálogo com o evolucionismo darwiniano acerca da agressividade humana.

Velez (1943, na Colômbia), filósofo e analista político, é o mais importante historiador das idéias positivistas no Brasil. Professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, onde coordena o Centro Paulino José Soares de Sousa (nome do Visconde de Uruguai, 1807 - 1866, político conservador, diplomata e estadista do segundo reinado) de Pesquisas Estratégicas.. Recentemente, o Senado Federal republicou seu Castilhismo (uma filosofia da república). Autor prolífico, escreveu, entre outras obras importantes, Oliveira Vianna e o papel modernizador do Estado brasileiro (Londrina, 1997, originalmente sua tese de doutoramento em Pensamento Luso-Brasileiro pela Universidade Gama Filho, Rio, 1982); A democracia liberal segundo Alexis de Tocqueville (Insituto Tancredo Neves em co-edição com o selo Mandarim, da Editora Siciliano, 1998); Ética empresarial (conceitos fundamentais), Londrina: Instituto Humanidades, 2003. Membro do Conselho Técnico da Confederação Nacional do Comércio, brinda, com freqüência, os leitores de sua revista, Carta Mensal, com perfis biobibliográficos de grandes nomes do pensamento liberal e análises oportunas da conjuntura nacional e internacional.

Gianetti (1957), doutor em economia pela Universidade de Cambridge, foi professor da Faculdade de Economia e Administração de Empresas da USP e hoje dirige o Departamento de Economia da Faculdade Ibmec, São Paulo Sua tese de doutoramento foi traduzida como O mercado das crenças e publicada pela Companhia das Letras, editora de outros livros seus, a exemplo de Vícios privados, benefícios públicos?; Auto-engano; e o mais recente O valor do amanhã.

(30) Veja o site do think-tank American Enterprise Institute for Public Policy Research, influente centro de estudos políticos, econômicos e sociais baseado em Washington (www.aei.org).Conheço, pelo menos, duas obras de Novak, publicadas no Brasil: O Espírito do capitalismo democrático (Nórdica, 1985), título que é uma alusão à famosa tese de Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo (1904/5; ed. bras.: São Paulo: Pioneira, 1967), que estabeleceu importante conexão entre a doutrina do puritanismo calvinista, o modo como era vivenciada pelos seus fiéis no norte da Europa (temerosos e incertos quanto ao seu destino além-túmulo, já que João Calvino -- 1509 - 1564 -- , teólogofrancês de Genebra e, ao lado de Lutero, o maior nome da Reforma protestante, sustentava doutrina segundo a qual todos os seres humanos haviam sido predestinados, por Deus, à bem-aventurança ou à danação eterna desde o início dos tempos, não estando ao alcance da limitada e falível inteligência do homem saber das razões orientadoras de Seus imperscrutáveis desígnios) e o surgimento de uma economia dinâmica, inovadora e próspera, baseada na metódica e rigorosa reaplicação dos lucros na expansão dos negócios (se o Senhor não dá sinais,digamos, oficiais de Sua escolha, poder-se-ia, ao menos, tentar obter deixas 'oficiosas', com base no maior ou menor sucesso material obtido por qualquer indivíduo na sua profissão ou no seu negócio). Novak quer mostrar que elementos de

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uma ética favorável ao desenvolvimento da economia de mercado já poderiam ser discernidos nos ensinamentos cristãos de sábios medievais, como o próprio Tomás de Aquino. Sua segunda obra publicada no Brasil é Será a liberdade?, uma análise crítica da Teologia da Libertação, que, ao contrário, exalta as virtudes da pobreza.

(31) Eis aqui os títulos de algumas imprtantes obras de Strauss, nenhuma delas em português, por enquanto: What is political philosophy? (University of Chicago Press: 1988); Natural right and history (idem, 1965); Persecution and the art of writing (idem, 1988); e, com Joseph Cropsey, a organização da monumental Historia de la filosofía política (México: FCE, 1993). O livro comentado no corpo deste artigo é a coletânea Liberalism ancient and modern (Cornell University Press, 1989), especificamente os ensaios "What is liberal education?", "Liberal education and responsibility" e "Perspectives on the good society".

(32) Veja, por exemplo, o já citado texto da conferência de Weber "Politica como vocação", na coletânea Ensaoios de sociologia.

(33) Berlin historiou e comentou magistralmente essa dicotomia em seu ensaio "Dois copnceitos de liberdade", incluído na já citada coletânea Quatro ensaios sobre a liberdade.

(34) Aristóteles, A política (livro VI), Rio: Ediouro, sem data.

(35) Eis aí o cerne da distinção proposta pelo já mencionado Benjamin Constant de Rebecque, entre liberdade antiga e liberdade moderna.

(36) A ética protestante..., p. 131.

(37) No belo livro de memórias de Hook, Out of step (an unquiet life in the twentieth century). New York: Harper and Row, 1987, pp. 161-162.

(38) Veja, por exemplo, ensaio de Weber sobre o socialismo, baseado em sua palestra a oficiais do exército austríaco, na Universidade de Viena, em 1918. Max Weber, Political writings, coletânea organizada por Peter Lassman e Donald Spears. New York: Cambridge University Press, 1994. (Em espanhol: Max Weber - escritos políticos, em dois vols.México: Folios, 1981)

(39) Strauss, Liberalism ancient and modern, p. 262.